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SUMÁRIO SUMÁRIO SUMÁRIO SUMÁRIO SUMÁRIO UTOPIA REVISTA ANARQUISTA DE CULTURA E INTERVENÇÃO 7 Primavera-Verão 1998 800$ (IVA incluído) DIRECTOR J. M. Carvalho Ferreira COLECTIVO EDITORIAL Carlos Nuno, Guadalupe Subtil, J.M. Carvalho Ferreira, José Luís Félix, José Tavares, Rui Vaz de Carvalho. COLABORADORES Alberto Hernando, Alberto Pimenta, Alfredo Gaspar, Armando Veiga, Arno Gruen, Attila Toukkour, Carlos Dìaz, Edgar Rodrigues, Edson Passetti, Eduardo Colombo, Francisco Madrid, Herculano Lapa, Jaime Cubero, Júlio Henriques, Luís Chambel, Mari Oly Pey, Maria Pereira, Miguel Serras Pereira, Quin Sirera, Roberto Freire, Torcato Sepúlveda. ILUSTRADORES Alex Gaspar, David Saavedra, Francisco Pisco, Miguel Falcato, Teresa Câmara Pestana. ARRANJO GRÁFICO Confronto · Apartado 460 · 4400 V.N.Gaia PROPRIEDADE Associação Cultural A Vida Publicação semestral registada no Ministério da Justiça com o nº118 640 IMPRESSÃO Gráfica 2000 · Cruz Quebrada REDACÇÃO E ASSINATURAS Apartado 2537· 1113 LISBOA Codex · Portugal INTERNET http://www.geocities.com/Athens/8336 CAPA José Tavares – «... um mundo de pura aparência que se compõe só de nomes» (pormenor) CONTRA-CAPA Francisco Pisco e a Firma Luso Truque Editorial 2 CHARLES R EEVE ENTREVISTA A NITE DE M ONTREAL Partilhar a revolta 5 MANUEL PORTELA Cheguei, vi & caguei: uma epopeia autárquica em dois cantos 15 Foi-me preciso descobrir 22 J OSÉ LUÍS FELIX Que Liberdade? 23 CHARLES R EEVE & H SI H SUAN -WOU O Senhor Hoo e Camões 32 MURRAY B OOKCHIN Sociedade e Ecologia 37 As Cidades Não São Boas Para Uma Vida Humana 54 Aspectos do Anarquismo 61 J OSÉ T AVARES De Parte Nenhuma 64 J ÚLIO H ENRIQUES O que a Expo expõe 72 L UÍS CHAMBEL / A FYSGA Um Grande Empreendimento 79 A Ratoeira das Instalações 85 Eu, Ator e Anarquista 87 30 Anos: Maio 68 e a Mistificação Corrente 89 Encontro com Luce Fabbri 90 Notas & Comentários 94 Livros e Leituras 101 Publicações Recebidas 110

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S U M Á R I OS U M Á R I OS U M Á R I OS U M Á R I OS U M Á R I OUTOPIAREVISTA ANARQUISTA DE CULTURA E INTERVENÇÃO

7Primavera-Verão 1998

800$(IVA incluído)

DIRECTORJ. M. Carvalho Ferreira

COLECTIVO EDITORIALCarlos Nuno, Guadalupe Subtil, J.M. Carvalho

Ferreira, José Luís Félix, José Tavares, Rui Vaz de Carvalho.COLABORADORES

Alberto Hernando, Alberto Pimenta, AlfredoGaspar, Armando Veiga, Arno Gruen, Attila

Toukkour, Carlos Dìaz, Edgar Rodrigues, EdsonPassetti, Eduardo Colombo, Francisco Madrid,

Herculano Lapa, Jaime Cubero, Júlio Henriques,Luís Chambel, Mari Oly Pey, Maria Pereira,Miguel Serras Pereira, Quin Sirera, Roberto

Freire, Torcato Sepúlveda.ILUSTRADORES

Alex Gaspar, David Saavedra, Francisco Pisco,Miguel Falcato, Teresa Câmara Pestana.

ARRANJO GRÁFICOConfronto · Apartado 460 · 4400 V.N.Gaia

PROPRIEDADEAssociação Cultural A Vida

Publicação semestral registada no Ministério daJustiça com o nº118 640

IMPRESSÃOGráfica 2000 · Cruz Quebrada

REDACÇÃO E ASSINATURASApartado 2537· 1113 LISBOA Codex · Portugal

INTERNEThttp://www.geocities.com/Athens/8336

CAPAJosé Tavares – «... um mundo de pura aparência

que se compõe só de nomes» (pormenor)

CONTRA-CAPAFrancisco Pisco e a Firma Luso Truque

Editorial 2

CHARLES REEVE ENTREVISTA ANITE DE MONTREAL

Partilhar a revolta 5

MANUEL PORTELA

Cheguei, vi & caguei:uma epopeia autárquica em dois cantos 15

Foi-me preciso descobrir 22

JOSÉ LUÍS FELIX

Que Liberdade? 23

CHARLES REEVE & HSI HSUAN-WOU

O Senhor Hoo e Camões 32

MURRAY BOOKCHIN

Sociedade e Ecologia 37

As Cidades Não São BoasPara Uma Vida Humana 54

Aspectos do Anarquismo 61

JOSÉ TAVARES

De Parte Nenhuma 64

JÚLIO HENRIQUES

O que a Expo expõe 72

LUÍS CHAMBEL / A FYSGA

Um Grande Empreendimento 79

A Ratoeira das Instalações 85

Eu, Ator e Anarquista 87

30 Anos: Maio 68 e a Mistificação Corrente 89

Encontro com Luce Fabbri 90

Notas & Comentários 94

Livros e Leituras 101

Publicações Recebidas 110

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Utopia 72

Portugal sempre viveu um dilema histórico: o complexo de ser pe-queno. Esse drama histórico ficou de tal modo enraizado nas mentese nos valores das gentes que povoaram este país durante séculos, quepor tudo e por nada, governantes e governados, vêem-se obrigados arepresentar um papel de grandes actores, para demonstrarem ao mundoque são de facto grandes e não pequenos. Diversas manifestações decarácter pós-moderno dão-nos conta desse fantasma nacional. Osmilhões de emigrantes portugueses são os melhores a trabalhar nospaíses de acolhimento, mas também os melhores a suportar as vicissi-tudes da escravidão e da alienação. Como país de acolhimento deimigrantes, conseguiu grandes performances nas obras públicas,principalmente nas taxas percentuais de trabalho “negreiro”, de mor-tes e de estropiamentos dos imigrantes que trabalharam e trabalhamnos estaleiros da Expo 98, na ponte Vasco da Gama e na construçãode infra-estruturas e equipamentos colectivos que envolvem as pri-meiras realizações.

Ao realizar a Expo 98, Portugal não faz mais do que imitar as obrasfaraónicas que sempre serviram para encobrir a miséria e pobrezaque grassava nos países de antanho. Para quê gastar milhões de con-tos em obras que só servem para cobrir o país de cimento, ferro evidro e, no fundo, para funcionar como gáudio, gula, orgulho e pre-sunção conjuntural de meia dúzia de ministros, deputados, bispos,militares, construtores civis e banqueiros? Para quê dar trabalho deescravo a milhares de imigrantes, com salários de miséria, condiçõesde trabalho infames, se daqui a pouco tempo vão obrigá-los a mergu-lhar no desemprego e a engrossar o exército dos mendigos e dos es-poliados que pululam na cidade de Lisboa? Para quê fazer umespectáculo grandioso sobre os chamados Descobrimentos, quandoeles personificam acima de tudo o genocídio, a pilhagem e a destrui-ção dos povos colonizados pelos portugueses? Para quê tantamacaquice e presunção através do governo e dos media, quando de-pois, durante o evento, vão ter vergonha de mostrar aos visitantes daExpo 98 a sujidade das ruas e do rio Trancão, a pobreza franciscanainstalada no funcionamento dos hospitais, das esquadras de polícia,dos transportes, etc.? Para quê demonstrar orgulho em ser o maior,ao ser-se português, quando não se tem um mínimo de dignidade, demoral e de ética para ser, enfim, gente num território que se conven-cionou denominar Portugal?

editorial

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Utopia 7 3

Entre as várias perspectivas do anarquismo, a investigação desen-volvida por Murray Bookchin no domínio da Ecologia Social consti-tui um contributo histórico de extrema importância para a prática eas ideias do movimento libertário internacional. A actualidade dasua crítica ao sistema capitalista revela-se pertinente. É uma críticanão só dirigida à essência das suas modalidades de opressão e explo-ração, como também às suas formas de destruição e de dominaçãoda natureza. Das contradições e dos antagonismos gerados pelo capi-talismo, podemos compreender as suas incongruências internas e agirde forma consequente.

Poder-se-á criticar a visão reformista de Murray Bookchin em rela-ção às suas teses do Municipalismo Libertário. Votar no sistema de-mocrático capitalista é delegar numaautoridade hierárquica formal, aliberdade e a soberania inalienáveladstrita a cada indivíduo e a cada gru-po social. Estando de acordo com esta pre-missa básica, podemos, no entanto, reflectirsobre se reforma e revolução são absolu-tamente separáveis no espaço e notempo, ou se pelo contrário são interde-pendentes e complementares? A históriatem-nos ensinado que não devemos dissociar ateoria da prática, e que é contraproducente prescin-dirmos da identidade acrata entre meios e fins. Maisdo que nunca, o anarquismo só poderá afirmar-se senegar a essência do capitalismo. Para o efeito, torna-seurgente inserirmo-nos num processo de aprendizagemsocial, em que as relações sociais tendam para a democracia directa.Perante a crise de legitimidade institucional do Estado, dos partidose dos sindicatos, cabe-nos construir uma alternativa revolucionáriaque culmine na sua extinção, já que eles personificam tipologias clás-sicas de dominação e alienação.

Reafirmamos o pulsar das ideias e práticas da diversidade dosanarquismos que interpretam, sentem e praticam a anarquia de formadiferenciada, sem negar os seus princípios básicos. Hoje, mais doque nunca, a crítica radical do sistema capitalista à escala mundialpassa pela construção de um clima de liberdade e de afinidades, esobretudo pela criação de laços de fraternidade e solidariedade entreos vários anarquismos, com vista a permitir que a anarquia tenhacada vez mais sentido na história da humanidade.

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Utopia 74

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Utopia 7 5

Anite, filha de emigrantes portugueses de Montreal,empenhada no movimento estudantil e em colectivos feministas,

esteve em El Salvador e no Brasil, onde encontrou homens emulheres ex-combatentes da FMLN e camponeses do Movimento

dos Sem Terra. É desta experiência que nos fala, com um olharlúcido sem o qual a palavra solidariedade perde todo o sentido.

Partilhar a revoltaUma mulher do Quebeque em El Salvador e no Brasil

CHARLES REEVE ENTREVISTA ANITE DE MONTREAL

guerrilha nem sequer podiam integrar-se nela,por não terem a estatura mínima prevista…Para mim, de resto, que fossem homens oumulheres vinha a dar ao mesmo: era uma po-lícia! Além disso, falava-se deste corpo poli-cial quando o direito de manifestação nemsequer fora restabelecido! Os homens e asmulheres que tinham estado na guerrilha, di-ziam-me: «Tens razão, mas nós estamos con-fiantes.» E eu respondia-lhes: «Vocês estãomesmo confiantes, ou é o partido que vos pedeque estejam? Os dirigentes da FMLN apoiampolíticos que negoceiam com o partido nopoder, a ARENA; esta e a ONU organizam avossa polícia civil e o povo vota na FMLN.No dia em que o povo se revolte, faça greve eseja reprimido pela nova polícia, como irá aFMLN justificá-lo? No lugar do povo, eu cáconcluirei que a FMLN traiu.» Não gostaram

Anite: Em 1994 fui a El Salvador, logo a se-guir aos acordos de paz. Chegámos a umapequena comunidade camponesa, desprovidade tudo, a quem tinham sido entregues algu-mas terras. O nosso objectivo consistia emajudar as pessoas de lá a construírem uma es-cola, mas o projecto não foi muito longe. Pas-sado pouco tempo, entrei em contacto compessoas, ligadas ao Partido Comunista, quetinham feito parte da guerrilha da FMLN(Frente Marxista de Libertação Nacional).Nessa altura, um dos debates na ordem do diaera sobre a formação da nova polícia nacio-nal civil. A FMLN tinha investido muito nes-te projecto, pensando integrar nesta políciauma parte dos seus guerrilheiros. Isto suscita-va-me muitas dúvidas, porque criar uma polí-cia era o mesmo que preparar uma acçãorepressora. A maior parte das mulheres da

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Utopia 76

do que eu disse. Mas eu não ia ficar calada sópor não ter nascido em El Salvador ou pornão ter participado na guerra. Eu acho queninguém tem o direito de me dizer que a mi-nha opinião não é válida só por eu não ternascido em determinado sítio. Já tive de atu-rar coisas dessas no Quebeque, como filha deemigrantes. Lá em El Salvador, tinha-lhessempre dito que não era cooperante, que nãotinha vindo só para estudar a situação, quepartilhava a revolta deles.

Havia também a questão dos acordos depaz. A FMLN depusera as armas de acordocom a ONU. Tinham lutado por uma vidamelhor, por uma reforma agrária, por menosexploração, e às tantas, de repente, não viamgarantia nenhuma de reforma agrária ou demelhores salários. À noite, quando voltavampara casa, os ex-guerrilheiros continuavam apassar por atalhos. Durante as eleições, tinhamsido abatidos militantes, homens e mulheres,candidatos da FMLN. Ao entregar as armas,a FMLN fora obrigada a declarar a totalidadedos seus militantes. Aliás, já não se podia fa-lar de guerrilha clandestina, mas sim de Exér-cito da FMLN, com um número x de homens,mulheres e espingardas… E todos se viamagora com um cartão da ONU no bolso, bemidentificados! Aquilo enraivecia-me: «Para-béns! Agora que já sabem quem tu és e comote chamas, já te podem liquidar quando qui-serem!» Nunca vivi uma situação de guerra.Mas parecia-me que nunca teria entregue asminhas armas à ONU. Mais valia fugir do país.Mais valia estar longe dali do que ver-meidentificada daquela maneira.

Soube mais tarde que nem toda a gente ti-nha deposto as armas. A organização declara-ra pessoas que nunca tinham feito parte daguerrilha e que na prática cobriam quadros daorganização mantidos na clandestinidade. Àprimeira vista, isto pareceu-me mais inteligen-te, mas pensando melhor vi que era uma ati-

tude típica de organização vertical. Todosquantos voluntariamente tinham dado o nome,ficavam doravante vulneráveis perante o Es-tado, ao passo que os dirigentes se mantinhamna sombra, protegidos. Aquilo não me agra-dava inteiramente…

A REVOLTA DAS MULHERES

Um ano depois, em 1995, decidi voltar paralá para trabalhar com grupos de mulheres. Em94, as organizações que eu tinha frequentadoeram muito hierarquizadas e em maioria com-postas por homens. o Partido passava antesde tudo e a organização comunitária apenasservia para transmitir a ideologia do Partido.Eu queria agora ver como funcionavam ascoisas do lado das mulheres. Nessa altura, asorganizações femininas reivindicavam a suaindependência e autonomia para com os par-tidos. Em 95, a FMLN estava a transformar-se em partido e formavam-se tendências. Osgrupos de mulheres aproveitaram a ocasiãopara reclamar mais autonomia e a possibili-dade de trabalharem no seio das organizaçõescomunitárias sem estarem ligadas ao partido.O grupo de mulheres que nos recebeu estavaorganizado na ADEMUSA (Associação dasMulheres de El Salvador) e punha a seguintequestão: serão compatíveis o grupo de mulhe-res e o grupo político? Por seu intermédio,encontrámos duas militantes do Partido Co-munista que eram mulheres com uma formi-dável experiência política. Sentiam-se algodecepcionadas com o processo de paz quepermitira a desmobilização da guerrilha e domovimento social. O trabalho deste grupoconsistia em sensibilizar as mulheres do meiourbano para os problemas da violência, dasaúde e da educação. O nosso grupo fazia umaabordagem feminista muito antropológica, ouseja, não reivindicávamos a defesa das mu-lheres contra os homens mas sim a luta por

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Utopia 7 7

um género humano diferente, com atitudesdiferentes. Com as comunidades camponesas,a ADEMUSA pusera de pé um original siste-ma de ajuda. As camponesas podiam pedirdinheiro emprestado a uma caixa comunitá-ria para financiarem as suas plantações. Nãoera a organização de cooperativas, era umaforma de entreajuda que me parecia justa. Seuma determinada camponesa não podia devol-ver o dinheiro, por causa da seca ou de outracoisa, a terra era partilhada igualitariamenteentre todas. Punha-se, no entanto, um proble-ma: as mulheres recebiam o dinheiro e os ho-mens gastavam-no. Ora, a prazo, o equilíbriodo sistema ficava assim ameaçado. Tambémnisso a relação de poder entre os homens e asmulheres se tornava determinante. A contra-gosto, a ADEMUSA viu-se obrigada a pediraos homens que co-assinassem os emprésti-mos, para eles se comprometerem também.

Neste segundo ano, encarei a sociedade demodo diferente. Ao trabalhar com os gruposde mulheres e com os camponeses, homens emulheres, apercebi-me de que nem tudo ia porbom caminho. As pessoas começavam a criti-car a ideia duma polícia civil, dizendo aberta-mente que as tinham enganado. A esperançade 94 esfumara-se. Ao viver com as mulhe-res, uma pessoa sente os problemas da sobre-vivência no quotidiano, ou seja, aquilo a quechamo a dupla ou tripla opressão. A revoltadas mulheres é menos intelectualizada e pas-sa por menos mediações, é mais espontânea emais directa. Por exemplo, eu tinha encontra-do uma mulher que estivera na guerrilha nosanos 70 e a quem tinham dado uma leira deterra. Esta mulher era muito crítica. Segundodizia, a situação agravara-se após os acordosde paz. Dizia até que tinha saudades da épocada guerrilha, da comunidade de luta e do fun-cionamento igualitário que então imperava.Não acreditava na política oficial, eleitoralista,da FMLN. «Os que dantes tinham tudo, con-

tinuam a ter tudo, e os que não tinham nada,hoje ainda menos têm!» Sentia-se tambémmuito revoltada com a reforma agrária, por-que só quem tinha algum dinheiro podia pa-gar as terras pretensamente distribuídas. Narealidade, isso era conforme as regiões. Ondea guerrilha fora poderosa e onde o campe-sinato se mostrara muito combativo, as terrashaviam sido ocupadas. Tendo em conta a re-lação de forças nestas zonas, os membros daFMLN tinham podido negociar a distribuiçãodas terras com o governo e os proprietários.Mas estávamos longe duma reforma agrária.Em três comunidades próximas do P.C., situ-adas em sítios diferentes, uma comunidadeconquistara as terras, uma outra ocupava-as,esperando que lhe fossem concedidas, e a ter-ceira comprava-as. Nesta última, as pessoaspodiam escolher entre comprar as terras demodo colectivo ou individualmente. É claro,iam endividar-se, mourejar e a seguir perdernovamente as terras em proveito dos bancos,porque nunca conseguiriam pagar os créditos.Nunca poderiam tornar-se competitivas. Nacomunidade onde estávamos, o Partido Co-munista incitava os camponeses a trabalha-rem a terra colectivamente. Mas ninguémqueria saber. A mentalidade era muito indivi-dualista, mesmo quando a comunidade con-seguia construir uma escola. Para isto, cadafamília dava umas tantas horas de trabalho porsemana. Eram na maioria refugiados, campo-neses, homens e mulheres, vindos de outrasregiões. Havia também antigos combatentesde ambos os sexos, bem como pessoas da re-gião que tinham apoiado a guerrilha e se vi-ram obrigadas a fugir. Em 1994, a comunidadetinha acabado de se instalar e eu não tinhavisto nenhumas separações entre as casas,nenhumas vedações. Um ano depois, cada fa-mília vedara o seu lar, o seu terreno, instalaraportas e ferrolhos. Aquilo espantou-me. Acomunicação no espaço já não existia. Os

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Utopia 78

únicos que o não tinham feito eram os homense as mulheres que partilhavam a ideia dacolectivização. Quanto aos outros, nada sepassara no seu espírito. Sempre aquela ideiade que uma pessoa pode viver mais facilmen-te na sociedade se agir individualmente.

Havia mesmo um debate sobre os prós eos contras da colectivização, ou isso não pas-sava duma palavra de ordem política vinda decima? Estou a pensar naquela magnífica pas-sagem do filme de Ken Loach, Tierra yLibertad, quando os camponeses e os mili-cianos discutem juntos sobre a opção dacolectivização.

Onde eu estava, nunca assisti a tais deba-tes. Sei que em 95 alguns camponeses, ho-mens e mulheres, se tinham agrupado paracomercializarem os seus produtos. Visto da-qui, isto parece não valer grande coisa, porcontinuar no contexto mercantil, mas eu vejonisso um começo de associação entre as pes-soas. Como por acaso, eram pessoas que ti-nham participado na guerrilha. Estive tambémnuma outra comunidade onde as terras tinhamsido ocupadas pelos camponeses. Nesta, sóalguns membros tinham participado na guer-ra, mas todos tinham vivido uma experiênciade solidariedade, escondendo em suas casaspessoas da FMLN. Emanava de tudo isso umforte espírito comunitário e tinham mesmoocorrido realizações colectivas concretas: umacreche, uma escola, um posto de saúde. Se-gundo percebi, as terras não eram colecti-vizadas, sendo-o todavia as sementes e acomercialização dos produtos.

Estas experiências deram-me muito quepensar. No primeiro ano, fui convidada a fa-lar em público, em nome da solidariedade in-ternacional. Pedi aos camponeses, mulherese homens, que trabalhassem com a FMLN.Naquela altura, a direita também prometiafundos para a agricultura, fundos esses que

nunca chegariam às mãos das pessoas. Com aFMLN, o dinheiro apesar de tudo chegava àsmãos do povo. Mas no segundo ano disse amim mesma que já não podia falar às pessoasdaquela maneira, visto conhecer melhor a si-tuação e ter menos ilusões. É certo que preci-samos sempre de esperança, de acreditarnalguma coisa… Mas o que é que me tinhalevado a mudar de opinião? Em 95, a FMLNestava a atolar-se nos compromissos do acor-do de paz. O que estava em jogo, cada vezmais, eram arranjos políticos e a populaçãocontinuava a viver na mais absoluta miséria.A esperança na FMLN já não existia. Conti-nuavam a dizer às pessoas que era precisoacreditarem e terem confiança, quando os pró-prios dirigentes já não acreditavam. O cho-que veio em 95, quando vi a FMLN votar coma direita, no parlamento, a repressão dumagreve! Só um deputado da FMLN, Dagoberto,um comunista, votou contra. Houve prisões,operárias e operários foram atirados para acadeia e eu soube por amigos e amigas quenas fábricas e nas associações de bairro os tra-balhadores, homens e mulheres, pediam con-tas à FMLN. Exactamente o que eu recearaem 1994: «Um dia destes vai haver uma gre-ve e vocês vão reprimi-la com a polícia naci-onal civil. O antigo combatente, agora polícia,irá prender o trabalhador, estando ambos nomesmo partido político, pretensamente opos-to ao regime.» Tudo isso me perturbou imen-so. Hoje, seja qual for a guerrilha, já nemsequer ponho a mim mesma a questão, seicomo a coisa funciona e aonde leva: tomaremo poder para fazerem a mesma sujeira. Deixeide acreditar nisso. Hei-de mesmo bater-mecontra isso!

Foste depois para o Brasil.Fui para lá em 1996, com um grupo de Or-

ganizações Não Governamentais alternativasque trabalhavam com o Movimento dos Sem

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Utopia 7 9

Terra (MST). Fomos ter a uma cooperativaagrícola situada no Estado de São Paulo. Acooperativa, formada por cinco comunidadesagrícolas, preparava-se para ocupar terras comvista a formarem uma sexta, chamada Comu-nidade Chico Mendes, do nome do militantecamponês e ecologista assassinado. Para evi-tarem uma eventual acção policial, as campo-nesas e os camponeses tinham instalado assuas cabanas nas terras da cooperativa já exis-tente. Do outro lado da estrada estava a terraque iam ocupar. Uma noite, a assembleia cam-ponesa decidiu proceder à ocupação manhãcedo. Perguntaram-nos: «Vocês querem par-ticipar?» E nós dissemos que sim. A maneiracomo eles procedem à ocupação não consisteem colocar uma bandeira no terreno nem emconstruírem casas. Ocupar significa cultivara terra. Era época de sementeiras e por issoimpunha-se agir com presteza. Mal as pesso-as tinham começado a trabalhar, chega umtipo, representante do proprietário. «Esperemaí! O processo legal ainda não foi concluído,tem de seguir seus trâmites, pode ser que vosvão ceder a terra, etc…» Deixaram-no falar,o tipo falou durante uma boa meia hora, aspessoas ouviram-no calmamente, de braçoscruzados. No fim, um dos camponeses doMST retorquiu-lhe: «O processo jurídico é

uma coisa. Vocês têm seus advogados, nóstemos os nossos. Isso passa por onde tem depassar, seguindo seus trâmites normais. Masnós, se queremos comer, temos de cultivar jáessa terra.» Era tão simples como isto. Muitoconcreto.

A DISTRIBUIÇÃO SEGUNDO

AS NECESSIDADES

Fiquei desde logo impressionada com oforte sentimento de solidariedade. Em cadaocupação, os membros das diversas comuni-dades vinham prestar assistência à nova comu-nidade ocupante. Os membros da cooperativaonde nós estávamos viviam bastante bem; co-miam carne, tinham leite e cereais. Alémdisso, forneciam víveres ao acampamentoChico Mendes. Pessoas do acampamento tra-balhavam por fora, nas propriedades da aldeiamais próxima, trazendo um rendimento com-plementar para a colectividade. A maior par-te eram camponeses pobres, homens emulheres daquela região, mas havia tambémpessoas vindas das favelas de São Paulo. É oresultado da acção desencadeada pelo MSTnas favelas: «Vocês são antigas camponesas eantigos camponeses. Nunca vão achar traba-lho na cidade. Venham ocupar terras!» Isso

faz que as pessoas que tomamessa decisão são muito decididase motivadas. Segundo o espíritodo movimento, cada família ficadepois livre de participar ou nãona cooperativa. Uma pessoa podeperfeitamente participar numaocupação sem por isso ficar obri-gada a fazer parte da cooperati-va. Todos os militantes do MSTme diziam que nunca tentamconvencer as pessoas a colec-tivizar as terras. Após cada ocu-pação, havia um debate sobre esta

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Utopia 710

questão, mas as opções eram livres. Na maio-ria das comunidades onde estive, as terraseram colectivizadas, apesar de cada famíliaficar com um quintalzinho. Mas lembro-metambém duma comunidade onde algumas fa-mílias tinham recusado a colectivização emantido as suas leiras. Convém lembrar quetodas estas experiências são recentes. As pri-meiras ocupações datam de há uma dúzia deanos e as terras só são colectivizadas desdehá três ou quatro anos. Tudo isso significa umenorme trabalho de organização. Antes da ocu-pação, um acampamento é a confusão. Umacooperativa tem uma vida colectiva bem or-ganizada: animais, plantações de árvores e deflores, colmeias. Não direi que as comunida-des eram ecológicas, mas há nelas respeitopela natureza. Cada família ou indivíduo tema sua representação no comité da cooperati-va. Todos levam a peito que as pessoas sepossam exprimir. Tenta-se de respeitar esteprincípio: a cada família o seu sustento. Umafamília com quatro filhos terá com que os ali-mentar, mesmo no caso de apenas fornecer amesma quantidade de trabalho que uma famí-lia com dois filhos. A distribuição faz-se se-gundo as necessidades de cada casa. Tudo istoem quatro anos! Disse para comigo que valiamesmo a pena fazer tais ocupações!

A ACÇÃO DIRECTA CONTRA

A HIPOCRISIA POLÍTICA

Faço aqui um parêntesis para comparar asituação do Brasil com a de El Salvador. Ascondições são muito diferentes. Em El Salva-dor, a guerra civil esgotou por completo asenergias. As pessoas não podiam ir ocuparterras quando a aviação andava a bombardeara montanha… De resto, o objectivo do gover-no consistia em destruir toda e qualquer pro-dução agrícola, para impedir que a guerrilhase alimentasse. No Brasil, o campesinato po-

bre leva a cabo ocupações desde já há bastan-te tempo. O MST é hoje muito conhecido por-que a repressão se intensificou, com oassassínio de muitos dos seus militantes, mu-lheres e homens, pelo exército e pela polícia,como aconteceu na comunidade Macacheira,no Estado do Pará, no Norte do Brasil. Em ElSalvador, a opção era entre morrer de fomeou morrer de armas na mão. No Brasil, a op-ção está entre morrer de fome ou ocupar umaterra para sustento. É muito diferente! Soujovem, mas desde que nasci, vi sempre, emPortugal, no Canadá, no Brasil, em El Salva-dor ou nos Estados Unidos que o ser humanomuito dificilmente se deixa morrer de fome.Mesmo que seja preciso roubar ou matar, oser humano fará isso, para poder comer. EmEl Salvador, a política, os acordos de paz, osdinheiros a obter aqui e ali, tudo acabou porneutralizar as práticas de acção directa. NoBrasil, a resistência dos grandes proprietáriosé enorme, não querem ceder terras nenhumasnem vendê-las. As pessoas estão encurraladas,só lhes resta a ocupação. É um movimento demassas muito decidido, e as pessoas hão-deprosseguir mesmo que disparem contra elas.

É certo que não devemos esquecer que pordetrás do MST também há antigas forças polí-ticas e sindicais com implantação na sociedadebrasileira, o PT (Partido dos Trabalhadores) ea CUT (Central Unida dos Trabalhadores),embora os elos entre estas três organizaçõespareçam estar cada vez mais soltos. Há tam-bém uma grande variedade de correntes políti-cas mais ou menos organizadas, dos maoístasaos católicos da Teologia da Libertação. Nointerior do MST exprimem-se diferentes ideo-logias. Aliás, a escola de formação de quadrosdo MST baseia-se nas ideias políticas domaoísmo, do Che e de Zumbi (o mais conheci-do dos dirigentes das revoltas de escravosnegros do século XVII, os Quilombos). Pesso-almente, não acho necessários os ensinamentos

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Utopia 7 11

maoístas ou guevaristas para as pessoas ocu-parem e cultivarem uma terra… Pelo contrá-rio, estas ideologias podem mesmo tornar-seum freio à livre vontade de as pessoas ocupa-rem terras e governarem as suas vidas. O pas-sado político do socialismo demonstrou a queponto os maoístas eram e são ainda aves derapina, uns chefes que se aproveitam das lutasdos outros para atingirem os seus fins políti-cos. Hoje em dia, o representante oficial doMST, Stédile, faz o elogio de Marcos e doszapatistas. Por mim, desconfio. A guerrilha dostempos contemporâneos não poderá esconderdurante muito tempo a sua hipocrisia políticapor detrás do capuz embuçado. Convém ser-mos claros: a maioria dos dirigentes doMST são apóstolos das ideias da es-querda reformista tradicional,remetendo para um futuro lon-gínquo o advento da justiça so-cial. Levam a cabo a luta emprol da reforma agrária noquadro do sistema capitalistaactual, que não parecem pôr emcausa. Mesmo se isso melhoraras condições de vida de muitaspessoas, as reformas continuam a serreformas e o sistema em vigor mantém-seem vigor, bem como a propriedade privada eos proprietários. É certo que na prática as coi-sas não são tão simples como em teoria. Mas,por mim, digo que se militasse no dia a dia doBrasil, falaria de ocupações em prol da aboli-ção da propriedade privada e não de reformaagrária. Por que razão continuar falando de re-formar o velho mundo em vez de se inventarum mundo novo? Nunca se fala em agir emprol duma sociedade assente em bases novas.Nunca o MST vem clamar «abaixo o Estado»,nem sequer «autogestão generalizada sob con-trole popular». Não encontrei libertários acti-vos no seio do MST. Talvez existam. Emcontrapartida, vi muitos quadros do PT com

um interesse muito preciso: obter proveitoeleitoralista com estas revoltas.

«PORQUÊ COMPRAR A TERRA,SE ELA NOS PERTENCE?»

Podemos fazer uma análise sociológica ouaté jornalística das situações. Se formos mili-tantes dum partido, detemo-nos nas formas deorganização ou nas situações que reconfortamas nossas análises. Quanto a mim, fui sempreuma sem-partido, mas declaradamente partidá-ria da base. Em El Salvador e no Brasil, quis irmais longe que a simples rejeição desta ou da-quela situação, pessoa ou organização, com o

pretexto de que estavam enfeudadas aum partido ou a uma ideologia. Em

cada acção humana há a riquezada revolta contra as nossas con-dições de exploração, e issonão há partido nem ideologiaque o possa completamentedesviar. Ao ir ver por detrás

do espelho que estas pessoasme entendiam, quis encontrar o

autêntico. Enganei-me muitas ve-zes, mas também vi a vida verdadeira

em acção.Acontece portanto que nas cooperativas, as

camponesas e os camponeses mais implicadosse encontrem ligados a grupos políticos. Era ocaso da dirigente duma das cooperativas ondeestive. Gostei muito desta mulher e, para mim,o facto de ela ser membro dum partido não al-terou em nada o meu sentimento. O que elatinha feito da sua vida, o que tinha construído,fizera-o ela própria com os seus camaradas. Nãofora o PT que o fizera por ela, mesmo tendo-lhe servido de apoio. Esta mulher vinha do Nor-te. O seu pai era um camponês sem terra. Elatinha emigrado para São Paulo para trabalhar eeconomizar dinheiro, com a ideia de voltar paraa aldeia e comprar uma terra. Era o seu sonho.

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Utopia 712

Vivia numa favela e um belo dia decidiu partircom o MST, para ocuparem terras. Dizia-nos:«Quando eu era moça, nem podia imaginar quealgum dia ia voltar aqui, obtendo uma terra sempagar!» Era uma mensagem importante: por-quê comprar a terra, quando ela nos pertence?Podemos ocupá-la!

Nem todas as mulheres que encontrei eramdesta têmpera. Um dia fui ouvir Erundina, adirigente do PT que foi chefe municipal de SãoPaulo. Tinha uma voz forte e calorosa, falavamuito bem e sabia enfeitiçar a gente. O que eladizia parecia-me formidável. Até à altura emque disse: «Se votarem por mim, se eu ganharo poder, farei isso, farei aquilo.» Disse entãopara comigo: «Mas fazer isso como? Os capi-talistas vão-te financiar? Essa é mesmo boa!O país está corrompido de A até Z, toda a gentecompra toda a gente, e você vai fazer isso tudosó por ser eleita, é?» E comecei a ter arrepiosno corpo todo, senti-me mal perante esta de-magogia. Por vezes o PT pode parecer menosmau que os outros partidos, por ser menos cor-rompido. Mas ele só pode fazer aquilo que oscapitalistas e os financeiros permitirem. Nosmunicípios que controla, acontece o PT reali-zar projectos financiados pelo FMI e peloBanco Mundial. Não passa de um partido daesquerda tradicional que tem a ambição dopoder. Estou convencida de que o PT seria oprimeiro a opor-se a qualquer verdadeiro mo-vimento de autogestão social. No MST e nomovimento associativo brasileiro, há muitasmulheres. As mulheres têm uma enorme ca-pacidade de sobrevivência e tornam-se facil-mente o motor destes movimentos. Não é aliásespecífico a El Salvador ou ao Brasil. Desdehá séculos, as mulheres foram isoladas na eco-nomia familiar, na economia local ou comu-nitária. Agora, as mulheres são maioritáriasnas organizações e nos movimentos de base.É certo que há comportamentos políticos quetanto são adoptados pelos homens como pe-

las mulheres. Erundina é disso um bom exem-plo. Mas convém dizer que não é porque asmulheres assumam o seu lugar que as suaspessoas e o seu empenhamento se vêem res-peitados. Em El Salvador, onde as mulheresparticiparam maciçamente na luta, foi preci-so elas fazerem pressão sobre a FMLN paraque esta defendesse o direito ao aborto livre egratuito, quando na frente de combate as mu-lheres podiam abortar livremente. Uma vezlançado no eleitoralismo, o partido esqueceraa bela filosofia igualitária. As mulheres con-tinuam a ser vítimas de discriminações. Nãome surpreenderia que isso ocorresse no Bra-sil, no MST, embora em teoria a direcção digarespeitar os direitos das mulheres.

ENTRE ACÇÃO DIRECTA

E LEGALIDADE

VOltemos à questão do estatuto jurídico daterra. A maior parte das terras ocupadas per-tence à zona de aplicação da reforma agráriaoficial; são terras que nunca foram distribuí-das. Há também as terras distribuídas no iní-cio dos anos 70 e que depois os camponesesabandonaram. O Estado dera terras a famíliasmas não lhes fornecera os meios necessáriosà sua exploração e rendibilidade. Por isso,estes camponeses e camponesas, pressiona-dos pelo seu endividamento e debaixo da ame-aça, voltaram a vender estas terras a indivíduoscom dinheiro. É a evolução clássica em todaa reforma agrária capitalista, que desembocainvariavelmente na concentração da terra. Ocaso é que no Brasil, do ponto de vista jurídi-co, tanto a venda como a compra eram ile-gais, visto as terras continuarem pertencendoà zona da reforma agrária administrada peloEstado. Hoje em dia, os movimentos de ocu-pação são sobretudo motivados por esta situ-ação de ilegalidade. O MST apoia-se nestacontradição e as comunidades que ocupam

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acabam quase sempre por fazer reconhecer oseu direito legal às terras ocupadas. É bonito,porque as pessoas se mobilizam, mas ao mes-mo tempo são ocupações legais e as pessoasvivem-nas enquanto tais. Talvez isto retireume parte da magia e do mito da ocupação,da acção directa. Os proprietários ilegais,quanto a eles, obtêm também um pequeno lu-cro com esta situação, visto receberem por ve-zes dinheiro do governo. Mas reagem menosviolentamente às ocupações do que os outrosproprietários. Talvez por saberem que estãona ilegalidade. Há também ocupações que sefazem num quadro ilegal, as das grandes pro-priedades privadas. Trata-se neste caso de algoque não é uma simples pressão para a aplica-ção da lei. Quando o MST fala de vitória, re-fere-se em geral às ocupações legais. Porque,nos outros sítios, sobretudo no Norte e noNordeste, as pessoas são baleadas e assassi-nadas. Mesmo nas ocupações legais, numaocupação calma como aquela em que partici-pámos, o risco está sempre presente. Basta oproprietário, em vez de chamar a polícia, con-tratar uns cangaceiros para liquidar a cabeçado MST local. No fim de contas, por que ra-zão apelariam eles aos militares, visto dispo-rem do seu próprio exército de mercenários?

Dizes «a cabeça do MST local». O MST éentão muito hierarquizado?

Lá, não me dei conta disso. Localmente, háuma representação e um representante do MST.Vivíamos nas terras, tivemos pouco contactocom o aparelho da organização. Visto de fora,o MST parece muito estruturado e hierar-quizado. Isso inquieta-me um pouco quanto àorientação das ocupações. Há quem pense queo actual governo de Fernando Henrique Car-doso joga numa pseudoneutralidade nestaquestão das ocupações legais, por estar a pen-sar nas próximas eleições. Deixa andar o MSTao mesmo tempo que encoraja um pouco os

proprietários a vender as terras que não culti-vam. Apresenta-se assim como o salvadornuma situação social muito tensa. Seja comofor, nem o MST nem os latifundiários estãosatisfeitos com a posição hesitante do governo.No Estado do Pará, antes do massacre de Ma-cacheira, os proprietários tinham apresentadomais de trinta pedidos de expulsão de ocu-pantes de terras. O governo não deu segui-mento a estas solicitações, tal como se recusoua apoiar as acções do MST. Segundo parece,a polícia militar, que assassinou dezanove pes-soas, interveio com ordens das autoridades lo-cais estipendiadas pelos latifundiários.

Não posso deixar de me interrogar. A gentedesenvolve uma luta, põe nisso toda a nossaenergia e fica com a impressão de ter atingidoum objectivo. E depois, no fundo, nãopassamos de marionetas. Quando a coisainteressa ao Estado e aos grandes proprietáriosfundiários para reduzir as tensões sociais,cedem… Dão-nos tudo, toda a gente acredita,vai-se votar, e continuamos a ser marionetas.Se não for a direita, há-de ser a esquerda quemtira o proveito.

Vivemos num sistema que sempre pôdeadaptar-se à barbárie. Há hoje umasobrepopulação que não é necessária àreprodução do sistema capitalista. É pelofacto de as pessoas lutarem que se cria umadada relação de forças. Depois, é claro, o

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poder pode vir a integrar esta luta, tirarvantagem dela. Pensar que as pessoas sãomarionetas parece-me simplista. Não inco-moda o poder que a gente morra por aí aosmilhares, nas favelas, nos guetos ou até empaíses inteiros. Se as pessoas resistem, opoder tem então de correr atrás delas, ten-tando apanhar o movimento. É este o tra-balho dos políticos. Mas entretanto aspessoas adquiriram uma experiência deluta colectiva e obtiveram resultados atra-vés da acção directa. Na nossa visão políti-ca, não te parece que isto é essencial?

