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Revista Berro (Ano 01, nº 03, Dezembro/Janeiro 2014)

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Na terceira edição da Revista Berro, uma reportagem especial sobre legalização da maconha e a eterna guerra às drogas. Também entrevistamos o delegado Orlando Zaccone, delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro.

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Page 1: Revista Berro (Ano 01, nº 03, Dezembro/Janeiro 2014)

Aviso: essa revista nãoserve de seda. É sério!

Ceará ProfundoCultura

O caba sabido Gilmar deCarvalho e suas andançaspelo Siará

"A alternativa éa legalização!"Orlando Zaccone,delegado da Polícia Civildo Rio de Janeiro

Entrevista

A guerraàs drogas

falhou

Ano 01 - Edição 03Dezembro-Janeiro/2014-2015

Qual a alternativa?

VIXE...

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3. Solta o Berro!Bode Berro responde aos comentários dos leitores

5. EntrevistaOrlando Zaccone: "A alternativa é a legal ização!"

8. ReportagemÉ proibido proibir!

17. CulturaCeará Profundo

19. Impressões MundanasVida e morte, João!

21. Cultura: Papo de bêboDominiCanas paragens do Centro da cidade

22. Lusco-Fusco"Do sonho" e outras poesias

23. Berro HQ!Bode Berro é convidado a dar dois dedos de fi losofagem

24. Lambe-lambeAnal ice Diniz: Tal i ta

Aquecendo o gogó!

Óia nós aqui de novo, galera! Ufa! Conseguimoschegar ao terceiro número. Foi peleja viu , mais umavez! Nem vamos tocar no assunto dificu ldadefinanceira porque é chover no molhado! Vocês jásabem que a situação por aqui tá tão difíci l queestamos vendendo o almoço pra comprar a janta!Manter uma revista gratu ita e de extrema qual idadegráfica e conteudística, como a Berro, não é moleza!Mas a gente é teimoso e, assim, vamos em frenteporque não podemos deixar de berrar!

Pra tacar fogo no debate (se l iguem do trocadi lho! ),a gente fala nessa edição de proibicionismo. Semmeias palavras! Sem ficar em cima do muro! Sem serpanfletário tampouco imparcia l , defendemos alegal ização das drogas! Baseados (olha o trocadi lho denovo aí, geeenteee! ! ! ) em argumentos sól idos econtextual izados, d izemos aqui , incisivamente:legal izem as drogas! Pelo bem das diversassociedades e culturas! Na reportagem “É proibidoproibir! ” e na entrevista “A alternativa é a legal ização”,vocês entenderão os diversos porquês que nos levama esta opinião. Concordando ou não, só não poderãodizer que defendemos a causa sem aprofundá-la !

Mas nem só de drogas vive a Berro, ops, nem sósobre drogas fala essa revistinha danada; o professor,mestre do encanto e da prosa simples, Gi lmar deCarvalho, está em nossas páginas, abordando o“Ceará Profundo”, em textos que dia logam comimagens de Francisco Sousa, captadas nas suasandanças pelas terras alencarinas de Patativa doAssaré, Frei Tito, Padre Mororó, Bárbara de Alencar,Raquel de Queiroz e tantos outros cabras da peste.

A “Papo de Bêbo” volta com crônica sobre oRaimundo dos Quei jos, enquanto que a “Lusco-Fusco”traz poesias-pensantes e a “Impressões Mundanas”vem contando a vida de um criminoso. O Bode Berroapronta todas na “Solta o Berro”, respondendo aosnossos leitores com sua fuleiragem de sempre efi losofa na “Berro HQ”. Final izando essa revistinhaenxerida, a fotógrafa Anal ice Diniz nos brinda comuma baita duma foto na última página. Olha, se eufosse você, devorava agora mesmo essa ediçãoporque ela tá booaaa, viu?

“Quem não tem colírio usa óculos escuros!” (Raulzito)

Berreiro

Berradores

Revista BERRO | revistaberro.com | [email protected]: @revistaberro | Facebook: RevistaBerroCE

Tiragem: 2.500 exemplaresImpressão: Expressão Gráfica e Editora

BERRO é uma publicação alternativa e satírica sobre sociedade, arte, cultura,política, comunicação e muito mais, que tem o Bode Berro como mascote eguru. Aos poucos, você vai se acostumar com ela. Ou não!

Sonhador irresponsável

Artur | [email protected]

Boêmio da madrugada

Thiago Zé | [email protected]

Menino da informática e dos desenhos

Rafael Salvador | rafaelsa [email protected]

Poeta tocador de pífano

João Ernesto | [email protected]

Berraram também nesta edição:

Ceará Profundo

Gi lmar de Carvalho | gi ldecar@uol .com.br

Fotos

Joana Bê (Entrevista) | joanahborges@hotmai l .comChico Cél io (Reportagem) | chicocel ioufc@gmai l .comFrancisco Sousa (Ceará profundo) | ceara.escrito.a . luz@gmai l .comRamon Sales (Papo de bêbo) | bs.ramon@gmai l .com

Lambe-lambe

Anal ice Diniz | anal icedin iz@gmai l .com

Curte a gente, negada!Somos mó limpeza!

Facebook.com/RevistaBerroCE

revistaberro.com

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1ª edição

impressa

Rodrigo Gondim Tava bi lando só delonge as novidades e agora pude vera versão completa. Galera tá deparabéns. Desde os tempos daAldeota que a cidade precisa de maisimpressos alternativos, de qualquerassunto que seja .

Homi, valeu pela força, viu! MasAldeota aqui só se for a da musga doEdnardo! “Aldeia, aldeota, estoubatendo na porta pra lhe aperrear”.Oxe, homi, aqui é uma mistura deChapada do Araripe, donde eu vim,mais Benfica, Parque Araxá, Cidade dosFuncionários, Barbalha (CE), Salgueiro(PE) e Paulo Afonso (BA)! Peeense numamistura danada de boa!

Solta o Berro!

2ª edição

impressa

Mayara Albuquerque Li a Berro emuma sentada só, como da outra vez.Dei ri sada com o Suricate Seboso eme revol tei (quase lágrimas) com ash istórias de quem foi fod ido pelaCopa , l e ia -se Brasi l . Teus poemas,J oão, me lembraram a conversa quea gente teve no aeroporto.Parafraseando Sylvia Pla th : dentrode ti mora um gri to e a qua lquerhora do d ia ele precisa sa i r praamar. O viscera l desorgan izando equerendo sa i r.

Óia aí, mah. . . tu sabe que é isso que faza gente colocar tanta paixão nessarevista, né? Coisa boa é poder ler isso eter a casa aberta pra convidar asamizades. João tá falando aqui que tuescreve um monte de coisa linda,Mayara! Pode passar pra cá que euquero ler viu, bichinha!!

Futebol e

rebeldia

revistaberro. com (goo.gl/rZ8kY0)

Javier Del Valle Barrozo Parabénspela crónica e pela idéia de fazeruma série com elas. Yo soycolaborador de outra revista de RP“O Berro I I I ”, vivo en Buenos Aires, efiz uma matéria “Futebol e rebeldía”em junho, fa lando da vida deSócrates, que foi colaboradortambién da revista . Gostei desteensaio. Saudaciones!

Gracias, muchacho. . . Sócrates era unbueno jugador de futebol. Quer dizer quenossos berros foram bater aínasArgentina é?Mas num tô dizendomesmo! No castelhano eu só arranho,vamo falar cearensês mermo…hehehehe! A gente aqui da Berro bota féque futebol também é um espaço deconhecimento e cultura. Na Argentinatem uma torcida apaixonada queinclusive já impediu clube que abriufalência de fechar, o Racing aí. Valeu peloretorno e manda pra gente teu texto pragente publicar, vamo berrar junto!

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Solta o Berro!

Carroças, jumentos e

4x4

revistaberro. com (goo.gl/CPVD76)

André Fernandes Faria Rea l idade das“poucas” ciclovias d isponíveis em Forta leza ,ótima críti ca #Lamentável

Aqui o povo não respeita nem ciclista, avalie umbode! O povo fica enxotando o nêgo de todacalçada, como se bode não pudesse transitar pelarua. Acho que no tempo do Bode Iôiô era maistranquilo, dizia até que ele era respeitado nasruas do Centro e do Benfica!

Malucos Beleza!

revistaberro. com (goo.gl/ZakCZv)

Maria Auxiliadora de Paula

Gonçalves Parabéns a Berro, e aDaniel Sansil e os Malucos do Brasil.Arte faz parte de tudo na vida.Desejo aos senhores e senhorastudo de bom: paciência , força,a legria , d iscipl ina, determinação,d inheiro, bons amigos, boasinspirações, aprendizado pra vida,espaço conquistado na cidade, tudode bom, de muito bom!! ! !

Que massa teu retorno, Paula! Quetudo isso que você desejou pra gente,possa retornar também pra ti! Danieljá disse que ia tocar no lançamento danossa terceira edição! Vamo ficarligado que quando tu tiver lendo issoaqui ele já vai tá tocando!

Pequenez

revistaberro. com (goo.gl/tmkiSN)

Raíssa Forte “Como podemosconsiderar natura l ummovimento que nosdespotencia l i za? Que concebeapenas as trocas materia i s, depreferências lucrativas!Natura l , norma l ?” Tuapergunta me respondeu mu i tacoisa . Obrigada !

A gente é que agradece um retorno.Tem uma frase nos muros daavenida 13 de maio, em Fortaleza,que diz: “só peixe morto nada afavor da correnteza”. Estamos vivose saudáveis demais pra fingir quenão vemos essas coisas.

Mandem sugestões, comentários,pitacos, xingamentos, críticas,palavrões, juras de amor, o diabo aquatro pra gente. Quem sabe oBode Berro não lhe responde napróxima edição, hein?

[email protected]

Facebook: RevistaBerroCE

Veia Cava

revistaberro. com (goo.gl/rRSSG4)

Arley Nataliano Uma das bandas ma isinstigantes da cena . . . Vou tocar fogo emvocê! ! !

Eu vi uns vídeos de uns bodes brigando que osbicho pegava carreira e tacava as cabeçadas unsnos outros. . . nunca entendi direito. Depois que euouvi essas pedras da Veia Cava que eu entendi osentido de bater as cabeça! A galera tacava fogoera em tudo, né não?! Hahahahaha!!

Ensaio sobre o

Amor (2ª edição

impressa)

revistaberro. com (goo.gl/JwaKMU)

Bruna Vieira Só pra frescar:Artur, quero viver o amor l ivrecom você!

Bruna, minha fia, primeira coisa:frescar é bom demais, né não?Segunda: deixe o Artur pra lá e venhaviver comigo esse tal de amor livre,venha! Nós, bodes e cabras, já vivemosesse tal de amor livre desde que a gentenasce! Por que o amor é sempre livre,né não?

