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7/25/2019 Revisitando o Problema Da Centralizao Do Poder Na Idade Mdia.
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Anais do XXVI Simpsio Nacional de HistriaANPUH So Paulo, julho 2011 1
Revisitando o problema da centralizao do poder na Idade Mdia.
Reflexes historiogrficas.
Maria Filomena Coelho (UnB)
O sculo XIX e a vitria do modelo poltico do estado burocrtico e liberal
transformaram-se no paradigma com o qual dialogaram os historiadores que escreveram
sobre o poder, quer se trate do Estado na Antiguidade, ou do Estado na Ps-
modernidade. Trata-se de um modelo poltico estatal que se naturalizou e serve de base
a grande parte das interpretaes histricas do poder, desde o sculo XIX at hoje.
Na dcada de 80 do sculo XX, alguns historiadores ibricos sublinharam as
limitaes que esse modelo impunha interpretao histrica do poder das sociedades
pr-modernas. Referimo-nos, sobretudo, a Pablo Fernndez Albadalejo, a Bartolom
Clavero e a Antnio Manuel Hespanha1. A importncia das discusses que suscitaram e
suscitam enorme, porque alcanam recortes que vo muito alm da histria do poder
propriamente dita e porque extrapolam a cronologia em que se concentram seus estudos:
a Idade Moderna e o Antigo Regime. Do ponto de vista que nos interessa, a baixa Idade
Mdia, suas reflexes continuam sendo de grande ajuda para pensar as estruturas do
poder.
Os referidos autores chamam a ateno para um problema da historiografia,
herdeira da tradio explicativa decimonnica, que durante muito tempo entendeu que a
melhor maneira de estudar o poder era seguir os cnones da Histria do Direito e das
Instituies. Assim, bastaria conhecer as instituies formais, em toda sua grandezasuperestrutural, para entender e explicar o poder. Um poder que, em sua forma
estatal/institucional, o centro poltico do qual emana o nico poder digno de ser
reconhecido como Poder. Rapidamente elevada categoria de marco civilizatrio e de
progresso, essa estrutura estatal burocrtica centralizada reconhecida em diversos
1FERNNDEZ ALBADALEJO, Pablo. La transicin poltica y la instauracin del absolutismo. In:Zonaabierta, 30 (1984), p. 63-75. CLAVERO, Bartolom. Tantas personas como estados. Por unaantropologia poltica de la Historia Europea. Madrid: 1986. HESPANHA, Antnio Manuel. Asvsperas do Leviathan. Instituies e poder poltico. Portugal, sc. XVII. Coimbra: Almedina, 1986.
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momentos da Histria do Ocidente - ainda que em estado embrionrio - com o objetivo
claro de identificar na longa linha do tempo as origens de nossa civilizao. Uma
histria teleolgica que conta a epopia vitoriosa da construo da autoridade da Lei e
do Estado, uma espcie de destino csmico que nos empurrou at a virtude: do Cdigo
de Hamurabi Constituio.
Para a historiografia institucionalista, dita tradicional, esse longo percurso
virtuoso construiu-se com grande esforo e com muitos retrocessos. Esforo daqueles
que, embora tenham vivido h sculos (e at milnios!), estavam muito frentede seu
tempo e entendiam os benefcios de viver sob um estado de direito, sob um poder
central forte que legisla e administra com uma noo apurada da diferena entre pblico
e privado. Estes homens foram devidamente alados pela histria ao pedestal dos bons
governantes e, no por acaso, so lembrados at hoje pelos manuais escolares. Com
relao aos retrocessos, a historiografia destaca os maus governantes, claro, mas
tambm uma idade histrica: a Idade Mdia.
Esse perodo, j sabemos, fica no meio. o hiato, a suspenso, a negao de
tudo que considerado positivo pelos padres da civilizao ocidental, mas,
fundamentalmente, de um determinado modelo de poder: o da ordem e da lei,centralizadas, frutos de um projeto poltico estatal. Este projeto facilmente
identificado pela historiografia nas cidades-estado e nos imprios da Antiguidade, com
uma natureza centralista, embora suas respectivas histrias apresentem, com alguma
freqncia, governantes corruptos que no esto altura do projeto, e, depois,
identificado novamente no Estado Moderno, a partir do sculo XVI. Com relao
Idade do Meio ocorre o inverso: a historiografia atribui-lhe uma natureza poltica
anticentralista, pontuada com algunspoucosbons governantes, deslocados de seutempo, que apresentaram um comportamento poltico positivo, exercendo sua
capacidade legisladora e impondo a ordem da coroa, mas cujos projetos acabaram
derrotados pela barbrie.
