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A medialidade nos verbos do grego antigo e em português: análise comparada Caio Vieira Reis de CAMARGO 1 RESUMO: Apresentação de uma análise comparada de como a voz média, categoria marcada morfologicamente no grego antigo pode ser avaliada, do ponto de vista semântico, em construções do português. Nossa apresentação se inicia com um panorama geral dos estudos linguísticos sobre a medialidade para, em seguida, tratar de seu emprego no grego antigo para, então, analisar algumas abordagens que tratem da voz média no português. Realizadas essas apresentações, faremos uma breve exposição de alguns exemplos contextualizados de construções médias do grego antigo, a fim de verificar como essas ocorrências são traduzidas para o português e, assim, analisar se nessa transposição a medialidade pode ser identificada na língua portuguesa. PALAVRAS-CHAVE: voz média; análise comparada; grego antigo; português. ABSTRACT: This paper aims to present a comparative analysis of how the middle voice, morphologically marked on ancient greek verbs, can be evaluated, semantically, on portuguese examples. We first present a general panorama about linguistic studies on the middle voice, then we expose how the middle voice appears in ancient greek to, finally, analyze approaches that talk about the middle voice in portuguese. Once we finish this first part, we start an analysis on ancient greek middle voice examples to verify how they are translated to portuguese and, thus, se if the content of the middle verb can be identified in portuguese examples. KEY WORDS: middle voice; comparative analysis; ancient greek; portuguese Introdução Nos últimos anos, trabalhos voltados para as línguas clássicas ganharam força, já que com as novas correntes de pensamento linguístico, novas propostas e abordagens surgiram, as quais, embora tenham uma língua literária, isto é, não usada para a comunicação, como objeto de estudo, permitem a maximização de suas reflexões, podendo ser aplicadas como parâmetros para qualquer outro estudo linguístico, como, por exemplo, para o de uma língua moderna. 1 Professor substituto de língua e literatura gregas e doutorando no programa de Linguística e Língua Portuguesa na Universidade Estadual Paulista UNESP Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara; Rodovia Araraquara Jaú, Km 1. CEP: 14800-901 Araraquara SP. [email protected]

RESUMO: PALAVRAS-CHAVE - baraodemaua.br · métodos de ensino do grego antigo, atribuindo o emprego da voz média a noção de interesse por parte do sujeito, sendo que esse traço,

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A medialidade nos verbos do grego antigo e em português: análise comparada

Caio Vieira Reis de CAMARGO 1

RESUMO: Apresentação de uma análise comparada de como a voz média, categoria

marcada morfologicamente no grego antigo pode ser avaliada, do ponto de vista

semântico, em construções do português. Nossa apresentação se inicia com um

panorama geral dos estudos linguísticos sobre a medialidade para, em seguida, tratar de

seu emprego no grego antigo para, então, analisar algumas abordagens que tratem da

voz média no português. Realizadas essas apresentações, faremos uma breve exposição

de alguns exemplos contextualizados de construções médias do grego antigo, a fim de

verificar como essas ocorrências são traduzidas para o português e, assim, analisar se

nessa transposição a medialidade pode ser identificada na língua portuguesa.

PALAVRAS-CHAVE: voz média; análise comparada; grego antigo; português.

ABSTRACT: This paper aims to present a comparative analysis of how the middle

voice, morphologically marked on ancient greek verbs, can be evaluated, semantically,

on portuguese examples. We first present a general panorama about linguistic studies on

the middle voice, then we expose how the middle voice appears in ancient greek to,

finally, analyze approaches that talk about the middle voice in portuguese. Once we

finish this first part, we start an analysis on ancient greek middle voice examples to

verify how they are translated to portuguese and, thus, se if the content of the middle

verb can be identified in portuguese examples.

KEY WORDS: middle voice; comparative analysis; ancient greek; portuguese

Introdução

Nos últimos anos, trabalhos voltados para as línguas clássicas ganharam força, já

que com as novas correntes de pensamento linguístico, novas propostas e abordagens

surgiram, as quais, embora tenham uma língua literária, isto é, não usada para a

comunicação, como objeto de estudo, permitem a maximização de suas reflexões,

podendo ser aplicadas como parâmetros para qualquer outro estudo linguístico, como,

por exemplo, para o de uma língua moderna.

1 Professor substituto de língua e literatura gregas e doutorando no programa de Linguística e Língua

Portuguesa na Universidade Estadual Paulista – UNESP – Faculdade de Ciências e Letras de

Araraquara; Rodovia Araraquara – Jaú, Km 1. CEP: 14800-901 Araraquara – SP.

[email protected]

Nesse sentido, este trabalho visa a apresentar a voz média, a partir de um

percurso diacrônico acerca dos estudos linguísticos a esse respeito, e comparar essa

categoria, morfologicamente marcada no grego antigo, com construções do português,

que não prevê, em sua gramática, a existência desse traço na construção verbal. Nossa

apresentação se inicia com um panorama geral dos estudos linguísticos sobre a

medialidade para, em seguida, tratar de seu emprego no grego antigo para, em

sequência, analisarmos algumas abordagens que tratem da voz média no português.

Feitas essas apresentações, faremos, então, uma breve análise de alguns exemplos

contextualizados de construções médias do grego antigo, a fim de verificar como essas

ocorrências são traduzidas para o português e, assim, analisar se nessa transposição a

medialidade pode ser identificada na língua portuguesa.