Ensaio

fotográfico -

Capitães de

Areia

revistaberro. com (goo.gl/jI3MLI )

Rafael Ayala Na foto: PedroBa la , Professor, Sem Pernas eo Gato. Lá no fundo deve ser aDora tomando um banho =]

Galo-cego era o goleiro reserva, nãosaiu na foto! Os meninos tãodizendo aqui que na próxima CopaJabá (torneio de futsal do curso deComunicação Social da UFC) vai terbode como nova contratação deum grande clube, hein!

Sobre o futuro

desse velho

mundo (sobre o

“Praia do

Futuro”)

revistaberro. com (goo.gl/fVl3C0)

Kerla Farias Eu não gosto dapra ia do futuro. . . e continuei semgostar depois do fi lme! Mas mereconheci enquanto ser humanonele. E a inda ma is, me reconhecienquanto cearense.

Olhe, Kerla, eu num tenho nada contraa Praia do Futuro não, mas que euprefiro a Sabi, ah, eu prefiro! Os cabada Berro já me levaram algumas vezespra lá! Bom demais aquele bainzim derio ou de mar: você é que decide! Ói,num me reconheci enquanto serhumano não (inda bem!!), masenquanto cearense sim: foi bomdemais escutar os vários “mah”,“maxo”, e um muuuito cearense“baitola”ao longo do filme.Hahahahaa!

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Entrevista

OrlandoZaccone

Você é um delegado que defende a legalização das drogas,né? (no que o entrevistado balança a cabeça em sinal de

positivo) Sobre essa questão, a gente vê que a política deguerra às drogas fracassou claramente. Houve um aumentoda violência nas grandes cidades, o extermínio de umajuventude pobre. Quando essas pessoas não sãoexterminadas, são encarceradas, num modelo de controlesocial. Então, a quem interessa amanutenção dessa políticade guerra às drogas?

Essa atual pol ítica de drogas proibicionista é um fracassono que diz respeito ao seu discurso legitimador, de ummundo sem drogas, da redução do consumo, da proteção àsaúde públ ica , de uma série de argumentos que já não sesustentam porque depois de um século de proibição cadavez mais drogas são feitas no mercado i l ícito, cada vez maispessoas consomem essas drogas. E aí há essa questão: porque manter algo que já fracassou no seu discurso?Evidentemente, porque existe algum sucesso que não é odiscursivo, que seria a face oculta da pol ítica de drogas: apossibi l idade de um georreferenciamento no planointernacional , feito a partir dos Estados Unidos, que autorizaintervenções mi l i tares dos americanos fora de seu território.

Os Estados Unidos se declaram país consumidor edeclaram guerra a países produtores, que seriam os paísesdos traficantes. No caso da maconha, o México; da cocaína,Colômbia e Bol ívia ; o Afeganistão com a questão do ópio.I sso autoriza as intervenções mi l i tares americanas para forade seu território, fomentando nessa guerra uma corridaarmamentista e a possibi l idade dos norte-americanos terembases mi l i tares na América do Sul (na Colômbia) após o fimda Guerra Fria . Essa estratégia que a guerra às drogasautoriza é um sucesso, por que como os Estados Unidospoderiam manter o mercado de armas tão aquecido com ofim da Guerra Fria? Como poderiam conseguir intervençõesmi l i tares fora de seu território se não existia mais GuerraFria? É nesse contexto que essa pol ítica vai sendogerenciada a nível planetário.

No Brasi l , ela é incorporada internamente na construçãode um inimigo interno, o que já é uma tradição das própriasações repressoras do Estado àqueles que não se resignamao estatuto juríd ico-pol ítico. A história do Brasi l sempre foicriada na construção desse in imigo, seja em Canudos, noAraguaia , e agora nas favelas, na figura mítica do traficantede drogas, que é criada num patamar onde o seu extermínio

Fotos: Joana Bê

rlando Zaccone é delegado da Pol ícia Civi l do Rio de Janeiro. Ficou nacionalmente conhecido porque foi oresponsável pela investigação do caso do pedreiro Amari ldo, torturado e morto por pol icia is mi l i tares da UPP daRocinha (ao todo, 25 PMs foram considerados culpados pela morte de Amari ldo). Também atua na LEAP Brasi l (Law

Enforcement Against Prohibition), organização internacional de agentes pol icia is e do judiciário que defendem a legal ização eregulação das drogas. O delegado é conhecido ainda pela sua opinião favorável à desmi l i tarização da Pol ícia .

A Berro conversou com ele numa de suas vindas a Forta leza para participar de debates acadêmicos. Do alto de suatranqui l idade “zen” (é adepto do movimento Hare Krishna! ) e de sua afiada crítica à sociedade contemporânea, Zacconedesenvolve leituras socia is interessantíssimas, que fogem às obviedades e às resoluções cl ichês. Acompanhe!

“A alternativa é a legalização!”

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é desejado não só pelo Estado, mas pela sociedade de umaforma geral . Então, a guerra às drogas acaba promovendoum dispositivo que autoriza intervenções mi l i tares em áreaspobres. Temos a questão das UPPs no Rio, onde o controledos guetos e da vida daqueles que moram nas favelas éjustificado sob o argumento da proibição das drogas. Oencarceramento em massa que é feito é visto como tambémuma pol ítica que pretende retirar de circu lação aqueles queo sistema econômico não contempla, nem como produtores,nem como consumidores.

Pegando aí teu gancho, o Brasil temhoje cerca de 600mil presos,a quarta maior população carcerária do mundo econtraditoriamente é um dos países com as maiores taxas deviolência. Qual tua visão sobre essa política de encarceramentoe sobre o próprio sistema prisional brasileiro?

Somos a quarta maior população carcerária do mundoem termos absolutos – perdemos para Estados Unidos,Rússia e China -, mas somos o país que mais aumentou ocrescimento da população carcerária nos últimos dez anos.Então, se formos fazer uma projeção do que pode acontecerem dez, vinte anos, provavelmentevamos ser o país que mais encarcera nomundo. I sso é exatamente o dado realde que não existe essa supostaimpunidade que tanto se fala no Brasi l :“país da impunidade!”.

O sistema nunca vai contemplar,identificar e processar todas as pessoasque praticam del itos, ele é feito pracontemplar pessoas que praticamdeterminados crimes. Hoje, com cerca de600 mi l presos, você pode contar trêscondutas que levam à grande massa dosencarcerados na cadeia , que é roubo, tráfico de drogas ehomicíd io. Um terço da população carcerária brasi leira ,principalmente a de homens, está presa em dois crimes:roubo e tráfico. Significa que essa construção de quem sãoos criminosos se dá de forma seletiva. A pol ítica de proibiçãoàs drogas fomenta esse encarceramento em massa.

Mas, então, qual seria a alternativa?

A a l ternativa é a lega l i zação! Alguns autores vãoobservar que o surgimento de uma guerra que podefomentar o mercado de armas mu i to ma is eficazmente doque a guerra às drogas, que é a chamada guerra ao terror,principa lmente após o 1 1 de setembro, va i fazer com quese coloque também em pauta a lega l i zação das drogas,uma vez que agora já se tem uma nova guerra quepermita aquecido o mercado de armas e as intervençõesmi l i tares, agora através do d isposi tivo de combate aoterrorismo. No entanto, no Brasi l a inda estamos

recepcionando essa guerra (às drogas) in ternamente e aleta l idade que ela produz é a l tíssima . As pol ícias no Brasi lmatam seis pessoas ao d ia ; as pol ícias do Rio de J aneiro ede São Pau lo, em 201 1 , mataram 42% a mais que todos ospaíses com pena de morte do mundo.

A pol ítica proibicionista fomenta esse tipo de ação mi l i tarno Brasi l , de extermínio de uma categoria , que é a dotraficante. Agora, quem é o traficante? A construção que sefaz é que é o varej ista das drogas; não é quem está numhel icóptero transportando 500 qui los de cocaína, não quemestá fazendo a lavagem desse dinheiro. A criminal ização doproibicionismo recai exatamente em cima daqueles queestão al i nos guetos, nas favelas, os varej istas, que eu chamono meu l ivro de “acionistas do nada”. Então, a revisão dessapol ítica é necessária , é urgente!

E como seria essa revisão, esse modelo de legalização?

Hoje temos duas experiências em andamento. A deestatização no Uruguai e a de privatização nos EstadosUnidos. Eu, sinceramente, acho que o Estado não deve se

intrometer na produção e nofornecimento de drogas, porque isso nãoé função dele. Seria como se nósestatizássemos a produção e adistribu ição de bebidas. Então, no marcodo sistema capita l ista , não existe outrocaminho a não ser regulamentar isso.Mas não tem como a gente imaginar ummodelo antes de se estabelecer no Brasi lum amplo debate acerca da legal ização.Particu larmente, sonharia com apossibi l idade de escolhermos ummodelo que contemple os traficantesvarej istas das favelas, que sempre

operaram a ponta desse processo e sofreram os efeitosnegativos da proibição: que eles sejam contemplados com apossibi l idade de crescerem nesse negócio. Acho quepoderíamos formar uma certa reserva de mercado para queessas pessoas possam produzir e comercia l izar essassubstâncias como uma certa forma de contemplá-los nomercado econômico!

Alguns intelectuais, como o Debord (Sociedade do

Espetáculo) e o Foucault (As redes de poder) , diziam quea máfia não está mais separada do Estado; formam umemaranhado de interesses comuns. Como você vê isso?

A função do Estado hoje passou a ser contemplarsomente os interesses da ordem econômica. O Estadoreforça a lavagem do dinheiro das drogas, uma vez queesses capita is acabam desaguando no sistema financeiro.Então, quando a gente fala da gestão que o Estado faz dosistema financeiro, evidentemente não estamos falando só

"A função do Estadohoje passou a ser

contemplar somenteos interesses da

ordem econômica. OEstado reforça a

lavagem do dinheirodas drogas."

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dos fluxos de capita is do mercado l ícito, mas dentro dosistema financeiro também têm os fluxos de capita is domercado i l ícito. É nesse sentido que podemos dizer que osestados e as máfias estão de mãos dadas.

Você sempre fala que as polícias brasileiras ainda têmmuitos resquícios da ditadura. Está muito claro que naformação policial eles são treinados para combater oinimigo interno. Então, a mesma pergunta em relação aguerra às drogas serve para aqui também: a quem interessaesse modelo militarizado de policiamento?

