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ISSN 2358-6974 Volume 1 JUL / SET 2014 Doutrina Nacional / Gustavo Tepedino / Luiz Edson Fachin / Paulo Lôbo / Anderson Schreiber / Paulo Nalin / Rodrigo Toscano de Brito Doutrina Estrangeira / Gerardo Villanacci Jurisprudência Comentada / Marília Pedroso Xavier / William Soares Pugliese Pareceres / Judith Martins-Costa Atualidades / Bruno Lewicki Resenha / Carlos Nelson Konder Vídeos e Áudios / Caio Mário da Silva Pereira Revista Brasileira de Direito Civil

Revista Brasileira de Direito - IBDCivil · Resenha / Carlos Nelson Konder ... do direito civil, com particular inserção tanto no plano das relações patrimoniais, na teoria contratual,

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ISSN 2358-6974

Volume 1 JUL / SET 2014

Doutrina Nacional / Gustavo Tepedino / Luiz Edson Fachin / Paulo Lôbo / Anderson Schreiber / Paulo Nalin / Rodrigo Toscano de Brito

Doutrina Estrangeira / Gerardo Villanacci

Jurisprudência Comentada / Marília Pedroso Xavier / William Soares Pugliese

Pareceres / Judith Martins-Costa

Atualidades / Bruno Lewicki

Resenha / Carlos Nelson Konder

Vídeos e Áudios / Caio Mário da Silva Pereira

Revista

Brasileira

de Direito

Civil

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Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 2

APRESENTAÇÃO

A Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil tem por objetivo fomentar o

diálogo e promover o debate, a partir de perspectiva interdisciplinar, das novidades

doutrinarias, jurisprudenciais e legislativas no ambito do direito civil e de areas

afins, relativamente ao ordenamento brasileiro e a experiência comparada,

que valorize a abordagem histórica, social e cultural dos institutos jurídicos.

A RBDCivil é composta das seguintes seções:

Editorial;

Doutrina:

(i) doutrina nacional;

(ii) doutrina estrangeira;

(iii) jurisprudência comentada; e

(iv) pareceres;

Atualidades;

Vídeos e áudios.

Endereço para contato:

Rua Primeiro de Março, 23 – 10º andar

20010-000 Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Tel.: (55) (21) 2505 3650

Fax: (55) (21) 2531 7072

E-mail: [email protected]

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EXPEDIENTE

Diretor

Gustavo Tepedino - Doutor em Direito Civil pela Università degli Studi di Camerino,

Professor Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,

Brasil

Conselho Editorial

Francisco Infante Ruiz - Doutor em Direito Civil e Internacional Privado pela

Universidad de Sevilla, Professor Titular de Direito Civil (Direito Privado

Comparado) na Universidad Pablo de Olavide (Sevilla), Espanha.

Gustavo Tepedino - Doutor em Direito Civil pela Università degli Studi di

Camerino, Professor Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de

Janeiro, Brasil.

Luiz Edson Fachin – Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, Professor Titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná, Brasil.

Paulo Lôbo - Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, Professor

Titular da Universidade Federal de Pernambuco, Brasil.

Pietro Perlingieri – Professor Emérito da Università del Sannio. Presidente da

Società Italiana Degli Studiosi del Diritto Civile - SISDiC. Doutor honoris causa da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Coordenador Editorial

Aline de Miranda Valverde Terra

Carlos Nelson de Paula Konder

Conselho Assessor

Eduardo Nunes de Souza

Fabiano Pinto de Magalhães

Louise Vago Matieli

Paula Greco Bandeira

Tatiana Quintela Bastos

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SUMÁRIO

Editorial

Um novo Instituto de Direito Civil? – Gustavo Tepedino 6

Doutrina nacional

Esboço de uma classificação funcional dos atos jurídicos – Gustavo

Tepedino

8

O corpo do registro no registro do corpo; mudança de nome e sexo sem

cirurgia de redesignação – Luiz Edson Fachin

36

Direitos e conflitos de vizinhança - Paulo Lôbo 61

Contratos eletrônicos e consumo - Anderson Schreiber 88

A força obrigatória dos contratos no brasil: uma visão contemporânea

e aplicada à luz da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em

vista dos princípios sociais dos contratos - Paulo Nalin

111

O ambiente da nova contratualidade e a tendência da jurisprudência do

STJ em matéria contratual - Rodrigo Toscano de Brito

135

Doutrina estrangeira

L’opaco profilo del risarcimento civilisitico nella complessa disciplina

ambientale - Gerardo Villanacci

160

Jurisprudência Comentada

AGRG NO RESP 827.143/DF: PRECEDENTE OU DECISÃO

JUDICIAL? - Marília Pedroso Xavier e William Soares Pugliese

209

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Pareceres

Contrato de seguro. Suicídio do segurado. Art. 798, código civil.

Interpretação. Diretrizes e princípios do código civil. Proteção ao

consumidor. - Judith Martins-Costa

223

Atualidades

Metodologia do direito civil constitucional: futuros possíveis e

armadilhas - Bruno Lewicki

Resenhas

271

O segundo passo: do consumidor à pessoa humana - Carlos Nelson

Konder

277

Submissão de artigos

Saiba como fazer a submissão do seu artigo para a Revista Brasileira de

Direito Civil - RBDCivil

281

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EDITORIAL

UM NOVO INSTITUTO DE DIREITO CIVIL?

Gustavo Tepedino

O surgimento do Instituto Brasileiro de Direito Civil –IBDCivil coincide com

cenário paradoxal. De um lado, proliferam-se nas últimas décadas organizações não

governamentais, em movimento associativo que, desde o retorno ao regime democrático, parece

se espraiar por todos os domínios, de norte a sul do Brasil. Por outro lado, contudo, talvez como

sequela renitente de nossas raízes históricas, a agenda associativa revela-se, as mais das vezes,

corporativista, expressão ampliada de individualismo coronelista que contraria a função

primordial da organização coletiva da sociedade.

No caso do Direito, em que acentuado individualismo tem sido justificado,

tradicionalmente, pela atividade solitária do profissional ou do estudioso, algumas

importantíssimas associações, como o nosso fraterno IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito

de Família, o Brasilcon – Instituto Brasileiro de Direito e Política do Consumidor, e o Conpedi

- Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito, revelaram-se experiências

estimulantes e vitoriosas, exemplos a serem seguidos. O caminho associativo, contudo,

encontra resistências cuja superação depende de alteração cultural significativa, destinada a

rejeitar modelos organizacionais em que a pauta de reivindicações não é acompanhada de

compromisso para com as próprias instituições e com a sociedade. Há que se cultivar o

voluntariado, o altruísmo e a preocupação a longo prazo com as estruturas institucionais. Nos

últimos anos, usou-se e abusou-se de entidades com propósitos desviantes de suas finalidades

institucionais, banalizando, maculando e por vezes estigmatizando o conceito de organização

social.

Daí a necessidade de se revisitar a prática associativa, tendo-se em mente não

somente os propósitos estatutários imediatos, mas o repensar do papel e do comportamento de

cada associado, com vistas a, extrapolando os confins internos de cada organismo, impregnar

os centros de pesquisa e as Instituições Universitárias, com seu potente efeito multiplicador, em

busca de verdadeira e renovada cultura associativa.

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Nessa esteira, pretende-se com o IBDCivil congregar os estudiosos do direito

civil contemporâneo, promovendo espaço, até então inexistente, de diálogo e construção

coletiva da dogmática e da pesquisa jurídica. Ao lado e além, portanto, de indispensável fórum

de discussão e difusão do conhecimento, papel desempenhado por essa Revista Brasileira de

Direito Civil – RBDCivil, e da rede de professores e profissionais que poderão interagir

positivamente no panorama editorial e acadêmico brasileiros, há em nosso novo IBDCivil o

propósito de semear consciência organizacional ainda não sedimentada na sociedade brasileira.

A vida institucional sólida substitui, assim, o individualismo em todos os níveis, afastando-se

as exageradas pressões corporativas voltadas a privilégios setoriais abençoados pelo Poder

Público.

Na área jurídica, onde a carência de pesquisa coletiva ainda predomina, deve-

se apostar urgentemente na vida institucional e na construção de modelos de convivência social

participativos, democráticos e igualitários. No âmbito do direito civil, especialmente, pela

amplitude de seu campo de conhecimento, o impacto dessa mudança de paradigma há de

repercutir de maneira decisiva nas profissões jurídicas, contribuindo para aproximar as

construções teóricas da práxis judiciária e do direito vivo.

Alexis de Tocqueville, em seu clássico De la démocratie en Amérique, escrito

em 1835, assinalou que o sucesso da democracia americana decorreria, mais do que da

organização do próprio Estado, da habilidade, herdada dos ingleses, da arte de se associar. Esse

predicado talvez seja a carência lancinante de nossa sociedade, e seu desenvolvimento se mostra

impostergável para a construção de instituições democráticas. Trata-se de consolidar a

percepção de que o fortalecimento institucional é indispensável ao crescimento civilizatório,

permitindo o aperfeiçoamento da democracia, da solidariedade social e da igualdade de

oportunidades no exercício das liberdades fundamentais.

G.T.

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SEÇÃO DE DOUTRINA: Doutrina Nacional

ESBOÇO DE UMA CLASSIFICAÇÃO FUNCIONAL DOS ATOS JURÍDICOS*

Outline of a Functional Classification of Legal Acts

Gustavo Tepedino Professor Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Resumo: A alteração da noção de autonomia repercute profundamente na teoria da

interpretação. Na medida em que o espectro e os limites (das categorias e institutos jurídicos, e

especialmente) da autonomia atribuída aos particulares não são mais uniformes e abstratos

(vontade individual submetida unicamente ao limite negativo da ilicitude), mas dependem dos

valores que lhes servem de fundamento (para promoção de interesses socialmente relevantes),

verifica-se a funcionalização dos institutos de direito civil. Nessa direção, propõem-se a

classificação dos atos e negócios jurídicos a partir de sua análise funcional, tendo-se me conta

a atividade concretamente desenvolvida e os limites positivos impostos pelos valores e

princípios constitucionais (legalidade constitucional).

Palavras-chave: 1. Autonomia privada; 2. Ato jurídico; 3. Negócio jurídico; 4. Atividade

contratual sem negócio.

Abstract: The mutation of the notion of private autonomy has deep repercussions in the theory

of interpretation. As the range and the limits (of juridical categories and institutions, and

specially) of private autonomy attributed to individuals are no longer uniform and abstract

(individual will submitted solely to the negative limit of the illicit), but also depend on the

values that serve as their foundation (for the promotion of socially relevant interests), one can

verify the functionalization of private law institutions. Thus, this article proposes the

classification of juridical acts based on their functional analysis, taking into account the activity

that has been concretely developed and the positive limits imposed by constitutional values and

principles (constitutional legality).

Keywords: 1. Private autonomy; 2. Juridical act; 3. Juridical transaction; 4. Contractual

activity without juridical act.

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Sumário: 1. Autonomia privada e perspectiva funcional da atividade jurídica (fatos, atos e

negócios) – 2. Fato social e fato jurídico: superação da distinção – 3. Classificação dos fatos

jurídicos: fato, ato e negócio jurídico – os chamados atos-fatos – 4. A noção de negócio jurídico

– 5. Ato jurídico stricto sensu, ato-fato e negócio jurídico em uma perspectiva funcional – 6.

Negócio jurídico no Código Civil e seus três planos de análise: elementos, requisitos, fatores

de eficácia – 7. Classificação dos negócios jurídicos – 8. Atividade contratual sem negócio

jurídico.

1. Autonomia privada e perspectiva funcional da atividade jurídica (fatos, atos e negócios)

As liberdades fundamentais, asseguradas pela ordem constitucional,

permitem a livre atuação das pessoas na sociedade. Expressão de tais liberdades no âmbito das

relações privadas é a autonomia privada, como poder de auto-regulamentação e de auto-gestão

conferido aos particulares em suas atividades. Tal poder constitui-se em princípio fundamental

do direito civil, com particular inserção tanto no plano das relações patrimoniais, na teoria

contratual, por legitimar a regulamentação da iniciativa econômica pelos próprios interessados,

quanto no campo das relações existenciais, por coroar a livre afirmação dos valores da

personalidade inerentes à pessoa humana.

O principio da autonomia privada, entretanto, não é absoluto, inserindo-se

no tecido axiológico do ordenamento, no âmbito do qual se pode extrair seu verdadeiro

significado.1 Encontra-se informado pelo valor social da livre iniciativa, que se constitui em

fundamento da República (art. 1º, IV, C.R.),2 corroborado por numerosas garantias

fundamentais às liberdades, que têm sede constitucional em diversos preceitos, com conteúdo

negativo e positivo. Assume conteúdo negativo no princípio da legalidade, que reserva ao

legislador o poder de restrição a liberdades, tornando lícito tudo o que não for legalmente

proibido. Assim o art. 5º, II, da Constituição da República, em cuja linguagem se lê: “ninguém

será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

1 Conforme leciona JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, não há antecedência cronológica da relação social em

face da relação jurídica; ao revés, “o Direito é em si forma da vida social. Ele vive nas relações sociais, que muitas

vezes seriam inteiramente impensáveis sem a norma que as unifica (...). A concretização da norma cria sempre

realidade social valorada” (Direito Civil – Teoria Geral. Volume III. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 42). A

liberdade e, especificamente, a autonomia privada, assim, não correspondem a noções anteriores ao Direito, mas

são construídas juridicamente, no âmbito da axiologia do ordenamento.

2 Destaca a proteção constitucional da livre iniciativa como princípio informador da autonomia privada,

FRANCISCO AMARAL, Direito Civil: Introdução, Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 359: “A liberdade de iniciativa

econômica é a fonte legitimadora da autonomia privada no campo constitucional, como princípio básico da ordem

econômica e social. São conceitos correlatos, mas não coincidentes, na medida em que a primeira focaliza o

aspecto econômico, e a segunda, o jurídico, do mesmo fenômeno, havendo, entre eles, uma relação instrumental”.

No mesmo sentido, ORLANDO GOMES, Introdução ao Direito Civil, Rio de Janeiro, Forense, 2007, p. 240.

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Na mesma direção, dotado de conteúdo meramente negativo, situa-se o art.

170, parágrafo único, do Texto Maior, o qual, ao fixar os princípios gerais da atividade

econômica, dispõe: “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica,

independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.

Tal conteúdo não esgota o sentido constitucional do princípio da autonomia

privada, que corporifica as liberdades nas relações jurídicas de direito privado. Segundo o Texto

Constitucional, a liberdade de agir, objeto das garantias fundamentais insculpidas no art. 5º,

associa-se intimamente aos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1, III), fundamento

da República, da solidariedade social (art. 3º, I) e da igualdade substancial (art. 3º, III), objetivos

fundamentais da República. Significa dizer que a livre iniciativa, além dos limites fixados por

lei, para reprimir atuação ilícita, deve perseguir a justiça social, com a diminuição das

desigualdades sociais e regionais e com a promoção da dignidade humana.3 A autonomia

privada adquire assim conteúdo positivo, impondo deveres à autoregulamentação dos interesses

individuais, de tal modo a vincular, já em sua definição conceitual, liberdade à

responsabilidade.4

Essa perspectiva caracteriza o princípio da autonomia privada no direito

contemporâneo, desde a promulgação, em diversos países da Europa Continental, ao longo do

Século XX, de Constituições intervencionistas, como o Texto Constitucional brasileiro de 1988,

que estabeleceram metas a serem alcançadas pelos particulares ao lado da liberdade de contratar

e circular riquezas. Anteriormente, por conta de conhecido processo histórico que serve de

moldura para as construções dogmáticas dos Séculos XVIII e XIX, o poder dos particulares de

gerir seus interesses era designado como autonomia da vontade, a enfatizar, já em sua definição,

o viés voluntarista mediante a qual se pretendia afastar a ingerência dos Estados nos espaços

jurídicos privados.5 Essa concepção, embora ainda presente na manualística, não se mostra

3 Na lição de PIETRO PERLINGIERI, “A Constituição operou uma reviravolta qualitativa e quantitativa na

ordem normativa. Os chamados limites à autonomia, postos à tutela dos contratantes vulneráveis, não são mais

externos e excepcionais, mas, sim, internos, enquanto expressão direta do ato e do seu significado constitucional”

(O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 358).

4 Nesta direção, leciona FEDERICO CASTRO Y BRAVO, El Negocio Juridico, Instituto Nacional de Estudios

Politicos, Madrid, 1967, p. 29, segundo o qual, na dinâmica dos negócios jurídicos, a definição de finalidades a

serem alcançadas pelos particulares “no sopone disminuir el alcance de la autonomía de la volontad, sino pó el

contrario tenerla em cuenta em su doble aspecto de libertad y de responsabilitad”.

5 Assim define a autonomia da vontade FRANCISCO AMARAL, diferenciando-a da autonomia privada:

“Autonomia da vontade como manifestação de liberdade individual no campo do direito, e autonomia privada,

como poder de criar, nos limites da lei, normas jurídicas, vale dizer, o poder de alguém dar a si próprio um

ordenamento jurídico e, objetivamente, o caráter próprio desse ordenamento, constituído pelo agente, diversa mas

complementarmente ao ordenamento estatal” (Direito Civil: Introdução, cit., p. 347).

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consentânea com o sistema civil-constitucional. A ordem pública constitucional valoriza a

liberdade na solidariedade, impondo que a autonomia privada seja vista como poder de

regulamentação não necessariamente vinculada à vontade subjetiva, já que o interesse público

sobrepõe ao poder de agir dos particulares a tutela de valores socialmente relevantes. Alude-se,

nesta direção, à autonomia negocial, como noção substitutiva do conceito de autonomia

privada, por melhor traduzir o poder conferido aos particulares para deflagrarem negócios, não

necessariamente definindo os próprios regulamentos de interesse, dependendo dos interesses

em jogo.6 A autonomia privada, assim analisada, embora assegurada constitucionalmente, se

reduz, em algumas hipóteses normativas, à mera liberdade de iniciativa.

Nessa vertente, de acordo com o setor da economia, há maior ou menor

compressão do espaço de autonomia em favor de fontes heterônomas de integração dos modelos

de regulamentação do direito civil.7 Basta pensar nos contratos de locação residencial ou nas

relações de consumo para verificar que a debacle do império da vontade, ostensivamente

conduzida pelo legislador, permite compatibilizar interesses patrimoniais com valores

existenciais em potencial colisão. A autonomia privada convive, assim, com a intervenção

legislativa destinada a promover o direito à moradia, a solidariedade, a dignidade da pessoa

humana e a igualdade substancial, reduzindo-se situações de vulnerabilidade.

A alteração da noção de autonomia repercute profundamente na teoria da

interpretação. Tradicionalmente, a dogmática se restringia ao aspecto estrutural das categorias

jurídicas, ou seja, seus elementos constitutivos e os poderes atribuídos aos titulares. Na medida

em que o espectro e os limites (das categorias e institutos jurídicos, e especialmente) da

autonomia atribuída aos particulares não são mais uniformes e abstratos (vontade individual

submetida unicamente ao limite negativo da ilicitude), mas dependem dos valores que lhes

servem de fundamento (para promoção de interesses socialmente relevantes), alude-se à

funcionalização dos institutos de direito civil. Assim, as relações jurídicas estruturadas para a

proteção de interesses patrimoniais e individuais tornam-se vetores de interesses existenciais.

6 O conceito de autonomia negocial é desenvolvido por PIETRO PERLINGIERI, O Direito Civil na Legalidade

Constitucional, cit., p. 338.

7 Sobre a referida intervenção heterônoma nos contratos, afirma STEFANO RODOTÀ que o contrato, embora

decorrente da vontade das partes, uma vez formado, sujeita-se à intervenção de fontes exteriores, alheias à vontade

individual: “è evidente, allora, che le diverse fonti si ispirano ciascuna a peculiari valutazioni: ma qui interessa

rilevare soltanto che tutte convergono nella finalità comune della costruzione del regolamento contrattuale;

rispetto a quest’ultimo la particolare ratio delle singole fonti non viene in questione, riguardando esclusivamente

il modo in cui ciascuna di esse, in sé considerata, opera” (Le fonti di integrazione del contrato, Milano, Giuffrè,

2004, p. 87).

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Em última análise, o espaço de autonomia privada (a estrutura dos poderes conferidos para

exercício de direitos dela decorrentes) é determinado pela função que desempenha na relação

jurídica.8

Tal reflexão interfere diretamente na teoria dos atos e negócios jurídicos, no

sentido de superar a abordagem meramente estática de seus elementos estruturais – forma e

conteúdo –, para se alcançar a função – o porquê e para quê –, em modo a se identificar a

legitimidade objetiva da alteração propiciada pela autonomia privada nas relações jurídicas pré-

existentes.9

2. Fato social e fato jurídico: superação da distinção

Se a atuação do direito depende visceralmente dos fatos, em recíproco

condicionamento, a conceituação analítica das diversas espécies de fatos (jurídicos) mostra-se

indispensável para a definição da disciplina normativa correspondente. Fato social é o

acontecimento que, submetido à incidência do direito, torna-se, tecnicamente, fato jurídico.

Afirma-se, por isso mesmo, que um fato qualquer – pré-jurídico –, a partir do momento em que

deixa de ser indiferente ao direito, adquire aptidão para gerar efeitos jurídicos. Em

consequência, segundo lição clássica, fatos jurídicos são os eventos mediante o quais as

relações jurídicas nascem, se modificam e se extinguem.10 Ou, em refinada síntese, “os fatos

aos quais o direito atribui relevância jurídica no sentido de alterar as situações a eles pré-

existentes, e de configurar situações novas, às quais correspondem novas qualificações

jurídicas”.11

8 A respeito do conceito de função, cf. NORBERTO BOBBIO, Em direção a uma teoria funcionalista do direito.

Da estrutura à função. São Paulo, Manole, 2007, p. 53.

9 Sobre o ponto, magistralmente, EMILIO BETTI, Teoria generale del negozio giuridico, Torino, UTET,

1952, 2a ed., p. 170 e ss.

10 Assim o afirma, citando SAVIGNY, CLOVIS BEVILAQUA. Teoria geral do direito civil. Rio de Janeiro,

Francisco Alves, 1976, p. 210. No mesmo sentido: ROBERTO DE RUGGIERO, Instituições de direito civil, vol. 1,

Campinas, Bookseller, 2005, p. 310; MIGUEL REALE, Lições preliminares de direito, São Paulo, Saraiva, 2012, p.

203. Do mesmo modo, afirma FRANCISCO AMARAL, Direito Civil: Introdução, cit., p. 379. Conforme lembra,

oportunamente, ALBERTO TRABUCCHI: “Alcune volte l’intento negoziale non è quello di produrre nuove

consequenze giuridiche, ma di confermare una situazione esistente eliminando dubbi sulla sua consistenza

concreta. Si parla in tal caso di negozio di accertamento, nel quale c’è una volontà dichiarata, ma gli effetti giuridici

no saranno nuovi effetti voluti, bensí quelli della situazione accertata” (Istituzioni di diritto civile, Padova,

CEDAM, 1993, p. 124).

11 EMILIO BETTI, Teoria generale del negozio giuridico, cit., p. 3. No original, o texto em sua integralidade:

“Fatto giuridico sono pertanto i fatti ai quali il diritto attribuisce rilevanza giuridica nel senso di mutare le situazioni

ad essi preesistenti e di configurare situazioni nuove, cui corrispondono nuove qualificazioni giuridiche. Lo

schema logico del fatto giuridico, ridotto alla espressione più semplice, si ottiene prospettandolo come un fatto

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A construção, contudo, deve ser analisada com reservas, por duas razões

fundamentais. Em primeiro lugar, se é verdade que o dado social – como elemento da realidade

fática – não se confunde com o dado normativo – a norma jurídica –, parece arbitrário considerar

alguns fatos simplesmente alheios ao direito, ou despidos de relevância ou pressupostos de

eficácia, já que a experiência normativa alcança integralmente a vida social, mesmo os espaços

de liberdade que o direito, valorando-os, preserva deliberadamente contra qualquer tipo de

regulamentação. Diante de tal circunstância, afirma-se que todo fato social interessa ao direito,

já que potencialmente interfere na convivência social e, portanto, ingressa no espectro de

incidência do ordenamento jurídico.12 Na doutrina brasileira, argutamente assinalou-se: “não

há fato indiferente ao Direito, pois é o próprio Direito, através da norma positiva que, não

regulando uma conduta ou uma circunstância, chancela tal conduta ou tal circunstância de

irrelevante ou sem juridicidade”.13

Em segundo lugar, qualquer fato social é percebido de acordo com a

compreensão cultural da sociedade em determinado momento histórico, e assim também é

valorado pelo direito. Imagine-se o interesse pelo meio ambiente equilibrado; as interferências

consideradas normais de vizinhança; ou a crescente exposição da imagem das pessoas (como

comparar a repercussão de alguém na praia, há 50 anos, em sucintos trajes de banho e nos dias

de hoje).14 O direito traduz a realidade fática, a qual, em contrapartida, reflete a valoração da

dotato di certi requisiti presupposti dalla norma, i il quale incide in una situazione preesistente (iniziale) e la

trasforma in una situazione nuova (finale), per modo da costituire, da modificare o da estinguere poteri e vincoli o

qualifiche e posizioni giuridiche”.

12 Afirma PIETRO PERLINGIERI: “‘Fato’ não é um termo com um único significado: o ‘fato’ objeto de exame

de uma ciência natural não é o ‘fato’ objeto de uma ciência prática (como o direito), para a qual o fato é todo

evento que invoque a ideia de convivência (ou do caráter relacional)” (O direito civil na legalidade constitucional,

Rio de Janeiro, Renovar, 2009, p. 640).

13 LUIZ EDSON FACHIN, Novo Conceito de Ato e Negócio Jurídico: consequências práticas, Curitiba,

PUC/PR, 1988, p. 1. Com efeito, a afirmativa de que toda liberdade humana é juridicamente relevante (porque

garantida pelo Direito) não implica a negação de que existam liberdades não regulamentadas por lei, como registra

STEFANO RODOTÀ: “Ora ci troviamo di fronte a situazioni in cui l’indicare il fatto e dire il diritto appartengono

alla stessa persona, nel senso almeno che esiste un potere di scelta tra risposte giuridiche diversificate o, più

radicalmente, di entrata in uno spazio vuoto di diritto. Si può, dunque, uscire dal diritto e rientrare nella vita” (La

vita e le regole: tra diritto e non diritto. Milano: Feltrinelli, 2006, p. 62). Para uma perspectiva civil-constitucional

da questão, v. também SAMIR NAMUR, A inexistência de espaços de não direito e o princípio da liberdade, Revista

Trimestral de Direito Civil, Vol. 42, abr.-jun./2010; PAULA GRECO BANDEIRA, Espaços de não direito e as

liberdades privadas, Revista Trimestral de Direito Civil, Volume 52, out.-dez./2012.

14 O exemplo é configurado por Eros Grau, Técnica Legislativa e Hermenêutica Contemporânea, in

Gustavo Tepedino (org.), Direito Civil Contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional, São

Paulo, Atlas, 2008, p. 286.

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ordem jurídica (como apreendida pelo grupo social).15 Há, portanto, íntima comunicação entre

fato e norma, de tal modo que não se pode conceber um desses elementos sem o outro. Supera-

se, desse modo, a distinção entre fato social e fato jurídico. Todo fato social – porque

potencialmente relevante para o direito, e porque moldado pela valoração (social decorrente)

do elemento normativo (o qual, ao mesmo tempo, é construído na historicidade evolutiva da

sociedade), é fato jurídico.

Compreende-se, assim, o vetusto brocardo latino ex facto oritur ius. Do fato

provém o direito. Vale dizer, sem se confundirem norma e fato, estes reciprocamente se

condicionam.16 A hipótese fática de incidência da norma (suporte fático, que equivaleria à

expressão italiana fattispecie ou à alemã Tatbestand) identifica-se com a descrição normativa,

ou seja, é construída pela valoração que lhe atribui o direito. Tenha-se como exemplo um

contrato de locação. As regras sobre ele incidentes dependerão das circunstâncias fáticas – valor

do aluguel, estado do imóvel, pontualidade no cumprimento das obrigações –, todas elas

capazes de produzir efeitos modificativos da relação jurídica, gerando novos fatos jurídicos,

que alteram o direito pré-existente e se amoldam, contemporaneamente, à previsão normativa

pré-existente. Por isso mesmo, considera-se “um equívoco conceber a fattispecie como

qualquer coisa de puro fato, despida de qualificações jurídicas, ou como qualquer coisa

materialmente separada ou cronologicamente destacada da nova situação jurídica

correspondente. Em realidade, esta não é senão um desenvolvimento daquela, uma situação

nova na qual se converte a situação preexistente com a superveniência do fato jurídico”.17

15

A conclusão de LUIZ EDSON FACHIN, ob. loc cit., é irrecusável: “ingressam no campo jurídico os fatos

valorados pela norma. Tais são os fatos jurídicos, que assim se constituem sem deixar o campo fático, uma vez

que este e aquele (o normativo) se interpenetram. Esse agasalho da norma é a guardiã ao suporte fático, sem

suprimi-lo. Exsurge, aí, a juridicidade que é por conseguinte um componente do binômio fato-norma”.

16 EMILIO BETTI, Teoria generale del negozio giuridico, cit., p. 5, sobre a máxima romana esclarece: “si

vuol dire con essa che la legge di per sé sola non dà mais vita a nuove situazioni giuridiche se non si avverano

taluni fatti da essa previsti: non già che il fatto si trasformi in diritto, bensì una situazione giuridiche nuova”. Em

direção análoga, MIGUEL REALE, Lições preliminares de direito, cit., p. 200: “Devemos entender, pois, que o

Direito se origina do fato, porque, sem que haja um acontecimento ou evento, não há base para que se estabeleça

um vínculo de significação jurídica. Isto, porém, não implica a redução do Direito ao fato, tampouco em pensar

que o fato seja mero fato bruto, pois os fatos, dos quais se origina o Direito, são fatos humanos ou fatos naturais

objeto de valorações humanas”.

17 EMILIO BETTI, ob. loc. cit. No original, escrito em 1950: “Appare già dalla proposta definizione del fatto

giuridico che sarebbe un errore concepire la fattispecie come qualcosa di puro fatto, scevra di qualificazioni

giuridiche, o come qualcosa di materialmente separato o di cronologicamente staccato dalla nuova situazione

giuridica che vi corrisponde. In verità questa non è che uno svolgimento di quella, una situazione nuova in c si

converte la situazione preesistente col sopravvenire del fatto giuridico”.

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Em definitivo e afinal, como registrado em (esquecida) lição introdutória de

insuperável eloquência, “o encontro do Direito com os fatos verifica-se, portanto, não no

momento em que estes ocorrem, senão já antes, quando aquele lhes infunde potencialidade

jusgenética. Logo, o fato e o fato jurídico não são categorias ontológicas distintas, mas atitudes

axiologicamente diversas diante da mesma fenomenidade”.18

3. Classificação dos fatos jurídicos: fato, ato e negócio jurídico – os chamados atos-fatos

Afirma-se que os fatos (jurídicos) podem provir espontaneamente da natureza

(fatos naturais) ou da atuação humana (fatos humanos). Os primeiros são também chamados de

fatos jurídicos stricto sensu. Distinguem-se os fatos naturais em ordinários (o nascimento, a

morte, o curso dos rios) e extraordinários (fortuitos, imprevisíveis ou inevitáveis). Já os fatos

humanos, atribuíveis ao homem, traduzem-se em fatos lícitos (valorados positivamente pela

ordem jurídica) e fatos ilícitos lato sensu (reprovados pelo direito), que, a seu turno, se

distinguem em atos ilícitos (stricto sensu), dos quais decorrem o dever de reparar, e atos

antijurídicos, contrários ao direito e com eficácia distinta da reparação.19

Os fatos lícitos, ou seja, atribuídos à atividade humana e não reprovados pelo

direito, compreendem os negócios jurídicos, os atos jurídicos stricto sensu, também designados

atos lícitos de conduta, e os chamados atos-fatos, reconhecidos por parte da doutrina.20

Em imagem gráfica pode-se melhor perceber a classificação:

18

JOÃO BAPTISTA VILLELA, Do Fato ao Negócio: em busca da precisão conceitual, in Estudos em

Homenagem ao Professor Washington de Barros Monteiro, São Paulo, Saraiva, 1982, p. 256. O autor aduz: “a

juridicidade não é um atributo intrínseco à materialidade dos fatos, mas uma propriedade que o Direito lhes

acrescenta, com base em puras razões de conveniência ou oportunidade. Logo é equivocado pretender-se fundar

uma tipologia dos fatos jurídicos a partir de uma angulação estática. Não há fatos jurídicos a priori. É no

dinamismo da sua apropriação axiológica que os fatos adquirem ou não o atributo, eminentemente extrínseco, de

serem jurídicos”.

19 A classificação é adotada por ROSE VENCELAU MEIRELES. O negócio jurídico e suas modalidades, in

Gustavo Tepedino (coord.), A Parte Geral do Novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional, Rio

de Janeiro: Renovar, 2003, p. 183: “Os atos antijurídicos se distinguem dos atos ilícitos (art. 186), sendo atos que,

por estarem em desconformidade com a ordem jurídico, não são merecedores de tutela”.

20 Adotam, igualmente, a designação “ato jurídico stricto sensu”, dentre outros, CAIO MÁRIO DA SILVA

PEREIRA, Instituições de Direito Civil: Volume I, Rio de Janeiro, Forense, 2011, p. 397 e MIGUEL REALE, Lições

Preliminares de Direito, cit., p. 209. Designando o ato jurídico stricto sensu como ato lícito de conduta, SAN

TIAGO DANTAS, Programa de Direito Civil: Teoria Geral, Rio de Janeiro, Forense, 2001, p. 211. No que tange à

classe dos atos-fatos jurídicos, seu maior defensor na doutrina brasileira é, provavelmente, Pontes de Miranda, que

assim os define: “Os atos-fatos são fatos humanos, em que não houve vontade, ou dos quais se não leva em conta

o conteúdo de vontade, aptos, ou não, a serem suportes fáticos de regras jurídicas” (Tratado de Direito Privado,

Parte Geral, Tomo I: Pessoas Físicas e Jurídicas, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012, p. 158).

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Fatos naturais

(fatos jurídicos

stricto sensu)

Fatos

jurídicos i) Ato ilícito

lato sensu Fatos ilícitos

Fatos humanos ii) Ato antijurídico

(atos jurídicos

lato sensu) i) Negócio jurídico

Fatos lícitos ii) Ato-fato jurídico

iii) Ato jurídico stricto sensu

Muito se disputa acerca da terminologia empregada, especialmente no que

concerne à inclusão dos atos ilícitos no âmbito dos atos jurídicos. Como bem destacado em

doutrina, embora terminologicamente fosse preferível afastar a ilicitude da qualidade jurídica,

consolidou-se, na linguagem corrente, a qualificação de jurídico não como atributo de

legitimidade, senão como gênero, a traduzir simplesmente a eficácia jurígena

independentemente de valoração positiva ou negativa: “quando se fala em ato jurídico, o que

se tem em vista é a relevância do acontecimento para o Direito, não a sua conformidade ao

Direito”.21

4. A noção de negócio jurídico

A categoria dos atos jurídicos associa-se ao agir humano e suas consequências

– e divergências – decorrem do papel atribuído, nessa atuação, à vontade humana, em maior ou

menor grau, daí decorrendo consequências diversas.

Chama-se negócio jurídico o regulamento de interesses estipulado pela

autonomia privada, ou autoregulamento ou ato jurídico apto a regular interesses. Constitui-se

21

JOÃO BAPTISTA VILLELA, Do Fato ao Negócio: em busca da precisão conceitual, cit., p. 259, o qual

anota: “Entre nós é da tradição subentender em ato jurídico a conformidade com o Direito (...) A bem da

estabilidade terminológica conviria, pois, não insistir no outro uso, cuja correção, entretanto, não pode ser

contestada. Ocorre que a língua não é apenas um fato da razão, mas também um fato socialmente estabelecido”.

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no principal instrumento engendrado pelo direito civil para o exercício da autonomia privada.

Formulação teórica do final do Século XVIII, a noção de negócio traduz o esplendor do

voluntarismo, procurando assegurar o mais amplo espaço para a autonomia privada regular seus

interesses.22 Daí sua definição tradicionalmente estabelecida como “manifestação de vontade,

dirigida a um escopo prático que consiste na constituição, modificação ou extinção de uma

situação juridicamente relevante”.23

Por ter sido concebido como instrumento de consagração da vontade

individual, a noção de negócio jurídico avoca acirradas disputas ideológicas a partir do final do

Século XIX e por todo o Século XX, ao longo das diversas fases e graus de intervenção do

Estado na economia de países de tradição romano-germânica. Os reflexos dessa controvérsia

ainda se fazem sentir nos dias de hoje, com significativas consequências práticas na aferição do

papel da vontade em tema de invalidade dos negócios.

Em síntese estreita, podem-se dividir as diversas posições doutrinárias em

dois grupos conhecidos como teorias subjetivista e objetivista. Pela primeira, o negócio jurídico

é definido como ato de vontade dirigido à produção de efeitos jurídicos. Concebida pelos

fautores do modelo voluntarista, tal concepção, em suas múltipas vertentes, a partir da

construção de Savigny, encontra-se amplamente divulgada na doutrina brasileira.24 A partir de

tal formulação, cumpre ao intérprete buscar a intenção do agente para aferir a legitimidade do

negócio, já que é o vetor volitivo, isto é, a vontade real, o elemento essencial dessa categoria

jurídica.

Em contrapartida, posicionaram-se os fautores da teoria objetivista, para os

quais a essência do negócio jurídico é a declaração como tal percebida, reconhecida e

considerada legítima pelo ordenamento, independentemente da intenção que possa ter tido o

emissor. O negócio, portanto, embora resulte de manifestação de vontade, desprende-se dela,

produzindo os efeitos autorizados pela ordem jurídica sem que se deva, portanto, por

irrelevante, perquirir a intenção do agente emissor da vontade.

22

Assim destaca FRANCISCO AMARAL, Direito Civil: cit., p. 389: “A categoria do negócio jurídico surge,

assim, como produto de uma filosofia político-jurídica que, a partir de uma teoria do sujeito, com base na liberdade

e igualdade formal, constrói uma figura unitária capaz de englobar, reunir, todos os fenômenos jurídicos

decorrentes das manifestações de vontade dos sujeitos no campo da sua atividade jurídico-patrimonial”.

23 ALBERTO TRABUCCHI, Istituzioni di diritto civile, Padova, CEDAM, 1993, p. 124.

24 V. SAVIGNY, Traité de Droit Romain, Tome 3ème, Paris, Firmin Didot Frères, 1856, p. 3 e ss. Sobre as

diversas correntes, ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Negócio Jurídico: Existência, Validade e Eficácia, São

Paulo, Saraiva, 2002, p. 4 e ss.

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Ambas as posições doutrinárias refletem períodos históricos antagônicos, de

coroamento do voluntarismo (individualismo iluminista que perdura do Século XVIII ao XIX),

e de sua rejeição (perspectiva socializante e intervencionista do final do Século XIX e primeira

metade do Século XX). 25 Levadas aos extremos, tais teorias não logram resolver a preocupação,

de ordem eminentemente prática, de conciliar o respeito ao alvedrio individual com a segurança

atribuída à manifestação de vontade, tal qual declarada.

Nesta linha de preocupação, desenvolveram-se, no âmbito das construções

objetivas, posições menos radicais e mais sofisticadas, admitindo a importância da vontade,

embora considerada como anterior ao negócio, em relação ao qual é a declaração, como

manifestação exterior, e não o ato volitivo em si considerado, elemento essencial. A vontade,

por sua vez, não decorre do simples querer individual, senão da autonomia privada como poder

autorizado e temperado, por balizas valorativas, pelo ordenamento jurídico.26 O principal

artífice de tais posições é Emilio Betti, formulador da teoria preceptiva. Segundo tal orientação,

o reconhecimento social da vontade tem por referência não elementos subjetivos internos ao

agente, senão a declaração, na forma como exteriorizada, que se constitui, assim, em preceito

vinculativo.

A vinculação do sujeito emissor da vontade à declaração é corroborada por

ulteriores elaborações doutrinárias, em especial as teorias da autoresponsabilidade e da

confiança. Pela primeira, embora o elemento subjetivo seja o vetor do ato de vontade, a

vinculação à declaração decorre da responsabilidade pessoal do seu emissor pela respectiva

exteriorização. Pela teoria da confiança, o preceito emanado pelo negócio, em virtude da

declaração, vincula o seu emissor em virtude da expectativa despertada no corpo social quanto

à correpondência entre a manifestação de vontade e a intenção do agente. Cabe ao direito,

portanto, prestigiar quem confiou na higidez da declaração volitiva.

A teoria da confiança ganha destaque no direito positivo pátrio, com intensa

repercussão em diversos dispositivos, pelos quais se considera o emissor responsável por suas

declarações, na forma como exteriorizadas, mesmo em situações de invalidade de negócios, em

25

Abordando essa passagem do Estado liberal do Século XIX para o Estado intervencionista, v. FRANCISCO

AMARAL, Direito Civil: Introdução, cit., p. 363.

26 Tratando da limitação da autonomia privada pelas balizas do ordenamento jurídico, expõe ORLANDO

GOMES, Introdução ao Direito Civil,cit., p. 242: “Mas esse vínculo, essa autolimitação, decorre, precisamente, do

ordenamento jurídico que lhe reconhece o poder de regular, pela forma permitida, seus interesses”.

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face de terceiros de boa-fé, ou seja, que desconheciam a causa da invalidade e que, por isso

mesmo, confiaram e agiram em conformidade com a expectativa gerada pela declaração.27

Com a redução do papel da vontade no direito contemporâneo (paralela ao

crescimento do papel do Estado na relações econômicas) e a consequente remodelação do

conceito de autonomia privada (como poder atribuído aos particulares associados a deveres

negativos e positivos), funcionalizada a valores constitucionalmente tutelados, mostra-se mais

consentânea com o sistema a definição de negócio jurídico como regulamento de interesses que

agrega fontes heterônomas ao autoregulamento.

Com efeito, pareceria ingênuo reduzir o autoregulamento preceptivo, em que

se constitui o negócio, em ato de vontade, pressuposto nem sempre íntegro da declaração. Como

melhor se verá adiante, a vontade, em si mesma considerada, não é elemento do negócio

jurídico, senão a declaração de vontade, conforme é manifestada e percebida no mundo social.28

5. Ato jurídico stricto sensu, ato-fato e negócio jurídico em uma perspectiva funcional

Ao lado dos negócios jurídicos, situam-se os atos jurídicos stricto sensu,

assim considerados os atos jurídicos que não se destinam a regulamentar, autonomamente,

interesses privados. Limitam-se a executar preceitos previamente estabelecidos por lei ou por

negócio jurídico antecedente, reduzindo-se, portanto, em sua ontologia, o espaço de atuação (e

de controle) da autonomia privada.

Afirma-se, por isso mesmo, que nos atos jurídicos stricto sensu ou atos lícitos

de conduta, a vontade tem papel menos relevante, já que se limita a dar eficácia a interesses

jurídicos previamente regulados por lei ou por negócio jurídico anterior. O agente, ao praticá-

los, submete-se às consequências jurídicas que lhes estão previamente reservadas.29

27

Percebe-se, assim, como a noção subjetiva de boa-fé pode influenciar a figura da boa-fé objetiva, embora

se trate de noções diferentes, conforme explica JUDITH MARTINS-COSTA: “a boa-fé subjetiva tem o sentido de uma

condição psicológica que normalmente se concretiza no convencimento do próprio direito, ou na ignorância de se

estar lesando direito alheio, ou na adstrição ‘egoísta’ à literalidade do pactuado. Diversamente, ao conceito de boa-

fé objetiva estão subjacentes as ideias e ideais que animaram a boa-fé germânica: a boa-fé como regra de conduta

fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração para com os interesses do alter,

visto como um membro do conjunto social que é juridicamente tutelado” (A boa-fé no direito privado, São Paulo:

RT. 1999, p. 412).

28 Nesse sentido, ensina ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Negócio Jurídico, cit., p. 82: “A nosso ver, a

vontade não é elemento do negócio jurídico; o negócio é somente a declaração de vontade. Cronologicamente, ele

surge, nasce, por ocasião da declaração; sua existência começa nesse momento; todo o processo volitivo anterior

não faz parte dele; o negócio todo consiste na declaração”.

29 ANTONIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, na esteira da teoria preceptiva, define o negócio como “um ato

cercado de circunstâncias que fazem com que socialmente ele seja visto como destinado a produzir efeitos

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Como acima destacado, a aptidão a regular interesses confere ao negócio

jurídico atributo objetivo de produção de efeitos, independentemente da intencionalidade

subjetiva, voltando-se o ordenamento para o controle da higidez da declaração da vontade. Já

os atos lícitos de conduta, posto decorrentes da atividade humana, não contêm germe criador

de preceitos, já que a atuação se dá aqui em conformidade com disposição normativa

antecedente.

Em face de tal distinção, afirma-se que, se os efeitos produzidos decorrem do

regulamento definido pelo próprio ato, tem-se negócio jurídico, como na celebração de um

contrato de compra e venda. Se, ao reverso, a eficácia (finalidade) independe do ato do agente,

ainda que a escolha do meio empregado lhe seja assegurada, está-se diante de ato lícito em

sentido estrito, para qual se exige tão somente consciência de sua prática,30 não sendo decisivo

o papel da vontade31 – é o que ocorre, por exemplo, na fixação de domicílio ou no

reconhecimento de paternidade, cujo exercício deflagra consequências atribuídas por lei, e no

pagamento ou na quitação, que importam a incidência das regras fixadas por negócio jurídico

antecedente.

O Código Civil, no art. 185, prevê a figura dos atos jurídicos lícitos, distintos

do negócio jurídico, determinando-lhes a incidência, no que couber, das normas atinentes aos

atos negociais.32 Procurou o legislador, desta forma, abranger as duas espécies de atos

atribuíveis à vontade humana, sem regular, por considerar provavelmente desnecessário, a

terceira categoria de atos, designados como atos-fatos. Adotados de maneira bissexta pela

doutrina brasileira, são imputáveis ao agir humano embora desprovidos de elemento volitivo,

jurídicos”. Segundo o mesmo autor, “a correspondência, entre os efeitos atribuídos pelo direito (efeitos jurídicos)

e os efeitos manifestados como queridos (efeitos manifestados), existe, porque a regra jurídica de atribuição

procura seguir a visão social e liga efeitos ao negócio em virtude da existência de manifestação de vontade sobre

eles” (Negócio Jurídico: existência, validade e eficácia, cit., p. 19).

30 JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, O Negócio Jurídico no Anteprojeto de Código Civil Brasileiro, Arquivos

do Ministério da Justiça, Rio de Janeiro, vol. 13, p. 3, set. 1974. V., também, em perspectiva crítica, JOÃO

BAPTISTA VILLELA, Do Fato ao Negócio, cit., p. 263, que procura distinguir as noções de negócio e de ato jurídico

stricto sensu com base na “qualidade” da vontade emitida. No primeiro caso, ter-se-ia liberdade criadora de

regulamento. No segundo, comportamento adstrito a regulamento imposto ao agente.

31 Segundo PONTES DE MIRANDA, o ato jurídico em sentido estrito pode, residualmente, apresentar algum

elemento volitivo, mas este não constitui requisito seu, nem se volta à produção de seus efeitos jurídicos típicos:

“o conteúdo volitivo, que acaso tenha, não é suporte fático do fato jurídico e, pois, não alcança a eficácia jurídica

como eficácia do que o fato jurídico manteve de tal conteúdo. (...) Quem interpelou não precisa ter querido

determinado efeito, e só obtém os que a lei mesma atribui à interpelação” (Tratado de Direito Privado, Parte Geral,

cit., p. 159).

32 “Art. 185. Aos atos jurídicos lícitos, que não sejam negócios jurídicos, aplicam-se, no que couber, as

disposições do Título anterior”.

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associando-se à atuação subjetiva tão somente por relação de causalidade, despida de qualquer

exigência de intencionalidade ou mesmo consciência de sua prática.33

Os atos-fatos foram concebidos por juristas alemães na primeira metade do

Século passado, adotados por parte da doutrina italiana e desenvolvida no Brasil por Pontes de

Miranda, que os divide em: (i) atos reais; (ii) indenização sem culpa; (iii) caducidades.34

Por meio dos atos-fatos procura-se explicar a produção de efeitos jurídicos

decorrentes de atos humanos, materialmente considerados, independentemente de controle

quanto à formação da vontade que o originou – e por isso chamado de atos-fatos – como ocorre

na responsabilidade por dano causado por incapaz (art. 932, I e II, do Código Civil), em que o

dever de reparar deriva do dano causado por alguém independentemente de ter tido este sequer

consciência de sua prática.

O ordenamento jurídico brasileiro, portanto, admite regime diferenciado para

os atos atribuíveis ao agir humano. Prevê explicitamente a categoria dos atos jurídicos, em

sentido lato, compreendendo os negócios jurídicos e os atos jurídicos stricto sensu. A partir daí,

impõe controle rigoroso ao negócio jurídico, submetendo-o à extensa disciplina do Título I do

Livro III (arts. 104 a 184, do Código Civil), além das regras incidentes em cada espécie

negocial, quando tipificada (pensa-se no contrato de empreitada, que avocará os dispositivos

dos arts. 610 e ss., do Código Civil). Menos rigoroso, por não importar autoregulamento de

interesses, mostra-se o controle dos atos não negociais, já que o art. 185 se limita a autorizar a

33 SANTORO-PASSARELLI, FRANCESCO, Dottrine generali del diritto civile, Napoli, Jovene, 1966, p. 106-

107, leciona: “Sono pertanto da ascrivere alla categoria dei meri fatti giuridici non solo i fatti della natura

extraumani, ma anche quei fatti che sono, ma potrebbero non essere, dell’uomo, oppure che sono, ma potrebbero

non essere, volontari”. Non vale opporre che nei fatti umani il riferimento degli effetti giuridici dipende

dall’individuazione del soggetto agente. Non se ne può dedurre che essi siano da considerare atti in senso stretto,

perché il riferimento soggettivo degli effetti non discende dalla natura di quei fatti, ma dal nesso di causalità fra

gli effetti e il compimento del fatto”.

“Si comprende cosi come rientrino in questa categoria, ad esempio, non solo le accessioni naturali, ma

anche quelle che avvengono per fatto dell’uomo, quali l’inedificazione e la piantagione, altresì la confusione, la

commistione, la specificazione, l ‘invenzione delle cose smarrite e del tesoro, nel limite in cui non rileva per

l’effetto giuridico la volontà dell’agente (articoli 927 ss., 934 ss). Dire che si tratta di fatti in senso stretto significa

dire che non viene in questione rispetto ad essi né la capacità d’agire del soggetto, né l’elemento psichico, volontà

e coscienza, dell’azione”.

34 PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, vol. 2, Rio de Janeiro, Borsoi, 1954, p. 372 e ss. A

conclusão é confirmada por JOSÉ CARLOS MOREIRA ALVES, A Parte Geral do Projeto de Código Civil Brasileiro,

São Paulo, Saraiva, 2003, 2ª ed. atualizada, p. 103, que assim justifica o dispositivo do art. 185 do C.C., inspirado

em disposição semelhante do art. 295º do Código civil português: “ambas as normas esgotam a disciplina das

ações humanas que, por força do direito objetivo, produzem efeitos jurídicos em consideração à vontade do agente,

e não simplesmente pelo fato objetivo dessa atuação”. “Quando ocorre esta última hipótese, já não já que falar em

ato jurídico, mas sim – e é dessa forma que o considera o direito – em fato jurídico em sentido estrito (são os atos-

fatos jurídicos da doutrina germânica)”.

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aplicação, no que couber, dos dispositivos atinentes ao negócio jurídico, cabendo ao intérprete

definir o espectro de abrangência da remissão e o critério de incidência.

Finalmente, no que tange aos atos-fatos, sua disciplina não se encontra

prevista na Parte Geral do Código Civil, que regula difusamente sua incidência nos eventos

humanos específicos dos quais decorrem efeitos jurídicos para cuja produção não se cogita de

qualquer elemento volitivo na conduta do agente.

A classificação, contudo, a despeito de sua importância didática, mostra-se

estabelecida por critérios abstratos e estruturais (maior ou menor vinculação da conduta à

vontade humana, daí decorrendo gradação qualitativa da atuação humana), revelando-se

insuficiente para as finalidade propostas. Por isso, provavelmente, apresenta-se tão

controvertida a matéria, já que não soluciona com nitidez, na dinâmica das relações jurídicas, a

disciplina a ser aplicada.35 Somente a interpretação funcional, ao fotografar o regulamento de

interesses em seu todo, de modo a compreender o ato e suas circunstâncias, inserido na

atividade a ser analisada, permitirá qualificá-lo e estabelecer a disciplina aplicável.

