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FENDAS: UM ENCONTRO AFASTANDO O TÉDIO Marília Frade Martins 1 Lêda Valéria Alves da Silva 2 RESUMO: Este texto é um encontro com as fendas cotidianas na tentativa de pensar uma escola que resista ao tédio. A partir do que nos acontece e do momento que nos acontece buscamos, através de um texto imagético, encontrar caminhos por entre fendas que nos façam pensar uma vida bonita dentro e fora da escola. Que nos faça ver beleza na/e para além da pandemia e do medo que nos rodeia. Para isso conversamos com os escritores-poetas Manoel de Barros, Pelbart, Deleuze, Guimarães Rosa, entre outros que nos fazem sonhar. As fendas nos ensinam de possibilidades e passagens. Quem sabe não nos inspire a olhar a escola como um fluxo, a própria fenda... ali onde pensamos não (hav/cab)er mais nada? PALAVRAS CHAVES: Biopotência. Resistência. Escola. O que a vida quer da gente é coragem. João Guimarães Rosa Esperamos sentados deitados imersos na tela. Hipnotizados durante horas dias verões e (inf/ver)nos secos e (m/a)goados. Olhares insones a procura do horizonte ansiosos do incerto sufocados de concreto encurralados no teto protegidos daquilo que não se vê enfadados pela espera de algo acontecer - tédio. 1 Pedagoga. Mestra em Educação em Ciências Pelo Programada de pós-graduação em Educação em Ciências e Matemáticas do Instituto Educação Matemática e Científica da Universidade Federal do Pará IEMCI/UFPA. Especialista em Educação na Secretaria de Estado de Educação do Pará e, atualmente, é Professora Substituta no Instituto de Estudos Costeiros IECOS/UFPA. Email: [email protected] 2 Licenciada em Ciências Biológicas. Mestra e Doutora em Educação em Ciências pela Universidade Federal do Pará. Foi professora substituta na UFPA. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação em Ciências, atuando principalmente no seguinte tema: Educação Ambiental e Prática de Ensino. Email: [email protected] 166 ALEGRAR nº26 - Jul/Dez 2020 - ISSN 1808-5148 www.alegrar.com.br

RESUMO PALAVRAS CHAVES · 2021. 2. 3. · o fim do mundo (KRENAK, 2019). A ideia é menor do que parece... para adiar o fim do mundo é preciso abrir espaços! Sim, espaços, miudezas

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Page 1: RESUMO PALAVRAS CHAVES · 2021. 2. 3. · o fim do mundo (KRENAK, 2019). A ideia é menor do que parece... para adiar o fim do mundo é preciso abrir espaços! Sim, espaços, miudezas

FENDAS: UM ENCONTRO AFASTANDO O TÉDIO

Marília Frade Martins1

Lêda Valéria Alves da Silva2

RESUMO: Este texto é um encontro com as fendas cotidianas na tentativa de pensar uma escola que resista ao tédio. A partir do que nos acontece e do momento que nos acontece buscamos, através de um texto imagético, encontrar caminhos por entre fendas que nos façam pensar uma vida bonita dentro e fora da escola. Que nos faça ver beleza na/e para além da pandemia e do medo que nos rodeia. Para isso conversamos com os escritores-poetas Manoel de Barros, Pelbart, Deleuze, Guimarães Rosa, entre outros que nos fazem sonhar. As fendas nos ensinam de possibilidades e passagens. Quem sabe não nos inspire a olhar a escola como um fluxo, a própria fenda... ali onde pensamos não (hav/cab)er mais nada?

PALAVRAS CHAVES: Biopotência. Resistência. Escola.

O que a vida quer da gente é coragem. João Guimarães Rosa

Esperamos sentados deitados imersos na tela. Hipnotizados durante horas dias verões e (inf/ver)nos secos e (m/a)goados. Olhares insones a procura do horizonte ansiosos do incerto sufocados de concreto encurralados no teto protegidos daquilo que não se vê enfadados pela espera de algo acontecer - tédio.

1 Pedagoga. Mestra em Educação em Ciências Pelo Programada de pós-graduação em Educação em Ciências e Matemáticas do Instituto Educação Matemática e Científica da Universidade Federal do Pará IEMCI/UFPA. Especialista em Educação na Secretaria de Estado de Educação do Pará e, atualmente, é Professora Substituta no Instituto de Estudos Costeiros IECOS/UFPA. Email: [email protected] 2 Licenciada em Ciências Biológicas. Mestra e Doutora em Educação em Ciências pela Universidade Federal do Pará. Foi professora substituta na UFPA. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação em Ciências, atuando principalmente no seguinte tema: Educação Ambiental e Prática de Ensino. Email: [email protected]

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_ De segunda à sexta na escola. Sábado e domingo beber umas e jogar bola. Quando dá. Da última

vez, lesionou o tendão. De novo. Como foram sofríveis os dias em que deu aula no segundo

andar. – A dor é maior que o tédio! – debochou de si mesmo. Os dias eram exatamente iguais.