O grande interesse está em ter essa guerra como umdispositivo de controle das classes perigosas (fazendo aspascom os dedos ao usar a expressão), daqueles que podem nãose resignarem com esse estatuto juríd ico-pol ítico, com essagestão do Estado, e que em algum momento podem serebelar contra isso tudo. Aqueles que não estãocontemplados pelos benefícios maiores desse negócio. Éimportante para o sistema fazer o controle dessas classes.Então, acho que a gestão de um modelo de segurançapúbl ica mi l i tarizado necessi ta de umaguerra , né. Ta lvez o Brasi l vá ser oú l timo país a abrir mão da guerra àsdrogas porque sem guerra não háin imigos, e sem in imigos não há aconstrução de um modelo repressivo –e esse in imigo sempre foi a lvoconstruído e úti l na nossa história ,porque é a partir da defin ição dessein imigo, seja de Pa lmares, de Canudos,do Aragua ia , os traficantes da favela ,que se autoriza o Estado brasi leiro acontemplar a gestão dos negócios e detodos os seus ciclos, seja do café, doouro, da cana e, agora , dos grandeseventos, sempre reprimindo aquelesque podem atrapa lhar porque não estão se enquadrandono pacto conci l iatório.

Você geralmente diz que as esquerdas precisam ser maiscoerentes porque se de um lado acham um absurdo e selevantam contra a criminalização da pobreza e dosmovimentos sociais, do outro defendem com rigor acriminalização da homofobia, por exemplo, assumindo omesmo discurso do opressor; o oprimido querendo viraropressor. Então, a partir daí, a gente queria que você falassesobre seu conceito de criminalização.

Muito se fala sobre criminal ização da pobreza,criminal ização dos movimentos socia is, mas a maioria daspessoas não compreende corretamente o que écriminal ização. O crime é uma construção que se faz numambiente socia l , e quando eu falo que 600 mi l presos noBrasi l estão presos em não mais que meia dúzia de crimes,

isso mostra que o processo é de construção seletiva docrime e do criminoso. Não tem ninguém preso no Brasi l porlavagem de dinheiro, por sonegação fiscal , por aborto. E eunão estou dizendo que deveriam estar presos, mas a leia inda prevê essas condutas como crimes. O que nós temosque ver é que a construção da del inquência se dá através deuma decisão pol ítica , que constrói quem são os criminosos equais são os crimes que vão ser perseguidos. Portanto,criminal ização é um processo pol ítico e seletivo, que vaisempre atuar constru indo o crime e o criminoso nos

espaços mais vulneráveis, nos locais depessoas mais pobres.

Em a lgum momento, osmovimentos socia i s no Brasi l , aquelescom trad ição de esquerda e próximosdas pol íti cas de d i re i tos humanos,passaram a ter fé nos processospol íti cos de crim ina l i zação como a lgoque fosse solucionar as suas questões.No caso das mu lheres, a vio l ênci a degênero era uma questão importante,então le i Mari a da Penha ,crim ina l i zação de homens agressores.Quem é que va i preso na le i Mari a daPenha? É o homem pobre que agride a

mu lher no espaço públ i co , gera lmente embriagado,gera lmente desempregado. Raci smo, a mesma coisa .Quem é crim ina l i zado por raci smo são aqueles que estãona portari a de um clube, na portari a de um préd io , comosegurança de um shopping. Se d i scu te hoje nomovimento LGBT como vamos resol ver a questão dad i scrim inação de orientação sexua l ? Crim ina l i zação dahomofobia ! Enfim , passam a contemplar que essesprocessos de crim ina l i zação vão garanti r d i re i tos. Masesses processos sofrem a mesma rea l i dade de qua lquerprocesso de crim ina l i zação. Quem va i ser crim ina l i zado ésempre o su je i to ma is vu lnerável socia lmente, que já éoprim ido, e nunca o opressor.

" Criminalização éum processo políticoe seletivo, que vaisempre atuar

construindo o crime eo criminoso nosespaços mais

vulneráveis, noslocais de pessoasmais pobres."

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Reportagem

É proibido proibir!Por Artur PiresFotos: Chico Cél io

I lustrações: Rafael Salvador

e cara, é importante subl inhar que oconsumo de substâncias psicoativas fazparte da condição humana! Desde os

mais remotos registros, há evidências de que ouso medicinal , ri tua l ístico e recreativo de drogasacompanha a marcha histórica do homo sapiens.Os chineses e indianos do neol ítico (cerca de4.000 a.C.) já conheciam o poder da maconha dealterar a percepção dos sentidos e daconsciência . Os índios amazônicos uti l izammilenarmente uma substância extraída de umarã – só encontrada naquela região – para rituaisxamânicos de purificação e imunização. NaGrécia Antiga, consumia-se o haxixe junto com oópio, uma preparação chamada Nepente,descrita na Odisséia, de Homero.

No entanto, nos últimos dois séculos, maisacentuadamente desde o início do XX, o consumode drogas começou a ser proibido e a carregarpadrões ético-morais estigmatizantes. De acordocom Sergio Vidal , antropólogo, pesquisador doGrupo Interdiscipl inar de Estudos sobreSubstâncias Psicoativas (GIESP) da UniversidadeFederal da Bahia (UFBA) e editor da revistaMaconha Brasil, no início do século passado “umgrupo reduzido de cientistas e políticos influentesconstruiu uma série de leis, decretos e tratadosinternacionais que tinham como objetivo proibirtotalmente os usos não-medicinais de plantas edrogas de interesse públ ico e uso tradicional ,como a folha de coca, a maconha, a papoula eoutras, que até então eram uti l izadas l ivrementepor milhões de pessoas em todo o mundo, orestringindo apenas aos usos medicinais ecientíficos. Ao banir totalmente os usos não-medicinais, nós acabamos por descobrir que nãoé possível extinguir um comportamento socialpraticado por milhões de pessoas, nas maisdiversas sociedades”.

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Seguindo a tendência proibicionista , em 1 925, naConvenção de Genebra sobre Ópio e Outras Drogas, já háum indicativo para a proibição de várias substânciaspsicoativas. Mas é sobretudo em 1 961 que a ConvençãoInternacional de Narcóticos da Organização das NaçõesUnidas (ONU), assinada por 1 73 países, defin iu a repressãogeneral izada como modelo-padrão. Uma década depois, opresidente estadunidense Richard Nixon declara guerra àsdrogas, elegendo heroína, cocaína e maconha como suasprioridades. Em meados dos anos 80, o também presidenteamericano Ronald Reagan estende a “guerra” para além dasfronteiras norte-americanas, num pretexto paraintervenções mi l i tares em outros países.

Para o professor de Química Francisco Ribeiro, que hádoze anos se ded ica ao ativismo pró-cannabis no Brasi l e éum dos organizadores da Marcha da Maconha no Rio deJaneiro, o “episód io da Lei Seca deixa claro que nunca serápossível imped ir uma pessoa que quer comprar, e outraque quer vender, de rea l izar um negócio”. A Lei Secaamericana , que proibiu o consumo de álcool nos EstadosUnidos de 1 920 a 1 933, gerou o aparecimento do mercadoclandestino e o consequente forta lecimento das máfias quevend iam o produto i lega lmente, tornando célebre figurascomo o gângster Al Capone.

Concomitante ao desenvolvimento da repressãomi l i tarizada, em meados dos anos 70, o cartel de Medel l ín ,na Colômbia, começava a caminhada para tornar-se nadécada de 80 uma das maiores organizações do narcotráficomundia l , eternizando traficantes mid iáticos e icônicos comoPablo Escobar. É uma conta muito simples: quanto maior arepressão, mais cara a droga e mais ricas e poderosas asmáfias organizadas – que têm o ol igopól io do comércio. Sãodiversos os efeitos socia lmente negativos que a pol ítica deguerra às drogas traz consigo:

• altos índices de violência e morticínio. Segundosdados do Mapa da Violência 2013: Homicídios e Juventudeno Brasil, 56,1 2% dos 52.1 98 homicídios no país em 201 1tinham l igação com o tráfico de drogas. São jovens quecrescem excluídos das políticas públ icas de saúde,educação, moradia, saneamento básico, inclusão social eveem no comércio i legal de drogas uma possibi l idade destatus e reconhecimento social que a pobreza, a sociedadee o Estado lhes negam. Esses operadores do varejo são sóa ponta do iceberg, a superfície visível e descartável domercado mundial de drogas;

• vários problemas de saúde pública. A marginal izaçãosocia l do usuário de entorpecentes acarreta osurgimento de infindáveis “cracolândias” como a docentro de São Paulo, lugares para o uso de drogas sem omínimo de condições de higiene e saúde, berçários dediversas enfermidades viróticas e bacterianas e deprofusão de doenças sexualmente transmissíveis;

• violência e corrupção policial . A guerra às drogasestimula a extrema mil i tarização das pol íticas desegurança públ ica , que têm uma necessidade semprecrescente de controle socia l , principalmente dosmoradores de comunidades economicamentevulneráveis, vide o exemplo das Unidades de Pol íciaPacificadora (UPP) no Rio de Janeiro. Tendo o suborno ea extorsão como práticas corriqueiras, boa parte daPol ícia contribui para a manutenção do tráfico de drogas.Além também do poder das mi l ícias, grupos mi l i tarescriminosos que dominam territórios antes exclusivos dostraficantes e exploram a população com o monopól ioi legal da venda de água, energia , gás, telefone e internet(o fi lme Tropa de Elite 2 aborda esse tema);

• desinformação e consequente construção de tabus

e mitos. A lacuna de informação de qual idade, honesta eaprofundada sobre as drogas dissemina e reforçapreconceitos e estereótipos contra os usuários e eleva omedo socia l (na página 15, falaremos de alguns dessesmitos). Segundo o psiquiatra Rafael Baquit, membro doColetivo Balanceará de Redução de Riscos e Danos erepresentante da ABORDA (Associação Brasi leira deRedução de Danos) no Ceará, “podemos considerar que,sobre drogas, a sociedade está muito mais desinformadado que educada. As drogas são tratadas como umquestão moral e criminal há muito tempo, e há pouco aevolução foi considerá-las uma questão de doença”.

• encarceramento em massa e constante violação

aos direitos humanos. Hoje, o Brasi l tem a quarta maiorpopulação carcerária do mundo, com cerca de 600 mi lpresos, 1 /4 deles, cerca de 1 50 mi l , está no sistemapenitenciário por tráfico de drogas. Mesmo com precáriaestrutura, um detento custa 21 mi l reais por ano nas

Flor da cannabissativa: o famoso "camarão".

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prisões estaduais e 40 mi l reais/ano nas federais. Paraefeito de comparação, o investimento por aluno da redepúbl ica no ensino fundamental é de pouco mais de 2 mi lreais/ano. Para Henrique Alencar Neto, ativista docoletivo cearense Plantando Informação, organizaçãoque mi l i ta pela legal ização e regulação da cannabis eorganiza a Marcha da Maconha de Forta leza, “a guerra àsdrogas tem sido um sucesso como pol ítica de controlesocia l . A verdade é que o proibicionismo esconde portrás do discurso de proteção à saúde públ ica umapol ítica de controle de populações específicas, queenjau la e extermina a juventude negra e pobre do país,que justifica a implantação de bases mi l i tares emcomunidades pobres. Na prática o que existe é umaguerra aos pobres!”.