No âmbito dos atos jurídicos não negociais, por exemplo, ex vi do art. 185, a

entrega de coisa determinável em uma compra e venda (art. 487, do Código Civil) invoca a

incidência das normas do negócio jurídico que lhe serve de título, incluindo o controle quanto

à validade do ato de entrega (nulidade ou anulabilidade do pagamento). Não se poderia tolerar

o pagamento praticado sob coação, por exemplo, ou a quebra da boa-fé objetiva no

cumprimento da prestação. Assim também deve-se exigir de quem reconheceu o filho (não

capacidade mas) a plena consciência do ato praticado. Por outro lado, reduzidíssima

importância terá o papel da construção da declaração de vontade na hipótese prescrita pelo art.

1.280 do Código Civil, em que o proprietário ou possuidor exige do vizinho demolição ou

reparação diante de iminente ruína (ato jurídico stricto sensu mandamental, para Pontes de

Miranda).36 Nesse caso, pouco importa a consciência da declaração, fixando o legislador no

fato objetivo suscitado pelo possuidor.

Em posição contraposta, a consciência do comportamento mostra-se

prudentemente exigida para atos materiais classificados como atos-fatos, como na ocupação de

35

Sobre o ponto, observa ORLANDO GOMES, Introdução, cit., p. 289: “Os atos jurídicos ‘stricto sensu’ não

formam, como visto, categoria homogênea. Da dificuldade de sistematizá-los, resulta hesitação quanto à

possibilidade de submetê-los a regras de aplicação geral”.

36 PONTES DE MIRANDA, Tratado de Direito Privado, vol. 2, cit., p. 461 e ss. A classificação é

minuciosamente resumida por MARCOS BERNARDES DE MELLO, Teoria do fato jurídico, São Paulo: Saraiva, 2011,

p. 200-201.

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coisa sem dono (res nullius ou res derelicta), na lavragem de pedaço de madeira alheio por

parte do escultor ou no apossamento pelo exercício possessório. Dispensa-se nestas hipóteses a

capacidade de fato, mas não se poderia deixar de exigir a consciência do próprio

comportamento por parte de quem ocupa, especifica ou adquire a posse.37 Tal discrepância

serve de arrimo para a designação de tais eventos como atos jurídicos stricto sensu e a rejeição

da categoria dos atos-fatos por grande parte dos autores brasileiros.38

Aduza-se, ainda, que a sucessão de atos que compõem a atividade humana

pode ser heterogênea, ou por vezes desprovida de negócio inaugural, devendo ser examinada a

atividade em sua integralidade para a definição da disciplina aplicável. Neste caso, a função

desempenhada pela atividade determinará a disciplina aplicável, o que terá grande serventia nas

chamadas relações contratuais de fato.

Além disso, embora o negócio jurídico ofereça espaço exuberante de atuação

para a autonomia privada, é errôneo concluir que o ato jurídico não negocial deva escapar ao

controle de merecimento de tutela, por ausência de liberdade para autoregulamento do próprio

interesse. Mesmo circunscritos a regras cogentes, esses atos traduzem também atuação humana

e, por isso, submetem-se, por conta do art. 185, ao crivo do direito.39

Imagine-se a fixação do domicílio, considerado ato jurídico stricto sensu. Não

se pode afirmar que haja déficit de liberdade no momento da escolha, que muitas vezes abrange

uma série de decisões pessoais e profissionais, as quais, por outro lado, se tomadas ao longo do

tempo, na sucessão de atos que definem a atividade profissional e pessoal, por vez com

37

Conforme relatado por MOREIRA ALVES, trata-se da “consciência da aquisição da posse, ou seja, o

Besitzbegründungswille ou, mais simplificadamente, Besitzwille”. Explica o autor: “por não precisar essa vontade

de ser determinada, torna-se alguém possuidor daquilo a que se destina a receber sua caixa postal ou sua máquina

automática de venda (não, porém das cartas que não lhe são endereçadas ou das coisas para os quais o receptáculo

não se destina), e, por não ser ela juridicamente qualificada, pode o incapaz adquirir a posse desde que tenha

consciência do que quer, como o que, tendo sido curado de doença mental, ainda não deixou de estar interditado,

ou criança com alguns anos de vida (não, todavia, o recém-nascido, o louco, o que delira)” (O problema da vontade

possessória, in Revista do Tribunal Regional Federal, vol. 8, out-dez/1996, p. 22).

38 Dentre muitos outros, não reconhecem a categoria do ato-fato: CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA,

Instituições de direito civil, vol. I, Rio de Janeiro, GEN, 2009, p. 408; ARNOLDO WALD, Direito Civil: Introdução

e Parte Geral São Paulo: Saraiva, 2009, p. 217; SILVIO RODRIGUES, Direito Civil: Parte Geral, Volume I, São

Paulo, Saraiva, 2006, 158; SAN TIAGO DANTAS, Programa de Direito Civil, cit., p. 211.

39 Esta parece ser a posição de JOÃO BAPTISTA VILLELA, Do Fato ao Negócio, cit., p. 264, para quem “o

negócio se distingue do ato em que aquele é uma ação livre, este uma ação necessária”. O autor exemplifica:

“Pode-se fazer ou não a doação de um bem, ainda ciente do mau uso que terá, emitir ou não disposições

testamentárias, pactuar este ou aquele regime de bens no casamento etc., mas não se pode deixar de restituir a

soma mutuada, de recolher os alugueres convencionados, de despachar um processo ou proferir uma sentença.

Praticadas as ações, já no primeiro grupo de casos, negócios. No segundo, atos. Nos negócios pergunta-se pelo

quod placet. Nos atos, pelo quod oportet”.

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repercussão em toda a família, devem ser examinadas e valoradas em seu todo, e não como

eventos isoladamente considerados.

A percepção do conjunto dessas circunstâncias auxilia a compreensão da

disciplina aplicável aos atos não negociais e aos atos-fatos, e do âmbito de incidência do art.

185 do Código Civil. O dispositivo permite superar a discussão doutrinária, levada a cabo

alhures, acerca da aplicação analógica das normas do negócio jurídico. No caso brasileiro, o

Código Civil autoriza a utilização direta, no que couber, dos dispositivos pertinentes contidos

em todo o Título II. A pertinência de tal utilização dependerá da função concreta que

desempenha a atividade no âmbito da qual se situam os atos considerados.

Por outro lado, o afastamento de qualquer relevância subjetiva para certos

atos humanos, justificando a invocação dos atos-fatos, mostra-se útil, no direito brasileiro, não

por peculiaridade ontológica da noção, importada do direito alienígena, mas tão somente nas

hipóteses em que os efeitos atribuídos pelo legislador pátrio independam do comportamento do

agente, como parece ser exemplo típico a conduta do incapaz que causa dano indenizável (art.

932, II, do Código Civil).

6. Negócio jurídico no Código Civil e seus três planos de análise: elementos de existência,

requisitos de validade, fatores de eficácia

O Código Civil, na esteira das codificações dos países de tradição romano-

germânica, dedica ao negócio jurídico, significativamente, 80 artigos (arts. 104 a 184), que

compõem o Título I do Livro III, do Código Civil. A doutrina separa a análise do negócio

jurídico em três planos, de modo a verificar, em etapas sucessivas, os pressupostos de existência

(plano de existência), os requisitos de validade (plano de validade) e as condições para produção

de efeitos (plano de eficácia).40 Significa dizer que negócio há de ser, antes de mais nada,

existente, ou seja, conter os pressupostos para o seu surgimento do mundo jurídico.41 Em

seguida, uma vez estabelecida a existência jurídica do negócio, examinam-se seus requisitos de

40

A difusão dos três planos de análise do negócio jurídico no Brasil costuma ser atribuída sobretudo à obra

de PONTES DE MIRANDA. A respeito, v. Tratado de direito privado, t. 4. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, pp. 6 e ss.

41 Explica ANTÔNIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO: “Quando acontece, no mundo real, aquilo que estava previsto

na norma, esta cai sobre o fato, qualificando-o como jurídico; tem ele, então, existência jurídica” (Negócio jurídico:

existência, validade e eficácia, São Paulo, Saraiva, 2002, p. 23).

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validade, isto é, os atributos considerados essenciais, sem os quais o negócio será considerado

nulo ou se sujeitará à anulação.42 Se os dois primeiros planos forem superados pelo intérprete,

ou seja, estabelecidas a existência e a validade do negócio, passa-se à última etapa, a saber,

investiga-se se o negócio, plenamente válido, mostra-se apto à produção de efeitos jurídicos.43

Em resumo, pode-se afirmar que os elementos do negócio jurídico são as partes integrantes do

ato, ao passo que os requisitos do negócio são as suas qualidades e os pressupostos são os fatos

jurídicos que lhe são anteriores.

Reputa-se, assim, existente o negócio que contém os seus elementos

essenciais. Com efeito, faz-se alusão na doutrina a ao menos três espécies de elementos:

a) elementos essenciais (essencialia negotti): são os elementos fundamentais

para o ingresso do ato no mundo jurídico. Trata-se da vontade declarada, do objeto, da forma e

da causa do negócio;44

b) naturais (naturalia negotti): são os elementos que, fixados supletivamente

pela lei para o negócio, por isso mesmo, comporão o regulamento de interesses se não forem

afastados pela autonomia privada.45 Pense-se, por exemplo, no lugar do pagamento, quando não

convencionado (art. 327 do Código Civil).46

42

Não se confunde a invalidade com a simples ineficácia, conforme assevera EMILIO BETTI: “A invalidade

é o tratamento que corresponde a uma carência intrínseca do negócio, no seu conteúdo preceptivo; a ineficácia,

pelo contrário, apresenta-se como a resposta mais adequada a um impedimento do caráter extrínseco, que incida

sobre o projetado regulamento de interesses, na sua realização prática” (Teoria geral do negócio jurídico, cit., pp.

655-656).

43 Conforme explica CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, “ineficácia, stricto sensu, é a recusa de efeitos

quando, observados embora os requisitos legais, intercorre obstáculo extrínseco, que impede se complete o ciclo

de perfeição do ato. Pode ser originária ou superveniente, conforme o fato impeditivo de produção de efeitos, seja

simultâneo à constituição do ato ou ocorra posteriormente, operando contudo retroativamente” (Instituições de

direito civil, vol. I, cit., p. 539).

44 Segundo ANTÔNIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, os elementos essenciais podem ser gerais (subdividindo-se

entre intrínsecos ou constitutivos – forma, objeto e circunstâncias negociais – e extrínsecos ou pressupostos –

agente, lugar e tempo do negócio) ou, ainda, categoriais (referentes a determinados tipos negociais, sendo que os

elementos categoriais inderrogáveis seriam espécies de essencialia negotii e os derrogáveis, de naturalia negotii)

(Negócio jurídico, cit., p. 40).

45 Afirma ROBERTO DE RUGGIERO: “Naturais são os [elementos] que correspondem à natureza típica do

negócio, os que são conforme com a sua índole, os que o próprio ordenamento refere e exige, ainda quando as

partes não os tenham incluído, como, por exemplo na venda, a garantia da evicção, pela qual responde qualquer

vendedor. Permite-se, porém, às partes excluir ou modificar à vontade esse elemento, visto não ser requisito nem

da existência, nem da validade do negócio” (Instituições de direito civil, cit., p. 321).

46 Código Civil: “Art. 327. Efetuar-se-á o pagamento no domicílio do devedor, salvo se as partes

convencionarem diversamente, ou se o contrário resultar da lei, da natureza da obrigação ou das circunstâncias.

Parágrafo único. Designados dois ou mais lugares, cabe ao credor escolher entre eles”.

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c) acidentais (accidentalia negotti): podem figurar no negócio desde que

expressamente previstos pelas partes. São responsáveis por modificar apenas a eficácia do ato,

constituindo, principalmente, as chamadas modalidades dos negócios: condição, termo e

encargo.47

Embora a doutrina brasileira nem sempre o admita, a causa é elemento

essencial do negócio jurídico, ao lado dos elementos subjetivo, objetivo e formal. Não se

confunda causa com motivo, de natureza subjetiva ou psicológica. Do ponto de vista técnico, a

causa consiste na mínima unidade de efeitos essenciais que caracteriza determinado negócio,

sua função jurídica, diferenciando-o dos demais. Somente a identificação da causa pode

determinar a qualificação contratual, a invalidade ou ineficácia de certas relações jurídicas para

as quais o exame dos demais elementos mostra-se insuficiente. Bastaria lembrar os contratos,

como a compra e venda de coisa futura e a empreitada, que se diferenciam exclusivamente em

virtude da função ou causa que lhes é peculiar; ou a compra e venda de objeto lícito (uma arma,

por exemplo), mas cuja invalidade decorre da ilicitude do objeto no contexto causal (a arma

destinada à prática de certo crime).48

Existente o negócio jurídico, parte-se para a análise de sua validade, vale

dizer, para a verificação do cumprimento dos requisitos negociais previstos pelo art. 104 do

Código Civil. Trata-se das qualidades exigidas para os elementos essenciais: capacidade do

agente que declara a vontade, licitude do objeto negocial e legalidade da forma escolhida para

o ato (ou seja a sua correspondência à previsão ou não vedação legal).

Superadas as duas primeiras etapas, a produção de efeitos pelo negócio

jurídico depende ainda da análise de sua eficácia propriamente dita, que pode ser obstada pela

aposição de cláusula acessória ao negócio jurídico. A hipótese, a que se costuma denominar

modalidade do negócio, será objeto de capítulo específico.

7. Classificação dos negócios jurídicos

47

Segundo ROBERTO DE RUGGIERO, “Acidentais são aqueles [elementos] que são introduzidos pela vontade

das partes (visto o negócio ser suscetível disso) e que tendem a modificar o tipo abstrato na espécie concreta a que

se dá vida. São em número infinito, mas há três que têm principalmente importância e merecem um estudo especial

[...]: a condição, o termo e o modo” (Instituições de direito civil, cit., p. 321).

48 GUSTAVO TEPEDINO. A responsabilidade civil nos contratos de turismo. Temas de Direito Civil. Rio de

Janeiro: Renovar, 2008, pp. 254-255.

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Classificam-se usualmente os negócios jurídicos em diversas categorias, cuja

identificação tem por escopo permitir ao intérprete a determinação de certos aspectos de sua

disciplina legal.

Uma primeira classificação divide os negócios jurídicos entre unilaterais,

bilaterais ou plurilaterais, conforme o número de partes que deles participem.49 Vale notar que

não se trata de classificação meramente quantitativa, mas também qualitativa, uma vez que o

mesmo centro de interesses na relação negocial pode ser ocupado por inúmeros indivíduos e,

ainda assim, representar uma única “parte” no que tange à presente classificação.50 Contam-se,

assim, a rigor não propriamente os sujeitos que tomam parte do negócio, mas o número de

centro de interesses contrapostos, o que permite tanto cogitar de negócios unilaterais (como o

testamento, reputado válido pela simples emissão de vontade do testador e antes que qualquer

outra pessoa tome conhecimento de seu conteúdo, ou o ato de renúncia a um direito), quanto

de negócios bilaterais (talvez a modalidade mais comum, como em um contrato simples de

compra e venda) ou mesmo plurilaterais (pense-se em atos mais complexos, como o contrato

de sociedade).

Os negócios jurídicos reputam-se ainda típicos ou atípicos, conforme sua

estrutura elementar tenha sido ou não prevista, junto à respectiva disciplina, pelo legislador. A

doação e a empreitada constituem negócios jurídicos típicos, uma vez que sua qualificação

remete ao modelo legal desses contratos previsto pelo Código Civil. No que tange aos negócios

atípicos, trata-se, não raro, de contratos complexos que combinam elementos de diversos tipos

legais; ilustrativamente, o contrato celebrado entre um viajante a agência de turismo, a envolver

serviços de transporte, hospedagem e diversos outros. Alude-se por vezes ao termo “negócio

misto” para designar as hipóteses de contratos que congregam elementos de diversos tipos

legais – terminologia de todo criticável, vez que pressupõe a possibilidade de um meio termo

49

ORLANDO GOMES, Introdução ao direito civil, cit., p. 277.

50 Assim observa PIETRO PERLINGIERI a respeito das relações jurídicas (inclusive aquelas de origem

negocial): “a ligação essencial do ponto de vista estrutural é aquela entre centros de interesses. O sujeito é somente

um elemento externo à relação jurídica porque externo à situação: é somente o titular, às vezes ocasional, de uma

ou de ambas as situações que compõem a relação jurídica; de maneira que não é indispensável referir-se à noção

de sujeito para individuar o núcleo da relação jurídica. O que é essencial é a ligação entre um interesse e um outro,

entre uma situação, determinada ou determinável, e uma outra” (O direito civil na legalidade constitucional, cit.,

p. 734). No mesmo sentido, ORLANDO GOMES: “as várias pessoas que constituem uma parte agem em bloco

unificadas pelo mesmo interesse. Por isso, a relação jurídica constituída não se desdobra em tantas relações quantas

sejam as pessoas componentes da parte pluripessoal” (Introdução ao direito civil, cit., p. 277). V., ainda, CAIO

MÁRIO DA SILVA PEREIRA: “o conceito exato de parte pode-se dizer direcional, e traduz o sentido da declaração

de vontade” (Instituições de direito civil, vol. I, cit., p. 427).

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entre a tipicidade e a atipicidade, o que, ao menos à luz da doutrina causalista, resultaria

impossível.51

Dizem-se gratuitos os negócios que envolvem sacrifício patrimonial de

apenas uma das partes, ao passo que onerosos são os negócios que importam em diminuição

patrimonial para ambas.52 Tal conceituação, amplamente difundida pela doutrina, exige certa

cautela; de fato, não é propriamente o decréscimo patrimonial que caracteriza a onerosidade,

pois pode acontecer que a equação econômica do negócio não pressuponha o sacrifício do

patrimônio da parte onerada.53 Melhor, assim, compreender que será gratuito o negócio que

importe a obtenção de vantagem por apenas uma das partes, reputando-se oneroso o negócio

em que ambas as partes buscam obter vantagens patrimoniais.54

São inter vivos os negócios cuja eficácia se inicia durante a vida dos

negociantes, e causa mortis os que têm seus efeitos dependentes da morte de ao menos uma das

partes, sendo o exemplo clássico deste último tipo o testamento.55 Consideram-se solenes ou

formais os negócios que apresentam exigências de forma previstas em lei (tais como os

negócios envolvendo imóveis cujo valor supere o piso estabelecido pelo art. 108 do Código

Civil),56 por oposição aos negócios não solenes ou consensuais, que têm forma livre. Faz-se

51

Conforme já se afirmou em outra sede, os negócios atípicos não se confundem com os contratos

coligados, nem permitem a designação “negócios mistos”: “O que caracteriza o contrato atípico é precisamente

sua autonomia causal em relação aos tipos contratuais pré-dispostos pelo legislador. Nos contratos coligados, ao

contrário, malgrado a interdependência negocial que os vincula, normalmente com caráter de acessoriedade, cada

qual mantém sua própria função técnico-jurídica. Já os chamados contratos mistos, a doutrina os caracteriza pela

presença de elementos peculiares a dois tipos contratuais (com a predominância de um deles, de modo que se possa

defini-lo ou classifica-lo em um ou outro tipo legal). A conceituação, contudo, parece suscetível de objeção

evidente, ao menos para os fautores de doutrinas causalistas, já que a síntese dos efeitos essenciais fará de cada

contrato – lógica e ontologicamente –, ou bem típicos ou simplesmente atípicos, esvaecendo o valor dessa categoria

conceitual” (GUSTAVO TEPEDINO, A responsabilidade civil nos contratos de turismo, cit., p. 258).

52 Cf., por exemplo, uma das definições citadas por ORLANDO GOMES: “Negócio a título oneroso é o que

implica mútua transmissão de bens. Gratuito, o que se realiza com vantagem exclusiva para uma das partes, com

diminuição do patrimônio da outra” (Introdução ao direito civil, cit., p. 311).

53 Registra ORLANDO GOMES que a busca de um nexo causal entre duas atribuições patrimoniais

contrapostas acabaria por equiparar o negócio oneroso ao negócio bilateral sinalagmático, tornando inútil a

primeira classificação (Introdução ao direito civil, cit., p. 312).

54 Assim, por exemplo, CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA: “É oneroso o que proporciona ao agente uma

vantagem econômica, à qual corresponde uma prestação correspectiva, e gratuito aquele no qual uma pessoa

proporciona a outra um enriquecimento, sem contraprestação por parte do beneficiado” (Instituições de direito

civil, vol. I, cit., p. 426).

55 CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, Instituições de direito civil, vol. I, cit., p. 426.

56 Código Civil: “Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à validade dos

negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis

de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no País”.

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alusão, ainda, aos negócios jurídicos puros e aos negócios com modalidades, conforme os

negócios apresentem ou não os elementos acidentais do termo, da condição ou do encargo.

8. Atividade contratual sem negócio jurídico

A despeito da prevalência, até os dias de hoje, da dogmática voluntarista, a

evolução política e econômica da sociedade, desde o final do Século XIX, exigiu a interferência

do Estado nas relações privadas, mitigando-se a força vinculante da vontade negocial.

Especialmente diante de situações específicas de vulnerabilidade, arrefeceu-se a tutela

concedida ao interesse individual em favor de outros interesses jurídicos socialmente

protegidos. Por conta da eclosão de movimentos sociais, no Brasil e alhures, a intervenção nas

atividades contratuais incidiu primeiramente nas relações laborais, tendo sido o direito do

trabalho precursor do que se convencionou chamar de dirigismo contratual, destinado a

proteger a parte mais desfavorecida – técnica e economicamente – do contrato de trabalho. O

desconforto do direito privado clássico com a intervenção heteronímica57 na deliberação das

partes levou à autonomia do direito do trabalho, afastando-se do direito civil tudo o que se

considerava destinado a reduzir o papel da vontade como fonte soberana de vínculos

obrigacionais.58

57

Sobre a referida intervenção heterônoma nos contratos, afirma STEFANO RODOTÀ que o contrato, embora

decorrente da vontade das partes, uma vez formado, sujeita-se à intervenção de fontes exteriores, alheias à vontade

individual: “è evidente, allora, che le diverse fonti si ispirano ciascuna a peculiari valutazioni: ma qui interessa

rilevare soltanto che tutte convergono nella finalità comune della costruzione del regolamento contrattuale; rispetto

a quest’ultimo la particolare ratio delle singole fonti non viene in questione, riguardando esclusivamente il modo

in cui ciascuna di esse, in sé considerata, opera” (Le fonti di integrazione del contrato, Giuffrè, Milano, 2004, p.

87).

58 Conforme se afirmou em outra sede: “Coincide, em certa medida, por isso mesmo, o movimento teórico

de sustentação do direito de trabalho com construções antiformalistas surgidas no final dos anos 60 do século

passado, que se opunham aos princípios dogmáticos do direito privado, inflexíveis no assegurar a vontade do

proprietário e do contratante. Em certa medida, o crescimento do direito do trabalho, na segunda metade do século

XX, coincide com a legitimação política do Welfare State e se aproxima a formulações teóricas que, na tentativa

de romperem com a lógica da igualdade formal, notabilizaram-se como o uso alternativo do direito. A afirmação

de direitos subjetivos extraproprietários, capazes de vergar as forças hegemônicas e de fazer prevalecer direitos

sociais, afigurava-se sediciosa, sendo significativa a alusão, por parte de conceituado teórico do direito francês, à

criação de contradireitos” (GUSTAVO TEPEDINO, “Direito civil e direito do trabalho: diálogo indispensável”, In

Gustavo Tepedino et al. (coords.), Diálogos entre o direito civil e o direito do trabalho, São Paulo: RT, 2013, pp.

14-15). Sobre a expressão “contradireitos”, veja-se MICHEL MIAILLE: “Todas as lutas políticas e sociais dos séculos

XIX e XX se desenrolaram sob esta palavra de ordem; todas as leis liberais que foram, assim, arrancadas à ordem

burguesa se justificam pelos direitos subjetivos, do direito à instrução ao direito de defesa, passando pelo direito

de associação. Neste sentido, como toda a ideologia de combate, a afirmação dos direitos subjetivos faz parte de

uma luta viva, ainda eficaz nos nossos dias [...] É o ‘contradireito’” (Uma introducao critica ao direito, Lisboa:

Moraes, 1919, p. 143‑144).

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Esse processo de intervenção legislativa, que muitos julgavam contingências

momentâneas de crises econômicas, mostrou-se inevitável e irreversível, acirrando-se na

primeira metade do Século XX como mecanismo de equilíbrio do mercado e do próprio regime

capitalista. Nessa esteira, as locações também foram objeto de forte intervenção legislativa,

com o intuito de gerir a escassez de imóveis e as crescentes demandas locatícias. Ao longo do

tempo, tem-se tutelado de modo imperativo tanto o direito à moradia quanto o fundo de

comércio, assegurando-se desde os anos 30 do Século passado a renovação do contrato de

locação para fins comerciais (Decreto 24.150, de 20 de abril de 1934). O legislador interveio

também intensamente na economia popular, combatendo os juros extorsivos, o curso de moeda

estrangeira e assim por diante.59

O incremento da intervenção estatal, que se acirrou na Europa a partir da

Segunda Grande Guerra, destinado à tutela de direitos fundamentais alcançados pela iniciativa

econômica privada e que, no Brasil, culminou com a Constituição da República de 1988, acaba

por colocar em crise a noção de autonomia privada e a teoria do negócio jurídico, incapazes de

abranger a variedade de modelos e interesses mediante os quais a atividade privada se

estabelece e é socialmente reconhecida.

Anotem-se, nesse longo itinerário histórico, ao menos duas relevantes

consequências para a teoria dos contratos. De um lado, o aparecimento de princípios

mitigadores da obrigatoriedade e da relatividade dos pactos, notadamente a boa-fé objetiva, o

equilíbrio econômico e a função social, que desde o início do Século XX foram incorporados

gradualmente às legislações nacionais, dando margem ao surgimento de numerosos

instrumentos de controle da justiça contratual (como a lesão, a revisão e a resolução por

excessiva onerosidade, o adimplemento substancial, a vinculação a deveres anexos, o dever de

mitigar danos, a proibição de comportamento contraditório, o abuso de direito). Essas e tantas

outras figuras, na experiência brasileira, foram absorvidas pela doutrina, legislação e

jurisprudência somente no final do Século XX, especialmente a partir da Constituição da

República de 1988 e do Código de Defesa do Consumidor, de 1990. De outra parte, como

espécie de válvula de escape para o rigor técnico imposto pelo excessivo controle de validade

dos negócios jurídicos, desenvolveu-se, a partir do final da primeira metade do Século XX, a

teoria das relações contratuais de fato, a qual, ao confrontar a realidade jurídica à realidade

fática, teve o mérito de alargar a admissibilidade, pelo direito, de relações admitidas

59 Cfr., dentre outras normas, o Decreto nº 22.626, de 7 de abril de 1933; Lei nº 1.521, de 26 de dezembro

de 1951.

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socialmente embora sem a proteção conferida pelo Direito ao negócio. De maneira geral, os

países da família romano-germânica que adotam, de forma direta ou indireta, a doutrina do

negócio jurídico, encontram dificuldade semelhante: o excessivo controle de validade do

negócio acaba por excluir de seu espectro de incidência certas atividades que, em sua

substância, despidas do aparato negocial, são admitidas como socialmente úteis e legítimas pelo

corpo social.

Diante do contraste entre a legitimidade da atividade desenvolvida e a

invalidação do ato negocial que a constitui, autores de renome sustentaram a preservação dos

efeitos de tais atos a despeito de sua invalidade. No início do Século XX, Haupt construiu teoria

pioneira nesta direção.60 Com resultados semelhantes, Larenz produziu trabalho

importantíssimo no qual concebeu a categoria dos comportamentos socialmente típicos.61 De

outra parte, na doutrina italiana, Ascarelli62 e inúmeros outros conceituados autores

desenvolveram, em diversos campos da autonomia privada, o que seria a teoria das relações

jurídicas de fato, a qual atingiu o seu apogeu nos anos 60 e 70, com o seu reconhecimento pela

Corte Suprema Alemã – BGH (Bundesgerichtshof).63

Paradoxalmente, o principal motor da teoria do comportamento socialmente

típico, consubstanciado na crítica à exasperação da vontade negocial como fonte primordial das

obrigações, transformou-se em sua maior vulnerabilidade. Associada ao processo histórico de

crítica ao poder impositivo das forças econômicas nos regulamentos contratuais, no âmbito da

60

GÜNTHER HAUPT, Über faktische Vertragsverhältnisse, 1941.

61 KARL LARENZ, O estabelecimento de relações obrigacionais por meio de comportamento social típico

(1956), in Revista Direito GV, vol. 2, n. 1, jan-jun/2006.

62 Ao propósito, a obra de TULLIO ASCARELLI mostra-se particularmente importante. Cfr. Lezioni di diritto

commerciale - Introduzione,1955, Milano, Giuffrè, pp. 102 a 108, onde se lê: “L’attività dovrà essere valutata in

via autonomia, indipendentemente cioè dalla valutazione dei singoli atti, singolarmente considerati.

Indipendentemente dalla disciplina dei singoli atti può essere illecito (o sottoposto a norme particolari) l’esercizio

dell’attività” (p. 103). Sobre o tema, v. também o verbete fundamental de Giuseppe Auletta (Attività (dir. priv.),

in Enciclopedia del diritto, vol. III, Milano, Giuffrè, 1958, p. 982), que define attività “quale insieme di atti di

diritto privato coordinati o unificati sul piano funzionale dalla unicità dello scopo”.

63 Na doutrina italiana, CARLO ANGELICI analisa o caso julgado em 28 de Janeiro de 1976 pelo

Bundesgerichtshof em que uma criança se acidentou no supermercado enquanto a mãe comprava, e estava pagando

no caixa. Discutiu-se se a responsabilidade era contratual ou extracontratual e se haveria responsabilidade pré-

contratual. Exclui-se a responsabilidade pré-conratual já que a autora, sendo criança, não efetuaria compra alguma,

ou seja, não teria nada a comprar, o que a impediria de intentar a ação contra o supermercado (Responsabilità

precontrattuale e protezioine dei terzi in uma recente sentenza del Bundesgerichtshof, in Rivista del diritto

commerciale e del diritto generale delle obbligazioni, I, ano LXXV, 1977, pp. 23-30). Segundo observa o autor,

o dever de boa-fé serve de fundamento para a relação de proteção em face de terceiros, aplicando-se a teoria

designada como Vertrag mit Schutzwirkung sugunsten Dritter, de modo a proteger terceiros alcancados pela

atividade contratual independentemente de qualquer vínculo negocial: “il Bundesgerischtshof accentua il profilo

del rapporto di protezione che deve intercorrere tra il contraente ed il terzo danneggiato e riconduce la vicenda ad

una sua rilevanza, tramite il contratto o l’attività precontrattuale, pure nei confronti della contraparte” (p. 25).

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massificação da economia e do fortalecimento dos mercados consumidores, a teoria do

comportamento típico passa a ser admitida a prescindir do elemento volitivo. Buscava-se

proteger a vontade do vulnerável, estigmatizando-se o poder da vontade como inevitável

imposição das forças econômicos na celebração dos negócios jurídicos. Em última análise, da

crítica ao voluntarismo opressor decorreu a hostilidade à vontade e a rejeição de seu papel como

motor da livre iniciativa. Tal perspectiva não resistiria à retomada dos movimentos liberais que,

ao lado do declínio do Welfare State, acabaram por sepultar a doutrina do comportamento

socialmente típico.

Com efeito, a partir dos anos 70 do Século passado, assistiu-se, tanto na

Alemanha quanto na Itália e em Portugal, à progressiva substituição dessa construção por uma

ampliação da categoria do negócio jurídico, cuja abrangência o tornaria apto a compreender

numerosas atividades socialmente típicas, ora mediante a invocação de vontade presumida dos

seus agentes (a ampliar o conceito de negócio jurídico), ora por meio da ratificação de atos

inválidos, ora mediante a mera admissão de efeitos patrimoniais ressarcitórios decorrentes de

negócios inválidos – cuja fonte, portanto, seria o ato ilícito, não já o contrato.

Do ponto de vista dogmático, não parece convincente a legitimação de efeitos

obrigacionais com base na técnica da vontade presumida ou, por outro lado, como mera

liquidação de danos. Basta lembrar a hipótese do incapaz que compra e vende artigos de suas

necessidades pessoais, faz-se transportar e assim por diante. Não seria razoável admitir como

válidos tais negócios com fundamento em suposta vontade presumida de seus responsáveis, já

que, por vez, as atividades desenvolvidas são levadas a cabo contra a vontade expressa de quem

deveria autorizá-las. Também em outras hipóteses de atividades desenvolvidas por pessoas

capazes, mostra-se insustentável cogitar-se de vontade presumida pelo simples fato de que o

agente se recusa a celebrar o negócio. E tampouco se sustentaria a explicação circunscrita à

liquidação de danos quando se pensa na execução específica de certos contratos fundados em

negócio nulo, na esteira de tendência progressiva do direito obrigacional.

Daí ser plausível a suspeita de que a rejeição à doutrina do comportamento

social típico se associe mais ao contexto histórico e ideológico em que se insere do que aos seus

fundamentos teóricos. Por ter sido germinada em oposição à Teoria do Negócio Jurídico, aquela

doutrina acabou sendo desenvolvida como construção crítica ao papel da vontade na teoria

contratual, associando-se a orientações que, por diversos matizes, enalteceram, ao longo do

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Século XX, o papel do Estado intervencionista, seja em regimes autoritários de diversos países,

seja no dirigismo contratual.64

As duas últimas décadas do Século passado, por outro lado, coincidem, em

diversos países europeus e da América Latina, com a densificação do neoliberalismo e,

especificamente na esfera jurídica, com a retomada entusiasmada do prestígio da autonomia

privada, reduzindo-se, em diversos setores – mercado de locação, relações de trabalho, setores

da economia privatizados – o grau de intervenção do Estado, que adquire feição regulamentar,

com suas agências e instrumentos que enaltecem o papel da livre contratação, ainda que sob

rígido controle do Estado.

A Europa, neste particular, diferencia-se da América Latina, onde, talvez

pelas contradições sociais ainda muito evidentes, e por não se terem alcançado níveis médios

satisfatórios na promoção dos direitos sociais, é compreensível que se propugne por um grau

de intervenção e de promoção de políticas públicas maior, capaz de favorecer a distribuição de

rendas e diminuir a desigualdade social. Tal diferença, superficialmente percebida, explica, em

certa medida, intensificação mais visível, na doutrina europeia, da retomada do papel da

vontade nas atividades privadas.

A preocupação com a preservação da vontade como elemento relevante da

iniciativa privada, associada à reação liberal ao dirigismo contratual, mostram-se eloquentes

para a compreensão do alargamento das doutrinas do negócio jurídico e da rejeição da doutrina

do comportamento social típico. Entretanto, a análise dos comportamentos socialmente típicos,

especialmente na perspectiva ascarelliana de atividade contratual sem negócio, não renega o

papel da vontade, limitando-se a considerar secundária, para determinadas atividades

socialmente típicas, a vontade negocial, ou seja, a existência de negócio jurídico que inaugure

64 Bastaria, para comprovar tal percepção, a crítica de DIETER MEDICUS à expressão “comportamento

socialmente típico” (Il ruolo centrale delle disposizioni relative al negozio giuridico, in I Cento anni del codice

civile tedesco in Germania e nella cultura giuridica italiana – Atti del convegno di Ferrara, 26-28 settembre 1996,

Padova, Cedam, 2002, pp. 155 a 176). O autor critica (p.165) especialmente a decisão da Corte alemã (sentenza

de 1966, Landgericht di Brema, in NJW 1966, p. 2360) que obrigou o pagamento de bilhete de trem em face de

um menino de 8 anos que havia realizado o trajeto, imputando-lhe também a multa. Invoca o festejadíssimo Flume

(civilista liberal que se transformou em uma lenda viva na Alemanha, por sua posição de resistência ao regime

nazista, quando se exonerou da Cátedra), que reduz a construção à retroatividade de efeitos para relações

obrigacionais inválidas. Afirma a p. 166: “Il ricorso alla formula ‘contratto di fatto’ ha consentito di trattare come

efficaci, per il periodo in cui era stata ad essi data esecuzione, contratti di lavoro subordinato e contratti di società

conclusi sulla base di accordi giuridicamente inefficaci (…). In definitiva, essa non fa altro che sostituire l’effetto

retroattivo della nullità, dell’annullamento e del recesso operante ex tunc (Rücktritt), con una causa di scioglimento

del rapporto non pienamente retroattiva, assimilabile al recesso operante ex nunc (Kündigung)”. E remata de forma

sarcástica: “In conclusione, si può dire che, nel complesso, il diritto classico dei contratti, imperniato sulla volontà

negoziale, ha saputo difendersi dagli attacchi che gli sono stati portati: i tentativi operati in questo senso da quella

che Flume ha efficacemente definito ‘giurisprudenza della corsa in tram’ sono falliti (Jurisprudenz der

Straßenbahnfahrt)”.

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a atividade já existente de fato. Considerando-se a insuficiência do negócio jurídico – e da

vontade presumida – para justificar a presença de atividades admitidas pelo grupo social, que

produzem efeitos jurídicos carecedores de qualificação, ainda que desprovidas de negócio

fundante, torna-se oportuno revisitar a doutrina dos comportamentos socialmente típicos.

Do ponto de vista metodológico, a atividade contratual sem negócio exige

qualificação da concreta relação jurídica a partir da sucessão de atos funcionalmente

interligados, sem prévia tipificação e reconhecimento jurídico do negócio. Corrobora-se o ocaso

da subsunção, como técnica hermenêutica a reclamar premissa legal abstrata, correspondente a

suporte negocial determinado, em favor da verificação em concreto da disciplina aplicável ao

conjunto de atos de natureza diversa. Amplia-se, dessa forma, o controle da atividade privada,

permitindo-se proteger efeitos socialmente relevantes decorrentes de negócios nulos ou

inexistentes, sem que a presença de negócio válido seja um pressuposto para a tutela jurídica.

O que se pretende propor, para a reflexão contemporânea, é a necessidade de

se reler a doutrina dos comportamentos socialmente típicos, a partir, não já do afastamento do

elemento volitivo como motor da livre iniciativa, mas da distinção entre a vontade negocial e a

vontade contratual. O negócio jurídico mantém-se vinculado ao controle estabelecido pelo

Código Civil. Ao seu lado, contudo, uma série de atividades socialmente típicas, decorrentes

de atos não negociais, é valorada positivamente e a ordem jurídica reconhece, como jurígenos,

seus efeitos. Enquanto no negócio jurídico a declaração de vontade hígida é um prius para a

sua validade (elemento essencial), nas atividades socialmente típicas a vontade suscita

verificação in posterius, a partir dos efeitos por elas produzidos, independentemente de

declaração destinada à instauração do vínculo, conferindo-se juridicidade a situações jurídicas

que, de outra forma, não poderiam ser admitidas.

A rigor, a admissão da relação contratual sem negócio permite atribuir

juridicidade a efeitos socialmente reconhecidos, a partir de qualificação a posteriori da função

da atividade realizada, estabelecendo-se, dessa forma, controle de merecimento de tutela, à luz

da legalidade constitucional, acerca de atos praticados sem negócio jurídico de instauração (mas

que, nem por isso, podem ser considerados fora da lei), cuja eficácia, de ordinário, é mais restrita

do que a gama de efeitos almejados pelo negócio. Basta lembrar as hipóteses do funcionário

público cujo acesso à carreira não se deu por concurso público;65 ou do vínculo empregatício

65

A respeito, v. o Enunciado nº 363 da Súmula do TST: “Contrato nulo. Efeitos (nova redação) - Res.

121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003. A contratação de servidor público, após a CF/1988, sem prévia aprovação em

concurso público, encontra óbice no respectivo art. 37, II e § 2º, somente lhe conferindo direito ao pagamento da

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do apontador de jogo do bicho;66 ou do policial militar em empresa de segurança privada, a

despeito de vedação legal expressa;67 ou do menor que adquire, por si mesmo, produtos ou

serviços; ou ainda o exemplo dos sócios de sociedade irregular ou da pessoa que integra

modalidade de família inadmitida pelo direito.68

Em todos esses casos, a invalidade dos negócios não exclui a admissibilidade,

para certos fins, de eficácia jurídica à atividade desenvolvida. E somente graças a artificialismo

retórico se poderia afirmar que se pretendeu, em tais hipóteses, celebrar ou extinguir uma série

de negócios, alçando-se o mesmo efeito rejeitado ora pela vontade expressa do declarante, ora

pela lei. Torna-se, assim, incongruente, nesses casos, falar-se em negócio jurídico, cuja

admissão colidiria com matéria de ordem pública, que pauta a teoria das capacidades, das

formas ad substantiam e da licitude dos bens passíveis de circulação.

contraprestação pactuada, em relação ao número de horas trabalhadas, respeitado o valor da hora do salário

mínimo, e dos valores referentes aos depósitos do FGTS”.

66 A respeito, v. a O.J. nº 199 da SDI-1: “Jogo do bicho. Contrato de trabalho. Nulidade. Objeto ilícito

(título alterado e inserido dispositivo) - DEJT divulgado em 16, 17 e 18.11.2010. É nulo o contrato de trabalho

celebrado para o desempenho de atividade inerente à prática do jogo do bicho, ante a ilicitude de seu objeto, o que

subtrai o requisito de validade para a formação do ato jurídico”.

67 A hipótese é disciplinada pelo art. 22 do Decreto-lei n.º 667/1969: “Art. 22. Ao pessoal das Polícias

Militares, em serviço ativo, é vedado fazer parte de firmas comerciais de empresas industriais de qualquer natureza

ou nelas exercer função ou emprego remunerados”.

68 Em interessante precedente, o Superior Tribunal de Justiça, baseado no princípio da monogamia

(compreendido pela Egrégia Corte como essencial ao regime das famílias no ordenamento brasileiro), decidiu, ao

analisar pretensões sucessórias das partes, pela impossibilidade de reconhecimento de duas uniões estáveis

simultâneas do de cuius – que, após se divorciar, manteve união estável com a própria ex-esposa, bem como com

segunda mulher. In casu, foi privilegiada a união estável com a companheira com a qual não foi casado, em

detrimento da união com a ex-esposa (iniciada após o divórcio), reputada concubinato diante da pré-existência da

outra união (STJ, REsp. 1.157.273, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 18.5.2010).

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O CORPO DO REGISTRO NO REGISTRO DO CORPO; MUDANÇA DE NOME E

SEXO SEM CIRURGIA DE REDESIGNAÇÃO

The registration’s body in the body’s registration; change of the name and sex without

reassignment surgery

Luiz Edson Fachin Professor Titular de Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Pós-Doutor.

Pesquisador convidado do Instituto Max Planck, de Hamburg (DE).

Professor Visitante do King’s College, London. Advogado.

Resumo: Os direitos de personalidade se apresentam como essenciais para o paradigma do

Estado Democrático de Direito. Dentre eles, o direito ao nome e o direito ao próprio corpo

assumem importante papel na criação da identidade do ser humano e em sua autodeterminação.

Na temática das pessoas transexuais, a garantia do livre exercício do direito ao nome e ao corpo

se torna ainda mais fulcral. Cada vez mais a jurisprudência vem admitindo a possibilidade de

alteração de prenome e sexo no registro civil de transexuais após a cirurgia de

transgenitalização. Quando não há a cirurgia, contudo, a jurisprudência torna a não permitir a

alteração. Considerando-se que a categoria de gênero ultrapassa a ideia de sexo biológico, e

levando-se em conta o princípio da dignidade da pessoa humana, torna-se essencial a defesa da

possibilidade de alteração do registro civil mesmo sem a cirurgia de redesignação sexual, como

forma de garantia da dignidade.

Palavras-chave: Direito ao nome; direito ao corpo; dignidade da pessoa humana; identidade

de gênero; transexuais; cirurgia de transgenitalização.

Abstract: Personality rights are presented as essential to the paradigm of the Democratic State

of Right. Among them, the right to a name and the right to own body play an important function

in creating the identity of human beings and their self-determination. In the theme of the

transgender people, the guarantee to free exercise of the right to the name and the body becomes

even more crucial. Incrisingly, the jurisprudence has acknowledged the possibility of change of

the first name and sex in the civil registry of the transgender person after reassignment surgery.

When there isn’t the surgery, however, the jurisprudence returns to not allow de changing.

Considering that the gender category beyond the idea of biological sex, and taking into account

the principle of human dignity, it is essential defense the possibility of changing in the civil

registry, even without reassignment surgery, as a way to guarantee the dignity.

Key-words: Right to a name; right to the body, human being dignity; gender identity;

transgender; reassignment surgery

O autor agradece a percuciente pesquisa acadêmica sobre o tema de Mauricio Wosniaki Serenato.

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Sumário: Introdução – 1. Direitos da Personalidade em passant – 1.1 Direito fundamental ao

nome – 1.2 Direito fundamental ao corpo – 2. Transexualidade – 2.1 O Direito à mudança de

nome e sexo no Registro Civil – 2.2 O direito à mudança de nome e sexo sem a cirurgia de

redesignação sexual – 3. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4275 – 4. Conclusões.

Introdução

Há íngremes desafios nas relações sociais contemporâneas; ao Direito Civil

brasileiro prospectivo, à luz da dimensão substancial da constitucionalização dos direitos,

impende arrostar as questões que demandam novas respostas, em homenagem ao Direito, à

segurança jurídica material e à liberdade. Uma hermenêutica de respeito à sociedade plural1 se

impõe.

A autodeterminação das pessoas configura-se como elemento fundamental

para a garantia de qualidade de vida. Autodeterminar-se não significa agir irresponsavelmente,

mas sim, exercer as liberdades pessoais do modo mais amplo possível, seja produzindo

escolhas, seja criando uma identidade própria ou mesmo tomando decisões quanto ao próprio

corpo. Essas temáticas todas serão tratadas no decorrer desse artigo, cujas reflexões principiam

elementos para embrenhar-se, mais adiante, nesse debate, e intentam contribuir nessa vereda.

Principiemos pela instalação do tema, pretendendo guiar-se pela sensibilidade

que tal horizonte suscita, sem negligenciar do mandatório baldrame da dogmática jurídica.

Justiça é conceito que em sua concretude não se aparta da segurança jurídica.

A questão posta à controvérsia beneplacita tema central na vida do Direito,

qual seja, o da identidade. A identidade pessoal, isto é, o direito ao ser, bem como o direito ao

corpo, se encapsulam como direitos de personalidade. A identidade, em termos gerais e na

cronologia da biografia jurídica do sujeito, tem como função a individualização e a identificação

da pessoa na sociedade2, de modo que o nome ganha especial relevo na construção identitária.

Mesmo diante da importância que o nome assume, a identidade vai além da mera nomeação,

encontrando eco nas experiências sociais, culturais, políticas e ideológicas das quais a pessoa

toma parte. Identidade, portanto, parte do pressuposto de como o indivíduo se reconhece e como

1 Exemplo lúcido dessa perspectiva encontra assento na importante obra Código Civil Interpretação

conforme a Constituição da República: “(...) No sistema constitucional, portanto, a família tem especial proteção

do Estado, mas não apenas a constituída pelo casamento” (In: TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloísa Helena;

BODIN DE MORAES, Maria Celina. Vol. IV. Rio de Janeiro : Renovar, 2014. p. 4).

2 CHOERI, Raul Cleber da Silva. O direito à identidade na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro:

Renovar, 2010, p. 226.

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é reconhecido pela sociedade, e esse reconhecimento é muito mais complexo que os rótulos

simplistas que costumam se apresentar no campo das relações sociais. Tal reconhecimento logo

se deu no Direito Civil com os apelidos, no sentido menos técnicos da palavra, ou alcunhas.

Ao mesmo tempo, o direito ao corpo é também prerrogativa da personalidade,

na medida em que não é apenas a exteriorização da essência humana, pelo contrário, é também

parte integrante dela. Nele se apresentam, no palco da existência, o ser e o estar.

A transexualidade tem o condão de relacionar de modo imbricado o direito à

identidade com o direito ao corpo, de modo que a efetividade do direito à identidade só é

possível com o livre exercício do direito ao corpo. A relação de transgêneros3 com seu corpo é

essencial para a constituição de sua identidade, isto é, na forma em que se reconhecem e são

distinguidos. Nesse sentido, portanto, o direito ao corpo como formador de identidade deve ser

exercido em liberdade, por parte do transexual, de modo que a há que se questionar a

essencialidade da cirurgia de redesignação sexual para a mudança de nome civil e de sexo.

O presente trabalho, portanto, procurará explorar essa temática, ciente de que

não sustentará verdades absolutas ou dogmas. De início serão explorados os pressupostos dos

direitos da personalidade, em especial atenção ao direito fundamental ao nome e ao corpo como

conformadores de um direito à identidade; aqui será apenas uma retomada sucinta de conceitos

já espraiados na teoria jurídica, a fim de sistematizá-los. Em seguida, procurar-se-á perscrutar

as novas concepções acerca da transexualidade e os debates jurídicos que se aderem à temática,

como o direito à mudança de nome civil e sexo. Neste ponto entrará o questionamento

fundamental da necessidade da cirurgia de redesignação sexual como pressuposto para a

alteração de nome e sexo no registro civil. Além da análise doutrinária da área jurídica e das

modernas teorias de gênero e sexualidade, será esquadrinhada a jurisprudência pátria

concernente ao assunto, bem como a proposta de ADI impetrada pelo Ministério Público

Federal que procura justamente afastar o requisito da cirurgia.

Em suma, para arrematar esta nota introdutória: parece-nos, que a busca da

felicidade não pode ser barrada por preconceitos. Aqui não se subscreve, nem de longe, o

desvario individualista do consumo de tudo e a própria reificação do ser. Dignidade e

responsabilidade se conjugam com a liberdade. O coevo trabalho, portanto, arreia a felicidade

dos transexuais à sua realização pessoal no que tange a suas identidades e corpos, de modo que

3 Existe discussão científica acerca de diferenciação entre transexuais, travestis e transgêneros. Neste

trabalho, adotar-se-á, apenas para este fim, a corrente que trata as expressões como unívocas.

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nas páginas no decorrer deste artigo se elucidará essa relação fundamental. É no respeito que

se funda este caminhar.

1. Direitos da Personalidade en passant

A fim de prosseguir, cumpre, por ora, apenas de forma sumário, reincorporar

aqui conceitos e elementos já debatidos, úteis ao desenvolvimento da temática em exame.

Os direitos da personalidade, como se sabe, surgem em sua dimensão

substancial como corolários daquilo que se denominou Estado Democrático de Direito. Com

base teórica jusnaturalista, os direitos da personalidade se estruturam a partir da ideia de

essencialidade e inerência à própria condição humana. Logo após a Segunda Guerra Mundial,

procurou-se proteger o indivíduo contra os arbítrios provenientes do Estado, entrelaçando os

direitos da personalidade à ideia de dignidade da pessoa humana, e os alçando à proteção

constitucional e internacional. Anderson Schreiber bem versa sobre os direitos de personalidade

como “atributos humanos que exigem especial proteção no campo das relações privadas, ou

seja, na interação entre particulares, sem embargo de encontrarem também fundamento

constitucional e proteção nos planos nacional e internacional.”4

Os direitos da personalidade, portanto, dizem respeito aos mais essencial do

sujeito e seus prolongamentos ou projeções, de maneira que merecem especial atenção do

ordenamento jurídico, e, não por acaso, encontram eco na Constituição Federal. Na definição

de Euclides de Oliveira, “entende-se por personalidade o conjunto de caracteres físicos,

psíquicos e morais que compõem o ser humano. Daí decorrem os direitos concernentes à pessoa

humana, que são prolongamentos e projeções da personalidade.”5 Desta definição já se percebe

a amplitude dessa categoria de direitos, ao mesmo tempo em que se dá conta de sua

essencialidade.

Nesta senda, para a análise que se pretende fazer no presente trabalho, uma

reflexão mais detida acerca do direito ao nome e do direito ao corpo será feita, de modo a

conformar uma ideia de direito à identidade. É o que segue.

4 SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 2 ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 13

5 OLIVEIRA, Euclides de. Direito ao nome. In: DELGADO, M. L; ALVES, J. F. Questões controvertidas

no novo Código Civil, Vol. 2. São Paulo: Método, 2004.

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1.1. Direito fundamental ao nome

O direito ao nome é um dos direitos de personalidade positivados no Código

Civil de 2002. Exerce função essencial na individualização do sujeito e em seu reconhecimento,

de modo que recebe ampla proteção jurídica. Versando sobre a temática do nome, José Roberto

Neves Amorim apresenta uma definição para o instituto:

A melhor doutrina atribui ao nome a natureza jurídica de direito de

personalidade, na medida em que, como sinal verbal ou mesmo marca do

indivíduo, o identifica dentro da sociedade e da própria família e é capaz de

ser tutelado erga omnes. A lei assegura o direito ao nome, assim como seu

registro em local adequado, obedecidas as formalidades, criando a

particularização da pessoa, no mundo jurídico. Ele faz, pois, parte integrante

da personalidade.6

Sendo um direito da personalidade, a doutrina apresenta características

inerentes ao direito ao nome, pelo que se segue a classificação feita por José Roberto Neves

Amorim7, entre as quais se podem citar a obrigatoriedade, a indisponibilidade, a exclusividade,

a imprescritibilidade, a inalienabilidade, a não-cessibilidade, a extracomercialidade, a

inexpropriabilidade, a intransmissibilidade , a irrenunciabilidade e a imutabilidade, neste caso,

relativa. Sem adentrar a esse âmago, impende singelo rememorar de tais atributos.