Por certo. Mas eu referia-me ao jogo dosinteresses políticos, ao poder de recuperaçãoque as forças políticas têm. Obviamente, é pre-ciso que as pessoas lutem. Também eu diria«ganhámos!», mas sabemos bem que toda agente fica satisfeita, do governo aos proprie-tários. Sabemos que qualquer reforma nestetipo de contexto social é coisa efémera.

Agora uma reflexão mais geral, a propósitodo Brasil. A questão da terra, as ocupações,não deve fazer-nos esquecer a gravidade doproblema urbano, as favelas e a bárbara vio-lência que nelas reina, o extermínio das pes-soas e a pobreza em geral. É evidente que umadistribuição das terras reduziria a amplidão dosproblemas, inclusive nas cidades. Na realida-de trata-se de um problema de repartição dasriquezas, ou até de acumulação de riqueza. Parauma minoria, a terra continua representando ariqueza, ao passo que para a maioria ela repre-senta alimento e, por isso, sobrevivência.

Podes falar do trabalho que o MST faz nasfavelas?

Fomos à favela de Vigário Real, no Rio deJaneiro. É uma das favelas onde reina a maisterrível violência. O presidente da associaçãode moradores falou-nos dos seus problemas,acabando na necessidade da reforma agrária.«Se pudéssemos obter uma reforma agrária vi-

ável, isso mudaria radicalmente o que se pas-sa nas favelas.» Ele estabelecia mesmo um eloentre as suas condições de vida e a questãoagrária. Os que partem com o MST já ama-nharam a terra, são camponeses de emigra-ção recente para a cidade. Diz-se que o MST,doravante, conquista adeptos entre os que vi-vem nas ruas das grandes cidades e cujas con-dições de vida são ainda piores que as dosmoradores das favelas… Muitas vezes só co-nhecem a monocultura (de café, de cana deaçúcar, de tabaco); têm de aprender outras téc-nicas agrícolas para produzirem alimentos.Com os jovens é diferente. Quando uma pes-soa nasce mesmo numa favela, e depois temquinze, dezasseis anos, o seu modo de vida émuito urbano e não sai de lá para ir fazer areforma agrária. Ser jovem numa favela, é an-tes de mais nada ficar confrontado com a rea-lidade da violência, entre a polícia militar eos do narcotráfico.

Para concluir, gostaria de voltar ao MST.Estou convencida que os políticos, as direc-ções locais e nacional, procuram recuperar aluta destes milhares de pessoas. Deste modo,naturalmente, este movimento pode perfeita-mente servir de trampolim para a eleição dopolítico que ficar encarregado de o sufocar. Aesperança está na determinação que as cam-ponesas e os camponeses sem terra tenhamadquirido na luta, na sua capacidade deauto-organização e na sua vontade de ultra-passar o simples quadro das reformas. Por tercaminhado, manhã cedo, na terra rubra doBrasil, com estes camponeses expropriadores,por ter visto brilhar-lhes nos olhos uma espe-rança em que tudo é permitido, desejo comtoda a minha alma que a luta continue, tantolá como aqui.

Testemunho recolhido por Charles Reeve em Paris, 13de Maio de 1997. Texto também publicado no Le MondeLibertaire de 18-12-97.

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cheguei, vi & caguei:uma epopeia autárquica em dois cantos

manuel portela

CANTO PRIMEIRO:MANIFESTO DE UMA CANDIDATURA

“Ó Portela, vem à janela!”

1 · O Presidente da Comissão de Apoio

…Por isso a tal cidadezinha de província— arena em que lutamos —

é grande e sublime como o Universode que participamos…

A cidadezinha de que fala o poema inteiro. E todo ele se ajusta bem ao Dr., nesta sua candidatura

O estudante que brilhantemente fez os seuse não menos distintamente continua prevalecendo-se; o jovem que directamente apreendeu a mensagemcarismático leader criminosamente destruído; o jovem político que já ocupou diversos cargos públicos; autor e co-autor de vários projectos políticos; participante e orador convidado; a já consagrada voz livre e respeitada

: Esse mesmo, com notória humildade está assumindohoje outra importante cartadaE, como é seu timbre, entrou no processocom muito empenho, sensibilidade e inteligência, comcivismo e civilidade indiscutíveis, e um protagonismo quecatapultou-a ao galarim da comunicação social— e assim, indirectamente embora,

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promovendo osdemais concorrentes à função municipal.A opção pelo nosso concelho não é apenas sinal debom gosto e afinamento cultural, bem próprios aliás dequem já devotadamente geriu. O Dr. está disposto a administrar o concelho com a isenção e osaber de quem tem dado sobejas provas em todas asmissões. O Dr. quer pôr a Câmara aoserviço dos munícipes. Não quer privilegiar sectores, emdetrimento de outros,. Quer ser atento aos problemas daspessoas, das instituições, dos lugares e das freguesias, sematender ao número real ou suposto de votos que venhaa alcançar, por parte de pessoas, instituições, lugares oufreguesias.. Quer ser atento aos problemas dassematender ao número real ou suposto deO Dr. quer fomentar, no concelhoe à volta dele, um clima de inteligente e transparentecolaboração, sem criar atritos ou entrar em conflitosdesnecessários e prejudicantes da urgente recuperaçãodo concelho.Assim e por tais caminhos, o Dr.pretende fazer regressarE por isso vem.

2 · Testemunhos de um percurso

Nome:Data de Nascimento:Habilitações Literárias: Licencia-seCargos Académicos: foiCarreira Profissional: foi. FoiPercurso Político:é nomeadovai, tendo sidoocupou, tendo sido, foi, tendo assumido, toma posse, foi eleito, toma posse, foi, foi. É hoje

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No atelier do artista plásticoNa companhia da artista plásticaDurante as filmagensComComNo TeatroNa companhia das actrizesNa companhia da actrizA presidir ao ConselhoEm Brasília, comNa companhia do CardealA saudarCom a RainhaDurante um jantarDurante a apresentação da maquetaEste ano, à conversa com o actualDurante uma intervençãoNa companhia do Prof.

3 · O meu compromisso

Aos Caros

: Nas páginas anteriores outros quiseram falar de mim.Agora falo eu do compromisso

Proponho-vos um projecto de mudança verdadeira. Julgo que quaseninguém tem dúvidas de que as coisas não podemcontinuar como até aquiSó discordam desta verdade osque têm estado no Poder, nesta terra,Como sabem a minha candidatura tem apoios de todosos quadrantes e exactamente porque as pessoassentem que o futuro deste concelho não é uma questãopartidária.Está na hora de arrancar para um futuro diferente, umfuturo melhor.Um novo tempo de desenvolvimento equilibrado, comrealismo mas também com ousadia. Acabou a era dosprojectos por realizar e das decisões por explicar.

Assumo convosco o compromisso de trabalhar poresta terra, pelo menos, nos próximos quatro anos.. Portugal já está a olhar de outromodo para este concelho.. Portugal já está a olhar. Portugal já está a olhar. Portugal já está a olhar de outromodo

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Utopia 718

. Portugal já está a olhar de outromodoConto com o vosso apoio. Podem contar comigo.

Ao contrário do que alguns gostam de insinuar,. Não aceitarei qualquer cargo, qualquertarefa,É comovente o apoio que me têm dispensado. Por isso,fica reforçado o compromisso de honra de trabalhar portodos, especialmente por quem menos tem e mais precisa.por quem menos tempor quem menos tempor quem menos tem e mais precisa.e mais precisa.Quem quer que tudo continue como tem sido nestesanos, que não me escolha.O futuro começa agora. Quem quiser a MUDANÇAVERDADEIRA pode contar comigo. É para esse projectoaliciante que desafio todos,Preciso de todos vós.

Um grande abraço

4 · Sondagem

Posso falar com o Senhor Manuel Portela?A que horas mais ou menos é que posso voltar aBoa tarde o meu nome éEstamos a fazer uma sondagem paraGostaria de saber se está disposto a responder a umasIdade?Habilitações?Profissão?Diga qual das frases seguintes se aplica ao seu caso:Vai votarTalvez vá votarNão vai votarTalvez não vá votarHá quatro anos nas últimas eleiçõesFoi votarNão foi votarHá quatro anos nas últimas eleições os candidatos eramVou repetir. Diga-nos em qual deles votouOs candidatos às próximas eleições sãoEm qual dos candidatos pensa votarAguarde só um momentoQuem acha que vai ganhar as eleições no concelho da ?A que horas pensa votar no domingo dia 14?Muito obrigado pela sua

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CANTO SEGUNDO:A VITÓRIA DA MUDANÇA

“Ó Portela, vem à janela!”

1 … a nossa equipa

50 anos, Engenheiro36 anos, Lic. Organ. Gestão Empresas45 anos, Engenheiro38 anos, Advogado27 anos, membro Dir. da50 anos, Empresário39 anos, Profª.48 anos, Profª.35 anos, Func.

Às e aos

, Dirijo-me a todos os que querem bem ao concelho, quer tenham cá nascido, quer tenham vindo de outrasparagensÉ este o programa pelo qual me comprometo a lutar e a trabalharÉ este o compromisso que assumo com todos vós.

— Conto com todos, neste movimento de mudança verdadeira que levou, leva e levará o concelho a serfalado e respeitado por todo o País. A primeira condição, é ser-se conhecido e debatido em vez de silenciado e ignorado,

— Imaginem o que seria se os mesmos continuassem no poder, ainda que com outro rosto

— Cada um tem a sua opção. Eu estou ligado, há muitos anos, aum partido. Mas sempre fui um homem livre que pensa e actua por si.

Tenho na minha lista pessoas que, nas últimas eleições, estiveram na lista de vários partidos: Não éuma União que esqueça ou despreze os partidos. É um Movimento que traduz a consciência de tantose tantos de que chegou a hora!

Formei um Conselho Estratégico e Consultivo composto por dezenas de personalidades que são umespelho da opinião deste concelho.

Como tenho dito por todo o lado deste Concelho, todos os meses reunirei, pelo menos uma vez, emtodas as Freguesias, com a população, num recinto onde tenha estado na pré-campanha ou campa-nha eleitoral. Acompanhado dos Vereadores e Técnicos da Câmara, procuraremos resolver os proble-mas com brevidade e em conjunto com as pessoas, no local onde os problemas existem.Assim acabará a burocracia

Conto com todos para esta tarefa fascinante de promover um desenvolvimento que atenda principal-mente aos que menos têm.

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Vamos mostrar a Portugal quantoUm tempo novo!

Podem contar comigo.Um grande abraço do

2 · As linhas mestras

um atendimento humanizado, com qualidade, e dan-do respostas rápidasuma linha telefónica, — Linha Via Rápida, através da qual,

Proceder à revisão do Plano Director Municipal (PDM) com vista a um melhor ordenamento doterritório, ao serviço de um verdadeira estratégia de desenvolvimentoe colocar à disposição das famílias residentes no Concelho 1.000 novas habitações a custosacessíveis

Prosseguir, como primeira prioridade, a rede de saneamento básico,Reclamar do poder central a rápida execução do projecto multimodal para o porto bem como a urgenteexecução dos eixos rodoviários de acesso

Reabrir o processo do parque industrial, numa perspectiva construtiva de desenvolvimentoValorizar a cidade como um centro empresarial

Estimular a diversificação da oferta turística, nomeadamente na criação de um programa com actividades mensais que promovam adinamização

Ser porta-voz dos problemas e dos anseios dos munícipes que trabalham nestes sectores deactividade,Pressionar o Governo no sentido de continuar e concluir a regularização do Rio e reivindicar a continu-ação do emparcelamento agrícola do Vale

Investir em novas estruturas e, principalmente recuperar e apetrechar as existentes e seus espaçosenvolventes com meios indispensáveis a um ensino de qualidade e redefinir

Promover a construção de um grande centro polivalente de artes e espectáculo, nomeadamente

Garantir a imediata construção de um complexo de piscinas municipais ao serviço dos munícipese ciar instalações paraIncentivar a fixação dos jovens nas freguesias de residência

Promover e adoptar como prioritária a Educação Ambiental como meio de fomentar o respeito pelomeio ambienteElaborar o Planocomo projecto vocacionado para a criação de novos espaços abertos, para a protecção e recuperaçãodas zonas verdes existentes e das áreas pedonais, como forma de contribuir para um ambiente maisseguro e uma relação optimizada entre

Garantir a igualdade de acesso aos cuidados de saúde. A Câmara vai garantir um serviço de trans-

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portes para os habitantes quePugnar pelo cumprimento da Lei de Bases da Prevenção e da Reabilitação e pela progressiva Integraçãodas Pessoas com Deficiência, bem como,

Promover e fomentar,, uma interligação eficaz e eficiente entre todas as entidades que concorrem em situação deemergência e diligenciar uma distribuição mais eficaz por todo o Concelho dos efectivos das Forças deSegurança.

3 · Aprendi muito

10 de Dezembro de 1997

A campanha está a chegar ao fim.Ao longo dos últimos seis meses, percorri, inteirei-me, apercebi-me, testemunheiComigo estiveram aqueles queAprendi muito, e à medida que me fui apercebendo do muito que está por fazer, foi crescendo emmim o entusiasmo e a vontade firme de servir este Concelho com a dignidade, a firmeza e aresponsabilidade que ele merece, mas de servir, com especial prioridade e atenção, aqueles quemenos têm, aqueles que mais precisam, e as Freguesias mais esquecidas.

Nesta fase final da campanha assistimos,Quero deixar claro que

Por uma questão de feitio, entrego-me às causasAssumi o compromisso deAssim farei depois de, como todos esperamos, ser eleitoMas para isso é preciso que toda a gente vá votar no próximo Domingo.

Nestas eleições não estão em causa os partidos.A minha equipa é composta por pessoas que, e a minha candidatura é apoiada por milhares de

Nestas eleições VOTAR é mais que um direito.Votar nas nossas listas é contribuir definitivamente para quePara isso precisamos de, e para os conseguirmos temos que mostrarque estamos aqui,e que estamos dispostos a trabalhar muito para sermosE eu prometo-vos! Juntos vamos conseguir.

Para que tudo isto seja possível, peço que vote noseja qual for o seu partido. Daqui a um ano e meio, cada um, nas eleições para o Governo, votará noseu partido.

Agora vamos todos votar PELA MUDANÇA VERDADEIRA.Um grande abraço do

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Utopia 722

foi-me preciso descobrir natália correia

Foi-me preciso descobrir que:

a lógica é a ciência de gerir os rendimentos da estupidez;

os políticos não são inteiramente galinhas porque cacarejam e não põem ovos;

as pastas dos executivos levam dentro aranhas para urdirem as teias

[que nos imobilizam;

os militantes de todos os partidos têm pele de camisas enforcadas;

a família é um cardume de piranhas ao redor da carcaça de uma vaca sagrada;

a sociologia é uma completa falta de humor perante a decadência;

os gestores destilam um suor frio que nos constipa;

as nações içam as bandeiras para porem o falo a pino e masturbarem-se;

as esquerdas e as direitas resultam do pacto de não inverterem os papéis;

o socialismo é um estratagema para negar aos exploradores

[ o direito ao desaparecimento;

o liberalismo é uma manha do Estado para forjar algemas com a liberdade;

os intelectuais são uma chatice com que o Criador não contava;

sendo a educação a providência dos imbecis que são em maior número,

o mundo está imbecilizado pela educação;

o sistema é a creche da debilidade mental e a vala comum da inteligência;

a economia é adquirir-se o vício do fumo porque se comprou um isqueiro;

dos vencidos não reza a história porque se renderam à razão,

para concluir que:

chegou a hora romântica dos deuses nos pedirem a desobediência.

Faço-lhes a vontade. A partir de hoje, se alguém me quiser encontrar,

[ procure-me entre

o riso e a paixão.

[10 de Janeiro de 1983]

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Utopia 7 23

Os poderosos começaram por se impor através da força,dessa força fizeram lei, que continuam a impor pela força (direito

positivo), a qual se consubstancia no conjunto de normas obrigatóriasque regem as relações da sociedade. É isto que constitui a lei.

As desigualdades sociais são legitimadas através da lei, queconstitui deste modo o fundamento para o exercício do poder.

Que Liberdade?JOSÉ LUÍS FELIX

todos e me for confirmada pela aprovação detodos os indivíduos.

Através do exercício da autoridade,qualquer homem, por melhor que seja, se tornaessencialmente mau. As teorias da ponderaçãode poderes e de fiscalização da autoridade,com que os apologistas da democraciarepresentativa nos tentam convencer, nãopassam de uma mistificação engendrada pelosdetentores e beneficiários do poder para nospersuadirem de que o povo é soberano e é elequem governa.

A liberdade de qualquer indivíduo nãopode ser limitada ou condicionada, tem de serabsoluta e completa. Liberdade de ir para ondedesejar, de ter todas as opiniões possíveis, deser activo ou indolente, de ser moral ou imo-ral. Liberdade total para dispor da sua pes-soa, sem dar contas a ninguém.

Por outro lado, a liberdade não pode nemdeve defender-se senão através da própria li-berdade. Defender a liberdade a pretexto de aproteger não passa de um contra-senso.

A LIBERDADE QUE DEFENDO

Liberdade significa autonomia, ou seja, afaculdade dos indivíduos disporem de sipróprios. Isto implica, naturalmente, aausência de todo e qualquer constrangimentofísico ou moral.

A democracia representativa, como todosos sistemas baseados na submissão do indi-víduo, restringe-nos a liberdade. De facto, arelação entre o Estado e a sociedade não passade uma forma histórica tão brutal quantoabstracta.

O homem só atinge a sua “humanização”quando ama a humanidade e a liberdade detodos.

Neste sentido, só poderei ser verdadei-ramente livre quando todos os homens que mecercam forem igualmente livres.

Quanto maior for a sua liberdade, maiorserá a minha. Eu só posso ser verdadeiramen-te livre quando a minha liberdade me for re-flectida pela consciência também livre de

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Utopia 724

É através da força colectiva da sociedadeque o homem atinge a sua liberdade, comple-tando-a com os outros indivíduos.

A liberdade não se troca, não se compranem se vende, e não pode ser imposta ou con-cedida. É parte integrante de cada indivíduo eé dele que parte e se afirma, resultado da suaunidade biológica, psicológica e social. Cadaindivíduo tem necessidade de afirmar a sualiberdade, a qual, socialmente, vê reflectidana liberdade dos outros. É por isso mesmo queseremos tanto mais livres quanto os outrosindivíduos o forem. Também não podemos serlivres isoladamente.

Assim sendo, se algum dos outros indiví-duos for um dependente, eu não poderei serlivre. A liberdade só é possível entre iguais.É impossível existirem homens e mulheres li-vres num mundo baseado na hierarquia e naopressão.

A liberdade de cada um de nós não é umfacto individual, é um produto colectivo, porisso mesmo não pode ser livre um homemisolado, sem a contribuição da sociedadehumana.

Sob o pretexto da defesa da liberdade, oEstado preocupa-se, na verdade, em manteras condições de reprodução de um sistema fun-dado na desigualdade e na exploração, nooposto da liberdade.

É evidente que mesmo o Estado mais de-mocrático, respaldado na ficção da repre-sentação dos interesses da nação e de toda agente, oprime a vontade e as acções livres dosseus membros, utilizando para isso todo o seupoder coercivo.

AS LIBERDADES EXISTENTES

As liberdades que os políticos e os meiosde manipulação de massas tanto apregoamestão consignadas na lei, que nos é apre-sentada como o garante das liberdades que nos

outorga o Estado Democrático. Mas interessaperceber o que é a lei e a sua génese.

As leis que – garantem-nos os políticos –,se destinam, entre outras coisas, a defenderas liberdades, são uma imposição do Estado,ou seja, daqueles que possuem a força para asfazer respeitar.

É devido ao medo da violência exercidapelo poder que os povos obedecem, e é issoque constitui um vínculo político.

O conjunto de regras e pessoas hierar-quizadas que constituem a ordem jurídicapossui, no âmbito estatal, o poder coercivosuficiente para se fazerem obedecer.

Os mais fortes, aqueles que detêm o po-der, impõem ao conjunto da população umaordem jurídica que procura perpetuar as desi-gualdades existentes.

As desigualdades sociais são legitimadasatravés da lei, que constitui deste modo o fun-damento para o exercício do poder.

Os poderosos começaram por se imporatravés da força, dessa força fizeram lei, quecontinuam a impor pela força (direito positi-vo), a qual se consubstancia no conjunto denormas obrigatórias que regem as relações dasociedade. É isto que constitui a lei.

O Estado é uma forma de organização po-lítica fundada na hierarquia, que se manifestano estatuto diferente atribuído aos seus mem-bros e se distingue por ser imperativo.

Segundo Kelsen, “O Estado apenas existena medida e na maneira em que se exprime nalei, não é uma força social nem um produtohistórico, é o somatório das suas próprias leis”.

Para pertencermos a uma qualquer organi-zação, seja ela um clube desportivo, uma Igre-ja, uma associação ou qualquer outra,dependemos da nossa vontade, ao contráriodo carácter coercivo e obrigatório de perten-ça ao Estado-Nação.

O Estado representa o conjunto de limita-ções das liberdades individuais que impõe aos

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seus membros, pois eles são forçados a renun-ciarem a parte da sua liberdade em favor dochamado bem comum. Por isso o Estado res-tringe a liberdade do indivíduo da mesma for-ma que este, quanto mais se afirma, mais reduza liberdade do Estado.

Segundo o princípio do contrato social, quefundamenta o Estado, os homens, incapazesde se governarem, terão de se submeter aodomínio do Estado que lhes imporia a justiça.

O Estado e o seu Direito, que constitui anegação do direito natural à vida e ao que elaencerra, fixou através da lei as desigualdadesexistentes limitando a liberdade dos seusmembros.

Aos poderosos, aos capitalistas e aos seusapaniguados, não bastava, conseguirem, atra-vés do Estado e das suas leis, converter o seupoder, a sua força, em força de lei, em direito,e a relação de obediência dos mais fracos emdever. Conseguiram também transformar essepoder exercido sobre os mais fracos numa re-lação estável, que conduziu à submissão.

Toda a força dos poderosos começou naforça, antes de se transformar nas formas maiselaboradas do Direito e das regras.

Convém relembrar que foi a miséria dosmiseráveis que criou os primeiros capitalis-tas. Para acumular os primeiros capitais, tor-nou-se necessária a existência de indivíduosdespossuídos de tudo, os quais, para não mor-rerem de fome, consentissem na venda da suaforça e da sua inteligência.

Durante a Idade Média a miséria cresceucélere, na medida em que as invasões e asguerras foram destruindo os laços de entre--ajuda e apoio mútuo até então existentes nascomunidades urbanas e rurais.

Para isso também contribuiu a criação dosEstados, a imposição e crescimento da suaautoridade, bem como a acumulação de rique-zas e desigualdades, devido à exploração doOriente (a partir das reclamadas Descobertas).

Assim se foram destruindo os laços desolidariedade, enquanto se desenvolvia oEstado e se acumulava a riqueza nas mãos deuns poucos.

Aquando da Revolução Francesa estabe-leceu-se a igualdade, que teve como principalconsequência a abolição dos privilégioscorporativos baseados nas diferenças de nas-cimento. Mas a desigualdade com base no es-tatuto económico manteve-se.

Os burgueses capitalistas, que controlarama Revolução, opuseram-se ferozmente às al-terações sociais que as grandes massas popu-lares desejavam. Admitiam a igualdade civil,mas opuseram-se à democracia social.

Mesmo o circo eleitoral tinha então outroscontornos, dados os perigos de derrota exis-tentes. A capacidade para se ser eleito basea-va-se na quantidade de bens possuídos.

Segundo eles, a liberdade era um conceitonatural, ideia que já vinha sendo desenvolvidapelos teóricos ingleses desde o século XVII.

Tal liberdade tinha por fundamento umaficção. Tratava-se da participação nacional nafeitura das leis, que deviam ser a expressãoda vontade de toda a nação, daí decorrendoque as leis seriam iguais para todos.

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Utopia 726

O princípio do habeas corpus é outraexpressão da liberdade do cidadão. Foramtambém estabelecidas as liberdades de pensa-mento e de culto, garantindo que cada qualoptasse pela religião que lhe aprouvesse epudesse ter as opiniões que entendesse, semser incomodado.

A liberdade de pensamento pressupõe, porseu turno, a liberdade de expressão e a liber-dade de imprensa, com restrições para aquiloque o Estado considere perversão da lei.

A Constituição Francesa passou a ser ogrande modelo das constituições continentaiseuropeias.

O absolutismo do rei foi substituído pelasoberania nacional, base dos nacionalismosmodernos e parteira do esmagamento da so-berania do indivíduo.

Ainda hoje estes continuam a ser osfundamentos das liberdades existentes,consentidas ou reduzidas conforme as rela-ções de forças entre os vários grupos sociaise os interesses dos poderes que dominam asociedade.

A estas liberdades juntam-se, funda-mentalmente, as liberdades especificamentesindicais, as liberdades políticas e a liberdadeprincipal nesta sociedade, a do livre merca-do, da compra e venda.

A liberdade sindical sofreu as restriçõesde todas as restantes e algumas específicas,sujeita aos ditames dos capitalistas e doEstado, que lhe permitem uma posiçãocolaborante.

Quanto às liberdade políticas, estas têmpor base o sufrágio universal, cujo apareci-mento ocorreu em simultâneo com o de-senvolvimento económico e político daburguesia. Tem como base o sofisma darepresentatividade.

Assentou na evolução do parlamento me-dieval inglês, universalizando-se depois dasrevoluções norte-americana e francesa.

A igualdade perante a lei e o voto é a úni-ca igualdade que a burguesia e o seu poderconsentem.

O sufrágio universal leva à repressão demuitos indivíduos por outros. Trata-se de umaforma sofisticada de neutralizar a actividadehumana.

A igualdade perante a lei e o voto nadatem em comum com a igualdade, com a sobe-rania popular, ou com direito de cada pessoaser tão soberana como qualquer outro.

As propagandeadas liberdades existentesfundamentam-se no logro político, segundo oqual é suposto o “cidadão” escolher, atravésdo voto, os “seus representantes”, que não co-nhece, para elaborarem leis que ignora e es-colherem aqueles que o governarão sem lheprestarem contas.

O absurdo e a hipocrisia da política já fo-ram exaustivamente demonstrados ao longodos tempos para agora perder tempo com tãoruim defunto. Basta apenas relembrar que,perante o descalabro e a evidência deste em-buste, os políticos e seus epígonos se limi-tam, nos dias de hoje, a gerir cinicamente, numpossibilismo desapaixonado, o espectáculo dapolítica, procurando atrair os incautos“concidadãos” com promessas, chantagens eintrigas. São eles próprios a confessar que ademocracia representativa não é a soluçãodesejável, mas sim o menor dos males. Afi-nal, tratam de acrescentar, a utopia é a ante-câmara do inferno, como comprovaria ofracasso dos seus irmãos siameses do capita-lismo burocrático da Rússia.

Perante tudo, isto os “cidadãos” são diaria-mente e de todas as formas inquinados compropaganda enaltecedora do Estado e das suasleis, de forma a considerarem que o Estado é ajustiça e a realização da moral sobre a Terra.Daí o dever de todo o “cidadão íntegro” con-sistir em devotar-se, sacrificar-se e morrer, sefor preciso, pelo poder e triunfo do seu Estado.

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A LIBERDADE HOJE

Em meu entender, as liberdades existentes,sempre contigentes, estão ameaçadas devidoa diversos factores.

A concentração do poder económico e fi-nanceiro, o desenvolvimento das capacidadesde controle por parte das instituições estataise das grandes empresas, a aplicação de meioscada vez mais aperfeiçoados de controle so-cial, criaram uma situação extremamente des-favorável aos assalariados e um ameaçadorcrescimento dos meios de domínio por parteda burguesia capitalista e dos seus aliados.

As camadas assalariadas vítimas da concor-rência desenfreada entre os capitalistas, da con-centração e racionalização capitalista dasociedade e da introdução de novas tecnologiasque originam a desvalorização da mercadoriatrabalho da maior parte da população trabalha-dora, vêem-se confrontadas com uma situaçãoque reduz as suas capacidades reivindicativas,dada a luta constante pela sobrevivência, nummundo em que a procura de trabalho se reduz,dando origem ao desemprego, ao subemprego,ao trabalho precário, ao trabalho parcial e aocrescimento das desigualdades.

A tudo isto se junta, num mundo em que amercadoria reina em todos os escaninhos dasociedade, um desânimo generalizado, maisacentuado em muitos daqueles que tinhamcomo referência mítica a impropriamentechamada União Soviética. Centenas de milhõesde pessoas que, apesar das evidências do regimeconcentracionário ali instalado, queriam acre-ditar que a URSS era uma sociedade diferente,viram na sua queda e destruição a perda de umareferência que lhes alimentava as ilusões.

Em busca de custos de produção sempremais baixos, as multinacionais instalam-se nospaíses pobres, onde destroem a agricultura eas indústrias exportadoras tradicionais, ouseja, os grandes utilizadores de mão de obra.

Estes investimentos aniquilam as socie-dades nacionais e as suas economias. Tam-bém nos países de tradição industrial, achamada deslocalização de inúmeras empre-sas para os países pobres, lança no desempre-go, no subemprego e na miséria milhões detrabalhadores.

As sociedade pobres vêem-se desestabi-lizadas por via destes investimentos. Ao mes-mo tempo, esta descentralização e dispersãointernacional do capital reforça a concentra-ção do capital e a centralização do controleda produção.

A redução de despesas tem levado à des-truição do sistema de protecção, o chamadoEstado Providência, assim como à expulsãodo estabelecido ciclo produção/consumo devastas camadas da população. O que se pre-tende atingir com estas medidas é aumentar arentabilidade dos capitais, tratando os Esta-dos de fomentar políticas nesse sentido, faceà concorrência selvagem que se verifica noseio do capital e à redução da taxa de lucroem vastos sectores da economia.

Todos os processos são permitidos quan-do se trata de fazer economias com a reduçãodos custos de reprodução dos assalariados.

Já no que diz respeito ao controle das po-pulações a táctica é diferente, as despesasnecessárias à repressão são todas aquelas quea burguesia capitalista e o Estado consideremnecessárias à estabilidade das relações sociais.

As fusões, alianças estratégicas entre em-presas, a compra pura e simples de umas em-presas por outras, as participações e outrasformas de concentração do capital são acom-panhadas por outras duas outras ordens defactores que conduzem ao mesmo objectivo.

Trata-se, por um lado, do desenvolvimen-to, difusão e aplicação de novas tecnologiasnos mais variados campos da actividade, daprodução, comunicação, informação e contro-le, que potenciam de forma colossal todas es-

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sas actividades. Estas tecnologias conduzemà necessidade de enormes investimentos, fa-cilitam a descentralização do capital e propor-cionam a sua concentração.

Por outro lado, a internacionalização doscapitais, a deslocalização de inúmeras empre-sas para outros países, o enorme crescimentodas relações económico-financeiras e toda aordem a nível internacional, conduzem à mes-ma concentração.

Esta impropriamente denominada globa-lização é, de facto, o aproveitamento de fac-tores de produção de mais baixo preço, em

especial os custos do factor trabalho, que apro-veita fundamentalmente às grandes empresas,proporcionando, por sua vez, uma mais rápi-da concentração. Diga-se, a propósito, que asgrandes multinacionais controlam actualmen-te 90% do movimento de capitais.

A concentração de empresas, aceleradapelas razões atrás apontadas, leva ao aumentodo poder nas mãos de uma minoria cada vezmais reduzida, que de forma cada vez maisevidente é apoiada pelo Estado e procuradirigir todos os aspectos das relações hu-manas.

As pequenas e minúsculas empresas não seextinguem, proliferam e desempenham doispapéis fundamentais. Um de ordem económica,na órbita e dependência das grandes empresas,fornecendo-lhes produtos e serviços a maisbaixos preços. Outro de ordem ideológica, evi-denciando as possibilidades do livre mercado.

Perante este panorama, os assalariadosassistem à sua substituição por máquinas, aocrescimento da concorrência entre si e àredução do seu valor na sociedade. O seudesempenho é menorizado, tornando-semuitas vezes dispensável.

A SITUAÇÃO ACTUAL

Além das consequências negativas ineren-tes à actual fase de acumulação de capital, ostrabalhadores têm ainda de enfrentar uma re-pressão e controle cada vez mais elaborados,concebidos de forma científica.

A burguesia capitalista tem actualmentenecessidade de um controle social cada vezmais rigoroso e dispõe, além disso, de meiose capacidades para o conseguir.

Essa necessidade provém de diversos fac-tores. As gigantescas somas envolvidas eminvestimentos produtivos e especulativos“obrigam” a redobrar os cuidados com a suaprotecção, uma pequena falha de previsão tra-duz-se em perdas gigantescas. A desregulaçãoque os diversos Estados praticam, no sentidode proporcionar condições cada vez mais fa-voráveis às empresas, conduz não só aconsequências negativas para os trabalhado-res, como também ao aumento da competiçãoentre os diversos extractos do capital. Alémdisso, em particular devido às condições pro-porcionadas pelas novas tecnologias, não sóos sectores produtivos, como também os co-merciais e financeiros, se estendem por todoo planeta, “forçando” os capitalistas e os seusEstados a um controle global, intervindo em

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todos os aspectos da sociedade. Outros facto-res avultam na criação de um ambiente cadavez mais propício às restrições das liberdadesdo indivíduo e das comunidades, como sejama descrença nas instituições representativaspor parte de cada vez maior número de pesso-as ou o aumento das desigualdades de toda aordem, nacionais, regionais, sectoriais e em-presariais. O mercado e o salariato são reis. Aselvajaria do capital em busca permanente delucro e segurança instalou-se em todo o mun-do e em todas as actividades.

Esta situação deu origem à necessidade deum controle social a que nada escape. As li-berdades sofrem naturalmente as conse-quências deste ambiente, restringidas eiludidas diariamente, através de mil ardis emque o Estado é fértil.

A única liberdade que tem aumentado nosúltimos anos é a do chamado livre mercado, aliberdade da compra e venda.

Variadas medidas têm sido tomadas para fa-vorecer essa liberdade, como a livre circula-ção de capitais, a liberdade na circulação demercadorias, na instalação e abolição de bar-reiras ao crescimento e à concentração do ca-pital, redução fiscal, apoios financeiros e detoda a ordem do Estado, parco em recursos paracom os trabalhadores mas de extrema genero-sidade para com os capitalistas.

É esta liberdade de tudo comprar e ven-der, incluindo órgãos humanos e crianças, quese estendeu por todo o globo terrestre, a todasas actividades humanas sem excepção, quecomanda a vida dos humanos.

A liberdade de mercadejar tem de seracompanhada pela liberdade de eleger os re-presentantes da democracia parlamentar. Atéos políticos do “mundo livre” exigem aos seushomólogos do antigo capitalismo burocráticode Estado que procedam à instauração da de-mocracia representativa, enquanto instalam olivre mercado, pois, segundo confessam

despudoradamente, uma coisa não faz senti-do sem a outra.

Neste controle global, os capitalistas res-sentem-se da ausência de um Estado mundi-al. Na sua ausência, sob o comando dos EUA,utilizam a ONU, a NATO, a ComunidadeEuropeia, o FMI e outras prestimosas organi-zações semelhantes, como centros de infor-mação, controle e repressão. Valerá a penalembrar que estas instituições nem sequer re-sultam da democracia representativa com queos seus paladinos nos procuram evangelizar.

Sendo a prevenção do factor risco uma das

principais determinantes da acção da burgue-sia capitalista, sempre preocupada com a se-gurança dos seus capitais, entendo que nos diasde hoje esse risco aumentou e as necessidadesde prevenção cresceram concomitantemente.Assim sendo, as restrições às liberdades daspopulações e das comunidades, sempre flutu-antes e relativas, estão sob a constante mira doEstado, que as procura restringir e perverter.

Isso não significa a abolição das reduzi-das liberdades existentes, caricatura da liber-dade autêntica do indivíduo. É necessária àmanutenção do sistema a existência desta

Dave Lester

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liberdade, mais ou menos condicionada. Issoresulta da necessidade de mobilidade social,do funcionamento dos mercados e da crença,ainda que mitigada, na ideologia prevalecen-te e nas instituições.

Mas nem só de repressão e restrições daliberdade se alimenta o actual estado de coisas.

A sociedade actual e seus componentes sãoobjecto de aturados estudos e acções para quetudo corra em conformidade com os interes-ses do capital.

Planeia-se e tenta-se pôr em prática toda aespécie de medidas que condicionem a nossavida e o futuro da sociedade. Do número demédicos ao de soldados, da implantação deescolas e do seu conteúdo, de estações de TVe sua programação, tudo é regulado e previs-to. As intervenções do Estado e dos capitalis-tas estendem-se muito para além deste tipode intervenções, condicionam o próprio dese-jo, o gosto, os hábitos e as vontades da socie-dade e dos seus membros.

Qual a margem de liberdade que nos restaperante este tipo de “tratamento” de que so-mos vítimas ?

A burguesia capitalista não esqueceu oensinamento de Rosseau: «Ainda o mais pode-roso dos os homens não seria suficientementepoderoso, se não soubesse converter o seu po-der em direito e a obediência em dever».

Na actualidade, esse dever é conseguidode formas mais elaboradas que nesses tem-pos. Para além da tradicional repressão, cadadia mais sofisticada, o Estado tem hoje ao seudispor mecanismos e técnicas que possibili-tam a apresentação de um espectáculo perma-nente a dois níveis, a sedução e o terror.

Seduzem-nos, particularmente através doaudiovisual, com imagens de uma realidadeque não é a nossa, convencendo-nos a vivê-lacomo se o fosse.

Numa sociedade em que os afectos sãoreprimidos e as paixões asfixiadas, os amores

e desamores são reactivos, em conformidadecom as imagens e preconceitos que os meiosde desinformação de massas nos impingem.

Entram-nos por casa adentro, sem licençanem convite expresso, toda a espécie de ale-gorias exemplares e formosas figuras de prín-cipes e princesas, capitalistas de sucesso,políticos, artistas, desportistas, “comuni-cadores” e outros figurões da mesma casta,gente contente consigo própria e acéfala, nos-sos ídolos e padrões.

Isolado e submetido à propaganda dos mei-os de incomunicação de massas, socializadoatravés da TV, o cidadão comum assiste impo-tente à destruição das comunidades e da suaindividualidade. Anula-se perante o Estado eos diversos poderes, que se lhe apresentamdominadores e inacessíveis, tal qual os fiéissimbolizam os deuses de todos os calibres.

A propaganda e a fúria consumista não seesquecem de nós e tratam de nos seduzir.

Os poderes que controlam a sociedade emque (sobre)vivemos tratam de nos subjugaratravés de métodos que chegam a ser deliran-tes, chegando à desfaçatez de nos proporem aliberdade em troca da compra de um carro(“seja livre, compre o automóvel Cagalhoto”),ou da escolha de novos amos (“em nome daLiberdade vote Cagalhoto”).

Como tudo está transformado em mercado-ria, tudo se compra, tudo se vende, o poderapodera-se de conceitos que são caros à nossacondição humana, adapta-os e perverte-os con-forme os seus interesses. Resta assim a buscainfrene de dinheiro, não importa como, que nospermita o refúgio na ambição consumista.

É o que fazem os nosso ídolos. Toda essagente tão reclamada pelos meios de desin-formação de massas leva uma vida de prazer,de luxo e de aventura, que gostaríamos de imi-tar. Isto quando não estão absorvidos em com-plexas operações mais ou menos cabalísticasque, garantem-nos os especialistas, se destinam

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a salvar o comum dos mortais da fome, da po-breza, da ignorância e de outras coisas más.

Isolado e sem vínculos comunitários, ocidadão comum, sente cair sobre si todas astragédias da Terra que os meios de desin-formação de massas sobre si fazem desaguar.

Somos permanentemente alertados para res-peitar as normas reinantes, caso contrárioarriscamo-nos a não conseguir emprego, a per-der aquele que temos ou a não subirmos na hi-erarquia, a cairmos na miséria. Temos de estarpermanentemente vigilantes, perante os peri-gos que nos cercam: os ladrões, os drogados, asida, os vigaristas e tantos mais que o Estadocombate e que temos por dever apoiar. Somosconstantemente assaltados por aterradoras ima-gens e descrições daqueles que se vêem postosà margem do grande festim consumista.

Os vagabundos, os marginalizados, osexcluídos, os miseráveis dos países pobres eos novos pobres do países ricos, os desem-pregados, as crianças e os velhos maltratados,as vítimas da doença e da guerra e tantosoutros, são-nos expostos a toda a hora sob ascores mais cruas.

Apontados como resultado inevitável deinsondáveis leis do mercado, de uma sociedadeque não entendemos e cujos contornos são “ex-plicados” e defendidos por encartados especi-alistas, jamais preocupados em aprofundar ascausas da exploração e miséria reinantes.