Corroborando com as mesmas ideias, Orlando Zaccone,delegado da Pol ícia Civi l do Rio de Janeiro e membro da LEAPBrasi l (Law Enforcement Against Prohibition – organizaçãointernacional de agentes pol icia is e do judiciário quedefendem a legal ização e regulação das drogas), ressal ta que“a cadeia virou um depósito de pessoas que têm que sercolocadas em algum lugar porque elas não podem mais sercontempladas no modelo econômico”;

• estímulo ao mercado ilegal de armas. Com umamil i tarização e uma repressão cada vez mais violentas, onarcotráfico precisa se equipar qual i tativamente para oenfrentamento com a Pol ícia e com as Forças Armadas,aquecendo principalmente o mercado i legal de armas;

• enriquecimento e fortalecimento do narcotráfico.

Segundo dados da ONU, o mercado de drogas i legaisrepresenta 8% do comércio mundia l , a lgo em torno de750 bi lhões de dólares por ano. O mercado brasi leiromovimenta 1 ,4 bi lhão de dólares anualmente. O tráficode drogas é provavelmente a atividade mais lucrativa domundo. No l ivro Zero, Zero, Zero , o escritor RobertoSaviano, também autor da obra Gomorra, sobre a máfianapol itana, d iz que um qui lo de coca pura sai por 1 ,5 mi ldólares da Colômbia, país que produz a droga, e chega acustar até 77 mi l dólares no Reino Unido, umavalorização de mais de cinquenta vezes.

Não à toa as máfias mexicanas e colombianas, principaisprodutoras, e as ital ianas e russas, principais compradoras,possuem aviões, companhias de táxi aéreo, submarinos, enfim,um aparato tecnológico sofisticado que lhes garante otimizaçãodos lucros e o menor risco possível de perdas financeiras. Deacordo com Francisco Ribeiro, que também é coordenador ecolunista da versão brasileira da revista argentina HAZE efundador da revista Maconha Brasil, “existe toda uma indústriaque sustenta a política de guerra às drogas, produzindo,transportando e dando segurança às toneladas deentorpecentes que viajam pelo mundo, mas o combate sóexiste na sua ponta mais frágil , que é nas favelas, entre a

população negra e pobre”. Um exemplo claro que ilustra estefato, diz ele, é o “episódio do ‘hel icóptero do pó’, quetransportava quase meia tonelada de cocaína e o processo nãomanteve preso o piloto nem o proprietário como inclusive jádevolveu a aeronave. Só faltou devolver o pó!”, ironiza.

Ora, onde você acha que estão os 750 bi lhões de dólaresque o tráfico mundia l de drogas movimenta por ano? Deinício, parte dessa quantia bi l ionária estimula o consumo dealto luxo, seja nos ramos imobi l iário, automobi l ístico ou damoda (bolsas, acessórios, ca lçados, vestimentas). Uma outraparte é gasta subornando autoridades em todo o mundo,bem como contratando assessorias juríd icas especia l izadas.Contudo, a grande maioria dos vultosos lucros é incorporadaao mercado financeiro e está nos bancos. Segundo Saviano,Nova Iorque e Londres são hoje as duas maiores lavanderiasdo mundo, atuando com complexos sistemas de lavagem dedinheiro, que envolvem compra de ações, empréstimosinterbancários, emissão de títu los eletrônicos, entre outrasmodal idades do ramo financeiro. Para Zaccone, “a quartamaior economia do mundo, segundo o FMI (FundoMonetário Internacional ), é a economia das drogas i l ícitas. Eesse dinheiro não está nas favelas, nos guetos, esse dinheiroestá no sistema econômico” (veja entrevista na pág. 5).

Portanto, há muitos interesses poderosos envolvidos naguerra às drogas. Países inteiros estão sob a influência dosgrandes narcotraficantes. É uma falsa dicotomia tentar oporo Estado às grandes máfias de drogas. Não são rivais, pelocontrário, são cúmpl ices, se locupletam o tempo todo, aoponto das máfias de drogas e armas assumirem grandeimportância nos setores burocrático, governamental ,imobi l iário, nos bancos, nos negócios do Estado, na altapol ítica , e nas indústrias do entretenimento espetacular:televisão, cinema, internet, ramo editoria l , etc.

Pé de maconha em sua fase "adolescente".

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A saída é legalizar!

A política proibicionista claramente fracassou: promoveu ummorticínio generalizado em diversos países do mundo (Brasil ,México, Colômbia, etc.) e aumentou o poder do tráficointernacional com a repressão militarizada. Enquanto osoperadores da ponta do iceberg se matam pelo comando dasbocas de fumo, os grandes barões da droga – aqueles quetransportam toneladas de entorpecente por helicópteros, aviõese submarinos – estão lavando o dinheiro em diversas transaçõesbancárias e sentam-se à mesa do capitalismo financeiro paratratar com governantes sobre negócios. Diante de todas asconsequência negativas da política de guerra às drogas, umaalternativa se apresenta com pertinência: a legalização!

Legalizar as drogas não significa, comomuitos pensam, um total descontrole emrelação à produção, à distribuição, aoacesso e ao consumo dessas substâncias.Pelo contrário, legalizá-las implica em ummaior controle qualitativo sobre essasetapas, a partir de uma eficiente regulação,que definiria, por exemplo, parâmetros dequalidade para as substâncias, controle devendas a menores, proibição depropagandas apologéticas, um amplo ebem embasado programa de educação einformação nas diversas mídias, escolas, equipamentos culturais,etc. sobre as consequências do uso das variadas drogas, além dedelimitar a quantidade de pés para o cultivo doméstico e coletivo(em cooperativas) de cannabis.

De acordo com o psiquiatra Rafael Baquit, “a proibição éum problema, e gera muito mais mortes do que o uso dequalquer substância psicoativa. Logo, não faz sentido quealguma droga permaneça proibida, precisamosregulamentar todas elas. Claro que estas drogas envolvemdiferentes riscos e danos associados; a regulamentação decada droga deve ser adequada a estes e outros fatores"."Quantas vidas seriam salvas se cocaína pudesse sercomprada nas farmácias e tivesse em suas embalagens porexemplo a concentração/grama e se na sua composição nãofosse permitida a adição de uma infin idade de porcariascolocadas para aumentar o lucro?", indaga o professor deQuímica (sem trocadi lhos, por favor! ) Francisco Ribeiro. Deacordo com o mil i tante do Plantando Informação, HenriqueNeto, “legal izar as drogas não significa d isseminá-las, mas ooposto. Proibir as drogas causa muito mais danos àsociedade do que o consumo delas”.

Enquanto o mundo avança a passos largos nessadiscussão, o Brasi l , rota do comércio internacional de cocaína,um dos maiores consumidores de drogas do hemisfério sul eno qual morrem dezenas de milhares de jovens anualmentepor esta guerra, finge que não é com ele. Para se ter umaidéia do quanto estamos atrasados nesse debate, enquanto a

Holanda descriminal izou os usuários em 1 976 elegal izou/regulou os seus famosos coffee shops em 1 980, sóem 2006 a mais recente lei de drogas brasi leira (1 1 .343)descriminal izou o consumo, mas ainda assim éabsolutamente confusa em relação à quantidade, cabendo aojuiz e ao pol icia l decidir quem é traficante e quem é usuário.Dessa maneira, o classe-mediano pego em flagrante comdrogas no bairro nobre é tachado como usuário enquantoque aquele flagrado com a mesma quantidade na favela éenquadrado como traficante. “Uma lei em que 50g demaconha em uma região pobre dá cadeia de 1 4 anos portráfico e numa região nobre se tipifica como usuário nuncaserá um sucesso”, pontua o professor Francisco Ribeiro.Nossos vizinhos Argentina, Uruguai e Colômbia estão bem àfrente em relação à despenal ização do usuário, com leis claras

sobre o tema. Há exemplos também naGuatemala, Portugal , Espanha, Repúbl icaTcheca, entre outros.

Na contramão do mundo, há umProjeto de Lei (7663/201 0), do deputadoOsmar Terra (PMDB/RS), aprovado naCâmara Federal e tramitando no Senado,que prevê a internação compulsória parausuários de drogas e a reclusão destesem cl ín icas terapêuticas rel igiosas,ferindo o princípio do Estado la ico. O PL

ainda estipu la uma pena maior do que a de homicíd io paraquatro pessoas ou mais que forem flagradas consumindodrogas. Um verdadeiro retrocesso! Por outro lado, há algunsPLs progressistas que versam sobre a regulamentação daprodução e da distribu ição da maconha, como os dosdeputados federais Eurico Júnior (PV-RJ ) e Jean Wil lys (PSOL-RJ ). J á no Senado, Cristovam Buarque (PDT-DF) é o relator naComissão de Direitos Humanos (CDH) de uma sugestão dasociedade civi l que sol icita a regulamentação do usomedicinal e recreativo da maconha. Sabe-se que oCongresso Nacional é conservador e difici lmente aprovaráuma lei progressista em relação às drogas se não houverintensa pressão e mobi l ização socia is. Não é o Estado quedá direitos, mas o povo que os conquista!

Modelo ideal?

Em resumo, a lega l ização e regu lação de todas as drogasteria , como efeito imed iato, o desbaratamento do mercadobi l ionário do narcotráfico, acabando com sua renda econsequentemente com toda a violência e corrupção a eleassociadas. Está claro que investir em prevenção, acesso dequa l idade e informação sobre os efeitos das substânciaspsicoativas, bem como em programas multiprofissiona is emul tid iscipl inares de saúde para os ad ictos, baseados (como perdão do trocad i lho! ) na redução de danos, é bem maiseficaz e demanda muito menos recursos do que gastarcom equipamentos sofisticados de mi l i tarização e com oinchaço do sistema prisiona l .

Legalizar as drogasnão significa um total

descontrole emrelação à produção, à

distribuição, aoacesso e ao consumodessas substâncias.

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E como seriam os pormenores desse modelo delegal ização das drogas? Esta seria controlada pelo Estado oupelas leis do mercado? O ativista Henrique Neto, do coletivoPlantando Informação, defende um “modelo regulado peloEstado, mas que possibi l i te a distribu ição da riqueza que amaconha pode gerar, com cooperativas de cultivadores ecom distribuição estata l de maconha produzida porpequenas propriedades, a lém do cultivo caseiro”. Por suavez, o professor Ribeiro atesta que, como o Brasi l temdimensões continentais, seria “necessário um modelopróprio dentro de nossas particu laridades. Fato é que seapl icarmos uma regulamentação/legal ização o tráfico acabana hora. Acaba porque ele passa a ser contrabando. Hojedeve ser mais fáci l para um menor comprar maconha numaboca de fumo do que álcool em uma mercearia porquetraficante não pede RG!”.