1. A voz média – breve panorama histórico

A voz média grega foi o tema principal de nossa dissertação de mestrado2 e nos

permitiu uma aprofundada e extensa reflexão ao seu respeito. Uma vez propedêutico

nosso foco sobre a medial, cabe neste artigo, portanto, ressaltarmos alguns dos

principais pontos com relação aos trabalhos e estudos linguísticos acerca desse tema.

Os estudos acerca da voz média variam em relação à abordagem utilizada pelos

autores que os propõem. Existem trabalhos voltados para o sistema médio em línguas

modernas, outros que abarcam estudos comparados entre sistemas médios e reflexivos

e, de maneira geral, a quantidade de trabalhos em que há o emprego de novas teorias da

linguística para estudo de línguas clássicas, por exemplo, ainda é pequena. Diante de

uma categoria verbal de difícil classificação, com construções de sentido passivo,

reflexivo e verbos ora transitivos, ora intransitivos, a voz média chamou a atenção dos

mais diversos estudiosos, que buscaram, por meio de variados escopos, definir essa

diversidade, na tentativa de estabelecer seu sentido prototípico, capaz de contemplar as

principais características dessa categoria verbal.

Um dos primeiros estudos que remete à abordagem sobre a voz média é o de

Kühner e Gerth (1898), que afirmam:

A forma medial designa um ato/atividade de fala/expressão, a qual parte do

sujeito e retorna para ele próprio. Essa atividade de fala, que parte do sujeito

e a ele retorna, pode estar ou simplesmente limitada ao sujeito, como

2 Para maiores detalhes, cf. CAMARGO, V, R, C. Tipologia e uso da voz média em Apolodoro:

abordagem semântica baseada em corpus. Disponível em: http://www.fclar.unesp.br/#585,679

em: eu me aconselho, , eu me lavo, ou a um objeto

de sua esfera, (...), como em , eu bato na minha

cabeça, , eu subjugo o território 3 (...). (p.100)

Essa definição chama bastante atenção principalmente pelo fato de diferenciar-se

tanto das definições de outros autores, surgidas posteriormente. No entanto, até certo

ponto há uma proximidade para com as teorias contemporâneas acerca da voz média, tal

qual a de Startingpoint/Inicitator (ausgeht, na citação), como também a de Endpoint

(zurückgeht) na cadeia de ação, conceitos esses que serão abordados ainda neste artigo.

Vale ressaltar que a definição de Kühner e Gerth (1898) trata da voz média em seu

sentido restrito, ou seja, excluem a categoria médio-passiva. Muitos estudos,

principalmente os de sintaxe gerativa, utilizaram o termo construção média para

designar um par alternativo em que o membro derivado designa uma situação genérica

com um sujeito paciente e um agente implícito.

Nos estudos linguísticos mais contemporâneos acerca das vozes verbais,

algumas formulações mais familiares acerca do sentido da voz média são:

a) “A voz média denota que o sujeito está, de alguma maneira especial, envolvido

ou interessado na ação do verbo." (GILDERSLEEVE 1900, p.64);

b) "Verbos (...) que têm posição na esfera do Sujeito, nos quais o Sujeito todo

parece participante/implicado4" (BRUGMANNB 1903, p.104)

c) "Na voz ativa, os verbos denotam um processo que se realiza a partir de um

sujeito e sem ele; na média, que é a diátesis a definir por oposição, o verbo

indica um processo em que o sujeito é o foco; o sujeito está no interior do

processo." (BENVENISTE 1966, p.172);

d) "Em indo-europeu e em grego, as desinências médias indicam que o sujeito está

interessado de uma maneira pessoal no processo." (MEILLET 1937, p.244).

e) "As implicações da média (quando em oposição com a ativa) são que a ação ou

estado afeta o sujeito do verbo ou seus interesses." (LYONS 1969, p.373).

3 Die Medialform bezeichnet eine Thätigkeitsäusserung, welche von dem Subjekte ausgeh und auf

dasselbe wieder zurückgeht. Diese von dem Subjekte ausgehende und auf dasselbe wieder zurückgehende

Thätigkeitsäusserung kann entweder bloss auf das Subjekt beschränkt sein, als: , ich berate

mich, , ich wasche mich, oder auf ein Objekt seiner Sphäre, (...), als

e ich schulg mir das Haupt, , ich unterwarf mir das Land

4

Com relação a essas definições, notamos que Gildersleeve (1900) e Meillet

(1937) se voltam para a questão do interesse do sujeito oracional, enquanto Brugmann

(1903) e Benveniste (1966) referem-se à noção de que o sujeito todo participa e que está

interno ao processo. A definição de Lyons (1969) é a que mais se aproxima das teorias

contemporâneas que tratam da voz média, já que abarca os dois sentidos, o passivo

(afeta o sujeito) e o sentido indireto reflexivo (seus interesses). A definição de Meillet

(1937), por outro lado, é a mais comumente utilizada, principalmente, em gramáticas e

métodos de ensino do grego antigo, atribuindo o emprego da voz média a noção de

interesse por parte do sujeito, sendo que esse traço, embora existente em alguns casos,

não é único e nem sempre tão evidente. Esse é, inclusive, o raciocínio seguido por

Humbert (1964), ao afirmar que na voz média exprime que "a ação realizada possui aos

olhos do sujeito uma significação pessoal, o que significa que a ação se refere, quer ao

sujeito ele mesmo, quer àquilo que constitui sua própria esfera". Lyons (1969) usa o

verbo afetar num sentido amplo o bastante para ser aplicado a todos os sentidos da

média.