Perante este panorama, o cidadão normali-zado é invadido pelo medo permanente. Medode perder o emprego, medo de não arranjaremprego, medo da falência da “sua” empresa,medo de não passar o ano, medo de não parecerbem, medo dos drogados, medo dos ladrões,medo dos polícias, medo da sida, medo da guer-ra, medo de emagrecer, medo de engordar…Em síntese, medo da vida, que lhe é apresentadacom as cores mais fúnebres e catastróficas peloterrorismo subtil dos órgãos da propaganda.

Uma vez chegado a este grau de cagaço,

fica disponível para trocar a ténue liberdadepor uma quimérica segurança que lhe garantaa continuidade do seu quotidiano mesquinho.Aterrorizado, submete-se sem protesto às nor-mas impostas pelo Estado, reduz-se à impo-tência e receia a liberdade, que o obrigaria aconfrontar-se com as certezas em que alicerçaa sua existência.

Não admira, por isso, que quando pretendoencontrar, naqueles que me cercam, o reflexoda liberdade, apenas encontre a submissão doservo, vergado à luta pela sobrevivência e ar-ruinado pelos ditames da fúria consumista edo bem-parecer, grotescos substitutos daliberdade que nos humaniza.

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Hsi Hsuan-wou e o nosso colaborador Charles Reeve *

empreenderam em 1996-97 um longo périplo pela China, de que resultou uma preciosa documentação editada em francês,Bureaucratie, bagnes et business (L'insomniaque). Nesta obra

recolheram muitos testemunhos de trabalhadores e activistas queevocam o essencial da catástrofe chinesa: a irrupção do capitalismo

selvagem, a proletarização forçada de centenas de milhões dehomens e mulheres, a destruição da sociedade tradicional. O

texto que aqui publicamos, sobre Macau, vem a propósitodos mais recentes negócios da China portugueses.

mesmos cheiros a naftalina, e a atitude apáticados comerciantes é igualzinha. É quasenecessário uma pessoa firmar a vista para selembrar de que os vendedores são chineses.Como se houvesse uma assimilação perfeitaentre os dois povos. Na cidade antiga, ostranseuntes têm o ar calmo de quem vai depasseio. Estamos longe do frenesi das ruas deHong Kong. Será isto influência da colo-nização portuguesa ou uma sobrevivência damilenar cultura da China do Sul? Depois deHong Kong, Macau dá-nos mais uma provada capacidade que os chineses possuem paraadoptarem os valores estrangeiros que lheconvêm: cadências capitalistas ou lentidãomeridional. Charles Reeve procura encontraralguém que fale português, mas as pessoas aquem se dirige olham-no com espanto.

Macau é o porto vizinho de HongKong, a uma hora de barco. Es-condida por detrás duma muralha

de betão (prédios, casinos, hotéis, centros co-merciais), a cidade antiga já não é visível domar. A antiga fortaleza portuguesa, que emmeados do século XVI protegia o porto, asilhas e a costa, vê-se também ela agora ultra-passada por torres de habitação…

Mesmo assim, o centro, com o seu velhomercado e as suas ruas de comércio, lembrauma qualquer vila do Portugal profundo. Aslojas têm os mesmos balcões de madeira, os

O Senhor Hoo e CamõesCHARLES REEVE & HSI HSUAN-WOU

* Ambos estes autores se interessam pela análise da sociedade chinesadesde há muitos anos. Charles Reeve é nomeadamente autor deO Tigre de Papel. Sobre o desenvolvimento do capitalismo na China(1949-1971), 1972 (ed. port. Spartacus, Lisboa, 1975); Hsi Hsuan-wou é co-autor de Révo. cul. dans la Chine pop., 10/18, Paris, 1974.

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Só alguns velhos, que outrora trabalharam naadministração colonial, se aventuram a pro-nunciar umas quantas palavras, o estritonecessário para lhe darem a entender que andaa perder tempo. O que faz o encanto de Macaué o falhanço da colonização. Os portuguesesdissolveram-se entre os chineses. Quem terácolonizado quem?

Nas vielas que sobem até ao forte, procu-ramos um tasco ondecomer. O sítio é umacópia chapada dos bair-ros populares de Lisboaou do Porto. Acabamospor nos instalar numrestaurantezinho ao la-do da esquadra da polí-cia. Entre a clientelachinesa encontra-se umjovem europeu, de bra-ço ao peito, comendocom dificuldade massasalteada com sardinhas,contribuição originalda cultura portuguesapara a gastronomia chi-nesa…

Os nossos comentá-rios irónicos a respeitoda figura dos polícias,envergando uniformesportugueses, despertama atenção do jovem. Eapós umas hesitações, entabula conversaconnosco. Chama-se Paulo e veio dumaperiferia pobre de Lisboa. Aos vinte anos,sentiu-se farto da vida triste e monótona dePortugal e do peso das relações familiares.Cúmulo do azar para um jovem português, nãogostava da praia… E um belo dia, ao ver-seno desemprego, fez das tripas coração edecidiu dar o fora pra bem longe. Depois dealguns meses de viagem pela Ásia, arribou a

Macau, onde encontrou um modesto empregode amanuense na Câmara Municipal;precisavam, para registar o serviço de limpezadas ruas, de alguém que pudesse ler e escreverportuguês. Passaram oito anos e o Paulo lácontinua.

Aprendeu chinês, fez alguns amigos,conhece a cidade de fio a pavio, os bares, ostemplos, os sítios bons e os ruins, as pessoas

simpáticas e as in-fames. Inquieta-o umpouco que o númerodestas últimas aumentesem parar. Para matar otempo, joga futebol e,de vez em quando, dáum salto até à China.Gosta de Macau por-que aqui tudo lhe pare-ce longe. E no entanto,com o passar do tempo,vai descobrindo por cáum provincianismo queo remete para a peri-feria lisboeta de ondedesertou…

Segundo ele, a pros-tituição tornou-se umterrível flagelo. É ver-dade que a prática des-te ofício data de hámuito na história na ci-dade. Mas hoje a pros-

tituição tornou-se uma próspera indústria.Dantes, os bares, os casinos e os bordéis em-pregavam raparigas da Tailândia, de Singapurae das Filipinas. Agora, a maior parte das re-crutas são jovens chinesas oriundas das Zo-nas Económicas Especiais. Porque, comoHong Kong, Macau encontra-se submersa poruma vaga enorme de imigrados da China Po-pular, mulheres, homens e crianças (treze milpor ano em Hong Kong), cuja maioria acaba

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nos circuitos do trabalho clandestino e nasredes de prostituição. Segundo Paulo, aamplidão da indústria do sexo alterougrandemente os comportamentos tradicionais,que davam uma aparência de sossego à vidalocal. Os assassínios, as violações, os roubose as agressões de toda a espécie tornaram-seo pão nosso de cada dia duma cidade onde avelha fachada provinciana se vai atolando sobo peso da muralha de betão.

Qual será o papel desempenhado pela Chi-na? O poder dito comunista manteve ligaçõesdiferentes com Macau e com a colónia britâ-nica. Em Hong Kong coabitavam dois pode-res, na perspectiva que foi a da integração de1997: a administração colonial mantinha-sepresente ao mesmo tempo que Pequim, nestexadrez, ia colocando os seus peões para a subs-tituição de poderes. Os estalinistas chinesesextraíram durante muito tempo dividendosduma cidade que era a sua porta de acessoaos mercados exteriores. Hoje, Hong Kongcontinua sendo a plataforma financeira daclasse dirigente chinesa, passagem obrigató-ria dos capitais que escapam para o mundoexterior ou que se reciclam, no interior, sob aforma de investimentos «estrangeiros». Alémdisso, a existência antiga do capitalismo pri-vado, fortemente ligado ao mercado mundial,leva a que a burguesia local, com os seus in-teresses próprios, queira ter a sua palavra adizer no processo de integração.

Em Macau, o quadro ficou bem estabele-cido desde o século XVI: a cidade é umterritório chinês sob administração portu-guesa. A actividade do jogo permitia lavar odinheiro dos negócios e dos tráficos clan-destinos, rendendo importantes dividendos aopoder burocrático, exigindo a sua perpetuaçãoum Estado colonial mínimo. Uns quantospadres e freiras, um pequeno número defuncionários e polícias decorativos, a tanto seresumia a presença civilizadora de Portugal

no Oriente. Após a segunda guerra mundial,a administração fantoche adquiriu o hábito denão fazer fosse o que fosse sem consultar umsinistro personagem, o Senhor Hoo, rei doscasinos, cidadão português e deputadocomunista na Assembleia Nacional Popularem Pequim. Em 1966, por exemplo, quandodas agitadas jornadas da «revolução cultural»,um pequeno burocrata português julgou poderreprimir as manifestações. E só a intervençãode Salazar junto do Senhor Hoo conseguiu quese salvasse a mobília… Que tinham osportugueses que meter o bedelho?

Depois de 1975, mas sempre em vão, ossucessivos governos portugueses suplicaramconstantemente às autoridades de Pequim paraacabarem com aquela comédia. Paulo conta--nos que a mais insignificante decisão —escolher as flores para o jardim de Camões,por exemplo — depende das autoridades daprovíncia de Kuang-tong. Ao passo que HongKong, capital do capitalismo financeiro,excitava a cobiça de Pequim, os casinos deMacau eram já território chinês. O padrinho,patriota comunista e mafioso multinacional,lá estava sorridente, pronto a convencer os quepudessem ter dúvidas. Quanto a substituir otrapo verde e vermelho que flutua sobre avelha fortaleza de canhões enferrujados,Pequim não liga a isso. Há-de ver-se em 1999,de momento não há pressas. A China tem todoo interesse em preservar o estatuto actual, quepermite continuar a utilizar a cidade como pla-taforma giratória de todos os tráficos e comolugar de branqueamento dos lucros poucoconfessáveis. Ao fazê-lo, a nomenklatura podeexercer um controle sobre os meios mafiososda diáspora, tecer ligações com eles e, depassagem, sacar uma parte dos benefícios.

Como era de esperar, a perpetuação desemelhante situação não podia deixar dechamar outros predadores. Foi assim quechegaram os russos. Se é certo que a alma

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russa podia sentir-se seduzida pela nostalgiaportuguesa, aqui o encontro foi sobretudomercantil. Desde há pouco, com efeito, a máfiarussa instalou-se em Macau, passando adominar certos sectores da indústria do sexo.A manobra não foi feita sem certos empe-cilhos. Tiroteios em bares, desaparecimentose até alguns cadáveres atestam as dificuldadesencontradas.

Os chuis locais fecham os olhos oupõem-se ao lado do mais forte. Os rarosespiões portugueses, de fato completo ebigode regulamentar, mostram-se discretos,desejosos de virem ainda a aproveitar umapré-reforma bem merecida. Na sua maioriaantigos membros da polícia política fascista,depressa se conluiaram com a nova máfia pós--stalinista. O Paulo, que não aprecia uniformesnem caixões, optou por uma certa abstinênciae reduziu consideravelmente as saídasnocturnas. O Oriente do sonho mágicoraramente corresponde à realidade…

A bordo do barco que nos leva de Macaupara Hong Kong, vemo-nos sentados ao ladode duas brasileiras, mãe e filha.

«Ah! Você fala português!» Mamãe e fi-lhinha vêm de São Paulo, onde são as felizesproprietárias duma cadeia de lojas de prontoa vestir. Uma vez por ano, deslocam-se à Ín-dia para recepcionarem e controlarem as mer-cadorias lá fabricadas por proletas pagos apreço ainda mais barato que os do Brasil, apro-veitando para fazer umas compras em HongKong. E após as compras, claro, a cultura: umavisitinha a Macau impõe-se mesmo, nessaocasião única de meditar sobre as raízes lusi-tanas. Nestas paragens, os abutres desta espé-cie são legião. Pródigas em confidências — acomunhão linguística desperta às vezes cum-plicidades inesperadas —, narram-nos estasdamas, admirativas, a aventura de um dos seuscolegas francês instalado em Hong Kong.

Este empresário de vanguarda pôs de péna região uma rede complicada, a fim deexplorar a mão-de-obra do têxtil. O tecido éfabricado na Índia para depois ser talhado noBangladesh, e em Hong Kong limitam-se acoser os emblemas de marca sobre as mer-cadorias. Este trabalho de acabamento, porém,é executado por uma dezena de imigrados,franceses de gema transformados em quasechineses por força das circunstâncias: dozehoras de trabalho por dia, sete dias por semana.As brasileiras nem querem acreditar! Mas pelomenos, acrescentam logo, são mãos francesasque põem um toque final, de classe, nasmercadorias!

Na sala de espera do aeroporto de Pequim,um jovem francês aborda Charles Reeve.– Você entende alguma coisa deste país? Estoucá há uma semana e continuo a não percebercomo isto funciona. Sabe, tenho uma loja emNantes e vim comprar gravatas de seda. Fiqueichocado ao deparar com crianças que tra-balham nas oficinas, de dia e de noite. Eujulgava que isto aqui era um país comunista!…Seja como for, estou-me nas tintas, eu tratode negócios. Volto com uma mala atestada evou poder viver uns meses bons. Maspergunto-me no que é que tudo isto irá dar.

Respondo-lhe que com um pouco de sorteos chineses farão uma outra revolução. A ideianão parece agradar-lhe e o homem some-se.Em Roissy, cruzo-me uma última vez com onegociante de gravatas de seda. Está pior queestragado porque a mala cheiinha ficou algu-res num qualquer depósito do aeroporto dePequim. Fabricadas por crianças chinesas,compradas por um francês de passagem, asgravatas hão-de sem dúvida ser vendidas arussos, no mercado do Parque da Colina doSol. Aqui temos como funciona a China.

Tradução de Júlio Henriques

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Ecologia Social

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A humanidade tem sido difamada pelos próprios seres humanos,ironicamente como uma forma de vida amaldiçoada que acima detudo destrói o mundo vivo e ameaça a sua integridade. À confusãoque já temos acerca do nosso próprio tempo e identidade pessoais,junta-se agora a confusão de que a condição humana é vista como

uma espécie de caos produzido pela nossa tendência para adestruição, e a nossa capacidade para o exercício dessa tendência

é tanto maior precisamente porque possuímos razão, ciência etecnologia. É até este ponto absurdo que certos anti-humanistas,

biocentristas e misantropos podem levar a lógica das suas premissas.

ético à vida social, a sociedade moderna fo-menta a crença nas virtudes da competição edo egoísmo, assim despojando a associaçãohumana de todo o seu significado — excepto,talvez, enquanto instrumento de ganho e deconsumo sem sentido.

Somos tentados a acreditar que os homense as mulheres de outros tempos eram guiadospor convicções e esperanças — valores queos definiam precisamente como seres huma-nos e que davam sentido às suas vidas.Referimo-nos à Idade Média como uma «ida-de de fé», ou ao Iluminismo como uma «ida-de da razão». Mesmo na época anterior àSegunda Grande Guerra e nos anos que se lheseguiram parecia haver um tempo fascinantede inocência e esperança, apesar do período

Os problemas que muita gente enfrentahoje em dia para «definir-se» a siprópria, para conhecer «quem é» —

problemas que alimentam a vasta indústria daspsicoterapias — não são problemas apenaspessoais. Estes problemas existem não ape-nas ao nível dos indivíduos mas na própriasociedade moderna, entendida como um todo.Socialmente, vivemos numa desesperada in-certeza sobre o modo como as pessoas se re-lacionam entre si. Não é só como indivíduosque sofremos de alienação e confusão acercadas nossas identidades e objectivos; toda anossa sociedade, concebida como entidade,parece confusa quanto à sua natureza e direc-ção. Se sociedades mais antigas tentaram fo-mentar a crença nas virtudes da cooperação edo apoio, desse modo atribuindo um sentido

Sociedade e EcologiaMURRAY BOOKCHIN

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da Grande Depressão e dos terríveis conflitosque a mancharam. É como se durante essesanos da guerra se fosse perdendo a inocênciada juventude, e com isso a sua «limpidez» —o sentido das intenções e do idealismo queguiavam os comportamentos.

Essa «limpidez», hoje em dia, desapare-ceu. Foi substituída pela ambiguidade. A con-fiança em que a tecnologia e a ciência iriammelhorar a condição humana foi escarnecidapela proliferação das armas nucleares, dasfomes maciças no terceiro mundo e da pobre-za no primeiro. A ardente crença em que aliberdade triunfaria sobre a tirania foidesmentida pelo crescimento da centralizaçãoestatal um pouco por todo o lado e pelo enfra-quecimento dos povos pelas burocracias, pe-las forças policiais e pelas sofisticadastécnicas de vigilância — não menos nas nos-sas «democracias» do que nos países maisostensivamente autoritários. A esperança emque viríamos a constituir «um único mundo»,uma vasta comunidade de variados povos quepartilhariam os seus recursos para melhorar avida de todos, foi despedaçada por uma cres-cente maré de nacionalismo, racismo e um in-sensível paroquialismo que alimenta aindiferença perante a miséria de milhões.

Pensamos que os nossos valores são pioresdo que aqueles que tinham as pessoas apenasduas ou três gerações atrás. A geração actualparece mais autocentrada, isolada e confor-mada em comparação com as anteriores.Perdeu os sistemas de apoio que eram assegu-rados pelas redes familiares, pela comunidade,pelo empenho na ajuda mútua. O encontro doindivíduo com a sociedade parece ocorrer maispor frios procedimentos burocráticos do quepor calorosos contactos pessoais.

Esta falta de sentido e de identidade socialé a maior desolação, face aos crescentes

problemas com que nos confrontamos. Aguerra é uma condição crónica nos dias dehoje; a incerteza económica, uma presençaconstante; a solidariedade humana, um mitorarefeito. O menor dos problemas queenfrentamos não é certamente o pesadelo deum apocalipse ecológico — uma rupturacatastrófica dos sistemas que mantêm aestabilidade do planeta. Vivemos debaixo daconstante ameaça de que o mundo vivo estejairrevogavelmente minado por uma sociedadeenlouquecida pela sua necessidade de cres-cimento, substituindo o orgânico pelo inor-gânico, o solo pelo cimento, as florestas porterrenos estéreis e a diversidade das formasde vida por ecossistemas despojados; emresumo, um andar para trás do relógioevolucionário, para um mundo mais antigo,mais inorgânico, mineralizado, incapaz desuportar quaisquer formas complexas de vida,incluindo a espécie humana.

A ambiguidade sobre o nosso destino, onosso sentido, o nosso propósito, faz levantaruma questão assustadora: a sociedade é, emsi própria, uma maldição, uma praga para avida em geral? Temos alguma solução paraeste novo fenómeno chamado «civilização»que parece estar num ponto de destruição detodo o mundo natural, que foi o resultado demilhões de anos de evolução orgânica?

Uma imensa literatura sobre estas questõesemergiu, ganhando a atenção de milhões deleitores: uma literatura que fomenta um novopessimismo em relação à civilização, enquantotal. Esta literatura cava um fosso de antago-nismos entre a tecnologia e uma natureza or-gânica presumidamente «virginal», a cidadee o rural, o rural e o «selvagem», a ciência euma «reverência» pela vida, a razão e a «ino-cência» da intuição, em suma, a humanidadecontra a biosfera inteira.

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Mostramos os sinais da perda de fé na nos-sa ímpar capacidade humana — a capacidadede viver em paz uns com os outros, a nossacapacidade de atender aos outros seres hu-manos e às outras formas de vida. Este pessi-mismo é alimentado diariamente pelossociobiologistas, que pretendem localizar asnossas falhas nos nossos genes, pelos anti--humanistas que lamentam a nossa sensibili-dade «antinatural», e pelos biocentristas quedesdizem as nossas qualidades racionais comnoções de que não somos, em «valor intrínse-co», muito diferentes das formigas. Em resu-mo, testemunhamos o alastrar do assaltocontra as capacidades da razão, da ciência eda tecnologia em contribuírem para a melhoriado mundo, para nós próprios e para a vida emgeral.

A ideia histórica de que a civilização é,inevitavelmente, oposta à natureza, e queportanto corrompe a «natureza humana»,emerge entre nós ressurgindo da época de

Rousseau, ou seja, precisamente no momentoem que a nossa necessidade de uma civilizaçãoverdadeiramente humana e ecológica é maiorque nunca, se quisermos salvar o planeta e anós próprios. A civilização, com todas as suasmarcas da razão e da tecnologia, é cada vezmais vista como uma nova praga. Mais ainda,a sociedade enquanto tal vem sendo tão postaem causa quanto o seu papel na formação dahumanidade é entendido como algo verda-deiramente «não-natural» e intrinsecamentedestrutivo.

A humanidade, com efeito, tem sido difa-mada pelos próprios seres humanos, ironica-mente como uma forma de vida amaldiçoadaque acima de tudo destrói o mundo vivo e ame-aça a sua integridade. À confusão que já temosacerca do nosso próprio tempo e identidadepessoais, junta-se agora a confusão de que acondição humana é vista como uma espécie decaos produzido pela nossa tendência para adestruição, e a nossa capacidade para o exercí-cio dessa tendência é tanto maior precisamen-te porque possuímos razão, ciência e tecnologia.

É até este ponto absurdo que certosanti-humanistas, biocentristas e misantropospodem levar a lógica das suas premissas.O que é vital nesta mistura de resmungos emeias ideias é que, afinal, as várias formas deinstituições e de relações que compõem aqui-lo a que chamamos sociedade são largamenteignoradas. De facto, o uso de expressões ge-néricas como «humanidade» ou de termos zo-ológicos como homo sapiens oculta vastasdiferenças ou mesmo amargos antagonismos,como os que existem entre brancos e pretos,homens e mulheres, ricos e pobres, opresso-res e oprimidos; do mesmo modo, vagas ex-pressões como «sociedade» e «civilização»escondem as diferenças entre sociedades li-vres, não hierárquicas, sem Estado e sem clas-

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ses, por um lado, e sociedades que são, mes-mo que em graus diferentes, hierárquicas,estatistas, autoritárias ou dirigidas por inte-resses de classe, por outro. A zoologia, comefeito, substitui aqui uma ecologia socialmen-te comprometida; o radicalismo das «leis na-turais» baseadas nas curvas populacionaisentre os animais substitui os conflitos econó-micos e os interesses sociais entre os homens.

Simplesmente, opor a «sociedade» à«natureza», a «humanidade» à «biosfera» e a«razão», a «tecnologia» e a «ciência» a mo-dos menos desenvolvidos, até mesmo primi-tivos, de interacção com o mundo natural,impede-nos de examinar as diferenças e divi-sões altamente complexas existentes dentroda sociedade, o que é absolutamente necessá-rio para a definição dos nossos problemas edas suas soluções.

O antigo Egipto, por exemplo, tinha umaatitude em relação à natureza significati-vamente diferente da da antiga Babilónia.O Egipto assumia uma atitude de reverênciapara com uma multidão de divindades essen-cialmente animistas, muitas das quais eramfisicamente meio humanas meio animais, en-quanto os babilónios criavam um panteão dedivindades políticas bastante humanas. Maso Egipto nem por isso era menos hierárquicodo que a Babilónia no modo como tratava oseu povo e igualmente, se não mais, opressorem relação à individualidade do homem. Al-guns povos caçadores podem ser tão destru-tivos da vida selvagem, apesar das suas fortescrenças animistas, como as culturas urbanasque se apoiam na exaltação do racionalismo.Quando estas inúmeras diferenças são sim-plesmente engolidas conjuntamente com agrande variedade de formas sociais por umapalavra chamada «sociedade», estamos tão sóa violentar o raciocínio, ou a própria inteli-

gência. A sociedade em si torna-se qualquercoisa de não-natural. A razão, a ciência, atecnologia tornam-se coisas destrutivas, semqualquer relação com os factores sociais quecondicionam o seu uso. As acções humanassobre o ambiente natural são entendidas comoameaças — enquanto a nossa espécie poucoou nada pode fazer para melhorar o planetaou a vida, em geral.

É claro, não somos menos animais do queos outros mamíferos, mas somos algo maisdo que rebanhos nas planícies africanas. Omodo como somos este algo mais — nomea-damente pelos tipos de sociedade que forma-mos e como nos dividimos uns contra osoutros em hierarquias e classes — é que afec-ta profundamente os nossos comportamentose os efeitos que podemos provocar no mundonatural.

Afinal, ao separar tão radicalmente da na-tureza humanidade e sociedade, ou aoreduzi-las ingenuamente a meras entidadeszoológicas, não se entende como é que a na-tureza humana deriva de uma naturezainumana, e a evolução social de uma evolu-ção natural. A humanidade torna-se estranhae alienada não apenas de si mesma, nesta nos-sa idade da alienação, mas do próprio mundonatural, no qual sempre teve as suas raízesenquanto força viva complexa e pensante.

Assim, somos alimentados por uma dietade recriminações, por ambientalistas liberaise misantrópicos, acerca de como a nossaespécie tem sido responsável pelas rupturasambientais. Não é preciso irmos aos terreirosde gurus e místicos em São Francisco paraencontrar esta visão associal dos problemasecológicos e das suas causas; podemos fazê-lo facilmente em Nova Iorque. Não me es-quecerei facilmente de uma exposição

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«ambiental» no Museu de História Natural,nos anos 70, em que o público era colocadoperante uma longa série de quadros apresen-tando exemplos de poluição e ruptura ecoló-gica. A exposição culminava com umaassustadora chamada ao «Mais Perigoso Ani-mal sobre a Terra», que consistia, tãosimplesmente, num espelho que reflectia o ob-servador humano plantado em frente a ele.Recordo claramente uma criança negra de péem frente ao espelho, enquanto um professorbranco lhe tentava explicar a mensagem queesta arrogante exposição procurava transmitir.Não estavam lá expostos os conselhos de ad-ministração a planear a desflorestação de umacolina, nem os governantes a actuar como seuscúmplices. A exposição transmitia uma men-sagem basicamente misantrópica: as pessoas,enquanto tais, não uma sociedade rapace nemos seus poderosos beneficiários, são os res-ponsáveis pelas alterações ambientais: os po-bres não menos do que os ricos, as pessoas decor do que os privilegiados brancos, as mu-lheres do que os homens, os oprimidos do queos opressores. Uma mítica espécie humanasurge no lugar das classes, o indivíduo substi-tui as hierarquias, os gostos e valores pesso-ais (muitos dos quais são o resultado dospredadores meios de comunicação de massas)em vez das relações sociais e os despossuídos,com as suas vidas estéreis e isoladas, estão nolugar das gigantescas corporações, das buro-cracias que se auto-alimentam, da violentaparafernália do Estado.

A R E L A Ç Ã O D A S O C I E D A D E

C O M A N A T U R E Z A

Deixando de lado estas ultrajantes exposi-ções «ambientais», que pretendem colocar osprivilegiados e os desprivilegiados dentro damesma moldura, parece apropriado nestemomento trazer à tona uma necessidade al-tamente relevante: a necessidade de recolocara sociedade dentro de um quadro ecológico.Mais do que nunca, a ênfase deve ser postano facto de que praticamente todos os proble-mas ecológicos são problemas sociais, e nãosó a resultante de ideologias religiosas, espi-rituais ou políticas. Que estas ideologias pos-sam promover uma atitude anti-ecológica empessoas de todos os estratos não deixa de serimportante, mas mais do que tomar simples-mente as ideologias pelo seu valor aparente épara nós crucial questionar de onde é que elassurgiram e como se desenvolveram.

Com bastante frequência as necessidadeseconómicas podem forçar as pessoas a agircontra os seus melhores impulsos, mesmo quesejam fortes valores naturais. Os lenhadoresque são contratados para cortar uma magnífi-ca floresta normalmente não têm nenhumaaversão às árvores; eles têm pouca ou nenhu-ma escolha em relação a cortar as árvores,assim como os trabalhadores dos matadourospouca ou nenhuma têm em relação ao abatedos animais. Qualquer comunidade ou profis-são terá a sua quota-parte de sádicos ou deindivíduos com tendências destrutivas, e bempodemos aqui incluir os ambientalistas misan-tropos que gostariam de ver a humanidadeexterminada, mas para a grande maioria daspessoas este tipo de tarefas, bem assim comooutras particularmente penosas, como os mi-neiros, não são o resultado de uma livre esco-lha. Elas são motivadas pela necessidade e,sobretudo, resultam de contingências sociais

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sobre as quais as pessoas comuns nenhumcontrole conseguem ter.

Para compreender os problemas actuais, osecológicos da mesma maneira que os econó-micos e os políticos, há que examinar as suascausas sociais e procurar as suas soluções atra-vés de processos também sociais. A ecologiaprofunda, espiritual e misantrópica, desvia-nosgravemente destas questões quando nos cha-ma a atenção mais para os sintomas do quepara as causas. Se a nossa obrigação é ver asmudanças nas relações sociais de modo a com-preender as mudanças ecológicas mais signi-ficativas, este tipo de ecologia, pelo contrário,afasta-se da sociedade e dirige-se para o «es-piritual», o «cultural» ou para aquilo que va-gamente designa como raízes «tradicionais».Não foi a Bíblia que criou um antinaturalismoeuropeu, ela apenas serviu para justificar umantinaturalismo já existente desde os tempospagãos, apesar da feição animista das religi-ões pré-cristãs. A influência antinaturalistacristã tornou-se especialmente marcada coma emergência do capitalismo. A sociedade nãotem apenas que ser trazida a um quadro eco-lógico para perceber porque é que as pessoastendem a optar por sensibilidades competiti-vas — algumas fortemente naturalistas, ou-tras fortemente antinaturalistas — mas temosque pesquisar mais fundo dentro da própriasociedade. Temos de procurar o relacionamen-to da sociedade com a natureza, as razões porque pode destruir o mundo natural e, em al-ternativa, as razões por que conseguiu, e ain-da pode, alimentar e fortemente contribuirpara a evolução natural.

Enquanto até agora podemos falar de «so-ciedade» num sentido geral e abstracto — erecordemos que cada sociedade é absoluta-mente única e diferente das outras numa pers-pectiva histórica — é necessário examinar o

que melhor chamaríamos socialização, e nãoapenas a sociedade. A sociedade é um dadoconjunto de relações que tendemos a consi-derar como definidas e estáticas. Para muitagente, é como se a sociedade de mercado, ba-seada na competição e na compra e venda,sempre tivesse existido, embora tenhamosuma vaga ideia da existência de sociedadespré-mercantis, baseadas na troca de dádivas ena cooperação. A socialização, por outro lado,é um processo, no mesmo sentido em que umindivíduo vivo o é também. Historicamente,o processo de socialização pode ser visto comouma espécie de infância social, que implicauma dolorosa construção da maturidade socialda humanidade.

Mas quando consideramos a socializaçãomais atentamente, o que acaba por nos im-pressionar é que a própria sociedade, na suaforma mais básica, radica na natureza. Qual-quer evolução social, de facto, é virtualmenteuma extensão da evolução natural, no domí-nio específico da humanidade. Como já diziaCícero, orador e filósofo romano, há dois milanos atrás : «…pelo uso das nossas mãos cons-truímos, dentro do reino da Natureza, uma se-gunda natureza para nós próprios.» Naverdade, a frase de Cícero até é bastante in-completa: o primitivo e presumidamenteintocado «estado de natureza», ou «primeiranatureza», é reconstruído numa «segundanatureza» não só pelo uso das nossas mãos; opensamento, a linguagem e as complexas eimportantes mudanças biológicas desempe-nham igualmente um papel crucial e muitasvezes decisivo no desenvolvimento dessa «se-gunda natureza».

Uso o termo reconstruir deliberadamentepara focar o facto de essa segunda naturezanão ser um fenómeno que se desenvolva à par-te da «primeira natureza» — e daí o especial

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valor que apresenta a expressão de Cícero«dentro do reino da Natureza». Para sublinharque a segunda natureza, ou mais precisamen-te a sociedade, para usar esta palavra no seusentido mais geral, emerge de dentro da pri-mitiva «primeira natureza», está o facto de avida social ter sempre uma dimensão natura-lista, por muito que a sociedade seja oposta ànatureza no nosso modo de pensar. A ecolo-gia social claramente expressa o facto de asociedade não ser uma irrupção súbita no mun-do; a vida social não tem necessariamente queenfrentar a natureza como um combatentenuma guerra inevitável. A emergência da so-ciedade é um dado natural que tem a sua ori-gem na biologia da socialização humana.

Este processo de socialização humana deque emerge a sociedade — seja sob a formade famílias, bandos, tribos ou outros tipos maiscomplexos de inter-relacionamento — tem asua origem na relação parental, particularmen-te na vinculação mãe-filho. A mãe biológica,para sermos precisos, pode ser substituída poroutros, incluindo o pai, outros familiares ou,para o que aqui interessa, pelos membros dacomunidade. É quando os pais sociais e a «li-nhagem» social, isto é, a comunidade huma-na que está à volta do jovem, começam aparticipar num sistema de protecção e cuida-dos, o que é habitualmente desempenhadopelos pais biológicos, que a sociedade come-ça verdadeiramente a revelar-se.

A sociedade ultrapassa, então, e muito omero grupo reprodutivo; mas fá-lo a partir dasrelações humanas institucionalizadas ou de

uma comunidade animal relativamente infor-me rumo a a uma ordem social claramenteestruturada. Mas no início mesmo da socie-dade, parece que os seres humanos são socia-lizados na sua «segunda natureza» através delaços de sangue profundos, especificamenteos laços maternos. Podemos ver que ao longodo tempo as estruturas ou instituições quemarcaram o avanço da humanidade, da meracomunidade animal a uma autêntica socieda-de, começam por sofrer mudanças de longoalcance, e estas mudanças tornam-se questõesde suprema importância para a ecologia soci-al. Para o melhor e para o pior, as sociedadesdesenvolvem-se à volta de grupos de status,hierarquias, classes, formações estatais. Masa reprodução e os cuidados familiares conti-nuam a ser a permanente base biológica paraqualquer forma de vida social, assim como ofactor original da socialização dos jovens eda formação da sociedade. Como observou R.Briffault na primeira metade deste século, «umfactor conhecido que estabelece uma profun-da distinção entre a constituição dos gruposhumanos mais rudimentares e todos os outrosgrupos animais [é a] associação das mães edas crias, que é a única forma verdadeira desolidariedade social entre os animais. Em todaa classe dos mamíferos há uma crescente du-ração desta associação, que é a consequênciado prolongamento da dependência infantil»,um prolongamento que Briffault relacionacom o aumento do período de gestação fetal ecom os avanços na inteligência da espécie.

A dimensão biológica que Briffault acres-centa àquilo que chamámos sociedade e soci-alização não pode ser acentuada em demasia.É uma presença decisiva, não apenas nas ori-gens da sociedade ao longo dos tempos daevolução animal mas também nas nossasvivências quotidianas. O aparecimento de umanova criança e a extensão dos cuidados e aten-

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ções que ela recebe, por muitos anos, recor-dam-nos que não se trata apenas de um serhumano que se reproduziu, mas da própriasociedade. Em comparação com os elemen-tos juvenis de outras espécies, as crianças de-senvolvem-se lentamente e durante muitotempo. Ao viverem em estreita associação comos pais, com os seus antecessores, com o seugrupo de parentesco e com uma alargada co-munidade de gente, elas mantêm uma plasti-cidade mental que faz a criatividade individuale a capacidade de formar grupos sociais. Ain-da que outros animais se possam aproximardas formas humanas de associação em váriosaspectos, eles não criam uma «segunda natu-reza» que incorpore as tradições culturais, nempossuem uma linguagem complexa, nem ela-boram poderes conceptuais ou uma impressivacapacidade de reestruturar o seu ambiente deacordo com as suas necessidades.

Os chimpanzés, por exemplo, apenas per-manecem crianças durante três anos, e a suafase juvenil é de sete anos; aos dez anos já sãoadultos completos. As crianças humanas, emcontraste, são consideradas infantis durante seisanos e jovens durante catorze. Ou seja, umchimpanzé cresce mental e fisicamente em maisou menos metade do tempo que é necessário aum humano, e a sua capacidade para aprenderestá já estabelecida por comparação com o serhumano, cujas capacidades mentais podemcontinuar a expandir-se durante décadas. Domesmo modo, as associações nos chimpanzéssão geralmente muito particulares e razoavel-mente limitadas. As associações humanas, pelocontrário, são basicamente estáveis, fortemen-te institucionalizadas e caracterizadas por umgrau de solidariedade e de criatividade semigual noutras espécies, tanto quanto sabemos.

Este prolongado grau de plasticidade men-tal humana, de dependência e criatividade

social produzem dois resultados de importân-cia decisiva. Em primeiro lugar, as associa-ções humanas primitivas terão alimentadouma forte predisposição para a interde-pendência entre os membros do grupo, e nãoo «rude individualismo» a que associamos aindependência. A enorme massa de dados an-tropológicos sugere que a participação, a aju-da mútua, a solidariedade e a empatia seriamos valores sociais que os primeiros humanossublinhavam dentro das suas comunidades. Aideia de que as pessoas são interdependentespara que a sua vida seja melhor, senão mes-mo para a sua própria sobrevivência, é umasequência da prolongada dependência dos jo-vens em relação aos adultos. A independên-cia, para não dizer já a competição, teriaparecido completamente estranha, senão mes-mo bizarra, a uma criatura mantida durantelargos anos em condição de dependência. Aprotecção dos outros seria vista como um re-sultado perfeitamente normal para um ser al-tamente aculturado e que era, por sua vez,claramente necessitado de cuidados prolon-gados. A nossa versão moderna de individua-lismo, ou mais precisamente de egoísmo, terácortado rente a semente da primitiva solidari-edade e da ajuda mútua — características,devo acrescentar, sem as quais um animal tãofrágil fisicamente como o ser humano dificil-mente conseguiria sobreviver como adulto,quanto mais como criança.

Em segundo lugar, a interdependência hu-mana teria assumido uma forma bastanteestruturada. Não há nenhuma evidência de queos seres humanos normalmente se relacionementre si através do tipo de vagos laços queencontramos nos nossos primos chegados, osprimatas. Que os laços sociais humanos po-dem ser dissolvidos ou desinstitucionalizadosem momentos de mudança radical ou de rup-tura cultural é demasiado óbvio para ser dis-

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cutido; mas em condições relativamente está-veis, a sociedade humana nunca foi a «horda»que os antropólogos do século passado supu-nham como base rudimentar da vida social.Pelo contrário, as provas que possuímos apon-tam precisamente para o facto de que todosos humanos, talvez até incluindo os nossoslongínquos antepassados hominídios, viveramnum certo tipo de grupos familiares estrutu-rados e, posteriormente, em bandos, tribos,aldeias. Resumindo, interligaram-se (comoainda fazem) não apenas emocional e moral-mente mas também estruturalmente, em pla-neadas, claramente definíveis e razoavelmentepermanentes instituições.

Outros animais podem constituir vagascomunidades, ou mesmo tomar disposiçõescolectivas para proteger os seus jovens dospredadores, mas dificilmente tais comunida-des podem ser consideradas estruturadas, anão ser num largo e efémero sentido. Os huma-nos, pelo contrário, criam comunidades alta-mente formalizadas que se vão estruturandocada vez mais ao longo do tempo. Com efeito,eles não formam somente comunidades; for-mam esse novo fenómeno chamado sociedade.

Se não formos capazes de distinguir as co-munidades animais das sociedades humanas,

arriscamo-nos a ignorar o único facto que dis-tingue a vida social humana das comunidadesanimais — especialmente a capacidade dasociedade de mudar, melhor ou pior, e os fac-tores que produzem essas mudanças. Redu-zindo uma sociedade complexa a uma simplescomunidade, facilmente podemos esquecerquanto as sociedades têm sido diferentes umasdas outras ao longo da História. Podemosigualmente falhar na compreensão de comoelas vão construindo simples diferenças destatus em hierarquias estabelecidas, ou hie-rarquias em classes económicas. Na verdade,corremos o risco de uma total incompreensãodo verdadeiro sentido de vocábulos como «hi-erarquia», enquanto sistema altamente orga-nizado de comando e obediência — e nisso sedistinguindo das diferenças de status, pesso-ais, individuais e tantas vezes de curto alcan-ce e que não envolvem actos compulsivos.Temos tendência, de facto, a confundir as cri-ações estritamente institucionais da vontadehumana, propósitos, interesses conflituais etradições, com a vida da comunidade nas suasmais definidas formas, ainda que lidemos comcaracterísticas inerentes e aparentemente inal-teráveis da sociedade, mais do que com estru-turas fabricadas que possam ser modificadas,melhoradas, pioradas ou simplesmente aban-donadas. A manha de todas as elites dirigen-tes, do princípio da História até aos temposmodernos, tem sido a de conseguir fazer iden-tificar os seus próprios sistemas de domina-ção, socialmente construídos, com a própriasociedade, disso resultando o facto de insti-tuições feitas pelo homem adquirirem assimuma intocabilidade divina ou biológica.

Uma dada sociedade e as suas instituições,deste modo, tendem a tornar-se entidadespermanentes e imutáveis que adquirem umamisteriosa vida própria, fora da natureza —nomeadamente, os produtos de uma

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aparentemente definida natureza humana queé o resultado da programação genética doinício da vida social. Em alternativa, noutravisão, uma dada sociedade e as suas institui-ções podem dissolver-se na natureza, comooutra mera forma de comunidade animal, comos seus machos dominantes, guardiões, líde-res e rebanho. Quando temas desagradáveiscomo a guerra ou os conflitos sociais se colo-caram, foram atribuídos à actividade de«genes» que presumivelmente desencadeiama guerra, ou até a «ganância».