A obrigatoriedade diz respeito, como sugere a qualificação, a obrigação de se

ter um nome e de registrá-lo oficialmente perante Cartório de Registro Civil. Também se

entende a obrigatoriedade como a obrigação de usar o nome, sem embargo de eventuais

alcunhas. A indisponibilidade, por sua vez, diz respeito a incapacidade de dispor do nome, aqui

se tendo disposição em uma acepção ampla, como o poder de determinar o destino do direito

subjetivo. A exclusividade se baseia na ideia do nome pertencer a uma única pessoa. Por

evidente que se admite a existência de homônimos, de modo que a exclusividade resta

relativizada, sob tais limites e sentidos.

A imprescritibilidade se refere ao fato de o titular desse direito da

personalidade jamais perder o direito ao nome por ação ou inação. A inalienabilidade, por seu

turno, abrange a ideia que o nome, pelo menos da pessoa física, não pode ser alienado, trocado

6 AMORIM, José Roberto Neves. Direito ao nome da pessoa física. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 8.

7 Ibidem.

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por dinheiro, ou por qualquer outro mecanismo. De forma semelhante, a característica de

incessibilidade aduz que o nome não pode ser cedido, visto que impossibilitaria de exercer a

individualização que é sua função primordial. Ainda nesse sentido, a extracomercialidade

indica que o nome não é comerciável, sendo essa característica corolário da incessibilidade e

da inalienabilidade. O nome é também inexpropriável. Embora o termo ensaie a equivocada

ideia de que seria o direito ao nome um direito patrimonial, a essência dessa característica é,

em verdade, proteger o nome do indivíduo contra sua mudança arbitrária, ainda que por parte

do Estado em alegado interesse público. Também é intransmissível; não pode ser transferido,

justamente porque, sendo um direito da personalidade, deriva da ideia de inerência ao ser

humano, como outrora apontado. Ainda, há que se ponderar a irrenunciabilidade: o titular do

nome não pode dele renunciar, em função da própria de ideia de indisponibilidade sobre os

direitos da personalidade.

Por fim, entretanto não menos importante, há a imutabilidade, que, em

verdade, é predicado de máximo interesse para a presente análise. A imutabilidade, a rigor, é

mesmo relativa, como se reconhece em doutrina, pois “embora se preveja a imutabilidade do

nome, esta é relativa, pois devem ser consideradas as exceções legais, retirando-se o caráter

absoluto desse princípio.”8 Muito mais que uma limitação por meio de critérios hermenêuticos,

a imutabilidade do nome já se encontra relativizada na própria legislação, haja vista o próprio

Código Civil, na matéria de direito de família, ou ainda a Lei de Registros Públicos, que prevê

possibilidade de mudança de nome nas hipóteses de prenome ridículo, ou de integração de

apelido notório, por exemplo.

A grande ingente questão que se coloca, portanto, é o fato do nome ser

elemento constitutivo de magna importância para a formação da identidade pessoal. Isso

significa dizer que ao ser individualizado por um nome, a pessoa deve se sentir confortável em

relação a isso, e, a nomenclatura deve refletir a forma como a pessoa se sente sobre si mesma e

como é reconhecida pela comunidade. Direito fundamental ao nome, dessa forma, deve levar

em conta não apenas a existência de um nome em si, mas a sua função social na criação da

identidade do ser humano.

Cada vez mais se admite, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, a

possibilidade de alteração do registro civil no caso de transexuais. O tema será mais bem

versado adiante, contudo, a título de se dar concretude ao argumento supra, a mudança de nome

no caso de transexuais é vital para a configuração de uma identidade que, de fato, represente o

8 Idem, p. 38.

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imo do indivíduo. Negar essa possibilidade ao transexual é violar um direito fundamental, visto

que o nome, conforme já defendido, não se resume a uma nomenclatura, apresenta uma função

social importantíssima na construção identitária do ser humano e mesmo em sua qualidade de

vida. Nesse sentido, comunga-se com a teorização de Patrícia Corrêa Sanches:

Isso porque uma pessoa com aspecto representativo social do gênero feminino

e que contenha documento de identificação com prenome masculino sofre

enorme constrangimento em suas relações sociais, haja vista o nome não

corresponder à identidade da pessoa, assim como a própria sociedade passa a

não conseguir êxito na identificação do sujeito.9

Sendo um direito fundamental de tamanha importância, é impensável que o

nome possa trazer sofrimento à pessoa. Se assim se sucede, por evidente, que tal direito não

cumpre função e é incoerente com a sistemática constitucional vigente a impossibilidade a

alteração do prenome. Adiante haverá maior aprofundamento nesta temática.

1.2. Direito fundamental ao corpo

O ordenamento jurídico brasileiro consagra o princípio da autonomia privada

em vários campos do direito privado, desde a autonomia para contratar, até a autonomia sobre

a própria vida. É dentro desse contexto de autonomia e liberdade que se insere a discussão do

direito ao corpo. Por certo que a tutela jurídica que se destina a autonomia privada no campo

dos contratos em muito diverge da autonomia privada que se traduz no campo dos direitos da

personalidade. No entanto, cabe resgatar a nova concepção de autonomia privada, que

ultrapassou um modelo altamente liberal de autonomia da vontade, para encontrar dentro do

âmbito do ordenamento limites e restrições. Isso significa dizer que se assegura aos indivíduos

ampla margem de liberdade, contudo, restrita a uma ideia de funcionalização do direito e,

igualmente, dos parâmetros constitucionais de proteção à dignidade humana. Na ambiência do

direito ao corpo, portanto, o paradigma da autonomia privada deve ser analisada em sua

essencialidade, isto é, respeitando-se a liberdade que se deve conferir ao indivíduos, ao mesmo

tempo em que se emprega atenção, e no caso do direito ao corpo, especial atenção, aos limites

provenientes do ordenamento jurídico.

Os limites de que tratamos são os limites do ordenamento, vale dizer, campo

e o horizonte das limitações decorrem objetivamente da racionalidade sistemática do Direito,

logo não se confundem com limites de cunho moral e religioso. Pleno há de ser, por certo, a

9 SANCHES, Patrícia Corrêa. Mudança de nome e da identidade de gênero. In: DIAS, M. B. (Coord.).

Diversidade sexual e Direito Homoafetivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 426-427.

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liberdade de crença e de vivenciar a respectiva religiosidade numa sociedade democrática e

plural; por igual, pleno há de ser, no espaço social regulado pelo Estado democrático, o respeito

à diversidade. Nesse sentido, Anderson Schreiber apresenta uma elucidativa síntese:

O tratamento jurídico reservado ao corpo humano sofreu, ao longo da história,

profunda influência do pensamento religioso. Visto, por muitos séculos, como

uma dádiva divina, o corpo humano era considerado como merecedor de uma

proteção superior aos desígnios individuais. O pensamento moderno rompeu

com essa perspectiva, recolocando gradativamente a integridade corporal no

campo da autonomia do sujeito. Nesse sentido, passou-se a falar em ‘direito

ao próprio corpo’, expressão que procura enfatizar que o corpo deve atender

à realização da própria pessoa, e não aos interesses de qualquer entidade

abstrata, como a Igreja, a família ou o Estado.10

Tal como na discussão do direito ao nome, portanto, o corpo também cumpre

uma função social importante na conformação de uma identidade do sujeito e mesmo de sua

própria felicidade. Incontestável que no mundo contemporâneo há uma supervalorização da

estética, e, por conseguinte, do corpo humano, de modo que constitui elemento relevante na

qualidade de vida dos indivíduos.

Sem embargo da proteção jurídica que deve se destinar ao corpo, é fulcral que

seja garantido ao sujeito a autodeterminação sobre si mesmo, não sendo lícito que a guarida que

se procure dar a esse direito de personalidade configure restrição desmedida e arbitrária da

liberdade de dispor sobre a corporalidade. “A inviolabilidade da pessoa lhe garante o poder de

autodeterminação em relação ao seu corpo e a sua saúde.”11

O direito ao corpo encontra-se positivado no artigo 13 do Código Civil de

2002; ali, se proíbe a disposição sobre o corpo quando importar em diminuição permanente da

integridade física ou contrariar os bons costumes, salvo por exigência médica. A dicção da lei

quando analisada sob exegese literal lógico-dedutiva importaria em se proibir cirurgias de

natureza meramente estética, ou mesmo aplicações de tatuagens ou piercings no corpo humano.

Entende-se que o objetivo do legislador era vedar atos de violência contra o próprio corpo,

sendo outro o campo da liberdade e da autodeterminação oriundas da autonomia corporal.

Atente-se ainda para o relevante vocábulo “bons costumes”, um conceito jurídico

indeterminado que pode servir de ensejo para as mais infundadas restrições.

10

SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. Op. cit., p. 32.

11 CORRÊA, Adriana Espíndola. Consentimento livre e esclarecido: o corpo objeto de relações jurídicas.

Florianópolis: Conceito Editorial, 2010, p. 77.

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No caso que pretende se analisar, ou seja, a transexualidade, o artigo 13

poderia, ser, como já foi, utilizado para barrar a disposição dos transexuais ao seu próprio corpo

e a formação de sua identidade e dignidade, na medida em que se veda(va) a possibilidade de

realização de cirurgia para redesignação de sexo. Atualmente, tendo em vista que a

transexualidade ainda vem sendo considerada no rol de doenças psíquicas, admite-se a cirurgia

sob o argumento da recomendação médica. Se por um lado é interessante que a cirurgia se afaste

do campo da estrita ilegalidade, por outro, tal discurso encontra eco em um tradicionalismo por

tratar uma dissonância entre identidade de gênero e sexo biológico como uma doença. Não se

está a defender que a/o transexual não tenha o devido acompanhamento psicológico e médico,

contudo, soa como um anacronismo histórico assentar que discussões de gênero e sexualidade

ainda sejam tratadas no rol de doenças. Schreiber, mais uma vez, apresenta ideia luminosa sobre

a temática:

Examinando a Resolução CFM 1.955/2010 em conjunto com o artigo 13 do

Código Civil, o leitor poderá facilmente perceber que a cirurgia de mudança

de sexo é lícita no Brasil, desde que um médico ateste o estado patológico do

seu paciente. Com isso, atende-se ao requisito da exigência médica, pois, nas

palavras do Conselho Federal de Medicina, a cirurgia de mudança de sexo

consiste em tratamento idôneo aos casos de transexualismo. O resultado pode

parecer progressista, já que se permite, ao menos nessas circunstâncias, a

realização da cirurgia. A abordagem, contudo, é a mais retrógrada possível. A

opção sexual (sic) vem tratada como doença. E o promissor debate jurídico e

ético em torno da autonomia corporal fica reduzido a uma discussão

supostamente técnica, em que o elemento determinante passa a ser um

atestado médico.12

A autonomia corporal em relação ao desejo do transexual realizar a cirurgia

de redesignação sexual, ou de não realizá-la, será ferida em breve. Por ora, resta frisar que o

direito fundamental ao próprio corpo, assim como todos os direitos, admite restrições atinentes

à própria Constituição. No caso dos transexuais, agressão à dignidade está em não permitir que

o indivíduo modifique seu corpo para se adaptar a sua identidade de gênero. Constitui igual

agressão determinar que o transexual realize a cirurgia de redesignação sexual para que só então

possa ter sua identidade de gênero reconhecida. De todo o modo, impende em preservar o poder

de autodeterminação sobre o próprio corpo em qualquer das situações.

2. Transexualidade; alguns apontamentos relevantes para o tema em desate jurídico

12

SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. Op. cit., p. 44

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Para que se possa adentrar na discussão da mudança de nome e sexo no

registro civil, com ou sem a cirurgia de redesignação sexual, faz-se mister analisar, ainda que

brevemente e de modo não aprofundado, o fenômeno da transexualidade. Aqui serão

descortinados apenas alguns elementos que à guisa de apontamentos preambulares auxiliam no

exame jurídico da matéria.

Antes mesmo de perquirir a transexualidade, contudo, impende realizar uma

sintética definição de alguns conceitos fundamentais na temática dos estudos de gênero e

sexualidade, quais sejam, sexo biológico, gênero, orientação sexual e identidade de gênero.

Sexo biológico pode ser definido como o conjunto de características

fisiológicas, nas quais se encontram as informações cromossômicas, os órgãos genitais e os

caracteres secundários capazes de diferenciar machos e fêmeas. Sexo, portanto, teria essa matriz

biológica. Sem embargo disso, muitos autores questionam essa pré-determinação que o sexo

biológico impõe. Judith Butler questiona o lugar pré-discursivo que se dá ao sexo biológico,

colocando-o como uma verdade imutável e conformadora de um modo de ser e agir13.

Juridicamente, há a determinação legal de designação de um sexo (masculino ou feminino) ao

indivíduo quando de seu nascimento, de modo que tal classificação toma como base apenas o

sexo biológico, por meio da observância da genitália.

O conceito de gênero, por sua vez, visa a suplantar as limitações do sexo

biológico, levando em consideração que não apenas características biológicas e anatômicas

determinam a identidade de cada sujeito. Trata-se de um conceito deveras complexo. O conceito

de gênero é formulado, numa certa perspectiva, a partir de discussões dos movimentos

feministas, justamente para contrapor a noção de sexo biológico. Não se trata de negar

totalmente a biologia dos corpos, mas enfatizar que existe uma construção social e histórica

sobre as características biológicas. Sendo assim, a categoria de homem e a categoria de mulher

se dariam em decorrência de uma construção da realidade social e não meramente de uma

diferenciação anatômica. Interessante analisar a definição da historiadora norte-americana Joan

Scott sobre essa terminologia:

Ademais, o gênero é igualmente utilizado para designar as relações sociais

entre os sexos. O seu uso rejeita explicitamente as explicações biológicas,

como aquelas que encontram um denominador comum para várias formas de

subordinação no fato de que as mulheres têm filhos e que os homens têm uma

13

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2003.

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força muscular superior. O gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as

construções sociais: a criação inteiramente social das ideias sobre os papéis

próprios aos homens e às mulheres. É uma maneira de se referir às origens

exclusivamente sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres.

O gênero é, segundo essa definição, uma categoria social imposta sobre um

corpo sexuado.14

Percebe-se, portanto, que a categoria gênero é muito mais ampla que a ideia

de sexo biológico. Mais uma vez ressalta-se que não se desconsidera os elementos biológicos

do corpo, pelo contrário, tal qual os elementos sociais, culturais, históricos e psicológicos, os

elementos anatômicos também são constitutivos do gênero, mas não há uma decorrência lógica

entre sexo e gênero. Importante fazer menção que as modernas teorias de gênero,

principalmente aquelas ligadas à Teoria Queer15 não restringem o gênero ao binarismo

masculino/feminino, admitindo, dessa forma, um gênero neutro.

Orientação sexual, ao seu turno, pode se referir ao sexo das pessoas que o

sujeito elege para se relacionar afetivamente e sexualmente. Importante frisar que não se trata

de uma opção sexual, visto que o indivíduo não escolhe deliberadamente por qual sexo sentirá

atração afetiva e sexual. Os estudos atuais sobre a temática, portanto, apontam para o inatismo

da orientação sexual, de modo que ela não pode ser “corrigida” socialmente como apontam

irresponsável e preconceituosamente alguns setores da sociedade. Tradicionalmente se

conformam três tipos de orientação sexual, a heterossexualidade, que se trata do desejo afetivo

e sexual por pessoas do sexo oposto, a homossexualidade, que se refere à atração afetiva e

sexual por pessoas do mesmo sexo, e a bissexualidade, que é a atração afetiva e sexual por

pessoas de ambos os sexos. A orientação sexual independe do gênero e da identidade de gênero

do sujeito, conforme se verá a seguir.

14

SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórico. Educação e Realidade, Porto

Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99.

15 A Teoria Queer tem base sociológica no pós-estruturalismo, principalmente a partir das teorizações de

Michel Foucault. A ideia dessa corrente sociológica é desconstruir a classificação dos sujeitos prela aparência de

seus corpos, bem como problematiza comportamentos atribuídos a cada um dos gêneros. A Teoria Queer também

questiona a classificação dos gêneros em apenas masculino ou feminino, defendendo padrões de gênero que não

se enquadram nesse binarismo. “A teoria queer aposta na superação dos binarismos (masculino/feminino,

heterossexual/homossexual) por meio de uma desconstrução crítica, desafiando os conhecimentos que se

constroem os sujeitos como sexuados e marcados pelo gênero, e que assumem a heterossexualidade ou a

homossexualidade como categorias que definiriam a verdade sobre elas.” c.f. GORSDORF, Leandro Franklin.

Direitos LGBT e a identidade do sujeito constitucional: um caminho para além do arco-íris. In: CLÈVE, C. M.

(coord.). Direito Constitucional Brasileiro: teoria da constituição e direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2014, p. 691.

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A identidade de gênero figura como conceito fundamental para compreender

a transexualidade. Trata-se da forma como o sujeito se sente e se apresenta para si e para a

comunidade na condição de homem ou de mulher, ou de ambos, sem que haja uma relação

direta com o sexo biológico. A identidade de gênero, portanto, diz respeito ao gênero com o

qual o sujeito se identifica, retomando a ideia de gênero como uma categoria ampla que vai

além da mera determinação biológica. Dessa forma é então, nessa linha, possível que o sujeito

que tenha nascido com órgãos genitais masculinos se identifique com o gênero masculino, ao

mesmo tempo em que também é totalmente possível que se identifique com o gênero feminino.

Para Judith Butler, identidade de gênero é um processo de se fazer o corpo feminino ou

masculino, de acordo com características que são tidas como diferenças e sobre as quais se

atribuem significados culturais16. Impende ainda notar que a identidade de gênero independe

da orientação sexual, de modo que o sujeito pode ter nascido com órgãos genitais masculinos,

se identificar com o gênero feminino, e apresentar orientação sexual heterossexual,

homossexual ou bissexual. Não há, portanto, qualquer decorrência lógica necessária entre a

identidade de gênero e a orientação sexual.

Compreendidos esses pressupostos teóricos, o entendimento da

transexualidade torna-se mais simples. Transexual, dessa forma, é o sujeito que possui uma

identidade de gênero diferente do sexo designado no nascimento, ou seja, há discrepância entre

os atributos físicos do sexo biológico e a forma como o indivíduo se reconhece em questão de

gênero. Trata-se do sujeito que nasce com genitálias correspondentes ao sexo masculino ou

feminino, mas que se identifica com o gênero oposto. Nas palavras de Paulo Roberto Iotti

Vecchiatti, “transexual é a pessoa na qual há dissociação entre o seu sexo biológico e sua

identidade de gênero (ou seja, entre o seu sexo físico e seu sexo psíquico).”17 A pessoa

transexual pode externar o desejo de passar por cirurgias para adequar seu corpo ao gênero com

a qual se identifica, inclusive buscando a cirurgia de redesignação sexual. Importante ressaltar,

contudo, e conforme se verá adiante, que o transexual pode não desejar a cirurgia de

readequação sexual e isso não significa que não haja dissociação entre seu sexo biológico e sua

identidade de gênero.

O termo “transexualismo” foi evidenciado, ao que se depreende, em 1923 sob

tal perspectiva; registros históricos já demonstravam a ocorrência do fenômeno. A partir da

16

BUTLER, Judith. Op. cit.

17 VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Manual da homoafetividade: da possibilidade jurídica do casamento

civil, da união estável e da adoção por casais homoafetivos. 2 ed. Rio de Janeiro, Forense; São Paulo: Método,

2012, p. 88.

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medicalização da vida e da própria existência social, no século XX especialmente o campo

médico busca uma definição para a transexualidade, no rol de patologias. Essa visão da

transexualidade permanece até hoje no campo médico, a que se comprova pela Resolução nº

1.955/10 do Conselho Federal de Medicina que a define como: “desvio psicológico permanente

de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e/ou

autoextermínio.” Tereza Rodrigues Vieira, por sua vez, aponta para o fato de existirem

correntes que pregam pela despatologização da transexualidade, conforme se observa:

Há uma corrente que prega a não exigência do Diagnóstico psiquiátrico como

condição de acesso ao tratamento, visto que a certeza quanto ao pertencimento

ao gênero oposto, a qual às vezes se expressa pela crença numa identidade

fixa, se repete no cotidiano do atendimento a pacientes transexuais. Porém,

afirmam que a transexualidade não necessariamente fixa uma posição

subjetiva, e destacam a importância de deslocar a manifestação social da

transexualidade da necessidade de traduzi-la imediatamente numa patologia,

numa estrutura ou num modo de funcionamento específico, o que nos

permitiria escapar da sua psiquiatrização. A experiência transexual, neste

sentido, comportaria várias formas singulares de subjetivização. Além disso,

discute-se também que não existe um processo específico de construção das

identidades de gênero nos transexuais, e desta forma não se deve esperar de

transexuais um comportamento fixo, rígido, adequado às normas da

feminilidade ou de masculinidade.18

Parece-nos coerente que a transexualidade também deixe de constar entre o

rol de doenças, por todo o estigma que isso acarreta aos transexuais. Isso não significa dizer

que não se deve destinar todo o apoio psicológico e mesmo médico aos transexuais, no entanto,

busca-se apenas tratar esse fenômeno de gênero de forma mais humanizada, em um âmbito

social, e não exclusivamente patológico.

Em qualquer situação, no entanto, o transexual deve ser tratado com

dignidade e com respeito. Isso significa que deve-se coibir qualquer forma de violência aos

transexuais, seja violência explícita, aqui considerando os altos índices de homicídios contra

pessoas transexuais, em virtude de um preconceito irracional, chamado transfobia, seja

violência simbólica. Neste sentido, é o que deflui quando se nega ao transexual o direito de

mudança de nome e mudança de sexo no Registro Civil. Da mesma forma, estabelecer a cirurgia

de redesignação sexual para que haja a mudança no registro Civil exige uma mutilação para o

reconhecimento de um direito. Esses temas serão versados a seguir.

18 VIEIRA, Tereza Rodrigues. Transexualidadade. In: DIAS, M. B. (Coord.). Diversidade sexual e Direito

Homoafetivo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 413.

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2.1 O direito à mudança de nome e sexo no Registro Civil

Conforme já repassado, o direito ao nome é essencial na instauração da

identidade do sujeito, aqui se observando a identidade como a necessidade de afirmar a própria

individualidade, tendo, pois, o nome um lugar privilegiado em tal função19. Ao lado do nome,

o direito à devida designação sexual também cumpre papel salutar na criação da identidade

própria. Muito embora se compreenda que seria mais adequado falar em identidade de gênero,

considerando que no registro civil consta a palavra “sexo”, utilizar-se-á a nomenclatura oficial,

ainda que em desacordo com a linguagem acadêmica. Conforme se verá, a mudança de nome

sem a mudança de sexo é incompleta, ainda não dirime os constrangimentos pelos quais a

pessoa transexual é exposta, configurando ainda inconteste violência simbólica. Para fins

didáticos, no entanto, tratar-se-á primeiramente da mudança de nome e depois da transição de

sexo.

Retomando: a característica da imutabilidade do nome é relativa, na medida

em que tanto na legislação, quanto na jurisprudência se admite a mudança de nome em casos

específicos. Uma das hipóteses que dá ensejo à mudança do registro civil trata da situação de

prenome que exponha a pessoa ao ridículo, haja vista o parágrafo único do artigo 55 da Lei de

Registros Públicos (Lei nº 6.015/73). Infraconstitucionalmente é justamente nesse ponto que se

ampara a possibilidade de mudança de nome de pessoas transexuais. O fato é que o nome,

mesmo que adequado à identidade de gênero que ele representa, torna-se vexatório quando

atribuído a uma identidade de gênero diversa daquela que busca indicar. Tal situação gera

inquestionável constrangimento à pessoa transexual, que é obrigada a tornar evidente o

descompasso entre sua identidade de gênero e seu sexo biológico. “Além do mais,

apresentando-se a pessoa que se submeteu à cirurgia para redesignação sexual com

características físicas femininas, obrigá-la a se identificar com documentos que contêm um

prenome masculino é exposição certa ao ridículo e a execração pública, como há muito vem

acontecendo.”20

19 DE CUPIS, Adriano. Os direitos da personalidade. Tradução de Adriano Vera Jardim e Antonio Miguel

Caeiro. Lisboa: Moraes, 1961.

20 LUZ, Antônio Fernandes da. Transexualismo: o direito ao nome e ao sexo. In: Bastos, E. F; Sousa, A. H.

(Coord.). Família e Jurisdição. Belo Horizonte: Del Rey, 2005.

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Para além das justificativas infraconstitucionais que ensejam a alteração de

nome para transexuais, a fundamentação encontra eco na Constituição, sobretudo, por meio dos

princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. Em verdade, a dignidade da

pessoa em muito está atrelada com a configuração de sua própria identidade. Uma vida digna,

portanto, pressupõe o autorreconhecimento e o reconhecimento da comunidade em consonância

com o reconhecimento de si mesmo. Impende notar, conforme aponta o Carlos Eduardo

Pianovski Ruzyk, que a dignidade da pessoa humana não se vincula ao “fundamento de uma

expressão abstrata, pautada no racionalismo, mas na realidade de sua intersubjetividade, como

ente que não prescinde da alteridade, encontrando nesta o lugar privilegiado em que a dignidade

da pessoa humana pode adquirir seu conteúdo.”21 Eis que daí surge a ligação com o princípio

da solidariedade constitucional, que se funda na ideia de alteridade. A solidariedade se engendra

na ideia de sociedade, vez que pressupõe a existência do outro, tendo em vista seu embasamento

na alteridade. O princípio da solidariedade constitucional, portanto, se configura como essencial

ao bem-estar social e se faz imprescindível na proteção de minorias e grupos vulneráveis. Pois

bem, garantir o direito ao nome à pessoa transexual é dar efetividade a esse princípio, na medida

em que garante ao transexual uma maior possibilidade de bem-estar e proteção, de que tanto

necessitam.

Dar a possibilidade ao transexual de modificar o nome (rectius: prenome),

portanto, configura elemento fundamental para assegurar sua dignidade e sua identidade.

Antônio Fernandes da Luz desenvolve bem essa relação, prontamente inserindo a

essencialidade de mudança de sexo que será explorado adiante:

O pedido de alteração do nome e do sexo no assentamento do registro civil,

formulado por aquela pessoa que se submeteu a cirurgia para a redesignação

sexual, tem por objeto o direito de expor o seu novo estado, sob pena de ver o

seu direito de personalidade violado, fato este que constitui mais uma

condenação à clandestinidade. (...) Portanto, a alteração do sexo e do nome

encontra fundamento na própria Constituição Federal e na legislação

infraconstitucional, e a sua não permissão constitui flagrante violação aos

direitos de personalidade da pessoa que se submeteu à cirurgia para

redesignação sexual que, aliás, há muito vem sofrendo constrangimentos e

agressões no meio social em que vive e por parte de agentes públicos. 22

21

PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Dignidade da pessoa humana. In: CLÈVE, C. M. (coord.).

Direito Constitucional Brasileiro: teoria da constituição e direitos fundamentais. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2014, p. 171.

22 LUZ, Antônio Fernandes da. Op. cit.

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Ao lado da transformação de nome, a mudança da identidade de gênero, ou,

vulgarmente, sexo, também se faz essencial na construção da identidade do sujeito e na garantia

de sua dignidade e qualidade de vida. Tal qual o direito de mudança de nome, a mutação de

sexo também encontra respaldo nos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana

e da solidariedade social. Da mesma forma que configuraria imenso constrangimento a

constância de nome diverso da identidade de gênero que o sujeito proclama, a mudança de nome

sem a substituição do sexo em si também traduz compressão contra o transexual, que continuará

sendo estigmatizado e discriminado no âmbito social. Anderson Schreiber é judicioso em sua

análise:

A função do registro civil é dar segurança à vida em sociedade. Um registro

civil que atribua a uma pessoa um sexo que ela não ostenta na vida social é

um registro falso, errado, que exige retificação. Tal qual o nome, o sexo deve

ser visto não como um estado registral imutável ou como uma verdade

superior ao seu titular, mas como um espaço essencial de realização da pessoa

humana. Já se viu que o direito contemporâneo vem se abrindo a uma certa

autonomia da pessoa na alteração do seu nome, sempre que não haja risco a

um interesse coletivo (como no caso do devedor contumaz ou do suspeito de

investigação criminal, que pretende dificultar sua identificação). A mesma

abordagem deve ser reservada ao sexo, para reconhecê-lo como uma esfera de

livre atuação e desenvolvimento da pessoa. A ciência caminha nesse sentido

e aqui convém que o direito não fique para trás.23

Reconhecer o direito a mudança do sexo no registro civil, portanto, coloca o

direito em consonância com as modernas teorias sociais de gênero, que não se subsumem

apenas a um normativismo proveniente da anatomia, todavia considera os elementos sociais,

culturais e históricos da definição de gênero, e, acima de tudo, apontam uma função social para

o gênero, qual seja, a garantia da felicidade e qualidade de vida do indivíduo. Há que se frisar,

dessa forma, que não cabe ao Estado ou mesmo à sociedade fazer ponderação sobre a

possibilidade de mudança de nome e sexo dos transexuais. Sendo um direito deve apenas ser

reconhecido e declarado. Isso não significa dizer que não se deva prestar toda a assistência

necessária aos transexuais, e mesmo que se deva obstar as discussões jurídicas e sociológicas

sobre o fenômeno, no entanto, em se tratando de direitos fundamentais, nada disso deve

significar barreira ao seu livre exercício.

Conveniente realçar que a alteração do registro civil depende de sentença que

a consume, e a jurisprudência vem se pacificando no sentido de reconhecer o direito à mudança

do nome e do sexo. Nada obstante isso, veja-se:

23

SCHREIBER, Anderson. Op. cit., p. 208.

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RETIFICAÇÃO NO REGISTRO CIVIL. MUDANÇA DE NOME E DE

SEXO. IMPOSSIBILIDADE. SENTENÇA MANTIDA. O homem que

almeja transmudar-se em mulher, submetendo-se a cirurgia plástica

reparadora, extirpando os órgãos genitais, adquire uma ‘genitália’ com

similitude externa ao órgão feminino, não faz jus à retificação de nome e de

sexo porque não é a medicina que decide o sexo e sim a natureza. Se o

requerente ostenta aparência feminina, incompatível com a sua condição de

homem, haverá de assumir as consequências, porque a opção foi dele. O

Judiciário, ainda que em procedimento de jurisdição voluntária, não pode

acolher tal pretensão, eis que a extração do pênis e a abertura de uma cavidade

similar a uma neovagina não tem o condão de fazer do homem, mulher. Quem

nasce homem ou mulher, morre como nasceu. Genitália similar não é

autêntica. Autêntico é o homem ser do sexo masculino e a mulher do feminino,

a toda evidência. (TJRJ, Ap. Cível 1993.001.06617, Rel. Des. Geraldo Batista,

DJ 18/03/1997)

Observam-se aí argumentos de caráter eminentemente naturalístico e sem

observância à realidade social; anote-se que se trata de julgado anoso do Tribunal de Justiça do

Rio de Janeiro, nada obstante ainda haja, em todo o Brasil, argumentos dessa monta; também

há julgados que caminham no sentido de indeferir o pedido de alteração do sexo no registro

civil:

RETIFICACAO NO REGISTRO CIVIL - CONVERSÃO DE SEXO

MASCULINO PARA O FEMININO - INADMISSIBILIDADE

TRANSEXUALISMO - CIRURGIA PARA MUDANCA DE SEXO -

PROCRIACAO - IMPOSSIBILIDADE - ESTADO CIVIL - CAPACIDADE

- CASAMENTO - REQUISITOS DIFERENCA DESEXO - AUSENCIA LEI

DE REGISTROS PUBLICOS - VEDACAO. APELACAO PROVIDA. Ação

que visa retificação no registro civil e conversão de sexo masculino para o

feminino. Mesmo tendo o apelado se submetido à cirurgia de mudança de

sexo o pedido de retificação no assento de nascimento não pode prosperar -

Caracteriza-se o transexualismo quando os genitais afiguram-se como de

um sexo, mas a personalidade atende a outro - Porém os transexuais, mesmo

após a intervenção cirúrgica não se enquadram perfeitamente neste ou

naquele sexo, acarretando-se problemas graves com tal intervenção. Não se

constitui, ademais o apelado como sendo do sexo feminino uma vez que ha

impossibilidade de procriação porquanto não possui o mesmo os órgãos

internos femininos. Ao se deferir o pedido do apelado estar-se-ia outorgando

a este uma capacidade que efetivamente não possui. Por outro lado ao

permitir-se a retificação do nome e sexo do apelado em possível casamento

que venha a se realizar estaria contrariando frontalmente o ordenamento

jurídico vigente, ademais estaria ausente um dos requisitos para o casamento,

qual seja a diferença de sexos. A Lei de Registros Públicos veda a alteração

pretendida, tutelando interesses de ordem pública. (TJPR, AC 300198 PR

Apelação Cível - 0030019-8, DES. REL. Osíris Fontoura, DJ 08/11/1994).

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Para além de uma matriz biologicista, o julgado leva em consideração para

sua definição de sexo feminino a capacidade de procriação. Atualmente o prognóstico assim

vem:

APELAÇÃO CÍVEL - REGISTRO CIVIL -

ALTERAÇÃO NOME E SEXO - AVERBAÇÃO Á MARGEM DO

REGISTRO: OBRIGATÓRIA - CERTIDÃO DE REGISTRO DE

NASCIMENTO: RESUMO DAS INFORMAÇÕES CONSTANTES NO

REGISTRO. 1. As alterações no nome e sexo do registrado devem ser

averbadas à margem do registro civil, em decorrência da Lei no 6.015 /1973,

não podendo haver omissões. 2. A certidão de nascimento é um resumo das

informações contidas no registro. 3. Para evitar constrangimentos ao

registrado, que alterou nome e sexo, nas certidões a serem expedidas deve

constar apenas que há averbações realizadas em virtude de decisão judicial,

sem menção à natureza ou conteúdo delas. (TJMG, AC 10024082645136001

MG, DES. REL Oliveira Firmo, DJ 21/05/2013)

APELAÇÃO CÍVEL - RETIFICAÇÃO DE ASSENTO DE REGISTRO

CIVIL - MUDANÇA DE NOME E SEXO - TRANSEXUAL -

POSSIBILIDADE - REALIZAÇÃO DE CIRURGIA ABLATIVA DANDO

CONFORMIDADE DO ESTADO PSICOLÓGICO AO

NOVO SEXO COMO MEIO CURATIVO DE DOENÇA

DIAGNOSTICADA - APLICAÇÃO DO PRINCÍCIO DA DIGNIDADE DA

PESSOA HUMANA E DA IDENTIDADA SEXUAL - RELEITURA DA

LEI DE REGISTROS PUBLICOS AO MANDAMENTO

CONSTITUCIONAL - MUTABILIDADE DO NOME - ALTERAÇÃO

PARA CONSTAR ALCUNHA - POSSIBILIDADE - PROTEÇÃO

ALBERGADA PELO NOVO CÓDIGO CIVIL - APELO PROVIDO. "A

mudança de nome, em razão da realização de cirurgia de transgenitalização,

adequando o estado psicológico ao seu novo sexo, no caso de transexuais, é

possível pelo ordenamento jurídico pátrio, como corolário interpretativo a

partir do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e do respeito

à identidade sexual do indivíduo, trazendo com isso, releitura hodierna aos

dispositivos normativos insertos na Lei de Registros Públicos , evitando a

exposição dos mesmos à situações de chacota social diante da

desconformidade entre seus documentos pessoais e a nova condição

morfológico-social. (TJPR, AC 3509695 PR 0350969-5, Des. Rel. Rafael

Augusto Cassetari, DJ 04/07/2007)

Muitos outros julgados poderiam constar neste trabalho, no entanto, os ambos

acima já dão conta de demonstrar a mudança de tônica da jurisprudência no sentido de

reconhecer o direito das pessoas transexuais de alterarem nome e sexo em seus registros. Esse

compreensão é tributária de uma aplicação constitucionalizada do direito, na medida em que

garante efetividade a princípios constitucionais como o da dignidade da pessoa humana.

Também há de se levar em conta que cada vez mais, ainda que tardiamente, o direito tem se

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aberto às contribuições das demais ciências sociais, ampliando seu rol de intérpretes, como

defende Peter Häberle. Faz-se mister abandonar noções de completude e infalibilidade do

direito, ultrapassando de vez a visão kelseniana (aquela do normativismo positivista), para

atentar ao fato de que o direito positivado, por si só, merece hermenêutica atualizadora capaz

de dar justas soluções aos meandros da vida. Os desafios, contudo, ainda são muitos, como se

analisará a seguir.

2.2. O direito a mudança de nome e sexo sem a cirurgia de redesignação sexual

O direito ao próprio corpo deve ser tomado em uma ampla acepção, de modo

que envolve tanto ações quanto omissões, ou melhor dizendo, trata-se de poder fazer ou deixar

de fazer algo com o próprio corpo, sem que haja qualquer punição pela escolha deliberada.

Conforme já referido, o gênero exerce um lugar social notabilíssimo que está

acoplado a busca por uma vida de qualidade e a instituição de uma identidade própria. Ademais,

consoante aqui se adotou na linha da presente exposição, sem descurar de pontos de vista

distintos, gênero e sexo biológico são conceitos diversos, de modo que, muito embora a criação

de uma identidade de gênero leve em conta o fator biológico este não é causa determinante para

a compreensão do próprio gênero. Dessa forma, é totalmente compreensível que uma pessoa

transexual queira manter seu órgão biológico, tendo em vista não ser decisivo para a

configuração de sua identidade de gênero. Há também que se considerar que a manutenção da

genitália pode ser fator essencial para a qualidade de vida do transexual.

Pelo exposto, configura-se como infração ao direito ao próprio corpo que se

exija da pessoa transexual a cirurgia de redesignação sexual, para que só então tenha direito à

mudança de nome e sexo em seu registro civil. De fato, ordenar a outrem a mutilação do próprio

corpo, o uso de medicamentos necessários para que se reconheça um direito apresenta-se como

constrangimento. Nesta senda, salutares são as ponderações de Patrícia Corrêa Sanches:

Mas será que se faz necessária a mudança no corpo de uma pessoa a ensejar a

mudança do sexo? Atualmente delineia-se o gênero sexual por sua função

social, mais como um fenótipo comportamental do que o aspecto da genitália.

Assim o indivíduo teria deferido o pedido de mudança do gênero sexual desde

que demonstrasse que possui o sexo que socialmente representa, invertido

daquele fisicamente suportado. A temática aqui discutida tem por objetivo

pautar as discussões sobre a mudança de sexo, principalmente no tocante à

função social da determinação do gênero sexual na sociedade, demonstrando

assim que, para sua alteração, não há necessidade de uma intervenção

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cirúrgica de modificação das características físicas, estas sim restritas a um

ambiente de privacidade.24

Compete atinar que a cirurgia de redesignação sexual, como toda e qualquer

cirurgia, apresenta inegáveis riscos aos indivíduos, além de, por si só, ser uma cirurgia

demasiadamente agressiva e invasiva. Nos dizeres de Patrícia Sanches, “a cirurgia de mudança

de sexo, tecnicamente denominada de transgenitalização, demonstra-se absolutamente

agressiva, além de irreversível.”25 Não parece adequado, dentro do ponto de vista constitucional

da dignidade da pessoa humana, tornar a cirurgia condição sine qua non para a mudança de

nome e sexo, pois, se assim fosse, de algum modo o sujeito sofreria uma violação a um direito.

Se não aceitar realizar a cirurgia terá seu direito ao nome e identidade negados, se fizer a

cirurgia para que então possa ter reconhecido seu direito ao nome e sexo, terá seu direito ao

corpo agredido. Uma análise sistemática da Constituição de 1988 dá conta de demonstrar que

esse escambo entre direitos não parece ser a tônica que o constituinte pretendeu dar a lei

fundamental. A Constituição de 1988 surgiu como uma luz ao final de um sombrio túnel; sua

essência está na garantia de todos os direitos previstos em seu texto, de modo que se faz

inadmissível impor a uma parcela da sociedade que tenham que fazer uma opção entre direitos

fundamentais.

Note-se ainda que, em algumas situações, para além da autonomia privada do

indivíduo, que por si só já seria suficiente para garantir a possibilidade de mudança de nome e

sexo sem a cirurgia de transgenitalização, há outros empecilhos. Não é fato raro que as pessoas

se reconheçam como transexuais após idade mais avançada. Nesses casos não é incomum que

a cirurgia de redesignação sexual seja desaconselhada por médicos, haja vista a probabilidade

de complicação. Em situação como essa estaria o sujeito fadado ao constrangimento público,

sem nunca poder alterar nome e sexo sem seu registro civil? Por certo que se trataria de solução

deveras cruel e desproporcional. Não pode o indivíduo ser penalizado por não querer se

submeter aos riscos que a operação pode trazer. Argumentos poderiam destacar que se trata de

um ônus da escolha do sujeito, no entanto, como bem se sabe, a transexualidade não é uma

escolha pessoal, diversos são os fatores que produzem no indivíduo uma identidade de gênero

diversa do sexo biológico. Em todo caso, não há que se arrazoar em ônus quando, vez que o

direito fundamental à identidade do sujeito pode, sem qualquer problema, ser assegurado.

24

SANCHES, Patrícia Corrêa. Op. cit.

25 Idem.

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Outra situação que merece análise é o fato de que, por todo preconceito

existente na sociedade, as pessoas transexuais são discriminadas, excluídas, jogadas ao degredo.

De acordo com índices divulgados e conhecidos, a evasão escolar entre transexuais beira aos

73%. Inúmeras são as causas, desde o preconceito dos demais colegas, pais e professores, até

mesmo da instituição que não assegura o nome social, por exemplo. De toda sorte, fato é que

número expressivo da população de transexuais no Brasil encontra-se em vulnerabilidade

social. Muito embora o SUS realize as cirurgias de transgenitalização, a realidade da saúde

pública brasileira ainda é bastante conhecida. Nesse contexto, poucas são as pessoas transexuais

capazes de arcar economicamente com a cirurgia em instituições de saúde privadas. Não faz

qualquer sentido que em todo esse período de aguardo o transexual seja obrigado a permanecer

com um registro que não o representa. Não se pode admitir um critério censitário para o

reconhecimento de um direito.

Fica evidente, portanto, que a exigência da cirurgia de redesignação sexual

vai de encontra à eleição da pessoa transexual, de modo que cabe exclusivamente a ela,

compreendendo todas as suas implicações, realizá-la ou não. Impor um pré-requisito a um

direito fundamental mutila, em nosso ver, a própria definição de direitos fundamentais e direitos

de personalidade, que se baseiam na ideia de inerência ao ser humano. Uma vez se tratando de

direitos inerentes ao sujeito, impor condições se transmuta em genuíno autoritarismo, contra

sujeitos que tem a prerrogativa de viverem a vida exercendo suas potencialidades e suas

liberdades: é o que o direito deve garantir.

Há julgados na direção do reconhecimento de mudança de nome e sexo após

a cirurgia de transgenitalização. A jurisprudência nessa temática, sem embargo, se encontra

segmentada; colhe-se em Sérgio Carrara reflexão importante sobre a atuação jurisdicional:

A justiça também tem concedido, em muitos casos de cirurgia, o direito de

mudança de nome e redesignação do sexo em documento de identidade, mas

a decisão ainda depende do arbítrio dos juízes. O fato de a mudança

documental depender na maioria dos casos da realização da cirurgia de

transgenitalização tanto consagra a distância entre os diferentes saberes

autorizados (médicos, psicológicos e operadores do direito) e as experiências

concretas dos sujeitos sociais, quanto marca, sob a justificativa de sanar a

inadequação entre sexo e gênero, a reinstauração de um perverso binarismo.

Àqueles que não conseguem ou não desejam a operação, como é o caso de

muitas travestis, é em geral negado um direito fundamental intrinsecamente

relacionado à sua identidade.26

26

CARRARA, Sérgio. Políticas e direitos sexuais no Brasil contemporâneo. Revista Bagoas: revista de

estudos gays. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, n. 5, Natal: UFRN, 2010, p. 137.

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Observe-se agora os julgados que caminham no entendimento da

impossibilidade de mudança de sexo sem a realização da cirurgia de redesignação sexual:

RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL - Pedido de alteração

de nome e sexo- Possibilidade apenas em relação ao nome - Pessoa que apesar

de não submetida à cirurgia de transgenitalização, se apresenta na sociedade

como do sexo feminino -Nome masculino que lhe acarreta constrangimentos

e aborrecimentos - Admitida a alteração do nome, negada a alteração para

constar ser do sexo oposto - Observância do princípio de veracidade do

registro público - Recurso parcialmente provido. (TJSP, APL

320109120108260602 SP 0032010-91.2010.8.26.0602, Des. Rel. Mendes

Pereira, DJ 28/11/2012)

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL.

SENTENÇA QUE EXTINGUIU O FEITO SEM RESOLUÇÃO DO

MÉRITO POR FALTA DE INTERESSE DE AGIR. INTERESSADO QUE

AINDA NÃO REALIZOU A CIRURGIA DE NEOVAGINOPLASTIA.

IMPOSSIBILIDADE. CARÊNCIA DE AÇÃO. SENTENÇA QUE DEVE

SER MANTIDA. O Apelante pleiteia alteração do nome e de sexo no registro

civil, afirmando que desde tenra idade, apesar da conformação genital

masculina, psicologicamente se sente mulher, fazendo-se tornar conhecido

pelo prenome de Milena. Todavia, o recorrente ainda não se submeteu à

cirurgia de mudança de sexo, o que não permite alteração do nome e

do sexo em seu registro civil. Precedentes jurisprudenciais. SENTENÇA

MANTIDA. Recurso NÃO provido. (TJBA, APL 03683226420128050001

BA 0368322-64.2012.8.05.0001, Des. Rel. José Olegário Monção Caldas, DJ

15/10/2013)

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RETIFICAÇÃO DE REGISTRO DE

NASCIMENTO QUANTO AO NOME E SEXO DO AUTOR.

TRANSEXUALISMO. AUSÊNCIA DE CIRURGIA DE REDESIGNAÇÃO

SEXUAL. INVIABILIDADE DA ALTERAÇÃO DO REGISTRO, UMA

VEZ NÃO PREVISTA CIRURGIA PARA MUDANÇA DE SEXO, NEM

MESMO PROVA ROBUSTA ACERCA DA ABRANGÊNCIA DO

TRANSTORNO SEXUAL. APELAÇÃO DESPROVIDA. (TJRS, Apelação

Cível Nº 70056132376, Sétima Câmara Cível, Relator: Jorge Luís Dall'Agnol,

Julgado em 13/11/2013)

Os julgados acima sucintamente referidos demonstram, no conteúdo que

explicita a ementa, que o Poder Judiciário ainda reluta em reconhecer o direito dos transexuais

de mudarem nome e sexo em seus registros, sem a realização da operação. Cumpre respeitar o

posicionamento, mas parece-nos, salvo melhor juízo, que tal bússola limita o exercício de um

direito fundamental; julgados há, contudo, que não se eclipsaram diante dessa necessidade:

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APELAÇÃO CÍVEL. RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL.

TRANSGENÊRO.MUDANÇA DE NOME E DE SEXO. AUSÊNCIA DE

CIRURGIA DE TRANGENITALIZAÇÃO. Constatada e provada a condição

de transgênero da autora, é dispensável a cirurgia de transgenitalização para

efeitos de alteração de seu nome e designativo de gênero no seu registro civil

de nascimento. A condição de transgênero, por si só, já evidencia que a pessoa

não se enquadra no gênero de nascimento, sendo de rigor, que a sua real

condição seja descrita em seu registro civil, tal como ela se apresenta

socialmente DERAM PROVIMENTO. UNÂNIME. (Apelação Cível Nº

70057414971, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rui

Portanova, Julgado em 05/06/2014)

RETIFICAÇÃO DE ASSENTO DE NASCIMENTO. ALTERAÇÃO

DO NOME E DO SEXO. TRANSEXUAL. INTERESSADO NÃO

SUBMETIDO À CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. PRINCÍPIO

CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.

CONDIÇÕES DA AÇÃO. PRESENÇA. INSTRUÇÃO PROBATÓRIA.

AUSÊNCIA. SENTENÇA CASSADA. O reconhecimento judicial do direito

dos transexuais à alteração de seu prenome conforme o sentimento que eles

têm de si mesmos, ainda que não tenham se submetido à cirurgia de

transgenitalização, é medida que se revela em consonância com o princípio

constitucional da dignidade da pessoa humana. Presentes as condições da ação

e afigurando-se indispensável o regular processamento do feito, com instrução

probatória exauriente, para a correta solução da presente controvérsia, impõe-

se a cassação da sentença. (TJMG, AC 10521130104792001 MG, Des. Rel.

Edilson Fernandes, DJ 07/05/2014)

Os entendimentos acima expostos demonstram uma tendência no Judiciário

brasileiro. Decisões que levam em conta as peculiaridades do caso concreto, as informações

advindas das demais ciências e a uma interpretação constitucionalizada do direito se mostram

essenciais para a construção de uma boa cultura judiciária no país, com justiça e segurança.

Passemos nessa toada aos termos da ADI que iremos, então, expor e examinar

quantum satis.

3. Ação Direita de Inconstitucionalidade 4275

Em julho de 2009, o Ministério Público Federal, por meio da Procuradoria

Geral da República, em peça firmada pela Doutora Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira,

ingressou com Ação Direta de Inconstitucionalidade no STF buscando dar ao artigo 58 da Lei

nº 6.015/73 interpretação conforme a Constituição, de modo a reconhecer aos transexuais,

independentemente da cirurgia de transgenitalização, o direito a substituição do prenome e sexo

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no registro civil. A ADI, ao tempo da feitura deste tempo, em agosto de 2014, aguarda

julgamento.

A petição inicial da referida ADI apresenta os pressupostos teóricos da

discussão, conceitos essenciais tais quais os tratados neste trabalho, bem como analisa os

pressupostos jurídicos que dão ensejo ao pedido, nomeadamente, o princípio fundamental da

dignidade da pessoa humana. Trata da ADI da essencialidade da mudança de nome e sexo, de

modo que não basta apenas mudar o nome e manter o sexo biológico, pois a situação de

constrangimento se manteria, conforme se observa no seguinte trecho:

De resto, se a alteração de nome corresponde a uma mudança de gênero, a

consequência lógica, em seu sentido filosófico mesmo, é a alteração do sexo

no registro civil. Do contrário preserva-se a incongruência entre a identidade

da pessoa e os dados do registro civil.

Segue a petição inicial defendendo o direito das pessoas transexuais à cirurgia

de transgenitalização e de modo conexo, também defende a possibilidade de alteração de

prenome e sexo sem a realização da referida cirurgia. Ponto que se apoia no seguinte trecho:

(...) Não é a cirurgia que concede ao indivíduo a condição transexual. Portanto,

o direito fundamental à identidade de gênero justifica igualmente o direito à

troca de prenome, independentemente da realização da cirurgia, sempre que o

gênero reivindicado (masculino ou feminino) não esteja apoiado no sexo

biológico respectivo.

Trata-se ali de uma chance de autodeterminação. Ao fim da petição inicial

apresentam-se requisitos, tal qual propõe a jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal

Alemão, a serem fixados no caso de não realização da cirurgia. São eles: a maioridade civil, a

convicção do transexual, há pelo menos três anos, de pertencer ao gênero oposto ao biológico,

a presunção, com alta probabilidade, de não mais modificação de gênero, requisitos a serem

atestados por um grupo de especialistas que avaliarão aspectos médicos, psicológicos e sociais.

Muito embora se subscreva aqui a necessidade de despatologização da

transexualidade e a possibilidade cada vez maior de autodeterminação dos transexuais, os

critérios elencados pelo MPF desempenham papel de relevo na destinação de assistência médica

e psicológica à pessoa transexual, na proteção e promoção dos direitos das pessoas transexuais,

e não sirvam de arbítrio para maior sofrimento dos transexuais.

4. Conclusões

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O exposto no presente trabalho requer, antes de tudo, pedir vênia à exposição

sucinta diante de questões tão sensíveis e de impacto na dogmática jurídica do Direito Civil

contemporâneo. Além disso, permite, ainda assim, concluir que a dignidade das pessoas

transexuais passa por sua capacidade de autodeterminação e pela possibilidade de criação de

uma identidade própria. Para tanto, é necessário que haja reconhecimento de direitos

fundamentais de personalidade, quais sejam, o direito ao nome e o direito ao próprio corpo.