De maneira geral, com base no modelo cognitivo de Langacker (1900), a voz

média pode ser definida como um código marcado de partida da oração transitiva

prototípica. Ao contrário desta, o sujeito, de algum modo ou de outro, sofre o efeito do

evento. Esse efeito pode ser de natureza física, mental e pode ser direto ou indireto

(nesse caso envolve um objeto externo). A representação para essa situação é

demonstrada na figura 1.

Figura 1 - A voz média no modelo cognitivo de Langacker

As setas representam o processo expresso pelo verbo e, nesse caso, mostram o

traço afetação do sujeito, principal característica dos verbos construídos na voz média.

Em outras palavras, a ação que partiu da entidade A, de alguma forma, teve efeito nela

mesma, isto é, de alguma forma A foi afetado pelo processo. Sendo esse um modelo

prototípico, com exceção da construção médio-passiva, todos os outros empregos

podem ser esquematizados dessa forma.

A B

Um dos mais completos trabalhos acerca da voz média é, sem dúvida, o de

Kemmer (1993), que reúne um importante estudo acerca da voz média em diferentes

línguas no mundo, mais especificamente, uma análise tipológica comparada de sistemas

médios de trinta línguas. No capítulo dois de sua obra, a autora nos apresenta um

inventário contemplando diferentes tipos de voz média frequentemente marcados

morfologicamente pelas línguas, nomeando e enumerando treze categorias dentre as

quais, por ordem de apresentação e das línguas de ocorrência, temos:

a) Arrumação ou cuidado corporal: encontrado em línguas como o jola; no latim, lavor,

no húngaro etc.

b) Movimento de não translação: nórdico antigo; húngaro, alemão.

c) Mudança na postura corporal: jola, alemão e húngaro.

d) Média indireta: grego antigo, turco e latim.

e) Eventos naturalmente recíprocos: nórdico antigo, húngaro e latim.

f) Movimento translacional: grego antigo, bahasa indonésio, pangua.

g) Média emotiva: gugu yimiddhir, alemão, mojave.

h) Atos de fala emotivos: latim, alemão e grego clássico.

i) Outros atos de fala: mojave, latim e húngaro.

j) Média cognitiva: latim, nórdico antigo e mohave.

k) Eventos espontâneos: changana, turco e nórdico antigo.

l) Média logofórica: islandês

m) Médias facilitadoras, impessoais e passivas: canuri, alemão e francês.

Não é nosso objetivo esmiuçar cada uma das definições encimadas, cabe,

contudo, salientar que muitas dessas categorias são encontradas naquelas estabelecidas

por Allan (2003), com algumas diferenças quanto à terminologia empregada. De

qualquer forma, em relação a esses critérios elencados por Kemmer (1993), com

exceção da média logofórica e da facilitadora, todas as demais podem ser

exemplificadas no grego antigo. Em 1, por exemplo, o sentido é o mesmo que o da

Média Reflexiva Direta, empregada por Allan (2003) e, consequentemente, também

neste trabalho; os usos 2, 3 e 6 se equivalem ao uso pseudo-reflexivo de Rijksbaron

(1994), que reúne, quase que exclusivamente, verbos de movimento. A média indireta

(4) é a mesma que a média reflexiva indireta no grego. 5, 8, 9 e 10 são os verbos

depoentes do grego, tais como: (5) , lutar; (8) , lamentar; (9)

falar; (10) , calcular. O emprego 7 e 11 correspondem ao uso

pseudo-passivo de Rijksbaron (1994) (7) , temer; (11) derreter.

Em meio a essas classificações, Kemmer (1993) afirma que, embora até certo pontos

diversos esses empregos, a propriedade semântica que os une é a relativa

distinguibilidade de participantes, afirmando o seguinte:

Relativa elaboração de eventos pode ser pensada como o grau em que

diferentes aspectos esquemáticos de uma situação são separados e vistos

como distintos pelo falante. Este efetivamente pode escolher enfatizar ou não

a resolução com que um evento particular é visto, a fim de dar ênfase a sua

estrutura interna em uma extensão maior ou menor5. (p.211)

Essa propriedade, segundo a autora, acaba por englobar a noção de afetação do

sujeito e, dessa forma, a voz média pode ser disposta numa escala gradativa de dois

extremos, entre eventos de dois participantes e de eventos com um participante.