Na opinião do psiquiatra Rafael Baquit, "todas as drogasdevem ser rigorosamente regulamentadas e controladaspelo Estado em sua produção, d istribu ição ecomercia l ização. Pode até envolver dinheiro da in iciativaprivada, mas sob rígida regulamentaçãoem favor da saúde públ ica , e não dolucro". O médico ainda pontua que “noBrasi l temos o exemplo de duas drogasl ícitas populares, uma cada vez melhorregulada pelo Estado (tabaco) e outrapessimamente regulada (á lcool ).Atualmente, num mesmo momentohistórico e juríd ico em que a indústria dotabaco é proibida de veicu larpropaganda, a indústria do álcool teml iberdade para divu lgar suas poderosas eapelativas campanhas que beiram aapologia”. Para a jornal ista e mi l i tantepela legal ização da maconha Al ine deFarias, “é preciso abrir o debate emrelação à pol ítica sobre drogas, quediminua os danos associados ao uso e aoabuso na nossa sociedade. Devemos terum cl ima mais aberto de discussão sobre as diferentesdrogas, o efetivo respeito aos direitos dos usuários, aprevenção, o tratamento e a redução dos danos”.

Na vi são do antropólogo Sergio Vida l , “assim como emtodas as outras pol íti cas públ i cas, cada pa ís preci saestudar as melhores soluções para suas própri asrea l i dades. É necessário montar uma equ ipe deespecia l i stas mu l tid i scip l i nar, orien tada por d i ferentesestudos e in i ci a r a e l aboração de um projeto exclusi vopara o Brasi l " . O que não se pode é que, mesmo comtodas as consequências nocivas da guerra às drogas,continue-se obscurecendo esse d iá l ogo, a l imentando-ocom mitos, i nverdades e desinformação de má-fé. Échegada a hora da a l ternati va a esse modeloproib i cion i sta . Lega l izem as drogas!

A guerra à planta

De todas as substâncias psicoativas i legais, a maconha é aque tem mais usuários no mundo. Estima-se que essaquantidade varie de 200 a 400 mi lhões de pessoas. A ervaconsegue se adequar aos mais variados tipos de cl ima esolo, sendo plantada em 1 72 países e territórios.

Pesquisadores dizem que a origem da cannabis deu-se naÁsia, podendo ter “surgido” no Himalaia, na China ou na Índia. Hádoze mil anos, quando o sapiens sequer tinha inventado a escritaou a roda, já usava fibras de cânhamo para fazer cordas. Acannabis sativa foi uma das primeiras plantas a seremdomesticadas pela humanidade, há dez mil anos. Por volta de5.000 a.C., os chineses usavam o cânhamo (as fibras do caule damaconha) para confeccionar redes de caça e pesca, roupas,cordas e suas sementes eram usadas para alimentação. Aliteratura budista diz que Sidarta Gautama, o Buda, passou seismeses alimentando-se unicamente de sementes de maconha,riquíssimas em ômega-3, ácido graxo fundamental para o bomfuncionamento cerebral e contra problemas cardíacos.

Mas foram os indianos que fizeramprimeiramente o uso ritual ístico etranscendental da erva. Os l ivros sagradosdo hinduísmo, uma das rel igiões maisantigas da humanidade, que data demilhares de anos a.C. , descrevem amaconha como um presente dos deuses.Os hindus a consomem em referência aodeus Shiva. A erva se espalhou pelomundo, seu uso variou, de acordo com acultura, entre as formas medicinal ,rel igiosa e recreativa. Os rastafárisjamaicanos e parte dos adeptos do SantoDaime, por exemplo, consideram a ervauma planta sagrada e cultuam-na comdevoção. Historiadores defendem que acannabis chegou ao Brasi l pelos escravosafricanos, embora as caravelas de Cabral

tinham parte de suas estruturas feitas de cânhamo. Osnegros cultivavam a diamba entocada clandestinamente nasimensas plantações de cana-de-açúcar do período colonial .

Contudo, no último século, a erva foi sofrendo umprocesso de marginal ização que culminou na criminal izaçãodo seu consumo em diversos países do mundo. A proibiçãoao consumo de maconha no Brasi l sempre esteve l igada àrepressão aos elementos da cultura negra. Em 1 932, juntocom a cannabis, foram proibidos o samba, o candomblé, acapoeira e outras manifestações da cultura afrobrasi leira .Em 1 938, houve o endurecimento das penas para tráfico econsumo. Fato simi lar ocorreu nos Estados Unidos, onde aproibição à marijuana deu-se também para suprimirelementos da cultura mexicana naquele país, uma vez que oconsumo da erva estava muito atrelado aos latinos.

O que não se pode éque, mesmo com

todas asconsequências

nocivas da guerra àsdrogas, continue-seobscurecendo esse

diálogo,alimentando-o commitos, inverdades edesinformação de

má-fé.

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Em outras partes do mundo, a proibição da cannabis,principalmente do seu uso recreativo, não teve relação dire-ta com elementos racia is, imigratórios ou xenófobos, mascom a tradição judaico-cristã conserva-dora e moral ista , que penal iza o prazer ea l iberdade do gozo experimental . A ma-conha foi d isseminada como “erva do di-abo” por estas rel igiões. Portanto, aguerra à planta é historicamente rechea-da de obscurantismos rel igiosos, a lém deelementos racistas e xenófobos.

A cura verde

A estigmati zação da maconha nasociedade brasi l e i ra é responsávelpelo absurdo do seu uso med icina lnão ser amplamente d i fund ido paraamen izar os efei tos de vári asenferm idades. Embora a l e i brasi l e i ra preveja o uso dacannabis med icina l , uma fa l ta de regu l amentação ma iscl a ra impede e invi abi l i za sua plena apl i cação. Ocanabid io l (CBD), um dos princíp ios a ti vos da maconha ,reconhecidamente efi caz no tra tamento de d iversasdoenças, a inda é proib ido no Brasi l e não tem regi stro naAgência Naciona l de Vigi l ânci a San i tá ri a (Anvi sa ). Suaimportação pode ser sol i ci tada excepciona lmente juntoao órgão. Recente deci são da J usti ça , após açãoimpetrada pel a Defensori a Públ i ca do Estado de SãoPau lo , obrigou o referido estado a fornecer canabid io lpara uma cri ança de 7 anos da cidade de São Carlos. Noentanto, à parte essas exceções, a permissão para o usode maconha med icina l exi ste no papel , mas na prá ti cauma burocraci a gigantesca é forte empeci l ho para aobtenção do CBD. Há incontávei s re l a tos de pacientesque submetem o ped ido de maconha med icina l à Anvi sae têm suas demandas negadas. O documentário Ilegal,de Tarso Araú jo , retra ta essa questão, entre outras.

Ma i s uma vez o Brasi l segue atrasado e na contramãode pol íti cas mund ia i s que não só regu l amentam amaconha para fins med icina i s como permi tem o cu l ti vodomésti co e coleti vo (em cooperati vas) da pl an ta . Mesmonos Estados Un idos, pa ís símbolo da guerra às drogas, ouso de maconha para fins terapêuti cos é l iberado em 21estados. Pa íses como Canadá , Hol anda , I srae l , França ,Espanha , Austrá l i a , I tá l i a , Su íça e Reino Un ido tambémadotam o modelo de l iberação para esse fim . SergioVida l , que traba lha com programas de redução de danosna UFBA e é autor da “bíb l i a ” do cu l ti vo casei ro demaconha no Brasi l , Cannabis Medicinal: Introdução aoCultivo Indoor, d i z que procura “tornar os usuáriosmed icina i s um pouco ma is au tônomos, capaci tando-oscom os conhecimentos bási cos sobre o cu l ti vo da pl antapara que possam ter acesso a modos de preparar o seupróprio med icamento" .

A monstruosa burocracia brasi leira que emperra o usomedicinal é bastante irracional , se levarmos em conta oamplo leque de benefícios que a cannabis traz aos pacientes.

De acordo com o Conselho Americanode Medicina Fami l iar (www.jabfm.org), aerva serve, em graus variados deeficiência , para náusea e vômitos,anorexia e perda de peso, dorneuropática , fibromialgia , espasmoscausados por esclerose múltipla ou lesãoda medula , dor em decorrência docâncer e do seu tratamento, asma,glaucoma e epi lepsia , controle dasalterações causadas pelo Alzheimer, dorpós-operatório ou causada porprocessos inflamatórios, entre outros.“Atualmente estamos vendo os mi lagresdo uso do CBD, mas é importantelembrar que o THC (tetrahidrocanabinol )

também tem importantes propriedades medicinais, comoal ívio de dores, náuseas, aumento do apetite e melhora dopaladar, devolução da qual idade do sono, entre outrosbenefícios”, d iz a jornal ista Al ine da Farias.

Enfim, sem prosel i tismo algum, é fato que a maconhapode salvar vidas ou amenizar a dor de muitas pessoas. Oque impede o Brasi l de avançar nessa questão são suasinstitu ições e sociedade altamente conservadoras, quecolocam elementos rel igiosos e morais acima dos interessessocia is. Racional e humanamente falando, não há motivoalgum para a proibição da cannabis medicinal .

Não compre, plante!

Antecipando-se à legal ização, é cada vez mais crescente aquantidade de usuários que decide cultivar a cannabis emcasa. O cultivo caseiro é uma alternativa socia l eecologicamente consciente e um redutor de danossignificativo: a lém de ter acesso a uma maconha de altaqual idade orgânica, sem nenhum aditivo químico – estemuito comum na maconha “prensada” adquirida nas “bocasde fumo” –, o cultivador também, ao estabelecer um ciclopermanente de plantio e colheita , rompe defin itivamente sual igação com o tráfico. “Apreensões de drogas só fazemaumentar o preço das mesmas e o lucro dos barões. Quemcombate mesmo o tráfico é quem planta sua maconha,assim atinge o tráfico onde ele mais sente: o bolso”, subl inhao professor de Química e organizador da Marcha daMaconha no Rio, Francisco Ribeiro.

Para Raul (nome fictício), professor de História da redepúbl ica estadual cearense, que cultiva há mais de três anos,a plantação caseira de maconha “deveria ser permitida eregulamentada, por muitos motivos – medicinal , potencia lindustria l , d iminuições da violência e do poderio do tráfico –,mas basicamente porque compreende uma questão que

A maconha podesalvar vidas ou

amenizar a dor demuitas pessoas. (. . . )

Racional ehumanamentefalando, não há

motivo algum para aproibição da cannabis

medicinal.

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perpassa as l iberdades individuais, o l ivre arbítrio, o direitodo cidadão escolher o que quer fazer sem prejuízo deterceiros. Direito que inclusive o Estado deveria proteger eassegurar”. Segundo o historiador, cu l tivando em casa “vocêplanta e você colhe, não financia nenhum traficante enenhum pol icia l corrupto. Não mata crianças à la Tropa deEl i te, e seu fumo será sempre o melhor”.