O reconhecimento do direito a mudança de nome e sexo por parte dos

transexuais é demanda que deve alcançar proteção. Não cabe ao Estado optar pela realização

da cirurgia de redesignação sexual ou não.

Segundo considerado ao longo deste estudo e trabalho modestos, conceitos

de identidade de gênero e sexo biológico se diferem, nada obstante este possa ser elemento de

construção daquele. A relação do sujeito com seu próprio corpo é elemento fundamental da

intimidade, não cabendo maiores questionamentos, mas sim o devido respeito. O transexual

pode se realizar mantendo o órgão genital biológico ou retirando. Em qualquer situação,

contudo, deve lhe ser assegurado o direito à felicidade e a realização própria. Para tanto, é

necessário tanto uma atividade institucional, no sentido de garantir os direitos a essa parcela da

situação, quanto uma atividade social e comunitária no sentido de integrar essa parcela e lhes

tratar com o devido respeito, sem preconceitos infundados. O caminho ainda é longo.

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DIREITOS E CONFLITOS DE VIZINHANÇA

Law and neighborhood conflicts

Paulo Lôbo Professor Visitante no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPE.

Professor Emérito da UFAL. Doutor em Direito Civil (USP). Advogado.

Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil.

Resumo: Estudo da ordenação jurídica brasileira dos direitos de vizinhança, sob a ótica

preferencial do direito civil contemporâneo. Apreciação das mútuas interferências com o

direito público, principalmente o direito urbanístico e o direito ambiental. Deveres de

vizinhança, interesse coletivo e a função social da propriedade e da posse.

Palavras-chaves: direitos de vizinhança; vizinhança; direito de construir

Abstract: Study of the Brazilian legal ordering of neighborhood rights under the

preferred viewpoint of contemporary civil law. Consideration of the interference with the

public law, especially the urban law and environmental law. Neighborhood duties,

collective interest and the social function of property and possession.

Keywords: neighborhood rights; neighborhood; right to build

Sumário: 1. Conteúdo e abrangência - 2. Uso anormal da propriedade - 3. Árvores

limítrofes - 4. Passagem forçada - 5. Passagem de cabos e tubulações - 7. Limites entre

prédios e direito de cercar ou murar - 8. Direito de construir.

1. Conteúdo e abrangência

Os direitos de vizinhança compreendem o conjunto de normas de

convivência entre os titulares de direito de propriedade ou de posse de imóveis localizados

próximos uns aos outros. Para efeitos legais, vizinhos não são necessariamente os

contíguos, mas todos os que possam ser afetados pelo uso do imóvel. As normas de

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regência dos direitos de vizinhança são preferentemente cogentes, porque os conflitos

nessa matéria tendem ao litígio e ao aguçamento de ânimos. Na dimensão positiva,

vizinhos são os devem viver harmonicamente no mesmo espaço, respeitando

reciprocamente os direitos e os deveres comuns. Vizinhos são não apenas os que estão ao

lado, mas os que habitam imóveis acima ou abaixo, daí porque as normas dos direitos de

vizinhança aplicam-se conjugadamente com as do condomínio edilício.

Para o direito brasileiro, os direitos de vizinhança são autônomos e

concebidos como limitações ao direito de propriedade. Algumas legislações inserem os

conflitos de vizinhança nas servidões legais, como direito real de servidão. Os direitos de

vizinhança constituem as mais antigas limitações ao direito de propriedade individual, no

mundo luso-brasileiro. As limitações são de natureza majoritariamente negativa e

preventiva. Mas há, igualmente, limitações positivas, das quais emergem deveres

positivos aos que se qualificam juridicamente como vizinhos.

As situações em que se classificam os direitos de vizinhança são as mais

comuns na vida social, a merecerem maior atenção do legislador. Segundo Pontes de

Miranda1, a técnica legislativa, a esse respeito, representa a elaboração de alguns séculos,

na qual muito se deve aos costumes. Para Orlando Gomes2, o critério regulador das

relações de vizinhança é dado por três teorias principais: (1) a da proibição dos atos de

emulação (utilidade ou inutilidade do ato do proprietário); (2) a do uso normal da coisa

própria; (3) a do uso necessário (os atos do proprietário são lícitos, se motivados pela

necessidade). O Código Civil de 2002 perfilhou a teoria do uso normal da coisa própria,

preconizada por Ihering, que procura estabelecer a linha demarcatória entre as

interferências lícitas e ilícitas, com apoio na ideia de que o exercício do direito de

propriedade não deve exceder as necessidades normais da vida cotidiana.

O Código Civil reformulou os tópicos cuja disciplina anterior era

considerada insuficiente, pela doutrina. Destacam-se as alterações e inovações relativas

ao uso anormal da propriedade, à passagem forçada, à passagem de cabos e tubulações,

às águas e ao direito de construir, que procuraram resolver demandas contemporâneas.

Os direitos de vizinhança atêm-se às relações jurídicas intersubjetivas

que emergem da convivência em determinado espaço territorial. Paralelamente, incidem

1 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2012, v. 13, p. 449.

2 GOMES, Orlando. Direitos reais. Revista, atualizada e aumentada por Luiz Edson Fachin. Rio de

Janeiro: Forense, 2004, p. 221.

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as normas de direito administrativo, notadamente as de caráter urbanístico, emanadas do

legislador federal (Estatuto das Cidades, Lei nº 10.257, de 2001) e do legislador

municipal, relativamente às edificações e aos limites de tolerância entre vizinhos. São

igualmente incidentes as normas de direito ambiental. Os limites ao uso dos imóveis,

entre vizinhos, são tanto de direito privado, onde recebem a denominação de direitos de

vizinhança, quanto de direito público. Há outras normas de direito privado correlatas que

regulam a convivência entre vizinhos, em determinadas circunstâncias, como a Lei do

Parcelamento do Solo Urbano (Lei nº 6.766, de 1979), a Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245,

de 1991) e as normas do Código Civil sobre condomínio edilício.

Quando em conflito, os interesses coletivos prevalecem sobre os

interesses particulares. De acordo com San Tiago Dantas3, há casos em que os conflitos

entre vizinhos se compõem pela atribuição de um dever e de um direito fundados no

princípio da coexistência. Há outros em que se compõem pela atribuição de um dever e

um direito fundados no princípio da supremacia do interesse público. Os direitos de

vizinhança, relacionados ao primeiro princípio, são gratuitos, e os ônus do proprietário

são encargos ordinários da propriedade. Os relacionados ao segundo princípio são

onerosos e quem o suporta tem direito de ser indenizado.

2. Uso anormal da propriedade

O uso anormal da propriedade, ou da posse, é o que colide com os

padrões comuns de conduta, adotado na comunidade onde ela se insere, ou com as normas

legais cogentes. O parâmetro a ser observado nessa matéria é o da razoabilidade, ou da

conduta razoável. Conduta normal ou razoável é a que corresponde ao tipo médio de uso

do imóvel, de acordo com o consenso da comunidade (cidade, bairro, vila, rua), que

permite convivência harmônica, sem prejuízos ou incômodos evitáveis para o outro ou os

outros. O conceito é indeterminado, a reclamar a análise de cada caso, mas segundo os

parâmetros de razoabilidade. No regime da propriedade privada, o seu titular é

3 DANTAS, F. C. de San Tiago. O conflito de vizinhança e sua composição. Rio de Janeiro: Forense,

1972, p. 264.

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responsável pelas atividades de seu direito e pelos atos que se propagam para outros

objetos de apropriação4.

As expressões utilizadas na legislação anterior de “uso nocivo” e,

principalmente, “mau uso” revelaram-se inadequadas, porque restritivas, tendendo-se ao

abuso do direito da propriedade. Segundo Ebert Chamoun5, a parte geral do direito de

vizinhança sofreu total remodelação, no anteprojeto (e no Código Civil, que dele

resultou). Impunha-se a reforma, por causa da falta de critérios firmes de solução dos

variados e graves conflitos de vizinhança, que têm ensejado grandes dificuldades para os

juízes. Louva-se na teoria desenvolvida por San Tiago Dantas que conjuga a teoria do uso

normal e a da necessidade, que é o estatuto da vizinhança comum, e o princípio da

supremacia do interesse público. Devem sempre cessar as interferências anormais que

podem ser evitadas ou comprometem a habitação dos imóveis adjacentes.

O uso da coisa é anormal quando repercute no uso normal da outra, em

relação às pessoas que a habitam. Inclui-se no conceito legal de uso anormal, o não uso,

quando provoca interferências no vizinho (por exemplo, em casa fechada, água não

tratada de piscina na qual proliferam mosquitos transmissores de doença). Não se

confunde com o abuso do direito (CC, art. 187), que pode também decorrer dos conflitos

de vizinhança. O uso anormal não é apenas de imóvel, mas de coisas móveis, que possam

provocar tais interferências em quem habita um imóvel. Por exemplo, o barulho excessivo

de escapes abertos de veículos automotores. Os que sofrem são os que habitam o imóvel;

e, por ser imóvel, não podem deslocá-lo para distanciá-lo dessas interferências

prejudiciais.

As interferências são as que causam ou podem causar prejuízos à saúde,

ao sossego ou à segurança dessas pessoas, provocadas pelo uso de propriedade vizinha.

Não há necessidade se provar que o prejuízo já ocorreu, pois basta a ameaça ou o risco

de ofensa à saúde, ao sossego ou à segurança.

O vizinho prejudicado legitima-se às pretensões para prestação tanto

negativa, principalmente para cessação dos fatores de perturbação dos direitos de

vizinhança, quanto positivas, para prevenir a interferência ou o dano. Legitima-se,

igualmente e cumulativamente, à pretensão à indenização por danos materiais ou danos

4 FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 5.

5 CHAMOUN, Ebert. Exposição de motivos do esboço do anteprojeto do Código Civil – Direito das

Coisas. Revista de jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado da Guanabara. Rio de Janeiro: TJRJ,

v. 23, 1970, p. 22.

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morais. Estes últimos são pressupostos, in re ipsa, pois violam direitos da personalidade,

principalmente a integridade psíquica, a intimidade e a vida privada do vizinho

prejudicado pela interferência.

Não se exige a cessação de todas as interferências, razão porque a lei

refere aos “limites ordinários de tolerância dos moradores da vizinhança”. A lei leva em

conta certa tolerância indispensável para a viabilidade da vida contemporânea,

especialmente nos espaços urbanos. Os limites ordinários de tolerância são os que

resultam do uso normal da propriedade, segundo o tipo médio e razoável, além dos quais

o prejuízo não deve ser suportado. Por exemplo, a realização de uma festa eventual ou

episódica, com grande movimentação de pessoas no imóvel, animadores e músicas está

dentro dos limites ordinários de tolerância; mas estes são excedidos quando feitas com

muita frequência ou quando prejudicam o descanso noturno dos vizinhos. É normal que,

eventualmente, sejam modificadas as posições dos móveis, porque os moradores desejam

alterar a ambientação do apartamento; mas é anormal que todos os dias sejam arrastados

móveis, repercutindo o barulho nos vizinhos contíguos. Não há uso anormal da

propriedade se a interferência resultar de fato natural, não imputável ao titular do imóvel.

Não se inclui nos limites ordinários de tolerância a existência anterior

do uso anormal; no direito brasileiro não prevalece o modo de uso anterior ou da pré-

ocupação, porque tal conduta não configura direito adquirido. Assim, as atividades

poluentes, que existiam antes de a urbanização delas se aproximar ou cercá-las (por

exemplo, depósito de cal e cimento), não servem como óbice a que os direitos de

vizinhança a elas não se apliquem, uma vez que passaram a causar interferências na saúde,

na segurança e no sossego dos que habitam em suas proximidades. O STJ decidiu que

determinado Município se abstivesse de utilizar antiga pedreira como depósito de lixo,

pois o “interesse de poucos não podia prevalecer sobre o interesse de muitos” (REsp nº

163.483). Por igual, o novo proprietário ou possuidor é responsável pelo uso anormal

praticado pelo anterior, pois os direitos de vizinhança constituem obrigações propter rem,

vinculando-se ao imóvel e responsabilizando quem detenha sua titularidade.

O fato de permitirem as leis de direito público que se instalem indústrias

ou serviços em lugar em que não os havia, ou eram proibidos, de modo nenhum basta

para se entender que cessou o direito de vizinhança, pois a permissão somente pode

entender-se para eficácia no plano do direito público. Por essa razão, o art. 1.278 do

Código Civil estabelece que, se as interferências forem justificadas pelo interesse público,

o causador delas terá de pagar ao vizinho, ou vizinhos, indenização cabal.

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A tolerância às interferências, imposta por decisão judicial, não suprime

do vizinho afetado a totalidade do exercício dos direitos de vizinhança. Se o juiz se

convencer que a situação é de interferência que deva ser tolerada, considerando que o

prejuízo à saúde, ou ao sossego, ou à segurança é fato, o vizinho afetado tem direito de

exigir sua redução ou eliminação, quando estas se tornarem possíveis, a qualquer tempo.

Cabe-lhe o ônus de provar tal possibilidade, o que demonstra que a decisão judicial não

é definitiva, mas sim alterável rebus sic stantibus, de acordo com as circunstâncias

supervenientes.

É imensa a casuística dos tribunais sobre o que se considera uso

anormal da propriedade: a fumaça que invade os imóveis vizinhos, a queima de material

inflamável, o badalar de sinos de igrejas sem necessidade de culto, a poluição das águas,

os odores fortes, o canto alto de aves, as águas não tratadas que facilitam a proliferação

de mosquitos transmissores de doenças, a pulverização com inseticidas, a manutenção de

fossa junto ao prédio de outrem, o barulho excessivo em bares, festas e cultos religiosos,

a prostituição em imóveis residenciais, a guarda e manuseio de explosivos, produtos

químicos e agrotóxicos. No caso dos cultos religiosos, a liberdade de religião há de se

harmonizar com os direitos de vizinhança.

Saúde é direito fundamental, constitucionalmente tutelado, abrangente

do físico ou da mente. A saúde psicofísica não pode ser prejudicada, por conduta de

terceiro vizinho, quando a conduta é evitável. A saúde é de quem habita ou tem de

frequentar o imóvel. Segurança é material e moral, tanto do imóvel quanto de quem o

habita. Sossego é a tranquilidade normal que a pessoa tem como legítima expectativa de

usufruir em sua habitação. Sossego não é ausência de barulho, mas convivência com

barulho por todos tolerável. O barulho que se tolera de dia não é tolerável à noite. O

sossego é comprometido não apenas pelo som insuportável, mas também pela luz, pelos

odores e por outros motivos de inquietação.

O barulho é, certamente, o maior problema decorrente dos crescentes

adensamentos populacionais em áreas urbanas. Os prédios, cada vez mais altos e

próximos, e os apartamentos cada vez menores, desafiam os limites da suportação dos

sons provocados pela utilização das propriedades vizinhas. O barulho adoece e

compromete a qualidade de vida. De acordo com estudos referidos pela revista de saúde

The Lancet (v. 383, p. 1.270, abr. 2014), o barulho pode provocar irritação e perturbação

do sono, aumentando a prevalência de estresse, doença cardiovascular e mortalidade nos

grupos expostos. Em crianças, o ruído ambiental também pode afetar negativamente os

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resultados de aprendizagem e o desempenho cognitivo. Segundo os estudos, mesmo

quando não é forte, o ruído pode perturbar o sono, desencadeando reações no organismo,

como aceleração dos batimentos cardíacos.

O Código Civil assegura ao proprietário ou possuidor direto do imóvel

o direito e a pretensão a que o dono do imóvel vizinho promova a demolição ou a

reparação necessária deste, quando haja ameaça de ruína. Pode, conjuntamente, exigir

caução pelo dano que julga iminente, também conhecida como caução de dano infecto.

A caução tem como pressupostos a grande probabilidade do dano e antecipação da

indenização. O vizinho, a quem cabe demolir ou reparar, não pode definir quais as

medidas que julgar adequadas.

Também pode o proprietário ou possuidor do imóvel exigir do vizinho,

que esteja a promover construção nova em terreno deste, garantias contra prejuízo

eventual, em caso de dano iminente ou provável. Pouco importa que a obra tenha recebido

autorização da administração pública competente, ou alvará de construção, ou que o

vizinho comprove que observa o projeto assim aprovado, ou que não teve culpa. Se ficar

constatada a probabilidade de dano iminente, é lícito ao vizinho, sob risco, exigir

garantias, que podem ser fiança pessoal, caução em dinheiro, penhor, hipoteca, seguro ou

fiança bancária. Não se obsta a obra, mas a garantia tem por fito prevenir sua segurança.

No caso de recusa à prestação de garantia, cabe ação judicial para sua obtenção. Enquanto

não se constrói a obra, o direito do vizinho pode ser exercido para que se abstenha. Se já

construiu, constatado o dano iminente, a pretensão é para a demolição ou reparação

necessária antes de qualquer dano.

A pretensão ou exigibilidade, no âmbito extrajudicial, e a ação judicial

pelo uso anormal da propriedade, podem ser dirigidas contra o proprietário do imóvel,

fonte das interferências prejudiciais, ainda que o causador seja locatário ou outro

possuidor direto (por exemplo, usufrutuário, usuário, comodatário). Do mesmo modo, a

pretensão e a ação judicial podem ser dirigidas ao possuidor direto, pois a obrigação de

não causar interferências não é apenas do proprietário, mas de quem esteja na qualidade

de vizinho. A legitimidade passiva expandida, na ação judicial, tem sido admitida pelos

tribunais (STJ, REsp 480.621 e REsp 622.203).

O uso é também anormal quando viola princípios fundamentais da

Constituição, tais como a garantia da vida privada, da intimidade, da inviolabilidade da

moradia e da proteção do meio ambiente. O Código Florestal (Lei nº 12.651, de 2012)

considera que, na utilização e exploração da vegetação, as ações ou omissões contrárias

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às suas disposições são consideradas uso irregular da propriedade, conceito análogo ao

do uso anormal, passíveis, além de responsabilidade civil, de sanções de caráter

administrativo, civil e penal. As obrigações previstas na Lei nº 12.651 têm natureza real

e são transmitidas ao sucessor, de qualquer natureza, no caso de transferência de domínio

ou posse do imóvel rural, ou seja, não podem ser afastadas por ato de autonomia privada.

3. Árvores limítrofes

As árvores integram o imóvel, quando localizadas dentro de seus

limites. O direito distribui as titularidades, quando as árvores têm seu tronco na linha

divisória, quando as raízes e galhos de árvores ultrapassam os limites e alcançam o imóvel

vizinho e quando os frutos estão pendentes ou caídos no imóvel vizinho, que são fontes

permanentes de conflitos. Essa matéria não diz respeito apenas ao conflito entre

particulares, mas também à proteção do meio ambiente, que sobre aquele prevalece.

Há presunção legal de pertencimento da árvore a ambos os titulares de

imóveis vizinhos, quando o tronco situa-se na linha divisória entre eles, tendo em vista

sua função de marco divisório. Pouco importa que o tronco esteja mais em um imóvel

que em outro. O tronco, para ser considerado comum, deve estar na linha divisória em

sua parte mais próxima da raiz. Cada vizinho é dono de metade, em parte indivisível. Não

é comum a árvore se o tronco enraíza-se inteiramente em um imóvel e inclina-se sobre o

outro. A lei (CC, art. 1.282) alude a tronco de árvore, mas há plantas que não são árvores,

como as palmeiras, principalmente os coqueiros, cujas plantações são comuns no litoral

tropical brasileiro. Não são consideradas árvore porque estas se caracterizam pelo

crescimento do diâmetro do seu caule para a formação do tronco, que produz a madeira e

tal não acontece com as palmeiras. Para os fins da lei, no entanto, as palmeiras se

enquadram no conceito genérico de árvore. Quando a árvore cresce, pode vergar-se para

um dos lados, podendo, inclusive, ultrapassar a linha divisória, no espaço aéreo; ainda

assim, pertence exclusivamente ao titular do imóvel onde estão suas raízes. Quando a

árvore inclina seu tronco sobre o imóvel vizinho, causando-lhe prejuízos (por exemplo,

quedas dos frutos ou palhas do coqueiro sobre telhado), o titular prejudicado tem

pretensão à indenização. A pretensão ao corte da árvore depende de parecer favorável das

autoridades ambientais, quanto ao risco de tombar, causando prejuízo aos que forem por

ela alcançados, ou de decisão judicial.

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O Código Civil mantém antiga regra, anterior ao advento do direito

ambiental, autorizativa do corte das raízes e ramos de árvores que ultrapassem o limite

do imóvel, pressupondo-se a existência de dano ou risco de dano para o imóvel vizinho.

O corte da raiz ou das raízes, que assim ultrapassam os limites, pelo titular do terreno

invadido, pode acarretar a morte do vegetal, mas essa é uma possível consequência que a

lei desconsidera. A norma legal alude a ramos e raízes, não se admitindo o corte do tronco

ou parte do tronco. O vizinho tem direito de se apropriar dos galhos e raízes que cortar,

sem necessidade de justificar ou alegar dano. Tem sido decidido ser dispensável o pedido

de autorização judicial para fazer o corte, que já é dada por lei. O direito ao corte dos

galhos e raízes não é admitido por algumas legislações estrangeiras e outras o

condicionam à prova de que são prejudiciais.

Com relação aos frutos, os que estão pendentes não podem ser colhidos

pelo titular do terreno sobre o qual parte da árvore se projeta; o dono da árvore pode

colhê-los, se for possível fazê-lo a partir de seu próprio imóvel. Porém, os frutos que

caírem sobre o terreno vizinho passam a pertencer ao titular deste, que livremente os pode

recolher e dar o destino que pretender. O fato do pertencimento é a queda sobre o terreno

do vizinho. Nesse sentido, Pontes de Miranda6: o direito de propriedade, no caso dos

frutos caídos, não é oriundo do direito de apropriação, mas de fato jurídico stricto sensu,

tal como acontece com a propriedade dos frutos da árvore que caem. A queda dos frutos

é natural, não pode ser provocada, tal como sacudir os galhos ou a árvore.

Para Serpa Lopes7, a solução do direito brasileiro é contrária à doutrina

romanista, consistente em manter no dono da árvore a propriedade dos frutos, mesmo

quando caídos além dos limites de sua propriedade. Os romanos entendiam que o dono

da árvore tinha o direito de colher e recolher os frutos que se encontrassem no terreno do

vizinho. O Código Civil português prevê, igualmente, o direito à apanha dos frutos, que

pode ser exigível contra o vizinho, sendo responsável pelo prejuízo que causar. A norma

do Código Civil brasileiro alude apenas ao vizinho particular; assim, se os frutos caírem

em terreno pertencente ao domínio público, eles continuam na titularidade do dono da

árvore, que os pode recolher.

6 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2012, v. 13, p. 485.

7 LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil. São Paulo: Saraiva, 1992, v. 2, p. 526.

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4. Passagem forçada

Todo aquele que é titular de imóvel encravado em outro ou que tenha

necessariamente de passar por outro imóvel para alcançar as vias públicas de circulação

ou os espaços públicos, ou para se chegar à fonte de água, tem direito à passagem forçada.

Esse direito não se confunde com a servidão de passagem, pois esta pode ser instituída

ainda que não seja caminho necessário. A passagem forçada, típico direito de vizinhança,

é limitação ao direito de propriedade. Funda-se, segundo Caio Mário da Silva Pereira8,

no princípio da solidariedade social, com origem no direito medieval. A pretensão a que

o vizinho suporte a passagem é imprescritível.

O direito de passagem existe por força de lei, não necessitando de

registro para que produza seus efeitos. Os requisitos são: (1) Falta ou perda de acesso a

via pública, nascente de água ou porto; (2) constrangimento ao vizinho para que assegure

a passagem; (3) pagamento de indenização ao vizinho.

A passagem forçada é suportada pelo imóvel, através do qual o caminho

necessariamente se dá, de acordo com condições e cultura do lugar. Ainda que o imóvel

beneficiado com a passagem forçada seja circundado por outro ou por outros imóveis, o

titular do imóvel que a suporta não pode se valer dessa circunstância para negá-la, pois o

critério é o que a lei determina: sofre o constrangimento o vizinho cujo imóvel mais

natural e facilmente se prestar à passagem. É o critério da utilidade e do menor custo para

ambas as partes. Se o caminho ainda não existir, terá seu rumo fixado pelo juiz, que se

valerá, se preciso for, de perícia. A oposição ou a dificuldade postas pelo vizinho

caracterizam ilícito, qualificado como abuso do direito, fazendo nascer a ação. Por ser

limitação legal ao direito de propriedade, mister se faz a prova de sua necessidade.

Numa era em que a técnica da engenharia dominou a natureza, a noção

de imóvel encravado já não existe em termos absolutos e deve ser inspirada pela

motivação do instituto da passagem forçada, que deita raízes na supremacia do interesse

público; juridicamente, encravado é o imóvel cujo acesso por meios terrestres exige do

respectivo proprietário despesas excessivas para que cumpra a função social sem

inutilizar o terreno do vizinho, que em qualquer caso será indenizado pela só limitação

8 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Revista e atualizada por Carlos Edison

do Rego Monteiro Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. IV, p. 186.

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do domínio (STJ, REsp 316.336). O Código Civil de 2002 abandonou o requisito do

imóvel encravado no outro, optando pela inexistência ou perda de acesso a via pública,

nascente ou porto.

Esclarece o enunciado 88 das Jornadas de Direito Civil, do CJF/STJ: o

direito de passagem forçada também é garantido nos casos em que o acesso à via pública

for insuficiente ou inadequado, consideradas, inclusive, as necessidades de exploração

econômica. Na mesma direção, tem sido decidido que cabe a passagem forçada quando o

acesso à via pública seja perigoso ou insuficiente. Essa interpretação extensiva da norma

legal é a que melhor realiza a função social da propriedade. Porém, se o proprietário ou

possuidor tem servidão de caminho por outro imóvel, presume-se não precisar do acesso

forçado. Tampouco basta, para se reconhecer o direito de passagem forçada, a

comodidade em se encurtar a distância entre o imóvel e a via pública, ou a mera tolerância

do vizinho; a necessidade há de ser provada.

Se a perda de acesso resultar de alienação parcial e divisão de um

imóvel, se constrangerá à passagem uma das suas partes, sem agravamento para a situação

de terceiros. O titular da parte que ficou com o acesso, será constrangido a permitir a

passagem ao titular ou possuidor da parte que o perdeu. Essa situação ocorre, com

frequência, quando se extingue condomínio comum, pela divisão entre os ex-

condôminos; nem sempre é possível divisão cômoda que permita o acesso a via pública

a todas as partes resultantes. Se não houver explicitação da passagem, esta será

determinada judicialmente.

O imóvel (primeiro), cuja parte foi alienada a terceiro, poderia já utilizar

passagem forçada sobre terreno do vizinho (segundo). A alienação da parte do primeiro

imóvel não pode agravar a situação do segundo imóvel, que já suportava a passagem

forçada. O titular do segundo imóvel não está obrigado a tolerar nova passagem forçada.

O rumo permanecerá o mesmo, ainda que o adquirente tenha de passar, também, pela

parte restante do primeiro imóvel.

É admissível que o caminho tradicionalmente utilizado pelo titular do

imóvel como passagem forçada possa ser modificado, se não causar prejuízo ou agravar

a passagem. Tal ocorre quando o titular do imóvel que suporta a passagem forçada

necessita ocupar o rumo utilizado, ou parte dele, para construção de obras ou para

expansão de suas atividades. A mudança do rumo deve contemplar idênticas condições

de passagem para se alcançar a via pública.

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O direito à passagem forçada pode ser acidental e temporário, quando

o acesso a via pública é obstruído, sem culpa do titular do imóvel. Exemplifique-se com

inundação de rio ou queda de barreira, impedindo o acesso tradicionalmente utilizado. O

direito de passagem perdurará até que o acesso originário possa ser reutilizado, em

condições normais.

O direito à passagem forçada não é gratuito. O que a obtiver deverá

indenizar o titular do imóvel que tiver de suportá-la. Não é indenização para expropriação,

pois o trecho utilizado não se transfere para a titularidade de quem a utiliza. É indenização

pela limitação da propriedade. A hipótese é de responsabilidade pela indenização do uso.

A indenização será fixada por acordo mútuo ou pelo juiz, podendo ser paga de uma só

vez, ou em parcelas ou mediante renda. Ainda que a perda do acesso tenha causa que

possa ser imputável ao titular do próprio imóvel, persiste o direito à passagem forçada. O

Código Civil de 2002 não reproduziu norma da legislação anterior, que previa o

pagamento em dobro da indenização, se a perda fosse por culpa do interessado. O

exercício da pretensão à passagem forçada não depende de prévia oferta do valor da

indenização, pois esta é um direito do vizinho que suporta a limitação, podendo exercê-

lo ou não.

5. Passagem de cabos e tubulações

Além do trânsito ou passagem forçada de pessoas, a lei prevê tipo

específico de passagem permanente de cabos, tubulações e outros condutos subterrâneos

por imóveis, para fins de transmissão de energia, gás ou meios de comunicação. As

relações jurídicas decorrentes não são exclusivamente de direito civil, pois há

interferências do direito público administrativo. São requisitos: (1) Dever de tolerância

da passagem das instalações pelos imóveis particulares; (2) Utilidade pública dos serviços

que os utilizam; (3) Demonstração de que a transmissão fora do imóvel é impossível ou

excessivamente onerosa; (4) Indenização.

Superada a fase da concepção absolutista da propriedade, tem-se como

indeclinável o dever de tolerar que sobre o imóvel passem meios de transmissão de fontes

e serviços essenciais à vida contemporânea. As instalações podem passar pelo espaço

aéreo, ou sobre o solo ou pelo subterrâneo do imóvel, não se contendo nas instalações

subterrâneas, pois a alusão a estas feita pelo Código Civil não as restringe.

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Trata-se de limitação à propriedade, que não se confunde com

desapropriação. O imóvel permanece sob a titularidade do proprietário, mas sujeito a

restrição de uso, que é o de suportar a passagem das instalações e de não criar dificuldades

ou riscos a suas finalidades. Algumas, como os cabos aéreos de transmissão de energia,

não impedem que atividades agrícolas continuem sob eles; outros trazem potencial de

risco maior, com vedação de edificações, como os condutos de gás.

As empresas titulares dos meios de transmissão, ainda que regidas pelo

direito privado, prestam serviços públicos autorizados, fiscalizados ou concedidos pela

administração pública. Os trajetos pelos imóveis são definidos pela administração pública

competente, ou pela própria empresa, quando recebe delegação de competência para isso.

Não pode o proprietário contestá-los ou indicar outros rumos, que julgue mais

convenientes. Pode, no entanto, demonstrar em juízo que a passagem fora de seu imóvel

se faz possível e menos onerosa, pois a lei (CC, art. 1.286) abriu essa possibilidade,

quando alude que o dever de tolerância é exigível “quando de outro modo for impossível

ou excessivamente onerosa”. Pode, igualmente, exigir que a instalação seja feita de modo

menos gravoso no imóvel, se possível for e assim demonstrar. Depois de feitas as

instalações, pode exigir que sejam removidas para outro local do imóvel, ficando sob seu

encargo as despesas correspondentes. Pode, por fim, exigir obras de segurança, se as

instalações oferecerem grave risco, tais como cercados, redes de proteção, construção de

coberturas.

Embora não haja desapropriação da área a ser utilizada, o dever de

utilizar a passagem das instalações e a restrição ao uso correspondente do imóvel

importam o pagamento de indenização compatível. O valor da indenização deve levar em

conta a desvalorização que sofrerá o imóvel, como um todo, as limitações e restrições ao

uso e o dano emergente no local da passagem. As instalações apenas poderão ser feitas

após o pagamento da indenização, fixada amigável ou judicialmente, segundo os critérios

adotados para desapropriação.

6. Águas e vizinhança

As águas, potáveis ou servidas, que atravessam imóveis vizinhos

impõem disciplina que previnam ou resolvam conflitos entre os respectivos titulares,

proprietários ou possuidores. Não se trata de servidão, mas sim de direito de vizinhança,

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direito dependente, contido no direito de propriedade, correspondente à limitação que

sofre, em seu conteúdo, o direito de propriedade do imóvel vizinho. A lei (CC, art. 1.288)

pressupõe a existência de desníveis de solos, porque as águas seguem a gravidade,

qualificando-se os imóveis vizinhos em superiores e inferiores. Interessa saber até que

ponto os titulares dos imóveis inferiores e, eventualmente, superiores têm de suportar o

curso dessas águas ou, ante a crescente escassez, a falta ou redução delas, por fatos

imputáveis aos titulares dos demais imóveis. O dever de não impedir o curso natural é

dever de vizinhança.

Em matéria de águas, as intercessões entre o direito privado e o direito

público são intensas. As águas públicas integram o domínio da União ou dos Estados

membros (CF, arts. 20 e 26), não sendo reguladas pelo direito civil. A Constituição deixou

pouco para o domínio privado das águas, pois o art. 26 inclui entre os bens dos Estados

membros “as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito,

ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União”. A regulação

do uso das águas particulares ou das águas públicas pelos particulares, além das normas

de direito civil, compreende o que dispõe o Código de Águas (Decreto nº 24.643, de 1934,

com força de lei) e a Lei nº 9.433, de 1997, sobre a outorga de uso dos recursos hídricos.

Esta última lei estabelece (art. 1º) que a água é um bem público de uso comum, sem

qualquer ressalva, o que importa dizer que ninguém pode se apropriar de águas nascentes,

correntes ou subterrâneas para seu uso exclusivo e privativo, sem outorga pública.

O titular do imóvel superior não pode realizar obras ou serviços que

impeçam ou reduzam, injustificadamente, o fluxo das águas, em prejuízo do titular do

imóvel inferior, que delas também necessita. Se fizer obras para facilitar o escoamento,

deverá proceder de modo que não piore a condição anterior do outro. Não pode o titular

do imóvel superior desviar as águas que corriam para dois ou mais imóveis e as deixar

correr para um ou alguns, nem mudar a direção agravando a situação do imóvel inferior.

O titular do imóvel inferior não pode impedir ou reduzir,

injustificadamente, o fluxo natural das águas que descem do imóvel superior, sejam elas

pluviais ou de nascentes. Não pode construir obras que façam com que as águas retornem

ao imóvel superior, tais como barragens com esse propósito, ou fazê-las voltar para a

parte mais baixa do imóvel superior, além de estar obrigado a permitir que o titular do

imóvel superior entre em seu imóvel para executar serviços de conservação e manutenção,

de modo a que o fluxo natural não seja comprometido. Este é o dever legal de escoamento.

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Só há dever de escoamento das águas do fluxo natural; não assim se as

águas que descerem forem acumuladas artificialmente pelo titular do imóvel superior,

como as provenientes de poços, ou encanadas, ou decorrentes de obras de irrigação, ainda

que tenham sido utilizadas para suas atividades ou lazer. O titular do imóvel inferior

poderá exigir que essas águas sejam desviadas, além de indenização pelos danos

causados. Porém, se este tiver obtido algum beneficiamento das águas assim recebidas, a

indenização será reduzida nessa exata medida.

As águas pluviais, ou seja, as que procedem imediatamente das chuvas,

de acordo com o Código de Águas, pertencem ao dono do imóvel onde caírem

diretamente, mas não lhe é permitido desperdiçá-las em prejuízo dos outros imóveis que

delas possam aproveitar, sob pena de indenização aos respectivos proprietários, ou

desviá-las de seu curso natural, sem consentimento expresso dos que esperam recebê-las.

O direito ao uso das águas pluviais é imprescritível.

Ninguém pode poluir as águas que não consome, com prejuízo de

terceiros, máxime quando estes forem possuidores de imóveis inferiores. Segundo o

Código de Águas (art. 110), os trabalhos para a salubridade das águas serão executados à

custa dos infratores, que, além da responsabilidade criminal, se houver, responderão pelas

perdas e danos que causarem e pelas multas que lhes forem impostas nos regulamentos

administrativos. Regra conexa do Código Civil (art. 1.291) estabelece que as águas “que

poluir” o titular do imóvel superior deverão ser por este recuperadas, ressarcindo os danos

sofridos pelos titulares dos imóveis inferiores, se não for possível a recuperação ou o

desvio do curso artificial das águas. Não há direito a poluir, em desafio ao art. 225 da

Constituição. As duas regras hão de ser interpretadas conjugadamente, ou seja, ninguém

pode poluir as águas e se o fizer responde pelos deveres de indenização dos danos

materiais e morais causados aos prejudicados, de recuperação das águas e de desvio do

curso artificial das águas, além de responder administrativa e criminalmente.

É assegurado ao titular de qualquer imóvel (superior ou inferior) o

direito de construir barragens e açudes. As obras podem ter a finalidade de represamento

de águas pluviais ou particulares correntes. As barragens e açudes devem conter as águas

nos limites do imóvel do titular. Se os ultrapassar, deverá indenizar os danos sofridos

pelos vizinhos, deduzindo-se os que estes passaram a ter de efetivo proveito, em

homenagem ao princípio da vedação do enriquecimento sem causa. A dedução leva em

conta apenas o benefício sob a ótica do titular cujo imóvel foi invadido pelas águas, e não

de quem fez o represamento. As águas podem não provocar qualquer benefício, se

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destruir, por exemplo, plantações. A invasão das águas é fato objetivo, que independe de

demonstração de culpa.

A lei assegura “a quem quer que seja” o direito de construir canal ou

aqueduto através de imóveis alheios, para receber águas, observados os seguintes

requisitos: (1) pagamento de prévia indenização; (2) finalidades de atendimento das

primeiras necessidades da vida, ou de escoamento de águas supérfluas, ou de drenagem

de seu terreno; (3) não causar prejuízos consideráveis à agricultura ou a indústria dos

titulares dos imóveis onde deva passar o canal.

Sem a prévia indenização ao ou aos proprietários prejudicados, não

pode iniciar a construção do canal. A indenização deve ser ajustada entre as partes; se não

houver acordo, decidirá o juiz sobre o valor. O pagamento da indenização não tem

finalidade expropriatória, mas sim de compensação pela limitação da propriedade; a faixa

do imóvel por onde passar o canal continuará sob titularidade do dono respectivo. Para

Pontes de Miranda, rigorosamente não é de indenização que se trata, mas sim de

composição de interesses, diante da inevitabilidade do entrechoque dos direitos9.

Primeiras necessidades dizem respeito ao consumo humano dos que vivem e trabalham

no imóvel interessado e à manutenção básica das atividades pecuárias ou agrícolas. As

águas supérfluas são as de captação natural que excedem as necessidades das atividades

desenvolvidas no imóvel; não são assim consideradas as águas servidas, que devem ser

absorvidas no próprio terreno ou canalizadas para a rede pública de coleta e saneamento,

quando houver. A drenagem do terreno pantanoso ou alagadiço só autoriza a canalização

pelo terreno vizinho se não for possível ser feita e absorvida a água no mesmo terreno, ou

não forem viáveis processos de enxugo, além de estar em conformidade com a legislação

ambiental. O proprietário de uma nascente não pode desviar-lhe o curso, se esta servir

para abastecimento da população (Código de Águas, art. 94). O usuário do canal ou

aqueduto tem o direito e o dever de conservá-los e mantê-los em condições adequadas,

para suas finalidades e para evitar riscos de danos aos proprietários em cujos imóveis

atravessem.

O prejuízo do proprietário em cujo imóvel atravessa o canal é objetivo

e pressuposto. “Isso não significa prescindir da demonstração probatória, mas

9 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2012, v. 13, p. 517.

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corresponde, isto sim, à possibilidade de superação dos meandros subjetivos circunscritos

à culpa ou ao dolo”10.

Ao proprietário prejudicado com o canal ou aqueduto cabe, além da

indenização prévia: (1) direito ao ressarcimento pelos danos futuros, em virtude

infiltração ou irrupção das águas, independentemente da conservação da obra, ou de sua

deterioração; (2) direito de exigir do proprietário beneficiário que a canalização seja

subterrânea, quando atravessar áreas edificadas, pátios, hortas, jardins e quintais. Pode,

por exclusão, ser superficial quando atravessar áreas agrícolas; (3) direito de

compensação pela desvalorização da área remanescente, notadamente quando se tornar

inaproveitável; (4) direito de exigir que a canalização seja feita de modo menos gravoso

no imóvel onde deva atravessar; (5) direito de remoção da canalização para outro lugar,

assumindo as despesas decorrentes; (6) direito de exigir obras de segurança, se a

canalização oferecer grave risco.

O direito ao canal ou aqueduto, em virtude de sua natureza de limitação

à propriedade para satisfação de interesses particulares, apenas existe para as finalidades

explicitadas na lei, não sendo admissível para outras, inclusive para fins de expansão de

atividades. A lei (CC, art. 1.293) não alude às finalidades de agricultura ou indústria. Há

entendimento, todavia, estampado no enunciado 245 das Jornadas de Direito Civil, do

CJF/STJ, de que a norma legal não exclui a possibilidade de canalização forçada pelo

vizinho, com prévia indenização aos proprietários prejudicados.

Terceiros podem se utilizar das águas canalizadas, que sejam

consideradas supérfluas, ou seja, não necessárias às finalidades do beneficiário. Nessa

hipótese, será devida indenização a ser compartilhada pelo proprietário beneficiário e o

proprietário prejudicado. Estabeleceu a lei, como parâmetro, a importância equivalente

às despesas que seriam necessárias para condução das águas retiradas por terceiros, se

elas chegassem ao destino. A preferência para utilização das águas supérfluas é a do

proprietário ou possuidor prejudicado pela canalização.

7. Limites entre prédios e direito de cercar ou murar

10

FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 116.

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O proprietário ou possuidor pode demarcar e cercar o imóvel, nos seus

limites com os dos vizinhos confinantes. O fim social da norma legal é prevenir os

conflitos que as incertezas dos limites provocam e de estabelecer critérios para a solução

desses conflitos. Cerca é conceito amplo, abrangente de outros termos utilizados pela lei,

como muro, vala, valado, tapagem, sebe, intervalos, banquetas, além de outras expressões

regionais. O Código Civil alude a “tapagem”, termo de escasso uso linguístico, e que,

segundo os antigos significava exatamente cerca. Nas Ordenações Filipinas (Liv. II, Tít.

48, § 4º) há referência a “tapamento de suas herdades”, com significado de cerca. O direito

de cercar assenta-se na necessidade, não sendo cabível para fins de maior comodidade ou

de estética.

A demarcação tem por finalidade evitar a confusão de limites, ou por

fim à confusão já ocorrida. São legitimados a promover e a responder a ação, que é

declaratória, o proprietário, ou o possuidor, ou o titular de direito real limitado, pois a lei

(CC, art. 1.297) alude a confinante.

O direito à demarcação importa o de constrangimento aos vizinhos

confinantes de procedê-la amigável ou judicialmente, quando os rumos ou marcos

estejam destruídos, apagados ou confusos. Intenta-se, com a demarcação, aviventar e

tornar indiscutíveis os marcos e rumos. As despesas da demarcação amigável ou judicial,

inclusive com os serviços de técnicos ou peritos, são repartidas entre os vizinhos

confrontantes. O direito de cercar é dependente da definição precisa dos limites, operada

pela demarcação. A lei (CC, art. 1.298) estabelece três critérios sucessivos para a

demarcação, quando os limites estiverem confusos e os marcos indefinidos ou

desaparecidos: (1) Prevalecimento da posse justa (não violenta, precária ou clandestina)

do confinante que a tenha; (2) Se ambos os confinantes forem titulares de posses justas,

a parte contestada será dividida por igual entre os confinantes, passando a linha divisória

no meio dela; (3) Se a divisão pelo meio não puder ser feita, a parte contestada será

adjudicada a um dos confinantes, que deverá indenizar o outro.

As cercas já existentes, em qualquer de suas modalidades (muros de

alvenaria ou concreto, sebes vivas, cercas de arame ou madeira, valas) têm a presunção

legal de pertencerem em comum aos vizinhos confinantes. A presunção de condomínio é

relativa (juris tantum), pois podem ter sido feitas por um dos vizinhos dentro dos limites

de seu imóvel, pertencendo-lhe inteiramente. Podem ter sido feitas sobre a precisa linha

divisória por um dos vizinhos, com seus próprios recursos; nesta hipótese, pode cobrar

do outro vizinho a meação das despesas, uma vez que a cerca passa à titularidade de

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ambos. Cercar é direito e não obrigação, disse Darci Bessone11, “razão por que pode o

proprietário abster-se de tapar, cercar, ou murar o seu imóvel”. Porém, a obrigação do

confinante de concorrer com as despesas de construção e conservação das divisórias

resulta diretamente da lei, não se condicionando a que haja prévio consentimento; cumpre

a quem as realize demonstrar que se faziam necessárias, no momento em que foram

efetuadas. É direito e dever de vizinhança decorrente da limitação ao conteúdo do direito

de propriedade: cada confinante é obrigado a concorrer em partes iguais para as despesas

de construção e conservação. Essa obrigação, de natureza objetiva, prevaleceu nos

tribunais, antes mesmo do Código Civil de 2002, a exemplo do STJ (REsp 20.315 e REsp

238.559). Qual o meio que vai ser empregado (tipo de cerca, muro, sebe) depende dos

usos locais, ou da natureza da construção limítrofe.

A demarcação é cabível, mesmo quando definidos os limites divisórios,

quando ainda restem dúvidas sobre sua precisão, notadamente havendo divergência entre

o título de propriedade e as divisas. Nesse sentido, decidiu o STJ (REsp 759.018) que

havendo divergência entre a verdadeira linha de confrontação dos imóveis e os

correspondentes limites fixados no título dominial, é cabível a ação demarcatória para

eventual estabelecimento de novos limites.

Em áreas rurais, é comum constar em escrituras públicas e registros

imobiliários determinadas plantas, especialmente árvores e sebes vivas, como marcos

naturais divisórios dos imóveis, quando não há cerca, ou quando o rumo desta é

questionado. Cada uma dessas plantas não pode ser cortada ou arrancada, salvo se houver

acordo de ambos os confinantes. Se for arrancada por um deles, o outro poderá provar em

juízo sua exata localização, prevalecendo esta contra a que indicar o que arrancou a

planta, por pesar-lhe a ilicitude da conduta.

Excepcionalmente, há dever e obrigação de cercar do proprietário de

animais. Não está obrigado a concorrer com as despesas o proprietário vizinho, que exigir

a realização de cerca especial para impedir a passagem de animais ao seu imóvel. A cerca

é especial em razão dos tipos de animais. Assim, a cerca para animais de maior porte,

como gado vacum, é distinta da que se exige para animais de pequeno porte, como os

galináceos. As despesas são de responsabilidade do proprietário desses animais, os quais

provocaram a necessidade de cerca especial.

11

BESSONE, Darci. Direitos reais. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 254.

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8. Direito de construir

Sob o título “direito de construir” tem-se a regulação do direito do

possuidor e do proprietário de edificar em seu terreno, observados os limites em relação

aos vizinhos, que também estão a ela sujeitos, e as normas instituídas pela administração

pública, principalmente o plano diretor, nas áreas urbanas. O direito de construir diz

respeito não apenas à edificação nova, como a reforma ou reconstrução de edificações

antigas.

O direito de construir não se confina ao direito civil, sendo matéria com

incidência transversal não apenas do direito urbanístico, como do direito ambiental, do

direito de defesa do patrimônio histórico, artístico, paisagístico, turístico e cultural, do

direito aeronáutico e outros direitos assemelhados, de ordem pública. Exemplo de

limitação administrativa ao direito de construir encontra-se na Súmula 142 do antigo

Tribunal Federal de Recursos, segundo a qual a faixa non aedificandi imposta aos terrenos

marginais das estradas de rodagem, em zona rural, não afeta o domínio do proprietário,

nem obriga a qualquer indenização. Com efeito, o proprietário pode plantar nessa faixa,

mas não pode edificar, em razão da segurança das pessoas nessas vias. Para além das

normas de direito público, interessam ao direito civil as interferências do direito de

construir nas relações de vizinhança.

Seguindo a tradição arquitetônica portuguesa, as casas e sobrados

construídos em áreas centrais das cidades brasileiras eram contíguos ou com recuos

estreitos. Daí que se justifique a permanência da regra do art. 1.300 do Código Civil,

segundo a qual o proprietário construirá de maneira que o seu prédio não despeje águas

diretamente no imóvel vizinho, que se incluía na actio de effusis et dejectis dos romanos.

Ou do Código de Águas (art. 105), de que o proprietário edificará de maneira que o beiral

de seu telhado não despeje sobre o prédio vizinho, deixando entre este e o beiral, quando

por outro modo não o possa evitar, um intervalo de 10 centímetros, quando menos, de

modo que as águas se escoem. Quando a legislação municipal admitir que a edificação

possa ir até o limite do terreno, terá de ser feita de modo a que as águas pluviais, correntes

ou servidas não vertam ou sejam despejadas no imóvel vizinho.

As janelas, os terraços cobertos ou descobertos, as sacadas, as varandas,

as portas devem distar, ao menos, um metro e meio da linha divisória dos terrenos. Essa

regra tem por fito a preservação mínima do direito à privacidade do vizinho, que é

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constitucionalmente garantida (CF, art. 5º, X) e alcança qualquer abertura superior a dez

por vinte centímetros. Admite-se que as janelas ou terraços que não se abram com visão

direta do imóvel vizinho, mas sim para dentro do próprio imóvel, possam ser feitos com

a distância de setenta e cinco centímetros da linha divisória dos terrenos, o que

corresponde à metade da distância anterior, tendo o Código Civil tornado sem efeito a

Súmula 414 do STF que não distinguia a visão direta da indireta ou oblíqua. Estima-se

que essa redução não prejudicará a privacidade do vizinho, pois a linha de visão não é

direta. Na zona rural, amplia-se a distância para três metros, até a linha divisória. O

conceito adotado pelo Código Civil é o de zona (urbana ou rural), e não o de destinação,

que é preferido pelo direito agrário; assim, ao imóvel com destinação agrícola ou

pecuária, mas situado dentro do perímetro urbano fixado pelo Município, aplica-se o

recuo menor de metro e meio.

O vizinho tem o prazo de um ano e dia, após a conclusão da obra, para

exigir que se desfaça a janela, ou o terraço, ou a varanda, ou a sacada, construídos com

distância menor que um metro e meio da linha divisória, se tiverem visão direta sobre seu

imóvel, ou de três metros se na zona rural, ou de setenta e cinco centímetros da linha

divisória, se não tiverem visão direta sobre seu imóvel, ou do despejo de águas sobre seu

imóvel. No âmbito processual, esse embargo é denominado nunciação de obra nova. Esse

prazo é preclusivo ou decadencial, não podendo ser interrompido ou suspenso. Considera-

se conclusão da obra, para fins de contagem do prazo, a data do habite-se concedido pelo

Município, salvo se o vizinho construtor tiver como provar a data efetiva da conclusão e

sua ciência pelo vizinho. Conta-se a partir da conclusão de toda a obra e não da construção

da janela ou outra abertura. Não se exige a comprovação do devassamento, bastando a

construção da janela – terraço, sacada ou varanda - com distância menor que a legal.

Se o prazo se escoar, sem ajuizamento da ação pelo vizinho

prejudicado, este terá de suportar a obra invasiva, não podendo mais impedir ou dificultar

o uso do prédio beneficiado, inclusive o escoamento das águas. O vizinho prejudicado

terá, por sua vez, de recuar sua construção nova, de modo a que se mantenha o recuo de

um metro e meio (ou três metros); supondo-se que a janela foi aberta com a distância de

cinquenta centímetros da linha divisória, na zona urbana, o vizinho prejudicado terá que

recuar a parede da edificação nova até um metro dentro de seu próprio terreno, na largura

da janela, de modo a que esta mantenha um metro e meio de espaço aberto. O recuo

calcula-se a partir da janela ou outra abertura e não da linha divisória. Essa orientação

legal foi introduzida na segunda parte do art. 1.302 do Código Civil, contrariando o

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entendimento jurisprudencial que antes se tinha consolidado, no sentido de o proprietário

prejudicado não poder exigir o fechamento, após o escoamento do prazo, mas não estando

impedido de construir edificação vedando a abertura. A norma do Código Civil contempla

a função social da propriedade, ao contrário do entendimento jurisprudencial anterior, que

fazia prevalecer o interesse individual.

A distância de três metros, ou de metro e meio, ou de setenta e cinco

centímetros é contada a partir da construção irregular, e não da linha divisória. Segundo

orientação doutrinária12, constituiria servidão específica ou direito real sobre coisa alheia;

constituída a servidão, alcança-se esse objetivo, em detrimento do imóvel serviente, cujo

dono, não tendo embargado oportunamente a construção irregular e não pretendendo, no

prazo legal, que se desfizesse, teria de recuar sua própria edificação. Entendemos, todavia,

não se tratar de servidão, mas sim de limitação à propriedade, que é o fundamento dos

direitos de vizinhança, que independem, inclusive, de registro imobiliário. Também assim

entende Pontes de Miranda13, para quem os direitos de construir nascem de limitação ao

conteúdo do direito de propriedade; não nasce, com isso, servidão, pois o vizinho apenas

perdeu a pretensão ao desfazimento da obra e o dono desta foi beneficiado pela inércia

do titular da pretensão contrária a ela.