Evento de dois

participantes

Reflexiva Média Evento de um

participante

+ <-------------------------------------------------------------------------------------------------> -

Grau de distinguibilidade dos participantes

Fig.2

Primeiramente, para Kemmer (1993), as noções fundamentais na interpretação

do valor semântico da medial são o Initiator e Endpoint6. Para a autora, a oração

transitiva é o modelo conceptual básico para entender essas noções, as quais são papéis

semânticos gerais e englobam outros vários, e mais específicos. Initiator abarca os

papéis que envolvem uma conceituação de “ponto de partida” de um evento, tal como

agente, experienciador e fonte mental. Endpoint, por outro lado, engloba os papéis de

"ponto de chegada" como paciente, recipiente e beneficiado. Uma vez que eles

englobam papéis semânticos mais concretos, são chamados de macro-papéis pela

autora. A partir dessa definição de marco-papéis, Kemmer (1993), então, define que a

voz média por ser classificada como uma categoria de voz que apresenta tanto Initiator

5 Tradução nossa.

6 Initiator equivale, em português, à noção de iniciador ou ponto de partida, enquanto Endpoint é ponto

final ou de chegada. Diante dessas opções de tradução, optamos, neste trabalho, por manter os termos

em inglês, remetendo-nos aos originais empregados por Kemmer (1993).

quanto o Endpoint, em concordância com a teoria de Langacker (1979). Em relação ao

esquema apresentado na figura 2, nos extremos da escala estão os eventos de um e dois

participantes. Este último, para Kemmer (1993) possui participantes bem distinguíveis,

sendo os elementos Initiator e Endpoint entidades totalmente separadas. Num evento

reflexivo, a distinguibilidade é menor; o marcador reflexivo ( , se pensarmos no

grego antigo) aponta para uma correferencialidade dos participantes no evento em que

ambos são normalmente entidades distintas. Na reflexiva, a separação de dois

participantes é, portanto, até certo ponto, mantida. No tipo média os dois papéis,

Iniciador e Endpoint, são reunidos num único participante. Assim, a distinguibilidade

de participantes é mínima, embora maior em comparação a eventos de apenas um

participante. No caso da média, um certo grau de complexidade interna existe por

virtude do aspecto iniciador e afetado que é invocado.

Torna-se adequado, contudo, salientar que especificamente no grego antigo, essa

conclusão de Kemmer parece não ser totalmente adequada. Se pensarmos que o

principal traço semântico dos verbos médios em grego contempla o elemento afetação

do sujeito, podemos atribuir essa noção à de Endpoint. Ocorre que existe uma diferença

no sistema médio grego em comparação ao de outras línguas, justamente o fato de na

língua helênica o sujeito oracional não ser equivalente, sempre, ao Initiator, visto que a

voz média grega contempla também o sentido canônico da passiva. Se pensarmos nas

línguas europeias modernas elencadas por Kemmer, cujo sistema medial se originou de

marcadores reflexivos, essa diferença se torna bastante pertinente. Nessas línguas,

segundo a autora, a categoria prototípica está ligada a ações de arrumação ou

possivelmente às do tipo de movimentação corporal, como mudança na postura corporal

e movimento translacional e não translacional, ao contrário do grego antigo, conforme

salienta Allan (2003), em que os verbos de arrumação são relegados a um emprego de

importância inferior, devido à baixa frequência, enquanto que os processos mentais são

o pilar central de emprego da voz média7. Novamente, tal como fizemos com o esquema

de representação da media com o modelo cognitivo de Langacker (1994), os conceitos

Initiator e Endpoint podem ser atribuídos como características da voz média, porém não

em sua totalidade. No entanto, essas noções são de extrema importância, uma vez que

relegam uma quantidade bem menor de exceções à definição, ao contrário de muitas das

7 Com relação à conclusão de Allan (2003), discutimos esse resultados com base em nossa análise in

CAMARGO, V, R, C. Tipologia e uso da voz média em Apolodoro: abordagem semântica baseada em

corpus. Disponível em: http://www.fclar.unesp.br/#585,679

abordagens da média, que como regra geral, proporcionavam uma enorme quantidade

de exceções. Kemmer (1993) ainda nos apresenta importantes reflexões nos capítulos 3

e 4 de sua obra, apontando para os diferentes empregos médios e reflexivos existentes

na língua do mundo, os quais, em sua maioria, podem ser exemplificados no grego

antigo. A autora descreve, por exemplo, a expansão do pronome reflexivo se, ora usado

como apassivador, como um processo de gramaticalização, cujo sentido passa de um

uso reflexivo direto enfático, como visto em latim, a um sentido médio abstrato nas

línguas românicas. Esse processo semântico generalizador está associado a outros

acontecimentos de gramaticalização: cliticalização (línguas românicas), erosão (perda

de substância fonológica); afixação (em surselva) e a distribuição do se da terceira

pessoa para todas as outras (também no surselva). E assim conclui seu livro no capítulo

6, com um mapa semântico que reúne os tipos de empregos da voz média, baseado nas

propriedades semânticas compartilhadas que foram reveladas pelos dados tipológicos e

diacrônicos analisados na obra. Tendo esse mapa base numa larga coleção de dados

tipológicos, afirma-se que possui validade universal. Em outras palavras, as relações

semânticas estabelecidas no mapa são relevantes a todas as línguas.

Na seção a seguir, mostraremos como a teoria de voz média pode ser aplicada no

grego antigo, elencando critérios de classificação para seu emprego na língua.