Para o casa l de permacu l tores Pau lo e Gustavo(nomes fi ctícios), que cu l ti vam há cerca de dois anos, “aproib i ção não faz nenhum sentido, a inda ma is depoisque você pl anta ”, ressa l ta Pau lo . Onde vivem, emAqu i raz, Região Metropol i tana de Forta l eza (RMF),cu l ti vam d iversas espécies de maconha , da índ ica àsa ti va , vari ando as l i nhagens. “Essa daqu i é uma sati vacolombiana , que uns amigos nos deram de presente”, d i zPau lo , mostrando uma pl anta robusta , com folhas l a rgase de tona l i dade verde-escuro.

De acordo com o permacultor, o cultivo caseiro éimportante porque acaba com as bases do tráfico, “nada temque ser proibido, cada um é responsável por si , desde quenão interfira na vida do outro. Penal izar o uso por que?”. Ocasal d iz que hoje procura não banal izar o uso da maconha,consciência adquirida pós-cu ltivo. “Não é uma planta que sedeva fumar toda hora, é importante conhecer suaspropriedades, pois é uma erva sagrada”, afirma Paulo.

Na opinião do antropólogo da UFBA Sergio Vidal , autor doclássico Cannabis Medicinal: Introdução ao Cultivo Indoor, “ocu ltivo caseiro é o básico dos direitos humanos. Todo serhumano tem direito ao próprio corpo e tem que ter direito acultivar aqui lo que consome. Muitos usuários recreativosuti l izam o meu l ivro para reduzir os danos do consumo,produzindo a própria maconha, melhorando a qual idade ediminuindo os riscos do hábito”.

Indoor ou outdoor? Eis a questão!

Para Raul , “o melhor é plantar. Há vantagens edesvantagens das duas formas. Por exemplo, em indoor(dentro de casa, numa estufa improvisada) o cultivador temo controle tota l dos fotoperíodos, podendo vegetar e floriras plantas de acordo com sua necessidade, porém a umcusto de energia elétrica , com i luminação e venti lação. Nooutdoor (na parte externa da casa, à luz do sol ) temproblemas com a segurança, com insetos, mas não hánenhuma lâmpada que se compare ao sol , sempre queposso complemento o fotoperíodo com algumas horas deluz natural . As plantas adoram”, d iz o experiente cultivador.

As plantas de cannabis têm duas fases distintas: vegetação,no primeiro mês e meio, geralmente, quando devem receberde 1 6 a 1 8 horas de luz por dia; e floração, quando darão asflores (que é o fumo da erva), e devem receber em torno de1 2 horas de luz por dia. O tempo para colheita varia de três aseis meses, dependendo da espécie (uma colheita médiarende cerca de 1 0 a 1 5 gramas por planta, mas algumasespécies rendem mais. É importante frisar também que só asplantas fêmeas dão flores). As índicas geralmente têm umperíodo de maturação mais rápido do que as sativas. O skunk,por sua vez, um híbrido de sativa com índica, matura aindamais depressa (alguns chegam a maturar em 1 0 semanas) eproduz resina abundante com alto teor de THC, substânciaresponsável pelos efeitos psicoativos da maconha. Enquantoa cannabis “normal” tem em média 5% de THC, o skunk temníveis que variam de 1 0 a 1 5%.

O professor de História Raul afirma que não é difíci lcu l tivar maconha, assim como não é difíci l cu idar de umaplanta, mas faz a ressalva de que o cultivo requer algunsconhecimentos mínimos: “Um estudo prévio sobregerminação, solo, i luminação, regas e nutrição dos vegetaissão fundamentais para qualquer bom cultivo. A grandedificu ldade de alguns in iciantes é ter acesso a sementes deboa qual idade. Mas de fato até sementes em bom estado defumos prensados podem render l indas flores”.

Pés de skunkprontos para a colheita. Cultivador tratando as flores da safra colhida. Uma colheita rende em média de 1 0 a 1 5 gramas por planta.

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MACONHA: Mitos e verdades

Quando se pretende uma abordagem aprofundada sobre a maconha – ou qualquer droga –, é importante não cair nasarmadi lhas do maniqueísmo superficia l : ou só faz mal ou só faz bem. Como qualquer substância psicoativa, a maconha temseus prazeres e riscos. Não é inofensiva, como muitos “maconheiros” apregoam, tampouco esse bicho de sete-cabeças, essa“erva do diabo”, como muitos “caretas” colocam. Aqui , vamos desconstru ir mitos falaciosos sobre a erva, bem como tecerconsiderações sobre algumas verdades inconvenientes aos amantes da ganja .

MITOS

Maconha mata: Esse talvez seja o mito mais dissimuladoque já inventaram sobre a erva. Nunca houve relato demorte por overdose de maconha na l iteratura médico-científica. Portanto, maconha NÃO mata!

Maconha causa câncer de pulmão: I sso não éverdade, conclu iu o maior estudo epidemiológico feitosobre o assunto. Não existem evidências suficientes(apenas hipóteses e suposições) para dizer que acannabis cause qualquer tipo de câncer. Pelo contrário,há diversos estudos publ icados nos últimos anos queafirmam que a erva pode ser um remédio eficaz para ostumores (ver “A cura verde”, pág. 13).

Fumar maconha emburrece e mata neurônios:Mais uma mentira que foi sendo alardeada aos quatrocantos e hoje muitos pensam que é verdade. De acordocom o Programa de Orientação e Assistência aDependentes da Universidade Federal de São Paulo(Unifesp), a maconha, durante seu efeito no organismo –a famosa “lombra” –, a l tera o funcionamento dosneurônios, mas não tem capacidade para destruí-los.Quanto ao “emburrecimento”, não existe um estudoconclusivo a respeito dos efeitos da maconha sobre aintel igência em longo prazo, mas sabe-se que seu usodesde a adolescência causa problemas de memorizaçãoe dificu ldade de atenção.

Maconha causa esquizofrenia e outras doençaspsiquiátricas: De fato, segundo estudos acadêmicos, aocorrência dos problemas é duas vezes maior em usuáriosregulares do que em pessoas que nunca fizeram uso dadroga. No entanto, não há evidência se é a maconha quecausa/estimula o problema ou o contrário – ou se os doissintomas são consequência de um outro fator, como ogenético, por exemplo. Ser vítima de bullying, ou viver numambiente famil iar confl ituoso são fatores de risco bem maisconsideráveis para a causa ou desenvolvimento dosproblemas/doenças psiquiátricos(as) do que o uso demaconha. Para o psiquiatra Rafael Baquit, “os problemasrelacionados ao uso de drogas são uma resultante dainteração sujeito + ambiente social + drogas, e por essemotivo fica difíci l atribuir exclusivamente a uma droga acausa de um problema. Os transtornos psiquiátricos ealterações psicológicas dependerão dessa interação”.

Porta de entrada para drogas mais pesadas: Há um“meme” na internet que trata essa inverdadeironicamente. Diz assim: “Maconha porta de entrada? Sóse for da geladeira”. Na fotomontagem, uma criança abrea geladeira e procura o que comer. Brincadeiras à parte,o fato é que não há nenhuma evidência biológica quesustente esse mito. Na verdade, a l igação da maconhacom drogas mais pesadas está no proibicionismo, quefaz com que usuários da erva recorram à droga nasmesmas bocadas que vendem cocaína, crack, etc. Deacordo com o antropólogo e pesquisador da UFBA SergioVidal , “a teoria da escalada ou da porta de entrada,chamada no original de The Gate Way Theory, se mostroutotalmente equivocada ainda na década de 1 980.Atualmente, nenhum pesquisador sério considera essaafirmação verdadeira”. Segundo o médico Rafael Baquit,“um l ivro tradicional de psiquiatria brasi leiro de 1 979, doprofessor Nobre de Melo, já afirmava: ‘Acusar a maconhado primeiro degrau da escada cujo último ponto é aheroína não passa de retórica pol icia lesca, sem qualquerfundamento médico-científico’”.

VERDADES

Aumenta o risco de enfarto em pessoas comhistórico de problemas cardiovasculares em 4,8vezes. No entanto, este mesmo estudo conclui que a drogaé uma causa relativamente rara para esse tipo de problema.

Acarreta problemas de memória e atenção. Se ouso frequente e contínuo iniciou-se na adolescência eestende-se até a vida adulta , pode causar dificu ldades dememorização e atenção irreversíveis. Segundo opsiquiatra Rafael Baquit, “a maconha causa alteraçõescerebrais permanentes em adolescentes usuários.”

Aumenta a chance de bronquite e prejudica acapacidade respiratória, como qualquer outrasubstância fumada, devido à absorção de fumaça tóxica.

Causa dependência química em cerca de 9% daspessoas que a experimentam, segundo estudo de2006, intitu lado The epidemiology ofcannabis dependence (Aepidemiologia da dependência da cannabis). Entretanto, amesma pesquisa conclui que anfetaminas (1 1 %), álcool(1 5%), cocaína (1 7%), heroína (23%) e nicotina (32%)causam maior dependência comparadas à maconha.

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Para se aprofundar:

LivrosAcionistas do Nada – Quem são os traficantes de drogas (Orlando Zaccone)Cannabis Medicinal: Introdução ao Cultivo Indoor (Sergio Vidal )Zero, Zero, Zero (Roberto Saviano)

FilmesCortina de Fumaça (Rodrigo McNiven)Helicoca – o helicópeto de R$ 50 milhões (Al ice Riff - DCM)Ilegal (Tarso Araújo)Quebrando o Tabu (Fernando Grostein Andrade)

revistaberro.com

Quem se importa com os mortos da favela? goo.gl/3QpFVA

A guerra à planta: a cultura canábica goo.gl/2AsujM

Se as verdades e os mitos sobre a maconha são asjusti ficativas uti l i zadas para a sua proibição, substânciasl íci tas como o tabaco e o á lcool , se fosse usada a mesmalógica , teriam de ser proibidas também. Segundo dados doInsti tuto Naciona l de Câncer (INCA), o tabaco causad iversos tipos de câncer (boca , laringe, faringe, esôfago,pâncreas, rim, bexiga , colo de útero, a lém de 90% doscasos de pu lmão), doenças card iovascu lares (risco cincovezes maior de sofrer enfarto) e respiratórias (risco cincovezes maior de sofrer de bronqu ite crônica e enfisemapu lmonar), a lém de promover uma dependência severa ,quatro vezes mais perigosa que a da maconha.