Permite-se que sejam feitas aberturas para luz ou ventilação, com

dimensões pequenas, sem respeitar qualquer distância com a linha divisória dos terrenos.

Diferentemente das janelas, terraços e varandas que facultam devassar o imóvel vizinho,

essas pequenas aberturas não comprometeriam a privacidade dos que o habitam. Permite-

se, assim, a iluminação ou a ventilação e, ao mesmo tempo, preserva-se o vizinho do

devassamento. A metragem admitida para a abertura é de, no máximo, dez centímetros

por vinte centímetros, desde que seja construída a partir da altura de dois metros do chão

de cada piso, que supera a altura da quase totalidade das pessoas humanas e impede a

visão sobre o vizinho. Não há impedimento para que sejam várias aberturas, para o lado

ou para cima. A tecnologia da construção desenvolveu o que denomina de elementos

vasados, de cerâmica, concreto, vidro ou madeira, alguns com visão indireta ou impedida,

o que melhor contempla os fins sociais da lei. A Súmula 120 do STF já previa que os

12

CHAMOUN, Ebert. Exposição de motivos do esboço do anteprojeto do Código Civil – Direito

das Coisas. Revista de jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado da Guanabara. Rio de Janeiro:

TJRJ, v. 23, 1970, p. 23.

13 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Revista

dos Tribunais, 2012, v. 13, p. 546 e 569.

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tijolos de vidro translúcido podiam ser levantados a menos de metro e meio do imóvel

vizinho. Também não há impedimento para que as aberturas sejam construídas em

paredes limítrofes, o que tem sido objeto de conflitos.

As aberturas de luz ou ventilação, contudo, não geram limitação

permanente ao direito de propriedade do vizinho, ao contrário da construção de janelas,

varandas e terraços. Ainda que tais aberturas existam por muito tempo, para além de ano

e dia, pode o vizinho levantar edificação que as vede, uma vez que não há previsão legal

de prazo preclusivo. Não pode o vizinho pretender a demolição ou fechamento de

aberturas ou vãos de luz em parede limítrofe, mas ele não está impedido de construir

parede que as vedes, sempre que desejar, sem justificação. Escola mantida por instituição

considerada de utilidade pública abriu em parede limítrofe vãos de luz e ventilação, em

duas salas de aula, utilizando elementos vasados, sem objeção dos vizinhos. Estes, após

dez anos, resolveram edificar parede vedando os vãos, tendo a escola ingressado em juízo

para impedi-los. Em grau de recurso extraordinário, decidiu o STF (RE 211.385-9) que a

garantia da função social da propriedade (CF, art. 5º, XXIII) não afeta as normas de

composição do conflito de vizinhança previstas no Código Civil, “não se podendo impor

gratuitamente, ao proprietário, a ingerência de outro particular em seu poder de uso, pela

circunstância de exercer este último atividade reconhecida como de utilidade pública”.

Parece-nos, no entanto, que a regra permissiva do art. 1.302, parágrafo

único do Código Civil, da desconsideração das aberturas de luz e ventilação, há de ser

interpretada em harmonia com o art. 1.278 do Código Civil, o qual estabelece que, se as

interferências prejudiciais ao vizinho forem justificadas por interesse público o causador

pagar-lhe-á indenização cabal; essa prescrição é geral, não estando adstrita às situações

específicas do uso anormal da propriedade. Assim, justificando-se o interesse público,

que é o caso da escola referida na decisão do STF - anterior ao início da vigência do atual

Código Civil - não pode prevalecer o interesse particular do vizinho. Interesse público,

para os fins da norma legal, não é o estatal, mas o social, expressado no direito dos alunos

de utilizar adequadamente as salas de aula. Para compensar o dever de suportar a

interferência, confere-se ao titular do imóvel o direito, a pretensão e a ação da indenização

cabal, harmonizando-se direito de propriedade e função social.

O Código Civil de 2002 manteve as regras advindas da legislação

anterior sobre o uso pelos vizinhos da mesma parede divisória, ou o condomínio da

parede-meia, em homenagem às edificações de casas conjugadas, vindas das tradições

coloniais, ainda existentes em muitas cidades brasileiras, de acordo com as respectivas

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legislações urbanísticas. A matéria retomou sua importância com a proliferação dos

condomínios edilícios, em cujos pisos ou andares as paredes divisórias são comuns das

unidades imobiliárias. As regras podem ser assim ordenadas:

(1) O proprietário ou possuidor tem direito de utilizar

a parede divisória, se ela suportar a nova edificação ou reforma,

reembolsando ao vizinho metade do valor da parede e do chão

correspondente. O vizinho pode travejar na parede-meia, cuja metade

foi edificada em seu imóvel, pois, por metade é sua, mas antes há de

pagar o meio valor dela. Se o proprietário faz a sua parede só no seu

terreno, toda ela é sua. Para Orlando Gomes14, o direito de madeirar ou

travejar condiciona-se à conjugação dos seguintes requisitos: a) que o

prédio seja urbano; b) que esteja sujeito a alinhamento; c) que a parede

divisória pertença ao vizinho; d) que aguente a nova construção; e) que

o dono do terreno vago pague meio valor da parede divisória.

(2) Quem primeiro construir a parede divisória tem

direito de fazê-la por sobre a linha que divide os dois imóveis, ocupando

meia espessura do terreno contíguo. O vizinho não perde a titularidade

sobre a parte ocupada pela parede, mas, se também a utilizar em

edificação sua, terá de pagar a metade do valor da parede ao que a

construiu.

(3) O vizinho apenas poderá utilizar a parede se ela

suportar a nova edificação; se dúvida ou risco houver, poderá quem a

construiu exigir do outro que preste garantia;

(4) Qualquer dos dois condôminos da parede-meia

tem o dever de informar ao outro das obras que desejar fazer, e o dever

de segurança, de modo a não por em risco a parede, com tais obras;

(5) Qualquer dos condôminos de parede-meia não

pode, sem o consentimento do outro, utilizar a parede para armários ou

assemelhados, ou encostar chaminés, fogões (salvo os fogões de

cozinha, desde que não sejam prejudiciais ao vizinho), fornos ou

aparelhos que possam produzir infiltrações ou interferências

14

GOMES, Orlando. Direitos reais. Revista, atualizada e aumentada por Luiz Edson Fachin. Rio

de Janeiro: Forense, 2004, p. 232.

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prejudiciais. O consentimento não necessita de ser expresso, bastando

a aquiescência duradoura ou renúncia do direito. A infiltração ou

interferência gera dever de indenizar sem culpa, podendo o prejudicado,

ainda, exigir a demolição. Se o dano é provável e iminente, cabe caução

de dano infecto;

(6) O condômino pode alterar a parede divisória,

desde que não prejudique o vizinho e assuma as despesas

correspondentes, salvo se o vizinho adquirir meação, com utilização da

parte acrescida.

Não há condomínio de parede-meia quando a parede é própria do

confinante, que a levantou justaposta à do vizinho. Nessa hipótese, salienta Hely Lopes

Meyrelles15, não há limitação ao seu uso e nela podem ser embutidos ou encostados

quaisquer aparelhos que o proprietário desejar, sem possibilidade de embargo ou caução

prévia para prosseguimento das obras. Somente a posteriori poderá o confrontante obter

a demolição e a reparação dos danos que tais obras lhe venham a causar, como resultado

do uso anormal da propriedade.

Com relação às águas de poço e de nascente, proíbe-se que a construção

seja causa de sua poluição, se (CC, art. 1.309) forem a ela preexistentes. Esclareça-se que

não se extrai dessa norma que haja um bill of indemnity, um poder para poluir, se o poço

ou a fonte do vizinho forem posteriores à construção, pois, de acordo com o § 3º do art.

225 da Constituição, as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente, em

qualquer dimensão, sujeitarão os infratores a sanções penais e administrativas,

independentemente da obrigação de reparar os danos causados, cuja responsabilidade

civil é objetiva. Além da indenização pelos danos, o causador tem o dever legal de demolir

a edificação ou a parte dela que os tiver provocado.

Igualmente, são proibidas as obras que tirem ao poço ou à nascente a

água indispensável às suas necessidades normais. O direito de vizinhança, por parte do

que tem a água para suas necessidades, consiste em que ela não seja tirada ou reduzida,

de modo a torná-la insuficiente para o uso normal. Vizinho não é necessariamente o

contíguo, pois se há o mesmo lençol de água em vários imóveis, todos são legitimados.

Note-se, todavia, que o particular tem, apenas, o direito de exploração das águas

15

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito de construir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, p. 49.

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subterrâneas mediante autorização do Poder Público, cobrada a devida contraprestação,

na forma da Lei nº 9.433, de 1997; se não houver autorização, não terá direito contra

quem a tenha obtido. Como lembrou o STJ (REsp 1.276.689), a necessidade de outorga

para a extração da água do subterrâneo é justificada pela problemática mundial de

escassez da água e se coaduna com o advento da Constituição, que passou a considerar a

água um recurso limitado, de domínio público.

São proibidas as obras que possam provocar desmoronamento ou

deslocação de terra, ou que comprometam a segurança dos imóveis vizinhos. Nesses

casos, a construção depende da realização de obras acautelatórias, que possam reduzir ou

impedir, substancialmente, os riscos de danos. Se, apesar das obras acautelatórias, os

danos ocorrerem, o vizinho prejudicado poderá exigir indenização correspondente. A

responsabilidade do dono da edificação é objetiva, independentemente de culpa, não

sendo atenuantes ou compensatórias as providências que tiver adotado para evitar os

danos. É ainda responsável pela demolição da construção, naquilo que tiver provocado os

danos. Até à conclusão da obra, cabe a nunciação de obra nova; após a conclusão, é

cabível a ação demolitória, dentro do prazo de um ano e dia.

A responsabilidade do direito de vizinhança não decorre da ilicitude do

ato de construir, e sim da lesividade da construção. Em consequência, investe-se no

direito de regresso contra o empreiteiro, projetista, construtor que tenha contratado para

execução da obra. Nesse sentido, decidiu o STJ (AgRg no REsp 473.107) que o contrato

firmado entre o proprietário da obra e o empreiteiro, quanto à responsabilidade por

eventuais danos, não produz efeitos contra terceiros, entretanto assegura o direito de

regresso contra o empreiteiro.

O possuidor ou o proprietário tem o dever de tolerância do ingresso em

seu imóvel do vizinho, quando este, após comunicação prévia, necessitar reparar, manter,

limpar ou reconstruir o prédio, ou instalações deste, ou cerca divisória de qualquer

espécie. O ingresso é devido quando for indispensável para tais providências, que não

poderão ser executadas a partir do próprio imóvel, salvo com custos muito elevados. Nos

condomínios edilícios, por exemplo, as instalações hidrossanitárias, situadas por baixo do

piso, apenas podem ser consertadas a partir do teto da unidade inferior. O direito de

ingresso é também assegurado quando o proprietário ou possuidor necessitar retirar suas

coisas, inclusive animais, que eventualmente tenham ido ou caído no imóvel vizinho. O

direito de ingresso não é indiscriminado e deve ser exercido de modo mais cômodo

possível, preferentemente em horários combinados, ou fora dos horários de repouso e

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alimentação habituais. O direito de ingresso pode ser impedido se o vizinho tomar a

iniciativa de entregar as coisas buscadas, pois não se admite o abuso do direito subjetivo.

Em qualquer hipótese, se o exercício do direito de ingresso causar danos ao vizinho, este

tem pretensão à indenização correspondente.

O direito de ingresso, em qualquer circunstância, é dependente de

consentimento de quem habite o imóvel onde as obras devam ser feitas ou onde as coisas

devam ser retiradas. Se houver recusa, o ingresso dependerá de decisão judicial. Assim é,

porque a Constituição (art. 5º, XI) assegura que “a casa é asilo inviolável do indivíduo,

ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de

flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação

judicial”.

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CONTRATOS ELETRÔNICOS E CONSUMO

Electronic contracts and consumption

Anderson Schreiber Professor de Direito Civil da UERJ. Procurador do Estado do Rio de Janeiro. Doutor em Direito Privado

Comparado pela Università degli studi del Molise (Itália). Mestre em Direito Civil pela UERJ. Autor dos

livros Direito Civil e Constituição e Novos Paradigmas da Responsabilidade Civil, entre outros.

“There is no spoon”

(Matrix, 1999)

Resumo: O artigo analisa o tratamento jurídico dos contratos eletrônicos, à luz do

ordenamento brasileiro, em especial nas relações de consumo. Examina controvérsias

relacionados à formação dos contratos, ao direito de arrependimento e à publicidade

eletrônica, colhendo parâmetros também na experiência jurídica estrangeira.

Palavras-chave: Contratos Eletrônicos; Direito do Consumidor; Direito de

Arrependimento; Formação dos Contratos; Publicidade Eletrônica; Consumismo na

Internet.

Abstract: The article provides a legal analysis of electronic contracts, under Brazilian

law, with special emphasis on business-to-consumer relationships. Contract formation,

right of withdrawal and electronic marketing are some of the issues examined on the

article, also in light of the standards used on foreign legal experience.

Key-Words: Electronic Contracts; Consumer Law; Right of Withdrawal; Contract

Formation; Electronic Marketing; Consumism on the Internet.

Sumário: 1. O comércio eletrônico no Brasil. – 2. Os chamados contratos eletrônicos e

os desafios trazidos pela contratação via internet. – 2.1. Quem contrata. Semianonimato

virtual e o dever de identificação do fornecedor eletrônico. – 2.2. Onde contrata. A

transnacionalidade do contrato eletrônico e o problema da lei aplicável. Stream of

commerce e as normas de ordem pública. – 2.3. Quando contrata. Momento de formação

do contrato eletrônico e o dever de confirmação de recebimento da aceitação à oferta. –

2.4. Como contrata. A informalidade do contrato eletrônico e sua prova. – 2.5. O quê

contrata. A paradoxal insuficiência da informação no ambiente eletrônico. Publicidade na

internet e outras técnicas de incentivo ao consumo. – 3. Direito de arrependimento.

Tratamento da matéria no direito brasileiro: Lei 8.078/1990 e Decreto 7.962/2013.

Experiência estrangeira: Diretiva 2011/83/CE. Análise comparativa. – 4. Conclusão.

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1. O comércio eletrônico no Brasil1

O comércio eletrônico ou e-commerce movimenta bilhões de reais por

ano no Brasil. Embora sua parcela mais significativa, sob o prisma econômico, ainda seja

representada por operações comerciais realizadas entre os próprios fornecedores, também

chamadas relações B2B (sigla em inglês para a expressão business to business), o

faturamento do varejo eletrônico ou B2C (business to consumer) tem crescido

exponencialmente entre nós.2 Um número cada vez maior de consumidores brasileiros

adquire produtos e serviços por meio da internet. O Brasil representa, segundo diversas

pesquisas, o maior e mais promissor mercado de e-commerce da América Latina, seguido

por México e Chile.3

Teoricamente, o consumidor brasileiro deveria ter mais facilidade de

exercer seus direitos no ambiente eletrônico. Sua comunicação com o fornecedor deveria

ser mais ágil e célere, por força das tecnologias de comunicação à distância (e-mail) e

interativa (chat). As informações sobre o produto ou serviço contratado deveriam ser, em

tese, mais amplas e mais acessíveis, já que, ao contrário do que ocorre no comércio

tradicional, não há limite físico-espacial para a exposição de dados sobre o objeto da

compra. O mesmo vale para os termos contratuais, que podem ser disponibilizados na

internet sem a necessidade de um suporte físico em papel e com o auxílio de realces

visuais ou de simples mecanismos de busca que facilitem a identificação da informação

específica buscada pelo consumidor. Em teoria, portanto, o consumidor deveria enfrentar

menos percalços no comércio eletrônico que no comércio tradicional.

1 O autor registra seu agradecimento ao acadêmico de Direito Robson Guimarães Filho, pelo

imprescindível auxílio nas pesquisas relativas ao comércio eletrônico e ao tratamento atualmente

dispensado à matéria pelos tribunais brasileiros.

2 Segundo dados da Câmara Brasileira de Comércio Eletrônico, o setor B2C foi responsável por um

faturamento de 22,5 bilhões de reais no ano de 2012, alcançando um total de 66,7 milhões de pedidos

(www.camara-e.net, 20.3.2013).

3 Além disso, o Brasil possui, segundo estudo realizado em 2010, o melhor índice de e-readiness da

América Latina. Tal índice procura refletir, por meio da combinação de uma série de variáveis (potencial

de demanda, infraestrutura tecnológica, penetração dos diferentes meios de pagamento etc.), a capacidade

de cada país para a conversão da internet em um meio efetivo de comércio (relatório da América Economia

Intelligence, disponível em www.ecommerceday.mx).

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Na prática, todavia, o que se verifica é que os direitos do consumidor

brasileiro têm sido frequentemente desrespeitados no e-commerce, cujos índices de

reclamação chegam a superar, proporcionalmente, aqueles do comércio tradicional em

algumas regiões do Brasil. Notícias recentes têm revelado um quadro de violações

sistemáticas à legislação brasileira por parte de grandes fornecedores eletrônicos de

produtos ou serviços. Tome-se como exemplo pesquisa recente realizada pelo Procon do

Rio de Janeiro4 que, analisando os sites de 25 fornecedores de produtos e serviços, em

diferentes setores da economia, concluiu que nenhum deles respeitava integralmente a

legislação brasileira em matéria de direitos do consumidor eletrônico.5

Fazer valer a legislação brasileira no e-commerce não é tarefa simples.

A contratação virtual traz uma série de dificuldades e desafios no campo jurídico.

2. Os chamados contratos eletrônicos e os desafios trazidos pela contratação via

internet.

Nos manuais de direito civil e empresarial publicados no Brasil nos

últimos anos, tornou-se comum encontrar referências aos “contratos eletrônicos”, como

um “novo” gênero de contratos que se afastaria das regras do direito contratual pátrio,

constituindo uma espécie de setor de exceção ou de capítulo à parte dentro do direito

privado, a exigir uma legislação própria.6 Em oposição a esta abordagem, há quem

sustente que os chamados contratos eletrônicos podem e devem ser tratados exatamente

como qualquer outro contrato, afirmando que toda a celeuma criada em torno do tema

4 No sistema brasileiro, os Procons são órgãos ou entidades estaduais ou municipais responsáveis

pela proteção dos direitos e interesses do consumidor.

5 Procon Carioca notifica 25 sites de comércio eletrônico, reportagem de Luiza Xavier, publicada

no O Globo Online, em 7.8.2013. O relatório do Procon revela, por exemplo, que nenhuma das 25 empresas

notificada exibia de forma clara o instrumento contratual.

6 Cite-se, como exemplo desse entendimento, a passagem de Gustavo Testa Corrêa: “A economia

está mudando. As transações de bens materiais continuam importantes, mas as transações de bens

intangíveis, em um meio dessa mesma natureza, são os elementos centrais da dinâmica comercial

contemporânea, do comércio eletrônico. A legislação deverá abraçar um novo entendimento: o de que as

mudanças fundamentais resultantes de um novo tipo de transação requererão regras comerciais compatíveis

com o comércio de bens via computadores e similares.” (Aspectos Jurídicos da Internet, São Paulo: Saraiva,

2000, p. 38).

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reduz-se ao problema da validade do documento eletrônico como meio de prova perante

o Poder Judiciário.7

A razão, contudo, não se situa em nenhum dos dois extremos. Por um

lado, o que se tem chamado de “contratos eletrônicos” nada mais são que contratos

formados por meios eletrônicos de comunicação à distância, especialmente a internet, de

tal modo que o mais correto talvez fosse se referir a contratação eletrônica ou contratação

via internet, sem sugerir o surgimento de um novo gênero contratual. Por outro lado,

parece hoje evidente que os desafios da matéria não se restringem à validade da prova da

contratação por meio eletrônico – que, de resto, consiste em ponto superado no direito

brasileiro –, mas envolvem diversos aspectos da teoria geral dos contratos que vêm sendo

colocados em xeque por essa significativa transformação no modo de celebração dos

contratos e no próprio desenvolvimento da relação jurídica entre os contratantes.

Com efeito, a contratação eletrônica veio abalar, de um só golpe, cinco

referências fundamentais utilizadas pela disciplina jurídica do contrato: quem contrata,

onde contrata, quando contrata, como contrata e o quê contrata. Essas cinco questões eram

respondidas de maneira relativamente segura nas contratações tradicionais e, por isso

mesmo, eram tomadas como parâmetros pelo legislador e pelos tribunais para a

determinação da solução jurídica aplicável. No campo dos contratos eletrônicos,

responder essas cinco perguntas básicas tornou-se um verdadeiro calvário, como se passa

a demonstrar.

2.1. Quem contrata. Semianonimato virtual e o dever de identificação do fornecedor

eletrônico.

Na contratação presencial entre pessoas naturais, há uma pronta

identificação dos sujeitos contratantes. Essa identificação não é tão imediata quando a

celebração do contrato envolve pessoa jurídica, já que, nessa hipótese, entram em jogo

7 É a posição de Carlos Gustavo Vianna Direito, para quem “muitas vezes o contrato que está sendo

feito por intermédio de uma nova forma de comunicação não traz nenhuma novidade, sendo, pois, um

contrato já regulado. A verdadeira questão dos contratos eletrônicos será a forma de prova destes perante o

Poder Judiciário.” (Do Contrato – Teoria Geral, Rio de Janeiro: Renovar, 2007, pp. 119-120). Ver, em

sentido semelhante, Erica Aoki, para quem “contrato cibernético nada mais é do que aquele contrato

firmado no espaço cibernético, e não difere de qualquer outro contrato. Ele apenas é firmado em um meio

que não foi previsto quando a legislação contratual tradicional se desenvolveu.” (Comércio Eletrônico –

Modalidades Contratuais, Anais do 10º Seminário Internacional de Direito de Informática e

Telecomunicações, Associação Brasileira de Direito de Informática e Telecomunicações, 1996, p. 4).

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questões atinentes à legitimidade da representação (rectius: presentação). Ainda assim,

há mecanismos jurídicos para a verificação da identidade dos contratantes e, mesmo na

ausência de sua utilização, o direito prestigia, por meio da teoria da aparência e de outras

construções doutrinárias e jurisprudenciais, a confiança depositada na identidade do

contratante a partir dos dados físicos que compõem a situação aparente.8 No comércio

eletrônico, o problema da identificação do contratante é mais complexo.

São numerosos os sites de fornecedores de produtos ou serviços que

sequer exibem o nome empresarial da pessoa jurídica responsável pelo fornecimento,

limitando-se a exibir um nome fantasia. Muitos sites não trazem informações acerca de

endereço físico ou mesmo de número telefônico para contato. O próprio domínio utilizado

para hospedar o site (endereço do site) pouco revela, na medida em que seu registro pode

ser feito sem a plena identificação do requerente e a consulta pública ao sistema brasileiro

de domínios não exibe o nome do titular, mas apenas o servidor DNS.9

O problema se torna ainda mais dramático quando o domínio não é

brasileiro (.br), já que cada país possui regras distintas para o procedimento de registro

de domínios e a imensa maioria deles não revela publicamente quem são seus titulares. A

figura do sujeito de direito se dissipa por completo na internet. O consumidor, confiando

na “marca” exibida ou mesmo na “boa aparência” do site, realiza a contratação eletrônica

e, somente diante do surgimento de defeitos posteriores, passa a buscar a identidade

jurídica do fornecedor, que acaba, em muitos casos, por permanecer oculta. Tal

circunstância compromete a efetividade das normas protetivas, na medida em que a

ausência de um sujeito passivo plenamente identificado dificulta as comunicações

formais entre as partes e impede a adoção de medidas judiciais ou extrajudiciais

(notificações etc.) por parte do consumidor lesado.

Com o propósito de combater essa e outras dificuldades inerentes ao

comércio eletrônico, a Presidente Dilma Rousseff fez publicar, em 15 de março de 2013,

o Decreto 7.962, cujo art. 2o determina:

Art. 2o Os sítios eletrônicos ou demais meios eletrônicos utilizados

para oferta ou conclusão de contrato de consumo devem disponibilizar,

8 Seja consentido remeter a Anderson Schreiber, A Representação no Novo

Código Civil, in Direito Civil e Constituição, São Paulo: Atlas, 2013, pp. 61-78. 9 O sistema de nome de domínio (DNS – Domain Name System) é um sistema que nomeia

computadores e serviços de rede e é organizado de acordo com uma hierarquia de domínios. Para maiores

detalhes, ver Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR – NIC.BR (https://registro.br).

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em local de destaque e de fácil visualização, as seguintes informações:

I - nome empresarial e número de inscrição do fornecedor, quando

houver, no Cadastro Nacional de Pessoas Físicas ou no Cadastro

Nacional de Pessoas Jurídicas do Ministério da Fazenda;

II - endereço físico e eletrônico, e demais informações necessárias para

sua localização e contato; (...)10

Como revelou, todavia, a já citada pesquisa do Procon do Rio de

Janeiro, numerosos fornecedores continuam descumprindo tais deveres, mantendo-se um

cenário de semianonimato eletrônico no Brasil. Tal omissão está a exigir ulterior esforço

de controle por parte dos órgãos brasileiros, com a aplicação de sanções mais severas,

uma vez que a identificação do fornecedor é imprescindível para a tutela adequada do

consumidor no ambiente eletrônico e para a efetiva aplicação das normas de direito

contratual.

Referido esforço não pode prescindir, contudo, de acordos e convênios

internacionais que permitam e imponham a identificação fácil e precisa das sociedades

empresárias por trás dos sites de vendas. Mesmo nos países que não contam com normas

cogentes nesse sentido, é preciso que se desenvolvam “selos” de qualidade para os sites

que cumpram padrões mínimos internacionalmente aceitos, facilitando o acesso do

consumidor à pessoa jurídica estrangeira com quem contrata. Nesse passo, assume

relevância um segundo aspecto da atividade contratual fortemente atingido pelo comércio

eletrônico: o lugar da contratação.

2.2. Onde contrata. A transnacionalidade do contrato eletrônico e o problema da lei

aplicável. Stream of commerce e as normas de ordem pública.

A internet suprimiu a referência física, geográfica, ao lugar da

contratação, noção que era tão cara ao raciocínio do direito civil e do direito internacional

privado. Um consumidor brasileiro, em viagem pela Europa, pode visitar o site de uma

livraria de Nova Iorque, hospedado em um provedor da Califórnia, para adquirir um livro

escrito por um autor francês, produzido por uma editora do Canadá, que lhe será expedido

por um distribuidor situado no México ou na Argentina. Tais contratos, como se vê, não

10

O texto do Decreto foi fortemente influenciado pelo Projeto de Lei nº 439 de 2011 (Senado

Federal), dedicado à atualização do Código de Defesa do Consumidor em matéria de comércio eletrônico.

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são meramente internacionais, no sentido tradicional do termo, mas são verdadeiramente

transnacionais, já que transcendem qualquer nacionalidade. A nacionalidade perde, em

larga medida, sua importância. O “lugar da contratação” passa, com o comércio

eletrônico, a ser uma espécie de abstração,11 uma ficção que os juristas lutam com unhas

e dentes para preservar, mas que se revela cada vez mais artificiosa e irreal.

Tamanha transformação – talvez a mais significativa dentre todas

aquelas trazidas pelo advento da internet – causa profundas consequências no modo de

aplicação do Direito, vinculado, desde a formação dos Estados Nacionais, ao território

(locus) de exercício da soberania estatal. A comunidade jurídica brasileira parece não ter

ainda despertado para a amplitude dessas consequências, que prometem afetar, em última

análise, a própria metodologia de produção das normas jurídicas e suas formas

tradicionais de aplicação. Em um plano mais específico e mais imediato, porém, a

jurisprudência brasileira tem revelado sensibilidade ao examinar ao menos um

subproduto dessa mudança: a discussão sobre a lei aplicável ao contrato.

A Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (Decreto-lei n.

4.657, de 4 de setembro de 1942) determina, em seu art. 9o, que as obrigações são regidas

pela “lei do país em que se constituírem”.12 A regra é de fácil aplicação nos contratos

celebrados entre presentes, em que a própria situação física dos contratantes já revela o

país em que o contrato é celebrado e, portanto, a lei que se destina a regê-lo. Em relação

aos contratos celebrados entre ausentes, tal critério afigura-se, porém, inaplicável, tendo

o legislador brasileiro recorrido aí a um artifício legal, segundo o qual, na contratação

entre ausentes, “a obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que

residir o proponente”.13

A aplicação literal destas regras ao comércio eletrônico resultaria em

constante reenvio à lei do país do fornecedor, na medida em que os sites de varejo exibem

propostas permanentes ao público que o consumidor simplesmente “aceita” mediante o

pressionar de um botão do seu teclado ou mouse.14 Dois problemas relevantes surgiriam.

11

Pense-se, por exemplo, na possibilidade, hoje cada vez mais freqüente, de que o contrato

eletrônico seja celebrado por meio de um dispositivo móvel, como telefone celular, tablet ou leitor digital,

por um usuário em trânsito.

12 “Art. 9º. Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem.” 13

Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, art. 9o, §2o. 14

Essa a conclusão praticamente unânime da doutrina brasileira: “Assim, devemos ter em mente

que a oferta feita via Web site é, em regra, ad incertas personas, não havendo como prever em que

localidade poderá ser acessada. Portanto, o usuário que acessa o site deve ter em mente que está negociando

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Primeiro, em um cenário em que, conforme já destacado, os sites muitas vezes omitem a

própria identidade do fornecedor e também o seu endereço físico, o consumidor brasileiro

acabaria por se sujeitar à legislação de um país que, no ato da contratação, sequer sabe

precisamente qual é, gerando uma situação de inequívoco desequilíbrio em seu desfavor.

Segundo, haveria forte estímulo para que fornecedores de produtos ou serviços online

transferissem suas sedes para países com baixo grau de proteção normativa ao

consumidor, replicando uma espécie de “manipulação” já adotada pelo mercado global

em relação à legislação trabalhista, o que geraria prejuízos evidentes à economia

brasileira.15

Por essas e outras razões, a jurisprudência brasileira tem caminhado no

sentido de afirmar que o Código de Defesa do Consumidor se aplica às relações de

consumo estabelecidas entre fornecedores eletrônicos estrangeiros e o consumidor

brasileiro. Diferentes fundamentos têm sido utilizados para tanto. Invoca-se, de modo

geral, a imperatividade do respeito às normas de ordem pública, ao lado de argumentos

ligados à transnacionalidade das marcas comerciais em uma economia globalizada ou a

uma importação algo abrangente da teoria do stream of commerce, segundo a qual quem

direciona seu comércio aos consumidores de certos países assume o ônus de ter sua

atividade disciplinada pelas respectivas leis nacionais.16

Tais soluções não exprimem, como se pode notar, um retorno ou um

renovado compromisso com o “lugar da contratação”. Muito ao contrário: exprimem

novas formas de identificação da lei aplicável às relações contratuais, que deixam de estar

atreladas à geografia da celebração para passarem a exprimir critérios ratione personae,

fundados na pessoa do contratante (no caso, o consumidor brasileiro), ou critérios

teleológicos, como aqueles fundados na finalidade de proteção do consumidor frente às

práticas de mercado, sejam elas nacionais, internacionais ou transnacionais. Parece

inegável que o celebrado “fim das fronteiras” promovido pela globalização econômica

tem, no comércio eletrônico, servido preponderantemente ao interesse dos fornecedores,

que parecem pretender escapar no mundo virtual dos custos e ônus inerentes não apenas

sob as regras do local onde está o proponente, como esse estivesse negociando em viagem ao exterior”

(Erica Brandini Barbagalo, Contratos Eletrônicos, São Paulo: Saraiva, 2001, p. 72).

15 O Brasil, convém lembrar, é considerado um país de forte legislação consumerista.

16 Ver Superior Tribunal de Justiça, Ação Rescisória 2.931/SP, 4.9.2003. Sobre a teoria do stream

of commerce, ver A. Kimberley Dayton, Personal Jurisdiction and the Stream of Commerce, 7 Review of

Litigation 239 (1987-88), William Mitchell College of Law.

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ao processo econômico de disponibilização dos produtos e serviços, mas também às

normas jurídicas que regulamentam sua relação com os consumidores. Impõe-se aqui a

resistência do direito às conveniências do mercado, resistência que não deve repousar

sobre conceitos como o “lugar da contratação”, mas que deve recorrer abertamente à sua

ratio fundamental neste campo: a proteção mais efetiva ao consumidor.

Sob o prisma estritamente jurídico, faz-se importante registrar que um

dos pilares mais tradicionais do direito dos contratos – aquele que estabelecia uma relação

quase “matemática” entre o local da contratação e a lei aplicável ao contrato – foi

definitivamente rompido pelo comércio eletrônico, com uma série de consequências

ainda não totalmente exploradas, quer no âmbito da teoria geral dos contratos, quer no

âmbito do direito internacional privado.

2.3. Quando contrata. Momento de formação do contrato eletrônico e o dever de

confirmação de recebimento da aceitação à oferta.

A terceira referência basilar da disciplina contratual afetada pela

contratação eletrônica diz respeito ao momento da contratação. Quando se reputa firmado

o contrato? Exatamente como ocorre em relação ao lugar da contratação, inexiste, no

direito brasileiro, uma regra específica que trate do tempo de formação dos contratos

celebrados eletronicamente. Aplica-se, a rigor, a norma geral estabelecida no art. 434 do

Código Civil, segundo a qual o contrato entre ausentes se forma, em regra, no momento

em que a aceitação é expedida17.

Trata-se da chamada teoria da expedição mitigada, de longa tradição no

direito civil brasileiro. Em um cenário de contratação física, a teoria da expedição traz

certa segurança ao aceitante, o qual, no momento em que envia a aceitação, sabe já

formado o vínculo contratual, sem que se faça necessária nova manifestação do

proponente – o que, em um contexto epistolar, exigiria maior dispêndio de tempo e custo.

O envio da aceitação deixa, ademais, vestígios físicos (registro do encaminhamento por

correio) que, em uma eventual dúvida quanto à formação ou não do contrato, favorecem

o aceitante. No ambiente eletrônico, todavia, essas vantagens desaparecem. O envio da

17 “Art. 434. Os contratos entre ausentes tornam-se perfeitos desde que a aceitação é expedida,

exceto: I - no caso do artigo antecedente (art. 432); II - se o proponente se houver comprometido a esperar

resposta; III - se ela não chegar no prazo convencionado.” O art. 433, por sua vez, considera “inexistente a

aceitação, se antes dela ou com ela chegar ao proponente a retratação do aceitante”.

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aceitação ocorre, muitas vezes, por um mero “clique” do usuário e não deixa qualquer

prova ou indício de que a operação foi concluída.

Para evitar insegurança quanto à realização ou não do negócio virtual,

deixando o consumidor ao sabor da conveniência do fornecedor em cumprir ou não a

ordem expedida, muitos autores têm defendido o afastamento da teoria da expedição

mitigada no campo dos contratos eletrônicos. Nessa direção, o Enunciado 173 da Jornada

de Direito Civil, organizada pelo Conselho da Justiça Federal, chega a afirmar:

A formação dos contratos realizados entre pessoas ausentes, por meio

eletrônico, completa-se com a recepção da aceitação pelo proponente.

Tal enunciado, a nosso ver, merece reforma. A uma, porque contraria

frontalmente a letra do art. 434, transcendendo o escopo interpretativo dos enunciados

para instituir uma orientação antagônica ao texto legal. A duas, porque a adoção da teoria

da recepção não resolve o problema da formação dos contratos eletrônicos, na medida em

que o consumidor eletrônico continua sem saber se o seu pedido de compra foi recebido,

questão que permanece inteiramente na esfera de poder do fornecedor. Em outras

palavras, condicionar a formação do contrato ao recebimento da aceitação não diminui

em nada a insegurança negocial no ambiente eletrônico.

Melhor rumo seguiu o Decreto 7.962, de 15 de março de 2013, que, em

seu art. 4o, inciso I, instituiu o dever de confirmação para garantir o atendimento facilitado

ao consumidor no comércio eletrônico. Não se trata, a rigor, de uma mudança no

momento de formação do contrato, já que o contrato continua se formando

independentemente da confirmação, mas sim de um dever legal: passa a incorrer em

infração o fornecedor que deixa, nos termos do Decreto, de confirmar “imediatamente o

recebimento da aceitação da oferta”.18 Com isso, a legislação brasileira passa a se alinhar,

nesse particular, ao direito europeu, que, desde a Diretiva Européia 2000/31/CE, já

instituía o dever de confirmação no comércio eletrônico (art. 11).19

Embora não se trate de uma alteração da teoria aplicável à formação

dos contratos, a verdade é que a instituição do dever de confirmar o recebimento da

18 “Art. 4o Para garantir o atendimento facilitado ao consumidor no comércio eletrônico, o

fornecedor deverá: III – confirmar imediatamente o recebimento da aceitação da oferta (...)”.

19 O mesmo caminho é seguido no Projeto de Lei nº 439 de 2011, que se propõe a atualizar o Código

de Defesa do Consumidor com vistas à proteção do consumidor no âmbito do comércio eletrônico (art. 45-

D, I).

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aceitação sujeita o fornecedor, ao menos em teoria, a sanções bem mais severas (multa,

suspensão da atividade etc.)20 que a simples indiferença jurídica ao vínculo formado – o

que, de resto, poderia acabar prejudicando o próprio consumidor. Ainda, portanto, que

não se tenha ressalvado a aplicação do art. 434 no caso das contratações eletrônicas, a

instituição do dever de confirmação modifica a própria abordagem jurídica do tempo de

formação do contrato, transcendendo o clássico binômio proposta-aceitação e revelando

a passagem de uma lógica puramente estrutural a uma lógica mais funcional e

decididamente protetiva.

2.4. Como contrata. A informalidade do contrato eletrônico e sua prova.

A forma do contrato desempenha historicamente uma dupla função: por

um lado, alerta os contratantes para a seriedade do vínculo contratual, fazendo-os refletir

sobre a contratação antes de conclui-la em definitivo.21 Por outro lado, serve, perante os

próprios contratantes e a sociedade, como meio de prova da formação do contrato e do

seu conteúdo. Ambas as funções se dissipam na internet, onde a contratação é

absolutamente informal, desprovida mesmo de qualquer suporte físico.

Em contraposição aos instrumentos escritos e assinados da contratação

tradicional, a forma da contratação eletrônica resume-se frequentemente à exibição de

uma tela ou página virtual que o consumidor pode, se cuidadoso, se dar ao trabalho de

imprimir ou copiar para o seu próprio computador ou dispositivo móvel. Pode ainda

dispor de um e-mail ou outra forma de aviso eletrônico, como uma breve mensagem ao

seu aparelho de telefonia celular (SMS, sigla de Short Message Service).22 Em um passado

recente, os juristas brasileiros (como, de resto, os juristas de todo o mundo) discutiam se

20

O art. 7o do mesmo Decreto determina que “a inobservância das condutas” nele descritas enseja

a aplicação das sanções previstas no art. 56 do Código de Defesa do Consumidor, que traz o rol genérico

de sanções administrativas aplicáveis às infrações da legislação consumerista, como multa, proibição de

fabricação do produto, suspensão temporária da atividade etc.

21 Daí as complexas solenidades (fórmulas verbais, atos simbólicos etc.) exigidas no âmbito do

direito antigo para a celebração de contratos, algumas das quais deixaram vestígios no hábito dos povos

europeus, como a entrega de uma moeda de baixo valor (denier à Dieu) ou a aplicação de uma palmada na

face do vendedor, costume ainda utilizado em alguns mercados de gado na Europa central (emptio non valet

sine palmata). Ver, sobre o tema, John Gilissen, Introdução Histórica ao Direito, Lisboa: Calouste

Gulbenkian, 2001, 3a ed., p. 734.

22 Embora seja possível a utilização de assinaturas eletrônicas e certificações digitais, seu emprego

para fins de aquisição de produtos ou serviços pelo consumidor é muito raro. Sobre o tema das assinaturas

eletrônicas e certificações digitais, ver Jorge José Lawand, Teoria Geral dos Contratos Eletrônicos, São

Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, pp. 141-146.

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tais impressões, cópias ou documentos digitais tinham ou não validade como meio de

prova, constituíam ou não meros indícios e outras questões que o avanço maciço da

cultura digital parece ter tornado um tanto folclóricas. Em que pesem as dificuldades do

sistema judiciário em lidar com documentos puramente eletrônicos e a suspeita quase

instintiva que recaía, até pouco tempo, sobre cópias impressas de páginas virtuais e e-

mails, não parece haver dúvida, atualmente, de que todos esses instrumentos devem ser

admitidos como meios probatórios dos direitos discutidos em juízo. O Código Civil

brasileiro, de 2002, posicionou-se claramente nesse sentido:

Art. 225. As reproduções fotográficas, cinematográficas, os registros

fonográficos e, em geral, quaisquer outras reproduções mecânicas ou

eletrônicas de fatos ou de coisas fazem prova plena destes, se a parte,

contra quem forem exibidos, não lhes impugnar a exatidão.

O Enunciado 398 da IV Jornada de Direito Civil, realizada em outubro

de 2006, assegurou ainda maior clareza ao texto legal, ao concluir que “os arquivos

eletrônicos incluem-se no conceito de ‘reproduções eletrônicas de fatos ou de coisas’, do

art. 225 do Código Civil, aos quais deve ser aplicado o regime jurídico da prova

documental.” Em consonância com essa orientação, os tribunais brasileiros têm acolhido

como meio válido de prova os arquivos digitais.23 Em caso de impugnação da sua

veracidade, exige-se perícia, o que, de resto, pode ocorrer também com documentos

físicos. A questão meramente probatória parece, portanto, equacionada.24

O mesmo não se pode dizer em relação àquele outra função da forma

contratual: a de alertar as partes para a importância e seriedade do vínculo. A contratação

via internet realiza-se de modo cada vez mais veloz, sem a adequada pesquisa sobre as

características do produto ou serviço contratado, sobre a qualidade do fornecedor ou sobre

23

Ver, por exemplo, acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em que se concluiu

que: “a despeito de o contrato de prestação de serviços não conter a assinatura da requerida, tal fato não é

apto a invalidar o referido ajuste, tendo em vista que o contrato de prestação de serviços educacionais é

informal e não exige forma prescrita em lei, podendo até ser firmado verbalmente. O contrato de prestação

de serviços, juntado aos autos, ainda que desprovido de assinatura da ré, é suficiente para provar a realização

do ajuste, visto que os documentos eletrônicos gozam de valor probante e o documento de fls. 06-09

demonstra que a requerida efetivamente aderiu ao aludido contrato, via internet.” (TJMG, Apelação Cível

1.0024.06.986334-8/001, 17ª Câmara Cível, Rel. Des. Lucas Pereira, DJ 12.7.2007). No mesmo sentido,

ver TJSP, Apelação Cível 0018518-77.2010.8.26.0005, 20ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Maria

Lucia Pizzotti, j. 27.8.2012; e TJMG, Apelação Cível 1.0024.07.691106-4/001, 17ª Câmara Cível, Rel.

Des. Marcia de Paoli Balbino, j. 19.2.2009, entre outros.

24 O mesmo vale para o cenário internacional em que um número cada vez maior de acordos,

convenções e modelos normativos reconhecem expressamente a validade jurídica dos documentos

eletrônicos. Cite-se, a título ilustrativo, o art. 5º da Lei Modelo da UNCITRAL sobre Comércio Eletrônico:

“Não se negarão efeitos jurídicos, validade ou eficácia à informação apenas porque esteja na forma de

mensagem eletrônica” (Organização das Nações Unidas, Nova Iorque, 1997).

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as próprias condições do contrato firmado por meio eletrônico. Por mais alarmante que

possa parecer essa constatação, o fato é que o consumidor eletrônico não sabe muitas

vezes o quê está contratando.

2.5. O quê contrata. A paradoxal insuficiência da informação no ambiente

eletrônico. Publicidade na internet e outras técnicas de incentivo ao consumo.

Na contratação tradicional, o consumidor tem frequentemente a chance

de manusear o produto, de verificar a sua embalagem, de testar seu funcionamento ou

ainda de esclarecer dúvidas com um preposto do fabricante ou do comerciante no próprio

estabelecimento comercial. Nos sites da internet, ao contrário, as informações são pré-

dispostas; o produto é descrito por meio de imagens ou descrições técnicas padronizadas,

aplicáveis muitas vezes ao gênero do produto, e não àquela espécie que está sendo

efetivamente adquirida. O consumidor eletrônico não tem acesso físico ao bem.25 É certo

que poderia buscar, em outros sites da internet, informações, avaliações e depoimentos

sobre a qualidade do produto e do fornecedor – alguns sites de compras, inclusive, já

fornecem avaliações como parte da sua estratégia comercial –, mas tal conduta é, na

prática, rara, seja porque tais informações, potencialmente infinitas, não se encontram

ordenadas de modo a facilitar a pesquisa do consumidor, seja porque não são tidas como

inteiramente confiáveis, diante das suspeitas de que se prolifera na internet a manipulação

das ferramentas de avaliação por meio da contratação remunerada de usuários para que

se manifestem sobre certos produtos e serviços (em uma forma oculta e deturpada de

marketing, típica do ambiente virtual). O consumidor eletrônico acaba, assim, dispondo

paradoxalmente de pouca informação sobre o objeto da sua contratação.

Quase sempre o consumidor eletrônico desconhece, também, os termos

do contrato, ou seja, as condições contratuais, que são usualmente apresentados pelos

fornecedores em um formato que desestimula a leitura, por meio de páginas inteiras de

letras miúdas, que contrastam flagrantemente com os elevados investimentos em

programação visual realizados nas páginas dedicadas à oferta de produtos. Na maioria

dos sites, a passagem da página de ofertas à página que exibe os termos contratuais

25

Alguns autores especulam que, no futuro, essa “perda de aspectos do conhecimento da coisa ou

serviço contratado” poderá vir a ser suprida em alguma medida pelo próprio “desenvolvimento tecnológico

(vide 3D)” (Alberto Gosson Jorge Júnior, Aspectos da Formação e Interpretação dos Contratos

Eletrônicos, in Revista do Advogado, ano 32, n. 115, 2012, p. 17).

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configura uma mudança abrupta de formatação, que salta aos olhos do usuário da internet,

cada vez mais acostumado com gráficos e imagens de alta resolução. Muitos fornecedores

sequer se dão ao trabalho de dividir os termos contratuais em tópicos, o que dificulta a

localização pelo consumidor das informações consideradas relevantes para a celebração

do contrato.

Por todas essas razões, embora, em tese, o consumidor pudesse dispor

no ambiente eletrônico de maior tempo de reflexão e de mais instrumentos de busca para

obter informações sobre o objeto e os termos da contratação, o certo é que, atualmente, a

contratação via internet se faz de modo muito mais desinformado que a contratação física.

Tentado pela facilidade de um clique, o consumidor eletrônico compra muitas vezes por

mero impulso, sem a necessária reflexão. Técnicas de oferta de produtos impelem o

usuário à aquisição, como no exemplo corriqueiro em que, tendo realizado a inserção em

seu “carrinho de compras” virtual de um produto do qual realmente necessita, o

consumidor se vê prontamente provocado pelo site a adquirir produtos acessórios àquele

que foi selecionado, ou outros produtos daquele mesmo fabricante, ou, ainda, produtos

adquiridos por outras pessoas que adquiriram aquele mesmo produto,26 em um ciclo

interminável de estímulos ao consumo imediato.

A publicidade também desempenha aí um papel relevante. Ao contrário

do que ocorre no mundo físico – em que a publicidade se restringe a espaços e momentos

relativamente delimitados –, no mundo virtual, a publicidade ocorre em uma espécie de

fluxo permanente, que acompanha o usuário em qualquer momento da navegação.

Banners surgem nos rodapés e cabeçalhos de páginas que aparentemente não tinham

conteúdo comercial; pop-ups pipocam diante do usuário, impedindo-o de prosseguir

navegando; spams abarrotam caixas de entrada de e-mails. Em sites de busca, links

patrocinados se misturam a resultados relevantes, quando muito com uma sutil

diferenciação em relação à cor das letras ou do pano de fundo. Vídeos aparentemente

reais são postados em redes sociais, sem nenhum alerta acerca de seu cunho comercial,

para servirem de teasers de futuras campanhas publicitárias.27 Diversamente do

26

Técnica que explora nitidamente os sentimentos humanos de identificação com o próximo e de

pertencimento a grupos sociais, em estratégia que, embora não seja inédita no mundo comercial, assume

no ambiente eletrônico dimensões nunca antes imaginadas.

27 Exemplo recente foi o vídeo Perdi meu amor na balada, postado por um rapaz que pedia ajuda

para encontrar o número de telefone de uma moça que conhecera na noite paulistana. Revelou-se mais tarde

que o vídeo havia sido produzido por certa fabricante de celulares e integrava uma campanha publicitária

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espectador televisivo, que ainda tem a alternativa de mudar de canal durante o intervalo

comercial, o usuário da internet sujeita-se todo o tempo ao bombardeamento publicitário,

em um continuado e permanente incentivo ao consumo.

Resistir a tal incentivo torna-se tarefa ainda mais árdua na medida em

que a publicidade eletrônica vai ganhando, a cada dia, um perfil mais e mais

personalizado. A coleta de dados do usuário – por meio de cookies e outras técnicas de

transparência reduzida e legalidade duvidosa – tem permitido o desenvolvimento de

perfis de usuários que são utilizados pelos fornecedores para direcionar o conteúdo da

mensagem publicitária e da oferta de produtos na internet. Se a personalização da oferta,

por um lado, poupa tempo ao consumidor eletrônico (livrando-o do oferecimento de

produtos que seriam, provavelmente, “indesejáveis”), torna, por outro lado, muito mais

dificultosa a tarefa de refletir sobre a contratação, na medida em que dados pessoais

obtidos sem autorização do usuário são usados para estimular de modo praticamente

irresistível a aquisição dos produtos ou serviços de que supostamente necessitaria. A

manobra associa-se não raro a ofertas de financiamentos, com disponibilidade imediata

dos recursos econômicos exigidos para a aquisição, completando-se o ciclo do consumo

compulsivo, resumido no bordão “compre o que você não precisa com o dinheiro que

você não tem”.

Todo esse novo arsenal de técnicas de marketing eletrônico exige

posturas mais definidas por parte do sistema jurídico brasileiro, pouco preparado para

lidar com essas questões. Em primeiro lugar, impõe-se a aprovação imediata de uma

legislação que proteja efetivamente os dados pessoais. O Brasil não conta com um marco

normativo claro nessa matéria, encontrando-se, já há alguns anos, no Ministério da Justiça

um projeto de lei de proteção de dados pessoais, que, após um período de debate público,

parece aprisionado em um processo excessivamente lento de produção e aperfeiçoamento

dentro do próprio Ministério – prisão da qual não foi capaz de se libertar nem mesmo na

esteira do recente furor provocado pela descoberta de monitoramento da agência de

segurança dos Estados Unidos sobre as comunicações da Presidente Dilma Rousseff.28

que somente veio a público semanas depois. O caso rendeu procedimentos no Procon de São Paulo e no

CONAR (Conselho de Autorregulamentação Publicitária).

28 Uma das muitas repercussões do chamado caso Edward Snowden, a revelação do monitoramento

gerou a exigência de explicações por parte do Governo brasileiro, respondidas pela administração Barack

Obama com o argumento de que a legislação interna brasileira não veda as condutas adotadas. Ver, entre

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Além de uma política pública de proteção de dados pessoais impõe-se

uma regulamentação mais efetiva da atividade publicitária no Brasil, ainda disciplinada

de modo bastante lacônico pelo Código de Defesa do Consumidor, por meio de conceitos

excessivamente genéricos (como a “publicidade abusiva” do art. 37, §2o),29 cuja aplicação

acaba sendo controlada quase que exclusivamente pelo Conselho de

Autorregulamentação Publicitária. Em que pese o esforço do referido Conselho, suas

decisões acabam sendo guiadas pelo subjetivismo inerente à aplicação daqueles conceitos

abertos, sem a formulação de standards de comportamento, resultando em um conjunto

de precedentes que não dão maior segurança nem ao consumidor, nem ao mercado

publicitário.

Por fim, cumpre amparar e desenvolver, no campo das contratações

eletrônicas, mecanismos de “saída” ou reversão, voltados a tutelar o direito de reflexão

do consumidor no ambiente virtual. Esse é o ponto que tem maior relação com a temática

geral desse estudo e aqui o ordenamento brasileiro já tem dado alguns passos,

especialmente no tocante ao chamado “direito de arrependimento”. Convém examinar o

tema em separado.

3. Direito de arrependimento. Tratamento da matéria no Direito Brasileiro: Lei

8.078/1990 e Decreto 7.962/2013. Experiência estrangeira: Diretiva 2011/83/CE.