Em qualquer dos casos, é esta a noção deuma sociedade abstracta que existe para lá danatureza, ou de uma comunidade natural que éindistinguível da natureza, um dualismo queaparece e que friamente separa a sociedade danatureza, ou um tosco reducionismo que surgee dissolve a sociedade na natureza. Estas no-ções aparentemente contrastantes mas na ver-dade intimamente relacionadas são tanto maissedutoras quanto são simplistas. Apesar de se-rem muitas vezes apresentadas pelos seusapoiantes mais sofisticados de uma formarazoavelmente matizada, tais noções são facil-mente reduzidas a slogans grandiloquentes quecristalizam como dogmas fáceis e poderosos.

A E C O L O G I A S O C I A L

A abordagem da sociedade e da naturezaque é feita pela ecologia social pode parecermais exigente intelectualmente, mas assimevita o simplismo do dualismo e a rudeza doreducionismo. A ecologia social tenta mos-trar de que modo a natureza lentamente se in-troduz na sociedade, sem ignorar as diferençasentre uma e outra, por um lado, nem a exten-são pela qual se fundem, por outro. A sociali-zação diária dos jovens pela família não radicamenos na biologia do que os cuidados diáriosaos velhos pela instituição médica radicam nos

duros factos sociais. Do mesmo modo, nuncadeixamos de ser mamíferos que ainda man-têm os mesmos impulsos primários naturais,mas institucionalizamos esses impulsos e a suasatisfação numa ampla variedade de formassociais. Assim, o social e o natural continua-mente se interpenetram nas actividades maiscomuns do dia a dia, sem perda da sua identi-dade, num processo partilhado de interacçãoe interactividade.

A ecologia social levanta questões impor-tantes quanto aos diferentes modos como anatureza e o social têm interagido ao longodos tempos e que problemas essa interacçãotem originado. Como é que emergiu uma re-lação entre a humanidade e a natureza de tipodivisionista, mesmo conflitual? Quais foramas formas institucionais e as ideologias que otornaram possível? Considerando o cresci-mento das necessidades humanas e datecnologia, era tal conflito inevitável? E po-derá ele ser ultrapassado no futuro, numa so-ciedade ecologicamente empenhada?

De que modo é que uma sociedade racionale ecologicamente orientada se adequa ao pro-cesso da evolução natural? Indo ainda maislonge: existe alguma razão para crer que a men-te humana, ela própria um produto da evolu-ção, assim como a cultura, representa um cumedecisivo de desenvolvimento natural — nomea-damente no longo desenvolvimento das formasde vida simples até à notável intelectualidadee autoconsciência das mais complexas?

Ao colocar estas questões altamenteprovocatórias não pretendo justificar nenhumapomposa arrogância em relação à vida não-humana. Claramente, devemos trazer a parti-cularidade da humanidade como espécie,caracterizada por atributos sociais, imaginati-vos e construtivos preciosos, à sincronicidade

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com a fecundidade, diversidade e criatividadeda natureza. Defendo que esta sincronicidadenão deve ser conseguida à custa da oposiçãoentre natureza e cultura, vida humana e não-humana, fecundidade natural e tecnologia ouuma subjectividade natural oposta à mente hu-mana. De facto, um importante resultado queemerge da discussão do inter-relacionamentoda natureza com a sociedade é o facto do pen-samento humano ter também uma base natu-ral. O nosso cérebro e o nosso sistema nervosonão surgiram repentinamente, têm uma longahistória natural. Aquilo que mais prezamoscomo integral para a nossa humanidade — anossa extraordinária capacidade de pensar emníveis conceptuais complexos — pode serpesquisado desde a rede nervosa dos inver-tebrados primitivos, os gânglios dos moluscos,a medula dos peixes, o cérebro dos anfíbios,até ao córtex dos primatas.

Mesmo aqui, no mais íntimo dos nossosatributos humanos, não somos menos produ-to da evolução natural do que da evoluçãosocial. Enquanto seres humanos incorporamoseras de diferenciação e elaboração orgânicas.

Como as outras formas de vida complexas,não somos apenas parte da evolução natural,somos igualmente seus herdeiros e produto dafecundidade natural.

Ao tentar mostrar como a sociedade lenta-mente vai crescendo a partir da natureza, noentanto, a ecologia social também se vê obri-gada a mostrar como a sociedade também so-fre diferenciação e elaboração internas. Aofazê-lo, a ecologia social deve examinar aque-las costuras na evolução social em que as rup-turas ocorrem, empurrando lentamente asociedade para uma oposição ao mundo natu-ral, e explicar a emergência desta oposiçãodesde as suas origens pré-históricas até aosnossos dias. De facto, se a espécie humana éuma forma de vida que pode conscientemen-te enriquecer o mundo natural, em vez de ape-nas lhe causar prejuízo, é importante para aecologia social revelar os factores que torna-ram muitos seres humanos parasitas de ummundo vivo, e não parceiros activos da evo-lução orgânica. Este projecto deve ser assu-mido não de um modo ocasional mas comouma séria tentativa de dar coerência à evolu-ção natural e social, e como relevante para osnossos tempos e para a construção de umasociedade ecológica.

Talvez que um dos contributos mais im-portantes da ecologia social para as discus-sões actuais no seio da ecologia seja o pontode vista de que os problemas básicos que co-locam a sociedade contra a natureza estão si-tuados dentro do próprio desenvolvimentosocial, e não entre a sociedade e a natureza.Que é o mesmo que dizer que as divisões en-tre sociedade e natureza têm as suas raízesprofundas nas divisões internas no domíniodo social, nomeadamente nos conflitos entrehumanos, que tantas vezes ignoramos pelo usogeneralizado da palavra «humanidade».

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Esta visão fundamental corta com as raízesde quase todo o pensamento ecológico contem-porâneo, e mesmo das teorizações sociais. Umadas mais arreigadas noções que o pensamentoecológico actual partilha com o liberalismo, omarxismo e o conservadorismo é a da crençahistórica de que o domínio da natureza exige odomínio do homem pelo homem. Isto é igual-mente óbvio nas teorias sociais; quase todas asnossas ideologias sociais contemporâneas co-locaram a noção de dominação humana no cen-tro das suas teorizações. Tal continua a ser umadas noções mais largamente aceites, dos pen-sadores clássicos aos contemporâneos, de quea libertação do «homem da dominação pela na-tureza» arrasta a dominação do homem pelohomem, como nos primeiros modos de produ-ção e o uso de seres humanos como instrumen-tos de sujeição do mundo natural. Por isso, nosentido de domar o mundo natural, foi defen-dido durante muito tempo que era necessáriosujeitar os seres humanos enquanto tal, sobforma de escravos, servos e trabalhadores.

Que esta noção instrumental penetre a ide-ologia de quase todas as elites dirigentes e quetenha fornecido quer aos movimentos liberaisquer conservadores argumentos para a suaconformação com o status quo, não exigegrande reflexão. O mito de uma natureza«mesquinha» sempre foi usado para justificara «prodigalidade» dos exploradores no seusevero tratamento dos explorados — e forne-ceu a desculpa para o oportunismo políticoliberal, tanto quanto o dos conservadores. Tra-balhar «por dentro do sistema» sempre impli-cou uma aceitação da dominação como formade «organização» da vida social e, quantomuito, um modo de libertação dos humanosda sua presumida dominação pela natureza.

O que talvez seja menos conhecido, noentanto, é que também Marx justificava o

surgimento da sociedade de classes e do Esta-do como etapas para o domínio da natureza e,presumivelmente, a libertação da humanida-de. Foi na força desta visão histórica que Marxformulou a sua concepção materialista da his-tória e baseou a sua crença na necessidade dasociedade de classes como ponto de apoio namarcha histórica para o comunismo.

Ironicamente, muito do que actualmentepassa por ecologia anti-humanística e místicaenvolve exactamente o mesmo tipo de pensa-mentos, mas na sua forma invertida. Assimcomo os seus oponentes instrumentais, estesecologistas assumem que a humanidade é do-minada pela natureza, seja sob a forma de «leisnaturais» ou de uma inefável «sabedoria daterra» que guiam o comportamento humano.Mas enquanto os seus adversários defendema necessidade de conseguir uma «rendição»da natureza a uma humanidade activa-agres-siva e «conquistadora», os ecologistas anti--humanistas e místicos defendem a «rendição»de uma humanidade passiva-receptiva a umanatureza «conquistadora». Por muito que es-tes dois pontos de vista se diferenciem no seupaleio e nas suas lamentações, a dominaçãopermanece a noção subjacente em ambos: ummundo natural concebido como dirigente, sejapara ser controlado ou obedecido.

A ecologia social confronta esta armadi-lha dramaticamente, reexaminando o próprioconceito de dominação, seja na natureza ouna sociedade ou sob a forma de lei natural ousocial. Aquilo a que habitualmente chamamosdominação na natureza é uma projecção hu-mana dos sistemas altamente organizados decomando e obediência «social» para altamen-te idiossincráticas, individuais e assimétricasformas de comportamento, frequentementesubtis, de coerção em comunidades animais.Simplificando, os animais não «dominam»

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outros animais do mesmo modo que a elitehumana domina e explora um grupo socialoprimido. Nem «governam» através de formassistemáticas de violência, como o fazem aselites sociais. Entre os macacos, por exemplo,existe pouca ou nenhuma coerção, mas tão sóesporádicas formas de comportamento domi-nante. Os gibões e os orangotangos são notá-veis pelo seu comportamento pacífico para osmembros da sua própria espécie. Os gorilassão frequentemente também pacíficos, apesarde poderem assumir um «alto status», como odos machos maduros e fisicamente mais for-tes em relação ao «baixo status» dos mais jo-vens e fracos. Os «machos dominantes» entreos chimpanzés não ocupam posições de «sta-tus» muito definidas naquilo que são os seusgrupos flutuantes; o «status» que adquiremacaba por dever-se a uma variedade de causas.

Pode-se saltar de uma espécie animal paraoutra, acabando por encontrar várias situaçõesde diferenciação e assimetria que levam a pro-curar «altos» e «baixos status» individuais.Esta pesquisa vai-se tornando sem sentido, noentanto, quando termos como «status» sãousados tão flexivelmente que permitem a in-clusão de meras diferenças de comportamen-to e de funções dentro do grupo, em vez deacções coercivas.

O mesmo se pode dizer em relação ao ter-mo «hierarquia». Seja na sua origem seja noseu sentido estrito, este termo é fortementesocial, não zoológico. Termo grego, origi-nalmente usado para designar diferentes ní-veis de divindades e, mais tarde, do próprioclero (caracteristicamente, Hierapolis era umaantiga cidade frígia, na Ásia Menor, que foi ocentro do culto da deusa-mãe), a palavra foi-se expandindo para recobrir tudo, desde ascolmeias até ao efeito da erosão de uma cor-rente de água sobre o leito de pedras, entendi-

do como um esgotamento e um «domínio»desse leito. As cuidadosas mães elefantesforam consideradas «matriarcas» e os atentosmacacos machos, que mostram uma grandedose de coragem na defesa da sua comunidade,adquirindo com isso alguns «privilégios», sãogeralmente designados como «patriarcas». Aausência de um sistema organizado degovernação nestas comunidades animais —tão comum nas comunidades humanas hierar-quizadas e sujeito a mudanças institucionaisradicais, incluindo revoluções populares — élargamente ignorado.

Mais uma vez, as diferentes funções queas presumíveis hierarquias animais desempe-nhariam, isto é, as causas assimétricas que co-locam um indivíduo num «estatuto alfa» e osoutros em estatutos inferiores, são entendidasonde, simplesmente, as notamos. Poder-se-ia,pelo mesmo princípio, colocar as maioressequóias gigantes num «status» superior emrelação às mais pequenas, ou então encará-lascomo a elite da floresta, hierarquicamente do-minantes em relação aos «submissos» carva-lhos, os quais, só para complicar, até são maisavançados nas escalas evolutivas. A tendên-cia para mecanicamente projectarmos catego-rias sociais no mundo natural é tão irracionalcomo a tentativa de projectarmos conceitosbiológicos na geologia. Os minerais não se«reproduzem» como o fazem os seres vivos.As estalactites e as estalagmites, nas cavernas,vão crescendo ao longo dos tempos mas ne-nhum sentido do seu crescimento pode mesmoremotamente corresponder ao crescimento dosseres vivos. Considerar algumas semelhançassuperficiais, por vezes obtidas por estranhasmaneiras, e agrupá-las em identidades partilha-das, é como falar no «metabolismo» das ro-chas ou na «moralidade» dos genes.

Isto põe a questão das repetidas tentativasde encontrar traços éticos e sociais no mundo

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natural, que será apenas potencialmente éticotanto quanto pode constituir uma base parauma ética social objectiva. Sim, certamenteque a coerção existe na natureza, mas nestatambém existem a dor e o sofrimento. No en-tanto, a crueldade não existe. As intenções eas vontades dos animais são demasiado limi-tadas para produzir uma ética de bem e de mal,de bondade e crueldade. A evidência de pen-samento conceptual e inferente é muito limi-tada entre os animais, excepto nos primatas,nos cetáceos, nos elefantes e talvez nunsquantos outros mamíferos. Mesmo entre osmais inteligentes animais os limites do seupensamento são imensos comparativamente àsextraordinárias capacidades dos seres huma-nos socializados. Podemos mesmo admitir quesomos ainda pouco humanos actualmente, emfunção do nosso ainda desconhecido potenci-al para sermos mais criativos, atenciosos eracionais. A nossa sociedade dominante servemais para inibir do que para realizar o nossopotencial humano. Ainda nos falta imagina-ção para saber até onde as nossas melhorescaracterísticas se podem expandir, com umaadministração dos nossos assuntos mais éti-ca, ecológica e racional.

Em contraste, o mundo não-humano conhe-cido parece ter atingido limites visíveis paraa sua capacidade de sobrevivência às mudan-ças ambientais. Se a mera adaptação às alte-rações no ambiente é entendida como ocritério para o êxito evolutivo (como muitosbiólogos entendem), então os insectos devemser colocados num lugar mais elevado de de-senvolvimento do que qualquer mamífero. Noentanto, eles não seriam capazes de produziruma avaliação intelectual de si próprios tãoimponente como a «abelha rainha» poderiater-se, mesmo remotamente, tivesse consciên-cia do seu «real» estatuto — devo acrescen-tar, um estatuto que apenas os humanos (que

sofreram a dominação social de estúpidos,cruéis e ineptos reis e rainhas) seriam capa-zes de atribuir a um insecto inconsciente.

Nenhuma destas questões pretendemmetafisicamente opor a natureza à sociedade,ou a sociedade à natureza. Pelo contrário, asua intenção é defender que o que une a soci-edade à natureza numa contínua e gradativaevolução é a notável extensão pela qual osseres humanos, vivendo numa sociedade ra-cional e ecologicamente orientada, poderiamenvolver a criatividade da natureza — distin-guindo-se isto de um critério de êxitoevolutivo puramente adaptativo. As grandesrealizações do pensamento humano, a arte, aciência e tecnologia, não servem apenas paramonumentalizar a cultura, servem igualmen-te para monumentalizar a própria evoluçãonatural. Fornecem-nos provas heróicas de quea espécie humana é uma forma de vida de san-gue quente, excitantemente versátil e aguda-mente inteligente — e não um insecto desangue frio, geneticamente programado e des-tituído de mente —, o que demonstra os gran-des poderes da criatividade natural.

As formas de vida que criam e consciente-mente alteram o seu meio ambiente, deseja-velmente no sentido de o tornar mais racionale ecológico, representam uma vasta e indefi-nida extensão da natureza para um fascinan-te, e talvez ilimitado, campo de evolução, noqual nenhuma espécie de insectos alguma vezterá lugar — a evolução de uma natureza to-talmente autoconsciente. Se isto é humanismo,ou mais precisamente humanismo ecológico,a corrente produção de anti-humanistas e demisantropos é bem-vinda para fazer parte dele.

A natureza, por sua vez, não é apenas umcenário que admiremos através duma janela— uma vista congelada numa paisagem ou

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num panorama estáticos. Tal paisagem de ima-gens da natureza poderá ser espiritualmenteestimulante, mas é ecologicamente engana-dora. Parada no tempo e no espaço, esta ima-gem faz com que nos seja mais fácil esquecerque a natureza não é uma visão estática domundo natural mas uma longa e cumulativahistória do desenvolvimento natural. Esta his-tória envolve a evolução inorgânica tantoquanto a evolução orgânica. Onde quer queestejamos, num campo, numa floresta ou notopo de uma montanha, os nossos pés assen-tam em eras de desenvolvimento, sejam osestratos geológicos, fósseis de vidas há muitoextintas, a decomposição das recentementemortas ou a calma excitação de novas vidas aemergir. A natureza não é uma «pessoa», uma«mãe carinhosa» nem, na crua linguagemmaterialista do século passado, «matéria emovimento». Nem sequer é um mero proces-so, que envolve ciclos repetitivos como amudança das estações ou as subidas e desci-das das actividades metabólicas. Melhor, a

história natural é uma evolução cumulativaem direcção a sempre mais variadas, diferen-ciadas e complexas formas e relações.

Este desenvolvimento evolucionário decrescente variedade de seres é também umdesenvolvimento que contém possibilidadeslatentes excitantes. Através da variedade, di-ferenciação e complexidade, a natureza, nodecurso do seu próprio desenvolvimento, abrenovas direcções para ainda mais ousadas ealternativas linhas de evolução natural. Nograu em que os animais se tornam comple-xos, autoconscientes e crescentemente inteli-gentes, começam a fazer escolhas elementaresque influenciam a sua própria evolução. Sãocada vez menos passivos objectos de selec-ção natural e cada vez mais activos sujeitosdo seu próprio desenvolvimento.

A lebre castanha que muda para branca eque vê um terreno coberto onde se podecamuflar está activa na procura da sua sobrevi-

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vência, não apenas a adaptar-se para sobrevi-ver. Não se limita apenas de se ser seleccio-nado pelo ambiente: é seleccionando o seupróprio ambiente e fazendo escolhas que ex-pressam, em alguma medida, subjectividadee arbítrio.

Quanto maior for a variedade dos habitatsque forem surgindo ao longo do processo evo-lucionário, mais serão as formas de vida. Par-ticularizando com o complexo neurológico, écomo desempenhar um papel activo e arbitralna sua própria preservação. Entendendo quea evolução natural segue este caminho dodesenvolvimento neurológico, origina vidasque exercem uma ampla latitude de escolha euma nascente forma de liberdade no seuautodesenvolvimento.

Considerando este conceito de naturezaenquanto história cumulativa de níveis cadavez mais diferenciados de organização demateriais (especialmente formas de vida) e decrescente subjectividade, a ecologia socialestabelece a base para uma total compreensãodo lugar da humanidade e da sociedade naevolução natural. A história natural não é umahistória de vale-tudo e de salve-se quem puder.É assinalada por tendências, direcções e, pelomenos no que aos humanos diz respeito,propósitos conscientes. Os seres humanos eos mundos sociais que criaram, podem abrirum notável horizonte ao desenvolvimento domundo natural — um horizonte marcado pelaconsciência, pela reflexão e por uma liberdadede escolha e de capacidade criativa semprecedentes. Os factores que têm reduzidomuitas formas de vida a papéis funda-mentalmente adaptativos na mudança am-biental estão a ser substituídos por umacapacidade de adaptação consciente dosambientes às formas de vida existentes eemergentes.

A adaptação, na verdade, aumenta os ca-minhos para a criatividade, e a aparentemen-te cruel acção das leis naturais, os de umamaior liberdade. Aquilo a que anteriores ge-rações chamavam «natureza cega», para sig-nificar a ausência de qualquer sentido moralna natureza, transformou-se numa «naturezalivre», uma natureza que lentamente vai en-contrando uma voz e um sentido para aliviaras inúteis atribulações da vida, em todas asespécies, numa humanidade altamente cons-ciente e numa sociedade ecológica. O «prin-cípio de Noé» de preservação de todas asformas de vida existentes, como um objecti-vo em si mesmo, um princípio avançado peloautor anti-humanista D. Ehrenfeld, pouco sig-nifica sem o pressuposto, em última instân-cia, da existência de um «Noé» — ou seja, deuma vida consciente chamada humanidadeque possa salvar outras vidas que a próprianatureza extinguiria, nas glaciações, secagemda terra, ou em colisões cósmicas comasteróides. Os grandes ursos, os lobos, ospumas e tantos outros não estão a salvo daextinção apenas porque se encontram ao cui-dado de uma putativa «Mãe Natureza». Se forverdadeira a teoria de que os grandes répteisdo Mesozóico se extinguiram por causa dasmudanças climáticas originadas pela colisãode um asteróide com a Terra, a sobrevivênciados mamíferos actuais pode bem não ser maisdo que precária, face a uma outra qualquercatástrofe natural desprovida de sentido, amenos que exista uma consciência, ecologi-camente orientada, que desenvolva os meiostecnológicos que os salvem.

A questão, portanto, não é a de que de qual-quer modo a evolução social se firma por opo-sição à evolução natural. É como é que aevolução social pode situar-se na evolução na-tural e porque é que tem sido arremessada —escusadamente, como argumentei — contra a

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evolução natural, em detrimento da vida comoum todo. A capacidade de ser racional e livrenão basta para assegurar que essa capacidadese concretize. Se a evolução social é vista comoa potencialidade para a expansão dos horizon-tes da evolução natural até linhas criativas semprecedentes, e os seres humanos como apotencialidade de a natureza se tornar autocons-ciente e livre, então a questão é porque é queestas potencialidades têm sido desviadas ecomo é que podem vir a concretizar-se.

As rupturas entre a evolução natural e aevolução social, a vida humana e a não huma-na, uma natureza parcimoniosa e uma huma-nidade devoradora, são sempre perversas e malintencionadas quando são vistas como inevi-tabilidades. Não o é menos a tentativareducionista de dissolver o social no natural,caindo a cultura dentro da natureza numa orgiade irracionalidade, teísmo, misticismo, paraequiparar o humano a qualquer mera anima-lidade, ou para impor uma constrangedora «leinatural» a uma obediente sociedade humana.

Por muito que tenham tornado o homemum estranho na natureza, as mudanças soci-ais fizeram muito mais o homem um estranhodentro do seu próprio mundo social, com adominação dos jovens pelos mais velhos, dasmulheres pelos homens, dos homens por ou-tros homens. Hoje, como durante tantos sécu-los, continua a existir opressão, existemopressores que literalmente possuem a socie-dade e outros que são por eles possuídos. Atéque a sociedade possa ser reivindicada poruma humanidade unida, que queira usar a suasabedoria colectiva, as suas realizações cul-turais, as inovações tecnológicas, o conheci-mento científico e a sua inata criatividade emseu próprio benefício e para o do mundo na-tural, todos os problemas ecológicos continu-arão a ter as suas raízes nos problemas sociais.

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Utopia 754

A Comunidad del Sur, fundada no Uruguai em Agosto de 1955,recriada na Suécia e de novo na América Latina, é uma das mais

conhecidas experiências modernas de vida alternativa e autogestio-nária. Em Julho do ano passado, José Maria, da UTOPIA, visitou aComunidad e ali conversou com três dos companheiros presentes,

Marcos, Ruben e Silvana; dessa conversa e desse testemunho seextraiu a entrevista que aqui se apresenta.

As Cidades Não São BoasPara Uma Vida Humana

Encontro com a Comunidad del Sur

teriores; a experiência das colectividades emEspanha era para nós uma referência mas tam-bém muitas outras experiências no mundo,como a da Comunidade Cristiana, muito pró-xima de nós, que foi bastante marcada porvalores libertários na sua organização internae na sua forma de encarar a vida.

Quantas pessoas havia inicialmente?Esta era uma etapa um pouco confusa. Éra-

mos bastantes. A comunidade surgia-noscomo uma necessidade numa altura em quemilitávamos sobretudo no movimento estu-dantil, éramos jovens. Eram muitos os quequestionavam um tipo de aprendizagem pro-fissional, o profissionalismo a apoderar-se doconhecimento, para explorar o conhecimen-to, a apropriação privada dos saberes; nas di-versas áreas que se reuniam começava uma

Como começou este projecto daComunidad?

Tudo começou nos anos 50, num momen-to, soubemo-lo depois, em que no Uruguai seiniciava uma grande crise. Face ao desapare-cimento de muitas formas tradicionais de or-ganização social começaram a surgir muitasiniciativas autogestionárias, nas artes plásti-cas, no teatro, nas organizações de bairro; aComunidad surgiu como uma tentativa de sairde muitos condicionalismos e passar a criaruma forma de vida alternativa, tanto no traba-lho como na educação, no consumo, umcooperativismo integral. Isso significou, numaaltura em que eram quase todos jovens estu-dantes, aprender a gerir uma empresa em ter-mos económicos e a organizar os váriosaspectos da vida numa perspectiva libertária,que tinha em conta algumas experiências an-

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crítica, para quê ser médico, para quê ser eco-nomista ou arquitecto, se todos estavam des-tinados a servir uma sociedade que era anegação daquilo que queriam. Isso foi um mo-mento importante.

Conforme íamos tentando levar tudo istoà prática, o grupo foi-se reduzindo. Ainda quehouvesse uma consciência intelectual, nemtoda a gente estava disposta a imaginar-se semo privilégio de ser estudante, sobretudo emtermos profissionais.

Mais tarde a Comunidad viria a mudar-separa a Suécia; quando foi isso e comoaconteceu?

O que aconteceu foi que o processo queoriginou a Comunidad foi significando umquestionamento de todo o sistema, e tambémuma certa articulação de todos os movimentosalternativos que surgiram no Uruguai; era umaespécie de condensação de tudo isso porqueeram mais ou menos as mesmas pessoas, masera um movimento complexo, polivalente. Porexemplo, estávamos na Comunidad mastambém em grupos de teatro, em associaçõesde moradores, de artistas plásticos, emorganizações sindicais, e nessa época houveuma criatividade muito grande em todos estesaspectos, a qual foi ganhando peso em toda asociedade.

Penso que isso culminou numa confronta-ção muito forte, a nível ideológico mas tam-bém prático, terminou numa ditadura militar.Fazer parar todos esses processos implicouuma acção autoritária militar, e é isso que ex-plica o exílio. Isto começa nos finais dos anos60 e culmina em 1973, com a implantação daditadura, mas a repressão já vinha de antes. Éuma luta entre a criatividade autogestionáriae as estruturas autoritárias capitalistas.

Primeiro fomos para o Peru. Entendíamosque devíamos continuar na América Latina,numa responsabilidade com os «pobres domundo», mas não podíamos ficar aí, a repressãoera igual, os exércitos e as polícias estavamcoordenados. Em Lima começámos a terdificuldades crescentes e restou-nos, comoúltima hipótese, procurar um país que nosrecebesse, e nesse momento a ajuda veio daSuécia.

Nós não tínhamos decidido ir para lá, mastambém não foi o «destino» que o determi-nou: a Suécia precisava de emigrantes para oseu crescimento interno e por isso mostravamais receptividade.

Na Suécia reconstituíram a Comunidadcom outras pessoas do Uruguai?

Fomos para lá como uma comunidade, oexílio nunca foi individual, embora aconte-

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cessem muitas mudanças em todo este pro-cesso. Ao sairmos daqui muitas pessoas sesepararam, ainda durante a repressão uns op-taram pela luta armada, outros por se afastar,também por medo; uma ditadura é feita parate reprimir e consegue-o também pelo medo.O exílio foi uma consequência da repressão,e em cada etapa se perdiam companheiros.

Mas na Suécia, quando reconstituíram aComunidad, com que actividades o fizeram?

As mesmas de antes, o que sabíamos fazerera trabalhar em comum, organizar a vida emcomum, fazíamos algumas das actividades tí-picas da Comunidad nessa época: artesgráficas, actividades sociais. Como alguns denós tinham estudado psicologia social,psicodrama, etc., ou tinham prática de traba-lho de grupos, encontrávamos um terreno fér-til em todos os emigrantes latino-americanos,que eram milhares. Realizávamos muitas ac-tividades, encontros, seminários, cursos.

Tivemos também bastante apoio das orga-nizações suecas, sobretudo da SAC, anarco-sindicalista, que nos ajudou permitindo-nos autilização de uma pequena impressora, e de-pois tivemos a sorte de uma doação, de umprofessor sueco que tinha feito a sua tese noUruguai e que nos doou uma máquina de im-primir, e isso mudou tudo.

A revista Comunidad, por exemplo, come-çou porque tínhamos muitas relações interna-cionais e dava-nos muito trabalho escrevercartas a cada um, por isso pensámos fazer uma«carta geral». Com essa pequena máquina daSAC fizemos o primeiro número, uma folhitacom um gráfico, um desenho, não era umacarta muito ortodoxa mas era o que sabíamosfazer. Tivemos tantas respostas que no mêsseguinte já fizemos oito páginas, e quandoreparámos tínhamos uma revista, não foi coi-sa que decidíssemos, fez-se sozinha e lenta-mente foi ganhando importância.

Depois acabaram por voltar ao Uruguai.Porquê? Por ter acabado a ditadura?

Bom, uma das razões foi, de facto, o fimda ditadura mas outra foi aquilo que definimoscomo uma responsabilidade política. Deví-amos estar onde houvesse maior fertilidadepara as nossas ideias, e pensamos que era naAmérica Latina.

Na Suécia há um individualismo exacer-bado. O sistema social-democrata dá-te tantasegurança que a alternativa de criar formasde trabalho autogestionárias não aparece comomuito entusiasmante, não é uma necessidadegeneralizada.

Embora houvesse, em Estocolmo, compa-nheiros da Colômbia, do Peru, da Argentina,as raízes históricas da Comunidad eram noUruguai, o que nos abria mais perspectivas.Fomos para Montevideu, mas fizémo-lo comoum pé selvagem à procura das raízes onde nosenxertarmos, a perspectiva era de uma comu-nidade em meio rural, pois parece-nos que ascidades não são os ecossistemas adequadospara uma vida humana rica e ainda menosparticipativa e libertária. Uma cidade grandesó pode ser gerida autoritariamente, por umexército que nela ponha ordem, ou então poruma organização entre bairros.

Pensámos que uma experiência enriquece-dora tinha de ser feita num meio novo, que erapreciso criar o que chamámos ecocomunidades.

Isto começou em 1985, cumpriam-se trintaanos da Comunidad e com esse pretextorealizámos aqui as primeiras actividadesabertas, conversas e debates, geralmente nauniversidade, sobre vários temas, autogestão,ecologia, feminismo, e assim começou-se aformar um novo núcleo de gente que fun-cionou também como apoio para os quevoltavam da Suécia.

Portanto em 1985 reconstitui-se a Comu-nidad, com as pessoas que voltaram do

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exílio mais algumas de Montevideu; reali-zaram novas actividades ou continuaramcom as mesmas?

O processo não foi assim tão radical. En-tre 85 e 87 foi-se formando o grupo e final-mente trouxemos as máquinas que estavam naSuécia e instalámos de novo a gráfica, numlocal a que chamamos casencontro, uma pa-lavra que inventámos. Nesta casencontro fun-cionam tambémoficinas de ce-râmica, de mú-sica, etc. Algumtempo depoiscomprámos en-tão uma quintae passámos ater uma activi-dade editorial euma actividadeprodutiva.

Este grupoinicial assumiua importante tarefa de conseguir reproduzirtudo o que ganhava e recebia, para poder darorigem à nova Comunidad. E a actividadeeditorial nem sempre era rentável, era mantidamais por razões de difusão, de propaganda,do que por razões económicas.

Com a compra da quinta, onde tiveram queconstruir tudo, das casas às infra-estrutu-ras, dedicaram-se também à agricultura,não foi? Como se organizaram para coorde-nar todas as actividades, a gráfica, as ofici-nas autogestionárias, a actividade agrícola?

O ponto de partida é o federalismo, porisso qualquer actividade tem ao mesmo tem-po um sentido autónomo e uma integraçãogeral solidária. Toda a parte de serviços, deprodução agrícola, de produção industrial eintelectual forma uma unidade administradapela totalidade da assembleia da comunida-

de, mas cada sector define autonomamente osseus procedimentos, incluindo os seus inves-timentos, ainda que tenha de atender àestrutura comum, onde são definidas as prio-ridades e os orçamentos.

Ao nível das pessoas, a ideia é que todosse preparem para uma rotação de tarefas, evi-tando o estabelecimento de especializaçõesprofissionais, seja em termos políticos seja

impedindo acriação de de-pendências, dotrabalho manu-al em relaçãoaos intelectu-ais, das mulhe-res em relaçãoaos homens,dos serviços àprodução, oque não é fácilde conseguir,há que criar es-

tas raízes, não são comportamentos que sur-jam espontaneamente.

Por outro lado, há também que conseguirum funcionamento sustentável e há que con-seguir criar uma espécie de consciência ur-bano-rural, não sermos 100% camponesesnem 100% metropolitanos, sendo, isso sim, auma fusão de uma cultura urbano-rural.

Portanto não existe uma divisão do traba-lho, há rotatividade de funções e umaorganização autogestionária e federada,uma integração das diferentes actividades,as decisões são tomadas em assembleia.Quais sãos as áreas actualmente emfuncionamento?

Temos a gráfica, os serviços comuns, deeducação e outros, a editora, as actividadesprodutivas, a quinta. É preciso ver que umacoisa é a autonomia e outra a independência,

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temos estruturas integradas em que cada sec-tor é autónomo mas não independente, a res-ponsabilidade social é partilhada por todos.

Isto decorre dum conceito básico, o de quea comunidade gira à volta de uma ideia cen-tral que é a da paternidade partilhada. Nóssomos responsáveis pela reprodução culturalque se dá à volta dos nossos filhos; a ideia depaternidade partilhada não se refere só aos pla-nos biológicos ou interpessoais, também so-mos pais, ou criadores, desta concepção devida, das actividades desenvolvidas nos vári-os sectores, etc. Daí a força da participação:cada um participa porque faz parte, e faz par-te como criador, não apenas como actor numaobra. É a isto que chamamos paternidade par-tilhada.

As pessoas, quando entram ou saem de umprojecto destes, como colocam, por exem-plo, o problema do dinheiro? E como se põea questão das relações com o meio envol-vente, com as contingências negativas doEstado, do mercado… Que problemas po-dem ser estes?

Pensamos que podemos criar uma relaçãoem que jovens, mulheres e homens estejammais ligados à produção agrícola ou àindustrial e, tendo todos eles as diferentesnecessidades e exigências que tiverem,aprendam a resolver essas diferenças emcomum; isso é entendido como uma forma deenriquecimento, não uma limitação.

Este é um primeiro nível de enfrentamentodesses problemas, que são universais e eternos.

Em relação às entradas e saídas, isso tam-bém origina dificuldades, porque o processode integração não consiste apenas em integrarno funcionamento comunitário, porque as pes-soas que chegam vêm carregadas com a suahistória, os seus modelos, os seus preconcei-tos, modificando permanentemente a totalida-de que encontram, visto sermos um grupo

aberto. Isto também nunca está totalmente re-solvido, porque ou há uma grande invasão outemos tendência para nos mostrarmos muitodefensivos. Sobretudo tão perto da cidade acontaminação é enorme, porque há tendênciapara ir e vir, ir e vir, é só apanhar um autocarroe já está.

Não é como na Revolução Espanhola, emque tinha que se combater, por isso quemdecidia juntar-se a uma milícia tomava umadecisão muito importante e passava por umaprovação, que era viver numa situaçãototalmente diferente, aqui pode ficar numa«meia-água», ter uma atitude reformista emrelação à sua própria vida.

Quanto ao dinheiro, ao princípio não ha-via qualquer problema. Agora, quem nasce oucomeça a viver na comunidade recebe já uma«herança», que é a acumulação que a própriacomunidade tornou possível, por isso a cons-ciência comum também se enfraqueceu. Aspessoas são socializadas para valorizar ape-nas aquilo que é propriedade sua — como de-fende o liberalismo — mas nós pensamos queisso não faz parte da condição humana, é umaconstrução historicamente condicionada, por-tanto a nossa intenção é modificar essa rela-ção com a natureza, com as coisas, pensar noseu valor sem ser só em termos económicos.

Mas como actuam quando uma actividadenão é rentável, quando dá prejuízo?

O modelo de desenvolvimento dominan-te, com o Mercosul e tudo isso, também sefaz sentir nas nossas actividades, como a cres-cente tecnologia em tarefas que dantes ocu-pavam muita gente ou a baixa dos preçosagrícolas, por exemplo, o que requer muitacriatividade e formas de comercialização di-ferentes, caso contrário acabas por morrer.

Estamos numa crise sem conseguirmos terrespostas claras para ela. Não sabemos, mes-mo, se existem essas respostas claras, já que

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este é um sistema perverso. A sociedade uru-guaia era tradicionalmente bastante equilibra-da, sem grandes diferenças de classes, agoraestá bastante polarizada, e muita gente estácondenada a viver mal, e também aí estare-mos se não reagirmos.

Na actividade agrícola o que fazem, equantas pessoas estão aí ligadas?

Nessa parte estão basicamente três pesso-as, trabalhamos 14 hectares, e a ideia é garan-tir principalmente o sustento interno do grupo,mas também uma componente de estudo e ex-perimentação de uma agricultura orgânica ealternativa, com recurso à energia solar, etc.

Temos ligações com escolas agrícolas, quevêm passar dias connosco, também como al-ternativa à educação convencional em relaçãoà chamada «revolução verde», dos químicos,dos tóxicos, que se tornou dominante a seguirà Segunda Guerra Mundial, eles não sabiam oque fazer àquelas fábricas todas, não era? Aquihá uma agricultura mais de acordo com o meioambiente e a saúde mental e pessoal.

E como funcionam os serviços internoscomuns, a comida, a roupa, o acom-

panhamento das crianças?Os serviços vão-se organizando de formas

diferentes, geralmente conforme o número depessoas. Agora somos 14 adultos e 6 crian-ças. Temos uma cozinha comum e grupos quese encarregam das diversas tarefas.

A educação é uma área específica, hápessoas que acompanham as crianças, naescola, na saúde, na higiene, mas a respon-sabilidade de educação é comum, temos umamatriz social como meio adequado para quetodos tenham aquilo de que necessitam, físicae intelectualmente.

Uma das questões fundamentais é aaprendizagem da autogestão, as crianças têm

um local que é delas, a guarida, como têmos animais para se abrigar, achamos que émais poético do que guardaria, e é aí, napassagem do pré-escolar para o escolar, queas crianças têm o seu próprio local e a suavida, convivem na sua própria casa, não nados seus pais, embora estes estejam maispróximos do que na maior parte das casas dacidade, e têm tudo em comum. Depois, apartir da adolescência, passam a ter o seupróprio quarto, mas com autonomia e co-responsabilidades crescentes.

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E quanto à parte da gráfica e do trabalhoeditorial?

A gráfica, as actividades editoriais e cul-turais estão todas na casencontro, onde há umsalão comum, um café onde também se reali-zam encontros, etc., e cada actividade tem oseu grupo.

Na actividade editorial cada publicação éautónoma, algumas são de grupos em quealguns de nós participam, assim como outraspessoas participam nas nossas actividades,como por exemplo a Redes, que é uma organi-zação de ecologia social que trabalha na aná-lise da problemática ambiental mas tambémna organização de campanhas e na procura desoluções para os problemas; alguns de nós par-ticipam nessa organização, que por sua vezestá ligada a outras, regionais e mundiais.

É muito válida a ideia de pensar globalmentee agir localmente, mas também o é a de agirglobalmente, ou regionalmente, ou seja lá nodiâmetro que for necessário, e isso tanto podeexigir organizações de bairro ou de comunida-de como outras de âmbito internacional.

Quais são as vossas próximas iniciativas, eque dificuldades terão de enfrentar?

Queremos fazer da quinta um centro de es-tudo e difusão, ainda não estão aproveitadastodas as suas potencialidades, por exemplopara o ecoturismo, um turismo mais respon-sável, não tradicional.

Estamos a tratar da comercialização de pro-dutos orgânicos, ecológicos, em conjunto comoutros produtores, já se começou a tratar disto,mas implica a criação de infra-estruturas, deum posto de venda que também funcione comolocal de encontro, com café, biblioteca…

Há também o trabalho militante, numapequena organização, o ecobairro, orga-nizando formas autogestionárias de luta numazona como esta em que estamos, pobre,marginal, com problemas de todo o género,

desemprego. Estamos a trabalhar em váriosbairros, hoje de manhã, por exemplo, estivenum local onde se está a construir um salãocomunal, pelos próprios habitantes, paraencontros, apoio às crianças, refeitório, umapequena policlínica, e nisso trabalhamos comoqualquer outro vizinho.

Estamos a tentar uma espécie de federa-ção, um grupo específico no âmbito domunicipalismo libertário participativo, paraactuar em áreas como a saúde, a educação, ahabitação, os tempos livres. Temos a impres-são de que nestas circunstâncias muito críti-cas as soluções autogestionárias começam aser uma necessidade, ainda mesmo quando, eparadoxalmente, as pessoas não estejam pre-paradas para isso e sejam muito individualis-tas, incluindo os mais pobres.