A partir de uma compilação de diversos estudosinternacionais (Paolo Boffetta, Alcohol and Cancer - 2006;Arthur Klatsky, Alcohol and cardiovascular health - 201 0; ThorNorström, Alcohol, supressed anger and violence – 201 0; M.Herreros-Vi l lanueva e outros, Alcohol consumption ofpancreaticdiseases - 201 3), a lém de dados da Organização Mundial deSaúde (OMS), constatou-se que o álcool , por sua vez, aumentaem três vezes a incidência de doenças psicóticas em mulherese oito vezes nos homens; é fator de risco considerável para

hipertensão, derrame cerebral e arritmias cardíacas; produzcirrose, hepatite, 70% dos casos de pancreatite, diversos tiposde câncer (boca, faringe, esôfago, fígado, intestino e mama),além de predispor a uma maior agressividade dos indivíduosque o consomem, sendo inclusive associado à violênciadoméstica em muitos casos pesquisados.

Recentemente a OMS fez uma pesqu i sa e conclu iuque o uso recreaciona l de maconha traz menosma lefícios à saúde públ i ca e ind ividua l do que o tabaco eo á l cool . Duzentas mi l pessoas morrem anua lmente peloconsumo de entorpecentes no mundo todo. Nenhuma édevido ao uso da erva . J á por outro l ado, o tabaco e oá l cool matam, respecti vamente, cinco e dois m i l hões depessoas por ano. Segundo o méd ico Rafael Baqu i t,“podemos considerar a maconha uma droga ma is l eveque o á l cool . A maconha não só tem menor potencia l deri sco para dependência , tem síndrome de abstinêncial eve, quando há , e não pode dar overdose. O á l cool nãosó pode trazer uma overdose, como seu ri sco paradependência é ma ior e sua síndrome de abstinênciapode chegar a matar”.

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Cultura

Ceará ProfundoPor Gi lmar de CarvalhoFotos: Francisco Sousa

Cumbe

Há cento e cinquenta e cinco anos (1 859), quando passou peloCumbe, Aracati , o aquarel ista Reis Carva lho, integrante da ComissãoCientífica de Exploração, enviada para estudar o Ceará , encontroucataventos de carnaúba.

Eles continuam a ser fei tos (Seninha , Francisco Queiroz). Recorremaos troncos da pa lmeira para as estruturas e às ta las e ao trançado dapa lha para as hél ices.

Antes, os canos eram escavados nos troncos das carnaúbas. Hoje,recorrem ao PVC, mas a engenharia é a mesma. Os cataventos seinserem na paisagem, como elemento da cultura que recorre à natureza.São aerodinâmicos, poéticos e eficientes. Na foto do Francisco Sousa, elesfazem contraponto às torres das eól icas, fincadas no nosso l i toral , com apromessa de energia l impa e renovável .

Os textos do mestre Gi lmar de Carvalho, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC),autor e organizador de mais de trinta l ivros e pesquisador incessante da cultura popular, seimbricam com as imagens de Francisco Sousa. Eles via jam há mais de dez anos pelo Ceará, o quejá rendeu l ivros (Artes da Tradição , Rabecas do Ceará, O Ceará do Ednardo), prêmios (J . Ribeiro paraCeará escrito à luz, Rodrigo Melo Franco, do IPHAN, 201 4) e estórias.

Viagem

Natura l do Ipu , dona Ed ite Nogueira (1 934/2005) era devota do PadreCícero. Fez uma promessa e a lcançou uma graça com este santo dopovo. Teria de ir ao Juazeiro do Norte e adqu irir uma imagem do santo,bem grande, para o Hotel São Francisco, da qua l era dona, na cidade daBica , no sopé da Ibiapaba.

Via jou para o Cariri , comprou a escu l tura , mas teve um problema nahora da viagem: o santo teria de vir no compartimento de cargas doônibus. Ela temia que a imagem não resistisse aos solavancos echegasse quebrada ao Ipu .

Queria que o santo viesse dentro do ônibus. Impossível . Podiamachucar alguém. Foi quando teve a ideia de comprar outra passagem.Padre Cícero divid iu a poltrona com dona Edite. Chegou inteiro ao Ipu,para mostrar o poder da devoção ao Padim.

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Arado

Era um dia chuvoso de janeiro de 201 0. Ainda não se instalara opessimismo que nos leva a tantos anos de estiagens. Na entrada paraAbaiara, perto da estrada que vai de Milagres a Juazeiro do Norte, umhomem manejava um arado.

Não é prática mu i to comum no restante do Ceará , com soloesturricado, com muitas pedras e aridez. O Cari ri é este oásis doscanavia is, das pa lmeiras e da Chapada do Araripe, com suasincontáveis nascentes d 'água .

O arado de Abaiara era manual . Um homem e um animal se ajudavame se complementavam. A terra estava sendo revolvida. Não era comumpara nossos olhos tão urbanos. Paramos para fazer a foto. Não quistomar tempo do agricu ltor. Ele estava fazendo o trabalho dele.

São Gonçalo

A comunidade do Poço da Onça, em Miraíma, se reúne para a dançade São Gonçalo. O tirador é mestre Manoel Torrado, também vaqueiro,aboiador, l íder de um clã que mantém as tradições e se recusa a sairdaquela terra tão querida quanto árida.

A dança de São Gonçalo é penitência, não é festa. O toque musical émonocórdio. Os passos se repetem, como uma coreografia da l itania.Armam um andor para o santo violeiro e jogral . Penduram frutas pararepresentar a ferti l idade do solo.

São nove a doze jornadas, de uma hora de duração, acompanhadaspela sanfona, rabeca ou viola. Dizem que o santo português de Amarantefazia as prostitutas dançarem para esquecer do sexo. Pelo tempo gasto,pela monotonia dos passos, pelo cansaço, a dança tem perdido aimportância. Nada se acaba, tudo se transforma, também na cultura.

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Impressões Mundanas

Fortaleza é um poço profundo de contrastes: quinta maiorcidade do Brasil , com mais de 2,5 milhões de habitantes (e umaRegião Metropolitana beirando 4 milhões de moradores), temo maior PIB do Nordeste (R$ 42 bilhões/IBGE), mas é também amais desigual da região, com vários bolsões de pobrezaespalhados por todo o seu território. Segundo o relatório maisrecente da ONU sobre aglomerados urbanos (201 2), foiconsiderada a quinta cidade mais desigual do mundo, onde 7%da população detém mais de um quarto (26%) de toda ariqueza do município. Em um cenário tão contrastante, a figurado “criminoso”, do “bandido social”, aquele que não se resignaàs condições miseráveis que a sociedade lhe impõe, é lugar-comum em qualquer periferia.

“É verdade que o capital ismo manteve como constante aextrema miséria de três quartos da humanidade, pobresdemais para a dívida, numerosos demais para o confinamento:o controle não só terá que enfrentar a dissipação dasfronteiras, mas também a explosão dos guetos e favelas” (Gil lesDeleuze, Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle).

“Se fosse pedreiro, ganhava mil reais trabalhando o dia todono sol quente. Se for pra trabalhar de servente, pintor,carpinteiro, o nêgo num sai dal i ! Se quiser uma coisinha a maistem que ir pro crime mesmo”, diz João (nome fictício), 31 anos,traficante de drogas na favela da Vila Cazumba, no bairroCidade dos Funcionários, zona sul da capital cearense. Moreno,de estatura mediana, fala arrastada, unhas compridas, olhosamarronzados e expressivos, cheio de cicatrizes pelo corpo,conversamos com ele em seu barraco, há alguns meses. Seexpressa com grandes gestos faciais. As mãos também falambastante. Durante a prosa, alguns cl ientes apareceram, masnão foram atendidos. “Peraí mah, tô ocupado, tô dando umaentrevista aqui”, disse ele, com orgulho no tom de voz,enquanto fumava seu baseado bem à vontade.

Voltando à conversa, enfatizou em tom de brincadeira , seespreguiçando na cama onde conversamos (não haviacadeiras no local ): “E agora tô aqui ó, ganhando minha céda,sem botar peso nem debaixo do sol quente”, comparandosua ocupação ao de um trabalhador da construção civi l . “Dá

não mah , pra trabalhar assim não. O sistema é esse, é cruel ”,resume, mostrando, grosso modo, porque muitos da favelaescolhem o caminho do crime. “Se eu fosse aquele cara quese humi lha no sinal , por menos de um real , minha chanceera pouca, mas se eu fosse aquele moleque de touca queengati lha e enfia o cano dentro da sua boca… (RacionaisMC´ s – Capítulo 4 versículo 3). Consegue, em média , dois mi lreais por mês, mas “já teve mês” que tirou mais de três mi lreais. Um dos rivais de João no comércio de drogas na Vi laCazumba, o Pistola (nome fictício), que já trafica por al i hámais tempo, arrecada bem mais mensalmente, confessa ele.

A casa onde João mora é alugada por 250 reais; chegou al ihá pouco tempo, fugido de um atentado no qual levou seistiros (mostra as marcas de bala pelo corpo) e passou 35 diasno hospital . Quando saiu da internação hospitalar, decidiuque não era mais hora de voltar pro Jardim Fluminense,comunidade no bairro Canindezinho, zona oeste de Fortaleza.Se instalou na Vi la Cazumba. Foi o quinto atentado sofridopor João, que diz escapar por “l ivramento de Deus”. “O nêgo évivedor, pivete! ”, se orgulha, batendo no peito.

João tem uma história parecida com a de muitos outrosJoãos, Josés, Franciscos e Antônios espalhados pelo Brasi l ,principalmente nas metrópoles. Aos 8 anos, o pai levou-opara um bar e ele experimentou seu primeiro trago decachaça. O primeiro baseado veio um ano depois, aos 9. Afamíl ia era muito pobre, o pai a lcoólatra e a mãe catandolata de alumínio para sobreviver e al imentar os seis fi lhos.João, muito novo, a judava a mãe também catando latas noBonsucesso, bairro da zona oeste forta lezense. Os paiseram andari lhos; como não tinham casa própria , mudavamconstantemente de residência : passaram pelos bairros JoãoXXI I I , Servi luz, Lagamar, Castelo Encantado, Alto Alegre,Granja Portugal , Edson Queiroz, e pelas cidades vizinhasCaucaia e Maracanaú. “A situação era braba, nós passavafome. Tinha dia que num tinha o de comer”.