Análise comparativa.

O direito de arrependimento, também chamado direito de reflexão, foi

instituído pelo art. 49 do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990), em que se

lê:

Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a

contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou

serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e

serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por

outras notícias, reportagem de Glenn Greenwald, Roberto Kaz e José Casado, EUA espionaram milhões de

e-mails e ligações de brasileiros, publicada no jornal O Globo Online em 6.7.2013.

29 O Código de Defesa do Consumidor, a rigor, não define a publicidade abusiva, mas apenas a

exemplifica, deixando ampla margem à interpretação do conceito: “Art. 37. (...) §2o. É abusiva, dentre

outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a

superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores

ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à

sua saúde ou segurança.”

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telefone ou a domicílio.

Parágrafo único. Se o consumidor exercitar o direito de arrependimento

previsto neste artigo, os valores eventualmente pagos, a qualquer título,

durante o prazo de reflexão, serão devolvidos, de imediato,

monetariamente atualizados.

A norma já se aplicava, a toda evidência, às contratações eletrônicas,

realizadas inegavelmente “fora do estabelecimento comercial”.30 Para afastar, porém,

qualquer dúvida quanto ao ponto, o Decreto 7.962/2013 tratou expressamente do direito

de arrependimento ao cuidar do comércio eletrônico:

Art. 5o. O fornecedor deve informar, de forma clara e ostensiva, os

meios adequados e eficazes para o exercício do direito de

arrependimento pelo consumidor.

§ 1o O consumidor poderá exercer seu direito de arrependimento pela

mesma ferramenta utilizada para a contratação, sem prejuízo de outros

meios disponibilizados.

§ 2o O exercício do direito de arrependimento implica a rescisão dos

contratos acessórios, sem qualquer ônus para o consumidor.

§ 3o O exercício do direito de arrependimento será comunicado

imediatamente pelo fornecedor à instituição financeira ou à

administradora do cartão de crédito ou similar, para que:

I – a transação não seja lançada na fatura do consumidor; ou

II – seja efetivado o estorno do valor, caso o lançamento na fatura já

tenha sido realizado.

§ 4o O fornecedor deve enviar ao consumidor confirmação imediata do

recebimento da manifestação de arrependimento.

30

Como registrava Ruy Rosado de Aguiar Júnior, ao afirmar, em 2000, que o direito de

arrependimento (art. 49, CDC) “é perfeitamente aplicável aos negócios realizados através da rede mundial

de computadores” (Ministro do STJ alerta para a fragilidade jurídica dos contratos eletrônicos, 26.9.2000,

disponível em www.stj.gov.br). Em sentido contrário, doutrina minoritária invoca o conceito de

estabelecimento comercial virtual para sustentar que a compra realizada via internet não se dá fora do

estabelecimento comercial. Acrescenta que o consumidor eletrônico é quem tem a iniciativa da compra,

razão pela qual teria tempo de sobra para reflexão. Sobre o tema, com detalhes sobre os dois

posicionamentos, ver Caio Rogério da Costa Brandão, O Direito de Arrependimento nos Contratos

Eletrônicos, in Juris Plenum, ano III, n. 13, 2007, pp. 16-17.

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O decreto presidencial vai, como se vê, além do que já dispunha o art.

49 do código consumerista, contemplando alguns aspectos adicionais do tema, como a

facilitação da comunicação do exercício do direito de arrependimento pelo consumidor

eletrônico e o dever do fornecedor de confirmar imediatamente o recebimento da

manifestação de arrependimento, além dos efeitos do arrependimento sobre contratos

acessórios. O Projeto de Lei 439/2011, que trata do comércio eletrônico e se encontra

atualmente em tramitação no Congresso Nacional, dispõe sobre o tema no mesmo sentido.

Sua aprovação continua a se fazer necessária para evitar qualquer discussão jurídica

quanto à possibilidade de regulamentação do tema por meio de decreto.

O art. 5o do Decreto 7.962 representa, sem dúvida, um avanço, na

medida em que, para além de reiterar a aplicabilidade do direito de arrependimento ao

comércio eletrônico, aborda mais dois ou três aspectos do tema. Nada obstante, é certo

que a legislação brasileira poderia ter ido muito além. Uma incursão pelo cenário europeu

revela não apenas níveis de proteção mais elevados nessa matéria, mas também uma

abordagem de natureza distinta, que contribui para a efetividade do direito de

arrependimento no comércio eletrônico daquele continente.

Com efeito, a Diretiva 2011/83/CE ocupa-se de modo bastante

detalhado do direito de arrependimento, a que denomina “direito de retractação” (na

versão oficial em língua portuguesa).31 O artigo 9o da referida Diretiva institui o prazo de

14 dias para a retratação do contrato celebrado à distância ou fora do estabelecimento

comercial – o dobro, portanto, do prazo previsto na legislação brasileira. Registra, ainda,

expressamente a desnecessidade de indicação de qualquer motivo para o exercício da

retratação. O artigo 10 determina que, se o fornecedor deixar de informar ao consumidor

sobre a possibilidade, as condições, o prazo e o procedimento de retratação,32 o prazo se

estende adicionalmente por 12 meses após o término do prazo original de 14 dias. Ao

contrário, portanto, da legislação brasileira, que impõe o dever de informação sobre o

direito de arrependimento sem uma sanção específica,33 a Diretiva europeia estabelece

uma significativa extensão do prazo aplicável em caso de descumprimento.

31

Em inglês, right of withdrawal e, em espanhol, derecho de desistimiento.

32 Conforme impõe o artigo 6o, item 1, alínea h, da mesma Diretiva, que prevê ainda a

disponibilização de um modelo de formulário para o exercício do direito de retratação, sem prejuízo da

possibilidade de outros meios de comunicação do referido exercício (artigo 11, item 1, alínea b).

33 O art. 5o do Decreto 7.962 impõe o dever de informar “de forma clara e ostensiva” os meios

adequados e eficazes para o exercício do direito de arrependimento, mas não contém qualquer sanção

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A Diretiva 2011/83/CE regula, ainda, minuciosamente nos inúmeros

subitens dos seus artigos 13 e 14 os custos envolvidos no procedimento de retratação –

diferentemente da legislação brasileira que não traz quaisquer considerações específicas

sobre o assunto. De acordo com a Diretiva, o consumidor europeu está, em regra, isento

de custos e tem direito ao reembolso de suas despesas, mas o artigo 13 prevê algumas

situações de imunidade do fornecedor, como na hipótese em que o consumidor opta

livremente por uma modalidade mais onerosa de envio que a modalidade padrão (artigo

13, item 2). A Diretiva assegura, ainda, ao consumidor o direito de receber o reembolso

das suas despesas pelo “mesmo meio de pagamento que o consumidor usou na transação

inicial”, aspecto não regulado no direito brasileiro e que tem gerado, entre nós, numerosos

abusos no momento de exercício do direito de arrependimento, como a famigerada prática

de substituir o reembolso efetivo do consumidor por um “crédito” junto ao fornecedor.

A Diretiva europeia enfrenta, ainda, os dois principais aspectos que têm

sido invocados pelos fornecedores brasileiros em oposição ao direito de arrependimento.

São eles: (i) a questão da depreciação do produto já entregue ao consumidor; e (ii) a

inaplicabilidade do direito de arrependimento em casos envolvendo o fornecimento de

produtos e serviços de fruição imediata, especialmente conteúdo digital oferecido via

internet. Quanto ao primeiro aspecto, a Diretiva 2011/83/CE atribui ao consumidor

responsabilidade pela depreciação “que decorra de uma manipulação dos bens que exceda

o necessário para verificar a natureza, as características e o funcionamento dos bens”

(artigo 14, item 2).34 O consumidor europeu não é, como se vê, isento de responsabilidade,

devendo ter cautela no recebimento do produto adquirido à distância. A instituição de

norma semelhante é possível e recomendável no direito brasileiro, pois, além do

desestímulo a eventuais abusos episódicos, ajudaria a afastar em definitivo argumentos

ligados a uma certa “infantilização” do consumidor brasileiro e à instituição de ônus

insuportáveis sobre os fornecedores no cenário nacional.

específica para o descumprimento desse dever. O art. 7o do mesmo Decreto determina que “a inobservância

das condutas” nele descritas enseja a aplicação das sanções previstas no art. 56 do Código de Defesa do

Consumidor, que traz o rol genérico de sanções administrativas aplicáveis às infrações da legislação

consumerista, como multa, suspensão da atividade etc. Não há, todavia, menção à extensão de prazo, o que

afasta tal possibilidade no ordenamento brasileiro, diante do princípio da prévia estipulação legal da pena.

34 Também aqui a falta de informação sobre o direito de arrependimento sujeita o fornecedor a um

ônus agravado, dispondo a parte final do referido item 2 que “o consumidor não é, em caso algum,

responsável pela depreciação dos bens quando o profissional não o tiver informado do seu direito de

retractação”.

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Em relação ao segundo aspecto, que diz respeito aos casos de

inaplicabilidade do direito de arrependimento, a Diretiva europeia trata do tema no seu

artigo 16. Em treze alíneas prevê exceções à incidência do direito de arrependimento,

como, por exemplo, os “contratos celebrados em hasta pública”, o “fornecimento de bens

susceptíveis de se deterioarem ou de ficarem rapidamente fora do prazo”, o fornecimento

de bens ou serviços “cujo preço depende de flutuações do mercado financeiro que o

profissional não possa controlar e que possam ocorrer durante o prazo de retractação”, o

fornecimento de “gravações de áudio ou vídeo seladas ou de programas informáticos

selados a que tenha sido retirado o selo após a entrega” e o fornecimento de “conteúdos

digitais que não sejam fornecidos num suporte material, se a execução tiver início com o

consentimento prévio e expresso do consumidor e o seu reconhecimento de que deste

modo perde o direito de retractação”, entre outros.

Ao contrário do que poderia parecer em uma primeira leitura, tais

exceções não representam um decréscimo no nível de proteção ao consumidor europeu.

A incidência do direito de arrependimento já não seria reconhecida pelos tribunais dos

países europeus na imensa maioria dessas situações, muitas delas de clareza intuitiva. A

previsão explícita de tais situações traz, contudo, a necessária segurança ao mercado e

contribui para a instituição de cuidados recíprocos, como a obtenção do expresso

reconhecimento pelo consumidor da perda do direito de arrependimento como etapa

prévia do início da fruição de conteúdos digitais. Previne, ademais, o prolongamento de

discussões tautológicas – às vezes, puramente acadêmicas – que têm servido de entrave,

entre nós, para uma tutela mais efetiva do direito de arrependimento.

De modo geral, pode-se dizer que o movimento consumerista brasileiro,

após um momento inaugural altamente profícuo e feliz – representado pela edição da Lei

8.078, em 1990, e pela sua consolidação na jurisprudência nacional ao longo da década

seguinte –, tornou-se cauteloso, talvez excessivamente cauteloso. Os Projetos de Lei

apresentados no âmbito da chamada atualização do Código de Defesa do Consumidor

trazem inovações importantes (cujos efeitos transcendem, aliás, a própria esfera do direito

do consumidor), mas se restringem, essencialmente, a consagrar cláusulas gerais ou

normas abertas. Receosos talvez de retrocessos na proteção do consumidor e

cuidadosamente elaborados com vistas à facilitação da chancela do Congresso Nacional,

tais projetos evitaram o detalhamento e a especificação procedimental que poderiam

afastar perigos imaginários e contribuir para a elevação do nível do debate desses temas

no espaço público brasileiro.

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Se a postura adotada afigura-se adequada ou não só o tempo dirá. O que

parece insólito é que uma norma infralegal, como o Decreto 7.962, tenha se limitado ao

mesmo formato, disciplinando em termos vagos e genéricos aquilo que poderia ter

disciplinado em termos mais específicos, como é o caso do direito de arrependimento. Ao

lado da Diretiva europeia – que já é bem mais genérica que as leis nacionais dos países

europeus –, o Decreto 7.962 soa como norma programática, sem embargo das melhorias

gerais que trouxe ao campo da contratação eletrônica.

O que mais assusta, nesse exemplo recente, é a olímpica indiferença à

experiência estrangeira, especialmente a experiência europeia que, nesse campo, guarda

íntima proximidade com as bases do consumerismo brasileiro.35 Não se trata apenas de

observar a Diretiva 2011/83/CE; o comércio eletrônico europeu não é, obviamente,

regulado por uma norma única, mas por um complexo tecido normativo, composto de

diferentes Diretivas (Diretivas 2000/31/CE, 2002/65/CE, 2008/48/CE, entre outras), às

quais se somam diferentes leis nacionais que procuram incorporar as orientações contidas

nas Diretivas, mas não raro vão além, instituindo normas tipicamente locais. Há nesse

rico arcabouço uma série de normas que poderiam ter servido de inspiração ao legislador

brasileiro, mas que acabaram não refletidas nem no Decreto 7.962, nem no Projeto de Lei

439/2011, como o chamado “conteúdo mínimo” dos contratos eletrônicos e a

transparência na informação dos preços envolvidos na contratação à distância (sendo

certo que, no Brasil, tais preços são mal informados ao consumidor eletrônico,

surpreendido, não raro, com o acréscimo de fretes, comissões, taxas privadas e tributos

para cuja existência não é alertado no momento oportuno).

Essas e outras questões vêm sendo deixadas para o futuro pelo Poder

Legislativo brasileiro, prolongando um desnecessário desnível entre o tratamento

dispensado pelos mesmos conglomerados transnacionais aos consumidores brasileiros e

europeus, em flagrante desfavor dos primeiros e em assimetria injustificável num

mercado que se pretende global.

35

Para muitos autores, a abordagem norte-americana, especialmente em relação ao consumo via

internet, é considerada mais próxima de uma ótica de laissez faire ou de autorregulação, refletindo talvez

um maior entusiasmo norte-americano pelas novas tecnologias, em oposição a uma postura mais

ambivalente e cautelosa da União Européia (Jane Kaufman Winn e Jens Haubold, Electronic Promises:

Contract Law Reform and E-Commerce in a Comparative Perspective, disponível em

www.law.washington.edu, p. 3).

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4. Conclusão.

Os chamados contratos eletrônicos não representam um mundo à parte,

estranho ao direito dos contratos ou governado por regras próprias. Não se trata de uma

dimensão paralela que somente aparenta similaridade com a realidade tradicional, como

uma espécie de Matrix, lembrada na epígrafe a este artigo.36 A contratação eletrônica traz

inúmeras questões novas, mas se insere no tratamento sistemático dos contratos no direito

brasileiro. Seus pontos de dissonância com a teoria geral tradicional representam

frequentemente oportunidades para rever dogmas rígidos que já não se justificam mais,

nem mesmo fora do ambiente eletrônico (como se viu na discussão pertinente à prova do

contrato). Noutros casos, trata-se de instituir novos mecanismos jurídicos de proteção

contra novos riscos que surgem especialmente – mas nem sempre de modo exclusivo –

no ambiente eletrônico.

Foi o que se viu no tocante ao direito de arrependimento. A importância

da sua efetividade cresce exponencialmente com a ampliação do comércio eletrônico e

da contratação de produtos e serviços via internet. Nem por isso se trata de um instituto

exclusivamente eletrônico. Sua aplicação estende-se a toda contratação celebrada à

distância ou fora do estabelecimento comercial. Sua inspiração radica na ideia da falta de

reflexão adequada do consumidor sobre a contratação do produto ou serviço. Se é certo,

por um lado, que essa falta de reflexão se torna especialmente perceptível no ambiente

eletrônico, devido às notáveis técnicas de impulsão ao consumo virtual, situação muito

semelhante verifica-se com quem contrata por telefone ou por correspondência. Nem se

deve excluir sua aplicabilidade a contratações realizadas em determinadas circunstâncias

dentro do próprio estabelecimento comercial.

Embora essa última hipótese não seja reconhecida pela legislação

brasileira (nem pelas diretivas europeias, registre-se), pode-se defender a aplicação do

direito de arrependimento por analogia àquelas situações em que o contratante, embora

dentro do estabelecimento, é conduzido à contratação por circunstâncias que o impedem

de refletir. É o que ocorre diante de algumas estratégias agressivas de marketing, voltadas

36

Matrix foi uma produção cinematográfica de 1999, dirigida pelos irmãos Wachowski. Relata a

história de um mundo simulado criado por máquinas inteligentes para manter os seres humanos conectados

a uma rede de geração de bioenergia. Foi considerada, ainda em 1999, uma típica produção de estética pós-

moderna, por promover uma espécie de bricolagem de elementos de ficção científica, histórias em

quadrinho, animes, religião messiânica, ecologia e filosofia.

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a produzir artificialmente um cenário de contratação inevitável, como nos casos de

fornecedores que, para obter a venda de unidades imobiliárias em grandes complexos

residenciais, oferecem passeios a toda a família do consumidor para, logo em seguida,

conduzir todo o grupo ao estabelecimento para fins de assinatura do instrumento

contratual. Veja-se ainda o caso dos estabelecimentos comerciais multifuncionais, em que

não raro se misturam ofertas de serviços de lazer com a possibilidade de contratações

imediatas, calcadas justamente na impossibilidade de reflexão prolongada pelo

consumidor (como no exemplo do restaurante que contém loja de vinhos ou no clube

noturno que, próximo ao balcão de bebidas e coquetéis, oferece a venda de passagens

aéreas last minute para destinos exóticos).

Como se vê, o tema do direito de arrependimento – como tantos outros

aspectos que são discutidos sob a rubrica geral da contratação eletrônica – não consiste

em exclusividade do ambiente virtual. A contratação eletrônica representa, antes, uma

oportunidade para identificar o problema bem mais profundo da contratação irrefletida e

do estímulo ao consumo compulsivo. Um tratamento jurídico adequado não pode,

portanto, estar restrito ao locus onde a questão se coloca com maior frequência, mas deve

se inserir no sistema jurídico como um todo. Regras específicas podem e devem ser

editadas para o comércio eletrônico (como, por exemplo, as que dizem respeito à

identificação clara e precisa do fornecedor nos sites de ofertas), mas isso não faz da

contratação virtual um mundo apartado do sistema jurídico, sujeito a conclusões de

ocasião.

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A FORÇA OBRIGATÓRIA DOS CONTRATOS NO BRASIL: UMA VISÃO

CONTEMPORÂNEA E APLICADA À LUZ DA JURISPRUDÊNCIA DO

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA EM VISTA DOS PRINCÍPIOS SOCIAIS

DOS CONTRATOS1

The binding force of contracts in Brazil: a contemporary vision applied in the light

of superior court of law’s justice in view of social principles of contracts

Paulo Nalin Professor Adjunto de Direito Civil na Universidade Federal do Paraná. Pós-doutor

pela Universität Basel (Universidade da Basiléia-Suíça). Doutor e Mestre em Direito das Relações Sociais

pela Universidade Federal do Paraná. Integrante e Coordenador de Eixo do Projeto de Pesquisa Virada de

Copérnico (UFPR/UERJ). Associado: Instituto de Direito Privado (IDP), Instituto dos Advogados do

Paraná (IAP), Instituto de Direito Civil (IDC), Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro (IDCLB).

Advogado e árbitro.

Resumo: O presente texto busca estabelecer um diálogo entre o clássico princípio

contratual do pacta sunt servanda e os princípios sociais da moderna teoria dos contratos.

Pretende responder em que medida e alcance pode se entender como obrigatório um

contrato diante de princípios ou valores sociais como a dignidade da pessoa human, a

função social do contrato e a boa-fé. Como critério de pesquisa, lançou-se mão da

jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, inclusive para demonstrar como a Corte

responde a tal diálogo e se dos seus julgados pode-se extrair uma linha jurisprudencial

uniforme.

Palavras-chave: contrato; princípios contratuais; pacta sunt servanda; função social do

contrato; dignidade da pessoa humana; boa-fé; jurisprudência; Superior Tribunal de

Justiça (STJ).

Abstract: This paper seeks to establish a dialogue between the classical contractual

principle of pacta sunt servanda and social principles of the modern theory of contracts.

Aims to answer to how the contract can bind the parties and to what extent and scope it

can be understood as mandatory before a contract principles or social values such as

human dignity, the social function of the contract and good faith. As the search criteria,

it employed the jurisprudence of the Superior Tribunal de Justiça (STJ), including to

demonstrate how the Court responds to this dialogue and if one can extract a uniform

line of jurisprudence.

1 O presente trabalho foi pensado e desenhado para operadores do direito do common law, contando

com uma versão em inglês.

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Key-words: contract; contractual principles; pacta sunt servanda; social function of the

contract; human dignity; good faith; jurisprudence; Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Sumário: Introdução – 1. A força obrigatória dos contratos como princípio clássico e

estruturante do sistema contratual brasileiro – 2. Os princípios sociais da Constituição de

1988 – 3. O impacto do Código de Defesa do Consumidor e a lógica contratual do final

do séc. XX – 4. A força obrigatória e a sua relativização à luz do CC de 2002: ponto e

contraponto – 5. O entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a

obrigatoriedade dos contratos e os princípios sociais do Código Civil brasileiro – 6. Notas

conclusivas.

Introdução

O presente trabalho é destinado ao conhecimento essencial e

panorâmico do princípio da força obrigatória dos contratos, também conhecido como

princípio da intangibilidade dos contratos e no ambiente do civil law europeu

continental como pacta sunt servanda.

A análise será contextualizada no Brasil ao longo de aproximados 110

anos, entre o Século XX e início do corrente Século XXI. E apesar de o trabalho não ter

uma proposta histórica, utilizar-se-á uma cronologia identificada com quatro marcos

legislativos de substancial importância para a compreensão do versado princípio: o

Código Civil de 1916 (CC-16), a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988

(CR), o Código de Defesa do Consumidor de 1990 (CDC) e o Código Civil de 2002 (CC-

02), em vigor.

A opção por relacionar o desenvolvimento do princípio em questão a

marcos legislativos contempla em si um paradoxo, qual seja, nenhum dos textos legais

mencionados, notadamente aqueles de natureza essencial privada (CC-16, CDC e CC-

02), estabilizou o princípio em suas bases estruturais, embora seja ele indispensável para

a operacionalização do direito contratual brasileiro. Em outros termos, o direito

infraconstitucional Brasileiro não regulamentou, na sua fonte positiva, o princípio da

força obrigatória dos contratos, sendo, portanto, princípio abstrato, embora isso não lhe

subtraia força ou minimize a sua eficácia nas relações contratuais.

De outro giro, o pacta sunt servanda é corolário lógico da autonomia

privada e da liberdade contratual, que também compõem a constelação principiológica

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brasileira, sendo a autonomia privada assentada no próprio texto constitucional (arts. 170,

caput, CR2) e a liberdade contratual (na dição da lei seria “a liberdade de contratar”)

prevista pelo CC-02 (art. 421 CC-02). Também serão apresentadas algumas perspectivas

elementares sobre tais princípios, já que constituem premissas ideológicas e dogmáticas

sobre a obrigatoriedade dos contratos.

Após percorrer as sendas do Direito positivo e da doutrina brasileira

mais refinada, será analisada a recepção do princípio na sua forma contemporânea pelo

Superior Tribunal de Justiça, que por atribuição de competência constitucional oferece a

última palavra sobre o tema, quando posto a julgamento.

1. A força obrigatória dos contratos como princípio clássico e estruturante do

sistema contratual brasileiro

A força obrigatória dos contratos encontra nas premissas ideológicas da

Revolução Francesa a sua base dogmática, já que o Código Civil Francês de 1804 (Code)

incorporou liberdade, igualdade3 e solidariedade em sua estrutura. Por sua vez, servindo

o Code de grande referencial teórico para a Modernidade contratual4, não poderia ele

deixar de lançar luzes para todos os povos do cenário europeu-continental sob influência

politica, militar, econômica e cultural da França liberal.

Com efeito, o Brasil colonial recebeu as influências da onda liberal que

emanavam da metrópole portuguesa que, não obstante uma inegável aliança britânica,

especialmente ao longo do Sec. XIX, jamais se afastou das linhas jurídico-culturais

francesas. Tanto é assim que precedeu ao Código Civil de Seabra (1867) a ideia de ser

adotado, simplesmente, o próprio Code, em solo português5.

2 Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa,

tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os

seguintes princípios:

3 ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 2009, p. 32.

4 Entendo que a modernidade contractual iniciou com a Revolução Francesa, pois com ela consolida-

se a ruputura com o modelo contractual do medievo, a qual o iluminismo-racionalista tratou de modificar.

Sob o ponto de vista estrutural, o contrato é o mesmo desde o Code (acordo de vontades destinado a

produzir efeitos jurídicos). Com a pós-modernidade (que se inicial no espaço Europeu do entre Guerras) o

contrato passa a ser observado não só a partir da sua estrutura, mas também em vista da sua função (Vide,

sobre o tema, o nosso O conceito pós-moderno de contrato: em busca da sua formulação da perspectiva

civil-constitucional. 2 ed. Curitiba: Juruá, 2006).

5 MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de direito civil português. 3 ed. Coimbra: Almedina,

2005, t. 1, p. 123.

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Não obstante a originalidade dos códigos civis do séc. XIX, dentre os

quais o próprio Código Civil de Seabra e dentre todos, o mais notável, o Código Civil

alemão (BGB), nenhum deles teve a capacidade de romper com a ideologia liberal que

justificava a própria concepção de um modelo legal codificado, aos moldes do código

civil francês. Paradoxalmente, a ideologia que subjaz da concepção de código, único e

totalizante (uma síntese legal que se propõe a esgotar o fato social), é o reflexo do espírito

liberal que contemporaneamente não mais se apresenta nos Estados que adotaram e

segurem empregando o próprio modelo codificado, tal qual o Brasil.

Retomando a linha da formação do Direito Civil brasileiro, fruto de

amplos estudos, sucessivas comissões e codificadores do Séc. XIX, vem a tona o Código

Civil Brasileiro de 1916 (5/1/1916), por força do trabalho codificador de Clóvis

Beviláqua que em 1899 foi contrato pela jovem República Brasileira para codificar o

Direito Civil nacional.

Naturalmente, por se tratar de um Código Civil que encerrava o Séc.

XIX, antes de ser um trampolim para o Séc. XX, acabou por reproduzir toda a carga

ideológica liberal daquele século, nele se encontrando as premissas da igualdade e da

liberdade, tal qual no Code.

Na corriqueira esteira do envelhecimento de todos os códigos, observa-

se o fenômeno da descodificação e da recodificação do Direito Civil Brasileiro,

culminando tal processo no Projeto de Código Civil de 1975, o qual acabou por ser

promulgado em 10 de janeiro de 2002, com vacatio legis de doze meses. É nesse momento

que nos encontramos na base infraconstitucional e cujo texto legal será o objeto central

destas breves páginas.

Embora sejam legítimas e firmes as críticas que se levantaram contra a

recodificação do Direito Civil brasileiro, ao menos por meio de um modelo do tipo

francês, em verdade a orientação metodológica do CC-02 se baseia nas premissas da

socialidade e da concreção, abrindo campo para a atividade construtiva da

jurisprudência6, a justificar a metodologia aqui eleita.

6 Exposição de motivos do supervisor e da comissão revisora e elaboradora do código civil, p. 29-

30.

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Ademais, a proposta do codificador era a de substituir a concepção

individualista do sujeito de direito pelo conceito de pessoa humana, além de compreender

o CC-02 como lei básica, mas não global7 do Direito Privado brasileiro.

A rotação do atual CC-02 em favor da socialidade, da pessoa humana e

do reconhecimento da sua condição de “lei básica, mas não geral”, traz consequência

diretas para a reconstrução do princípio da liberdade contratual e da força obrigatória dos

contratos, pois a vontade negocial, antes dogmática e intangível mesmo ao juiz que se

submetia à vontade da partes, sede espaço à alteridade negocial e ao valor maior da pessoa

humana: mitiga-se o papel da vontade negocial para ganhar em dimensão o valor da

pessoa humana, na figura do contratante e dos seus interesses patrimonial e existencial.

A relação obrigacional, nesta toada, passa a ser uma situação jurídica complexa8

(patrimonial e existencial) fundada na cooperação entre contratantes. Essa é a mensagem

que nos é transmitida pela função social (art. 4219 CC-02) do contrato e pela boa-fé

objetiva (arts. 11310 e 42211 CC-02).

A questão central é saber em que medida o contrato ainda é obrigatório,

em vista da reconfiguração da liberdade contratual e do seu princípio consequente, a força

obrigatória do contrato, por conta desse novo modelo social do contrato brasileiro. E mais,

do ponto de vista metodológico, o CC-02 inovou ao incorporar o Direito de Empresas em

seu texto (arts. 966 a 1195) e por extensão os contrato então ditos comerciais

(empresariais) também foram inseridos no novo código. Consequentemente, uma

segunda provocação se apresenta: os contratos empresariais recebem do legislador

brasileiro a mesma valoração que os contratos civis, de modo a serem eles interpretados,

qualificados e integrados à luz de valores e princípios sociais, ou teriam eles uma lógica

própria?

7 Idem, p. 27.

8 NALIN, Paulo; XAVIER, Marilia Pedros; XAVIER, Luciana Pedroso. A obrigação como

processo: releitura essencial trinta anos após. Dialogos sobre o Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar,

2008, v. 2, p. 299-322.

9 Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

10 Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar da

sua celebração.

11 Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua

execução, os princípios de probidade e boa-fé.

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Todavia, antes de se investigar tais questões, e uma vez rapidamente

percorrida a história da codificação civil brasileira, há de se concluir que a força

obrigatória dos contratos figura como um dos princípios clássicos do Direito Brasileiro,

ao lado do princípios do consensualismo e da relatividade dos efeitos do contrato, todas

figuras decorrentes da liberdade contratual e antes dela, numa escala hierarquizada e

abstrata de valores, da vontade dogmática e, por fim, da liberdade política enquanto

direito subjetivo constitucional ou fundamental (art. 5, caput, CR12).

Na fonte do CC-16 não se localizava um artigo expresso de lei a

consagrar a força obrigatória dos contratos, uma vez que a própria concepção de

obrigação contratual ou de contrato com efeitos intangíveis era uma das bases essenciais

daquele código. À luz das codificações civis do séc. XIX, dentre as quais a brasileira,

liberdade de contratar significava o exercício da autonomia da vontade contratual para

definir quando, como e com quem contratar e, por extensão, o direito de por fim ao

contrato, na hipótese de inadimplemento e da verificação do termo final do negócio. Por

consequência, exercitada livremente a vontade negocial, o contrato se tornava

obrigatório, intangível às partes que poderiam, no entanto, modificá-lo somente por meio

de um outro acordo, por meio de um renovado novo exercício de autonomia privada. O

contrato poderia ser distratado bilateralmente, portanto, mais uma vez, emergindo a sua

resolução da vontade contratual. Por consequência desse viés voluntarista, o juiz não

poderia interferir na vontade negocial e nos efeitos jurídicos extraídos do querer das

partes, a não ser se a vontade tivesse sido manifestada de modo viciado, sendo esta a

gênese da teoria dos vícios de consentimento (erro, dolo, coação).

Assim sendo, a intangibilidade contratual seguia uma linha dogmática

e absoluta, por força da qual nem as partes, unilateralmente, nem o Estado (na figura do

juiz), poderiam alterar os efeitos contratuais que vinham a constituir, modificar ou

extinguir situações jurídicas patrimoniais: pacta sunt servanda!

Similar metodologia legislativa foi empregada pelo CC-02. Com efeito,

atual Código Civil brasileiro não versa sobre a força obrigatória dos contratos de modo

expresso, porque se espera que o contrato cumpra o seu papel sócio-econômico de

circulação atributiva de riquezas em exercício de liberdade contratual. Portanto, o

contrato (rectius, seu efeito) continua sendo obrigatório no Brasil, a despeito dos novos

12

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos

brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à

igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

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valores e princípios sociais que o submetem, com os quais se estabelece o diálogo entre

o velho e o novo direito contratual.

Tais princípios assim denominados de sociais têm em vista a

negociação pré-contratual, o fechamento do contrato e seu cumprimento de modo

equânime, sendo esta a grande diretiva que apresenta a boa-fé contratual (CC art. 422). O

contrato no Brasil deve ser um instrumento cooperativo e não de exploração e destruição

da outra parte, em vista do seu cumprimento a qualquer preço. A boa-fé atua

conjuntamente e não contrariamente ao cumprimento contratual, sendo esta uma

mensagem desenvolvida inclusive no sistema do common law, tal qual observa R.

SUMMERS: “[...] good faith (among other things) helps to particularise it meaning and

thus enforce what may be the unspecified ‘inner logic’ of the transaction or

arrangement.”13.

Brevemente, pode-se correlacionar a boa-fé brasileira com a teoria de

FARNSWORTH, uma vez que este autor teoriza o princípio como um “[...] standard

that has honesty and fairness at its core and that is impose on every party contract.”14

Ou seja, a boa-fé como um standard ético contratual que impõe deveres de cooperação é

a definição mais sintética possível para o princípio em tratamento, perspectiva esta

compartilhada entre os sistemas jurídicos do civil law e do common law.

A modificação apresentada pelo CC-02 em face do CC-16 está no

reconhecimento de que o contrato poderá ter seus efeitos econômicos mitigados pelo juiz,

perdendo a liberdade contratual o seu caráter dogmático e absoluto. Tal modificação

operacionalizada pelo juiz ocorrerá por meio da revisão do preço ou por meio da

resolução do contrato, por causa da excessiva onerosidade que atinge a prestação ou a

base contratual. Retomando o quadro da boa-fé, ela também serve de fundamento para

tais modificações da base econômica do contrato, pois somente será justo o contrato

equânime.

Estruturalmente posto, o CC-02 trabalha somente com as exceções à

força obrigatória dos contratos o que em si é um reconhecimento do princípio enquanto

regra. É um princípio abstrato de caráter deontológico, portanto. Evidentemente que o

13

SUMMERS, Robert S. The conceptualisation of good faith in American contract law: a general

account. In: ZIMMERMANN, Reinhard e WHITTAKER, Simon. Good faith in european contract law.

Cambridge: Cambridge, 2000, p. 136.

14 FARNSWORTH, E. Allan. Farnsworth on contracts. Boston: Little, Brown and Company, 1990,

v 2, p. 335.

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juiz também poderá extinguir o contrato quando constatada a invalidade do negócio como

um todo e não puder ser ele parcialmente preservado, mas tal aspecto foge da presente

abordagem.

De modo transverso, e sempre em vista da atribuição do juiz, o contrato

poderá ter seus efeitos modificados, quando nulo for o arranjo negocial e puder o juiz da

causa modificar a sua natureza, no sentido de preservá-lo (art. 170 CC-0215), o que

também vem a ser uma consequência da mitigação do princípio em análise, pois as partes

obterão efeito diverso do pretendido, de certa forma compreendido como um ato de

autonomia privada, contudo, do juiz. Trata-se, neste artigo de lei, da incorporação do

princípio da conversão essencial do negócio jurídico ou do princípio da conservação dos

negócios jurídicos, por força do qual será a discricionariedade do juiz que ditará os efeitos

do contrato, que serão necessariamente diversos do contrato que se evitou invalidar.

Observe-se, entretanto, que se um lado o juiz brasileiro pode alterar os

efeitos do contrato, com base em ruptura da sua base econômica e numa tentativa de

preservar o contrato, mesmo que posto em outra roupagem negocial, sob outro viés a

força obrigatória se mantém tal qual na sua remota origem clássica, ou seja, em relação

aos contratantes, os quais não podem alterar o negócios contratual por vontade unilateral.

2. Os princípios sociais da Constituição Brasileira de 1988

Pouco sentido faria passar os olhos no CC-02 sem compreender a lógica

da nova contratualística brasileira, fundada em valores sociais que dialogam com

princípios da ordem econômica. A dinâmica que se apresenta ao debate tem como

fundamento a Constituição da República de 198816, a qual serve de fonte normativa ao

Direito Privado nacional. Diversamente de outros modelos constitucionais que se

destinam à regulação das políticas e das práticas do Estado, a Constituição brasileira

também regula uma extensão fatia do Direito Privado brasileiro, dentre eles o direito

proprietário, sucessório e contratual, embora o faça de modo princípiologico. Por

15

Art. 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando

o fim a que visavam as parter permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade.

16 Sobre o tema o nosso Do contrato: conceito pós-moderno (em busca de sua formulação na

perspectiva civil-constitucional). 2 ed. Curitiba: Juruá, 2008, p. 213-240.

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consequência, percorrer o diálogo normativo brasileiro civil-consititucional é um

pressuposto para se entender a sistemática contratual brasileira.

Os movimentos econômicos, sociais e políticos que marcaram o Séc.

XX17, sobretudo no cenário europeu, produziram forte impacto no Brasil, repercutindo

no sistema legal interno.

Se fosse possível localizar em um ou dois eventos de complexas

naturezas as mutações que provocaram a descodificação e a recodificação civil brasileira,

arriscar-se-ia afirmar que a discreta mas sempre crescente presença da mão invisível do

mercado e os extremos dos regimes de esquerda e direita produziram uma síntese social-

política-econômica brasileira que festeja a superação do racionalismo absoluto18,

compreendendo um homem relativo ao seu tempo e espaço, inserido em um contexto

meta-individual, sem contudo desconsiderar a sua personalidade.

Talvez esse pequeno recorte opinativo traduza o sentido e o alcance que

a vigente Constituição brasileira pretende com os arts. 1, III e IV, e 3, I e III, na sua base

republicada:

I – Dos Princípios Fundamentais

Art. 1º. A Replica Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel

dos Estados e Municípios e dos Distrito Federal, constitui-se em Estado

democrático de direito e tem coo fundamentos:

III- a dignidade da pessoa humana;

IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do

Brasil:

I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;

17

ITURRASPE, Jorge Mosset. Interpretation economica de los contratos. Buenos Aires: Rubinzal-

Culzoni, [sd], p 13-30.

18 A vontade dogmática é o símbolo acabado do racionalismo: a vontade determinante da vida do

homem permite-lhe correr os próprios riscos.

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III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades

sociais.

Uma vez adotada a concepção de sistema jurídico e absolutamente

superado qualquer espirito dicotômico entre o Direito Público e o Direito Privado, por

força do qual a Constituição encontra papel central e unificador no diálogo das fontes

jurídicas, compreende-se que o valor da sociabilidade constitucional implica a função

social do contrato e o princípio da dignidade da pessoa humana e, dentre outras

consequência, a boa-fé contratual, na sua vertente objetiva, a qual impõe condutas

contatuais conforme a boa-fé e de modo probo19.

A contratualidade privada passa a ter uma perspectiva que compartilha

o sistema de livre iniciativa com valores sociais da justiça social e do pleno emprego,

além do respeito à função social da propriedade (art. 170 CR). No campo dos contratos,

o mesmo artigo constitucional enaltece que a ordem econômica está fundada na defesa

do consumidor e na redução das desigualdades regionais e sociais.

Em síntese, encontra-se no Brasil um necessário diálogo entre a livre

iniciativa de mercado e os valores sociais. Por consequência, sustentar posições radicais

e extremas, seja em favor dos interesses do mercado, seja em favor dos anseios sociais, é

iniciativa fadada ao fracasso, já que assim procedendo o intérprete terá uma visão parcial

do complexo sistema jurídico nacional.

Para o presente trabalho importa destacar o grande esforço que o

constituinte de 1998 teve em alinhar as forças sociais e de mercado, mesmo que o texto

final da Constituição possa ser tecnicamente criticado pela sua assimetria legislativa e

extensão exagerada. E apesar de um pleno equilíbrio entre os operadores de mercado ser

um projeto ideológico do passado, soterrado desde a queda do Muro de Berlim, não

escapa a um Estado Brasileiro que se autoproclama Social de Direito obrar no sentido de

repersonalizar o Direito Privado e isto se faz através da mutação da função do contrato.

Assim sendo, não surpreende que o a Constituição de 1988 lance as

bases para a proteção do consumidor, já que até 1988 não havia no Brasil qualquer tutela

para o operador vulnerável do mercado. Até a edição do CDC, todos os contratos era

interpretados à luz do CC-16, o que importava em julgamentos contaminados pelo

princípio da igualdade formal dos contratantes e no exercício livre da vontade. E assim

19

NALIN, Paulo. Princípios do direito contractual: função social, boa-fé objetiva, equilíbrio, justice

contratual, igualdade. In LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore [coord.]. Teoria geral dos contratos.

São Paulo: Atlas, 2011, p. 97-144.

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se operando o Direito, a lei socorria invariavelmente ao predisponente das cláusulas

contratuais, livre que se encontrava para fixar os mais abusivos conteúdos negociais.

Por isso, deu-se grande passo na busca por um novo paradigma

contratual quando a Constituição de 1988 determinou que em cento e vinte dias da sua

promulgação seria elaborado o Código de Defesa do Consumidor, cuja importância

operacional do mercado será adiante abordada.

3. O impacto do Código de Defesa do Consumidor e a lógica contratual do final do

séc. XX

Quid dit contractuel dit just! Exaltavam os tratadistas franceses desde

o Código Napoleônico, já que somente o homem livre (o cidadão nascido da Revolução)

pode contratar: livre para concretizar a circulação atributiva proprietária e constituir em

favor do burguês emergente um direito proprietário que antes da Revolução era privilégio

da aristocracia e das concessões da Monarquia.

Uma vez livre e igual o homem (que passou a ser cidadão) realizava o

exercício contratual que superava os próprios efeitos do negócio, que seria a constituição

de uma nova situação jurídica em sua esfera individual; ia além pois contratar tinha os

ares do poder político consagrador dos princípios revolucionários.

Toda essa lógica, ao mesmo tempo privada e política, encontrava um

espaço (Europa Liberal) e um tempo (Séc. XIX) adequados aos seus propósitos e ao

desenho de uma economia agropastorial, um momento no qual as relações contratuais

eram de fato e de direito interprivadas (vis a vis), anterior à lógica massificada de

mercado. É claro que todo esse quadro cedeu com a Revolução Industrial, embora o

modelo liberal de contrato tenha servido à la carte aos novos detentores do poder

econômico (os burgueses do fin de siecle XIX), que usavam o mesmo instrumento que os

alçou à condição de detentores do mercado para dar vazão aos produtos industrializados

em grande escala. O contrato liberal, que passou a ser revestido da forma de adesão, se

utilizava da premissa, agora superada, da igualdade formal entre contratantes, para

consagrar a liberdade de contratar e proclamar: só contrata porque quer; por querer

livremente, o contrato e obrigatório ... pacta sunt servanda.

No Brasil, tal fenômeno somente foi percebido após a Década de 30

(Séc. XX) e a tentativa governamental de equalização das relações de trabalho. Para

atingir tal fim, e sem poder modificar o CC-16 em sua estrutura, sob pena de torná-lo uma

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consolidação, produziu-se a primeira grande fratura do CC-16, dele se retirando uma parte

contratual especial, destinada à locação de mão obra, para se erigir a Consolidação das

Lei do Trabalho, a regulamentar o contrato de trabalho e com ela uma jurisdição especial

do trabalho. Em que pese o tema das relações laborais não ser aplicável ao presente

estudo, deseja-se com ele marcar o tempo em que já se fazia necessária a revisão dos

pilares da igualdade formal e da liberdade plena encampados pelo Código de Civil de

1916, razão do início mais evidente da descodificação do CC-16.

O segundo marco legislativo que feriu de morte a lógica contratual

liberal, a qual era muito bem representada pelo CC-16, veio com o CDC, em 1990.

Além de o CDC reconhecer uma nova categoria contratual (o contrato

de consumo), seja para produtos, seja para serviços; além de o novo código consumerista

ter adotado uma metodologia sincrética de regras materiais e processuais, arranjadas em

técnica de cláusulas gerais; e, por último, ter incorporado princípios regentes da nova

contratualista brasileira (transparência, confiança, equidade), nucleados na boa-fé

objetiva, o que mais impressiona no CDC é o reconhecimento legal da vulnerabilidade

de uma das partes do contrato e a adoção de instrumentos materiais e processuais para a

equalização da relação jurídica contratual concretamente analisada.

Com efeito, ideologicamente, rompeu-se com a premissa da igualdade

formal das partes, implementando o CDC um sistema de igualdade material. E do ponto

de vista da teoria contratual, o novo código do consumidor lançou as bases para um novo

conceito de justiça contratual, baseado na equidade negocial.

Nesse ponto, destaca-se a mutação do conceito de justiça contratual, o

qual, à luz do então ainda vigente CC-16 era o pacta sunt servanda (contrato justo, é

contrato cumprido), para a justiça fundada na equidade, ou seja no equilíbrio das parcelas

e obrigações do contrato, pois só o contrato equilibrado é justo. De outro vértice, em

nenhum momento o CDC afasta do cenário principiológico Brasileiro o pacta sunt

servanda, mas estabelece que obrigatório será o contrato equilibrado, sob pena de revisão

dos seus termos, ex vi do art. 6º, V:

Art. 6º. São direitos básicos do consumidor:

V – a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações

desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que

as tornem excessivamente onerosas.

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Inaugurava-se na fonte legislativa nacional um novo capítulo da

contratualística privada, tanto que logo após a vigência do CDC20 observou-se uma ampla

tentativa de migração dos sujeitos de direito não alcançados pela nova lei, conquanto

partes em relações contratuais civis e comerciais21, para o seio do CDC. Em termos mais

singelos, os sujeitos não consumidores (s.s.) e por consequência excluídos do alcance do

CDC buscaram ser judicialmente por ele tutelados, pois a justiça contratual proposta pelo

novo código era muitos mais moderada e adequada ao final do Séc. XX do que aquela do

CC-16, similar a do Código Comercial brasileiro (1850).

4. A força obrigatória e a sua relativização à luz do CC de 2002: ponto e contraponto

Desde 1975 agitava-se a civilistiva nacional em torno de um novo

Código Civil, sendo o Projeto de Código Civil uma peça jurídica fruto do acúmulo do

saber jurídicos civil-comercial-filosófico até os anos 60, do Séc. XX. Retomado o Projeto,

e sob a batuta do Supervisor da Comissão de Codificação, o jus-filosofo Miguel Reale,

passou ele por intensos debates e modificações no Senado e na Câmara dos Deputados,

sob a coordenação do Senador Josafá Marinho e do Deputado Ricardo Fiuza,

respectivamente, culminando com o vigente texto, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002.

No que concerne ao Livro dos Direito das Obrigações (art. 233 usque

1.195), estruturalmente ele é o maior dentre os demais Livros do Código Civil, até mesmo

porque incorporou praticamente todo o Direito de Empresas e todos os contratos típicos

comerciais (agora empresariais) na sua fonte positiva. Em grande linhas, o Direito Privada

Brasileiro hoje se encontra unificado. Ainda no contexto da sua estrutura, o CC não se

distanciou substancialmente do CC-16, em que pese a introdução pontual de alguns

temas, tal qual a assunção de dívida, cujo instituto, entretanto, já era conhecido e estudado

por meio da cessão de crédito.

Mas, então, o que se apresenta de novo no atual Código Civil Brasileiro,

em particular no Livro das Obrigações? Três pontos merecem destaque: (i) o emprego de

cláusulas gerais em campos nevrálgicos da codificação, enquanto nova técnica

legislativa; (ii) a funcionalização social da propriedade e do contrato; (iii) a consagração

20

Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, com vacatio legis de 180 dias.

21 O Código Comercial Brasileiro ainda estava em vigor na sua parte contratual em 1990.

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do princípio da boa-fé como princípio concreto e geral dos negócios jurídicos e, logo, dos

contratos.

O emprego das cláusulas gerais é crucial para compreender o novo

Direito Civil nacional, pois a técnica pressupõe uma redação de artigo de lei dotada de

um ou mais conceitos indeterminados e a ausência de sugestão sancionatória. Compete

ao juiz, diante do caso concreto, preencher tal moldura, conceituando o instituto jurídico

e definindo a sanção à hipótese, que será negativa ou positiva (premial, segundo N.

Bobbio). Afasta-se da técnica da casuística do dado A, deve ser B, cuja descrição da

hipótese e da sanção (sempre negativa ou de censura) era obra do legislador. Exemplifica-

se com um dos artigos mais emblemáticos do CC-02:

Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites

da função social do contrato. (grifei)

Rapidamente esmiuçando o artigo em comento, surgem as seguintes

indagações:

i. Qual é o atual conceito de liberdade contratual, uma

vez que historicamente este princípio implicava a escolha, livre e igual,

do objeto do contrato, do parceiro contratual e do próprio interesse em

celebrar o contrato?

ii. Qual é a racionalidade que se obtém da

função social do contrato, já que o legislador do CC-02 em nenhum

momento alude à razão (função) econômica do contrato, ao regular a

sua função social?

iii. Quais seriam os limites impostos pela

função social do contrato à liberdade contratual?

iv. Qual é o sentido e o alcance de tal

funcionalização social diante de contratos com funções econômicas

distintas, como os de consumo, civis e empresariais?

v. Por fim, mas não menos relevante, qual é a

sanção ao operador do contrato que desafia a função social do contrato?

A tentativa de se responder a essas indagações pressupõe uma escolha

metodológica que neste trabalho se pautará pelas decisões do Superior Tribunal de

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Justiça, mais adiante investigadas, e que laboram com a função social do contrato em

cotejo com a obrigatoriedade contratual.

Um necessário alerta, contudo, se mostra necessário ao leitor, relativo

ao papel desenvolvido pela jurisprudência no Brasil. Sabe-se que o Brasil é um pais do

sistema civil law, cujo ápice da pirâmide normativa é, desde 1988, ocupado pela

Constituição da Republica Federativa do Brasil e, hierarquicamente posto, em nível

inferior ou infraconstitucional, o Código Civil de 2002.

Assim, é necessário entender que a jurisprudência no Brasil, e que

explica as categorias jurídicas versadas neste texto, não tem força obrigatória perante as

partes de um contrato e sequer perante juízes de primeiro grau de jurisdição, muito

embora sejam acórdãos extraídos do acervo jurisprudencial do Superior Tribunal de

Justiça (STJ), o qual constitucionalmente detém a última palavra sobre o Direito Civil.

Portanto, o papel exercido pela jurisprudência brasileira é de unificação do entendimento

interpretativo da lei, mesmo que dela não se obtenha uma força imperativa, tal qual a lei.

Por outro lado, a jurisprudência brasileira do STJ vem ganhando cada vez mais espaço e

força como instrumento de decisão em cortes inferiores, sendo, de fato, indispensável a

sua análise.

Retomando as questões supra, arrisca-se alguma explicação.

Inicialmente, o juiz, ao se deparar com um conceito indeterminado

procurará esclarecimento e preenchimento da moldura legal de formar interna ao próprio

CC-02 ou fora dele, observando-se nesta metodologia a razão de ser da ideia de sistema

jurídico. O caminho recomendado ao magistrado é que na sua pesquisa observe os valores

e princípios constitucionais, já que a funcionalização social de institutos privado não é

matéria a ser resolvida somente à luz da estrutura do código. Além do mais, em se tratando

de cláusulas gerais, não existem soluções prontas, sendo necessário lançar um olhar muito

particular para cada caso concreto.

Outro aspecto, a função social do contrato não desqualifica a função

econômica do contrato, em que pese exigir das partes um respeito a efeitos jurídicos do

contrato que serão internos à própria relação jurídica negocial (o respeito ao outro

contratante, em seus planos material e existencial, por força da boa-fé e de seus sub-

princípios) e externos à relação, pois, via de regra, poder-se-á observar terceiros atingidos

pelos efeitos do contrato, sobretudo em contratos corporativos, empresariais ou que

atinjam o mercado relevante.

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Em terceiro plano, qual é sanção prevista pelo CC-02 na hipótese de

violação da função social do contrato? A resposta mais adequada, ainda que sujeita a

reparos, uma vez abstrata, extrai-se do sistema sancionatório do Código Civil, que se

pauta pelas regras de invalidade (nulidade, anulabilidade, ineficácia), embora no caso ela

seja de nulidade virtual, pela redução do negócio jurídico (preserva-se uma parte dele, ao

se invalidar outra ilegal – art. 184 CC) e através das perdas e danos. Abstratamente, não

se tem como apontar a melhor solução decisória, já que se está diante de uma cláusula

geral dirigida ao juiz e ao caso concreto. Caberá a parte atingida e ao seu advogado

endereçar ao juiz o pedido (remedy) mais adequado à patologia do contrato.

Evidentemente que qualquer dessas consequências poderá aniquilar ou

mitigar a força obrigatória do contrato, devendo estar muito atento o operador jurídico

para os efeitos sociais do contrato, no Brasil. Isso porque, não seria equivocado impor,

como condição da eficácia patrimonial pretendida pelos contratantes, a observância a

interesses sociais das próprias partes e de terceiros e tal perspectiva é absolutamente

pitoresca do Direito brasileiro.

O princípio da boa-fé também merece um recorte a parte no novo

Código Civil brasileiro, pois ela estabeleceu uma nova lógica operacional às relações

obrigacionais, fundada na cooperação. O CC-02, diversamente do CC-16, positivou o

princípio da boa-fé em seu texto, como regra geral das relações contratuais, nos termos

do art. 422:

Art. 422. Os contratantes obrigados a guardar, assim na conclusão do

contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé.