No entanto, ou aparecem soluções partici-padas, autogestionárias, de tipo cooperativo,ou a crise vai ser muito mais dura.

Em todas estas actividades têm uma rela-ção teórica com a ecologia social, é a vossateoria de base?

A ecologia social recolheu as ideias maisimportantes do anarquismo e colocou-as numquadro ecológico que lhes dá ainda maissentido. Kropotkin, em Campos, Fábricas eOficinas, é um antecedente desta visão. Nomovimento ecologista há outras correntes maisintegradoras, mais estritamente ambientalistas.

Ainda em Estocolmo visitou-nos o MurrayBookchin, e também tivemos já a visita deoutros companheiros do Instituto de EcologiaSocial, com quem organizámos conferênciassobre estes temas.

O que aqui fazemos é fundamentalmenteproduzir autogestão, produzir relações soci-ais diferentes, desafiamos outros companhei-ros a realizar experiências como estas. Apesarde erros e desvios, há uma experiência feita eque se pode discutir e analisar.

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Aspectos do Anarquismo

ainda consideram) o «Factory» como ummodelo da nova sociedade.

PRODUTIVISMO SOCIALISTA

O pensamento anterior consubstancia-se narápida industrialização sob o capitalismo deEstado na União Soviética, que, embora justi-fique as suas acções pela necessidade de com-petir nos mercados mundiais, encontra umsuporte ideológico perfeito na (geralmente in-discutível) crença entre socialistas de que aindustrialização do mundo foi uma «necessi-dade histórica». Não é coincidência o facto deque algumas das destruições ambientais maisprofundas tenham sido feitas sob a bandeirado socialismo! Infelizmente, os anarquistas nãoficam isentos de terem tomado uma atitudepouco exigente face à «civilização» industrial.

Embora fosse pouco usual encontrar algu-ma glorificação absoluta da fábrica modernaentre anarquistas, inclusivamente da leitura deliteratura anarco-sindicalista, a impressão quefica é a de que a tecnologia não está acima decríticas e é, de forma perturbadora que peque-nas vidas têm lugar fora da fábrica. Os comu-nistas anarquistas não fizeram muito melhornesta matéria. Porquê? Obviamente, anarquis-tas e comunistas libertários são produtos doseu tempo e o nível de destruição ambiental,na época dos primeiros movimentos anarquis-tas, não era tão explícito como tem sido noperíodo pós II Guerra Mundial. Enquanto queos revolucionários argumentavam que o capi-

POLÍTICAS VERDES

Pode argumentar-se que a consequêncialógica do pensamento comunista libertáriosempre foi a criação de uma sociedade «ver-de» ao pressupor a necessidade da destruiçãodo capitalismo, o sistema que, como sabemos,tem de expandir-se ou morrer e que tem gera-do ideologias de consumismo e produtivismo.

Pensadores anarquistas e comunistaslibertários, nos primeiros dias do revolucio-nário movimento da classe trabalhadora, aocriticarem o sistema industrial «moderno» e asua tendência para transformar o trabalhadornuma componente da máquina, podem serencarados como proto-verdes. Contudo, seriaum exagero dizer que o movimento anarquis-ta inicial foi qualquer coisa como um movi-mento conscientemente «verde», apesar decontribuições críticas como as de EliséeReclus, William Morris, Edward Carpenter ePeter Kropotkin. Embora todos os escritoresanteriores tivessem feito trabalhos que con-têm implicações «verdes», ou pelo menos umsentimento «verde», no entanto, nenhum podeser rigorosamente considerado como pensa-dor sistematicamente «verde». O que pode serdito é que a visão comunista de pessoas comoMorris ou Kropotkin, de uma sociedade des-centralizada do trabalho integrado em ambi-entes humanizados, mantém um contrasterígido com muitos «socialistas» (começandocom alguns socialistas «utópicos» mascientificados por Marx) que consideravam (e

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talismo vinha destruindo o trabalhador e ocamponês, corpo e alma, não é tão óbvio queo capital estivesse no processo de destruiçãoda terra na qual se inseriam trabalhadores ecamponeses. Também não era previsível queo capital pudesse desenvolver a capacidadede aniquilar toda a vida no planeta no espaçode poucas semanas, ou ainda menos, com aajuda da cisão nuclear.

Os movimentos conscientemente «verdes»que correspondiam aos grandes movimentos detrabalhadores eram, em geral, místicos, muitasvezes, movimentos tipo «classe média» reac-cionários, por vezes fortemente malthusianose racistas, raramente se identificando com osexistentes movimentos sociais «progressistas».

A «REVOLUÇÃO» VERDE

Ainda hoje, o movimento verde reivindicater muito em comum com o «anarquismo». Deigual modo, alguns dos elementos mais refor-mistas no movimento verde, de quando emquando, sentem-se obrigados a fazer barulhoem relação à organização não hierárquica, àtomada de decisão «delegada» e sobre outrostemas historicamente identificados com as po-líticas anarquistas. Entre muitos dos activistasverdes orientados para a acção directa, o senti-mento «anarquista» é forte, se bem que, comalguma frequência, esteja desfocado, havendoalgum menosprezo pelas formas tradicionaisde política. Verifica-se também a alienação dofoco tradicional do anarquismo - a luta de clas-ses. Identifica-se muitas vezes a classe traba-lhadora com a «cultura da indústria» e,compreensivelmente, a noção de solidarieda-de de classe cai facilmente no esquecimento,por exemplo, pelos que protestam nas estradas(com frequência desempregados) cujo contac-to regular com os seus irmãos e irmãs de classese processa na forma de 25 libras à hora dealuguer como guardas de segurança!

ECOLOGIA SOCIAL

O próprio movimento anarquista tem sidoforçado a tomar explicitamente políticas ver-des para confrontar a tese do produtivismo epara discutir seriamente a natureza datecnologia. Talvez o primeiro escritor comu-nista libertário a levantar a questão da criseecológica e a sua solução tenha sido MurrayBookchin. De facto, Bookchin pode serconsiderado como estando entre os primeirosteóricos do moderno movimento ecológico,com livros como «O nosso ambiente sintéti-co» (1962) e «Crises nas nossas sociedades»(1965), constituindo o que mais tarde viria aser designado Ecologia Social, embora utili-zasse a crítica anarquista do poder hierárqui-co e as relações entre meios e fins como pontode partida.

Bookchin desenvolveu uma perspectivapolítica que teve um impacto considerável,particularmente, no movimento verde norteamericano. A sua popularidade entre os ver-des do Canadá e Estado Unidos tem sido re-forçada pelo seu argumento de que o foco«tradicional» da atenção revolucionária (quermarxista, quer anarco-sindicalista ou comu-nista anarquista), a luta de classe dos traba-lhadores, não é assim tão central para oprojecto revolucionário. A sua crença de quea chave da revolução social permanece nodesenvolvimento de estilos de vida opostos enos «novos» movimentos sociais (feministas,anti-nuclear, anti-racismo, etc.) foi, recente-mente, objecto de revisão profunda.

O pensamento social ecológico, que vê opotencial numa tecnologia libertadora (libertados seus proprietários actuais) numa sociedadeecológico-libertária futura, entrou em conflitocom outra corrente verde que diz ser anarquis-ta mas que é «anarco-primitivista». A posi-ção anarco-primitivista defende, basicamente,que uma sociedade não hierárquica é impossí-

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vel enquanto outra forma de civilização indus-trial permanecer e por conseguinte, falar deuma tecnologia libertadora não tem sentido.

Muitos dos escritos do «movimento»anarco-primitivista (está longe de ser umaentidade homogénea) são um excelente con-trapeso a argumentos de perfil técnico vindosde várias fontes (incluindo a «revolucionária»)que esvaziam a sua perspectiva global de qual-quer dinâmica revolucionária, denunciandomesmo, muitas vezes, um confuso fanatismoidealista misantrópico que está em completodesacordo com o autêntico anarquismo.

PARA UM COMUNISMO LIBERTÁRIO

VERDE

Hoje, qualquer movimento revolucionárionão pode ignorar a necessidade de desenvol-ver uma perspectiva «verde». Mas isto nãosignifica apenas citar algumas ideias verdesamigáveis para uma concreta política verdecontrária. Implica um envolvimento activoentre forças anti-capitalistas no movimentoverde. Significa apresentar uma série de aná-lises anarquistas das actuais lutas que se efec-

tuam contra a destruição do ambiente. As lu-tas contra as estradas, para dar um exemplo,são implicitamente lutas de classes comodesafios não propriamente à política gover-namental actual, mas antes à própria lógicacapitalista, a lógica (e necessidade!) de ex-pansão. De igual forma, quando os verdes fa-lam sobre o «crescimento» zero, anarquistase comunistas libertários devem apontar expli-citamente a natureza comunista desta ideia.Igualmente, estes últimos devem tentar per-ceber quais são as implicações das suas polí-ticas para o ambiente (em sentido lato).

Na verdade, uma dinâmica surge quer daslimitações da política tradicional (limitaçõesque de forma crescente se expõem cada vezmais) quer do mundo e seus habitantes face àescolha de uma nova sociedade ou a sua lentaaniquilação.

Se a escolha histórica, no passado, era en-tre socialismo ou barbárie, agora, é entre co-munismo libertário verde ou uma mortebárbara nas nuvens de fumos tóxicos.

Tradução de artigo do ORGANISE! (Verão de1996, n.º 43), por Guadalupe Subtil

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6.Despedi-me do Pinto Gonçalves de Montalvão Sapador diante

da entrada de sua casa. Eram 1.45. Estávamos ambos cansadosmas eu não conseguia dormir. A cama só serviria para dar voltas emais voltas a pensar na proliferação de máscaras e para rever as quetinha observado e que, nessa noite, em cada minuto que passavavinham como flechas à memória. Cinco carros de patrulhaestacionavam na Praça do Cio. O brilho dos seus holofotes banhavamintermitentemente o local com uma luz néon violeta. Uma jovemfuncionária da patrulha D.C. fez-me parar.

«É morador na área?», «Sou o Uno Libero, corrector bolsista eestou fixado na Avenida Beija a Flor nº7, piso 13, porta 31».

Deixou-me passar e acenando para um colega, disse-me:«Na terceira transversal vire à esquerda». Segui pacientemente

até lá e fui em frente. Sabia perfeitamente que espécie de zona era oCio, cheio de prostituição, de drogados, de empresários, de turistasde ocasião. Notava-se sempre um cheiro quente, húmido, fétido. Umcheiro animal, morno e escuro. Ali, dir-se-ia estarmos num quartofechado sem aragem. Haviam implantado câmaras de filmar, umcomputador e um centro de electrofisiologia para controlar a situação.

Fui em frente ao acaso. Era raro passear àquela hora e os meuspassos conduziram-me para a beira do lago minúsculo do Jardim doPincel. Fumei pelo cachimbo Tarahumara até acabar com o tabacoda caixa de Pandora que, para o conseguir, abri por sete vezes.Aumentou o poder de observação e provocou total desorientação nasensação do tempo transcorrido. Eram 5.55. Entrei em casa e fiqueisentado na sala do holómetro olhando as projecções da programaçãotelemática.

A Saza tinha deixado uma mensagem no holo-mail , aparecendoa andar de um lado para o outro no quarto dela com o nascer do Solentrando pela janela. Com ele, o céu a tornar-se cor-de-rosa sobre aneblina castanha provocada pelo fumo da Megaloma D.C. . E aperguntar a razão por que não estava com ela. Escutei a mensagemporém, já só olhava para lá da janela do quarto dela onde da cidadeimensa continuava a cair o pó dos anos.

DE PARTE NENHUMA

José Tavares

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Utopia 7 65

Entro no quarto de banho. A água quente do chuveiro caiu naminha pele como uma bênção. Descontraí-me, iniciei o pranayama efechei os olhos.

E um prodígio maravilhoso se deu.Vi uma avalancha – milhares de toneladas de terra, rochas e

pedregulhos – precipitando-se por um declive de uma montanha earrancar a raiz de grandes árvores e desfigurar tudo o que encontrouà sua frente. Começou pelo desabamento de um punhado de terra quese encontrava por debaixo de uma pedra situada no cimo da montanhae delicadamente equilibrada. O suficiente para o seu peso mudar delugar desprendendo ainda mais a terra mole que estava debaixo.

Porque se teria desligado esse punhado de terra?

Com os olhos fechados a respirar o vapor da água quente quecaía no meu corpo, as imagens esvoaçavam dentro do cérebro.Parecendo abrirem-se diante de mim os portões que dão para o ventreda Terra.

Um leve escorrimento de água a derramar-se durante muitos anossobre o solo, até já não poder mais suster o mais ligeiro peso. Umaspoucas de gotas de água a caírem da pedra, suficientes para completaro que as chuvas tinham iniciado. Por isso a avalancha foi provocadapor uma só gota de água que caiu sobre aquela porção de terra.

Todas as grandes coisas têm por origem coisas pequenas.A força de uma avalancha, a corrente de um rio, ou o peso de

um qualquer indivíduo só podem ser medidos, considerados comouma unidade. Todavia, para descobrir o que os faz moverem-se, épreciso olhá-los como formados de um amplo número de partículasextremamente pequenas: de terra, de água, ou da indivisibilidade,segundo cada caso.

Na realidade, temos que ir mais além. As gotas de água e aspartículas de poeira são facilmente avaliadas à vista desarmada mas,para se saber da razão profunda pela qual a água leva consigo apoeira e as rochas, temos que recorrer ao microscópio. Através dele,podemos observar as moléculas de água da camada superior fazendoescala nas moléculas superficiais das partículas de poeira. Aqui serealiza um acto importante, onde as forças de adesão e de empurrão,de absorção e repulsão, operam.

Fechei o chuveiro e saí da banheira com uma toalha enrolada àminha volta. Desembaciei o espelho da casa de banho e desfiz a barba.O duche tinha-me retemperado da fadiga. Já não dormia há, pelomenos, 23 horas e não estava com sintomas da falta de sono. Opranayama e a sensação de que agora compreendia os pequenosfenómenos que se encontram por trás dos grandes eventosincutiram-me energia. O espelho embaciou-se outra vez. Abri a porta

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para deixar entrar ar fresco e enxuguei de novo o espelho com amão. A que horas é a minha entrevista com o Dr. EngenheiroCagatacus? Era hoje? E que dia é hoje? Ah!, já sei, é quinta-feira.

7.Ia começar a vestir-me quando ouvi a vídeo-campaínha da porta.

Liguei o visor da vídeo-campaínha e à entrada da porta surgiu osecretário do Dr. Engenheiro Cagatacus.

O secretário apresentava-se bem vestido, com casaco e gravata,mas uma peruca preta encaracolada fazia com que ele parecesseum cómico piroso. Os olhos não mostravam coisa alguma. Dir-se-iaque se encontravam apagados. Eram sem dúvida os olhos de umhomem que, trucidado pela submissão, desaparecera.

Respirei fundo, vesti a camisa e liguei a câmara verificando adistância focal da objectiva. Queria que a câmara não captasse omeu corpo da cintura para baixo. Não tinha vestido as calças.

«Sim, bom dia!. Passa-se alguma coisa?» «O Dr. EngenheiroCagatacus mandou vir buscá-lo» e sorriu parcimoniosamente. «Temum sorriso muito agradável!» disse-lhe para o encorajar. Ele olhoupara as roupas dele à procura de ajuda. Se tivesse vestido um parde bóias de salvação sentir-se-ia muito mais seguro, pensei. « Oh!,muito obrigado», disse ele a olhar para os sapatos. «Está sozinho?»«Sim, estou.» «Desculpe-me dez minutos» pedi, «vou comer e vou terconsigo à rua».

O secretário acenou com a cabeça e desapareceu no corredor.Desliguei a vídeocâmara-campaínha. Abri o roupeiro, tirei umascalças ao acaso e vesti-as. Depois olhei o espelho para ver o aspecto.Claro! Nada de simulação. Encaminhei-me para a cozinha e comium prato de arroz integral com cerejas e bebi sumo de maçã.

Desci para a rua. O secretário do Dr. Engenheiro Cagatacusabriu-me a porta do carro, sentou-se ao volante e acelerouprudentemente. Por fim, ligou dois receptores a cores daprogramação telemática. Nos écrans as imagens rodavam em trêsdimensões a uma velocidade estrondosa, emitindo coordenadasconcretas, geradas pelo computador D.C., ao subconsciente humano.Aquele programa estava em franca decadência, sensação queaumentava à medida que a programação prosseguia. Pedi aosecretário que desligasse os receptores. Olhei para o sol da manhãatravés da janela do automóvel. Já não estava cor-de-rosa e já nãose descortinava a nuvem de fumo; havia a luz quente e abundanteda manhã. Esfreguei os olhos a pensar quando é que poderia dormir.Talvez outro dia. O holo-phone tocou. Era o Dr. EngenheiroCagatacus.

«Explique-me lá o que é que a engenharia tem a ver com aIgreja?». Olhei perplexo o Dr. Cagatacus. «Bom, acabei agora de...»disse, a iniciar uma resposta quando fui interrompido. «Nada, ab-

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solutamente nada. A primeira provém da devoção e a segunda dafria gestão da credulidade». Abri um pouco a janela e observei umveículo pesado desrespeitar as regras de trânsito, ultrapassando-nosa 150 à hora. Imediatamente o secretário fez o possível por o ultra-passar e depois, colocámo-nos à sua frente, a meio da estrada, re-duzindo a nossa veloci-dade para 160 à hora. ODr. Engenheiro Caga-tacus permaneceu noécran do holo-phone daviatura. «Observou osgráficos?» perguntou elogo no écran aparece-ram pontos, traços, rec-tas e curvas que se des-locavam com grande ra-pidez em fundo verme-lho. «Sim, todos eles».«Não compreendo», disseele sentando-se à conso-la do computador, «estaprojecção dos gráficosdeveria estar a três dimensões. Se calhar seria melhor traçar imedi-atamente novas linhas». Carregou nas teclas. «Ora bolas, é óbvioque o computador está errado!» exclamou o Dr. Engenheiro Caga-tacus. «São quase 8.30. Seria melhor tomar o pequeno-almoço. Obar deve estar a abrir. Quer tomar o pequeno-almoço?» perguntou.«Já tomei. Obrigado. Mas, beberia café.» «Boa ideia. Eu fico aqui noescritório à sua espera», e desligou o holo-phone.

A estrada tinha muito movimento. Olhei para a retaguarda doscarros, que se estendiam a perder de vista à minha frente. Pareciamuma jibóia enfurecida. Não conseguiam sobreviver sem automóvel?

Quando chegámos, batiam as 9.30 no relógio do edifício 99 deengenharia D.C. . No átrio estava o Dr. Engenheiro Cagatacus. Tinhapernas, era herdeiro de tristes capitalistas, possuía estilo, tom, umcriador de moda e duas máscaras num só rosto. A máscara de cincomil e cinco contos e a de gema-crata. Era visível que não poupavaesforços para conquistar o primeiro posto. O engenheiro Cagatacusabriu um sobrescrito e dirigiu-se ao bar convidando-me a segui-lo.Observei a ausência do secretário quando o pequeno-almoçocomeçou a ser servido.

«Está de perfeita saúde esta manhã, Dr. Cagatacus?» «Abstêm-sede me fazerem essa pergunta aqueles que me conhecemintimamente», respondeu ele rindo, depois de ter fechado osobrescrito. O seu riso parecia como uma peste na cidade, foi o meupensamento. Estava ciente de que quanto mais depressa ele sorrissemais a peste alastrava. «Sinto-me indisposto e não estou de boa

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saúde», disse ele. «Ah!, nisso somos da mesma opinião», repliquei,desviando por segundos o olhar em direcção a uma mulher executivaque passou a baloiçar um chapéu pelas abas. «É um bom observador.»«Provavelmente tanto como o Dr.Cagatacus.» «Presumo que sim».

De seguida ao pequeno-almoço, entregámo-nos a um estudoaturado em conjunto durante um par de horas, alternado com umahistória do Dr. Engenheiro Cagatacus sobre aranhas e vespas.

«As Corsárias» explicava, «são donas dos grandes espaços; nãoconhecem limites nos seus domínios. Têm o corpo grosso, são muitopeludas, quase negras, patas curtas com anéis castanhos e claros.Pertencem ao grupo das aranhas lobo. Oito olhos, dois grandes,dois médios e quatro mais pequenos, mas pese a abundância deolhos, são extremamente míopes. E se fizermos o balanço dosserviços que prestam na destruição de muitos insectos nocivos,devem ser consideradas como espécies úteis. E, a Corsária ou aranha

lobo, parece que nada tem a temer, todos receiamas suas quelíceras, os terríveis punhais enve-nenados. Pois bem, este audaz caçador vive numperpétuo terror do Pompílio, uma vespa que,semelhante a um falcão, cai de surpresa sobreela e a fere com o seu ferrão. A única defesa queopõe ao seu inimigo é a fuga. Mal ouve o zumbidodas asas do Pompílio, a aranha lobo perde acabeça e foge, como louca, com toda a velocidadedas suas oito patas, enquanto a vespa a persegue,terminando por cair sobre ela num voo picado. Enão se pode dizer que a vespa esteja mais bemarmada do que a aranha lobo. Uma vez que avespa tem a fina adaga do ferrão, a aranha possuios dois afiados punhais cujo veneno é mortal paraos insectos, e é, além disso, maior do que o seucaçador. Se a aranha lobo em lugar de fugir,esperasse o inimigo e lhe fizesse frente, este ficariaembaraçado com semelhante atitude. Mas aCorsária, como única defesa ao ataque do inimigo,opõe a fuga. Numa corrida entre as ervas, rarasvezes consegue fazer perder a pista ao seuperseguidor. A vespa caça pelo olfacto, como faria

qualquer cão de caça, e é capaz de perceber as emanações da aranhaa mais de sessenta centímetros de distância. Num salto está sobreela. Num rápido movimento de patas vira-as de ventre para cima eaplica-lhe o ferrão, primeiro na boca, imobilizando-lhe imediatamenteas quelíceras e outros órgãos bocais, e depois na articulação próximada cabeça. A aranha fica imóvel, paralisada, mas não morta. OsPompílios ferem as Corsárias, inoculam-lhes umas gotas de umveneno que vai actuar sobre os centros nervosos, paralisando-lhes

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os movimentos mas conservando-lhes a vida. Tem por finalidadeesta imobilidade evitar que, com os seus movimentos desordenados,a aranha esmague o ovo ou o arranque depois da vespa o ter colocado.Antes de pôr o ovo, vai dar o caçador um abrigo à sua vítima. Agarra-apor uma pata e reboca-a através do solo. Deixa a vítima a umadezena de metros num local onde a vespa abre em poucos minutosuma galeria de cinco centímetros de profundidade, que conduz auma sala mais espaçosa. Com as mandíbulas cava, com as patasafasta a terra extraída. De tempos a tempos, pára e voa para o sítioonde deixou a aranha lobo, apalpa-a com as antenas, mordisca-a e,satisfeita com a inspecção, volta com novo ardor para o trabalho.Não tarda que a escavação esteja pronta, capaz de receber a aranha.Então é depositada no fundo da galeria, de costas, e sobre o abdómené colocado um pequeno ovo. Feita a postura, a vespa fecha a entradae vai-se embora. Poucos dias depois, nasce a larva, que começa adevorar o ventre da aranha com extraordinário talento de anatomista,vai devorando as entranhas da aranha, pouco a pouco, de modo anão lhe causar imediatamente a morte. Condenando a Corsária aoatroz suplício de ser comida viva, a larva tem durante a sua evoluçãovíveres frescos e cresce rapidamente. Se por acaso a aranhamorresse, a larva seria intoxicada pela putrefacção a que não poderesistir, ao contrário do que sucede a tantas outras larvas queprosperam na podridão.

Coisa singular. Não lhe parece?»«Sim, muito ilustrativo, mas banalíssimo» ripostei.

O escritório estava calmo. Tinham quase todos ido almoçar. Oengenheiro tinha mandado vir um prato de carne de peru para ele eum prato de brócolos com soja e laranja para mim. E continuou adescrever a história natural de diferentes espécies para concluir:«Tudo isto é muito interessante aplicado à sociedade humana».

Porra, exclamei dentro de mim, aí vem a crença mística domais forte, pensei. E acertei. O Dr. Engenheiro Cagatacus estavanuma de aplicar às sociedades humanas os princípios da luta pelaexistência entre os insectos, as vespas, as aranhas, e dar-lhes umdesenvolvimento. «Nos tempos pré-históricos», começou ele, «ovencedor devorava o vencido. Hoje ocupa-o a trabalhar para asociedade D.C. e em aumentar as mercadorias que ela pode fornecer.É um progresso.»

Acendi o cachimbo Tarahumara. «É preciso que haja alguémque consinta em privações e, ou acredite no poder mágico dasmercadorias», afirmei. « É natural que a satisfação integral dasnecessidades esteja reservada a um pequeno número de eleitos.Certamente os mais aptos e os melhores dotados», disse ele. «Pois,obviamente que por via disso lamentará o desaparecimento de tantasvítimas e claro, não irá negar a necessidade de reformas nasociedade, mas estas só podem ser o resultado do tempo e o da

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evolução humana. Certo?» «Certo!» cruzei as pernas «Honremos,portanto os que são bastante fortes ou inteligentes para abriremcaminho na multidão e se imporem à sociedade. Certo!» «Certo!»confirmou mais uma vez o Dr. Engenheiro Cagatacus e acrescentou:«Isso é o que sempre foi e continua a ser uma das causas do progressohumano».

«Não concordo!», fiz uma ligeira pausa e dei uma cachimbada.O Dr. Engenheiro Cagatacus quedou-se em suspenso. Era educado,mas educara-se extasiado em falsos princípios tantas vezes citados.Inclinou-se ligeiramente para trás e piscou os olhos.

«Um indivíduo que nasça no mundo sem nada de seu, semfamília com meios para o sustentar, se a sociedade D.C. prescindirdo seu trabalho não tem qualquer hipótese de participar na festado progresso natural das sociedades humanas. A sociedade D.C.ordena-lhe que desapareça, logo ignora-o. Desamparado, fica imóvele desaparece sem nunca ter contribuído para usufruir do banquete.Isto, não do resultado desse processo natural, como no caso daCorsária e do Pompílio, mas pelas preferências pessoais inspiradaspor interesses particulares de poucos. Estes eleitos não são os maisfortes e, ou os mais inteligentes, são simplesmente os que possuemmenos escrúpulos e os mais gananciosos». Dei umas baforadas nocachimbo, acabava de citar Buchner. «O Dr. Engenheiro Cagatacusesqueceu-se de referir que o Pompílio persegue exclusivamente aCorsária deixando em paz as Salticus, as Folcus, as Tomísias, asMigalas, as Agelenas e tantos outros grupos de aranhas e aranhiços.As espécies lutam entre si e por vezes, como no caso da vespaPombílio, cirurgicamente . No entanto, poucas e raras vezes indivíduosda mesma espécie se guerreiam. Há espécies que, em lugar delutarem preferem separar-se e emigrar para outras paragens». Ocachimbo apagou-se, o que me obrigou a acendê-lo novamente;depois prossegui:

«Se percorrer um tratado de história natural, verificará que aluta entre indivíduos da mesma espécie é reduzida, enquanto aassociação para a defesa ou o ataque, o auxílio mútuo e asolidariedade, são regra geral. E sabe uma coisa? Estou a falardemasiado. A coisa já me está a parecer muito teórica. Carago!»

Guiando a uma velocidade de 130 Km/hora, o secretário doDr. Engenheiro Cagatacus atravessou as 9 filas de trânsito e no PigShopping saiu da auto-estrada. Conduzia rápida e prudentemente,mesmo nas curvas, o que levava os pneus a chiar. O trânsitocontinuava abundante, ainda levaria algum tempo a alcançar a casadissidente. Eram 13.45. Encostei-me ao banco do automóvel eadormeci cansado mas satisfeito por ter cumprido a minhaactividade. Corrigi a bolsa do Dr. Engenheiro Cagatacus no valor detrinta e sete mil euros.

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«O primeiro dever do Estado tornou-se o de promover, exaltar ecobrir todos os seus gastos, outrora cruéis ou antipáticos, como manto sublime do cultural. No momento em que parece terdesistido de querer fazer a nossa felicidade social, o poderempreende a cruzada mais bem sucedida de nos instalar donascimento à morte num parque de atracções planetário.»

Eduardo Lourenço, O Esplendor do Caos, Gradiva,1998

O que a Expo expõeJÚLIO HENRIQUES

local entretanto mundializado, a sua montrainterna e externa. O seu leit-motiv propa-gandístico («uma obra dos portugueses»)corresponde à normal inversão da linguagempublicitária; porque de facto ela é, na sequên-cia da Expo 92 de Sevilha, uma iniciativa po-lítico-financeira da integração europeia.

As chamadas exposições universais corres-pondem invariavelmente a momentos de eu-foria no desenvolvimento económico-estatal.Sem aqui as passarmos em revista, o que se-ria longo e fastidioso, refira-se que em 1865 aExposição Internacional do Porto já manifes-tava o ideal, para a burguesia da época, dasua integração no capitalismo europeu, idealesse decorrente do fontismo, então no seuauge, graças à modernização dos transportese das vias de comunicação, tão essenciais paraa indústria e o comércio da época como hoje

Por força dos enormes capitais envolvidos, da megalomania que a impôs e doconsenso que a aplaude, a Expo 98

constitui uma sacralização. Mas de quê? Ofi-cialmente, do «Estado democrático». Veridi-camente, da integração plena de Portugal nasociedade do espectáculo. A visibilidadelogística desta integração começou por dar-se com a implantação, em todo o território,duma teia de super e hipermercados, os tem-plos verdadeiros onde se oficia a fé do nossotempo, a neo-religião económica que impreg-na as massas cantando loas e clamando ámenao grande lema sacerdotal da presente esta-ção: «comprar é ganhar». A feição cerimoni-al da Expo 98 coroa, em plena extensibilidadedo caos, essa irresistível ascensão do espec-táculo. Anunciada internacionalmente comoa emblemática «última exposição universal doséculo XX», que ninguém pode perder, a Expoé a campanha publicitária de um capitalismo

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as auto-estradas de asfalto ou informáticas osão para a chamada Nova Ordem Mundial,liderada em absoluto pelos Estados Unidos.E a velocidade, imposta pela rapidez semprecrescente da circulação de mercadorias e ca-pitais, impregna hoje, já de forma demente,os comportamentos sociais, numa perpétuacorrida contra o tempo, de antemão perdida.

O início de tais exposições, resultantes dovoluntarismo burguês duma produtividadecrescente e na sua qualidade de feiras de atrac-ções da dinâmica económica, remonta à épo-ca subsequente à Revolução Francesa, mas até1850 serão fenómenos de âmbito nacional. Aalteração dá-se com a primeira exposição in-ternacional de Londres, ocorrida em Maio de1851 e intitulada Grande Exposição dos Tra-balhos da Indústria de Todas as Nações, naqual Portugal já participou, mas praticamentesó com matérias-primas, dado não ter entãoindústria que se visse.

Enquanto retórica afirmativa do discursomodernizador económico e estatal, o modelode todas estas exposições terá sido porventurao da Exposição de Paris, em 1900, pelo factode nela se congregarem dois elementos-cha-ve: o simbolismo da inauguração de um novoséculo e o extraordinário incremento das rea-lizações técnicas, associado à crença de queas máquinas vinham trazer para a espécie hu-mana uma libertação incomensurável. Mas ocarácter eufórico da Exposição de 1900, ba-seada também ela no conceito fundador dasdemais, o chamado comércio livre, já se viatoldado por nuvens negras, pelo facto de en-tão este «comércio livre» estar a ser gradual-mente substituído pelo proteccionismo estatal,fenómeno que catorze anos depois, ao estoirar,irá produzir um dos feitos mais notáveis doprogresso tecnológico: a Primeira Carnifici-na Mundial (dezanove milhões de mortos). AExposição de Paris de 1900, realizada na en-tão capital das artes & da civilização, propu-

nha-se, como agora a Expo 98, fazer um ba-lanço do século, com base nos desmedidosavanços que o capitalismo alcançara nas ci-ências e na indústria. O que convém notar-mos é que desde 1851 estas exposiçõesinternacionais irão suceder-se com muita fre-quência, até ao ano, quão simbólico, de 1992,o da Exposição de Sevilha, e que o Estadoportuguês nelas participa amiúde.

Em Portugal as iniciativas deste tipo sócomeçam a adquirir grande dimensão em fi-nais dos anos 30, com a participação portu-guesa na Exposição Internacional de Paris, em1937, e na Exposição Internacional de NovaIorque, em 1939. Em ambos estes certamesPortugal irá ter uma representação importan-te, sob a batuta de António Ferro, director doSecretariado de Propaganda Nacional, que vianestes eventos excelentes oportunidades delegitimação do regime fascista e dos seusempreendimentos coloniais. Sob fiscalizaçãodo Ministério dos Negócios Estrangeiros, es-tes certames contam com a colaboração, comohoje, de muitos dos notáveis da época, entrearquitectos, pintores, escultores, decoradores,escribas e outros artistas. Os grandes temasque ilustram estes certames são nessa épocainvariavelmente dois: o Corporativismo e asua concepção de fraternidade entre patrões etrabalhadores, e a omnipresente temática «Por-tugal, Pátria de Descobridores».

Estas duas experiências, mobilizadoras demeios e gente, irão permitir, em 1940, a reali-zação em Lisboa da Exposição do MundoPortuguês, uma ainda mais clara iniciativa depropaganda estatal, celebrando o nacionalis-mo, o expansionismo colonial e a acção ultra-marina dos portugueses.

A Expo 98 não é, por conseguinte, umainiciativa inédita em Portugal, tendo como

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modelo inaugural a Exposição do Mundo Por-tuguês em 1940. É aliás curioso constatarmosa relação geográfica destes dois empreendi-mentos, separados por cinquenta e oito anos,ao constituírem uma espécie de balança nourbanismo da capital. A Exposição do Mun-do Português foi realizada na zona ribeirinhaocidental de Lisboa; um dos argumentos dosseus organizadores foi a reabilitação daquelazona, então votada ao abandono. A Expo 98,edificada na zona ribeirinha oriental, foi igual-mente defendida pelos seus promotores como argumento da reabilitação daquela área decinco quilómetros, muito degradada pelas ins-talações industriais que entretanto se tinhamtornado obsoletas.

Os promotores da Expo e os comentadoresou jornalistas com poleiro nos meios de for-mação de massas, quando referem, por razõeshistóricas, a Exposição do Mundo Português,sublinham gravemente que o cu nada tem aver com as calças, pelo facto, óbvio, de estaúltima ter sido uma manifestação do regimefascista. Aparentemente assim é. Mas só apa-rentemente. A Expo 98, num contexto nacio-nal e internacional muito diferente, de factodá continuidade a algo que no plano internocomeçou em 1940. Este algo é a necessidadede legitimação estatal que ambas as exposi-ções exprimem. A de 1940, de modo declara-do e segundo a lógica política em que o Estadoportuguês assentava, promovendo o colo-nialismo e o regime corporativista, louvandoa paz social interna no contexto da segundaguerra mundial e difundindo uma visão aindarural do desenvolvimento económico; a de1998, a pretexto duma «grande celebração doregime democrático», promovendo o mundotransnacional dos negócios, a integração daeconomia portuguesa num contexto mundia-lizado, as chamadas novas tecnologias, a rea-lidade virtual, um ainda maior incremento doturismo. Entretanto, as evidentes diferenças

de contexto histórico não eliminam, de modonenhum, aquilo que estruturalmente associaas exposições de 1940 e de 1998: primeiro, ofacto de ambas serem empreendimentos esta-tais — de modo óbvio, num caso, e maisdifuso, no outro (mais difuso como exigemestes nossos tempos da pós-modernidade e dospoderes ocultos); segundo, o facto de ambasse basearem na defesa e ilustração doexpansionismo português — de modo primá-rio, num caso, e muito mais manhoso nesteoutro. Sublinhe-se, de resto, que toda a mo-derna propaganda estatal portuguesa recorresistematicamente à história colonial (com ou-tros nomes, bem entendido), e que o fenómenonão é acidental.

É isto que separa as pessoas que aceitamsemelhantes iniciativas e as aplaudem comambas as mãos e as que, como nós, as rejei-tam e criticam. A realização da Expo 98, queé uma manifestação caríssima de prestígionovo-rico, conta com um consenso absoluta-mente favorável no seio da população portu-guesa (segundo uma sondagem referida pelosjornais, será da ordem dos 70% a populaçãoque quer ir à Expo). Ora isto passa-se numpaís que tem hoje, segundo dados recentes,20% dos seus membros, ou seja, dois milhõesde pessoas, a viver na miséria oficialmentereconhecida. Dada a inexistência de factoduma opinião pública, os promotores da Expo98 têm o trabalho muito facilitado, contandode mão beijada com esse tal consenso. Exac-tamente como a Exposição do Mundo Portu-guês contava em 1940 com o assentimento,activo ou passivo, da maioria da populaçãoportuguesa.

Ambas as realizações, com efeito, emcontextos muito diferentes, dispõem de meiospropagandísticos capazes de fazer cócegaseficazes no ego nacional. Porque o nacio-

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nalismo, convém não esquecer, continua a serem Portugal um dos essenciais aglutinadoresinterclassistas, uma das peças principais damistificação operativa, provavelmente à frentedo futebol como espectáculo de massas ou damistificação religiosa ligada à empresafatimista. A Expo 98, por outro lado, comadeptos entusiastas nas camadas mais jovens,tem atractivos suplementares cuja relação como elogio da saga colonial nem sempre é óbvia,batendo ruidosamente na tecla da cultura e dosespectáculos, na tecla das inovações tecno-lógicas (dizem que o Pavilhão da RealidadeVirtual é o primeiro a funcionar em todo omundo), na tecla do «humanismo» relacionadocom a fauna marítima e com a protecçãoecológica dos mares, na tecla, ainda, do«universalismo», ao sustentar que os portu-gueses descobriram o mundo e que agora setrata de pôr o mundo a descobrir Portugal…

O que parece interessante sublinhar é apermanência do expansionismo europeu, eantes de mais português, como elemento depropaganda, não só aceitável pelo público,mas que lhe cai no goto. Este facto revela duascoisas: que o discurso colonial assumido pe-las instituições estatais e económicas conti-nua a mostrar uma grande eficácia ideológicae que, apesar de hoje ser menos básico ou pri-mário do que durante o salazarismo, a inter-pretação da história oficial ou oficiosa doexpansionismo europeu continua a mostrar-se incontestável. Ora, como escreve NoamChomsky, a conquista continua: «A 11 deOutubro de 1992 encerra-se o quingentésimoano da Antiga Ordem Mundial, por vezesdenominada época colombiana da históriamundial ou época de Vasco da Gama, confor-me os aventureiros ansiosos de pilhagens quelá chegaram primeiro. Ou ainda “Reich dos500 anos”, segundo o título de um volume co-memorativo que compara os métodos e a ide-ologia dos nazis com os dos invasores

europeus que submeteram a maior parte domundo. A questão principal desta Antiga Or-dem Mundial era uma confrontação entre osconquistadores e os conquistados à escalamundial. Adoptou várias formas e foram-lhedados diferentes nomes: imperialismo,neocolonialismo, conflito Norte-Sul, o núcleocontra a periferia, G-7 […] e os seus satélitescontra o resto. Ou, mais simplesmente, con-quista do mundo pela Europa.» (NoamChomsky, Ano 501, 1992.)

É esta conquista do mundo pela Europa eaquilo que dela resultou como sistema de ex-ploração e colonização mental que iniciativasempresariais e estatais como a Expo 98 ouanteriormente a Expo 92 em Sevilha preten-dem absolutamente cobrir, continuando a pôr-lhe por cima grandes camadas de vernizcivilizador. No respeitante à história coloni-al, podemos ver nestas iniciativas ibéricas,para além do papel directamente económicoe propagandístico que desempenham, verda-

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deiras máquinas de guerra ideológica asses-tadas contra uma visão crítica da históriaeuropeia e colonial. Percebe-se, de resto, queestas iniciativas comemorativistas não sãomeramente nacionais, decorrendo duma orga-nização internacional mais ampla em que Por-tugal e a Espanha se encontram integrados.E, sobretudo, deveremos ter presente que omundo criado em finais do século XV pelaimparável ambição europeia, é este que ve-mos prolongado na decomposição actual alas-trada ao mundo inteiro; na economia e noprogresso sinónimos de desastre.

Recorrendo a algumas passagens do atráscitado livro de Chomsky, escrito para comba-ter a euforia imperial da «descoberta da Amé-rica», registo aqui alguns tópicos úteis. Oinsuspeito economista Adam Smith, pela sim-ples razão de escrever num século em que osfactos ainda não tinham sido submetidos àpresente transfiguração ideológica, não dei-xa de registar, em 1776, depois de dizer que«o descobrimento da América e a passagempara as Índias através do Cabo das Boa Espe-rança são os dois mais notáveis e importantesacontecimentos da história da humanidade»,que «a brutal injustiça dos europeus fez queum acontecimento que deveria ter sido bené-fico para todos se mostrou ruinoso e destrui-dor para vários destes desgraçados países»,(1) assinalando com grande clarividência queo êxito europeu das conquistas ultramarinasconstituía um louvor do domínio que os euro-peus exerciam nos meios materiais de que sedotavam (tais como as armas) e da sua imersãonuma cultura da violência.