Portanto, nessa forma centralista de exercer o poder identifica-se uma das
principais virtudes do Estado e, neste particular, a Pennsula Ibrica surge como uma
espcie de vanguarda poltica na Idade Mdia. A explicao suficientemente
conhecida: as circunstncias da Reconquista teriam propiciado o fortalecimento precoce
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da monarquia que, apoiada num aparato burocrtico e numa rede de cidades rgias,
conseguiu submeter a nobreza e a igreja lei do Estado. Ao contrrio de outras regies
da Europa, onde os reis eram considerados primus inter pares e concorriam com os
demais poderes polticos, em Leo/Castela e Portugal, graas centralizao do poder
nas mos da monarquia, fora possvel institucionalizar o poder muito mais cedo, o que
permitira as grandes empresas martimas/comerciais e a conquista do Novo Mundo.
A historiografia castelhana e a portuguesa dispem de um panteo copioso de
monarcas que exerceram o poder de maneira centralizadora, sendo, portanto, mais
modernos do que medievais2. interessante notar que o esforo no reside em procurar
entender como os reis medievais governaram, mas em mostrar como eles ocuparam a
dianteira na corrida em direo ao futuro ou, mais precisamente, ao sculo XIX.
Ora, foi justamente esse o problema teleolgico historiogrfico percebido na
dcada de 80 do sculo XX, por Fernndez Albadalejo, Bartolom Clavero e Antnio
Hespanha, mas com relao prpria Idade Moderna e ao Antigo Regime ibricos. Para
eles, fazia-se necessrio rever alguns enviesamentos correntes3 sobre as categorias
polticas desse perodo que, de forma anacrnica, a historiografia interpretava por meio
dos conceitos da poltica e do direito prprios da contemporaneidade. A imagem de umamonarquia precocemente centralizada escondia a pluralidade e a concorrncia entre as
jurisdies, assim como as limitaes ticas, doutrinais e institucionais que se
impunham ao poder absoluto do prncipe.Em suma, a centralidade da coroa, com suas
instituies, o seu direito e os seus oficiais, oferece uma viso distorcida, mas,
sobretudo, simplista da dinmica poltica do Antigo Regime, porque a reduz
dominao de classe, a mero instrumento da sociedade poltica; as conexes com a
sociedade civil passam despercebidas e evidencia-se una antinomia estado/sociedad
2 De maneira monogrfica, pude abordar essa questo com relao s Inquiries rgias medievaisportuguesas. Ver: COELHO, Maria Filomena. Inquiries rgias medievais portuguesas: problemasde abordagem e historiografia. In: PCOUT, Thierry (dir.). Quand gouverner cest enquter. Lespratiques politiques de lenqute princire (Occident, XIIIme-XIVme sicles). Paris: De Boccard,2010, p. 43-54.
3HESPANHA, A. A constituio do imprio portugus. Reviso de alguns enviesamentos correntes. In:O Antigo Regime nos Trpicos: a dinmica imperial portuguesa (sculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro:
Civilizao Brasileira, 2001, p. 165-188.
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sobre sociedades humanas en las que tal escisin y tales plos de reagrupamiento no
existan4.
Com relao a Portugal, Antnio Hespanha oferece uma sada ao problema daantinomia, pela via da cultura poltica da poca em questo: o carter corporativo da
sociedade. Assim, com relao monarquia, at meados do sculo XVIII,
a)O poder real partilhava o espao poltico com poderes de maior ou menorhierarquia; b) o direito legislativo da coroa era limitado e enquadrado pela doutrinajurdica (ius commune) e pelos usos e prticas jurdicos locais; c) os deverespolticos cediam perante os deveres morais (graa, piedade, misericrdia, gratido)ou afetivos, decorrentes de laos de amizade, institucionalizados em redes de amigose de clientes; d) os oficiais rgios gozavam de uma proteo muito alargada dos seus
direitos e atribuies, podendo faz-los valer mesmo em confronto com o rei etendendo, por isso, a minar e expropriar o poder real 5.