2. A voz média no grego antigo

As gramáticas do grego antigo deixam clara a existência de três vozes verbais

presentes na língua, todas marcadas morfologicamente, sendo elas: ativa, passiva e

média. De modo comparado às línguas modernas, principalmente em relação às línguas

neolatinas, as duas primeiras operam por meio de mecanismos semelhantes, enquanto a

média, por sua vez, torna-se um traço restrito às línguas clássicas8. É comum um

estudante de grego antigo, ainda nos momentos iniciais de seu processo de

aprendizagem da língua, associar a voz média à voz reflexiva, presente nas línguas

modernas, muitas vezes em decorrência das explicações que encontra em materiais de

apoio a esse assunto. Entretanto, à medida em que esse aluno se depara com os textos

helênicos, nota que, por mais que exista, ocasionalmente, alguma semelhança entre elas,

há empregos da medial que não condizem com a forma de operação de sua língua

8 Quando restringimos a voz média às línguas clássicas, pensamos, sempre, do ponto de vista

morfológico. Semanticamente, contudo, tal qual analisaremos aqui, há trabalhos que tratam da

medialidade em línguas modernas.

nativa. Muitas dúvidas, de fato, surgem acerca do emprego da voz média, não só pela

sua relativa distância para com uma equivalência com uma língua moderna, mas

também pela versatilidade de seu emprego, que, muitas vezes, dificulta criar uma

intersecção que possa ligar as várias formas de se empregá-la.

No grego antigo, conforme salientamos, a primeira distinção feita entre as vozes

ativa e média refere-se ao ponto de vista morfológico, já que ambas apresentam

desinências específicas para diferentes tempos e modos. Vejamos um exemplo do verbo

9 (stélo – enviar) no presente do indicativo, nas vozes ativa e média:

Presente do indicativo ativo Presente do indicativo médio

Note que as desinências assinaladas em negrito deixam claro a variação de voz:

ει, desinência de 3 p.sg do singular do presente do indicativo opõe-se à εται, desinência

da 3 p.sg do presente médio do indicativo. Os dicionários de grego, por sua vez, quando

diante da possibilidade de um verbo com formas ativa e média, apresentam as

diferenças de significado entre ambas, algumas vezes com exemplos contextualizados,

sem, contudo, aprofundar na questão, o que nem sempre satisfaz a dúvida do estudioso.

Se estamos diante de um verbo, cujas formas ativa e média possuem sentidos distintos,

resta a pergunta: por que essas formas coexistam e em que consiste essa diferença?

Embora haja sinônimos, a coexistência de três vozes verbais, especialmente ativa e

média, sugere-nos que os autores, e possivelmente os falantes, tornavam essa escolha

motivada, de modo a ser possível encontrar uma sistematização para a alternância

dessas ocorrências.

Tendo em vista os estudos linguísticos encimados, de maneira geral, com base

nas teorias mais recentes, a voz média é caracterizada por apresentar o traço afetação do

sujeito, isto é, numa oração, o sujeito, de alguma forma, é afetado pela ação ou processo

9 Entre parênteses está a transliteração.

expressado pelo verbo. Fazendo uso dessa definição, Allan (2003) apresenta um dos

mais completos trabalhos de pesquisa de voz média acerca do grego antigo, com base

em conceitos semântico-cognitivos e uma abordagem baseada em corpus, em que

defende a ideia de que essa categoria gramatical pode ser analisada como uma categoria

de rede complexa10

. O autor considera os tipos de uso da medial organizados por

Rijksbaron (1994) envolvidos numa relação semântica de forma polissêmica, de modo

que em modelos categóricos complexos, essas relações são chamadas de extensões,

sendo que, embora haja traços semânticos compartilhados por todas, há traços salientes

em que se diferenciam. Assim, Allan (2003) define onze classificações para o emprego

da voz média voltadas, especificamente, para seu uso no grego antigo, sendo elas:

a) Média-passiva;

b) Processo espontâneo;

c) Processo mental;

d) Movimentação corporal

e) Ação coletiva;

f) Recíproca;

g) Reflexiva direta;

h) Perceptiva;

i) Atividade mental;

j) Ato de fala;

k) Reflexiva indireta.

Todas essas categorias acima devem ser avaliadas a partir do papel semântica do

sujeito da oração analisada. Em nosso trabalho, verificamos exemplos extraídos da obra

Biblioteca, de Apolodoro, com base nos seguintes papéis semânticos:

a) Agente

b) Paciente

c) Experienciador

d) Beneficiário

e) Recipiente.

10 complex network category.

Uma vez que a voz média no grego é morfologicamente marcada, torna-se

possível, a partir dessa lista com terminações de palavras, encontrar suas ocorrências no

texto selecionado, porém essa tarefa passa por alguns obstáculos. Após o

reconhecimento dessas desinências, surge o problema da ambiguidade entre formas de

tempos, modos e vozes diferentes. A primeira grande equivalência se dá em relação às

terminações, visto que média e passiva, no grego, compartilham as mesmas desinências

nos tempos presente, imperfeito, perfeito e mais que perfeito, sendo distintas apenas no

futuro e no aoristo. Por conseguinte, no caso de uma desinência em um desses quatro

primeiros tempos verbais, o primeiro passo é verificar se a forma foi construída na voz

passiva ou na média. Além disso, frequentemente ativa e média compartilham também

mesmas formas. Pensemos, por exemplo, em , do verbo ,

suceder: essa construção pode corresponder à terceira pessoa do aoristo optativo ativo;

ao infinitivo aoristo, ativo e à segunda pessoa do singular, do aoristo imperativo médio.