E de facto, do ponto de vista europeu, asconquistas mundiais foram realizadas comrelativamente pouca gente. Aquilo que o podeexplicar é o facto de na Europa a guerra se tertornado uma verdadeira ciência; era esta a

superioridade europeia, resultante dum cres-cente poder estatal. Hernán Cortés conquis-tou o México com uns quinhentos espanhóis;Pizarro derrocou o império inca com menosde duzentos; o império português na sua tota-lidade, desde o Japão até ao Sul de África, eraadministrado e defendido por menos de dezmil europeus; e quantos portugueses terãobastado para dizimarem em poucos anos aspopulações nativas da orla costeira do Bra-sil? Os europeus lutavam para matar e possu-íam os meios capazes de satisfazer a sua sedede sangue. Nas colónias americanas, os nati-vos ficavam atónitos perante a brutalidade deportugueses, espanhóis ou britânicos. Estasanha destruidora é o que caracteriza a civili-zação europeia, foi dela que resultou a con-quista do mundo, foi ela que introduziu umasubstancial alteração nos contextos culturaisao invadir e ocupar militarmente vastasregiões do globo.

De início, os europeus terão feito as suasviagens ditas de descobrimento com vista acomerciar, mas uma vez chegados ao destinoque a ambição económica e religiosa nelesdeterminava, ficavam para a conquista. Numasíntese admirável, um conquistador holandêsdas Índias Orientais escrevia em 1614: «Ocomércio não se pode manter sem a guerra,nem a guerra se pode manter sem o co-mércio.» O eco que estas palavras têm nosnossos dias talvez nos ajude a percebermelhor a relação existente entre as conquistascoloniais e o mundo de hoje como pro-longamento delas.

O domínio europeu do mundo baseou-se deforma determinante no emprego permanente daforça. Como escreve o historiador inglêsGeoffrey Parker, «Foi graças à sua superiori-dade militar, mais do que a qualquer vantagemsocial, moral ou natural, que os povos brancosconseguiram criar e controlar […] a primeirahegemonia mundial da História.» (2)

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Um outro historiador, James Tracy, espe-cialista dos impérios mercantis, faz a seguin-te observação: «Os historiadores do século XXsão concordantes quanto ao facto de em geralterem sido os europeus que irromperam vio-lentamente nos sistemas comerciais asiáticos,os quais, antes da sua chegada, haviam sidorelativamente pacíficos». (3) Os europeus le-varam o comércio estatal a uma região demercados relativamente livres, aberta a todosos que chegavam em paz e em conformidadecom princípios conhecidos e aceites. Airrupção violenta dos europeus neste mundoasiático levou com eles, segundo Tracey, «umacombinação, característica ou mesmo exclu-sivamente europeia, de poder estatal e inte-resse comercial, quer no sentido de um sectordo Estado que realiza a actividade comercialou de uma companhia comercial que se com-porta como um Estado». (4) A principal ca-racterística que diferencia as empresaseuropeias das redes comerciais indígenas emvárias partes do globo, baseia-se no facto deos europeus organizarem as suas principaisentidades comerciais como uma extensão doEstado ou como empresas autónomas de co-mércio dotadas de muitas das característicasde um Estado, contando com o apoio do po-der centralizado do país de origem.

Portugal preparou o caminho impondo umtributo ao comércio asiático, criando, segun-do M.N. Pearson, «pela primeira vez umaameaça de violência à navegação asiática» evendendo depois a sua protecção à ameaça querepresentava. «Em termos modernos», escre-ve este historiador, «isto era exactamente umaorganização criminosa de protecção», (5) ouseja, uma máfia. Na sequência dos portugue-ses, os seus adversários mais poderosos leva-ram mais adiante o emprego eficaz daviolência, com mais sofisticadas medidas degestão e controle. As companhias inglesas eholandesas «empregavam a força de maneira

muito mais selectiva e racional» do que os seuspredecessores portugueses, empregando-asempre com objectivos comerciais, vendosempre na extremidade da operação militar obalancete contabilístico. Por outro lado, asforças de que dispunham e a sua base nacio-nal eram bastante superiores.

Seja como for, o papel dominante do podere da violência estatais é uma característica no-tável da contribuição essencial, como escreveAdam Smith, das colónias para a economia daEuropa e para o seu desenvolvimento interno.

São estas características da eficácia des-truidora europeia que Jack D. Forbes, poeta eensaísta norte-americano de origem índia eprofessor de Estudos Nativos Americanos naUniversidade da Califórnia, aborda no seu li-vro Colombo e Outros Canibais, editado emNova Iorque em 1992. Forbes não se limita aconstatar a amplitude da destruição ocasiona-da nas Américas, tenta compreender os senti-mentos que levavam os europeus a destruiros povos com que deparavam. Na concepçãode Forbes, os indivíduos propulsionados poruma tão grande concentração de ódio são ge-ralmente pessoas doentes. Trata-se de umapatologia por assim dizer moral, a que elechama uética, palavra duma língua nativa daAmérica do Norte, e que significa canibal nãoapenas no sentido de antropofagia mas tam-bém na acepção mais ampla de exploração dotrabalho e da vida de outrem. Segundo Forbes,foi esta concepção canibal que os europeusintroduziram no mundo ao disseminarem ocapitalismo como única relação social possí-vel, tornando-o dominante em todos os actosda existência.

Na Expo 98, a doença uética é aquilo quelá há-de estar mais presente. O simbolismo doemprego de trabalhadores «ilegais» de origemafricana nem sequer é simbolismo; é uma li-

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gação efectiva com o passado colonial e coma escravatura. Mão-de-obra barata no passa-do, mão-de-obra barata no presente. Tudo alié feito sob o signo da celeridade, das prosai-cas ambições pessoais, dos chorudos negóci-os que constituem os empregos dos gestores,assessores e companhia, das mortes nas obrasque segundo directivas mais recentes já nãopodem ser transmitidas pelos meios de mas-sas, de toda a grotesca artificialidade que ro-deia este moderno panem et circenses, do factode a Expo 98 ser antes de tudo uma vastaempresa com vista a uma necessária maxi-mização de lucros e a uma manipulação nãomenos necessária das ideias.

Em Sevilha, em 92, houve contestação, porvezes dura, que obrigou a várias intervençõespoliciais. Os da Expo 98 aprenderam com issoe o programa deles é menos manifestamenteum hino à aventura colonial. Mas, sobretudo,contam aqui com a aprovação da passividade.

No contexto português, onde tanto temmedrado o complexo dos atrasadinhos daEuropa, estas obras faraónicas fazem brilharde orgulho muitos olhos, julgando assimconfirmar-se que estão a entrar com o pédireito na modernidade do betão e do espec-táculo. Entram nela, sem dúvida, e com ambosos pés; mas sem quererem entender, estesolhos, a que ponto a dita modernidade estácontaminada por dentro e constitui já, elamesma, o processo de decomposição de ummundo onde cada qual se reduz cada vez maisdeclaradamente à simples expressão demercadoria elástica.

1 Adam Smith, A Riqueza das Nações, 1776.2 Geoffrey Parker, in James Tracy (ed.), Merchant

Empires.3 James Tracy , in Merchant Empires.4 Idem, ibidem.5 M.N. Pearson, in Tracy, ibidem.

O Dr. Eng. Mula de Mello chegando à inauguração oficial da Explo 98

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É a última exposição mundial do século, ouvimo-lo dizer todos osdias, num oportuno esquecimento de que o século começa em 2001 eque antes, haverá a exposição de Hannover no ano 2000. Mas isso que

interessa? A ideia de que é “a última do século” vende bem e isso éque importa, num grande empreendimento. E além disso, esclare-çamo-lo, não temos nada contra ela, esta exposição tão grandiosa.

Um Grande EmpreendimentoLUÍS CHAMBEL / A FYSGA

Obras de conceituadíssimos arquitectos,cobrir-nos-íamos certamente de ridículo seousássemos pôr-lhes em dúvida o engenho dasformas e materiais, o recriamento de espaçose volumes, criações que, como certas cate-drais, ficarão certamente para a posteridade.

E como poderíamos, também, questionaras iniciativas de cultura ligadas à EXPO,abrangendo um largo espectro de artes e desaberes, com a realização de dezenas de con-certos de música clássica, mas também de jazze música popular, os espectáculos de dança,as mostras de cinema, teatro e fotografia, emuitas, muitas outras iniciativas — algumasaté para a área infanto-juvenil —, trazendoaté nós a arte e a cultura de numerosos povos,num grande abraço por sobre os oceanos?

Como poderíamos pôr em dúvida as virtu-des de tão esplendoroso empreendimento?

Mas cépticos como o Tomé da lenda cris-tã, que precisava de escarafunchar bem na fe-rida, aqui estamos nós, raivosos, insatisfeitoscomo sempre, inconsistentes, a fazer as per-

1

Como poderia alguém pensar que nosmove alguma coisa contra a EXPO´98?

Encostados ao vastíssimo estuário do Tejo,os cinco magníficos pavilhões temáticos — oPavilhão do Conhecimento dos Mares, o Pa-vilhão do Futuro, o Pavilhão dos Oceanos, oPavilhão de Portugal e o Pavilhão da Utopia– ganham forma cada vez mais definitiva eostentam ali grandiosamente, ou virão a os-tentar, o matrimónio entre a vanguarda, atecnologia de ponta, o ainda desconhecido, eum passado glorioso de arrojo do ser huma-no, de desbravamento, de audácia sem fim,que nos trouxe até aqui. É certo que na geo-grafia da Expo alguns pavilhões há cujos no-mes não sugerem assim esta atmosferasonhadora e ostentam designações bem maisprosaicas, embora igualmente expressivas ereveladoras, tais como Pavilhão PortugalTelecom, Praça Sony, Pavilhão da Swatch ouPavilhão da Unicer.

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guntas do costume, aquelas que já não se es-peraria após ter sido decretado o fim da His-tória. Aquelas que só a demência justifica, poisnão há lugar a dissidência no Ocidente, forado quadro da patologia mental, como antessucedia além da Cortina de Ferro. Que o di-gam todos os artistas que se vêm sentindo frus-trados e excluídos por não terem sido, elestambém, integrados no quadro oficial das co-memorações culturais desta exposição — uni-versal —, como se não houvesse vida fora dopatrocínio do Estado… Que tivessem pois, emvez das lamentações, seguido o exemplo da-queles que orientaram as suas produções cul-turais (na música, no teatro, fosse no quefosse) para o quadro do consumo previsívelna EXPO´98, ganhando assim um lugar nacorte oficial da Cultura e, não menos impor-tante, arrecadando os apoios monetários a issodestinados — e longe de nós insinuar que setivessem simplesmente vendido; por certocomungariam profundamente dos objectivose da filosofia desta exposição universal.

2

E repare-se bem que repetimos universal,para que não se pense tratar-se apenas dareedição de uma Exposição do Mundo Portu-guês, como a que o Estado Novo promoveu,não! Esta conta com a presença de mais decento e trinta países, vindos de todos os can-tos do globo, se é que aceitam a nossa para-doxal expressão.

E é verdade que não se tem abordado in-sistentemente, como foi apanágio e referên-cia essencial dessa grande exposição colonial,o papel civilizador dos portugueses, mas tam-bém, caso tal fosse feito, corria-se o perigode ficar o largo às moscas…

Mas, coincidência ou não, certamente co-incidência, Espanha teve a sua Expo, em Se-vilha, mais ou menos nos 500 anos da chegada

de Colombo à América e Portugal tem a suaExpo nos 500 anos da chegada do Gama àÍndia. Coincidências só possíveis a partir dumetnocentrismo que entende a civilização bran-ca como condutora do mundo e que, por isso,aprova tão sabiamente estes calendários deexposição. Ainda assim, é certo que nas pu-blicações oficiais da Expo, ao referir-se o Pa-vilhão de Portugal — cujo traço arquitectónicoé da autoria do prestigiado Siza Vieira —, sedeclara a ideia de realçar «o notável contributode Portugal, ao longo dos séculos, para a ex-ploração e descoberta das rotas oceânicas quepermitiram ligar povos, nações e culturas». Elogo: «Numa fascinante retrospectiva, sãosublinhadas as etapas capitais de um legadode dimensão planetária, no qual avultam fei-tos e protagonistas com lugar de destaque naHistória da Humanidade».

Mas, por muito que nos esforcemos, nãonos conseguimos lembrar dos nomes dos bri-lhantes geógrafos, dos linguístas, dos biólo-gos, dos sociólogos, que deram corpo a esseencontro de culturas tão celebrado. Alguns dospoucos que nos foi dado conhecer, comoGarcia de Orta — que dá, é verdade, o nomea uns jardins na EXPO —, viram até os seusossos queimados pela Inquisição, que levouaté à Índia, com larga cópia de autos-de fé —isto é, assassínios —, o seu papel civilizador;outros, como Damião de Góis, tiveram que selhe opor, a essa mesma Inquisição, numa pers-pectiva humanista e essa, sim, digna de real-ce, mas aqueles que hoje se celebram comdestaque — os que dão o nome às grandespontes contíguas à EXPO — chamam-seVasco da Gama, e os que dão o nome à gran-de torre que domina a exposição e onde fun-cionará um excitante restaurante panorâmico,voltam a chamar-se Vasco da Gama, e nãoqueremos acreditar tratar-se de um caso demera falta de imaginação, parecendo mais orecitar de uma lição referente ao já falado en-

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contro de culturas que nosparece demasiado cruelpara sequer ser citadocomo tal, tendo-se concre-tizado com largo uso do trá-fico e do trabalho escravo,do saque, do massacre san-grento e da destruiçãomassiva de culturas. Dessecontributo de Portugal parao mundo, resultam mesmoalgumas estatísticas malconhecidas. Como a dosseis milhões de índios àchegada dos portuguesesao Brasil, hoje reduzidos a260 mil pessoas. Como ada saída de Angola, nos primeiros 300 anosde colonização, de 4,5 milhões de escravospara o Brasil e América do Norte. Como a de100 milhões de pessoas tornadas escravas eafastadas para sempre do continente africa-no, ou ainda como a de cerca de 800 pessoasmutiladas com corte de mãos, narizes e ore-lhas às ordens do precisamente glorificadoVasco da Gama. Da responsabilidade de Por-tugal e das outras nações ocidentais é ainda adestruição da agricultura de subsistência, res-ponsável pelas actuais grandes fomes em Áfri-ca, e o endividamento resultante da imposiçãode um modelo económico alheio e apresador.

Mas apesar de tudo, não vamos nós agoraadjectivar aqueles que participam com o seuespírito e o seu engenho numa tão grandemanifestação tecnológica e cultural como esta.Robert Oppenheimer não deixou de ser umgrande físico da teoria quântica por ter sidoarregimentado, em 1943, pelos militares nor-te-americanos para, em Los Alamos, dar vidaà bomba atómica que havia de matar centenasde milhares de pessoas em Hiroxima eNagasaki. Mas era uma boa causa, disse en-tão, em uníssono, a propaganda ocidental. E

nessa altura, ainda se permitia a um homem,como Oppenheimer, arrepender-se amarga-mente da sua participação. Hoje já não há lu-gar ao arrependimento. Porque tudo estálegitimado.

3

George Orwell, no seu “1984”, antecipouestes tempos de hoje.

Precisamos de reaprender a ler. Às vezes,só conseguimos ler como um arqueólogo, reu-nindo cacos perdidos, bocadinhos, ou comoum astrónomo interpretando sinais dispersosque escapem do ruído de fundo ensurdecedorda propaganda.

Os principais jornais dedicam páginas, to-dos os dias e desde há meses à EXPO´98. Éuma devoção inesperada à cultura? O mundo,afinal, não está assim tão mau, ou há que pro-curar as razões mais abaixo, escondidas nasprofundidades de um acontecimento como este,em que todas as coincidências poderiam acon-tecer por acaso, não fosse dar-se o caso de se-rem coincidências de mais? E é que, também,apesar de tudo, nos espanta tamanha unanimi-

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dade. Talvez que, simplesmente, nas páginasdedicadas à EXPO só possam figurar os anún-cios relativos a questões do programa, à divul-gação das iniciativas, às entrevistas com osresponsáveis e tudo o mais, fique, digamos, tec-nicamente, sem possibilidade de publicação…

Lemos ou ouvimos dizer que os mortos naEXPO não existem. Só acidentados, que mor-rem sempre mais tarde noutro sítio.

Lemos ou ouvimos dizer que, na margemesquerda do Tejo, agora ligada pela ponteVasco da Gama, tinha sido liberalizada a cons-trução urbanística, fonte de uma desenfreadacorrida à especulação imobiliária e golpe fi-nal nos paúis do Samouco, que os ecologistasprocuraram defender quando se delineou otraçado da ponte. Tudo tão estranho, quandoa EXPO, acarinhada pelo Governo (este e ooutro) está tão perto e se declara tão atenta àsquestões da água e da vida…

E já que falamos em água, lemos ou ouvi-mos dizer que não haverá sardinhas na EXPO.Podíamos pensar tratar-se de uma perspecti-va civilizadora, iluminada, de respeito pelavida natural. Enfim, atitude lógica de umaexposição que declara o respeito pela fauna epela flora. Mas tivemos que duvidar, ao saberque no famoso oceanário, excelentementedecorado por especialistas com toda a espé-cie de materiais sintéticos pintados, comoplástico e betão, para iludir os nossos olhos eassemelhar a vegetação marítima, foram des-carregados vinte mil animais de centenas deespécies retirados ao seu habitat natural, numademonstração brutal de poderio da espéciehumana idêntica à dos grandes caçadores deferas que se glorificava nos filmes deHolywood há umas décadas atrás. Sendo, as-sim, uma exposição tecnológica, de vanguar-da, pasmamo-nos que reflicta sobre asquestões biológicas um obscurantismo maispróprio da primeira metade do século XX,quando nos encontramos à porta de um cele-

brado novo século que esta exposição diz tam-bém querer anunciar. E, cruelmente dandorazão às nossas dúvidas, os primeiros animaisjá começaram a morrer, como três tubarõesno período de quarentena.

Mas que não tivéssemos de nos preocu-par, porque o oceanário é um empreendimen-to chave na mão e, por isso, as empresasresponsáveis se encarregariam, sem despesaspara a EXPO, de capturar outros três animaispara voltar a colocar no lugar dos anteriores.

Que se trata de uma questão ideológica,ao contrário da neutralidade que a EXPOpretende exibir, demonstra-o o facto de nomesmo recinto, com o recurso às novastecnologias, ser possível, com vantagempedagógica e ecológica inquestionáveis,mostrar-se aos visitantes todas e mais algumasdas maravilhas vivas do mundo. Pois se épossível caçar, também é possível desenhar,animar, filmar, gravar e difundir tudo issojunto dos apaixonados do saber.

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Mas as sardinhas assadas, tão comuns nosfestejos populares portugueses, que razõeshaveria, então para as afastar, a não ser o diktatde alguma das multinacionais do fast food comnome terminado em nalds ou ola ou qualqueroutra coisa assim? Certamente, neste caso tam-bém não teremos razão e estaríamos a darouvidos a boatos, pois é certo encontrarem-seno recinto da feira, perdão, da exposição, nãoapenas as especialidades culinárias da Iglo,especialista dos produtos congelados, comotambém, entre um ou outro dos 80 restauran-tes que entretanto serão abertos na EXPO, aoferta de peixe fresco, para além de outras es-pecialidades portuguesas.

A ser, assim, verdade, mas não… a históriada sardinha, isso não deveria senão resultar deuma necessidade de pôr as coisas nos seus de-

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vidos lugares — uma ques-tão, talvez, de higiene —,pois bem se sabe que osnegócios das pizzas, es-parguetes, hamburguers, ge-lados, queijadas, grelhados,frango, batatas fritas, bi-fanas, panados, cachorros,bolinhos de bacalhau, pre-sunto, tacos, crepes, bifes,mariscos, salsichas, peixefumado, queijo e até ovas damesma sardinha, entre ou-tras iguarias — são, eviden-temente bem mais limpos,mesmo que o não fossem deum ponto de vista dietético,mas talvez isto seja tambémdiscutível. Acima de tudo,num assunto de tamanha en-vergadura, há que respeitar oobjectivo principal de todas es-tas empresas que negoceiam nestetão sensível sector da restauração, obem alimentar dos visitantes.

Lemos ou ouvimos dizer que as popula-ções de Moscavide se indignaram por teremficado, de repente, sem ligação ferroviária, porcausa do encerramento do apeadeiro em quetomavam o comboio. Quase não acreditamos.Então a ideia não era reabilitar a zona ribeiri-nha a nordeste da capital? Promover a habita-bilidade, os transportes, a qualidade de vida,em benefício da população? Talvez da popula-ção vindoura, não da residente, ainda hesita-mos antes de compreender a coragem que foiprecisa para pôr um fim à paragem dos com-boios em benefício da celeridade das obras.

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Lemos ou ouvimos dizer coisas de mais.bocadinhos apanhados aqui e ali, num puzzle

que, afinalcomeça a fazer sentido. O interesse pelaEXPO, pela cultura, das grandes petrolíferas,não parece estranho, assim ao princípio? Atéporque, todas elas deveriam estar zanga-díssimas por terem sido obrigadas a abando-nar o local para aí se criar o frondoso jardimque se antevê, com as espaçosas e cómodascasas de uma nova zona chique da capital. Epara onde foram, agora, essas instalações dascompanhias petrolíferas, que ninguém nos diznada? E que obrigações têm agora que cum-prir para não rebentarem aí também oambiente como fizerem em Cabo Ruivo eMoscavide? E que razões têm elas para pa-trocinarem, como tantas outras empresas,

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como tantas poderosíssimas multinacionais,a EXPO´98? Perguntas, perguntas vãs, certa-mente. Vale bem mais a palavra de qualquercomissário, sub ou principal, do que a nossa,pouco informada, sem números, descabida…

E, além disso, como pode contestar-se umainiciativa que une e mobiliza na mesma co-lossal grande cruzada, vontades e ideias tãodiversas como Maria João Pires, o PartidoSocialista, a Coca Cola, a Siemens e a Impé-rio, a Efacec, a Igreja Católica, a OrquestraMetropolitana de Lisboa, o Diário de Notíci-as, a Iglo e a Matutano, a Galp, o PP e o PSD,a Fundação Calouste Gulbenkian, o Teatro daCornucópia e Luís Miguel Cintra, a RankXerox, a Cabos Electro 98, a Sanitana, aTecniquitel, a Inapa, a Sumolis e a Kodak, oTeatro Nacional D. Maria II e Jorge SilvaMelo, o PCP, a Compaq e a Steelcase, a Del-ta, a Sogrape, Diogo Infante, Cutty Sark,Ricardo Pais, Bacardi Martini, Teresa Roby,Ariston, Nuno Carinhas, Unicer, PortugalTelecom, Caixa Geral de Depósitos, Vitorinoe Janita Salomé, BP e Rover, Pedro Abrunho-sa, Microsoft e Alcatel, o Teatro da Garagem,a Sony, a Swatch e os CTT, Fernando Pintodo Amaral, a Shell, a TAP, a Thyssen, o Ban-do e tantos outros nomes tão presentes na nos-sa vidinha quotidiana ou nos nossos devaneiosà soirée…

Mas, apesar de assim esmagados na nossainsignificância, ainda lemos ou ouvimos di-zer, sem indiferença, que agora, quando seaproxima já a finalização dos trabalhos deconstrução civil da EXPO, a 11 de Abril maisprecisamente, o Governo aprovará, em Con-selho de Ministros, uma nova lei restritiva,anti-imigração. Isso já o adivinháramos, jácontávamos que viesse a acontecer, mas sur-preendeu-nos a rapidez fulminante com quese procedeu. Sim, porque, em mais uma da-quelas obras de ligação de Portugal a África,não foram poucos os trabalhadores africanos

contratados por tuta e meia para os pesadostrabalhos da EXPO, não pelo Estado, certa-mente, mas por aqueles a quem o Estado de-legou a contratação. Agora, dispensados pelosempreendedores “arquitectos da utopia e dofuturo”, não lhes resta mais, a estes novos es-cravos do trabalho assalariado, desapossadosde tudo pela economia, a tal que, supostamentenão teria ideologia, não lhes resta mais, dizía-mos, do que serem vilipendiados, persegui-dos, encurralados. Os batalhões de polícia quehão-de proteger a EXPLO talvez não consin-tam a exposição da dissidência, da paupe-rização, do abandono, que possam ostentar nasua fachada cor-de-rosa os sonhadores de ou-tra utopia, os trabalhadores e desempregados,os imigrados, os jovens estudantes. Espera-mos bem que não, agora que Torres Camposjá reuniu com os responsáveis da CGTP e daUGT para os sensibilizar da necessidade deuma união nacional neste tempo que corre.Porque toda a dissidência seria uma afronta eisso seria prejudicial. Porque, de facto, aEXPLO, sobretudo, é NEGÓCIO!

É preciso vender. É preciso vender. É pre-ciso vender. E cada qual deve fazer o seu pa-pel. Há quem venda casas, quem venda carros,seguros, telemóveis, viagens, bebidas, livros,concertos, ideias, sensações, espectáculo. Sãoprecisos os restaurantes panorâmicos, os pa-vilhões de congressos, os super-aquários, sãoprecisos se se puderem vender. Se restasseainda um pouco de humanidade, talvez tam-bém se pudesse deixar algum vão mais som-brio para um sem-abrigo dormir ou umtoxicómano se injectar com mais alguma inti-midade. Ah sim, mas tudo isso daria mau as-pecto, e a EXPLO, sobretudo, é NEGÓCIO!

1 Informação posterior de um funcionáro da Expo viriaa esclarecer terem morrido bem mais de três animais.

2 Este texto foi escrito para ser lido num debate sobre aExpo realizado no dia 27 de Março de 98.

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A Ratoeira das Instalações

nho mórbidos. A Crítica é o sacerdote que emlatim dita a missa para os incultos.

O discurso intrínseco às instalações é o deuma arrogância e de um desdém paternalistaem relação a toda a arte que não siga o cânoneda pobreza, da não-expressão, da não-comu-nicação. Aqueles que não aceitam o papeldesta nova escolástica são os que, coitados,ainda pintam ou esculpem. Enfim, os não so-fisticados e actuais artistas.

Quando observamos uma obra, altamenteconceptualizada, despojada e monótona, já sa-bemos de antemão o que fica bem comentar:que os sacos de plástico espalhados pelo chãosão uma manifestação do artista contra o con-sumismo, que esses mesmos sacos significamo esgotamento de uma sociedade, que os plás-ticos são a subversão dos valores na arte, queapelam para a não comunicação, por esta-rem vazios, que é importante a descon-textualização do lixo como valor estético, eblá, blá, blá…

Como se sabe, o riso até é uma coisa inte-ligente. Mas as instalações, como são sole-nes e uma grande chatice, só provocam o risopelo absurdo e pelo enfado. Aliás são sempreum absurdo que nem faz pensar muito, são deuma pobreza que vive do espírito morto dasvanguardas. Além disso, alguém que se tenhaem estima de inteligente não pode votar aodescrédito estas manifestações, porque isso écrime de lesa-arte.

Criticar um monte de sacos de plástico éestar fora da cena artística, é estar fora da

É interessante pensar no fenómeno artísti-co, obrigatoriamente actual, que é a

Instalação. Não tenho nada contra o concei-to, quem me dera ter oportunidade de pôr al-gumas em prática. Queria apenas pôr em causao seguinte: porque é que, das que vi expostas,não tenho prazer, muito menos um orgasmointelectual, em vivê-las? Julgo que não é oconceito que está errado mas o que dele setem feito. Não contesto que o seu apareci-mento foi mais uma revolução importante naarte de Novecentos. E que os seus precursores,desde Duchamp aos dadaístas, tiveram um ex-traordinário interesse e continuam a ser umafonte de inspiração. Os actuais supostos inova-dores vivem na sombra desse brilho inicial.

O que se encontra nestes acontecimentosculturais é uma espécie de tendência bemenquistada que ameaça tornar-se absoluta. Asua suposta superioridade e inacessibilidadeao comum mortal surge num mundo dessa-cralizado em que a arte funciona com uma re-ligiosidade residual.

As instalações surgem assim como uma es-pécie de totalitarismo estético. Quem, comoeu, pense que as instalações, na sua esma-gadora maioria, são uma merdeca, bem podearrumar os seus chinelinhos de artista.

O artista é um demiurgo. O crítico vematrás, descodificando com uma vontade deencobrir ainda maior. Porque o crítico é o Sa-cerdote, sem se ler a recensão não se compre-ende a instalação. Os textos sobre arte (háexcelentes excepções, claro) são um bocadi-

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regra. O que implica excomunhão imediata.Pior do que isso, o espírito das instalaçõesimpele quem não delas goste para um papelde conservador, de retrógrado e passadista. Omedo de se ser com estes adjectivos conotadofaz com que o espectador (principalmente secom pretensões artísticas, e conhecedor da his-tória da arte) seja obrigado a achá-las muitointeressantes.

Este é o vício da arte do fim de século,devemos todos estar com medinho do fim domundo, é o vício das vanguardas chocas.Quem gritar, em silêncio como as instalaçõesgritam, Morte ao Dantas!, ganha de antemãoa partida. Mas o coitado do Dantas está já bementerrado!

As instalações são uma cilada à reflexãoporque: 1º – se o conteúdo é inexistente é por-que o artista é inteligente; 2º – quem não com-preende, quem não acha muito interessante, éporque não está na via sacra e certa da arte;3º – quem ri a bom rir é burro, a paródia ébanida pelo aborrecimento e pelas profun-dezas da arte; 4º – recusar as instalações épróprio dos conservadores, que já estão ultra-passados pelo devir da arte.

Mas eu julgo que: 1º a arte não está esgo-tada; 2º as instalações são coisas que só estãodesaproveitadas nas suas inesgotáveis poten-cialidades; 3º as instalações não podem ter apresunção de que as outras manifestações ar-tísticas estão em extinção.

Por isso, propõe-se: 1º – campos de tra-balho para os artistas, acompanhamento psi-quiátrico e, nos casos mais renitentes, umabanhoca de electrochoques; 2º – avacalha-mento de toda e qualquer instalação e humi-lhação pública do autor; 3º – proibição de todoe qualquer contacto sexual com unguladosdomésticos; 4º – reeducação pelo método dosalto-em-comprimento-e-atchim.

Rafael Dionísio

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Utopia 7 87

Através do teatro libertário, cheguei aoanarquismo. Ao tanger, compreender e

sentir a mais elevada concepção de vida soci-al e humana que as utopias projetaram, com-preendi e senti quão nobre, generosa eemancipada é a missão do ator.

Todas as injustiças, todas as misérias dasociedade em que vivemos com seus pri-vilégios e ambições de poder; as paixões queemergem da imensa gama de contradiçõesque refletem o comportamento e a psico-logia humanas, desfilam por muitos textose toda a complexidade dessa realidade éassumida pelo ator, que através de suaspersonagens e suas interpretações passa parao público uma mensagem que pode sertransformadora quando desperta umacentelha de revolta, que consola quandotransmite um sentimento de solidariedade,de bondade e de esperança, que podeprovocar o riso e a alegria, mas que terásempre uma perspectiva política.

Para mim, o teatro tem uma essêncialibertária e o ator, mesmo sem uma adesãoracional, é em certo sentido anarquista. O atortem que compreender e sentir a realidade emque vive e será tanto mais livre na medidaem que suas decisões forem pessoais. Paraisso, ele dependerá de seu desenvolvimentointelectual, político, físico, intelectual,afetivo e volitivo. Sua liberdade é relativapela convivência e relação com os outros. Aliberdade não é fazer tudo o que se quiser,mas querer tudo o que se fizer.

Ao adotar um padrão de valores onde to-dos os interesses se subordinam a princípioséticos, e a liberdade fundamenta a solidarie-dade constituindo-se em condição básica parao desenvolvimento do potencial criativo doser humano — um dos aspectos mais gratifi-cantes da vida — como anarquista sou contratodas as instituições opressoras. O Estado eos organismos que o sustentam com todas assuas imposições: o voto obrigatório, o servi-ço militar obrigatório e as mil sujeições obri-gatórias. Sou contra todas as castrações,limitações e restrições que anulam a personali-dade humana. Como anarquista, sou contra osorganismos que sustentam e reproduzem umsistema de exploração e opressão do homem:partidos políticos, com toda imbecilidadecaricata de seus profissionais; instituiçõesmilitares, policiais, judiciais, educacionais ereligiosas ao serviço de um sistema que cor-rompe e ofende a dignidade humana.

Como ator, penso num teatro agente trans-formador e não reprodutor de uma sociedadedirigida contra as mais legítimas aspiraçõesdo homem. Penso na mensagem poderosa queo teatro sempre transmitiu; na consciência crí-tica que o informa, através da História, desdea Grécia até à Modernidade. Ésquilo, Sófoclesou Eurípedes; Shakespeare, Molière ou Ibsen;Tchekhov, Brecht, Lorca ou tantos outros querefletiram os conflitos humanos das épocas,com tragédias, dramas e comédias, mas trans-mitindo o universal da existência humana. Eo ator foi sempre o portador da mensagem,

Eu, Ator e Anarquista

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Utopia 788

dando mais significado ao seu texto, quantomaior fosse a consciência de sua realidade ede sua perspectiva futura.

Para mim, ator e anarquista, a maior grati-ficação, a grande recompensa de cada instan-te é o júbilo que a busca permanente daspositividades humanas proporcionam. A

limpidez da alma na busca da superação, trans-mitindo o otimismo de um peregrino do ide-al, de um militante da alegria, contente deviver, de estar no meio da procela, porque ain-da há muito amor entre os homens.

Cuberos Neto

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Utopia 7 89

30 ANOS: MAIO 68 E A MISTIFICAÇÃO CORRENTE

Se, logo a seguir à derrota do movimento social desencadeado em Maio-Junho de 1968 em França, sedeu uma mistificação desenfreada do que acontecera, isso foi revelador do grande pânico que entãoatingiu as classes dominantes. Com efeito, o que neste Maio libertário se mostrou essencial edeterminante e que depois se viu sistematicamente censurado, foi a constituição espontânea de ummovimento radical de ocupações da propriedade estatal e privada, inserto num movimento grevistaque mobilizou dez milhões de pessoas (metade da população activa) e revelou o papel de cães deguarda do Estado e do capital desempenhado pelos partidos da esquerda reformista e sindicatosseus satélites. Se Maio 68 se tivesse limitado a um movimento de estudantes, a sua importância terásido, senão nula, pelo menos negligenciável. Maio 68 foi a maior greve geral e selvagem da História. [J.H.]

«Se numa só fábrica, entre 16 e 30 de Maio, umaassembleia geral se tivesse constituído em Conselhodetentor de todos os poderes de decisão e execução,expulsando os burocratas, organizando a autodefesae apelando os grevistas de todas as empresas aestabelecer ligação com ela, este último passoqualitativo teria podido conduzir de imediato omovimento para a luta final de que traçou histo-ricamente todas as directivas. Um grande número deempresas teria seguido a via assim descoberta.Imediatamente, esta fábrica teria podido substituir-seà duvidosa e, de todos os pontos de vista, excêntricaSorbonne dos primeiros dias, para se tornar o centro

efectivo do movimento das ocupações; e teriam aderidoa esta base comum verdadeiros delegados dos nume-rosos conselhos já virtualmente existentes em certosedifícios ocupados, bem como dos outros que podiamimpor-se em todos os ramos da indústria. Uma talassembleia poderia então proclamar a expropriaçãode todo o capital, incluindo o estatal; anunciar quetodos os meios de produção do país eram doravantepropriedade colectiva do proletariado, organizado emdemocracia directa; e desafiar directamente – porexemplo, apoderando-se por fim de alguns dos meiostécnicos das telecomunicações – os trabalhadoresdo mundo inteiro a apoiarem esta revolução.»

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Continuamos aqui a entrevista a que demos início no númeroanterior a Luce Fabbri, histórica militante anarquista uruguaia.

Encontro com Luce Fabbri

que se houvesse um sindicato por cada ten-dência ideológica, então ninguém consegui-ria defender os interesses dos trabalhadores.

Deu-se então a cisão e tu e alguns compa-nheiros fundaram as revistas Volontad e aOpción Libertaria não foi?

A Opción Libertaria surge depois da dita-dura, em 1976. A Argentina com Peron viveuperíodos de semi-ditadura. Aliás, a Argentinaviveu sempre entre uma ditadura militar eoutra. Nós, no Uruguai, pensámos associar-nos aos refugiados argentinos. O movimentoinseriu alguns refugiados argentinos no mo-vimento anarquista durante a ditadura de 1973.A Argentina teve várias ditaduras militaresnesse período. O Uruguai é um país muitooriginal, muito particular, porque permitiusempre governos ideologicamente distintos.Mas teve sempre uma tradição no que respei-ta ao pensamento. Admite pensamentos mui-to variados. A ideia de que cada um podepensar o que quiser está muito enraizada. Eu,neste aspecto, estou muito optimista quasepareço, neste sentido, nacionalista.

A publicação da Opción Libertaria perdu-ra até aos dias de hoje não é verdade?

Sim é verdade. Está mesmo para sair umnúmero que se quiseres podes adquiri-lo.

Mesmo estando afastada, não foi nos anos50 que nasceu a FAU (Federação Anarquis-ta Uruguaia?

Sim, eu intervim na fundação da FAU. Pa-rece-me ter sido mais no início dos anos 60.O meu irmão trabalhou muito nisso. Foi umtrabalho lindo, gostei muito de como seestruturou. Depois vieram as cisões…

Que cisões foram essas, podes precisar?Cisões acerca da natureza do regime comu-

nista implantado em Cuba. Como a FAU eraanarquista, foi algo de muito doloroso. Por viadessa cisão, fundámos a Aliança LibertáriaUruguaia mais ou menos em 1960 ou 1961. Foiquando Castro se declarou marxista-lLeninista.

Mas tinha muita importância o MovimentoOperário na FAU?

Sim, tinha. Dávamos muita importância aomovimento sindical, muito mais a este que aoutros, o que era uma situação complicada. Omeu pai não concordava muito com o ambi-ente sindical que existia. Ele queria umsindicalismo anarquista. Quando o meu paiaqui chegou, eram em número muito reduzi-do os que assim pensavam. Mas depois essenúmero foi aumentando. Desejávamos umsindicalismo único, e fizemos bastante pro-paganda nesse sentido, porque pensávamos

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Colaboram muitos companheiros na reali-zação da revista?

Sim, eu, o Beto (o companheiro da Débora)e começam também a aparecer no local muitosjovens.

Que local é esse?De manhã, juntamo-nos em assembleia

num local a que designamos ESPAÇO A. Éum espaço de jovens anarquistas, jovens quefrequentam sobretudo o en-sino secundário. A pouco epouco tem surgido um fe-nómeno interessante, queespero que se repita noutroslados também. O apare-cimento de jovens écrescente. Após a ditaduraeu ensinei na Universidade.

Agora tens 89 anos, e en-sinaste na Universidadeaté aos 84 anos?

Sim. Após a ditadura,logo no primeiro ano, osjovens mostraram-se muitoeufóricos. Depois, a poucoe pouco, veio o desalento,desalento este que foi cres-cendo no meio universi-tário. O movimento so-cialista real foi, emsimultâneo, uma surpresa e uma desilusãomuito grande para eles. Notou-se um decepçãoespantosa, que levou a uma desorientaçãointensa em detrimento da ideia socialista.Apesar de surgirem muitas críticas, a desilusãoadveio da verificação da não concretização dosocialismo. O nível de ensino degradou-sebastante (antes era muito bom, melhor que oda Argentina). Os nossos jovens, com aditadura, viveram 12 anos de obscurantismo.Desde 1985 até 1991, cada ano era pior que o

outro. Os jovens perguntam-se então: para quêestudar? Vamos viver a nossa vida agora. Osconcertos de jovens tinham desaparecido. Asassociações estudantis universitárias tinhammuito pouca gente. O ano passado anunciou-seuma reforma universitária. Os jovens estãoapreensivos.

Como não há critérios não-capitalistas, épreciso consultar os professores, sobre areforma vocacional. Os jovens dos liceus

levantaram-se em massa,insurgiram-se, ocuparamedifícios, pintando-os ale-gremente (azul e outrascores) porque estavam mui-to degradados. Foi um movi-mento muito engraçado eespontâneo. E o mais inte-ressante é que eram jovensde 14, 15 anos. É espantoso!

As autoridades apare-cem e perguntam comquem podem falar, ou quequerem falar com o presi-dente do grupo ou daquelaassociação. Eles dizem quesão todos iguais naquelacomunidade.

É espantoso ver que es-tes jovens protestaram por-que não foram ouvidos nareforma do ensino. Este

movimento dá-me muita esperança. A juven-tude universitária começa a ter outro espírito.

Sabes se alguns deles têm tendênciasanarquistas?

Embora não saibam muito bem o que é aanarquia, eles dizem-se, contudo, anarquistas.

Que tipo de acontecimentos é que elespromovem?

