RESUMOMagnani_VelhoBomCadernoCampo

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O (velho e bom) caderno de campo1Jos Guilherme Cantor MagnaniQual a importncia e lugar dos cadernos de campo na atividade do antroplogo?

Na verdade soa meio deslocado, falar em caderno - principalmente em tempos de Internet, o caderno de campo mais parece um artefato jurssico vem sendo usado como depositrio de notas, Impresses, observaes, primeiras teorizaes, mapas, esboos, desabafos, entrevistas e garatujas de informantes. parafraseando Lvi-Strauss, sem dvida bom para pensar: permite retomar a especificidade do prprio mtier do etngrafo.

Em 1967 foi publicado, despertando imediatamente cidas polmicas, o livro A

Diary in the strict sense of the term, edio pstuma do dirio de Malinowski. Redigido na forma de dirio ntimo, o Diary... permitiu revelar o lado humano, vulnervel do autor e da real situao depesquisa.J os Dirio Indios, de Darcy Ribeiro mais caderno de campo do que dirio

ntimo. Contm dados e informaes, ainda que no a totalidade do material coletado.Mantm a ordem cronolgica das expedies e a do deslocamento espacial e, nesse sentido,aproxima-se do gnero relato de viagem.

TRATA-SE d a dimenso do que o processo de imerso que caracteriza a pesquisa etnogrfica: trata-se de uma experincia que nenhuma outra abordagem proporciona, pois tem como pressuposto o contato com o Outro, nos termos - espao,temporalidade, cdigos - deles; uma experincia-limite, que transforma uns e outros.

O caderno de campo, entretanto - para alm de uma funo catrtica - pode ser

pensado tambm como um dos instrumentos de pesquisa. Ao registrar, na linha dosrelatos de viagem, o particular contexto em que os dados foram obtidos, permite captaruma informao que os documentos, as entrevistas, os dados censitrios, a descrio derituais, - obtidos por meio do gravador, da mquina fotogrfica, da filmadora, dastranscries - no transmitem.Tomando como referncia a expresso com que Geertz (1983) caracteriza os dois

momentos constitutivos da prtica etnogrfica,experience-near e experience-distant,pode-se dizer que o caderno de campo situa-se justamente na interseco de ambos: aotranscrever a experincia da imerso, corresponde a uma primeira elaborao, aindavernacular, a ser retomada no momento da experience-distant. Quando j se est aqui,o caderno de campo fornece o contexto de l; por outro lado, transporta de certa forma para l, para o momento da experience-near, a bagagem adquirida e acumulada nosanos gastos aqui, isto , na academia, entre os pares, no debate terico.Caderno evoca e supe um estado de aprendiz, daquele que, por nada saber,

tudo anota, no deixa passar nada. Diante da cultura dos outros, somos todos aprendizes e, quase sempre, aprendizes desajeitados. . H muitas possibilidades na mente do principiante, mas poucas na do perito, diz o mestre Shunryu Suzuki, em Mente Zen, mente de principiante (1994: 20).2 Falar em encontro etnogrfico falar numa particular aventura marcada pelo duplo esforo, de uns para contar, e de outros para compreender.