Diante desse problema, torna-se, então, necessário, analisar o contexto em que a frase

está inserida, a fim de sanar as possibilidades de variantes de seu significado. No caso

de uma desinência exclusivamente média, a análise do contexto é feita, a fim de

confirmarmos a classificação dessa forma verbal, de acordo com os grupos

estabelecidos por Allan (2003). Tomemos agora, como exemplo, o verbo ,

vestir-se, que não apresenta ambiguidade de formas e, portanto, sendo uma construção

média, de acordo com o funcionamento do software, clicando sobre o vocábulo

desejado, abre-se a frase em que ela ocorre e, dessa forma, analisamos seu sentido na

oração, conforme abaixo.

Contexto: a) 11

(Apol. Biblio. 2.4.10) - Após derrotar o leão, vestiu-se com a pele [...]

Compreendido o contexto, a tarefa seguinte é analisar e classificar esse emprego

da medial em uma das categorias propostas por Allan (2003) e, nesse caso, o exemplo

encontra-se no grupo da Média Reflexiva Direta, já que é uma ação que o sujeito

11 Transliterado: Kai kheirosámenos tón leónta tén mén dorán emphiésato.

executa em si próprio e, normalmente, é feita pelas próprias mãos. Prosseguindo na

análise da Word List, encontramos a forma ver; contemplar, no seguinte

contexto:

b)

12 (Apol. Biblio. 2.5.4) - Após retornar a Fóloe, ao

ver Fólo

morto, Héracles enterrou-o [...]

Trata-se de uma Média Perceptiva, já que um sujeito não só percebe um objeto

por meio dos órgãos sensoriais como também possui papel semântico de experienciador.

Conforme ressaltamos anteriormente, embora nesse caso tenhamos uma construção

exclusivamente média, a verificação do contexto é importante, por possibilitar também

a notificação da possibilidade de um particípio substantivado, o que acarretaria num

outro tipo de interpretação.

Tendo sido exposta a forma como identificamos e classificamos exemplos da

voz média no grego antigo, passaremos à próxima seção, em que verificaremos alguns

dos trabalhos linguísticos que se dedicam à análise da medialidade em língua

portuguesa.

3. A voz média em português – estudos linguísticos

A questão da conceituação de voz, bem como sua tipologia, fica dividida entre,

de um lado as abordagens normativas, que pouco aprofundam nessa questão e, de outro,

os estudos linguísticos, que trazem à tona inúmeras questões com relação à variante de

vozes em construções do português e como a ausência de uma categoria média,

formalmente marcada, a princípio, não reflete a inexistência dessa categoria na lingua.

Quando pensamos no português, entendemos que a frase Maria visitou João se constrói

na voz ativa, enquanto que João foi visitado por Maria é caracterizada como uma

construção passiva. Todavia, é muito comum encontrarmos certa dificuldade com

relação à classificação de algumas orações, tal como em o vaso quebrou, em que numa

construção ativa, o sujeito possui, claramente, o papel semântico de paciente. Embora a

12 Transliterado: Epanelthón eis Folóen Heraclés kai Fólon teleutésanta theasámenos thápsas autón.

voz média não seja incluída, formalmente, nas categorias de vozes verbais em

português, existem alguns trabalhos acerca da medialidade em nossa língua.

Consoante Lima (2008), a voz média possui relações bem estreitas com a

passiva e a reflexiva, com as quais passa a confundir-se. Essa dificuldade de distingui-

las aparece na própria descrição confusa apresentada pelas gramáticas tradicionais, uma

vez que os autores oscilam nas classificações de algumas formas como exemplos de voz

média, passiva ou reflexiva. A medialidade em português foi abordada por gramáticos

pré e pós – NGB, bem como por linguistas estruturalistas, gerativistas e funcionalistas;

porém é grande a variação do critério de conceituação utilizado. No que diz respeito à

voz média, muitos dos gramáticos tendem a considerá-la como um subtipo da reflexiva,

visto que apontam-lhe a presença do se como traço mais geral. A voz neutra é outra

forma de se tentar englobar a descrição atual de voz média e são, conforme ressalta

Bueno (1963), “fenômenos que se passam no próprio sujeito”, ou seja, verbos que não

demonstram processos de ação, tampouco de recepção.

Encontramos breves reflexões sobre a medialidade em Júlio Ribeiro (1908), para

quem “o uso do se exprimindo a collaboração e espontaneidade do agente, serve para

designar phenomenos naturaes: a água evapora-se, - o que difere de – a água é

evaporada [...]”. João Ribeiro (1899), por sua vez, afirma que a média estaria associada

à omissão do agente numa sentença e, dessa forma, “fica, pois, demonstrado que as

fórmas romanicas construídas com se, bem como as formas latinas passivas, servem

para exprimir a acção sem trazer a lume o agente”.

Poucos foram os gramáticos pós – NGB que abordaram a medialidade, uma vez

que na Nomenclatura Gramatical Brasileira estão previstas três vozes: ativa, passiva e

reflexiva. Para Lima (1992), há três tipos de mediais: reflexiva, passiva e dinâmica; a

média, então, corresponde à medial – dinâmica, exprimindo uma mudança no sujeito,

sem que seja, contudo, volitiva por parte dele; ou mesmo atividades internas ocorridas

com um sujeito que não oferece contribuição para que elas aconteçam, como, por

exemplo, ele feriu-se nos espinhos, o gelo derreteu – se etc. Nesse caso, temos o traço

de afetação do sujeito, visto que à média, segundo o autor, caberia, dentre outras

funções, mostrar que determinada ação afetou o sujeito, mas não partindo dele: “Carlos

feriu-se nos cacos de vidro”, isto é, “Carlos ficou ferido”.