Tais concluses so fruto de extenso trabalho de arquivo, que possibilitou
propor uma interpretao diferente sobre as formas como a sociedade moderna e do
Antigo Regime portugus experimentava o poder rgio, como entendia a jurisdio do
rei. O carter corporativo da monarquia, destacado por Hespanha, ao contrrio do
carter centralista, evidencia um poder rgio muito mais complexo e muito mais difcilde ser interpretado pelos historiadores. De acordo com esse modelo terico, o monarca
exerce seu poder como a cabea de um corpo poltico, cujos membros possuem funes
diferentes e essenciais para o funcionamento harmonioso do todo. O rei, como cabea,
tem potestas absolutas, o que significa que ele tem um poder que se sobrepe aos
demais poderes, mas sem aniquil-los, ou tiraniz-los. Ele governa com outros poderes,
entendidos como corpos polticos e sociais, com direitos e jurisdies prprias e que
devem ser respeitados. Aqui reside a essncia da justia do governo do prncipe: dar a
cada um o que lhe de direito. Portanto, os limites que se impem ao direito rgio so
muitos, a comear pelos direitos e liberdades dos diferentes corpos, pelos direitos dos
povos e os costumes. Por exemplo, grande a quantidade de documentos que registra a
discordncia de cidades e terras em acatar alvars e leis da coroa que afrontam costumes
ancestrais e o recuo do monarca diante desses argumentos. A lgica de pertena ao
4FERNNDEZ ALBADALEJO, op. cit., p. 67.
5HESPANHA. A constituio do imprio... op.cit., p. 166-167.
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corpo explica-se em chave coletiva, formada pelos laos pessoais de dependncia e de
fidelidades (redes sociais), o que conforma em boa medida a moral poltica. Nessa
perspectiva, a lei do monarca, a depender das circunstncias, era pesada junto com
outros imperativos que vinculavam e obrigavam as pessoas em sociedade.
Ainda que de forma resumida, o quadro anterior apresenta um entramado
poltico complexo e, como dito antes, requer do historiador grande disposio para
explicar as inmeras variveis. Sem dvida, o poder superior da monarquia um fato,
mas no pode ser entendido como a simples imposio, de cima para baixo, ou como se
estado e sociedade fossem realidades separadas, como se o estado fosse uma estrutura
destinada a enquadrar e a regular a sociedade. Esta acepo leva, fatalmente, no
interpretao da histria, mas ao julgamento de seus atores. Bons governantes so os
que conseguiram se impor e submeter a rebeldia de eclesisticos, nobres e plebeus;
maus governantes so aqueles que negociaram, que cederam...
Outro problema historiogrfico ressaltado o da identificao de um projeto
poltico institucional monrquico que, no caso ibrico, chegou a ser recuado at o sculo
X! 6Entretanto, para os autores em questo, a prpria histria do exerccio do poder
rgio na Idade Moderna e no Antigo Regime mostra a ausncia de estratgiassistemticas, de estatuto nico, de polticas consistentes e conseqentes, que possam ser
interpretadas como umprojeto poltico. Ao contrrio, o que se observa uma prtica
que se pauta pela lgica das circunstncias, onde frequentemente o monarca infringea
sua prpria lei devido a obrigaes polticas externas, onde os tpicos discursivos so
usados incidentalmente, onde se reconhece a pluralidade dos laos polticos. Portanto,
insustentvel a explicao de um projeto poltico, uno, diante da heterogeneidade dos
vnculos polticos, frente ao princpio do direito comum que dava preferncia s normasparticulares, ou diante das decises de tribunal que dificilmente entendiam que a lei
posterior revogava a anterior. Parece mais acertado que a noo de centro poltico seja
repensada luz de uma constelao pouco estruturada de plos polticos, arrumada
conjunturalmente segundo arranjos no decididos partida7.
6Ver a interpretao clssica de Claudio SNCHEZ ALBORNOZ. La potestad real y los seoros enAsturias, Len y Castilla. In:RABM, 3 (1914), p. 260-277.
7HESPANHA, A. Concluso. In: MATTOSO, J. (dir). Histria de Portugal. O Antigo Regime. Lisboa:
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Tudo o que se disse at agora no tem como objetivo cair no oposto do que se
critica. No se quer negar a importncia do poder rgio, nem se quer equipar-lo aos
demais poderes. Pretende-se propor uma viso mais complexa e histrica do poder, que
permita contemplar, por um lado, a existncia de um princpio de unidade poltica (a
monarquia, o reino) e, por outro, como esse princpio governava em um universo de
poderes polticos que gozavam de autonomia relativa.
Trata-se de uma proposta historiogrfica que permite estudar as instituies
muito alm do aparato burocrtico administrativo e do direito legislativo oficial.
Oferece-se a possibilidade de recuperar e por em evidncia lgicas que o Estado
contemporneo reprime e condena: as relaes clientelares e de fidelidade, a linhagem e
a organizao domstica, a disciplina informal8.
Ed. Estampa, 1993, p. 461.8 HESPANHA, A. O debate acerca do Estado Moderno. In: TENGARRINHA, J. (Coord.). A
historiografia portuguesa, hoje. Lisboa: Hucitec, 1999, p.138.