Com a brevidade que este texto permite, cumpre destacar as funções22

da boa-fé em linha de reequilíbrio entre as partes, o que impõe limites à livre iniciativa e

a adequação das bases econômicas do contrato em circunstâncias imprevisíveis e de

excepcional onerosidade23. A função em comento se apresenta retratada pelo no CC-02

em dois artigos:

22

Dentre as possíveis funções da boa-fé destacam-se: a função interpretativa dos negócios jurídicos

(contratos, inclusive); a função de criação de deveres jurídicos anexos, laterais ou correlatos; a função

corretiva da base econômica do contrato; a função revisional ou extintivas de cláusulas consideradas

iniquas.

23 Comparativamente, a leitura do art. 437º do Código Civil português23 não deixa dúvida de que a

pretensão revisional encontra a sua base no princípio da boa-fé, muito embora no Direito Brasileiro tal

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Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção

manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua

execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que

assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

Art. 478. Nos contratos de execução ou diferida, se a prestação de uma

das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem

para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e

imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os

efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

Da leitura comprada dos dois artigos de lei, algumas conclusão

simétricas e outra assimétricas são observadas:

i. Os artigos em comento têm finalidades distintas,

quais sejam, o art. 317 de destina somente à revisão do preço, para a

manutenção do contrato de longa duração; de outro lado, o art. 478 se

destina à resolução do contrato.

ii. A imprevisibilidade é um componente comum em

ambos os artigos, mas não se pode deixar enganar que o sistema

obrigacional brasileiro estaria apoiado numa visão subjetivista do

contrato, até mesmo porque o art. 422 CC-02 impõem dos contratantes

condutas probas, o que em ultima ratio significa posturas prudentes e

ajuizadas. A imprevisibilidade é um requisito revisional ou resolutório

sem real prestígio na atual lógica do sistema, refletindo uma cultura

francesa subjetiva do contrato que nem mesmo em França é mais

empregada.

iii. O art. 478 CC-02 deveria ser a regra jurídica nuclear

do equilíbrio contratual. Inclusive ele é dotado de um integral Seção

(Seção IV), do Capítulo II, da Extinção do Contrato. Por sua vez, o art.

317 CC-02 foi projetado para ter menor alcance, uma vez inserido nas

regras de pagamento, somente. Contudo, até mesmo por força da larga

experiência do CDC, que antecede o vigente Código Civil em mais de

princípio não esteja expressamente associado. Vejamos: “1. Se as circunstâncias em que as partes

fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à

resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das

obrigações por ela assumidas afecte gravemente ou princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos

próprios do contrato.”

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uma década, a revisão contratual passou a ser mais bem aceita pela

jurisprudência nacional, sendo excepcionalíssima a resolução do

contrato, por ônus excessivo. Com efeito, o art. 317 CC-02 passou a

ocupar o papel projetado para o art. 478 CC-02, preferindo-se a revisão

à resolução do contrato.

iv. Os requisitos do art. 478 CC-02, que são

absolutamente simulares ao art. 1.467 do Código Civil Italiano24, se

mostram quase intransponíveis de serem demonstrados em juízo,

sobretudo porque impõe ao demandante a investigação e a prova de

elementos subjetivos, a prova de fatos extraordinário e imprevisíveis

(para ambos os contratantes) e, por fim, demonstrar a vantagem

econômica do credor em desfavor do devedor.

v. O art. 317 CC-02 passou a ser a chave da revisão

obrigacional brasileira, embora a proposta do legislador tenha sido de

menor alcance, também em homenagem ao princípio da conservação

do contratos e, por consequência, da sua função social.

vi. De qualquer sorte, a revisão ou a resolução do

contrato têm como filtro a jurisprudência brasileira, a qual impõe maior

rigor de aplicação nas relações empresariais e, por consequência, maior

eficácia à autonomia privada dos contratantes.

Observa-se, sob outro giro, que o Código Civil não adotou

expressamente a possibilidade de a boa-fé determinar e conduzir a revisão contratual

como um todo (não só de cláusulas econômicas, por exemplo) e, tampouco, permite que

o juiz invalidade cláusulas contratuais iniquas, a não ser que ela estipule a renúncia

24 Art. 1.467. Nei contratti a esecuzione continuata o periodica ovvero a esecuzione differita, se la

prestazione di una delle parti divenuta eccessivamente onerosa per il verificarsi di avvenimenti

straordinari e imprevedibili, la parte che deve tale prestazione pu domandare la risoluzione del contratto,

con gli effetti stabiliti dall’Articolo 1458 (att. 168).

La risoluzione non pu essere domandata se la sopravvenuta onerosit rientra nell’alea normale del

contratto.

La parte contro la quale domandata la risoluzione pu evitarla offrendo di modificare equamente le

condizioni del contratto (962, 1623, 1664, 1923).

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antecipada do contratante aderente a direito resultante da natureza do contrato25. Portanto,

nas relações formadas por contratos de adesão, nulas serão as cláusulas contrária à causa

do contrato26.

Entretanto, tais efeitos podem ser extraídos do citado art. 422 do CC-

02, por meio de decisão judicial, a qual, ao invalidar uma cláusula de conteúdo

econômico, por exemplo, que estabeleça um índice de correção monetária reputado ilegal

pelos tribunais brasileiros27, acaba esta mesma decisão por eleger um outro índice ou

critério de atualização monetária. Assim, observa-se uma revisão contratual indireta,

posto que o legislador nacional não previu tal hipótese de modo expresso no CC-02.

Em contraponto, é relevante salientar que o Código Civil segue sendo

a lei dos contratantes com equivalência de poder de barganha, tanto que é regra geral em

face de leis especiais, como o CDC que pressupõem a desigualdade entre os contratantes.

Assim sendo, o CC-02 mantém em sua base ideológica a igualdade formal entre partes,

embora relativizada pelos demais princípios que o ilustram, como a boa-fé.

5. O entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a obrigatoriedade

dos contratos e os princípios sociais do Código Civil brasileiro

Tendo em vista os fins a que se destina este breve trabalho, o qual

objetiva realizar um sobrevoo pelo direito contratual privado brasileiro, especialmente

traçando um paralelo entre princípios sociais da contratualista nacional face ao princípio

da obrigatoriedade dos contratos, optou-se pela análise jurisprudencial do Superior

Tribunal de Justiça como critério de legitimação deste “novo direito contratual”.

Outra metodologia de aferição deste novo sistema contratual Brasileiro

poderia ter sido empregada, como a evolução positiva do Direito Privado, desde a

Constituição de 1988 ou a comparação doutrinária nacional sobre a função social do

contrato, numa linha temporal. Porém, o olhar jurisprudencial sobre o tema parece

25

Art. 424. Nos contratos de adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do

aderente a direito resultante da natureza do negócio.

26 A título de exemplo, a súmula 61 do Superior Tribunal de Justiça (STJ): O seguro de vida cobre

o suicídio não premeditado.

27 STJ Súmula nº 176 (23/10/1996 - DJ 06.11.1996): É nula a cláusula contratual que sujeita o

devedor à taxa de juros divulgada pela ANBID-CETIP.

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despertar maior curiosidade a projetar alguma segurança ao operador do mercado a partir

da previsibilidade das decisões, embora o Brasil não se vincule ao sistema jurídico da

stare decisis.

Naturalmente não se pretende esgotar toda a jurisprudência do Superior

Tribunal de Justiça na presente análise, mas sim apesentar uma amostragem das 3ª, 4ª e

1ª Turmas do STJ, que vem a ser o tribunal superior competente para julgar o tema sob

enfoque.

Para tanto, elegeram-se cinco acórdãos, num recorte temporal de 2007

até 2012, visando, como isto, cobrir a linha de pensamento jurisprudencial do STJ sobre

a obrigatoriedade contratual em paralelo com os princípios sociais apresentados pelo

Código Civil e também pela Constituição da República.

A função social infligida ao contrato não pode desconsiderar seu papel

primário e natural, que é o econômico. Ao assegurar a venda de sua

colheita futura, é de se esperar que o produtor inclua nos seus cálculos

todos os custos em que poderá incorrer, tanto os decorrentes dos

próprios termos do contrato, como aqueles derivados das condições da

lavoura. (REsp. 783404-GO – Min. Nancy Andrighi – 3 Turma -

28/06/07)

Salvo melhor análise, este foi o primeiro acórdão do STJ que apreciou

a material da revisão contratual e da onerosidade excessiva em vista do princípio da

função social do contrato.

No presente caso, discutiu-se a pretensão revisional do preço de venda

do soja em negócio aleatório, formalizado por meio de compra e venda futura (art. 459

do CC-02). O vendedor pretendia a elevação do preço pago no passado, pois quando da

entrega presente do soja, o mercado se lhe mostrava mais favorável.

O STJ negou a pretensão revisional, em síntese, sob o argumento da

previsibilidade do preço futuro do soja. Além disso, externou posicionamento no sentido

de que a função primária do contrato seria a econômica e não a social, mormente em se

tratando de relação jurídica empresarial.

O exame da função social do contrato é um convite ao Poder Judiciário,

para que ele construa soluções justas, rente à realidade da vida,

prestigiando prestações jurisdicionais intermediárias, razoáveis,

harmonizadoras e que, sendo encontradas caso a caso, não cheguem a

aniquilar nenhum dos outros valores que orientam o ordenamento

jurídico, como a autonomia da vontade.

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Não se deve admitir que a função social do contrato, princípio aberto

que é, seja utilizada como pretexto para manter duas sociedades

empresárias ligadas por vínculo contratual durante um longo e

indefinido período. Na hipótese vertente a medida liminar foi deferida

aos 18.08.2003, e, por isto, há mais de 5 anos as partes estão obrigadas

a estarem contratadas. (Resp. 972.436-BA – Min. Nancy Andrighi – 3

Turma - 17/03/09)

No presente caso, sustentou-se que a resilição de um contrato de longa

duração, sem justa causa, mas por força da verificação do termo final do contrato,

confrontaria com a função social do contrato e o princípio da conservação do negócio.

O STJ julgou a validade e a eficácia do exercício potestativo

resolutório, embora imotivado, confirmando com isso a liberdade de contratar, cujo

princípio também proporciona ao contratante o exercício do direito à ruptura da avença,

verificado o inadimplemento (lato sensu) ou a verificação do termo final. Com efeito, o

argumento da função social do contrato não impede a ruptura contratual, enaltecendo-se,

assim, a liberdade de contratar em linha negativa (o direito de não contratar ou não se

manter na posição de contratante).

VII. Concreção do princípio da autonomia privada no plano do Direito

Empresarial, com maior força do que em outros setores do Direito

Privado, em face da necessidade de prevalência dos princípios da livre

iniciativa, da livre concorrência e da função social da empresa.

VIII. Reconhecimento da contrariedade aos princípios da

obrigatoriedade do contrato (art. 1056 do CC/16) e da relatividade dos

efeitos dos pactos, especialmente relevantes no plano do Direito

Empresarial, com a determinação de que o cálculo dos prêmios

considere a realidade existente na data em que deveriam ser pagos.

(REsp1158815-RJ – Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO – 3

Turma - 07/02/12)

Trata-se de debate sobre o valor do prêmio em contrato de seguro

coletivo.

Entendeu o STJ que nos contrato empresarias há de prevalecer os

princípios clássicos da contratualidade, sem embargo dos valores sociais do contrato, pois

a autonomia privada sobrepõe-se, na seara do Direito Privado empresarial, aos princípios

sociais.

2. A cláusula contratual que estipula o pagamento de multa caso o

contratante empregue um dos ex-funcionários ou representantes da

contratada durante a vigência do acordo ou após decorridos 120 (cento

e vinte) dias de sua extinção, não implica em violação ao princípio da

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função social do contrato, pois não estabelece desequilíbrio social e,

tampouco, impede o acesso dos indivíduos a ele vinculados, seja

diretamente, seja indiretamente, ao trabalho ou ao desenvolvimento

pessoal. (REsp. 1.127.247-DF – Min. Felipe Salomão – 4 Turma -

04/03/10).

No corrente acórdão verifica-se uma mudança de entendimento do STJ,

pois, pela primeira vez, o Tribunal estabeleceu uma preocupação social a um contrato de

natureza entre empresários. Observe-se que os efeitos do contrato sob análise tocavam a

terceiros trabalhadores, os quais se encontravam impedidos de serem contratados, pelo

prazo de cento e vinte dias, por conta de cláusula contratual, sob pena de multa imposta

ao empregador.

A cláusula da multa foi julgada válida, já que os trabalhadores (terceiros

à relação contratual) não estavam impedidos de trabalhar, embora o contratante se

submetesse à multa, na hipótese de violação.

É um acórdão de transição ideológica e de compreensão de que o

contrato pode, não raramente, atingir terceiros em seus interesses patrimonial e

existencial, já que o direito ao trabalho é reputado um direito constitucional (subjetivo)

ou fundamental.

Vale dar destaque as normas insertas nos arts. 421 e 422 do CC, as quais

tratam, respectivamente, da função social do contrato e da boa-fé

objetiva. A função social apresenta-se hodiernamente como um dos

pilares da teoria contratual. É um princípio determinante e fundamental

que, tendo origem na valoração da dignidade humana (art. 1 da CF),

deve determinar a ordem econômica e jurídica, permitindo uma visão

mais humanista dos contratos que deixou de ser apenas um meio para

obtenção de lucro.” (AgRg no REsp 1272995/RS - AGRAVO

REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL - 2011/0197420-7 – Min.

NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO – 1 Turma - 07/02/2012)

O acórdão sob análise se encontra ideologicamente e funcionalmente

no outro extremo daquele inicialmente analisado, já que impõe à instituição financiador

da educação a redução de multa (cláusula penal moratória) pelo atraso no pagamento do

financiamento, ao argumento de que a multa de 10% seria incompatível com a finalidade

social do contrato de ensino.

Observe-se, contudo, que o contrato julgado se estabelece entre

fornecedor de crédito e estudante, não sendo, por consequência, um contrato

interempresarial. O contrato em comento não é reputado de consumo, segundo

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entendimento consolidado da 1A. Turma do STJ, aplicando-se, porém, os princípios da

dignidade da pessoa humana (CR) e a função social do contrato (CC-02).

Ainda nesse quadrante, oportuno destacar que o tema foi posto em

julgamento de modo excepcional pela 1ª Turma do STJ, uma vez que a sua competência

de julgamento é a do Direito Público, embora a dignidade da pessoa humana e a função

social do contrato sejam matérias de ordem pública, conforme as fontes constitucional

(art. 1O, inc. III28) e civil (art. 2.035, parágrafo único29) Brasileiras.

6. Notas conclusivas

Ante o exposto ao longo do texto, algumas conclusões se apresentam

necessárias.

Inicialmente, mostra-se inegável o giro legal dos princípios contratuais

privados nacionais, sob influência inicial da Constituição da República de 1988, passando

pelo Código de Defesa do Consumidor e por fim pelo novo Código Civil Brasileiro.

Pode-se afirmar, em grandes linhas, que o direito contratual Brasileiro

se apresenta mais social com o atual Código Civil (2002) do que na vigência do Código

Civil de 1916, importando esta rotação em favor do viés social do contrato em

consequências hermenêuticas, estruturais e funcionais sem precedentes no Direito

Privado.

Especialmente no que toca ao princípio da força obrigatória dos

contratos, este sofreu notável mitigação, deixando de ostentar no Brasil a natureza

dogmática e liberal, histórica e ideológica que originariamente o caracterizou, além de

agir em coordenação com demais princípios clássicos e contemporâneos, como a boa-fé

objetiva e a função social do contrato.

28 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e

Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

III - a dignidade da pessoa humana;

29 Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em

vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos,

produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista

pelas partes determinada forma de execução.

Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais

como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.

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Em verdade, a mitigação do princípio da força obrigatória não é uma

novidade, nem mesmo para os operadores do Direito Empresarial, afetos que estão a

institutos de revisão negocial como a cláusula hardship. Ou seja, a mitigação Brasileira

da força obrigatória dos contratos não coloca o país numa condição, por assim dizer,

exótica, no cenário dos contratos internacionais e nacionais, em que pese a originalidade

da função social do contrato.

De qualquer modo, o que se revela, a partir do entendimento

jurisprudencial construído pelo Superior Tribunal de Justiça ao longo de mais de dez anos

de codificação civil é a inexistência de uniformidade entre as 1A., 3A. e 4A. Turmas,

embora se possa perceber uma linha de pensamentos mais favorável à liberdade de

contratar e por consequência da obrigatoriedade contratual na 3A. Turma em comparação

às demais.

Seguindo na análise dos julgados do STJ, percebe-se a grande

importância que o Tribunal emprega à condição econômica do contratante (empresário,

“civil” ou consumidor), traçando uma linha divisórias entre contratos empresariais ou de

lucro e contratos existenciais, de modo a calibrar os novos valores sociais do contrato em

vista da vulnerabilidade maior ou menor dos contratantes.

A partir dessa sub-classificação contratual (contratos empresariais ou

existenciais), o STJ julga com ênfase aos princípios da autonomia privada, se

empresariais, ou com maior observância aos princípios sociais se o contrato é daqueles

existências (civil e de consumo). O CC-02 não apresenta essa sub-classificação

contratual, sendo ela uma construção doutrinária brasileira que objetiva adaptar a lei ao

fenômeno contratual, que se mostra cada vez mais multifacetado.

A plasticidade do conceito de contrato possivelmente impedirá que o

STJ defina, com precisão e uniformidade, o papel e o alcance da força obrigatória dos

contratos vista à luz de princípios sociais. Sob outro viés, afigura cada vez mais definida

a posição do STJ em divisar contratos empresariais e contratos existenciais, aplicando de

forma modulada a função social dos contratos e a boa-fé na medida da maior ou da menor

vulnerabilidade dos contratantes.

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O AMBIENTE DA NOVA CONTRATUALIDADE E

A TENDÊNCIA DA JURISPRUDÊNCIA DO STJ EM MATÉRIA

CONTRATUAL

The environment of the new contractuality and STJ’s justice trend in contractual

matters

Rodrigo Toscano de Brito Doutor e Mestre em Direito Civil Comparado pela Pontifícia Universidade Católica

de São Paulo – PUC-SP. Professor de Direito Civil da Universidade Federal da Paraíba e do UNIPÊ –

Centro Universitário de João Pessoa, nos cursos de graduação e pós-graduação. Advogado.

Resumo: O presente artigo tem por objetivo estudar a consolidação do cenário em que

estão inseridos os contratos, a partir da globalização e sua influência, e a dignidade da

pessoa humana como contraponto à pressão globalizante. Nesse sentido, faz-se uma visita

à doutrina constitucional e civil, para, ao final, trazer análises sobre a evolução legislativa

e jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça, nesse “ambiente contratual”. Assim,

parte-se da análise de alguns recentes julgados do STJ que tragam, em sua essência, a

influência dos elementos inicialmente citados, levando em conta precedentes que

envolvam contratos civis, empresariais e de consumo.

Palavras-chave: Contratos; Globalização; Dignidade da pessoa humana; Precedentes

judiciais.

Abstract: This article aims to study the consolidation scenario in which contracts are

entered from the globalization and its influence, and the dignity of the human person, as

a counterpoint to globalizing pressure. In this sense, it is a visit to constitutional and civil

doctrine, in the end, bring analyzes of legislative and jurisprudential evolution of the

Superior Court in that "contractual environment". Thus, some recent sentences is

analyzed from the Supreme Court that carry, in essence, the influence of the elements

initially cited, taking into account precedents involving civil, business and consumer

contracts.

Key-words: Contracts; Globalization; Human dignity; Judicial precedents.

Sumário: 1. Nota introdutória em torno do atual cenário das contratações – 2.

Globalização: um ambiente consolidado e complexo para as relações contratuais – 3. A

dignidade da pessoa humana como contraponto à pressão globalizante e como

balizamento maior na interpretação contratual – 4. Evolução legislativa e jurisprudencial

e a adaptação da interpretação dos contratos à realidade civil constitucional: análise de

precedentes do Superior Tribunal de Justiça – 5. Notas conclusivas.

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1. Nota introdutória em torno do atual cenário das contratações

As considerações iniciais que se pretende fazer neste ensaio perpassam

por uma conjuntura já conhecida em profundidade pelos civilistas que passaram a estudar

e discutir o direito civil brasileiro a partir do ângulo constitucional, mas que algumas

vezes ainda passa despercebido pela construção dos precedentes judiciais.

Na primeira parte deste artigo, pretende-se revisitar a percepção de

como a doutrina, especialmente a constitucionalista e a civilista, que analisaram o

fenômeno da constitucionalização do direto civil, num primeiro momento, sentiram-se

perto do influxo da Constituição de 1988, em matéria de direito privado. A ideia central

é mostrar o cenário da contratualidade na atualidade – que já não é novo, mas sim

consolidado. Para tanto, levar-se-á em conta uma análise à luz da globalização e sua

influência sobre os contratos, e a dignidade da pessoa humana, como contraponto à

pressão globalizante, sobretudo para revisitar a doutrina que, prospectivamente, viu

adiante, iluminando o horizonte1, esses efeitos, e mostrar como anunciou o que vemos

hoje, na construção jurisprudencial, de modo avançado, em determinados casos, e, ainda

de modo tímido, em outros, como se mostrará na última parte deste escrito.

Diante de um quadro econômico e social complexo, em que não se pode

mais se ater apenas às relações entre fornecedor e consumidor, que são relações frágeis e

que continuam a merecer especial cuidado, mas que também sofreram grande evolução

nas últimas décadas com a discussão do direito do consumidor, faz-se necessário uma

visão mais abrangente, uma teoria para os contratos que esteja comprometida com o

equilíbrio da contratação na conjuntura em que se encontra.

Diante dessa realidade, não se pode deixar de desenhar o palco, ou

melhor dizendo, o grande cenário, já consolidado, em que se encontra inserido o contrato,

1 Luiz Edson Fachin explicitava, desde a muito, que “avançar contra a Constituição é promover, no

tempo presente, a estagnação paralisante do ocaso pretérito. O Brasil constitucional de hoje pede respeito

ao futuro da Nação” e, mais adiante, afirma, sobre a dimensão prospectiva da Constituição, que esta “se

vincula a ação permanente e contínua, num sistema jurídico aberto, poroso e plural, de ressignificar os

sentidos dos diversos significantes que compõem o discurso jurídico normativo, doutrinário e

jurisprudencial, especialmente no que concerne a tríplice base fundante do governo jurídico das relações

sociais, isto é, propriedade, contrato e família.” (FACHIN, Luiz Edson. Em defesa da Constituição

prospectiva e a nova metódica crítica do direito civil e suas ‘constitucionalizações. In. Questões do Direito

Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 7).

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especialmente quanto à influência da jurisprudência brasileira, o que se pretende analisar

ao final deste ensaio.

Esse cenário tem, pelo menos, dois elementos que influenciam o

contrato e objetivam a busca de seu equilíbrio, num sentido mais amplo de contraposição

de forças. A primeira etapa da nossa caminhada será dedicada a demonstrar alguns

aspectos da globalização, criadora de um complexo ambiente para as relações contratuais

– o grande cenário. Em seguida, buscar-se-á visualizar o princípio da dignidade da pessoa

humana como o ator principal no grande palco contratual contemporâneo, que serve como

o verdadeiro orientador desse ambiente contratual. Por último, procurar-se-á ressaltar a

atividade legislativa e jurisprudencial, esta buscando se adaptar à nova contratualidade.

Antes de se passar para o estudo desse cenário em que se encontra o

contrato no Brasil, é importante observar que a nova contratualidade, que está inserida

em todo o cenário que aqui será visto, tem por principal objetivo, especialmente, na

análise da influência da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a busca pelo

equilíbrio da contratação, como elemento finalístico, hoje, ao que nos parece, consolidado

na legislação e em consolidação na jurisprudência daquela Corte Superior de Justiça.

2. Globalização: um ambiente consolidado e complexo para as relações contratuais

Apesar da crise econômica enfrentada nos últimos anos, talvez desde

Roma, até os dias atuais, a humanidade não tenha visto um país desejar tanto a

manutenção da hegemonia econômica e, na esteira dela, a cultural, como ocorre hoje com

os Estados Unidos da América, que impõem regras e um modo de vida semelhante para

qualquer parte do mundo.

É esse fator – de relevância para o raciocínio contratual contemporâneo

– conhecido de todos, que nos força a ponderar e tentar entender o fenômeno da

globalização. Aqui, de fato, a intenção não é considerar a globalização como mero

modismo. A necessidade de considerá-la é real. Com efeito, a globalização é e funciona

como o palco principal das contratações contemporâneas. É, a rigor, o fenômeno macro,

maior. Não se pode afirmar ser o principal, uma vez que aqui se considera sobremaneira

a dignidade da pessoa humana como contrapeso e elemento principal, mas é, sem

embargo, o que mais influencia e requer reflexão.

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Para Ronaldo Porto Macedo Júnior, em artigo que procura discutir o

fenômeno da globalização em face do direito do consumidor, “poder-se-ia definir

provisória e preliminarmente globalização como um processo de natureza econômica e

política marcado pelas seguintes características: a) ampliação do comércio internacional

e formação de um mercado global assentado numa estrutura de produção pós-fordista

(pós-industrial); b) homogeneização de padrões culturais e de consumo; c)

enfraquecimento da ideia de Estado-nação em benefício dos agentes econômicos do novo

mercado global; d) formação de blocos comerciais”.2

Numa visão que admite o aspecto político, Cristiano Chaves de Farias

assevera que “genericamente, pode-se afirmar que é a designação dada ao conjunto de

transformações de ordem política, social e econômica verificadas nos últimos tempos em

quase todos os estados democráticos de direito, tendentes à integração dos mercados,

possibilitando maior circulação de riquezas”.3

Como se vê, há um padrão de opiniões diante de uma noção

objetivamente imprecisa. O que se busca, porém, é o delineamento desse fenômeno

mundial que não parece esconder o real objetivo: padronizar comportamentos, consumo,

cultura, ciência, tudo em benefício de interesses mais fortes. É esse, sim, o principal

escopo pretendido, apesar de não se negar que em alguns casos traga bons frutos.

São inúmeras as variáveis da globalização. Para este ensaio, entretanto,

interessam os efeitos trazidos do ponto de vista econômico4 que afetam de frente os

contratos. Aliás, não se pode olvidar que é o contrato o elemento principal facilitador de

circulação de riquezas e é através dele que se pode aplicar e padronizar, em diversos

níveis de relacionamento, a padronização almejada pelos timoneiros da ideia globalizante.

Essa é uma realidade presente da atual contratualidade, que vive, talvez, seu auge, não só

vislumbrada nas relações de consumo, mas também nas relações empresariais.

2 MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Globalização e direito do consumidor. In: SUNDFELD,

Carlos Ari; VIEIRA, Oscar Vilhena (Coords.). Direito global. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 225-239.

3 FARIAS, Cristiano Chaves de. A proteção do consumidor na era da globalização. Revista de

Direito do Consumidor, São Paulo, n. 41, p. 89, jan./mar. 2002.

4 LOBO, Paulo Luiz Netto. Direito do Estado federado ante a globalização econômica. Revista

Notícia do Direito Brasileiro, Nova Série, Brasília, Universidade de Brasília, n. 8, p. 202, 2001. Para o

autor, “interessa sim, a chamada globalização econômica, notadamente quanto aos seus efeitos negativos e

destrutivos sobre os direitos nacionais, máxime dos direitos sociais e da ordem econômica”. (LOBO, Paulo

Luiz Netto, Direito do Estado federado ante a globalização econômica, p. 202).

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Não é demais ressaltar, como delineado por Ronaldo Porto Macedo

Júnior, que há uma indiscutível intenção de ampliação do comércio internacional e

formação de um mercado global. Ora, é esse comportamento sem fronteiras que

enfraquece as empresas nacionais, gerando, por via de consequência, um maior

enfraquecimento do consumidor doméstico e das empresas nacionais.

A teoria do contrato, que em momento histórico mais recente se

preocupou mais com a proteção dos envolvidos numa relação de consumo – e assim deve

continuar fazendo – teve de ajustar seu rumo, para viabilizar a proteção também em outras

relações que não contam, necessariamente, em seu bojo, com a presunção de parte

hipossuficiente. Ora, se há um mercado global, se há a ideia de enfraquecimento do

Estado-nação (antes especulado, hoje real), se há uma tendência de homogeneização de

consumo com a presença, em praticamente todos os países do mundo ocidental, das

mesmas empresas, dos mesmos grandes grupos empresariais, então deve haver um

deslocamento do intervencionismo contratual para além do contrato de consumo. Não se

poderá pensar de forma diversa, se se sabe que o elemento principal da globalização

econômica é o próprio capital financeiro.

Paulo Luiz Netto Lobo, em trabalho publicado há algum tempo,

comentava e alertava para o fato de que “até agora, o que se vê é o crescimento da

concentração de poder empresarial, em escala planetária impressionante, no qual os

valores hegemônicos são ditados pelos interesses das grandes empresas, com força

econômica e law making power superiores ao da maioria dos países”.5

Por seu turno, Paulo Bonavides consegue delinear, em poucas palavras,

toda a estrutura do fenômeno globalizante. Quando comentando o comportamento

neoliberal, diz: “Assim, por exemplo, quando intenta – e em alguns casos já o fez –

desnacionalizar a ordem econômica, despedaçar o Estado, abdicar a soberania nos

acordos lesivos ao interesse nacional, promover a recessão, perseguir com emendas

constitucionais e medidas provisórias o corpo burocrático da administração pública,

cercear direitos adquiridos, arruinar o pequeno e médio empresário, esparzir o medo e o

5 LOBO, Paulo Luiz Netto, Direito do Estado federado ante a globalização econômica, cit., p. 203.

Cristiano Chaves de Farias comenta o seguinte: “Ora, esse processo de mundialização do capital tende a

fomentar o consumo como forma de alcançar o lucro, que é o próprio resultado almejado. Nesse passo, é

imperioso reconhecer como consectários desse fenômeno a hegemonia do capital financeiro, o crescimento

de empresas transnacionais, a internacionalização da produção, a liberalização do comércio e o maior

oferecimento de produtos e serviços, mudança nas práticas contratuais, com repercussões claras na

sociedade organizada”. (A proteção do consumidor na era da globalização, cit., p. 89).

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sobressalto na classe média, diminuir o crédito ao produtor rural, elevar à estratosfera a

taxa de juros, esmorecer a reforma agrária, confiscar o bolso do contribuinte com novos

impostos, fazer da reforma tributária um engodo e da reforma administrativa uma falácia,

conduzir o trabalhador ao desespero, praticar sistematicamente uma política de

desemprego que, levando a fome ao lar de suas vítimas, desestabiliza a ordem social,

abater as autonomias estaduais e municipais, mediante mudanças na Constituição que

afetam os entes federativos e só fortalecem a União, semear a descrença do povo na

melhoria de sua qualidade de vida pela brutal indiferença com que trata a questão social,

estabelecer o retrocesso político nas instituições republicanas com a reeleição

presidencial, desestruturar o ensino público e comprimir com indigência de meios

financeiros a autonomia universitária, abrir sem freios o mercado à voracidade dos

capitais especulativos de procedência externa, que ameaçam de mexicanização a

economia brasileira, descumprir oito artigos da Constituição que regem interesses

fundamentais das Regiões, o que ocorre na medida em que sua política do Mercosul

acelera os desequilíbrios regionais no País e, finalmente, jungir o Brasil a uma política de

sujeição externa vazada na obediência aos interesses da chamada globalização

econômica”. Mais adiante, o autor arremata: “A globalização é ainda um jogo sem regras;

uma partida disputada sem arbitragem, onde só os gigantes, os grandes quadros da

economia mundial, auferem as maiores vantagens e padecem os menores sacrifícios.”6

Apesar de todas as palavras destacadas merecerem grifo, para o mister

pretendido nestas linhas que, como dito, ressalta o ambiente no qual está inserida a

contratualidade contemporânea algumas devem ter destaque especial: a ruína do pequeno

e médio empresário; a elevação à estratosfera da taxa de juros e a abertura do mercado à

voracidade dos capitais especulativos de procedência ou com a ajuda externa.

Mas, pode-se ir além. Outros aspectos facilitam sobremaneira a

expansão das ideias e do poder privado aqui já delineado. Trata-se da alta evolução

6 BONAVIDES, Paulo. A Constituição aberta. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1996. p. 282-283. Sobre

o assunto e com referência expressa à influência exercida sobre os contratos, Maria Luiza Feitosa, comenta:

“Num mercado que se desenvolve para a pluralização do lucro e da rentabilidade, o risco deixou de ser

visto como instituto de negação do dano ou de prevenção das possibilidades de perdas, projetando-se sobre

a própria essência das transações, às vezes, como elemento central do binômio especulação versus

investimento. Nesse campo, tornou-se lícito, possível e determinável, podendo ser analisado, posto em

tratativas e pactuado. Vincula-se aos contratos de maneira cotidiana e regular, compondo uma equação em

perfeita sintonia e simbiose. Mesmo sem detalhar as diferenças encontradas, podem ser extraídas, nesta

breve discrição, importantes e substanciais diferenças em comparação à contratação tradicional”

(FEITOSA, Maria Luiza. Globalização financeira: mudanças que afetam o campo jurídico-econômico dos

contratos e os modos de lidar com o risco. In: Liber Amicorum – Homenagem ao Prof. Doutor Antonio José

Avelãs Nunes, 2009. p. 741-770.

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tecnológica, devida muito pelo desenvolvimento e utilização dos supercomputadores e da

internet. A partir de uma rede mundial de computadores ou televisão via satélite, é

possível difundir, disseminar ideias, produtos, moda, de forma a incutir na mente de cada

cidadão, isoladamente considerado, a necessidade de busca por determinada marca,

produto ou fornecedor que, na maior parte das vezes, são representantes abertos das tais

grandes empresas que acabam desestabilizando a economia de um país, com fortes

reflexos na própria economia contratual.

Mas, interessa também destacar aqui os principais efeitos do fenômeno

globalizante, de forma a encontrar pontos que interfiram direta ou indiretamente nos

contratos.

Em primeiro lugar, no estágio atual, percebe-se com mais clareza que

se procura afastar o Estado social, em face das garantias por ele promovidas. Como sabido

por todos, o Estado social veio se contrapor ao Estado liberal, da livre iniciativa, com

regras menos intervencionistas, da ampla utilização do voluntarismo, em que tudo era

regido única e exclusivamente a partir da vontade das partes. Constatado o afastamento

da igualdade real em face da existência de uma igualdade meramente formal, o Estado

passou a intervir com mais intensidade nas relações privadas, com o escopo de procurar

manter o equilíbrio das relações. É exatamente a época que coincide, segundo a tese de

Miguel Reale, com a segunda fase do direito moderno7. Pois bem, é essa fase mais

intervencionista que a globalização procura afastar, embora do ponto de vista

jurisprudencial, levando-se em conta os precedentes do Superior Tribunal de Justiça, a

tendência parece ser outra, quanto à interpretação dos contratos.

O que procura fazer o fenômeno globalizante é, em poucas palavras,

desconsiderar as regras intervencionistas do Estado social, implantando suas próprias

regras e normas particulares, e aqui vale insistir, de um ponto de vista mais privado,

digamos, não só em relações jurídicas de consumo, como já se refletiu, mas nas relações

empresariais, e que, em face das consequências econômicas causadas, acabam por

influenciar as relações civis puras.

Qual a fonte geradora dessa força? Sem dúvida, a noção de

internacionalização de empresas, em que as opções de consumo e fornecimento de bens

e serviços nas relações empresariais, na medida em que o próprio fenômeno avança,

passam a ser mínimas, centralizadas nas mãos de poucos grupos empresariais, que tendem

7 REALE, Miguel. Nova fase do direito moderno. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 102-113.

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a ser os mesmos na América do Sul, na América do Norte, na Oceania, na Ásia, na Europa,

às vezes mudando, outras aproveitando o nome local de alguns produtos para dessa forma

se camuflarem.

Paulo Luiz Netto Lobo, sempre atento à ideia que se pretende aqui

realçar, assevera: “O meio mais eficiente de desconsideração do direito nacional é o da

utilização massificada de condições gerais dos contratos. Sob a aparência de contrato,

esconde-se um impressionante poder normativo, dificilmente revelável, que ostenta

características assemelhadas às da lei. A lei, no Estado moderno, ostenta características

que distanciam de qualquer ato de particulares ou de grupos. São eles: a generalidade, a

abstração, a uniformidade e a inalterabilidade. Pois bem, as condições gerais dos

contratos apresentam as mesmas características.”8

Voltando então para o ponto já referido, é dessa forma que a

globalização facilita o poder normativo das grandes empresas transnacionais. Não há mais

fronteira para a utilização de suas regras. Apesar de terem de se adaptar às normas locais,

em cada país, em cada bloco econômico, de uma forma geral, conduzem para os quatro

cantos do mundo a mesma regra, padronizada, imposta e consequentemente mais barata.

Mas a remoção do Estado social não é o único efeito de relevo do

fenômeno aqui estudado. Como já dito, há um evidente enfraquecimento das pequenas e

médias empresas, senão levadas à ruína total, pelo menos muitas se encontram em difícil

situação financeira, ante a consolidação da abertura da economia, nesse jogo de regras

unilaterais permitidas pelo próprio mercado, que funciona, de certa forma, como

mecanismo autorregulador.

Não há dúvida sobre a diferença do poderio econômico de uma empresa

nacional, seja ela pequena, média ou mesmo grande, e uma superempresa transnacional

que, como já suscitado, impõe suas próprias normas, não só em relação aos seus

consumidores, como também em relação às demais empresas domésticas. Carlos Alberto

Ghersi relata a experiência pela qual passou a Argentina, dizendo o seguinte: “El

8 LOBO, Paulo Luiz Netto, Direito do Estado federado ante a globalização econômica, cit., p. 204-

205. O autor faz um cotejo entre a lei e as condições gerais dos contratos. Segundo ele, as condições gerais

dos contratos também são gerais, pois se aplicam a todas os destinatários, sem individualização. Também

são abstratas, uma vez que são predispostas para reger situações futuras e não situação concreta e

determinada. De igual forma, são inalteráveis ou insusceptíveis de negociação individual com cada

interessado. São, igualmente, uniformes, porque padronizadas para utilização por todos que necessitam dos

produtos ou serviços oferecidos e, por último, são editadas pela parte interessada. Assim, o autor demonstra

claramente o law making power, já referido, indispensável para a interpretação do equilíbrio contratual de

hoje.

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mercado, como mecanismo autorregulador, produjo la quiebra de pequeñas y medianas

empresas ante la apertura de la economía sin restricciones; la desocupación estructural

llegó y permanece en niveles nunca antes existentes en la Argentina, entre algunas de

esas consecuencias disvaliosas.”9

Na mesma ordem de ideias, o fenômeno globalizante acabou trazendo

outra consequência relevante, notadamente para países em desenvolvimento como o

Brasil: a pressão para se realizar as privatizações das empresas que, segundo a ideia

dominante, não devem estar nas mãos estatais. Entre nós, como amplamente divulgado,

esse foi um passo dado, promovendo, como hoje se vê, após alguns anos da passagem de

várias estatais para a iniciativa privada, uma maior concentração de força econômica por

parte de grandes grupos econômicos internacionais, aumentando o poder de

“autorregulamentação” contratual de setores importantes da economia, como ocorre, por

exemplo, com a telefonia, apesar da insistente e mais do que necessária interferência

estatal, através do Poder Executivo, a exemplo do CADE (Conselho Administrativo de

Defesa Econômica), do Poder Legislativo, na gênese de novas regras intervencionistas, e

do próprio Poder Judiciário que passou a melhor entender a necessidade de intervir na

economia contratual, promovendo revisões de cláusula e declarando a sua nulidade,

conforme o caso, ainda que a relação não viesse a ser de consumo, estritamente.

É interessante anotar, como o faz com extrema sensibilidade Carlos

Alberto Ghersi, que, diante desses efeitos, outros da mais alta relevância surgem em

consequência. De fato, para o autor argentino, passa-se a vislumbrar uma pobreza

econômica e social que leva, por via de consequência, a uma pobreza jurídica, de direito,

afastando o indivíduo dos direitos fundamentais. Para ele, assim como do ponto de vista

econômico se impossibilita o acesso do cidadão a um recurso suficiente que lhe permita

exercer seus direitos de trabalhador e de consumidor, ou do ponto de vista social, com a

existência do analfabetismo ou do semianalfabetíssimo, impede-o de conhecer os seus

direitos, impossibilitando-o de exercitá-los, do ponto de vista jurídico, isso também

ocorre, em escala ainda pior. Como comenta, “en el derecho ello es peor aún, por

ejemplo, porque presume el conocimiento de la ley para aquellos (pobres ignorantes), lo

cual los torna peligrosamente impotentes, pues al firmar ‘contratos o pseudocontratos’

9 GHERSI, Carlos Alberto. La pobreza jurídica y el ejercicio de los drechos fundamentales: el valor

de las libertades negativas. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 43, p. 16, jul./set., 2002.

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se les aplicara aquel criterio (la lei debe ser conocida por todos, art. 20 CC argentino),

colocándolos al margem de la protección jurídica”.10

Todos esses aspectos são típicos da contemporaneidade econômica que,

de fato, irradia efeitos em diversas direções. Como não poderia ser diferente, o direito se

sente influenciado e, no caso específico da interpretação da teoria geral dos contratos,

todos os pontos aqui discutidos são da mais alta relevância.

A globalização, nos seus primeiros passos, já embalados pelo pleno

vigor da sociedade massificada, fez com que ganhasse força uma legislação protetiva do

consumidor, realçando noções relevantes, como a da solidariedade social, o valor da livre

iniciativa e um real sentido da dignidade da pessoa humana. Agora, a teoria dos contratos,

em mais uma de suas adaptações evolutivas conta com intervencionismos estatais mais

abrangentes, voltando-se, não só para a realidade dos contratos consumeristas, mas para

o contrato como um todo, em face da influência da própria noção de globalização, que

funciona, conforme demonstrado, como palco que propicia essa mudança de visualização.

Para Antonio Junqueira de Azevedo, na fase moderna, buscou-se a lei

como porto seguro para todas as soluções. O autor assim argumenta: “Ora, sem

remontarmos a épocas mais remotas, qual era o paradigma até aproximadamente a

Primeira Grande Guerra Mundial? Era o paradigma da lei. Vindos dos traumas do

absolutismo, os juristas de então viam, na lei, o direito. Para dar segurança, a norma devia

ser clara, precisa nas suas hipóteses de incidência (fattispecie), abstrata e universal.”11

Para o citado autor, em momento subsequente, e ainda no modernismo,

o paradigma mudou, de forma que o centro das decisões saiu da lei e foi para o juiz, visto

como o representante do Estado, a pessoa capaz de tudo resolver. Nessa ordem de ideias,

diz o seguinte: “Introduziram-se, assim, nos textos normativos, os conceitos jurídicos

indeterminados, a serem concretizados pelo julgador no caso a decidir, e as cláusulas

gerais, como a da boa-fé (falou-se até mesmo em fuga para as cláusulas gerais, ou seja,

fuga da lei para o juiz).”12

Ao que nos parece, não há hoje a continuidade desse fenômeno, a ponto

de se afirmar que se foge do juiz. Ao contrário, o juiz passou a ser o principal elemento,

10

GHERSI, Carlos Alberto, La pobreza jurídica y el ejercicio de los derechos fundamentales: el

valor de las libertades negativas, cit., p. 18.

11 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. O direito pós-moderno e a codificação. Revista de Direito do

Consumidor, São Paulo, n. 33, p. 125, jan./mar. 2000.

12 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. O direito pós-moderno e a codificação, cit., p. 126.

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por assim dizer, na análise do ambiente em que se construiu o contrato e do seu entorno,

na aplicação do direito contratual, levando em conta especialmente a principiologia do

contrato.

Há, atualmente, uma maior intervenção estatal nas relações

empresariais e mesmo, em alguns casos, nas estritamente civis, como já ocorria nas

relações de consumo, mas com níveis de intensidade, evidentemente, diferentes, para

cada caso.

É esse, em rápidas noções, o ambiente no qual se encontram inseridas

as relações contratuais contemporâneas. Mas, conforme já dito, há um balizamento maior,

capaz de servir de grande contrapeso a toda a pressão imposta pelo perfil globalizante,

capaz mesmo de servir como um dos critérios maiores do equilíbrio entre as prestações:

a necessidade de observância do princípio da dignidade da pessoa humana.

3. A dignidade da pessoa humana como contraponto à pressão globalizante e como

balizamento maior na interpretação contratual

Visto o cenário maior, como aqui se idealizou, no qual hoje se inserem

as contratações, passemos ao estudo de um dos seus elementos integrantes que tem, sem

embargo, o escopo de se contrapor ao meio-ambiente em que se encontra o contrato. Na

verdade, talvez fosse desnecessário desenvolver este tema como ele se encontra proposto.

De fato, parece óbvio que o princípio da dignidade da pessoa humana é, em qualquer

hipótese, o orientador nato das relações jurídicas modernas. Entretanto, apesar da

aparente obviedade, não se pode afastar sua importância num ensaio que se propõe a

visitar o atual estágio da nova contratualidade, com lastro num direito civil que tem seu

fundamento maior e seu principal conteúdo em sede constitucional.

Não se pode negar também que a ideia central destas linhas muito deve

à própria noção do princípio da dignidade da pessoa humana. Olvida-se da sua

penetrabilidade na seara privada, porque os próprios civilistas e, porque não dizer, a

doutrina menos avisada, associa com facilidade a noção desse princípio à dos direitos

humanos numa via publicista. No entanto, não se pode negar que está nele a gênese de

novas ideias, de novas fronteiras outrora exclusivamente privadas, como ocorre com o

contrato. Gustavo Tepedino, a partir da noção de personalidade, demonstra claramente

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essa linha de pensamento, ao afirmar que os direitos da personalidade são os direitos

humanos, sob o ângulo privado.13

Como se não bastasse estar no princípio da dignidade da pessoa humana

o embrião do estudo aqui desenvolvido, não se pode deixar de dizer, na esteira do que

afirma J. J. Gomes Canotilho, que há uma base antropológica constitucionalmente

estruturante do Estado de direito que, em relação ao que sustentamos, deve ser

considerada como balizamento máximo14. Nesse sentido, ainda que o direito privado

tenha, historicamente, uma feição patrimonialista por excelência, não pode se afastar do

homem, da proteção da pessoa humana. Aliás, há, entre nós, claramente um deslocamento

da tutela meramente patrimonialista para a da pessoa humana como centro nervoso do

direito. A respeito desse tema, Eroulths Cortiano Junior diz que “o direito revolta-se

contra as concepções que o colocavam como mero protetor de interesses patrimoniais,

para postar-se agora como protetor direto da pessoa humana. Ao proteger (ou regular) o

patrimônio, se deve fazê-lo apenas e de acordo com o que ele significa: suporte ao livre

desenvolvimento da pessoa”.15

Além de tudo, é inegável também que não se pode contrapor à ideia

globalizante, que se reflete tão facilmente no mundo dos contratos, apenas com normas

positivadas específicas, ou mesmo com princípios fundamentais de direito privado. Com

arrimo na lição de J. J. Gomes Canotilho, faz-se mister seguir, como alicerce fundamental,

os princípios políticos constitucionalmente conformadores, como é o caso do princípio

da dignidade da pessoa humana.16

13

O autor explica seu posicionamento da seguinte forma: “Daí considerar-se que os direitos

humanos são, em princípio, os mesmos da personalidade; mas deve-se entender que quando se fala dos

direitos humanos, referimo-nos aos direitos essenciais do indivíduo em relação ao direito público, quando

desejamos protegê-los contra as arbitrariedades do Estado. Quando examinamos os direitos da

personalidade, sem dúvida nos encontramos diante dos mesmos direitos, porém sob o ângulo do direito

privado, ou seja, relações entre particulares, devendo-se, pois, defendê-los frente aos atentados perpetrados

por outras pessoas”. (TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 33).

14 O princípio da dignidade da pessoa humana, entre nós, está positivado no artigo 1º, III da

Constituição Federal de 1988. José Joaquim Gomes Canotilho, em alusão a dispositivo constitucional

português análogo ao brasileiro, diz: “A Constituição da República não deixa quaisquer dúvidas sobre a

indispensabilidade de uma base antropológica constitucionalmente estruturante do Estado de direito (cfr.

CRP, art. 1º: Portugal é uma República soberana baseada na dignidade da pessoa humana)”. (Direito

constitucional. 6. ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1996. p. 362).

15 CORTIANO JUNIOR, Eroulths. Alguns apontamentos sobre os chamados direitos da

personalidade. In: FACHIN, Luiz Edson (Coord.). Repensando fundamentos do direito civil brasileiro

contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p 33.

16 O professor da Universidade de Coimbra explica a noção dos princípios políticos

constitucionalmente conformadores da seguinte forma: “Designam-se por princípios politicamente

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Nesse contexto, é preciso, desde já, estabelecer o campo em que se

encontra a temática aqui desenvolvida. Ou seja, o princípio da dignidade da pessoa

humana deve ser visto como uma “via” na qual todos devem se manter, inafastavelmente.

O contratante, o julgador, o intérprete da norma de uma forma geral deve levá-lo sempre

em consideração como o balizamento interno, e isso tem sido verificado, gradativamente

na jurisprudência brasileira. De fato, não se pode transitar fora dessa “via”.

Na nova contratualidade, os contratantes, o magistrado – quando

chamado para resolução do conflito contratual –, o intérprete da norma enfim, deve se

manter dentro de uma “faixa” mais ampla – a dos princípios sociais dos contratos –, desde

que já tenha respeitado o limite interno, qual seja o da obediência à dignidade da pessoa

humana.

Como se nota, o princípio da dignidade da pessoa humana é orientador

também do contrato, notadamente dos seus efeitos. Para Gustavo Tepedino, “a escolha da

dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada ao objetivo

fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização, e de redução das

desigualdades sociais, justamente com a previsão do parágrafo 2º do artigo 5º, no sentido

da não exclusão de quaisquer direitos e garantias, mesmo que não expressos, desde que

decorrentes dos princípios adotados pelo texto maior, configuram uma verdadeira

‘cláusula geral de tutela da pessoa humana’, tomada como valor máximo pelo

ordenamento”.17

É essa “cláusula geral de tutela da pessoa humana” que guia, em suas

grandes linhas, os delineamentos e características da nova contratualidade e tem sido

essencial na evolução dos precedentes judiciais no sentido que já vem sendo trabalhado

pela doutrina desde a Constituição de 1988.

Nesse sentido, importa ter presente ainda que a dignidade da pessoa

humana irradia suas diretrizes não só observando os elementos natos da pessoa, como

conformadores os princípios constitucionais que explicitam as valorações políticas fundamentais do

legislador constituinte. Nestes princípios se condensam as opções políticas nucleares e se reflete a ideologia

inspiradora da constituição”. (CANOTILHO, José Joaquim Gomes, Direito constitucional, cit., p. 172).

17 TEPEDINO, Gustavo, Temas de direito civil, cit., p. 48. Na mesma linha de raciocínio, Fernando

Rodrigues Martins assinala que “hoje, deve-se perceber que os direitos humanos que inspiraram o

constituinte pátrio de 1988 também compõe-se como cláusula geral para tutela de direitos privados, aqui

tratados como ‘direitos de personalidade’ ou ‘direitos civis’, já que a personalidade não pode ser vista, tão-

somente, como capacidade de direitos e obrigações, mas, muito além disso, como direito à existência e às

consequências de viver”. (Direitos humanos do devedor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n.

39, p. 148, jul./set. 2001).

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dito por Ingo Wolfgang Sarlet18. Não é, em igual sentido, um princípio apenas da ordem

jurídica, de vez que deve influenciar igualmente a ordem política, social, econômica e

cultural, agora nas palavras de José Afonso da Silva. Para o professor paulista, é desse

prisma que se tem a natureza de valor supremo da dignidade da pessoa humana, que deve

ser vista na base de toda a vida nacional.19

Arrimado nessas lições, é possível compreender o ponto central deste

item, não só como contraponto aos efeitos da globalização sobre os contratos, como se

ressaltou, mas também para demonstrar que devemos estar submetidos, no trato de

matérias privadas, igualmente ao princípio da dignidade da pessoa humana, como ficou

evidenciado.

Para ratificar esse entendimento, não é demais considerar as palavras

de Gustavo Tepedino, quando afirma: “Já na regulamentação das relações jurídicas

patrimoniais, ao revés, a dignidade da pessoa humana é o limite interno capaz de definir

com novas bases as funções sociais da propriedade e da atividade econômica”. Em outro

trecho, o autor arremata com aquilo que queremos aqui fique claro: “(...) tais diretrizes [o

autor se refere à pessoa humana e ao desenvolvimento da personalidade], longe de apenas

estabelecerem parâmetros para o legislador ordinário e para os poderes públicos,

protegendo o indivíduo contra a ação do Estado, alcançam também a atividade privada,

informando as relações contratuais no âmbito da iniciativa econômica.”20

Levando-se em conta a temática aqui considerada, com inegável sede

civil-constitucional, como se fez questão de frisar e explicar, faz-se necessário parar para

algumas reflexões.