Em verbos que denotam sentimento, quando conjugados com um pronome

(irritei-me, iludi-me, decepcionei-me) fica indicado para Bueno (1964) que “o mesmo

efeito que o sujeito, como agente, produz em outros indivíduos, se produziu

inversamente nele por uma causa qualquer exterior”. Nesse caso, portanto, a medial

denota atos espontâneos, sem agente ou causa aparente, como em a vida extinguiu-se.

Lima (2008) define como principais traços da voz média, apontados pelos gramáticos:

a) construção pronominal; b) a noção de espontaneidade da ação; c) não menção do

agente; d) afetação do sujeito e e) função semântica do sujeito: paciente.

Vilela (1992) relaciona a voz média à ergatividade, cujas características

principais envolveriam a impossibilidade de passivização, a indicação de uma mudança

de estado ou de lugar e um sujeito paciente, o qual não possui domínio sobre processo

expresso pelo verbo, como em o frango queimou-se.

Júlio Ribeiro (1899) atribui à voz passiva latina dois objetos principais e afirma

que a voz passiva em latim clássico tem por principais objetos:

a) “trazer a lume o nome que teria servido de paciente, si a oração fosse

construída em voz ativa, nome esse que figura como sujeito”.

b) “indicar uma acção sem designação precisa do agente que a leva a effeito”.

Para João Ribeiro (1908), a construção da voz média passiva seria com verbos

da terceira pessoa, sem que existissem sujeitos com capacidade de ação. Já o pronome

se não fica limitado à “médio – passiva”, e seu emprego pode ser resumido unicamente

por exprimir a espontaneidade da ação. Maximino Maciel (1914) acredita que voz é a

modalidade sob a qual a ação verbal objetiva se exprime, isto é, um verbo transitivo,

definido como vozes somente duas: ativa e passiva.

Para Bueno (1963), voz é definida como “os diversos modos em que se

relacionam o sujeito e o predicado quanto à atribuição da atividade do verbo”, definição

que se aproxima da dos autores modernos, sendo os três modos: ativa, passiva e

reflexiva. Esse autor considera ainda uma quarta possibilidade de relação entre sujeito e

predicado, que é a inexistência quer de ação quer de recepção. Nesse caso, haveria

apenas uma qualidade ou estado e a frase não teria nenhuma das três vozes, seria do tipo

neutro, como em “Pedro é rico”. Além dos verbos ser, estar, são incluídos nesse caso os

verbos intransitivos.

Said Ali (1963) contribuiu bastante para esse campo de estudo. Para o autor, a

voz média possui cinco significações distintas:

a) ação rigorosamente reflexa, que o sujeito pratica sobre si mesmo;

b) estado ou condição;

c) ato material ou movimento que o sujeito executa em sua própria pessoa, sem

haver a ideia de direção reflexa;

d) ato em que o sujeito aparece vivamente afetado;

e) ação recíproca.

Esse autor atribui à média a maior parte de seus comentários. Considera-a como

forma intermediária entre a ativa e a passiva, com um pronome reflexivo sempre

presente, porém com funções abrangentes. Para o filólogo, a voz média é capaz de

expressar refletividade, reciprocidade e outras noções, tal como indica que uma ação

não parte de um sujeito, mas que este foi afetado: “a ação se executa por si mesma no

objeto de que se fala”. Nesses casos, a medial denota atos espontâneos, sem agente ou

causa aparente. Assim, o se, para ele, configura-se como um elemento formativo da voz

média analítica e pode exercer várias funções, consoante a média sintética nas línguas

clássicas. Dentre as funções, podemos citar o agente desconhecido que, de fato, pode

não ser do conhecimento do falante, ou este não deseja mencioná-lo.

Ao estender a noção ao português, Camara Jr. (1972) não se distancia muito da

definição de Lyons; o que chama de medial corresponde morfossintaticamente a uma

construção em que à forma do verbo na voz ativa se acrescenta um pronome adverbal

átono, referente à pessoa do sujeito, e a função semântica que veicula é a de uma

integração no estado de coisas que dele parte. Mencionando Brugmann, o autor

estabelece três empregos para a medial: reflexiva; recíproca e dinâmica. Nas duas

primeiras, a construção não pronominal com objeto autônomo, isto é, não correferencial

ao sujeito, mantém inalterada a significação verbal, sempre numa forma ativa. Já na

dinâmica, a pessoa do sujeito, sob a forma de clítico, reaparece no predicado como o

centro de um estado de coisas que dele parte, mas que não sai de seu âmbito,

eliminando, assim, o objeto sobre o qual ele recairia num típico evento transitivo.

Em trabalhos linguísticos mais recentes, Camacho (2003) sustenta a hipótese de

que “os verbos pronominais são predicados básicos, tipicamente médios e de que o

sujeito dessa construção desencadeia o evento do qual é o principal locus de seus

efeitos”, retomando o que havia postulado Kemmer (1994). Ainda segundo o primeiro

autor:

O léxico do português de classes de verbos exclusivamente médios, ou media

tantum, como queixar-se, apaixonar-se, e de classe de verbos médios que se

opõem-se a classe de verbos transitivos como se observa, respectivamente,

em levantar-se vs levantar e virar-se vs virar. Diferentemente dos reflexivos,

não há comutação plausível entre o clítico e outro sintagma nominal com

preservação de compatibilidade semântica.