Aos 1 2 anos, quando moravam no Servi luz, bairro dazona leste conhecido pela comunidade do Titanzinho,deixou de estudar e entendeu o que era o crime. “Fui buscar

Vida e morte, João!Por Artur PiresFoto: Chico Cél io

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droga prum cara num canto combinado e ele me deu umqualquer”. Foi só o primeiro passo, já que esse “qua lquer”,segundo ele, era muito mais do que consegu ia catandolatas. Durante a adolescência , foi “avião” de váriostraficantes nos lugares onde viveu . Aos 20, assinou carteiracomo servente, “cavando buraco na tora,o d ia todim , de 7 da manhã às 5 datarde”, casou-se e foi morar no ParqueSanta Rosa , “onde entrei de vez procrime”. De lá , andari lho como os pais,mudou-se a inda para o Parque São Josée o Jard im Fluminense. Por a lgumtempo, conci l iou o traba lho de pedreirocom o crime: traficava e praticavaassa l tos, até o d ia em que optou apenaspela atividade criminosa , que era maislucrativa e lhe dava , sobretudo,reconhecimento socia l , que a pobrezalhe negava . Ao longo do casamento de1 2 anos, teve três fi lhos, que hoje têm1 1 , 8 e 6 de idade. “Moram com a mãeem Horizonte (Região Metropol i tana deForta leza). Depois que nós se separamo ,ela foi morar com os pais dela lá e levou os pivete”. Joãomanda um “d inheirim” pra eles todo mês, que também vãovisi tá-lo com frequência na Vi la Cazumba. “Eles têm queestudar”, d iz esperançoso, fazendo olhos de nuvens, que équando o olhar vagueia e va i ao fantástico, ao ind izível ; équando enxergamos mais longe.

A família toda sabe da sua ocupação. “Tentei esconder daminha mãe, mas teve uma hora que não teve jeito, pivete”. Nesseínterim, abraçou o alcoolismo, como o pai, e viciou-se no crack.“Era aviciado na pedra, fumava no cachimbo e na lata, masgraças a Deus consegui sair dessa desgraça. Hoje, dou só meustequim (na cocaína) no final de semana mesmo, vez ou outra”.

Vivendo no mundo do crime e sob suas regras, João játeve também que se va ler de uma das faces mais perversasda atividade: o homicíd io! Ou matava ou morria ! São seis aotodo. “A honestidade do band ido é a pa lavra . Quem nãotem palavra é pirangueiro . E pirangueiro morre logo. É ocerto pelo certo, pivete. O errado tem que ser cobrado”, d izele, friamente, sem parecer sentir remorso pelas vidastiradas. De fato, o crime tem um movimento próprio, àmargem das leis, escapando largamente às normasjuríd icas estabelecidas. Há um código de conduta ora l ,repassado de geração em geração. Aquele que não osegue, gera lmente perde a vida ! A atividade do crime,a l iada ao fetiche consumista , desumaniza qua lquer um. “Nalei da selva , consumir é necessário, compre mais, compremais, supere o seu adversário, seu status depende datragéd ia de a lguém; é isso: capita l ismo selvagem!”(Raciona is MC´ s, Mano na porta do bar).

João carrega nas costas quatro del itos previstos no CódigoPenal : artigos 33 (tráfico de drogas), 1 21 (homicídio), 1 55(roubo/furto) e 1 57 (assalto a mão armada). Apesar de serapenas mais um criminoso aos olhos da Justiça e de grandeparte da sociedade, ele parece saber por que está al i , naquela

condição, e o que de fato move o mundo:“O dinheiro é cruel , pivete, o cara rouba,mata e destrói por causa dele. O quemanda na mente do ser humano é o real ,é a céda. Nós num precisava trabalharnão, mah. Era pra nós poder andar decavalo, ter água l impa, plantar, comer,ficar deitado numa rede… né assim que oRacionais (MC´ s, Vida Loka – parte II) fala?Mas o homem é ambicioso, ele estragoutudo, como o Facção (Central , O Homemestragou tudo) d iz”. “Menores carentes setornam del inquentes e ninguém nada fazpelo futuro dessa gente. A saída é essavida bandida que levam roubando,matando, morrendo, entre si seacabando. Enquanto homens de poderfingem não ver, não querem saber, fazem

o que bem entender. E assim.. . aumenta a violência. Nãosomos nós os culpados dessa consequência”? (RacionaisMC´ s – Tempos Difíceis).

Ainda que convicto de sua escolha , João tem tambémconsciência dos riscos próprios da atividade criminosa : “Tôbrincando com a vida , meu futuro é a morte ou cadeia ,pivete”. Numa de suas saídas para assa l tar, em março de201 4, ao lado de um parceiro, encostaram a moto queocupavam e bateram com o cano do revólver no vidro docarro que iriam assa l tar. Foram respond idos com váriostiros partindo do veícu lo. Nele, vinha o tenente da Pol íciaM i l i tar de Pernambuco, Wesley Sávio de Sá Alves, quepassava férias em Forta leza . O caso, ocorrido no bairronobre Cocó, repercutiu em vários noticiários das imprensascearense e pernambucana. O tenente foi l iberado aoacusar legítima defesa , mesmo tendo atirado mais a lgumasvezes em João quando ele já estava caído no chão,agonizando. João e seu comparsa morreram al i mesmo, naca lçada , antes mesmo da chegada dos primeiros socorros.Estava certo ao prever sua sina : “é morte ou cadeia , pivete”:morte! O trágico é que a morte do “band ido” tem sempre oava l da sociedade, como se sua vida não va lesse nada eseu fim fosse desejado.

Lembro que uma das coisas que mais me marcaram naconversa com o João foi o fato dele, mesmo com tantaviolência fazendo parte de sua vida cotid iana , a inda sonhar:“Tô cansado desse mundão aí, pivete. Ainda quero viver empaz! ”, d isse ele, fazendo novamente olhos de nuvens. Queassim seja , João. Que agora esteja !

NO SITE O garoto por trás do"doze": a vida de um jovem traficantede Forta leza. goo.gl/BxHBOI

O crime tem ummovimento próprio, àmargem das leis,

escapando às normasjurídicas. Há umcódigo de condutaoral, repassado de

geração em geração.Aquele que não osegue, geralmente

perde a vida!

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Cultura: Papo de bêbo

Por João ErnestoFotos: Artur Pires e Ramon Sales

Domingo pela manhã acordei com humor tranqui lo. Sereno, fiz o café parameus amigos e para mim. No processo em que a água fervia , eu juntava os bonssentimentos para o dia que se iniciava. Tomei banho como quem retira um pesodas costas, me olhei no espelho e não vi mais nenhuma novidade. Fui a pé aoCentro e Gabi foi de bicicleta , no caminho conversei tanto com Ramon sobre osmistérios que aquela cidade guardava em um domingo de manhã. Atravessamos aPraça do Carmo e logo depois a Duque de Caxias, olhei as fachadas dos prédios esua descaracterização nesses tempos. Uma questão me veio: será que alguémpara pra apreciar essas fachadas? Alguém se incomoda com toda essa publ icidadeestampada nos detalhes das casas? Ou será mesmo que todo mundo tem oCentro como uma via de passagem, de não-permanência ou de retorno financeiro,só? Aquelas calçadas parecem virgens, inóspitas. Aquela Praça do Ferreira nemparece aquele recanto de gente que pousa nos bancos em final da tarde. Lembrobem de ter l ido sobre o Centro em dias de domingo na época em que haviamtambém cinemas de rua em Fortaleza, o Cinema São Luiz, o Cine Diogo. Após assessões muita gente ia passear pelas ruas do bairro, paquerar, jogar conversafora. . . viver um pouco da cidade, mesmo sem perceber.

Os pensamentos iam e vinham, ao mesmo tempo que chegávamos ao lugarde destino: Ra imundo dos Quei jos num domingo à tarde é uma artéria doCentro que pu lsa forte, ao som de música que parece não envelhecer eburburinho de conversas afoi tas. Fumaça do espetinho que demora a sa i r porconta da fome que faz fi l a em frente ao carrinho. Pegamos copos pra tomar acerveja que espera em cima da mesa em que Gabi estava . Fomos conversandoe d iscutindo sobre nossas vidas, pol íti ca e, sem perceber, nossas vozes jáfaziam parte daquele burburinho, nos misturávamos com os demais, imersosnaquela rea l idade domin ica l . . . ou domin icana , pra ser ma is justo com as dosesque passeavam na nossa mesa .

Muita coisa se aprende em um domingo. Muita coisafica na memória . Como no samba de Cartola que dizia :“preciso andar, vou por aí a procurar, rir pra não chorar”,voltamos a pé pra casa, não sem antes passar peloParque das Crianças. Lá um homem tomava banho.Sentamos um pouco para aproveitar o pôr do sol e naconversa com ele tivemos uma quase epifania . Devemosaproveitar nossos domingos, esses dias que vão além dofutebol na televisão. No meu domingo vou querer ruapara envelhecer sem ser careta, fica o desejo. Que osdomingos nos guardem encontros sem pressa (namanha!). Que as pessoas não precisem dormir nas ruaspara poder vivê-las com intensidade.

DominiCanas paragensdo Centro da cidade

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a gente sobra e demora pra se recompor

e como um ator, esconde toda essa transbordância

ta lvez por pura ignorância

seja fato normal ser alegoria

essa de aceitar todo dia

essa monotonia sob vigi lância

O ser humano é um pêndulo

Entre o bicho e a máquina

Por mais que queiram prática

A vida não é tão enfática

Ela desacelera, máxima

Sobrevivência passa rápida.

Paciência , olhe as vísceras

Antes das nádegas.

Para lhe ter romântica

Consciência , a cirurgia não é plástica

É interna, não retórica

Não lógica é boa prática.

Por pura ignorância

Aprenda a tocar umacítara (ou sobre o quevamos fazer quandoacabarem todas asproparoxítonas)

Era uma enorme feira e por algum motivo aquelesonho não me era estranho. Eu sabia a quemprocurava, mas não sabia o porquê a procurava. . .mas sabia . Era uma enorme feira e o que menos sevia era frutas, verduras ou telefones celu lares. Osvendedores eram os produtos e justificavam seuspreços através de suas virtudes. Um me chamouatenção: “sou uma boa companhia para um banhode chuva”, d izia . Poderia ser, mas para além decompanhia ele era pista . Perguntei por ela e aresposta foi rápida e um pouco vaga: “ela parou devender. Saiu daqui com uma mão segurando asacola e a outra na cintura, não voltou mais”. Masessa enorme feira que parece não ter mais fim, elasó podia estar aqui . . . não existe nada mais pra alémdessa feira . O homem ficou calado como quemguardasse um segredo. Não me ative a resposta,procurei na sessão de desejantes de casinhasbrancas, nos observadores de lusco-fusco e até nade vaidade e aparência . . . “ela foi pro mar”, concluí.Fu i no caminho do l itoral sem nenhuma sacola , nemroupas, nem ansiedades. Nem senti os calosescorrerem na sola dos pés, nem o sal ardendo esarando as feridas. Com um olhar lacrimoso avisteio horizonte. Chorei por alguns segundos, depoisesbafori um sorriso e deixei perder o chão.

Do sonho

Lusco-Fusco

Por João Ernesto

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Berro HQ!

Argumento

João Ernesto, Artur Pires eRafael Salvador

Roteiro e Arte

Rafael SalvadorBode Berro, o filósofo

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Lambe-lambe

Anal ice DinizTalita

behance.net/analicediniz