Entra-ano-sai-ano. No próximo fará 27 anos de serviço. Outro dia, a pedagoga perguntou o que

mais lhe agradava nesse tempo: Estou mais próximo da aposentadoria? – respondeu

ironicamente. Mal sabia que estava mais próximo de uma pandemia e que por meses seu olhar

iria aos poucos se distanciar do horizonte. O mundo que parecia tão imenso, agora se reduzia

aos tímidos cantos da casa... O tédio agora era maior que a dor!

Mas o olhar, sempre ansioso, não se conforma às mesmas paisagens, ao mesmo. Saímos de

nosso (des/con)forto. Fotografamos3. Fechamos os olhos...continuamos vendo senão os

cenários que nos restam...sonhos?

_

Um sonho nos leva a escola, agora pálida e silenciosa, e várias perguntas vêm à superfície...

Nunca incomodou o (isola/sufoca)mento da sala de aula? Nunca nos sufocaram as maneiras de

ver, de sentir e de perceber a escola? Não nos asfixiaram as redes de captura das subjetividades

escolares? Não foi o tédio que nos isolou ao esperarmos obedientemente o dia em que a

educação pagaria o pedágio que nos incluiria num lugar de valor na vida?

É esse tédio que agora nos atravessa e faz gritar o pedido de Deleuze (1992, p. 131): “um pouco

de possível, senão eu sufoco”.

_ Enquanto esperamos Godot4, a vida acontece...

Não há liberdade suficiente para alma, assim como não há salário suficiente para o corpo.

Peter Pélbart

Na escola consumimos modos de vida. Obedecemos a condutas, aceitamos respostas, explicamos fenômenos, solucionamos problemas, reafirmando verdades que expropriam professores, alunos e pedagogos das redes de sentido de vida. As avaliações, os resultados, as competições enredam, cada vez mais, os sujeitos da educação na lógica do capital. A escola é vendida como um produto a ser consumido. Algo que poderia ser plastificado, como bem desejam os avalistas a prestar contas da dita eficiência. Esperamos entediados o dia que a serventia aparecerá, que o salário aumentará, que o aluno se dedicará, que o governo mudará, que a condição melhorará, que algo nos salvará.

3 Todas as imagens do texto são de nossa autoria. 4 Referência ao livro de Samuel Beckett intitulado “Esperando Godot”.

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Queremos saber: em território de desempenho e classificação dos modos de viver, por onde passa a potência de vida? Queremos imaginar: o inimaginável, criar possibilidades, inventar sentidos, modos de viver n/a escola. Eis aqui uma ode pela não salvação. Queremos adiar o fim do mundo (KRENAK, 2019). A ideia é menor do que parece... para adiar o fim do mundo é preciso abrir espaços! Sim, espaços, miudezas por onde passa o (isola/sufoca)mento das redes que vendem a escola apática, tediosa, sem potência de vida, mas com projeto de vida!: que trabalho ter? que feitos realizar? Incontáveis práticas, movimentos estéticos, de formas de viver que não sirvam as forças do capital. Sim! Espaços! de tempo / de ver / de respirar / de sentir / de apaixonar / de aproximar / mais e mais / e mais perto / até onde pulsa a força viva. Escola é território de sonho, de invenção, inspiração e elaboração de práticas que não conseguimos realizar fora, mas que ali estão como possibilidade pela multiplicidade de variações com as quais acontecem. Variações intensificadas ao serem olhadas. Tocadas no mais profundo da pele, na subjetividade. Que os olhos, frestas da alma, abram espaços por onde passem os afetos. Que na troca de olhares entre os vazios do tédio, vejamos a vida insubordinada, indomável, estalando os sentidos concretos...

Grilo faz a noite menor para ele caber. Manoel de Barros

fendas: rachaduras ferindo subjetividades – vãos da variação.

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nas fendas não há tédio, mas passagem...

olhar-menor: vida reexistindo num detalhe

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multidão não paga pedágio, multiplica estalos racha o mundo abre fenda: biopotência.

Um pouco de possíveis para a vida!

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REFERÊNCIAS

BARROS, M. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2013.

DELEUZE, G. Conversações Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.

BECKETT, S. Esperando Godot. São Paulo: Companhia das letras, 2017.

GUIMARÃES, R. Grande sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das letras, 2019.

PELBART, P. P. Biopolítica e biopotência no coração do império. In: GADELHA, S.; LINS, D. (orgs.). Nietzsche e Deleuze: Que pode o corpo? Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. p.251-260.

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