Fazem algumas publicações, debates,

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mesas redondas. Organizaram há pouco tem-po um encontro onde se debateram vários pro-blemas e pediram-me que dissesse algo sobrea Ética Anarquista.

Pensas publicar esse livro em breve?Não sei se vamos conseguir. Já

publicamos a Opción Libertaria.

Que pensas da crise neoliberalcapitalista, a nível mundial?Face ao que foi e é hoje o anar-quismo, que pensas sobre o seupapel no futuro?

O anarquismo pode vir a de-sempenhar um papel muito impor-tante. Não estou muito optimistaface ao futuro mas, antes, pessi-mista. É difícil evitar que aconteça uma crisemundial em grande escala, porque vai ser acrise do capitalismo. Vai ser inevitável essacrise, e chamem-lhe o que quiserem (fim dolucro, incompetência do mercado ou do socia-lismo). O que é um facto é que se os desempre-gados não compram, os robôs não compram,e se a tecnologia só serve paraembaratecer o custo da mão-de--obra, então, os ricos deixarão deter mercado (serão muito poucosos que podem comprar os seusprodutos). Iremos ter uma socie-dade de novos ricos e maquina-ria. Veremos cada vez mais osnovos ricos fechados em fortale-zas, com medo dos outros.

Se sobrevivermos à contami-nação dos resíduos atómicos e tan-tos outros perigos que nos ameaçam, então anossa única salvação será, como em todas asgrandes catástrofes, a solidariedade, porquequando surge uma crise, aparece muita coisafeia e muita coisa boa. Ela será necessária nacrise limite que vamos enfrentar. A única

réstea solidária estará no socialismo libertárioque, no futuro poderá desempenhar um gran-de papel.

O socialismo autoritário ou democráticofracassou. Veja-se, por exemplo, González emEspanha, Miterrand em França. Quando estes

chegam ao poder, o socialismo viracapitalismo. Aqui, os socialistasdesviaram-se para convencer osinvestidores. Aqui têm-se neo-liberais.

Começo a pensar que o grandepapel do anarquismo está no futuro.

Tendo presente a tua visão actu-al e olhando todos os teóricosque leste, quais são, segundo atua opinião, os que têm hoje

mais actualidade?Mira, que foi um escritor anterior à Segun-

da Guerra Mundial e à bomba atómica. Émuito actual e foi contemporâneo de meu pai.

O anarquismo é a única tendência do soci-alismo que tem sobrevivido. O socialismo temvariado de linguagens, era antes o ideal da

massa trabalhadora. Mas esta estáa desaparecer. Agora temos ho-mens e mulheres. O sentido demilitância tem mudado. Neste mo-mento temos que nos preocuparmais com os desempregados. Osque trabalham estão sendo pres-sionados, há um posto que que-rem muito preservar. Não ficariapessimista para o longo prazo seconseguíssemos passar para o ou-tro lado da crise. Se os nossos au-

tores são convincentes é no ideal, é nosprincípios, é nas suas propostas.

Queres acrescentar algo mais?Os mais convincentes são os que menos

têm falado das mudanças repentinas, os que

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mais se têm ocupado de coisas práticas. Háum trabalho sobre auto-experimentação demeu pai – que considero muito actual – sobrea Segunda Guerra Mundial e suas consequên-cias. Há que insistir neste caminho. Há quereforçar o movimento cooperativo. Encará-lode outra forma enquanto trabalho de equipa.Temos trabalhado nesse sentido. Fundámosmini-cooperativas para habitação e para con-sumo e estão neste momento a funcionar muitobem. Temos de continuar a trabalhar no apro-fundamento destes sistemas sociais, experimen-tando sistemas paralelos que possam resultar(ou não), mas sempre aprendendo com eles.

Quando e onde nasceste?Nasci a 25 de Junho de 1908 em Roma.

A tua mãe esteve perto de ti muito tempo,tendo vivido e trabalhado contigo não foi?Até quando?

Até 1972.

E o teu irmão?Após a Segunda Guerra Mundial, veio para

aqui trabalhar comigo. Morreu há 3 anos.

E o teu companheiro?Morreu em 1970.

Tens mais família?Sim. Estão na Patagónia. Tenho netos e em

breve terei um bisneto. A minha neta maisvelha está próxima dos ideais anarquistas, masé mais pessimista que eu. Tem uma posiçãoderrotista.

Muito obrigado pela entrevista que nos con-cedeste e espero que façamos um bom tra-balho a partir das tuas declarações. Até àvista, Luce Fabbri! Muita saúde e anarquia.

Questões por J.M. Carvalho Ferreira

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Notas & Comentários

1A democracia revelada

pelos seus modelos e imitadores

CCCCCom as eleições autárquicas de Dezem-bro de 97, tendo em vista a colocação de re-presentantes políticos nos 305 concelhos enas 4240 freguesias de Portugal, a classepolítica provou – pese, agora, o helicópteroestar no top de preferências dos políticos, acomeçar pelo primeiro-ministro –não ter nenhuma vocação para seelevar por cima dos interessesparticulares e obter deste modouma imagem aérea da sociedade.

Mais uma vez, a democraciarepresentativa existiu não, dofruto da cultura ou da praxis de-mocrática (que para o homem co-mum consiste na subordinação aoacto de colocar o papel na urna,de quatro em quatro anos), mascomo simples resultado dos inte-resses particulares de poucos in-divíduos e de grupos económicos.

DDDDDois dias antes da eleição, osjornais deram conta da agitaçãodos bancos para disputarem osnegócios que estão ligados às câ-maras municipais: mais de 700milhões de contos1. Ao frenesibancário correspondeu a agitação dos polí-ticos para serem eleitos representantes des-ses negócios. Correlativo do facto de muitoseleitos do partido U, terem em outras elei-ções sido eleitos pelo partido Z. Não porque,

«é muito difícil gerir uma Câmara quandonão se pertence ao partido governamental»2

mas como consequência do triunfo da estrei-ta ponte universal entre todas as formas depoder, o grande unificador, irreal e trivialdo presente império espectacular mercan-

til e da sua miscelânea religiosa:o dinheiro. Foi o dinheiro que, en-tre outras grandes coisas, permi-tiu encher salas e pavilhões ondese realizaram as sessões de pro-paganda dos principais partidosque, para o conseguir, recorreramà esperteza saloia do tudo à bor-la e ofereceram comida e bebidaem quantidades suficientes paraatraírem povo. Foi ainda e só odinheiro que inequivocamente seexprimiu, em Campo Maior (eeste exemplo está longe de serúnico), apresentando, na corridaeleitoral, um presidente candida-to e um candidato a presidenteque são simultaneamente osmonopolistas da actividade eco-nómica desses municípios3.

Desta forma, a actividade po-lítica demonstra ser uma função

de mercado onde se determina o valor dosinteresses em presença.

OOOOOutros factos firmes surgiram, por vezes,da nublada obscuridade, como se viessem do

Falc

ato

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nada, para desaparecerem a caminho do es-quecimento. Assim, as notícias mais incríveisenviaram a imagem invertida da corrida,surgindo e desaparecendo, como fantasmas.Tal aproximação foi possível ser apreciadanos incidentes que o senhor presidente daRepública desvalorizou4. Os insultos e acu-sações ferozes, as batalhas de rua com agres-sões físicas, a destruição recíproca da propa-ganda dos partidos em disputa pela gestão emanipulação da realidade5. Num intercâm-bio verbal entre profissionais de interesses,a acusarem-se entre si de fazerem o que cadaum exerce na perfeição dispondo para issodos seus gigantescos aparatos.

Afinal, esta profissionalização política dosinteresses, é uma variada escaramuça entreaparelhos partidários e económicos. Umaluta de todos contra todos. Um confrontoonde a vontade de poder de cada indivíduo,de cada facção do Poder, não conhece outrolimite do que a vontade de poder do vizinho.

NNNNNada se discutiu, nem nada é neste âm-bito para se discutir. Aliás, como costume,aquilo a que chamam de debate foi organi-zado em torno de problemas previamenteescolhidos e não de princípios. A Máquina(com a televisão à frente do pelotão e pro-cessados os eventos que ganharam o esta-tuto mediático) impõe o ritmo.

Esta realidade é a perversão total e a suaverdade permite o nascimento dos pseudodebates, em que o facto desaparece na né-voa manipulada dos faladores.

Assim, para ilustrar, e destacando só doisdos casos ocorridos na última corrida, foi, oprimeiro deles, eleito o homem que todo oprograma de entretenimento projectou, du-rante vários meses, em concursos, talkshows e futebóis: o ex-secretário de estadoda cultura Santana Lopes. O actor e o ani-mador por excelência. Ganhou a Câmara daFigueira da Foz porque existe na televisão.A provar que a actividade do homem políti-co consiste em jogar em qualquer campoonde se possa exibir, para poder estar o

maior número de vezes presente nos inú-meros psicodramas que enchem todos osanos os écrans da televisão e as páginas dosjornais. E desta forma se organizam as per-cepções colectivas.

O segundo que destaco, é o caso da televi-são SIC que comprou as siglas ao grupotrotskista FER (Frente de Esquerda Revolu-cionária), para promover o candidato ciganoà Câmara de Vila Verde. Este abraço ao povocigano, demonstrando a paralisação crescen-te do movimento social à custa da imobilida-de desamparada de vários e largos estratosda população, é uma entrega aparente àinquietude. Um momento do falso, servindoo poder ao restabelecer o realismo hierárqui-co que persiste em desaparecer para logo serefazer e, desta forma, evitar a todo o custoser substituído pelo realismo rebelde.

Notas:

1 Semanário Económico de 12 de Dezembro2 Declaração de Raul Castro: um monárquico eex-presidente da Câmara da Batalha, candi-dato do PS em Leiria e curiosamente directorde finanças em Ponta Delgada. Jornal de Lei-ria de 15 de Novembro de 1997.

3 Ver jornal Expresso de 25 de Outubro pas-sado:«Guerras do clã Nabeiro abalam autár-quicas».

4 Diário de Noticias de 14 de Dezembro.5 Eis alguns exemplos dos incidentes ocorridos:a 30/11/97 dois indivíduos foram hospitaliza-dos após envolvimento entre apoiantes do PSDe do PS. A 2/12/97, em Vila Nova de Gaia, agritaria dos candidatos na televisão ocasionouconfrontos na rua. A 3/12/97 o candidato soci-alista à Câmara de Óbidos definiu as afirma-ções do presidente, social-democrata, da C. deCaldas da Rainha como «só um imbecil, mal-criado, ordinário e rancoroso podia fazer». EmLeirosa, Figueira da Foz, no dia 10/12, houveconfrontos físicos entre PS e PSD. Manuel Ale-gre foi ameaçado com uma navalha, enquantooutro socialista candidato foi internado noHospital. Tudo isto, na presença da Ministrada Saúde que teve de ser retirada do local pelaporta dos fundos. Fonte: A-infos P. – recortesmalditos & comunicações nº11.

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2O silêncio da abstenção*

CCCCCercado entre a miragem da eficácia nadissolução dos problemas sociais e umanoção de futuro enquanto representaçãoabstracta e geral, como ficção políticadespersonalizante, o eleitor ao votar, reco-nhece as leis e o show que envolvem todo oespectáculo de «guerra eleitoral», facilitan-do o prolongamento da hierarquia e do seuavassalador Frankenstein: as mercadorias.Reconhece as leis que admitem o regime dosalariato e as desigualdades econó-micas, culturais e sociais e quesancionam as injustiças.

Quem não reconhecer leis,desta forma rejeitando umregime que é imposto e que sequer continuar a impor, recu-sando o mundo da vida aliena-da, saberá dar a si próprio aacção que corresponde de formacompleta à sua ética. Negar-se a vo-tar, nestas condições, não é um acto deinércia, é um acto de rebeldia!

NNNNNa presente sociedade emaranhada deleis obscuras e contraditórias e que por es-sência são opressivas porque simplesmenteas leis são feitas pelos Homens contra ou-tros Homens, o direito é por toda a partemuito pouco conhecido e poucas e raras ve-zes abandona a abstracção em que o torna-ram, para poder ser exercido como forçareal. E para volver abstracto o direito, énecessário que a mentira política alienantesurja, uma vez mais, omnipotente sobreaquilo de que a classe política não é dona.

O direito, resultante dos atributos e damaneira de ser de cada um e de todos osindivíduos, é irrevogável e não se pode alie-nar ou transmitir a outrem, ele é inerenteao indivíduo e à comunidade humana.

Há milhares de anos, hoje como amanhã,todos os indivíduos têm o direito de viver e

serem livres. De possuírem, não um qualquerdireito abstracto concedido por favor da leiestabelecida por uma qualquer classe políticaou social, por um chefe e, ou, por uma enti-dade divina mas, pela força real do direitonatural de comer, de se vestir, de se abrigar,de se cultivar, de se desenvolver moralmente

sem sanção, nem obrigação,enfim, de cada um usufruir detodas as coisas disponíveis. In-dependentemente de classes,cor, crença…, e sem criar po-der sobre os demais.

SSSSSe a presente barbárie, quese move lentamente, não devo-rar todas as condições deexistência, é possível na comu-nidade livre e universal da es-pécie humana, no respeito decada um e de todos, a lei des-pótica de um ou da maioriaceder o lugar ao contrato, a

todo o momento modificável e revogável e aoqual o indivíduo se associa, momentanea-mente cedendo algo, às decisões tomadas decomum acordo porque isso o beneficia.

EEEEE retornamos à questão das eleições, istoé, ao espectáculo político eleitoral. É justo quea vontade do grande número se deva impor?É absurdo que esse número tenha algumarelação com a lógica. Muito pelo contrário,quantas vezes os abstencionistas, inconsci-entes e conscientes, constituem o maior nú-mero? Quantas vezes os eleitos são aquilo aque denominam «maioria relativa»? Por ou-tro lado, tenha-se em conta que na compridae larga História da humanidade, todos os pro-gressos significativos foram alcançados atra-vés de luta árdua levada a cabo por minoriasou muitas das vezes por um só indivíduoamante da filosofia e, ou, da ciência.

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Utopia 7 97

Decididamente as eleições para represen-tantes políticos e, ou, delegação de poderesnada têm que ver com questões de filosofiaou de ciência. Será que têm alguma relaçãocom questões políticas? Todavia, a maioria,a população real, não só não vive disso como,mostrando-se fatigada, se está a marimbarpara a política. E esta recusa da políticaameaça suprimi-la e lançar as suas figurasao desemprego. Para tanto, bastaria que aabstenção não fosse um acto de inércia masum claro acto de rebeldia. Os governos com-preenderão que o abstencionista não é umindiferente. E o abstencionismo activo dificul-taria o exercício do governo. Que autoridadeteria um governo eleito por poucos eleitores?Que autoridade teria um parlamento comdeputados eleitos por claras e evidentes mi-norias? Que autoridade teria o poder execu-tivo governado em nome de tais parlamentos?

Finalmente, porque monstruosa aberra-ção, a liberdade natural do indivíduo em re-gular os seus interesses na coisa públicapode ser confundida com a delegação de po-der, a representação política que rouba aosindivíduos a sua soberania para a investirnum pequeno grupo de Homens?

Ora, é justamente em nome da soberaniaque os indivíduos devem recusar eleger osseus mandantes nas pessoas que se dizemseus representantes e que os governam emnome da classe, qualquer classe, ou do abs-

tracto direito do governado, ou do interessenacional , ou da maioria hipotética mas, sem-pre, segundo o seu belo querer e gosto.

CCCCConvém registar que não se pode fazeruso de uma força que se desconhece. Porém,pelo contrário, não há exemplo de que osindivíduos, e particularmente os desa-possados, não utilizem uma força reveladapara assim exercerem o direito à abstenção.Trata-se, talvez, de um esforço para que isto,como muitas outras coisas, se saiba. Parase demonstrar com este acto de rebeldia queos desapossados, e todos os indivíduos inte-ressados, não são fracos de recursos, que nãoobedecem, que não suportam a escravidão,que recusam o espectáculo eleitoral da clas-se política a perpetuar a hierarquia e o modode produção compulsório e totalitário. Estagreve do eleitor, como lhe chamou o escritorfrancês Octave Mirabeau, é uma greve fá-cil, porque não sendo o abstencionista cas-tigado, o abstencionista não arrisca nada.

As actividades e as preocupações políticas,correctas ou incorrectas, estão arreigadas, écerto, mas, como todas as preocupações funda-mentadas na mentira, podem combater-secom argumentos lógicos e nada resiste à lógica.

* Este texto foi inicialmente escrito para as edi-ções NIHIL OBSTAT, de Coimbra, como prefácioà obra de Octave Mirbeau «A Greve do Eleitor».

3O deslizar da serpente

AAAAA interiorização da ideia acrata pode serdupla: ela pode ser consequente, se for umamaturação interior dos seus princípios – anegação de todo o tipo de poder – e uma bus-ca da sua realização, o que exige um máxi-mo de engenho social e de imaginação práticae requer que cada um saiba muito bem o quequer (é o oposto à obediência das ideias abs-

tractas da vida e da acção negligenciada pelopensamento); ou pode ser bastarda, se à suainteriorização corresponder uma pervertidamanipulação do seu sentido em prol do mar-xismo ou doutra ideologia qualquer, encami-nhando-a para causas tradicionalmentelibertárias, recuperando partes de históriaacrata para a empregar em estratégias des-

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tinadas à conquista e à utilização do poder,estratégias de afirmação política.

CCCCContudo, é suposto acreditar que o co-munismo está morto e enterrado e há quemimagine a vitória final do capitalismoneoliberal como inelutável. Demasiado de-pressa se deu crédito a estas verdades.

O defunto marxismo, nos países onde elefoi pensamento único, tem dado mostras dealguma boa saúde por via de uma roupagemsocial-democrata, ressuscitando lenta e pru-dentemente em cinco de sete países do lesteda Europa e com os herdeiros dos carrascosde ontem a suscitar, ainda, a esperança denumerosos descontentes com as «delícias» eas «vantagens» do capitalismo privado.

Os cadavéricos textos do marxismo--leninismo servem, ainda, aqui na Europaocidental, como algures, de análise e estudopara alguns dos seus filhos perdidos. E se osvelhos ortodoxos se arriscam a serem subs-tituídos no interior do seu «glorioso partidocomunista» por manhosos aprendizes quevêem na roupa social-democrata o new lookcapaz de reformular o partido, outros, essesmarxistas e, ou, ex-leninistas que navegamentre a ambiguidade e o oportunismo, órfãosde regimentos e de «amanhãs que cantavam»,reduzidos a si próprios e ainda obcecados comas audiências e com «a acção de massas»,empreendem análises endurecidas e mórbi-das da doutrina marxista e, ou leninista numfaz de conta de descoberta daquilo que nun-ca possuiu: a crítica e a ideia libertária.

PPPPPara quem, como eu, viveu o período quese seguiu ao 25 de Abril de 1974 – quandoexistiam inúmeras organizações marxistase leninistas e os seus membros de uma in-tolerância brutal e inteiramente empeder-nidos com essa verdade desprezavam, entretantas coisas, toda a participação anarquis-ta na história, adulterando e apagando osfactos e obviamente anulando com a chaco-ta e perseguindo, quantas vezes, os poucosanárquicos que se atreviam a intervir nas

assembleias, ou, inclusive, em colagem decartazes, na distribuição de panfletos, navenda de publicações anárquicas – se sur-preenderá de ler hoje, em publicações quesão o que resta do movimento marxista: en-trevistas a milicianas anarquistas que par-ticiparam na revolução e guerra de Espanhade 1936-39, a divulgação de ensaios e expe-riências anarquistas, a biografia de autorese homens de acção libertários, o empregode termos tradicionalmente libertários.Mais vale tarde que nunca! Acho muito bem,porreiro! Quando essas publicações paraalém disso, defendem com clareza e fron-talidade a sua perspectiva marxista. Certo!Mas, critico o confusionismo de ideias queoutras pequenas publicações oriundas dos«salva vidas» do «Titanic» marxista-leninistadivulgam. De conteúdo essencialmente,ainda marxista e comunista mas, insi-nuando-se libertárias e usando o pleonasmolibertário quando acham conveniente, reco-lhem endereços de grupos e organizaçõeslibertárias, talvez, para deste modo alargaro auditório e paralelamente, movem-se emacções políticas conjuntas com organizaçõespartidárias da esquerda marxista elei-toralista. Tudo parecendo encaminhar-separa a revisão da matéria já dada: a afir-mação política da doutrina do materialismohistórico e do seu partido.

RRRRRevisitemos alguns aspectos fulcrais davelha polémica.

O conflito entre Marx e os anarquistas naPrimeira Internacional mostra claramenteque Marx não compartilhava, quer na práti-ca orgânica como no programa revolucioná-rio, a negatividade anárquica perante opoder. Marx exigia o controle da organiza-ção central sobre as secções. Insistia naunidade programática para reforçar a con-veniência na confiança das elites dirigentes.Deste modo, Karl Marx, preferiu destruir aInternacional a permitir que esta se conver-tesse numa associação de solidariedadediversificada. Rejeitou enfaticamente a tese

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acrata de que a abolição do Estado fosse umobjectivo importante para o momento.

Para Marx, assim como para o marxis-mo, a não existência do poder é algo que nãoexiste senão para além da história, enquantoque para os partidários da anarquia a ditasituação existe na história, no presente,inerente às possibilidades do presente.

OOOOO marxismo é de opinião que o poder eco-nómico é a chave da libertação do qual o po-der do partido, o poder do governo e o poderde uma dada classe são – ou estão destina-dos a ser – instrumentos. Os partidários daanarquia são de opinião oposta,de que a abolição do domínio eda tirania depende da sua ne-gação, no pensamento, e, quan-do seja possível, na acção. E isto,independentemente do estadode consciência de todas as clas-ses sociais. Levada a cabo emtoda a etapa, progressivamen-te, por todo o grupo.

Identicamente, na opiniãodos anárquicos, as opções e asacções dos indivíduos são impor-tantes para estes, para o seumeio e para todos nós. Na opi-nião dos marxistas, só as acções colectivastêm um significado real – segundo a inter-pretação de Marx sobre as famosas «Tesesde Feurbach» sobre o indivíduo.

Consequentemente, os partidários daanarquia vêem no marxismo uma ilusão delibertação e a criação de novas estruturasde poder que sem cessar atrasam a liberta-ção e anulam as libertações espontâneastoleradas momentaneamente.

AAAAA acracia é, pois, a filosofia que propõe aerradicação de todas as divisões entre os po-derosos e os desapossados, a dissolução e nãoa redistribuição do poder, a abolição de iden-tidade do governo e sujeito, líder e segui-dor, culto e ignorante, superior e inferior,senhor e criado. Se a acracia se realizar, to-

dos os Homens na sua individualidade úni-ca se relacionariam entre si em múltiplassociedades não estratificadas, escolhidas vo-luntária e livremente.

TTTTTodas estas questões permitiriam vári-as outras explicações que ultrapassariam oslimites destas «notas & comentários». Aten-temos brevemente a uma outra questão: oagrupamento dos esforços. Isto porque a lutada liberdade não será propriamente um rin-gue onde os partidários da anarquia seriamum só contra todos. Nada disso.

O agrupamento dos esforços é necessá-rio para a luta, e é necessário também para

assegurar no futuro o funciona-mento da comunidade de indi-víduos.

Mas como é que se deve efec-tuar este agrupamento? «Se-gundo as necessidades», dizemos autoritários de todas as mati-zes, marxistas e não marxistase inclusive alguns comunistasditos libertários. «Segundo asafinidades», respondem os par-tidários da anarquia.

Importa guardarmo-nos deser absolutos e de ser castiga-dos pelas palavras.

As necessidades não se violam, o que éóbvio, mas se, com o pretexto das necessi-dades, os elementos mais diversos se jun-tam, não existirá nada mais do que um coisahíbrida, sujeita aos dilaceramentos perpé-tuos, ao balanceamento em todas os senti-dos e incapaz para o esforço que se requer.E se as acções forem num sentido claro demera afirmação política – ameaçando como terror que antigos papões inspiram, porvia da necessidade de militantes tóxicos seagarrarem a tábuas de salvação místicascom o objectivo de despertar as massas paraa acção política –, mais vale deixar essas ac-tividades políticas entregues às mãos dosseus habituais manipuladores.

As associações que operam descuidada-mente dissolvem-se rapidamente; só os gru-

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pos baseados na liberdade individual e nadiferença dos seus membros e simultanea-mente sobre a comunidade do objectivo, nasimpatia e íntima solidariedade dos interes-ses resiste ao tempo e aos obstáculos. O queexplica porque é que a «união dos revoluci-onários» de diferentes escolas, desejada porum grande número, é impossível e não acon-selhável. Cada um quer fazer prevalecer assuas ideias e preferências teóricas. Enquan-to que a livre associação de indivíduos emdeterminados pequenos grupos, fundada noentendimento e na amizade, foi sempre umespaço livre e inabalável.

É certo que, quer os transtornos dos pe-ríodos revolucionários, quer a luta quotidi-ana da libertação individual e colectiva detodas as tutelas levar-nos-ão, por vezes, acoligações desarmónicas, disparatadas, aalianças singulares, mas estas coligações eestas alianças dissipar-se-ão com os even-tos que as proporcionaram e o indivíduo re-toma a liberdade para se associar comaqueles cujo carácter e o género de vida maislhe convém e maior deleite lhe oferece.

*

AAAAApesar dos aprendizes se encontraremturvados pelo lucro máximo, a única moralda sua economia bárbara, manejando o pen-samento único que tece louvores à sacrossan-ta rentabilidade, o pensamento neoliberalquer no leste, como aqui e quase por todo omundo, longe de fazer a unanimidade, en-contra-se distante de poder cantar vitória.Será o inverso que está em vias de aconte-cer, o protesto das massas populares, ou dos«excluídos» do lucro que aumentam de mêspara mês revelam um sistema também eletotalitário. A lei do mercado é a lei do maisforte, do mais rico, do menos escrupuloso.

Nesta confusa situação, todas as esperan-ças são permitidas aos manipuladores detoda a espécie, aos ideólogos integristas oufascizantes, aos sectários mais remexidos. Apartida que se joga vai ser rude. Não pode-

mos ter rodeios ou hesitações, se quisermossalvar o essencial. É tempo de propor sempeias uma outra voz, uma «terceira via» aoserviço da pessoa, uma alternativa progres-sista e rebelde no sentido anárquico do termo.

J.T.J.T.J.T.J.T.J.T.

Bibliografia:

Écrit contre Marx, fragmentos do «L’EmpireKnouto-Germanique» de M.BakunineLes Prétendues Scissions dans l’Internationalede Karl Marx e Friedrich EngelsL’Internationale de J.GuillaumeMax Stirner, fragmento da «Ideologia Alemã» deK.Marx e F.EngelsDer Einzige und Sein Elgenthum de Max StirnerLa revolution inconnue de VolineLos Anarquistas Españoles y el Poder de CésarM. LorenzoLe Néant Monétaire: au service d’une économielibertaireA Sociedade Contra o Estado de Pierre Clastres

Errata da Utopia nº6Errata da Utopia nº6Errata da Utopia nº6Errata da Utopia nº6Errata da Utopia nº6

Sumário, onde aparece «Encontro Anárquico:Izeda 97» deve estar «Memória de outrosMemória de outrosMemória de outrosMemória de outrosMemória de outrosacampamentos»acampamentos»acampamentos»acampamentos»acampamentos»

Ficha Técnica, na Capa deve aparecer o títu-lo: «Embate entre dois homens com um «Embate entre dois homens com um «Embate entre dois homens com um «Embate entre dois homens com um «Embate entre dois homens com umterceiro a assistir»terceiro a assistir»terceiro a assistir»terceiro a assistir»terceiro a assistir»

Pág.26, linha 22, onde aparece um ponto deexclamação «...esta memória volta à estacazero!» deve aparecer um ponto final.....

Pág.42, o título «Encontro anárquico de Izeda97» leia-se somente «Memória de outrosMemória de outrosMemória de outrosMemória de outrosMemória de outrosacampamentos».acampamentos».acampamentos».acampamentos».acampamentos».

Pág.55, onde aparece repetido o título «A formaextrema de privatização: o anarco-stalinismo»,leia-se «A forma extrema de provocação: oA forma extrema de provocação: oA forma extrema de provocação: oA forma extrema de provocação: oA forma extrema de provocação: o“anarco”-stalinismo“anarco”-stalinismo“anarco”-stalinismo“anarco”-stalinismo“anarco”-stalinismo»

Pág.55, segunda coluna, linha 10, onde apare-ce «das recitas da “droga”» deve-se ler «das re-das re-das re-das re-das re-ceitas da “droga”.ceitas da “droga”.ceitas da “droga”.ceitas da “droga”.ceitas da “droga”.

E..., ficamo-nos por aqui empregando as pala-vras do companheiro Edgar Rodrigues. O serhumano é falível...

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Livros e Leituras

A VIRGEM DO HAITI

Olivier Rolin, A Invenção do Mundo, Asa, 1998Tradução de Margarida Barahona e Maria do Rosário Mendes

Olivier Rolin, escritor francês já conhecidodo público português (Porto-Sudão, Asa, e O Barda Ressaca, Dom Quixote), desafia-nos, com AInvenção do Mundo, a segui-lo durante mais de500 páginas — de sexo, morte, violações, impos-turas e excessos policiais que cobrem outraspáginas, as da história pessoal de um narradoraventureiro que mira o mundo em directo, se-guido de perto pelo seu Autor.

Toda esta enorme e narrável aventura se con-centra numa jornada do mundo, o dia 21 deMarço de 1989, equinócio da Primavera em que,numa parte do planeta, a luz e as trevas ficamem igualdade. Para o fazer, Rolin, com a ajudade muitos colaboradores, examinou 491 jornaisdiários em 31 línguas.

Este paquidérmico tabuleiro de xadrez cons-titui uma verídica história do mundo. Cronistade um dia, o autor abarca cidades, vidas intei-ras, dramas, oceanos, exímio em dar relevo àlenda, ficção que se desprende do real e queamiúde contém maior verdade. Apesar dos re-ceios que Rolin mostra perante a literatura e,em especial, perante a sua própria obra, estelegado da escrita que testemunha, projecta trêsvotos. 1) Premunir-se e premunir-nos contra aprecariedade que faz de nós clones em prepara-ção. 2) Lançar por toda a parte as sementes, paraque a vida renasça. 3) Manter a flâmula da li-berdade de pensar e escrever, cujo desgraçadosímbolo se encarna em Salman Rushdie. E é apalavra humana, por conseguinte, que há-delevar a melhor sobre «a veneração medrosa aqualquer palavra divina»!

Estes três votos não são rezas nem deveres,são aspirações borgesianas, força e ligeireza,uma espiral deslumbrante sem tempo desapos-

sado. É este o projecto heróico de Olivier Rolin,utilizando o verbo negro do tão mal chamadolivro policial para dar forma ao bloco em brutoda vida contemporânea, «reconstituição moder-na e policial do Gólgota», na última subversãopossível para confundir o caos do conformismo.

Romance negro de amor, é escrito por umpoeta insubmersível, antigo cábula bêbado àbeira dum tédio em que se estafa. Sem sombrade vulgaridade, o domínio poderoso que Rolinexerce neste xadrez, vivendo «o ar pesado daterra e a grande liberdade das nuvens», ressoano «movimento de embate dos mares». Como emBoris Pasternak, o que domina em Olivier Roliné a paixão pela língua e o cinzelá-la, revelando-nos um escritor que casa o excesso romântico(sempre de intervenção) com um classicismo deordem e pudor. Desarmante união esta, paraonde o leitor se lança como a criança se atirapara dentro duma empatia desfraldada.

A exibição de Rolin, sobressaindo na corren-te intimista ou anedóctica actual, apesar de fe-roz nem por isso estabelece uma clivagem entreele e o leitor. Caso um instante distraído nosassalte, ele logo acorre. Esta ausência dedesatenção faz do seu «exibicionismo» uma or-dem ofuscante na qual a obra lhe pertence ple-namente. E de facto é inconfessável: «Souimpossível porque existo demais».

A escrita de Olivier Rolin parte em buscadum elo antigo, de novo atravessando o orgulhodas bandeiras e das chamas, de novo nadandosob os olhos horríveis das barcaças, pararevitalizar as suas seivas inauditas, não exau-ridas mas cansadas, nestas imensas e imputres-cíveis marmitas (ou tonéis) das Danaides, «maisfortes do que o álcool, mais vastas que as nos-sas liras» (Rimbaud, no Barco Ébrio).

Entraremos nós neste blue bus guiado por tãotemível condutor, ou ficaremos à espera, como ajovem operária do Porto, Penélope industrial, deque Ulisses regresse, concluída a viagem?

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Desvendando-se, Rolin consegue mostrar aosseus leitores que não é ele o verdadeiro narradore que perante a literatura toda até prefere o cor-po deslumbrante e sugestivo duma companhei-ra. Ora esta amante tão próxima poderá tambémexecutá-lo como escritor, fazendo oscilar o an-daime borgesiano da Invenção do Mundo: «O teuolhar tem o brilho dum sabre de Kandahar, sin-to que poderá cortar-me na garganta a fonte daspalavras, mas está bem assim, porque as nar-rativas não podem existir sem o risco de se ve-rem logo de manhã decapitadas».

Movimento de fénix, a escrita-oceano deOlivier Rolin mascara o seu corpo na busca de«delicadas jaulas de tinta» capazes de testemu-nhar, melhor do que qualquer rito funerário, quea palavra silenciosa apreende a enigmática almauniversal. Este corpo de narrador entre «cojonese alma» acompanha Agony, virgem do Haiti, e

Percebi. Era simples, afinal: a editora Assírio& Alvim e o grupo musical Madredeus aprovei-taram a deixa para ganhar prestígio às costasdos demais. «Antes ser absolutamente ininte-ligível perante uma inteligência senhora de sido que ser devorado pelas partes que os outrosescolham, em puro abuso, para a satisfação daprópria inteligibilidade deles, estrangeiros.»(Herberto Helder, Photomaton.) Ao agir assim,esta dupla empresarial martirizou-me a audi-ção e provou que não é necessário compreendera poesia para se abusar dela e ridicularizá-la.Sem contar que eu (mas isto é um caso particu-lar) provenho duma antiga família de músicos eque para mim a música é uma linguagem níti-da, feita de frases, expressões, sentidos, e quepor isso uma misturada de vozes instrumentaiscom vozes de homens e mulheres, possuidorasdum nexo anterior e próprio, só não são cacofoniase o conjunto for harmonioso.

Ora a música deste DC não só não está emsintonia com os textos (as vozes) que preten-samente «comenta», como ainda por cima é umaxaropada pretensiosa, a armar ao pingarelho,que não foi motivada pelo objectivo de servir (oupelo menos de acompanhar) aquelas vozes. «Oequívoco é só esse de confundirem a nossa difi-culdade com a sua facilidade. E esta ilusão desuficiência é dramática: porque pode atrasar-nosna direcção dos destinatários verdadeiros.

acompanharia até à morte o de Ana Karenina,se a tivesse criado.

Assim surge justamente um dos fios do «con-junto destes milhões de reescritas simultâneas»que fazem o labirinto do mundo, no qual mons-truosamente concentramos a nossa instabilida-de e dissipação: ao fazermos, ante a vida real (aúnica que se concretiza) alarde de virtualidades.

Oscilando entre a nostalgia do desejo de pos-suir e a amarga injustiça (a do hábito, secandotudo), travestindo a emoção em bazófia e a fide-lidade em obra, Rolin repõe a escrita no seu pa-pel repetitivamente salvador em que ele, autor,encontra uma pacificação, a da realização espo-rádica dos seus votos por força da submissão vo-luntária a este intermediário imperativo:«Comecei a escrever, iniciei um sacrifício».

Joëlle GhazarianJoëlle GhazarianJoëlle GhazarianJoëlle GhazarianJoëlle Ghazarian

EU E O COMÉRCIO, OU DA MERDA

CULTURAL EM TEMPO DE NOVO-RIQUISMO

Não falarei do sentido comercial e do estere-ótipo mundano e citadino dum produto lançadopara o mercado por volta do Natal de 1997, fala-rei apenas duma coisa: da ridicularização detudo, e aqui da poesia, ou seja, das entranhasde certas pessoas.

O produto é um disco compacto fabricado pelaeditora Assírio & Alvim sobre poemas ditos porpoetas por ela editados, com um acompanha-mento musical fabricado pelo chefe do agrupa-mento Madredeus, o tal que já vai cantar aoVaticano as suas emproadas cantilenas. Nãocomprei o tal DC, gravaram-mo em cassete. As-sinalo-o porque convém dizer que não esbanjodinheiro em produtos abastardados.

Ligo a cassete, esperando quase ansiosamen-te ouvir poemas magníficos ditos por quem oshavia escrito, pronta para todo o erro e até paratoda a exibição. Pronta, porém, para o possíveldesazo de poetas e não para o de terceiros. Eque ouço eu? Uma musiqueta lacrimejante esentimental, quase tonitruante. Enervada, acusto consegui escutar, e dolorosamente, aque-las vozes humanas em fundo humano — comorouxinóis tentando escapar à asfixia nas areiasmovediças da tecnologia sonora.

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Quando se compreenderá que se trata de cum-plicidade?» (Idem, ibidem.)

Vi-me assim, mais uma vez, perante a forçademagógica dum mundo efectivamente canibalobcecado pela ideia de nos fazer crer que a únicarealidade possível é a sua. Mas habituada aresistir a todos os ventos, este DC remeteu-mepara a minha própria cólera e para a única

tradições na obra de Bookchin, Watson é parti-cularmente demolidor em relação ao auto-ritarismo de Bookchin, que se tem furtado aoconfronto com outras versões da ecologia socialdentro dos movimentos ecologista e anarquistanorte-americanos. Esta obra tem portanto umcarácter eminentemente polémico, mas estálonge de se esgotar aí.

A sua estrutura é definida, em boa parte,por uma série de conceitos que Watson vai ex-por e criticar na formulação bookchiniana: ra-zão, civilização, técnica, progresso, natureza,espiritualidade, cidade e primitivo. Watson mos-tra, nomeadamente, até que ponto a ecologiasocial de Bookchin está prisioneira da racio-nalidade tecnocrática e da ideologia do progres-so, não apenas nos conceitos muito restritos derazão e de civilização, ou através de uma confi-ança contraditória na tecnologia, mas tambémpor via de uma conceptualização logocêntrica danatureza e da espiritualidade. Há também umcapítulo dedicado à injustificada profissão de féde Bookchin nas virtudes do municipalismo de-mocrático norte-americano, em face da organi-zação das cidades contemporâneas e da naturezaburocrática da política. Nos dois últimos capí-tulos, dedicados à representação das culturasditas primitivas, Watson contesta as análiseseconomicistas das duas últimas décadas, consi-derando que as teorias revisionistas da antro-pologia pós-moderna acabam por re-mistificaras culturas primitivas.

Uma das grandes qualidades desta obraestá em fazer plena justiça ao seu título, tornan-do-se uma excelente introdução para quem, comoeu, desconhecia quase por completo a ecologiasocial norte-americana. Em vez de oferecer umadoutrina panfletária, auto-satisfeita com as suaspróprias análises e palavras de ordem, Watsonoptou por inspeccionar atentamente o vocabu-lário crítico de um dos seus expoentes e mostrar

realidade estimulante, a da realidade dumaoutra realidade de que a poesia é mãe. E já queassim é, abusarei aqui de Herberto Helder, emforma de lembrete: «Qualquer poeta que tenhaatravessado os túneis pode assinar a palavra“merda”.»

SakarinaSakarinaSakarinaSakarinaSakarina

ECOLOGIAS SOCIAIS

David Watson, Beyond Bookchin: Preface for aFuture Social Ecology, Detroit/ NY: Black& Red/Autonomedia, 1996. O livro pode ser encomendado

para Black & Red, P.O. Box 02374, Detroit, MI 48201.

Este livro de David Watson faz uma análisee uma crítica do conjunto da obra do pensadornorte-americano Murray Bookchin, um dosprincipais teorizadores do movimento daecologia social. Bookchin, que começou a publicarno início dos anos 70, tentou ligar a teoria domovimento ecologista, a teoria marxista e acrítica anarquista da tecnologia e da civilização.Além de diversos artigos, entre as obras deBookchin que são minuciosamente escrutinadasnesta análise contam-se: Toward an EcologicalSociety (1980), The Ecology of Freedom (1982),The Modern Crisis (1986), The Rise of Urban-ization and the Decline of Citizenship (1987),Remaking Society: Pathways to a Green Future(1990), Which Way for the Ecology Movement?(1994) e The Philosophy of Social Ecology (1995).Watson, por seu lado, além de colaborador e edi-tor da revista de Detroit Fifth Estate, é tambémautor de How Deep Is Deep Ecology? (1989).

A ecologia social tem como programa cons-truir uma representação capaz de transcenderas dicotomias ser humano/natureza, numa vi-são holística da actividade social humana en-quanto elemento da esfera ecológica. Uma talteoria implica uma profunda crítica da organi-zação social do trabalho, do desenvolvimentourbano e da coisificação da natureza, que resul-taram do desenvolvimento tecnológico, da ideo-logia do progresso e da glorificação da civilização.