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iUm antecedente famosoEm 1967 foi publicado, despertando imediatamente cidas polmicas, o livro ADiary in the strict sense of the term, edio pstuma do dirio de Malinowski, por decisode sua esposa. Escrito originalmente em polons, lngua materna do antroplogo, cobreparte de seu perodo de trabalho de campo (dezenove meses, entre 1915 e 1918) juntoaos mailu e aos trobriandeses, na Melansia. Redigido na forma de dirio ntimo, consistebasicamente no registro de seus estados de nimo, preocupaes com a sade,impresses e expresses (nem sempre elogiosas) sobre os nativos e sobre as condiesdo trabalho - a solido, as leituras, os encontros, - e tambm o mau-cheiro, o barulho, astentaes.Produziu o maior frisson no meio, provocando indignadas reaes de ex-alunos emuitas dvidas quanto oportunidade e validade da iniciativa. Das inmeras resenhas ecomentrios ficou um consenso: em termos de mtodo ou teoria pouco acrescentou aoque j se conhecia da obra de Malinowski, expressa em suas monografias. Seja comofor, o Diary... permitiu revelar o lado humano, vulnervel do autor e da real situao depesquisa.J os Dirio Indios, de Darcy Ribeiro mais caderno de campo do que diriontimo. Contm dados e informaes, ainda que no a totalidade do material coletado.Mantm a ordem cronolgica das expedies e a do deslocamento espacial e, nessesentido,aproxima-se dognerorelato de viagem. Diferentemente do texto deMalinowski, no s foi publicado com sua autorizao, mas cuidadosamente editado,apesar da declarao inicial de que contm sem retoques o material original.Trata-se de dois estilos, bastante diferentes, que deixam antever a versatilidadedo gnero; os cadernos de campo de todo antroplogo contm elementos, em graus3variveis, de ambos os modelos. Entretanto - polmicas e comparaes parte - cadaqual, a seu modo, d a dimenso do que o processo de imerso que caracteriza apesquisa etnogrfica: trata-se de umaexperincia que nenhuma outra abordagemproporciona, pois tem como pressuposto o contato com o Outro, nos termos - espao,temporalidade, cdigos - deles; uma experincia-limite, que transforma uns e outros.Mas h outras coisas, como se ver a seguir, que os cadernos ensinam.A jornada antropolgicaRaymond Firth, quem fez as duas Introdues ao Diary..., uma quando dolanamento do livro em 1967 e a segunda para a edio de 1989, nesta ltima reconheceque originalmente havia encarado os dirios como uma espcie de chave para ainterpretao da personalidade de Malinowski e, a partir da, de seu trabalho. No entanto,para antroplogos mais jovens que jamais tiveram contato com o autor dosArgonautas..., o interesse do livro estaria muito mais em obter dele uma ajuda ou maiorconfiana para o entendimento do que acontece na sua prpria experincia de campo.Firth refere-se a um desses antroplogos, Anthony Forge, segundo o qual doDiary... pouco se aproveita em termos metodolgicos: na verdade ele ilustra os dilemasdo pesquisador em campo, como o de manter a prpria identidade em meio dinmicada sociedade local. A solido do antroplogo, a, de uma espcie particular, e nessecontexto o dirio no teria sentido seno para aquele que o redigiu, produto de um estadode suspenso entre duas culturas.1O caderno de campo, entretanto - para alm de uma funo catrtica - pode serpensado tambm como um dos instrumentos de pesquisa. Ao registrar, na linha dosrelatos de viagem, o particular contexto em que os dados foram obtidos, permite captaruma informao que os documentos, as entrevistas, os dados censitrios, a descrio derituais, - obtidos por meio do gravador, da mquina fotogrfica, da filmadora, dastranscries - no transmitem.Tomando como referncia a expresso com que Geertz (1983) caracteriza os doismomentos constitutivos da prtica etnogrfica,experience-near e experience-distant,pode-se dizer que o caderno de campo situa-se justamente na interseco de ambos: aotranscrever a experincia da imerso, corresponde a uma primeira elaborao, aindavernacular, a ser retomada no momento da experience-distant. Quando j se est aqui,o caderno de campo fornece o contexto de l; por outro lado, transporta de certa forma4para l, para o momento da experience-near, a bagagem adquirida e acumulada nosanos gastos aqui, isto , na academia, entre os pares, no debate terico.No entanto, apesar de indispensvel no trabalho de campo, e de seu carter deinstrumento usado tanto nos primeiros contatos, como em projetos mais alentados, nose pode evitar, associada a caderno, uma certa conotao de coisa de iniciante: algodescartvel, ope-se a livro - este sim, definitivo - e a relatrio, que vai ser lido eavaliado. Caderno evoca e supe um estado de aprendiz, daquele que, por nada saber,tudo anota, no deixa passar nada.E justamente por esse atributo que o caderno de campo, mais do que qualqueroutro objeto do kit,representa e simboliza a prtica ea atitude fundamental doantroplogo. H muitas possibilidades na mente do principiante, mas poucas na doperito, diz o mestre Shunryu Suzuki, em Mente Zen, mente de principiante (1994: 20).Diante da cultura dos outros, somos todos aprendizes e, quase sempre, aprendizesdesajeitados. Mariza Peirano refere-se a esta atitude quando mostra que, longe doimpacto existencial e psquico da pesquisa de campo, o material etnogrfico se tornafrio, distante e mudo (1995:51). E do confronto de teorias e vises de mundo denativos e antroplogosque surgem aqueles resduos reveladores a que se referePeirano e dos quais o caderno de campo o primeiro testemunho.Comeamos com Darci Ribeiro, finalizamos com o dirio de Malinowski, do qual,como no poderia deixar de ser, a tica ps-moderna tambm tirou sua casquinha: paraJames Clifford, que considera Os Argonautas... e o Diary...com um nico textoexpandido, a importncia deste ltimo reside no fato de constituir um inventivo textopolifnico, e um crucial documento na histria da antropologia porque revela acomplexidade dos encontros etnogrficos.2 Falar em encontro etnogrfico falar numaparticular aventura marcada pelo duplo esforo, de uns para contar, e de outros paracompreender, tal como - na leitura de talo Calvino, em As Cidades Invisveis -protagonizaram Marco Polo e Kublai Khan;vasto imprio e que, no fundo, eram uma s.3seu objetivo: a busca de um cdigocompartilhado para entender e apreciar as diferenas entre as inmeras cidades doReferncias bibliogrficasCalvino, I. - As Cidades Invisveis. So Paulo, Companhia das Letras, 1991.

5Da Matta, R. - O ofcio do etnlogo ou como ter Anthropological Blues. Rio, Cadernosdo Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social, 1974.Geertz, C. - Local Knowledge. Basic Books, New York, 1983Firth, R. - Introduction, Second Introduction, in A Diary in the Strict Sense of the Term.California, Stanford University Press, 1989.Malinowski, B. - A Diary in the Strict Sense of the Term. California, Stanford UniversityPress, 1989.Malinowski. B. - Os Argonautas do Pacfico Ocidental. So Paulo, Ed. Abril, 1978.Peirano, M. - A favor da etnografia. Rio, Relume-Dumar, 1995.Ribeiro, D. - Dirios ndios. So Paulo, Companhia das Letras, 1996.Suzuki, S. - Mente Zen, mente de principiante. So Paulo, Editora Palas Athena, 1994.So Paulo, novembro de 1996 que tal situao j fora caracterizada por Roberto Da Matta em O ofcio do etnlogo ou como terAnthropological Blues (1974).2James Clifford, 1986, citado por Raymond Firth, na Introduo ao Diary..., p. XXX)3Observao feita pelo aluno Massimo di Felice durante seminrio do curso A dimenso cultural dasprticas urbanas, PPGAS/USP, 2 semestre de 1996.1 Note-se