A hipótese de Bacelar do Nascimento e Martins (s/d) em relação ao português

contemporâneo digra em torno de cinco subclasses para o predicado médio, sendo elas:

a) na subclasse 1, verbos que só admitem a construção média, como queixar-se; b) na

subclasse 2, verbos que admitem além da construção em -se, a construção resultativa

com o auxiliar estar, como ressentir-se, estar ressentido, sem mudança de valência; c)

na subclasse 3, os verbos podem ser considerados diferentes itens lexicais, como

comportar e comportar-se; d) na sublcasse 4, os verbos apresentam mesmo valor

semântico, apesar da duplicidade, como rir e rir-se; e) subclasse 5, os verbos

apresentam homonímia sintática: de um lado uma construção ativo-causativa, que

permite oposição à voz passiva, por outro, uma construção média, pronominal, que tem

por par correlativo, a construção resultativa com estar, como apagar.

Por meio dessas reflexões, percebemos que o conceito de voz média, no

português, parece oscilar em meio a tantas formas de abordá-la. Muitos dos autores

sequer a consideram em suas classificações de vozes verbais, além daqueles que a

mencionam apenas superficialmente. Das poucas abordagens mais detalhadas acerca da

medial no português sobre as quais tratamos aqui, algumas das definições e

classificações se aproximam das definições utilizadas por estudiosos da voz média no

grego antigo, outras, contudo, trazem novas terminologias e definições que necessitam

de maior aprofundamento. Na seção a seguir, faremos um levantamento de como

algumas construções médias do grego antigo são traduzidas para o português.

4. A tradução grego-português da voz média

Como última etapa proposta para este artigo, veremos, agora, se na tradução para

o português, a noção de medialidade marcada morfologicamente e semanticamente nos

verbos do grego antigo permanecem em língua portuguesa. Abaixo, colocamos à

esquerda os exemplos em grego (com transliteração logo abaixo) e, à direita, as

traduções em português.

O homem que não tenha sido criticado não será

instruído.

As maçãs das Espérides apodrecem.

Dejanira, após tomar consciência disso,

enforcou-se.

Mas antes que Anfitirão chegasse a Tebas [...]

Tendo Ergino marchado contra Tebas [...]

Ela lhe contou que na noite anterior ele dormira

com ela.

Após derrotar o leão, vestiu-se com a pele dele.

E não muito depois de sentirem o cheiro, os

centauros se aproximaram.

Héracles, tendo se perturbado, após se

apressar, retirou a flecha.

Ártemis, em companhia de Apolo, encontrou-o

[Héracles], tomou-a (a corça) e o acusou de

tentar matar o animal sagrado dela.

Como estava sitiado, em socorro chamou para

si Héracles, em troca de um pedaço de terra.

Primeiramente, o que chama atenção com relação à voz média do grego é sua

possibilidade de construção em orações intransitivas, por exemplo, – eu

fujo/estou fugindo, quando, em português, só pensamos na questão das vozes em

orações transitivas diretas. Desse modo, a frase 1 contempla, em português, o sentido

passivo canônico, embora haja omissão de um agente da passiva na oração.

Os verbos em 3 e 5 são regidos com preposição e, por conseguinte, fogem à

regra geral da transitividade direta no que diz respeito à análise das vozes verbais.

Mesmo assim, para falantes do português, não é uma tarefa fácil enxergar um traço de

afetação em marchar, enquanto que em tomar consciência essa tarefa parece mais fácil.

Já sentir (frase 8) e acusar (frase 10) estão em orações tipicamente ativas no português,

ao contrário do grego, que opta pela forma média para elas.

Nas frases 7 e 9, a noção de medialidade pode ser identificada pela presença do

pronome se em ambos os verbos (perturbar e vestir) que, por regra geral, não são

pronominais. Já em l, essa construção seja um bom exemplo para mostrar as nuances do

significado da média no grego, já que o verbo chamar, em grego, na ativa, ,

opõe-se à forma média, , chamar para si.

Finalmente, a frase b representa, em grego, a categoria de processo espontâneo,

caracterizada pelo sujeito paciente e por ser um processo que não possui um agente que

age diretamente. Esse sentido é o mesmo encontrado em alguams construções do

português, como a partir de amanhã aumenta o preço; o macarrão cozinhou; o copo

quebrou. Embora na oração tenhamos um verbo construído na ativa, o papel semântico

do sujeito é, claramente, paciente.

Conclusão

Neste artigo, mostramos as diferentes definições elaboradas por estudiosos que

trataram da voz média em alguma língua. Vimos que essa categoria verbal,

morfologicamente marcada no grego antigo, promove divergências com relação a sua

definição e classificação tipológica, diante de seu variado leque de emprego. Ademais,

vimos, também, como pesquisadores trataram da medialidade em português, de modo a

analisar como, semanticamente, essa categoria permanece em algumas construções de

nossa língua. Assim, fizemos um breve comparativo, em que dispomos onze frases do

grego antigo com verbos de distintos distintos, unidos, contudo, pelo fato de serem

construídos na voz média, de modo a analisar como o sentido médio deles é trabalhado,

quando nos deparamos com a necessidade de tradução.

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