Segundo David Watson, a ecologia socialde Bookchin, no entanto, fica muito aquém dassuas intenções. Ao mesmo tempo que identificaexaustiva e claramente muitas limitações e con-

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como a ecologia radical de Bookchin se encontraainda ideologicamente dependente das catego-rias que quer contestar, o que compromete mui-tas das suas intuições mais valiosas.

David Watson conseguiu assim uma rela-tiva descolonização dos conceitos da ecologia so-cial de Bookchin, revelando as insuficiências dasua linguagem erigida em sistema e abrindo ca-minho para outras ecologias sociais. A técnicade fazer falar de outro modo as inúmeras cita-ções de Bookchin tem, de resto, um elucidativo

ANATOPIA

Anatopia nº2, 1998, Apartado 21290, 1131 Lisboa.

Ao olharmos para os princípios editoriais darevista anarquista Anatopia, n.º2, depressa nosapercebemos que estamos perante uma publi-cação com objectivos de assumir uma interven-ção radical na sociedade portuguesa. Semquaisquer espécie de paternalismos, penso queé sempre salutar uma iniciativa que pretendaerradicar do nosso planeta a dominação e a ex-ploração do homem pelo homem. Sabendo dasdificuldades que existem para manter uma pu-blicação libertária, trata-se agora de construirà sua volta uma comunidade suficientementeactiva e fraterna, por forma a que possa persistir.

Dos diferentes artigos que integram estenúmero, na minha opinião, destacam-se Neoru-ralismo e Okupação Rural e Sem-Terra - Ocu-par, Resistir, Produzir.

Em relação ao primeiro artigo, mais uma veza voz da lucidez nos transmite os sinais da des-truição do mundo rural realizado pela lógica doprogresso e do crescimento económico capitalis-ta. Luis Emilio Herrero Martinez não só carac-teriza os mecanismos negativos da destruiçãodo solo e do ambiente provenientes dos modelosde produção e de consumo, como ainda observaa destruição da vida quotidiana e dos laços co-munitários que persistiam no campo.

Como estratégias possíveis para superar arealidade existente, em termos estratégicos, pro-põe a “criação de espaços livres de exploraçãodotados de um carácter comunitário em que ouso colectivo se imponha sobre a apropriaçãoprivada. De espaços que fomentem a criati-

paralelo visual: cada capítulo é introduzido poruma gravura dos Caprichos de Francisco Goya,através da qual a interpelação céptica de DavidWatson comenta o dogmatismo de MurrayBookchin. A argumentação polémica do livroabre-se por isso inteiramente para o leitor, queganha uma viva consciência dos problemas deuma conceptualização ecológica da razão, da na-tureza e da sociedade.

Manuel PortelaManuel PortelaManuel PortelaManuel PortelaManuel Portela

vidade, a auto-suficiência, a participação, a ex-periência, a relação de respeito com o envolvente,a contínua aprendizagem, a saúde integral…,que rompam com as relações de dependência como consumo, o trabalho e o sistema de mercado,em favor da reapropriação do nosso tempo, donosso trabalho e da nossa vida”. Tratar-se-ia,assim, de reconstituir grande parte das práti-cas económicas tradicionais no mundo rural,mas onde a solidariedade, a liberdade e a igual-dade estariam presentes. É sem dúvida umgrande desafio, cuja sustentabilidade levará ine-vitavelmente a um grande esforço colectivo e auma reconciliação ambiental no campo. No en-tanto, é preciso ter a noção dos efeitos negativosda racionalidade instrumental do capitalismo.A força do dinheiro, do mercado, do Estado, dolucro e do trabalho assalariado far-se-á sentir.Sem uma grande capacidade de auto-governaçãoe de auto-organização aos níveis local, regionale internacional, dificilmente essa estratégia co-munitária neorural perdurará.

Com a entrevista realizada a Luís Henrique,do Centro de Cultura Libertária de BeloHorizonte, ficamos a saber que a inexistênciada Reforma Agrária no Brasil é uma realidadesecular que ainda levará muitos anos a resolver.Lendo atentamente a entrevista, é possível fazerduas leituras cruciais. Em primeiro lugar, a lutado Movimento dos Sem Terra (M.S.T.), quecomeçou em 1979, resulta de uma situação deextrema pobreza, de desemprego e de iniquidadedo sector agrícola e da estrutura da propriedadefundiária no Brasil. Camponeses pobres etrabalhadores assalariados agrícolas vêem-semuitas vezes constrangidos a adaptarem-se acondições sócio-económicas pautadas pela

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escravidão, com atropelos sistemáticos dosdireitos políticos e sindicais. Quase sempre, aarbitrariedade dos senhores da terra e doscaciques locais em assassinatos, violência eformas despóticas de dominação dissuadiram oaparecimento de lutas reivindicativas e revo-lucionárias nos campos do Brasil. Esse tempo deresignação acabou no Brasil.

Em segundo lugar, partidos e sindicatos clás-sicos têm alguma dificuldade em integrar nosseus programas algum conteúdo radical e práti-cas espontâneas de luta inscritas na acção colec-tiva e reivindicações do M.S.T.. Mesmo sabendoque alguns partidos (caso do Partido dos Traba-lhadores) e o sector progressista da Igreja Cató-lica Apostólica Romana têm uma relativainfluência na liderança desse movimento social,e, ainda, que existem desvios do programa defi-

nido pelo M.S.T. na materialização prática de al-gumas ocupações, tudo isso não invalida a justi-ça das suas reivindicações e das suas formas deluta. Não se pode dizer que são experiências deluta tipicamente libertárias. Mais do que umaopção libertária, a luta do M.S.T. revela-nos umaforma de resistência e uma luta pela sobrevivên-cia no quadro de um capitalismo retrógrado.

Toda a parte restante da revista Anatopia,n.º2, é interessante, embora se verifique umacerta fragilidade analítica nos artigos de opiniãoque se debruçam sobre a situação do movimentolibertário em Portugal. A crise do movimentolibertário não é específica a Portugal e os pro-blemas que nos afectam são muito mais profun-dos do que aqueles que foram sublinhados.

J.M. Carvalho FerreiraJ.M. Carvalho FerreiraJ.M. Carvalho FerreiraJ.M. Carvalho FerreiraJ.M. Carvalho Ferreira

ANARQUISMO NEGATIVO

ANARQUISMO POSITIVO

Peter Heintz, Anarchisme négatif - Anar-chisme positif, Lyon, Atelier de Création Liber-taire, 1997.

Com a edição de Anarchisme négatif - Anar-chisme positif, da autoria de Peter Heintz (1920--1983), o Atelier de Création Libertaire conseguiuintroduzir alguns elementos de reflexão que sãoimprescindíveis para todos aqueles que se recla-mam do anarquismo. São reflexões importantesporque o livro envolve uma série de postuladosque são simultaneamente heterodoxos e moder-nos. Deles se deduz que não podemos ficar eter-namente agarrados ao passado, nem tampoucosubmetidos a formas de acção passivas que de-correm de uma visão utópica do anarquismo.

Para Peter Heintz, o anarquismo negativosignifica todos os tipos de pensamento e de ac-ção que se corporizam em formas de revolta es-pontânea contra a autoridade hierárquica formaldo Estado, mas também todas as outras que en-volvam dominação (despotismo, democracia, di-tadura do proletariado, hierarquia). O legado doanarquismo histórico polarizado à volta da vidae da obra de William Godwin, Michel Bakounine,Pierre-Joseph Proudhon e Pierre Kropotkinepersonifica bem essa revolta.

Neste sentido, o anarquismo, como forma depensamento e de acção, não se coaduna com po-sições utópicas, na estrita medida em que só épossível erradicar qualquer tipo de dominaçãocom uma revolução anarquista concreta. O anar-quista é essencialmente um revoltado, daí que arevolta pura, sem fundamento ideológico, seja amatriz básica do anarquismo negativo. A revoltanão emerge só como consequência dos aspectosnegativos da dominação desenvolvida pela auto-ridade hierárquica do Estado e de outras insti-tuições, mas é também uma manifestaçãoinequívoca da emancipação espiritual dos sereshumanos em relação à ordem social vigente.

O anarquismo negativo também é contrárioa qualquer tipo de representação universalista,já que esta contém em si sempre fenómenos denatureza totalitária e transcendental, sempreestruturados por uma organização hierárquica.Estas formas universais de dominação são visí-veis na existência de um ser humano “superior”(Deus), ou numa instituição (Estado).

Da mesma forma que o anarquismo negati-vo se reporta basicamente aos postulados clás-sicos que tiveram grande visibilidade social nopassado, o anarquismo positivo decorre essen-cialmente do presente e baseia-se numa acção enum pensamento anti-universalista. O anar-quista positivo tende a ultrapassar a realidadeuniversal que cerceia a sua liberdade e o senti-do genuíno e soberano da sua revolta. Para qual-

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quer ser humano, acima de tudo importa fazerviver a sua subjectividade anarquista no mo-mento presente, ultrapassando todas as barrei-ras que o impedem de ser livre. Na opinião dePeter Heintz, qualquer atitude de um anarquis-ta positivo não necessita de justificação teórica.Este tem uma dignidade inalienável que se le-gitima a si próprio, sem recorrer a qualquer or-dem hierárquica ou metafísica. A acção e opensamento do anarquismo positivo é balizadopela acção e o pensamento possível de cada in-divíduo, de cada situação concreta.

Contrariamente às premissas materialistasdo modelo de produção e de consumo em massade mercadorias que deduz totalitariamente doque deve ser ou não vivido, para o anarquismopositivo trata-se de empiricamente viver as múl-tiplas experiências que se lhe apresentam hojecomo realizáveis.

Discordando de alguns pressupostos analí-ticos do autor em relação à suas concepções deuniversalismo e de utopia, não deixa de ser inte-ressante a sua análise do anarquismo positivoenquanto forma de interpretação da realidadeanárquica, que é por essência plural, já que écomposta por uma série de realidades distintas.Cada uma destas realidades tem virtualidadesintrínsecas irredutíveis, sendo por isso estranhaa qualquer tipo de posição dogmática ou ortodo-

xa. O federalismo proudhoniano exprime bemessa delimitação que existe entre diferentes rea-lidades. Por outro lado, para o autor, a coopera-ção, a reciprocidade e a moral anarquista da vidaquotidiana estruturarão as bases plausíveis deexperiências realizáveis numa sociedade anar-quista. Segundo Peter Heintz, persiste, contu-do, uma contradição na teoria anarquista que édifícil de superar, já que não é lícito pensar quea capacidade de raciocínio autónomo de cada in-divíduo seja capaz de ultrapassar os constran-gimentos do sistema universalista. Na sua ópticaesse problema pode ser resolvido desde que seadopte uma teoria psicanalítica identificada comos pressupostos de uma psicologia anarquista.

Para o autor, “o anarquismo positivo não pro-põe uma solução perfeita para cada problemageral que se apresente; ele aspira somente a ummundo à medida de cada homem, e o homem re-presenta para o anarquismo uma possibilidademaravilhosa que personifica toda a sua dignida-de. Não é uma utopia, mas somente a aspiraçãoa uma relação positiva do homem com a realida-de anárquica, tal como ele a percebe”. Se tivermosa capacidade e a possibilidade de aprendermos aviver a anarquia todos os dias, ler o livro de PeterHeintz é um bom método para esse efeito.

J.M. Carvalho FerreiraJ.M. Carvalho FerreiraJ.M. Carvalho FerreiraJ.M. Carvalho FerreiraJ.M. Carvalho Ferreira

CULTURA LIBERTÁRIA

Actes du Colloque Internationale, La culture li-bertaire, Lyon, Atelier de Création Libertaire,1997. (pedidos para: A.C.L./ Boite Postale 1186, 69202Lyon Cedex 01, France)

Em Março de 1996, o Atelier de CréationLibertaire e o Centre de Sociologie des Représen-tations et des Pratiques Culturelles organiza-ram em Grenoble um Colóquio Internacionalsubordinado ao tema Cultura Libertária. Esti-veram presentes cerca de uma centena de parti-cipantes da Europa e da América, e foramapresentadas 34 comunicações.

Não se pode afirmar que todas as comu-nicações foram objecto de uma reflexão ediscussão em torno da cultura libertária. Acomplexidade e a extensão do tema, em termos

de objecto de observação e de objecto científico,tornam difícil discernir sobre a sua distinção eidentidade. De facto, se olharmos para ageneralidade das comunicações, encontramosabordagens díspares que pretendem realizar aanálise em torno do tema central: culturalibertária; anarquismo em mutação; educaçãolibertária; a casa anarquista; Foucalt e aanarquia; anarquismo e direito; anarquismo ecultura; presença proudhoniana; fundamen-talismo científico; individualismo e liberdade;cultura anarquista, arte e contestação; ima-ginação e revolta; cultura da natureza; ediçõeslibertárias na Polónia; edições libertárias naFrança; revolução anarquista; movimentoanarquista e movimento libertário, anarquismoapós a queda do muro de Berlim, subjectividadesanarquistas e subjectividades modernas, poramizade; etc.…

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No essencial, as comunicações atravessamtrês dimensões fundamentais: 1) a pertinênciada actualidade das proposições dos autores clás-sicos; 2) a função histórica da militância e davida quotidiana do anarquismo na estruturaçãode uma cultura libertária; 3) as várias manifes-tações contemporâneas de cultura libertária.

Fazendo uma leitura muito sumária dosautores clássicos anarquistas, é fácil verificar aenorme importância que dão à cultura libertáriacomo factor de emancipação social dos oprimidose dos explorados. Quer em William Godwin eProudhon, quer em Bakounine ou Kropotkine,encontramos elementos de análise que nosinduzem a perceber essa função crucial. Na suaopinião, é uma cultura que implica uma relaçãosocial determinada pelo diálogo permanente,pelo interconhecimento, pela espontaneidade, acriatividade e a liberdade. O seu grande objectivopassa não só pelo desenvolvimento de sereshumanos livres e soberanos, mas também esobretudo por ser um meio fundamental deemancipação social.

Para quem já teve oportunidade de ler a his-tória do movimento operário dos finais do sécu-lo XIX e primeiras décadas do século XX, ter-se-áapercebido da enorme importância que o imagi-

nário colectivo anarquista teve nesse processo.De facto, em termos da teoria e da prática, ossindicatos anarco-sindicalistas, as escolas, ascooperativas, e as associações de várias matizesque, entretanto, se desenvolveram no contextodas sociedades industriais capitalistas, tiveramum enorme impacto na aprendizagem social ecultural dos seus membros. Conferências, ma-nifestações, piqueniques, jornais, revistas, au-las, e a vida quotidiana em geral, serviam paraestruturar uma educação e uma formação liber-taria. Era uma educação e uma informação detipo integral, associando e desenvolvendo conhe-cimentos sobre a natureza física, psíquica emental do corpo humano, da sociedade, da geo-grafia, da história, da cultura de cada país e domundo. Não admira assim, que a C.G.T (Confe-deração Geral do Trabalho) francesa e portugue-sa, a FORA (Federação Operária RegionalArgentina) argentina, a CNT (Confederação Na-cional do Trabalho) espanhola, e outras organi-zações anarco-sindicalistas em outras regiões domundo, tenham enveredado por um tipo de edu-cação libertária. Através desta educação não sóconseguiam estruturar um tipo de acção colecti-va revolucionária, mas conseguiam ainda pro-mover a emancipação social do operariado.

Modernamente, a cultura libertária emergeatravés de formas polissémicas. Desde a pintura,passando pelo cinema, a música e a canção, oteatro, a literatura, e outras formas de expressãocultural, hoje, é possível observar uma série demanifestações que se enquadram no imagináriocolectivo da cultura libertária. Os contornos esté-ticos e ideológicos destes tipos de cultura liber-tária são difíceis de determinar, porque muitasvezes essas manifestações não são ideologizadas.A liberdade, a criatividade e a transgressão danorma e da ordem social capitalista são o deno-minador comum dessas formas de culturalibertária. É preciso ainda referir que a culturalibertária tem formas modernas de expressãoprática e teórica que não estão ainda suficien-temente consolidadas mas que se distinguem enegam de forma incisiva a cultura dominante.

Por tudo o que acabei de referir, importa lercom atenção o livro recentemente editado peloAtelier de Création Libertaire. Diga-se, em abo-no da verdade, que o trabalho de edição dos com-panheiros de Lyon em prol do ideal acrata temsido notável e já perdura há vários anos.

J.M. Carvalho FerreiraJ.M. Carvalho FerreiraJ.M. Carvalho FerreiraJ.M. Carvalho FerreiraJ.M. Carvalho Ferreira

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“HIROSHIMA”, MEU AMOR?

John Hersey, Hiroshima, Antígona, 1997

Vem este título a propósito da minha leiturarecente do livro “Hiroshima”, de John Hersey,editado pela Antígona em 1997. Da sua leitura,e presenciando o que por todo o lado se ouve dizersobre as barbáries ambientais (para além deoutras como as genéticas) a que pacificamentevamos assistindo, constato da sua enormeactualidade. O autor debruça-se exaustivamentesobre o quotidiano de alguns dos sobreviventesda bomba atómica lançada “(…) exactamente àsoito horas e quinze minutos da manhã do dia 6de Agosto de 1945 (…)”. Fica-me a angústia deconstatar, à medida que avanço na leitura dolivro, que o livro descreve não acções de hácinquenta anos atrás, mas sim acções dopresente (de hoje), porque é forte a sensação dedéja vu. Ou seja, o que aqueles seres sofreram,por sobreviverem à catástrofe de então, é omesmo tipo de sofrimento que irmãos nossoscontinuam a sofrer diariamente por força dosamores de alguns em continuar a infligir a outros(que por acaso estão em maioria) os métodos dedestruição que perfilham (adoram). Parece defacto ter-lhes ficado o gosto, por parte dasgrandes potências (EUA, Reino Unido, Rússia eoutras) em desenvolver/implementar, em paísesque não os seus (e aí também certamente só quemenos divulgados) experiências (morbidamentejocosas) cujos efeitos pouco lhes importa, masapenas os seus resultados.

É aterradora, pela impotência implícita, aideia com que se fica após a leitura do livro, dadaa sua aderência à realidade. O que os sobrevi-ventes de então sofreram, continuamos hoje ain-da a sofrer. Se antes as consequências foram “(…)nem todos apresentavam o conjunto de sintomasprincipais. Os que haviam sofrido queimadurasprovocadas pelo clarão estavam protegidos, numgrau considerável, dos efeitos de radiação. Os quepermaneceram deitados e imóveis durante dias,ou até horas, a seguir ao bombardeamento, ti-nham muito menos probabilidades de ficar do-entes do que aqueles que se tinham mantidoactivos. Os cabelos brancos raramente caíam. E,como se a natureza quisesse proteger o homemdo seu próprio engenho, o processo de reprodu-ção foi afectado durante algum tempo: os homensficaram estéreis, as mulheres abortavam, a mens-

truação parava.(…)” (pag.108), hoje idênticossintomas se constatam das barbáries cometidasquer na ex-Jugoslávia, quer em África, quer noMédio Oriente, quer por todo o lado. As experi-ências, porque é de facto do que se tratou e tra-ta “(…) mas mesmo que soubessem a verdade,na sua maior parte estavam demasiado ocupa-das, ou demasiado cansadas, ou demasiado fe-ridas para se importarem com o facto de serem oobjecto da primeira grande experiência práticacom a energia atómica, que (como afirmaram asvozes nas ondas curtas) nenhum país excepto osEstados Unidos, com a sua tecnologia industri-al, com a sua predisposição para gastar dois milmilhões de dólares numa importante jogada mi-litar, teria sido capaz de desenvolver (…)”, comodizia as experiências sucedem-se por todo o lado.São ainda recentes os testemunhos de sobrevi-ventes do desastre de Chernobyl, cujas conse-quências são semelhantes senão piores às dolançamento de Hiroshima e Nagasaki. Sucedem-se os desastres ecológicos como o incêndio actu-al na Amazónia.

Ficou-lhes, pois, o grande amor pelas experi-ências atómicas, nucleares, bem como o gostopelos resultados consequentes sobre sereshumanos que nada têm a ver com as ambiçõespolíticas dos que as fazem. O futuro parecebalancear permanentemente entre a incertezade quem será capaz de desenvolver a experiênciamais potente (veja-se o conflito Iraque - EstadosUnidos, quem receia quem neste contexto? Étudo uma questão de mais átomo menos átomo,mais neutrão menos neutrão) e os resultadoscada vez mais aterradores a que muitos sereshumanos estão sujeitos. Como se diz na contra--capa do livro e que se mantém actual “(…) Aomesmo tempo que o holocausto produzido pelonazismo se encontra presente na memória social,o outro holocausto seu contemporâneo parece ter-se diluído na existência irreal dos homens. (…)Auschwitz e Hiroshima são duas marcas doterror absolutamente contíguas, constituindo asfiguras máximas da descivilização no sec. XX:os campos da morte e o emprego militar daenergia atómica. (…)”. Mas, rapidamente o“gosto” pelas experiências atómicas se esgotou,tendo entretanto todos os países feito já os seuspróprios testes atómicos ou inventado a bombade hidrogénio, senão vejamos a cronologia dosfactos: “(…) no dia 1 de Julho de 1946, antes do1º aniversário do bombardeamento, os EstadosUnidos testaram uma bomba atómica no atol de

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Bikini, anunciando no dia 17 de Maio de 1948 oêxito (em que termos?) do novo teste; (…) no dia23 de Setembro de 1949, a Rádio Moscovoanunciou que a União Soviética tinha produzidouma bomba atómica; em Outubro de 1952, a Grã-Bretanha testou uma bomba atómica pelaprimeira vez e os Estados Unidos fizeram oprimeiro teste com uma bomba de hidrogénio(onde? E com que efeitos?). Em Agosto de 1953, aUnião Soviética testou igualmente uma bombade hidrogénio.(…) No dia 1 de Março de 1954,um barco de pesca japonês foi atingido porpoeiras radioactivas provenientes de um testeefectuado pelos norte-americanos no atol deBikini.(…) No dia 15 de Maio de 1957, a Grã--Bretanha efectuou o seu primeiro teste com umabomba de hidrogénio na Ilha do Natal, no OceanoÍndico.(…) No dia 13 de Fevereiro de 1960, aFrança testou uma arma nuclear no deserto doSaara. No dia 16 de Outubro de 1964, a Chinaefectuou o seu primeiro teste nuclear, e a 17 deJunho de 1967 fez explodir uma bomba dehidrogénio.(…) No dia 18 de Maio de 1974, aÍndia efectuou o seu primeiro teste nuclear.”

horizonte temporal da sua periodicidade. Assimsendo, todo o leitor que se queira tornarcúmplice deste projecto, como assinante darevista Utopia, deve preencher o cupão abaixo(ou escrever uma carta com os dados men-cionados) e enviá-lo para a nossa morada.

Entre as várias hipóteses de construção de umasolidariedade à volta deste projecto, necessi-tamos de aumentar o número de assinantes darevista Utopia. Com um número significativode assinaturas é possível manter uma actividadeeditorial regular e simultaneamente encurtar o

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Assinatura anual (2 números) Portugal 1500$

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Quantos mais testes serão necessários, e comque potência, para que sejamos todos extermi-nados, ou não o sendo, fiquemos todos estropia-dos? Que consequências resultaram de todos ostestes anteriores? Quem sabe?

A quem querem apregoar a defesa de um me-lhor ambiente quando estão continuamente aaniquilá-lo, degradá-lo? Quanta hipocrisia portodo o lado!! De facto, “(…) Parece inquietar pou-ca gente que as mais emblemáticas democraciasestatais, e os mais seguras dos seus dispositivosde autocontrole, estejam assentes, não sobre bai-onetas, mas sobre as forjas do inferno. Uma talsituação obriga-nos a ser, como diz o filósofo ale-mão Günther Anders, utopistas invertidos: «Éeste o dilema fundamental da nossa época: so-mos mais pequenos que nós mesmos, somos in-capazes de nos representarmos o que nós própriosfizemos (…) Ao passo que os utopistas se defi-nem como os que não podem produzir o que serepresentam, nós não podemos representar-noso que produzimos.»”

Guadalupe SubtilGuadalupe SubtilGuadalupe SubtilGuadalupe SubtilGuadalupe Subtil

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banquillo; Recordando a Galo Díez; Loscontratos indefinidos en UGT s lo son el35% de la plantill; Servicio de libreria Albor.(Albor, Apartado 699, 01080 Vitoria,España)

Alternative LibertaireAlternative LibertaireAlternative LibertaireAlternative LibertaireAlternative LibertaireLe Résignation Est Un Suicide Quotidien,nº 204, Mars 1998Do Sumário: Syndicalismes; Pour l'autono-mie sociale; La renaissance de la CNT; Dela jouissance aux bouts du chaos; Leshorreurs médiatiques; L'alternative, c'est paroù?, L'utopie est trop sérieuse pour la laisseruniquement aux anarchistes; Cauchemar;Pour en finir avec le chômage et l'exclusion;Est-ce ainsi que les hommes vivent?;Castoriadis, le rebelle; L'expérience anti-patriarcale; Le nobel à l'esprit de résistance.(Alternative Libertaire, Boite Postal 103,1050 Ixelles 1, Belgique)

AnatopiaAnatopiaAnatopiaAnatopiaAnatopiaBoletim Anarquista, nº 2, 1998Do sumário. Editorial; Neoruralismo eokupação rural; Sem-Terra – ocupar, resis-tir, produzir; Por uma ecologia realmenteeco-lógica; New age travellers; Odio e Amor– Clarificando as posições: Anarquismo enacionalismo radical no país basco; Tudo oque sempre quiseste saber sobre anar-quismo mas nunca pensaste (parte I); ON.S.D.A. P em Portugal; Afinal, para queservem as prisões?Proibição não!!! Nãocompres, planta!; En la linea del frente.(Anatopia, Apartado 21290, 1131 Lisboa)

Black FlagBlack FlagBlack FlagBlack FlagBlack FlagFor Anarchist Resistance, nº 212, 1997Do Sumário: Race class and organisation;Eurodemo! Lorenzo Kom'Boa Ervin ar-rested; Black autonomy; Scotland yardies;Doctrines$ & reality; The rape of socialism;De rich getting rich. (Black Flag, BM Hurri-cane, London WC1N 3XX, England)

Courant AlternatifCourant AlternatifCourant AlternatifCourant AlternatifCourant AlternatifOrganisation Communiste Libertaire, nº 77,Mars 1998Do Sumário: Rubrique flics; Dossier chô-mage; Sans papiers; Rubrique: Social; Salutles copains; Réseau proféministes, Algérie:

le RAJ; Gandhi: mythes et réalités; Brésil:réforme agraire; Rubrique. Le mouvement.(OCL/Egregore, B. P. 1213, 51058 ReimsCedex, France)

DiógenesDiógenesDiógenesDiógenesDiógenesRevista de Difusión Cultural y Comuni-cación, Nº 11, Novembro, 1997Do Sumário: Dossier: relativismo cultural;Los "medios" del poder; Los medios de"formación" de massa; Diez años de "Femi-naria"; Che: "un Bolivar de los tiemposmodernos"; Nos ponemos eróticas; SobreFrancisco Urondo: esa fugitiva memoria;Julio César de la Vega. (Cnel. Rodriguez482, Cdad (5500) Mendoza, Argentina)

El AcratadorEl AcratadorEl AcratadorEl AcratadorEl AcratadorBoletín Contrainformativo Libertario, nº 60-61, Janeiro 1998Do Sumário: Acratorial; Viva Zapata, Cabro-nes! Beceite en lucha; El laberinto vasco;Estricalla o faxismo; Pensamiento único ycontrol de la información; Internacional;Okupación; Sase vive; Laboral; Anarco-sindicalistas absueltos. (Ateneo Libertario;Apdo. 3141, 50080 Zaragoza, España)

Estrela NegraEstrela NegraEstrela NegraEstrela NegraEstrela NegraAgência de Contra-Informação e Resistên-cia Global, nº 2, Janeiro/Fevereiro 1998Do Sumário: Gandalf 6. 3 anos de prisãopara editores do Green Anarchist; Mineirosen luta põem Asturias en chamas; Casaokupada da montanha ameaçada de desa-lojamento; Caso Mumia Abu Jamal – JuizAlbert Sabo destituido do cargo; Embaixa-da do México, em Lisboa, bloqueada poruma hora; Anarquista e prisioneiro políticoatacado pelo sistema de prisões; Protestocontra sequestro de insubmisso acaba commorte inesperada – Virginia nunca te olvi-daremos, en nuestra lucha siempre terecuerdaremos; Jornadas ateias em Madrid;Comunicado de imprensa sobre o ocorridono bairro de Sants (Barcelona). (Estrela Ne-gra, Apartado 41086, 1500 Lisboa)

EtcéteraEtcéteraEtcéteraEtcéteraEtcéteraCorrespondencia de la guerra social, nº 30,Dezembro 1997Do Sumário: La otra generación del 98;

Publicações Recebidas

AcontecimientoAcontecimientoAcontecimientoAcontecimientoAcontecimientoRevista de Pensamiento Personalista yComunitario, Ano XIII, nº 44, Verano 1997Do Sumário: Cinquenta anos de la inde-pendencia de la India; Las eleccionesautonómicas gallegas; Afrontar el paro; Elparo, elemento central de la derrota de lostrabajadores; El Estado enemigo de los pa-rados; Aquellos obreros, nuestros mayores;A grandes males, grandes remedios; Nina,militante del Movimiento de los Sin Tierra,Rio grande do sul, Brasil; Jeremy Rifkin: Elfin del trabajo: Nuebvas tecnologias contrapuestos de trabajo. El nascimiento de unanueva era. (Instituto Emmanuel Mounier,Melila, 10-8º D.; 28005 Madrid, España)

A-InfosA-InfosA-InfosA-InfosA-InfosRecortes Malditos & Comunicações, nº 11,Ano IX, Nova Série, 1998Do Sumário: Fendas na muralha; Cautelasdo amigo; Corrupção & logro; desvelos re-motos; Casos de polícias; masmorras; Es-tragos diversos do $; partidos do Partidoda Ordem e da Norma; Especial circo elei-toral autárquico. + sarilhos e pontuação;Sombras do Leviatão; Coisas…; Lutas…ainda lamechas; Protestos: parcelares, re-virados; Contestação estudantil; Da frente;Comunicações: relato sobre a intervençãodos grupos libertários nas manifestaçõesestudantis; Resposta dos "anarquistas" aos"provocadores" da nossa praça; Políticos?Deixem-me rir…; O de fora. (Crise Luxuo-sa, Apartado 21477, 1134 Lisboa Codex)

AlbatrozAlbatrozAlbatrozAlbatrozAlbatrozLiteratura de aguarrás, nº 16, Outubro 1997Do Sumário: A Andre Laude; Notre peuplea perdu raison; La man de fer en Palestine;Si je n'arrive pas a payer mon avocat, il estcertain que je mourrai; Ce que je connaisde la situation de Farley Matchett; Zélande;Albatroz hors impasse ; Expo/97 (chroniquede moeurs); Une mise en échec du régime;Lisbonne cadavre; Passado Presente Futu-ro; Limiar/ No epílogo o propósito. (Albatroz,B. P. 404, 75969 Paris Cedex 20, France)

AlborAlborAlborAlborAlborPeriódico Anarquista, nº 23, Março 1998Do Sumário: Editorial; Los solidarios en el

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España 1997: la reforma laboral; El arte deKati Horna; Correspondencia; Hemosrecibido. (Editorial Etcétera, AparatadoCorreos 1.363, 08080 Barcelona, España)

FysgaFysgaFysgaFysgaFysgaFolha informativa libertáriaDo Sumário: Expo 98 – Um grande empreen-dimento. (Fysga, Apartado 4720, 4012 Porto)

IconoclastaIconoclastaIconoclastaIconoclastaIconoclastaInformativo trimestral do Koletivo de Resis-tência Anarco Punk, Ano III, nº 14, 1997Do Sumário: Viva o que pensa! Abaixo ospensadores!!!; Movimento anarco punk ejuventude libertária em São Paulo; Zine-se;Poesias…; Globalização. mito e verdades;Extremamente machista!; Notas internaci-onais; Cuidado com falsas informações!;Femme revolté!. (Caixa Postal 3297, CEP01060-970 São Paulo, Brasil)

InquietaçãoInquietaçãoInquietaçãoInquietaçãoInquietaçãoBoletim, nº 8, Novembro 1997Do Sumário: Editorial; Insegurança; O sabordo tempo; Transformar a resistência emafronta; Comentário de "Inquietação"; Comofalar como um situacionista; A queda docapitalismo de estado; A razão das causas;Uma carreira preenchida; Unidade e divi-são; Processo de aprendizagem. (ColectivoInquietação, Apartado 4013, 4001 Porto)

InsurreiçãoInsurreiçãoInsurreiçãoInsurreiçãoInsurreiçãoNº 12, Outubro 1997Do Sumário: Ateneu Libertário RicardoMella; Non Nova Sed Nova – Xandâo eSandol; Daniel Hipólito – Fábio Góis; Ex-perimental Distro; Centro de Cultura Liber-tária; António Jorge Silva; Ekintza Zuzena;Alexandre Samis; Colectivo Inquietação;Col. Punk e de Ação Directa Contraste;Marcelino Rodrigues de Pontes. (Insurrei-ção, Apartado 4013, 4001 Porto Codex)

Le Monde LibertaireLe Monde LibertaireLe Monde LibertaireLe Monde LibertaireLe Monde LibertaireHebdomadaire de la Fédération Anarchiste,2-8 Abril 1998Do Sumário: Contre le fascisme: les luttessociales; Modifiez les gênes: vous multi-plierez les dollars!; Procès contre Le MondeLibertaire: Solidarité; Nouvelles de lalibrairie; Kosovo: Milosevic repart enguerre? Révolte de masse au Zimbabwe;Bordeaux – Arrêtez vos salades et balancezl'oseille! (Le Monde Libertaire, 145, RueAmelot, 75011 Paris, France)

Oiseau-tempêteOiseau-tempêteOiseau-tempêteOiseau-tempêteOiseau-tempêtenº2, Automne 1997Do sumário: L'immigré et la"loi de lapopulation" dans le capitalisme moderne;Quoi de neuf chez les grecs?; Juin 36:L'envers du décor; Serge Bricianer, desnuances du noir et du rouge vif; Les mythesde la science expérimentale; Les amoursde l'art et de l'argent; Dechervelage. (C/OAb Irato, B. P. 328, 75525 Paris Cedex 11,France)

PolémicaPolémicaPolémicaPolémicaPolémicaInformación, Crítica, Pensamiento; Ano XV,nº 65, Novembro 1997Do Sumário: Por la humanidad contra elneoliberalismo; Otra reforma neoliberal; Lacontrarreforma laboral; La campaña delcerosiete; La crisis del movimiento libertario;Polémica – libros; El fin del pacto social-demócrata; Anarcosindicalistas en la luchaantifranquista; Teresa y Diana; La expo-sición Francisco Ferrer I Guardia y laEscuela moderna se internacionaliza. (Po-lémica, Apartado Correos 21005, 08080Barcelona, España)

Política OperáriaPolítica OperáriaPolítica OperáriaPolítica OperáriaPolítica OperáriaRevista comunista, Ano XIII, nº 63, Janei-ro/Fevereiro 1998Do Sumário: O "Livro Negro do Comunis-mo"; Reforma do ensino em questão; Sala-zar e o ouro saqueado pelos nazis; Argé-lia: povo descartável; Dilemas da esquer-da latina-americana; Carta a um camara-da; Alguns 8 de Março diferentes, Comu-nismo e emancipação feminina; QuandoCunhal excomungou os chineses. (Políti-ca Operária, Apartado 1682, 1016 LisboaCodex, Portugal)

SingularidadesSingularidadesSingularidadesSingularidadesSingularidades… modos de ser inconformista, Ano IV, nº10, Novembro/97Do Sumário: Português, artista exilado…;Relações perigosas: campo de tiro –Quercus; Proudhon; Ventos livres do nor-deste; Lutas no México e na Grã-Bretanha.(Singularidades, Apartado 13117, 1000 Lis-boa Codex)

SlingshotSlingshotSlingshotSlingshotSlingshotBerkeley, Number 60, Spring 1998Do Sumário: Troops out! – Zapatista com-munities resist army; Anti-bilingual billheads to ballot; Eco-racism rising; Oaklandtentants' union forming; Mumia flights for

his life; Labor pages; Corporations target– the free radio movement; Sierra clubvotes on immigrants. (Slingshot Newspa-per, 3214 Shattuck Avenue , Berkeley, CA94705, USA)

Umanità NovaUmanità NovaUmanità NovaUmanità NovaUmanità NovaSettimanale Anarchico, Ano 78, nº 11, 29de Março de 1998Do Sumário: Liberare sofri per liberarci dasofri; Quando l'incriminazione dei politici?Grave incidente ferroviario a Firenzebasterá?; Dopo l'8 marzo viene sempre il9; L'ENEL brucia Orimulsion a Brindisi Sudsenza valutazione di impatto ambientale;Aria nuova nelle stanza dei fascisti…pacificati dal signor Violante; Storia edevoluzione dei Centre Rousseau, Aicompagni anrchici e libertari impegnati nellavoro sindacale; Scuola: contributo aldibattito (Umanità Nova, c/o G.C.A. Pinelli,via Roma 48 – 87019 Spezzano Albanese(CS), Itália)

Livros e outrosdocumentos

CULLA, Daniel de, Paisa, Burgos, 1997,Edição do Autor.

CULLA, Daniel de, He lechos, Burgos, 1997,Edição do Autor.

CULLA, Daniel de, El abuelo "Bufa", Burgos,1998, Edição do Autor.

CULLA, Daniel de, El "si" de mi ninã,Burgos, 1998, Edição do Autor.

CRESPO, Alexandre,Vínhamos fazer o cer-co, Lisboa, Rugido, 1997.

GRUA, Exposição permanente, Porto,1997.

FLOSSI, Histórias, Lisboa, Rugido, 1997.MONTSENY, Frederica, Impresiones de un

viaje por Galicia, A Coruna, AteneoLibertário "Ricardo Mella", 1996.

ROBYNSKY, Los amores de Bakunin yNechaev, Burgos, 1998 (Edição e tra-dução de Daniel de Cullá).

RODRIGUES, Edgar, Companheiros 4,Florianópolis, Editora Insular, 1997.

RODRIGUES, Edgar, Companheiros 5,Florianópolis, Editora Insular, 1998.

SCHWARTZ, Barthélémy, Un art d'écono-mie mixte, Paris, Ab Irato, 1997.

TWAIN, Mark, Onanismo, Burgos , 1997(Edição e tradução de Daniel de Cullá).

Page 112: REVISTA ANARQUISTA DE CULTURA E INTERVENÇÃO · tem-nos ensinado que não devemos dissociar a teoria da prática, e que é contraproducente prescin-dirmos da identidade acrata entre

Utopia 7112

PRINCÍPIOS EDITORIAISPRINCÍPIOS EDITORIAISPRINCÍPIOS EDITORIAISPRINCÍPIOS EDITORIAISPRINCÍPIOS EDITORIAIS

UTOPIA define-se como revista anarquista de cultura e intervenção, o que significa areivindicação do património histórico das ideias libertárias e do movimentoanarquista, ainda que à luz de um pensamento próprio, activo e actual, e no

respeito face a outras interpretações desse património.

Ao definir-se como de cultura e intervenção, UTOPIA pretende-se como um espaço detolerância, diálogo e criação, procurando contribuir para o aperfeiçoamento dos

homens e para o alargamento das suas possibilidades de expressão e de invenção.

Ao definir-se como de intervenção, UTOPIA pretende-se como um espaço de análise edebate dos fenómenos sociais e políticos das sociedades contemporâneas, procu-rando contribuir para a emancipação e a liberdade dos indivíduos e dos grupossujeitos a quaisquer situações de opressão, repressão e intolerância, assim como

procurará opor-se aos sistemas e mecanismos conducentes a manter situações deconstrangimento e desvantagem social e económica de indivíduos e grupos emrelação a outros, e ao Estado, entendido como um poder a que todos os homens

devem obedecer mesmo que em desacordo com ele. Nesta intervenção, UTOPIAserá a expressão de lucidez e de revolta, assumindo plenamente o carácter utópico

das tarefas a que se propõe.

UTOPIA guiará a sua acção por uma ética de honestidade, frontalidade, solidariedade etolerância, que se procura expressar nestes princípios editoriais e que levará àprática em cada edição e em quaisquer actividades que venha a desenvolver.

As colaborações não solicitadas são desejadas, embora sujeitas à apreciação do colectivoeditorial. Qualquer colaboração não publicada será devolvida ao autor, com a

justificação dessa decisão.O colectivo editorial compromete-se a abrir rubricas de debate quando tal for considera-

do enriquecedor e esclarecedor para os leitores e para os princípios aqui defendi-dos, sendo os autores previamente informados dessa intenção.

A indicação de um proprietário e de um director da revista deve-se a exigências legais,sendo desejada a rotatividade da direcção entre todos os que fazem UTOPIA.

A responsabilidade dos textos assinados é dos seus autores e a responsabilidade peloprojecto é de todo o colectivo editorial.