Analisando o que se procurou consignar aqui, o princípio da dignidade

da pessoa deve ser observado em pelo menos duas vertentes. Primeiro, não se pode

olvidar que se está diante de um grande cenário, o globalizante, como demonstrado, em

meio ao qual as grandes empresas transnacionais aparecem, impõem suas regras e criam,

em seu favor, um verdadeiro poder de autoelaboração de “leis privadas”, como referido

18

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição

Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 60.

19 José Afonso da Silva ressalta também que a “dignidade da pessoa humana não é uma criação

constitucional, pois ela é um desses conceitos a priori, um dado preexistente a toda experiência

especulativa, tal como a própria pessoa humana”. (Poder constituinte e poder popular: estudos sobre a

constituição. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 146-147).

20 O autor aponta ainda que “(...) a validade dos atos jurídicos, por força da cláusula geral de tutela

da personalidade, está condicionada à adequação aos valores constitucionais e à funcionalização ao

desenvolvimento e realização da pessoa humana” (TEPEDINO, Gustavo, Temas de direito civil, cit., p. 52).

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no item que discutiu o impacto da globalização sobre os contratos. Nesse contexto, o

princípio da dignidade da pessoa humana deve ser visto como o verdadeiro contrapeso,

de forma que o legislador, o julgador ou qualquer pessoa envolvida na relação jurídica

privada deve nele se guiar como princípio máximo e capaz de evitar os descompassos

impostos por uma ideia, já comprovada, de mão única. Em sede contratual, no nosso

sentir, ninguém pode se sobrepor às diretrizes do princípio fundamental da dignidade da

pessoa humana.

Nesse prisma, vale ressaltar as palavras de Ingo Wolfgang Sarlet,

quando pondera: “Como ponto de partida – no âmbito do que se poderia designar de uma

concepção minimalista (nuclear) da dignidade, não há como deixar de citar a forma

desenvolvida por Dürig, na Alemanha, para quem (com fundamento direto e confesso na

concepção kantiana) a dignidade da pessoa humana poderia ser considerada atingida

sempre que a pessoa concreta (o indivíduo) fosse rebaixada a objeto, a mero instrumento,

tratada como uma coisa – em outras palavras, sempre que a pessoa venha a ser

descaracterizada e desconsiderada como sujeito de direito.”21

Essa análise é relevante não só para as relações que envolvem os

contratos meramente civis e de consumo – que por essência têm pessoas naturais a eles

vinculados – mas também aos contratos empresariais, tendo em vista que por trás da

empresa – especialmente as que têm característica familiar, estão as pessoas como um

dos elementos realizador do negócio, aliás, da sua função social. Dessa sorte, na

contratualidade contemporânea, esse raciocínio não só pode como deve ser levado em

conta na interpretação do contrato de modo geral.

Dessa sorte, está autorizado o magistrado, por exemplo, diante de um

litígio contratual, seja de consumo ou empresarial, a intervir na contratação para, revisá-

la e mantê-la, de forma a fazer com que o princípio maior possa efetivamente contrapor-

se às imposições e aos reflexos maléficos que as cláusulas contratuais possam gerar.

A segunda vertente veleja na direção de se considerar o princípio da

dignidade da pessoa humana como o balizamento incondicional na interpretação

contratual e na busca pelo seu equilíbrio22. É importante grifar aqui que o centro nervoso

21

SARLET, Ingo Wolfgang, Algumas notas em torno da relação entre o princípio da dignidade da

pessoa humana e os direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira, cit., p. 211.

22 Ingo Wolfgang Sarlet entende que “não obstante seu cunho elementar, não pode ser

desconsiderado, qual seja, o de que a dignidade, ainda que não se a trate como o espelho no qual todos

veem o que desejam, inevitavelmente já esta sujeita a uma relativização (de resto comum a todos os

conceitos jurídicos) no sentido de que alguém (não importa aqui se juiz, legislador, administrador ou

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dessa discussão releva não apenas os reflexos produzidos pelos contratos que têm

nascimento na onda globalizante, mas também toda e qualquer contratação, vale dizer,

civil pura, empresarial e de consumo. Nesse sentido, todos os contratantes, exegetas,

julgadores, legisladores, necessariamente, como já dito, estão obrigados a seguir, como

balizamento estreito, primeiramente o princípio da dignidade da pessoa humana. Nos

dizeres de Flávia Piovesan, “seja no âmbito internacional, seja no âmbito interno (à luz

do direito constitucional ocidental), a dignidade da pessoa humana é princípio que unifica

e centraliza todo o sistema normativo, assumindo especial prioridade.”23

Deve-se entender, por fim, que é a dignidade da pessoa humana que tem

permitido o equilíbrio do contrato, independentemente da relação contratual que se esteja

tratando.

Igualmente, vale considerar que o contrato, assim como qualquer

relação jurídica, seja pública ou privada, não pode ultrapassar os limites da dignidade da

pessoa humana. Esta deve servir de orientadora, não só na elaboração, quanto na

interpretação contratual. Deve ser vista, enfim, e como já grifado por Gustavo Tepedino,

como cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana. Esta tem servido de

orientadora na nomogênese legislativa, historicamente falando, e nos precedentes

judicias.

4. Evolução legislativa e jurisprudencial e a adaptação da interpretação dos

contratos à realidade civil constitucional: análise de precedentes do Superior

Tribunal de Justiça

Até aqui, a preocupação girou em torno da apresentação de dois

elementos de grande influência na delimitação da contratualidade contemporânea. Assim

foi que se estudou o fenômeno globalizante como o grande cenário em que se encontram

inseridos os contratos e cujo principal ator é o princípio da dignidade da pessoa humana

que, a um só tempo, funciona como contrapeso da globalização e como balizamento

fundamental na interpretação do contrato.

particular) sempre irá decidir qual o conteúdo da dignidade e se houve, ou não, uma violação no caso

concreto” (Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, cit., p.

126).

23 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o princípio da dignidade da pessoa humana. In: LEITE,

George Salomão (Org.). Dos princípios constitucionais: considerações em torno das normas

principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 195.

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A influência do princípio da dignidade humana na seara privada dá-se

notadamente pela mudança de foco que sofreu o direito civil no Brasil, após o ingresso

de um conteúdo civil na Constituição. Cabe agora avançar, demonstrando como a

legislação que daí se seguiu acompanhou a trilha civil-constitucional e, principalmente,

como influencia a contratação. É certo que, antes da Constituição de 1988, já se

encontravam normas que caminhavam na direção esposada no texto constitucional.

Entretanto, aqui, procurar-se-á focar em grandes linhas microssistemas posteriores à

Constituição, engendrados a partir da perspectiva civil-constitucional. Também aqui, ver-

se-á, ainda que rapidamente, que o Código Civil, apesar de arraigado em alguns pontos à

tradição civilista do Code Napoleón, também caminhou em direção semelhante,

principalmente em matéria contratual.

O legislador, nessa esteira civil-constitucional, através dos ditos

microssistemas legislativos, no que diz respeito ao contrato, esteve mais preocupado, de

acordo com a evolução legislativa observada, com a tutela da parte mais fraca na relação

contratual.

A lei de locações de imóveis urbanos é um desses exemplos típicos (Lei

n. 8.245/91). O legislador, com a finalidade de fomentar o mercado de locação de imóveis

urbanos e de proteger melhor o locatário, retirou do Código Civil o regramento sobre o

assunto, e o redirecionou para uma lei especial. O locatário é considerado a parte fraca da

relação locatícia. A busca pelo ponto de equilíbrio no contrato de locação considera que

há uma parte débil que precisa de normas capazes de conduzi-la a uma situação de

igualdade. Vale notar que o pano de fundo da lei aqui mencionada é, de fato, e como

frisado, a proteção de aspectos habitacionais e de igualdade nas contratações, de sorte que

obedece ao princípio orientador da dignidade da pessoa humana.

A lei de locações urbanas não é o único nem o mais importante

microssistema contratual com fundamento civil-constitucional. Sem embargo, esse título

deve ser outorgado ao Código de Defesa do Consumidor que, melhor do que qualquer

outro, retrata a realidade legislativa dos primeiros anos do impacto da globalização no

Brasil e da absorção de uma cultura privada mais voltada para a pessoa e mais preocupada

com o entrelaçamento de institutos de direito público e privado, se assim pudéssemos

ainda dividir. Apesar de o Código de Defesa do Consumidor tratar de diversas matérias,

tais como responsabilidade civil, publicidade, normas administrativas, penais, entre

outras, é também ali que se encontra o ponto de referência para a maior virada de página

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que assistimos na história do direito contratual brasileiro, nas últimas décadas: o

regramento do contrato de consumo.

Diz-se isso porque foi a partir do Código de Defesa do Consumidor que,

embora leve em consideração apenas a tutela da parte débil da contratação (o

consumidor), começou-se a vislumbrar um novo horizonte contratual – uma nova

contratualidade – capaz de tirar o contrato do sufoco proporcionado pelas normas liberais

presentes no Código Civil de 1916, já não mais adequadas à contratualidade que se seguiu

nos últimos 20 anos, no Brasil.

Essa questão é de relevo especial e muito se discutiu sobre a

possibilidade de aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos civis e

empresariais acirrando o debate entre os que sustentam a tese finalista e maximalista do

conceito de consumidor. Apesar de sustentarmos que a discussão perdeu força, pelo

menos do ponto de vista principiológico, após a entrada em vigor do Código Civil de

2002, no nosso sentir, não se pode deixar de referenciar que vários julgados no Brasil

seguiram a orientação de que o Código de Defesa do Consumidor também se aplicaria a

outras relações, que não as meramente consumeristas, embora não seja essa a posição

adotada pela 3ª Turma de Julgamento do STJ, conforme se infere da análise do Agravo

Regimental no Recurso Especial n. 1.193.293/SP, julgado em 27.11.201224.

A rigor, foi a partir do Código de Defesa do Consumidor que se pode

discutir o real alcance da autonomia privada, relativizada e limitada pelos princípios sociais.

Igualmente, foi a partir dele que se falou em uma nova contratualidade, que precisou ser

revista.

24

Apesar de se necessitar fazer as ressalvas de natureza processual sobre prequestionamento de

matéria essencial ao recurso especial, é importante observar que o Código Civil abriu igual possibilidade

de revisão e interpretação mais favorável ao aderente, o que inclui os contratos de franquia (artigos 423 e

424). Talvez por questões processuais, a 3ª Turma do STJ, especialmente diante da reconhecida aplicação

do viés civil-constitucional à interpretação dos contratos por parte do relator, assim decidiu, discutindo a

aplicação do CDC: “Processual Civil. Agravo Regimental. Recurso Especial. Ação de Revisão de Contrato

de Financiamento para Aquisição de Franquia Cumulada Com Repetição De Indébito. Relação de

Consumo. Inexistência. 1 - Conforme entendimento firmado por esta Corte, o critério adotado para

determinação da relação de consumo é o finalista. Desse modo, para caracterizar-se como consumidora, a

parte deve ser destinatária final econômica do bem ou serviço adquirido. 2.- No caso dos autos, em que se

discute a validade das cláusulas de dois contratos de financiamento em moeda estrangeira visando viabilizar

a franquia para exploração de Restaurante "Mc Donald's", o primeiro no valor de US$ 368.000,00 (trezentos

e sessenta e oito mil dólares) e o segundo de US$ 87.570,00 (oitenta e sete mil, quinhentos e setenta

dólares), não há como se reconhecer a existência de relação de consumo, uma vez que os empréstimos

tomados tiveram o propósito de fomento da atividade empresarial exercida pelo recorrente, não havendo,

pois, relação de consumo entre as partes”.

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Toda essa tendência é circundada pela observância do princípio

fundamental aqui já bastante referido, qual seja, o da dignidade da pessoa humana. Vale

dizer, foi a partir do microssistema consumerista que se passou a sentir a influência do valor

que tem a pessoa, frente às normas individualistas e meramente patrimonialistas, da época

anterior dos contratos. Leonardo Mattietto faz alusão a esse aspecto, dizendo que “a

conformação clássica de contrato, individualista e voluntarista, cede lugar a um novo

modelo deste instituto jurídico, voltado a obsequiar os valores e princípios constitucionais

de dignidade e livre desenvolvimento da personalidade humana”.25

Pode-se dizer, portanto, que o Código de Defesa do Consumidor

aparece como um dos microssistemas que mais facilmente evidenciam a influência

constitucional a partir da tutela da pessoa humana. Como observa Eduardo Carlos Bianca

Bittar, “é curioso notar a frequência de expressões vitais como saúde, segurança,

presentes no bojo da Lei n. 8.078/90 (‘saúde e segurança dos produtos’ – art. 8º; ‘perigo

à saúde e segurança’ – art. 9º; ‘periculosidade à saúde ou segurança’ – art. 10; ‘não oferece

a segurança’, § 1º, do art. 12; entre outras assemelhadas). Mas, não é sem menos que estas

expressões circulam com facilidade no interior dos artigos, incisos e alíneas, ou ainda

encabeçando títulos e capítulos da Lei, isto porque se trata de âmbito em que a pessoa

pode sofrer atentados de inúmeras naturezas a direitos da personalidade, uma vez inserida

em relação de consumo”.26 O levantamento dos dispositivos realizado por Eduardo Carlos

Bianca Bittar desbrava os inúmeros exemplos da influência civil-constitucional do

Código de Defesa do Consumidor.

Sem igual intensidade, mas também preocupado com esse mesmo viés,

o Código Civil de 2002 introduziu de modo claro através do capítulo que se passou a

chamar de “preâmbulo dos contratos” (artigos 421 a 424) os princípios sociais, que

fizeram com que se sedimentasse a ideia de que as relações contratuais civis e

empresariais deveriam ter a mesma linha de análise das relações contratuais

consumeristas, com as suas devidas adaptações e ponderações, especialmente quanto à

autonomia privada.

25

O autor diz em suas palavras conclusivas que “o direito do consumidor, pensado como parte da

ampla proteção que, a partir da Constituição, a ordem jurídica confere à pessoa, não pode ser entendido

apenas como estrutura repressiva ou ressarcitória, mas como um instrumento funcionalizado à tutela da

pessoa humana, a serviço do valor constitucionalmente definido de promoção da dignidade e do livre

desenvolvimento da personalidade do ser humano”. (MATTIETTO, Leonardo. O direito civil

constitucional e a nova teoria dos contratos. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de direito civil-

constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. 182).

26 BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. Direitos do consumidor e direitos da personalidade: limites,

intersecções, relações. Revista de direito do consumidor, n. 37, p. 200, jan./mar. 2000.

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Visto isso, há de se ter presente que a atividade legislativa, conforme

estudado, vem se consolidando na linha de raciocínio da tutela da dignidade da pessoa

humana. A legislação infraconstitucional, não só a que se refere à matéria contratual, mas

também a outras áreas, vem buscando delimitar a atuação, conforme o princípio

orientador. Além disso, não se pode perder de vista que a legislação brasileira das últimas

três décadas tem dado margem a interpretações mais abertas, capazes de fazê-la cumprir

com a outra função do princípio da dignidade da pessoa humana, qual seja, funcionar

como contraponto do fenômeno globalizante.

Aliás, sobre o assunto, e já enveredando pela análise de precedentes do

STJ, há um julgado do STJ que nos parece paradigma, da lavra do Ministro Sálvio de

Figueiredo Teixeira, que traduz, na seara consumerista, o que o tema aqui colocado pode

representar, do ponto de vista prático. O Superior Tribunal de Justiça determinou que a

Panasonic, no Brasil, trocasse produto defeituoso, da mesma marca, adquirido pelo

consumidor no exterior, sob a argumentação de que se a economia é globalizada, então

não há mais fronteiras rígidas, o que estimula e favorece a livre concorrência, de forma

que a lei de proteção ao consumidor deve ganhar maior expressão em sua exegese, na

busca do equilíbrio que deve reger as relações jurídicas.27

Quando se parte para a análise do entrelaçamento entre o princípio da

dignidade da pessoa humana e questões de natureza contratual, estritamente, o Superior

Tribunal de Justiça tem um precedente que merece destaque. Com efeito, no Recurso

Especial n. 1.025.665/RJ, julgado em 09 de abril de 2010, ficou ressalvado que a

27

Vale conferir a ementa do julgado comentado, para se ter presente o alcance daquilo que foi

sustentado desde as primeiras linhas deste ensaio: Ementa: “Direito do consumidor. Filmadora adquirida

no exterior. Defeito da mercadoria. Responsabilidade da empresa nacional da mesma marca (Panasonic).

Economia globalizada. Propaganda. Proteção ao consumidor. Peculiaridades da espécie. Situações a

ponderar nos casos concretos. Nulidade do acórdão estadual rejeitada, porque suficientemente

fundamentado. Recurso conhecido e provido no mérito, por maioria. I - Se a economia globalizada não

mais tem fronteiras rígidas e estimula e favorece a livre concorrência, imprescindível que as leis de proteção

ao consumidor ganhem maior expressão em sua exegese, na busca do equilíbrio que deve reger as relações

jurídicas, dimensionando-se, inclusive, o fator risco, inerente à competitividade do comércio e dos negócios

mercantis, sobretudo quando em escala internacional, em que presentes empresas poderosas,

multinacionais, com filiais em vários países, sem falar nas vendas hoje efetuadas pelo processo tecnológico

da informática e no forte mercado consumidor que representa o nosso País; II - O mercado consumidor,

não há como negar, vê-se hoje ‘bombardeado’ diuturnamente por intensa e hábil propaganda, a induzir a

aquisição de produtos, notadamente os sofisticados de procedência estrangeira, levando em linha de conta

diversos fatores, dentre os quais, e com relevo, a respeitabilidade da marca; III - Se empresas nacionais se

beneficiam de marcas mundialmente conhecidas, incumbe-lhes responder também pelas deficiências dos

produtos que anunciam e comercializam, não sendo razoável destinar-se ao consumidor as consequências

negativas dos negócios envolvendo objetos defeituosos”. (TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo. A proteção ao

consumidor no sistema jurídico brasileiro. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 43, p. 78,

jul./set. 2002).

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jurisprudência do STJ se alinha à ideia de que o mero inadimplemento contratual não

ocasiona danos morais, mas esse entendimento, conforme ressaltou a Min. Nancy

Andrighi, naquele julgado, “deve ser excepcionado nas hipóteses em que da própria

descrição das circunstâncias que perfazem o ilícito material é possível extrair

consequências bastante sérias de cunho psicológico, que são resultado direto do

inadimplemento culposo”.

Para fundamentar a ressalva, a ministra relatora fez consignar no

julgado o fato da recorrente ter celebrado com a recorrida um contrato de compra e venda

de um kit de casa de madeira, cujo valor acordado fora pago a vista. A ministra relatora

considerou que, “após alguns meses, pouco antes da data prevista para a entrega da casa,

a recorrente foi informada, por terceiros, que a recorrida inadimpliu o contrato”. Segundo

consta no acórdão, “a conduta da recorrida violou, portanto, o princípio da dignidade da

pessoa humana, pois o direito de moradia, entre outros direitos sociais, visa à promoção

de cada um dos componentes do Estado, com o insigne propósito instrumental de torná-

los aptos de realizar os atributos de sua personalidade e afirmar a sua dignidade como

pessoa humana”28.

Por sua vez, na análise de julgados que se voltam aos contratos que não

são estritamente consumeristas, como já vimos em outro precedente que discutiu um

contrato de franquia, a questão ainda merece melhor evolução, embora o Superior

Tribunal de Justiça já tenha sinalizado na direção de se admitir uma interpretação

conforme a vulnerabilidade da parte, independentemente da relação ser ou não de

consumo, quando aquela for marcante.

De fato, no Recurso Especial n. 1.299.422/MA, julgado em 06 de

agosto de 2013, cujo voto também é da lavra da Min. Nancy Andrighi, vê-se essa

tendência da 3ª Turma do STJ. O julgado está assim ementado: “Direito Processual Civil.

Recurso Especial. Exceção de Incompetência. Ação de Reparação de Danos. Contrato de

Concessão Comercial por Adesão. Cláusula de Eleição de Foro. Validade. 1. A cláusula

que estipula a eleição de foro em contrato de adesão é válida, salvo se demonstrada a

hipossuficiência ou a inviabilização do acesso ao Poder Judiciário. 2. A superioridade do

porte empresarial de uma das empresas contratantes não gera, por si só, a hipossuficiência

28

A respeito do assunto, vale grifar a posição de Flávio Tartuce, ao dizer: “Caracterizando a

proteção da pessoa humana no contrato, pode ser citada a tendência de reconhecimento da possibilidade de

reparação por danos morais em decorrência do mero inadimplemento”. Em seguida, o autor cita o

Enunciado 411, da “V Jornada de Direito Civil” do CJF.” (TARTUCE, Flávio. Direito Civil – Teoria geral

dos contratos e contratos em espécie. São Paulo: Método GEN: 2014, p. 57).

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da outra parte, em especial, nos contratos de concessão empresarial. 3. As pessoas

jurídicas litigantes são suficientemente capazes, sob o enfoque financeiro, jurídico e

técnico, para demandarem em comarca que, voluntariamente, contrataram. 4. Recurso

especial provido”.

A ressalva referida na ementa, “salvo se demonstrada a hipossuficiência

ou a inviabilização do acesso ao Poder Judiciário”, parece-nos que dá o tom da tendência

atual de interpretação do contrato. Realmente, resta claro que o fato de se estar diante de

um contrato empresarial de “concessão comercial”, não inviabilizaria a decretação da

nulidade da cláusula de eleição de foro, sobretudo quando se esteja diante de um contrato

adesivo.

Ainda na seara dos contratos empresariais, a 3ª Turma do STJ também

já se deparou com a discussão em torno do alcance do “pacta sunt servanda” em matéria

de contrato empresarial, conforme se infere do Recurso Especial n. 1.158.815/RJ, julgado

em 07 de fevereiro de 2012.

O julgado analisou a possibilidade de revisão de “contrato de prestação

de serviço” empresarial, preferindo, como nos pareceu correto no caso, manter a cláusula,

tendo em vista as circunstâncias fáticas de sua formação, constante nos relatórios

analisados. Na ementa do acórdão, da lavra do Min. Paulo de Tarso Sanseverino,

encontra-se o seguinte: “Recurso Especial. Direito Empresarial. Contrato de Prestação de

Serviços. Expansão de Shopping Center. Revisão do Contrato. Quantificação dos Prêmios

de Produtividade Considerando a Situação dos Fatores de Cálculo em Época Diversa da

Pactuada. Inadmissibilidade. Concreção do Princípio da Autonomia Privada. Necessidade

de Respeito aos Princípios da Obrigatoriedade ("Pacta Sunt Servanda") e da Relatividade

dos Contratos (‘Inter Alios Acta’). Manutenção Das Cláusulas Contratuais Livremente

Pactuadas”.

Houve no julgamento do precedente supra citado, um voto-vista que

caminha na linha de raciocínio disposta nestas linhas que, a rigor, não é absoluta29, e não

se poderia aplicar ao caso julgado, conforme a análise do fato ali disposto. Entretanto,

mesmo assim, é importante a análise da linha central de raciocínio do voto-vista. O Min.

Massami Uieda, autor do voto vencido, proferiu seu voto nos seguintes termos: “Por fim,

29

Sobre a questão relacionada à ponderação de níveis de intervenção estatal nos contratos civis,

empresariais e de consumo, cf., BRITO, Rodrigo Toscano de. Equilíbrio e dirigismo contratual e o

Enunciado n. 21 da ‘I Jornada de Direito Comercial’ do CJF. In. Atualidades Jurídicas. Coord. DINIZ,

Maria Helena. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 213-231.

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quanto à aplicação do princípio do ´pacta sunt servanda´, também não assiste razão à

recorrente CEI. Na verdade, não se olvida que a relativização do princípio do "pacta sunt

servanda" – informado pelos princípios da boa-fé e do equilíbrio contratual –, com a

consequente possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, impõe que se reconheça

abusividade de cláusulas que impliquem em desequilíbrio entre as partes, sem, entretanto,

afastar o princípio da autonomia da vontade, dentro de uma lógica razoável sobre o

mercado, ao tempo, ao modo e ao espaço da contratação. Em rega, pois, há que se

respeitar o que for livremente avençado no contrato, cabendo a intervenção judicial para

revisão de suas cláusulas somente em situações excepcionais, legalmente prevista, tal

como nas relações de consumo. Da análise dos autos, contudo, observa-se que, embora

não haja efetivamente relação de consumo entre as partes, faz-se necessária a intervenção

do Judiciário no contrato de que cuidam os autos. Na espécie, veja-se que, no contrato de

prestação de serviços firmado pelas partes, os parâmetros relativos ao pagamento da parte

variável - consistente nos prêmios de produtividade -, embora livremente ajustados no

momento da celebração do acordo, ocasionaram, de fato, um flagrante desequilíbrio no

decorrer da execução do contrato, uma vez que a base de cálculo, que servia pra

quantificação de valores dos prêmios de produtividade, não se concretizou de acordo com

o inicialmente previsto, seja porque as locações foram pactuadas em valores superiores

aos de mercado, seja em razão do alto grau de inadimplência dos locatários das unidades”.

Embora, no caso, a tese do voto-vista tenha ficado vencida é importante

tirar como lição que a contratualidade, atualmente, conforme aqui já explanado, tem

permitido ao STJ discussões nesse sentido, para além dos contratos de consumo.

Minimamente, pode-se dizer que o Tribunal tende a avançar nessa linha, embora enfrente

entraves naturais de impossibilidade de análise fática e de prova, que, sem embargo,

auxiliaria na aplicação do viés aqui estudado.

A análise, ainda que rápida, da evolução legislativa e dos julgados aqui

colacionados, chamam a atenção para um ponto: há uma preocupação com a tutela da

parte mais fraca na relação jurídica, seja ou não de consumo, que é realmente um elemento

marcante da nova contratualidade, em face da influência e constatação, na construção

jurisprudencial, dos dois grandes elementos que compõem o cenário da contratualidade,

conforme aqui estudado.

5. Notas conclusivas

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A globalização, nos seus primeiros passos, fez com que surgisse uma

legislação protetiva do consumidor, realçando noções relevantes, como a da solidariedade

social, o valor da livre iniciativa e um real sentido da dignidade da pessoa humana.

Agora, a teoria dos contratos conta com intervencionismos estatais mais

abrangentes, através da consolidação de normas de natureza principiológicas, como se

reverbera da jurisprudência brasileira, especialmente para as questões relacionadas aos

contratos consumeristas. A jurisprudência do STJ, diante de uma nova contratualidade,

passa, aos poucos, a se dedicar, não só a realidade dos contratos consumeristas, mas do

contrato como um todo, em face da influência da própria noção de globalização, que

funciona, conforme demonstrado, como palco que propicia essa mudança de visualização.

Considerou-se ao longo deste artigo que o contrato, assim como

qualquer relação jurídica, seja pública ou privada, não pode ultrapassar os limites da

dignidade da pessoa humana, como aliás, já se mostra como tema consolidado na doutrina

brasileira. A dignidade humana tem servido de orientadora, não só na elaboração, quanto

na interpretação contratual, numa jurisprudência protetiva da parte mais vulnerável na

contratação, em sentido amplo.

Diante da análise dos precedentes julgados pelo Superior Tribunal de

Justiça, vê-se que o Tribunal tem discutido e avançado em questões contratuais à luz do

direito civil-constitucional, embora já fosse possível ter dado um passo mais adiante, em

vista das regras presentes no Código Civil, quando se leva em conta os contratos civis

puros e empresariais. Essa sensação de que o avanço já poderia ter sido maior, deve ser

seguida da ressalva dos limites de direito processual a que estão submetidas as partes

quanto às questões atinentes ao prequestionamento de matéria essencial para que seja

analisado o recurso especial. Essa questão sobressaltou-se, inclusive, na análise de

precedente que envolvia contrato de franquia, por exemplo, tendo em vista que a

discussão, no caso concreto, dizia respeito à aplicação do Código de Defesa do

Consumidor, que de fato não se aplica, quando a questão poderia ter sido discutida pela

parte interessada à luz de regras postas e de viés protetivo do aderente em contrato não

consumerista, como acontece com a franquia.

Também se verificou, diante da análise dos precedentes, que está aberta,

no STJ, no sentido de poder ser aplicada, teses que protejam a parte mais fraca na relação

contratual, ainda que não seja de consumo e que tenha natureza adesiva, como se viu na

análise do julgado que teve por objeto um contrato de concessão comercial de adesão.

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Por último, os precedentes demonstram que o STJ tem considerado a

aplicação de uma interpretação constitucionalizada aos contratos, mas sem olvidar,

quando for o caso, o prestígio da autonomia privada, que deve conviver com os princípios

sociais dos contratos que surgiram em meio a esse grande cenário globalizado e de

consideração à dignidade da pessoa humana.

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SEÇÃO DE DOUTRINA: Doutrina Estrangeira

L’OPACO PROFILO DEL RISARCIMENTO CIVILISITICO NELLA

COMPLESSA DISCIPLINA AMBIENTALE

O perfil opaco do ressarcimento civil na complexa legislação ambiental

Gerardo Villanacci Professor ordinário de Direito Privado da Università Politecnica delle Marche e

professor da Scuola di specializzazione in Diritto civile dell’Università di Camerino (Itália).

Sommario: 1. L’ambiente: il contesto sovranazionale – 2. La nascita del diritto

costituzionale dell’ambiente – 3. Principi di diritto ambientale – 4. Ambiente paesaggio

e governo del territorio – 5. L’interesse all'ambiente – 6. Il risarcimento del danno

ambientale: l’opaco profilo.

1. L’ambiente: il contesto sovranazionale

L’accezione ambiente irrompe nel linguaggio corrente a partire dagli

anni settanta del secolo scorso e si presta a riassumere le variegate sfaccettature che

delineano il rapporto fra l’uomo e il mondo che lo circonda nonché le molteplici

articolazioni territoriali in cui prende forma tale relazione alla luce del suo continuo

evolversi1.

1 S. NESPOR (a cura di), Rapporto mondiale sul diritto dell’ambiente, A World Survey of

Environmental Law, Milano, 1996, in particolare il capitolo introduttivo. Gli studi sul tema, e sulle sue

differenti e molteplici problematiche, sono numerosissimi; nell’impossibilità di darne atto in maniera

esaustiva si segnalano, oltre al fondamentale contributo di M. S. GIANNINI, Ambiente: saggio sui diversi

aspetti giuridici, in Riv. trim. dir. pubbl., 1973, p. 15 ss.; M. ARENA, L’Ambiente territorio come bene

oggetto di tutela giuridica e la sua proiezione costituzionale, in Il Foro napoletano, 1981, p. 241 ss.; M.

BELLO, Principi fondamentali della tutela dell’ambiente, in Nuova rass., 1989, p. 2193 ss.; E.

CAPACCIOLI - D. DAL PIAZ, voce Ambiente (tutela dell’), Parte generale e diritto amministrativo, in

Noviss. Dig. It. App., Torino, 1980; M. CECCHETTI, Rilevanza costituzionale dell’ambiente e

argomentazioni della Corte, in Riv. giur. ambiente, 1994, p. 252.; M. CECCHETTI, Principi costituzionali

per la tutela dell’ambiente, Milano, 2000; P. M. CHITI, Ambiente e ‘Costituzione’ europea: alcuni nodi

problematici, in Riv. it. dir. pub. com., 1998, p. 1423 ss.; G. COCCO, Nuovi principi ed attuazione della

tutela ambientale tra diritto comunitario e diritto interno, in S. Grassi, M. Cecchetti, A. Andronio (a cura

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Viene in tal modo rimarcato l’indissolubile legame dello stesso a fattori

di ordine sociale, economico, culturale ed etico, connessi alle condizioni e ai luoghi nei

quali la persona umana vive ed esplica le proprie attività. Al contempo, con analoga

incidenza, assume rilevanza il bene ambientale dal punto di vista giuridico; deriva da ciò

la consapevolezza che, per la sopravvivenza sulla terra e la salvaguardia delle generazioni

future, i problemi debbono essere affrontati e le emergenze disciplinate2.

Ad oggi è prevalente il dibattito sul “degrado” dell’ambiente, che si

assume essere determinato dalla piena conoscenza o prevedibilità che alcune attività

umane, anche se necessarie, possono risultare devastanti per l’ecosistema3; si pensi

all’assottigliamento dello strato dell’ozono nell’atmosfera4, all’innalzamento della

temperatura terrestre5, ai detriti presenti nello spazio extra-atmosferico: fenomeni di

di), Ambiente e diritto, vol. I, Firenze, 1999, pp. 147 ss.; G. COCCO - A. MARZANATI – R. PUPILELLA

– A. RUSSO, Ambiente, in M. P. Chiti – G. Greco, Trattato di diritto amministrativo europeo, Milano,

1997; G. CORDINI, Principi costituzionali in tema di ambiente e giurisprudenza della Corte

Costituzionale italiana, cit., p. 611 ss.; S. DE LAURENTIS, L’evoluzione della disciplina prevista in tema

di paesaggio tra modelli di tutela di fonte costituzionale e onnicomprensività della nozione di ambiente, in

Riv. giur. edil., 2010, p. 756 ss.; P. DELL’ANNO, La tutela dell’ambiente come ‘materia’ e come valore

costituzionale di solidarietà e di elevata protezione, in Ambiente e sviluppo, 2009, p. 585 ss.; R. FERRARA,

La tutela dell’ambiente fra Stato e regioni: una storia infinita, in Foro it., 2003, I, c. 692 ss.; Id., voce

Ambiente (dir. amm.), in S. Patti (a cura di) Il diritto. Enciclopedia giuridica del «Sole- 24 Ore», vol. I,

Milano, 2007; F. FRACCHIA, Sulla configurazione giuridica unitaria dell’ambiente, 2007, p. 187 ss.; L.

FRANCARIO, Danni ambientali e tutela civile, Napoli, 1990; M. FRANZONI, Il danno all’ambiente, in

Contratto e impresa, 1992, p. 1015 ss.; S. GRASSI, L’ambiente come problema istituzionale in Lo Stato

delle istituzioni. Problemi e prospettive, Milano, 1994; E. LECCESE, Danno all’ambiente e danno alla

persona, Milano, 2011, p. 30 ss.; P. LOMBARDI, I profili giuridici della nozione di ambiente: aspetti

problematici, in Foro amm., 2002, p. 764 ss.; P. MADDALENA, Il diritto all’ambiente ed i diritti

dell’ambiente nella costruzione della teoria del risarcimento del danno pubblico ambientale, in Riv. giur.

ambiente, 1990, p. 469 ss.; P. MANTINI, Per una nozione costituzionalmente rilevante di ambiente, in Riv.

giur. ambiente, 2006, p. 207 ss.; M. PATRONO, I diritti dell’uomo nel paese d’Europa. Conquiste e nuove

minacce nel paesaggio da un millennio all’altro, Padova, 2000; S. PATTI, La tutela civile dell’ambiente,

Padova, 1979; G. TORREGROSSA- A. CLARIZIA (a cura di), Tutela del paesaggio e vincoli sulla

proprietà nella recente L. 8 agosto 1985, n. 431, Rimini, 1986.

2 LOMBARDI, I profili giuridici della nozione di ambiente: aspetti problematici, cit.; R.

MONTANARO, L’ambiente e i nuovi istituti di partecipazione in A. Crosetti, F. Fracchia (a cura di),

Procedimento amministrativo e partecipazione. Problemi, prospettive ed esperienze, Milano, 2002, p. 107

ss. 3 P. SOAVE, Lo sviluppo sostenibile nella prospettiva dell’Agenda 21. Il programma d’azione

lanciato dalla Conferenza di Rio de Janeiro, in Riv. giur. ambiente, 1993; M. JURI, The concept of

environmental security and sustainable development - il concetto di sicurezza ambientale e di sviluppo

sostenibile, in La comunità internazionale, 1997, p. 438 ss.; M. ARCARI, Tutela dell’ambiente e diritti

dell’uomo: il caso Lopez Ostra contro Spagna e la prassi di Commissioni e Corte Europea dei diritti

dell’uomo, in Riv. giur. ambiente, 1996 p. 745 s. 4 S. BATTINI, Il sistema istituzionale internazionale dalla frammentazione alla connessione, in Riv.

dir. pubb. comun., 2002, p. 969 s.; E. DE SOMBRE, Riduzione della fascia dell’ozono: l’esperienza del

protocollo di Montreal, in Riv. giur. ambiente, 2001, p 581 s. 5 F. RAMMELLA, Effetto serra: siamo prudenti, stiamo a guardare, in Riv. dir. fin. e sc. fin., 2004,

p. 196 s.; S. NESPOR, Oltre Kyoto: il presente e il futuro degli accordi sul contenimento del cambiamento

climatico, 2004, p. 1 ss.

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inquinamento globale6 frutto di un uso distorto delle risorse ambientali e in parte

dell’esplosione demografica, unita allo sviluppo industriale che la nostra Nazione ha

conosciuto nel secondo dopoguerra.

Fino alla metà del secolo scorso i problemi ecologici erano scarsamente

considerati7 tant’è che la Costituzione del 1948 non faceva menzione all’ambiente8 che

entra, invece, nel lessico costituzionale soltanto nel più ampio contesto di revisione della

parte seconda del titolo V, della stessa9. La decisione di introdurre alcune norme

concernenti la materia tra quelle di rilevanza sovraordinaria è stata senz’altro frutto della

necessità di adeguamento di tutela sollecitato a più riprese dalle direttive europee10.

Infatti, seppur in difetto di un esplicito riferimento normativo, nel trattato istitutivo della

CEE l’ambiente e nello specifico la sua protezione, risulta essere una delle finalità

6 T. SCOVAZZI, Il riscaldamento atmosferico e gli altri rischi ambientali globali, in Riv. giur.

ambiente, 1988, p. 707 s. 7 Si vedano al riguardo i rilievi di M. S. GIANNINI, << Ambiente>>: Saggio sui diversi suoi

aspetti giuridici, cit., p. 16, il quale indica nella legge 26 aprile 1964, n. 310 – “Costituzione di una

Commissione d’indagine per la tutela e la valorizzazione del patrimonio storico, archeologico, artistico e

del paesaggio” (c.d. Commissione Franceschini) - il primo fatto di rilievo normativo. Il nostro sistema,

prima della legge 349/1986 istitutiva del Ministero dell’ambiente, era privo di un’indicazione normativa

quale, ad es., l’art. 3.3 del Trattato sull’Unione Europea (ex art. 2 del Trattato istitutivo della Comunità

europea) che attribuisce alla Comunità un elevato livello di protezione dell’ambiente; con l’introduzione la

legge 349/1986, è stata istituzionalizzata la funzione di assicurare la “promozione, la conservazione ed il

recupero delle condizioni ambientali conformi agli interessi fondamentali della collettività ed alla qualità

della vita, nonché la conservazione e la valorizzazione del patrimonio naturale nazionale e la difesa delle

risorse naturali dall'inquinamento”. Nel 2006, il legislatore dell’ambiente ha posto, con l’art. 2 del codice

ambientale, “come obiettivo primario della legislazione in materia, “la promozione dei livelli di qualità

della vita umana, da realizzare attraverso la salvaguardia ed il miglioramento delle condizioni

dell’ambiente e l’utilizzaione accorta e razionale delle risorse naturali”. Sul tema, v. anche, V. GUARINO,

Tutela dell’incolumità da inquinamento, aspetti emergenti dell’interesse sociale nell’adozione dei

provvedimenti straordinari, in Nuova rass., 1978, p. 1942 s.; G. DE ROSA, Il problema ecologico in Italia,

in La Civiltà cattolica, 1988. 8 S. GRASSI, Costituzioni e tutela dell’ambiente, in S. Scamuzzi (a cura di), Costituzione,

razionalità, ambiente, Torino, 1994, pp. 389 ss.; G. CORDINI, Il diritto ambientale comparato, in G.

CORDINI - P. FOIS - S. MARCHISIO, Diritto ambientale, Profili internazionali europei e comparati,

Giappichelli, Torino, 2005, p. 95 ss.; R. FERRARA, La protezione dell’ambiente nella Repubblica

Federale Tedesca: tendenze evolutive, in Foro it., 1987, V, cc. 22 ss. 9 Art. 117 lettera -s della legge 18 ottobre 2001 n. 3.

10 V. CAPUZZA, La tutela dell’ambiente nell’ordinamento giuridico internazionale, comunitario e

interno. Origini, principi, funzioni e applicazioni, in Riv. amm., 2009 p. 5 s.; G. CORDINI, Rilevanza

dell’interesse all’ambiente, effettività degli obblighi comunitari e inadempimenti degli Stati nel

recepimento delle direttive europee, in Dir. pubbl. comp. ed europeo, 1999, p. 1583 s.; E. FINAZZER,

Responsabilità degli Stati membri nei confronti dei cittadini per inadempimento di Direttive ambientali.

Gli orientamenti della Corte di Giustizia., in Resp. civ. e prev., 1999, p. 705 s.; V. GASPARINI CASARI,

L’attuazione in Italia delle direttive comunitarie in materia ambientale. Introduzione al tema, in Dir. econ.,

1993, p. 9 s.; M. GASLINI, Sul concetto di tutela dell’ambiente come principio generale dell’ordinamento

comunitario europeo, in Dir. econ., 1993, p. 241 s.; E. MELE, L’ambiente, le direttive comunitarie e

l’ordinamento interno, in Foro amm., 1989, p. 1655 s.

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principali; appunto per questo, a far data dalla prima metà degli anni settanta11, furono

approntati Piani di Azione12 che mirando al raggiungimento di effetti ben precisi13

enucleavano, tra l’altro, materie ad alta priorità, per le quali venivano richiesti interventi

puntuali soprattutto attraverso l’utilizzo delle disposizioni sul mercato interno14. Furono,

altresì, disciplinati settori come l’inquinamento delle acque e dell’aria per armonizzare le

legislazioni nazionali al fine di non ostacolare il commercio intracomunitario,

salvaguardando, al contempo, la protezione della salute umana e dell’ambiente. In

definitiva centinaia furono le misure introdotte in grado di condizionare quasi tutte le aree

del diritto dell’ambiente nazionale degli Stati Membri in materia di gestione di

inquinamento15 e rifiuti pericolosi16.

Qualche anno dopo il Trattato CEE viene modificato dall’Atto Unico

Europeo17 che esplicitamente richiama l’ambiente nell’articolo 100A18 introducendo un

11 P. FOIS, Il diritto ambientale nell’ordinamento dell’Unione Europea in G. CORDINI - P. FOIS -

S. MARCHISIO, Diritto ambientale, Profili internazionali europei e comparati, Giappichelli, Torino, 2005,

p.51 ss.; O. PORCHIA, Le competenze dell’Unione Europea in materia ambientale in R. Ferrara (a cura

di), La tutela dell’ambiente, Torino, 2006, p 37 s. 12

G. CORDINI, Il terzo programma d’azione della comunità europea in materia di ambiente, in

Foro pad., 1983, p. 247 s.; G. AMATO - E. GRIGLIO - V. MARROCCOLI - S. NAPOLITANO - G.

VARANI - E. VARANO, Il percorso giuridico per la creazione di una comunità sostenibile, in

federalismi.it, 2011, p. 35 s. 13

La Politica comunitaria di carattere generale, inaugurata col Vertice di Parigi del 1972, aveva

prodotto il Primo Programma di Azione per l’ambiente (1973), che aveva il “limitato” obiettivo di evitare

che i diversi sistemi nazionali in materia di protezione dell’ambiente fossero idonei a falsare la concorrenza

nel mercato comune. Il Programma non era vincolante, ma la sua importanza consisteva nell’aderenza ai

Principi della Dichiarazione di Stoccolma del 1972. Quanto agli atti approvati prima dell’AUE, si ricordano

alcune direttive, precedenti e successive al Programma d’Azione del 1973, che avevano l’obiettivo primario

di migliorare il funzionamento del mercato interno e che nel far questo prevedevano obblighi in materia

ambientale; si tratta della direttiva 79/409/CEE sulla conservazione dei volatili selvatici; la direttiva

85/337/CEE concernente la valutazione d’impatto ambientale di determinati progetti pubblici e privati (c.d.

direttiva VIA); e la direttiva 75/442/CEE sui rifiuti. 14

Si v. art. 114 T.F.U.E. 15

M. CASTELLANETA, Lo Stato deve applicare le direttive a tutela dell’uomo e dell’ambiente, in

Guida al diritto, 2007 p. 121 s.; L. BARONI, Ambiente (rifiuti), in Riv. dir. pubbl. comun., 2012, p 1183 s. 16 G. CORDINI - P. FOIS - S. MARCHISIO, Diritto ambientale, Profili internazionali europei e

comparati, Giappichelli, Torino, 2005; G. STROZZI, Diritto dell’unione europea. Parte istituzionale: dal

trattato di Roma al trattato di Nizza, Torino, 2001; S. CASSESE (a cura di), Diritto Ambientale

comunitario, Milano, 1995; O. PORCHIA, Le competenze dell’Unione Europea in materia ambientale, in

R. Ferrara, (a cura di), La tutela dell’ambiente, Torino 2006, p. 37 s. 17

La politica ambientale viene per la prima volta disciplinata a livello di diritto primario nell’AUE

del 1986. L’ambiente viene espressamente menzionato nell’art. 100A TCE (ora art. 114 TFUE sul mercato

interno) e viene introdotto un nuovo Titolo VII dedicato all’ambiente (artt. 130R, 130S e 130T, ora Titolo

XX, artt. 191-193 TFUE). Tuttavia la protezione dell’ambiente non è ancora inclusa formalmente tra gli

obiettivi della Comunità. 18

Ci si riferisce all’art.100 A della CE così come modificato dall’art. 18 dell’atto unico europeo e

che confluirà successivamente nell’art. 114 T.F.U.E, capo dedicato al riavvicinamento delle legislazioni.

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proprio titolo separato, l’articolo 130R-T19; ma è con l’entrata in vigore del Trattato di

Maastricht che la protezione dell’ambiente viene esplicitato tra gli obiettivi della CE20 .

Con il trattato di Lisbona21 è stata eliminata la struttura in pilastri,

decretata la codecisione di Consiglio e Parlamento come procedura legislativa ordinaria22

e introdotto l’art. 194 T.F.U.E sulla competenza in materia di energia, a tenore del quale

la politica dell’ Unione nel settore dell’energia deve tener conto dell’esigenza di

preservare e migliorare l’ambiente, nel quadro dell’instaurazione o del funzionamento del

mercato interno e in uno spirito di solidarietà tra gli Stati Membri23.

Nell’ambito dei Principi stabiliti in via generale nella Parte Prima, l’art.

2 del Trattato è posto anche a presidio della qualità dell’ambiente e l’art. 6 promuove lo

sviluppo sostenibile24, principio introdotto dal Trattato di Amsterdam25 il cui contenuto,

negli anni, è stato oggetto di diverse interpretazioni26 per la sua rilevanza in ambito

internazionale. Va, infatti, ricordato che la World Commission on Environment and

19

Da questo momento la Comunità ha tra i suoi obiettivi quello "di salvaguardare, proteggere e

migliorare la qualità dell'ambiente, di contribuire alla protezione della salute umana, di garantire

un'utilizzazione accorta e razionale delle risorse naturali" delimitando il suo campo di azione ai soli casi in

cui un'azione possa essere meglio realizzata a livello comunitario piuttosto che a livello nazionale. 20

Con il Trattato di Maastricht del 7 febbraio 1992 viene introdotto all’art. 2 T.C.E l’obiettivo di

assicurare una crescita sostenibile che rispetti l’ambiente; si valorizza il principio di precauzione accanto a

quello di prevenzione e si riconosce la necessità di coordinare l’azione comunitaria a tutela dell’ambiente

con quella a livello globale. 21

Noto anche come trattato di riforma, firmato il 13 dicembre 2007 ed entrato ufficialmente in

vigore il 1° dicembre 2009. 22

Si v. art. 294 T.F.U.E in cui si specifica che il Parlamento interviene attivamente nel processo

legislativo comunitario, non solo attraverso pareri, ma anche con eventuali proposte di modifica del testo

sottoposto all’esame degli organi legislativi della Commissione. 23

In attuazione di tale disposizione gli obiettivi della politica energetica debbono necessariamente

essere sottoposti ad un corretto giudizio di bilanciamento con altre politiche europee, in primis con quella

ambientale, in modo da rafforzare la coerenza tra la dimensione interna ed esterna della competenza

energetica. 24 A. LÜTTEKEN - K. HAGEDORN, Concepts and Issues of Sustainability in Countries in

Transition. An Institutional Concept of Sustainability as a Basis for the Network, Humboldt University of

Berlin (consultabile all’indirizzo: http://www.fao.org/regional/SEUR/ceesa/concept.htm); F. SALVIA,

Ambiente e sviluppo sostenibile, in Riv. giur. ambiente, 1998, pp. 235 ss.; P. FOIS, Il diritto ambientale

nell’ordinamento dell’Unione Europea, cit. 25

Con il trattato di Amsterdam del firmato il 2 ottobre 1997 ed entrato in vigore il 1° maggio 1999

il principio dello sviluppo sostenibile entra a far parte degli obiettivi dell’Unione europea, con la

precisazione nell’ottavo considerando del preambolo che gli Stati membri sono “determinati a promuovere

il progresso sociale ed economico dei propri popoli, tenendo conto del principio dello sviluppo sostenibile

nel contesto della realizzazione del mercato interno e del rafforzamento della coesione e della protezione

dell’ambiente”. Sul punto si v. anche R GARABELLO, Le novità del trattato di Amsterdam in materia di

politica ambientale comunitaria, in Riv. giur. ambiente, 1999, p 151 s. 26

F. FRACCHIA, Sviluppo sostenibile e diritti delle generazioni future, in Riv. quadr. dir. amb,

2010, p. 41 s.; M. ALBERTON – M. MONTINI, Le novità introdotte dal Trattato di Lisbona per la tutela

dell’ambiente, in Riv. giur. ambiente, 2008, p. 505 s.; V. PEPE, Lo sviluppo sostenibile tra diritto

comunitario e diritto interno, in Riv. giur. ambiente, 2002, p. 209 s.

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Development27 ha fissato le coordinate del dibattito fornendo un’ampia definizione di

sviluppo sostenibile che secondo il Rapporto Brundtland deve soddisfare “i bisogni del

presente senza compromettere la capacità delle generazioni future di soddisfare i

propri”28. L’idea è di lasciare ai nascituri almeno le stesse opportunità di chi li ha

preceduti, anche se è difficile comprendere quali siano le misure da adottare per

raggiungere un punto di equilibrio tra bisogni dell’oggi e del domani tanto che la

definizione, sollevando interrogativi e scetticismi29 , ha dato luogo ad un nuovo summit

della Conferenza delle Nazioni Unite su ambiente e sviluppo (UNCED, United Nations

Conference on Environment and Development)30, al fine di delineare il concetto di

sviluppo sostenibile come rappresentato a conclusione del Vertice31.

Il principio è stato inoltre accolto anche nei trattati ambientali

sottoscritti a Rio32; in particolare l’art. 2 della Convenzione sulla biodiversità lo fa

definendo sostenibile l’uso delle risorse biologiche secondo modalità che non ne

comportino una riduzione a lungo termine e che preservino le capacità di soddisfare le

esigenze delle generazioni presenti e future33.

27

Ci si riferisce alle riflessioni scaturite in occasione della Conferenza delle Nazioni Unite per

l’ambiente e lo sviluppo (UNCED) tenutasi nel 1987, in cui la Commissione sposò l’idea secondo la quale

lo sviluppo è inestricabilmente collegato ad altri fattori di cui si deve tener conto nel dettare le coordinate

di azione dell’Unione Europea.

28 Si fa riferimento al documento rilasciato nel 1987 dalla Commissione mondiale sull'ambiente e

lo sviluppo (WCED) che per la prima volta definisce il concetto di sviluppo sostenibile. Il documento

(Rapporto Brundtland, Il nostro futuro comune, 1987, pubblicato con il titolo Il futuro di noi tutti,

Bompiani, 1988, con prefazione di G. Ruffolo) prende il nome dalla coordinatrice Gro Harlem Brundtland,

che in quell'anno era presidente del WCED ed aveva commissionato il rapporto.

29 Si consideri in proposito la diatriba sviluppatasi in seguito tra i sostenitori di un criterio

antropocentrico, per il raggiungimento di un’equità intergenerazionale, e i sostenitori di un criterio

ecocentrico, che vorrebbero maggiori garanzie giuridiche per quello che prende il nome di “diritto

soggettivo dell’ambiente”. 30

La Conferenza delle Nazioni Unite su ambiente e sviluppo (UNCED, United Nations Conference

on Environment and Development), si è tenuta a Rio de Janeiro nel 1992. 31

Si fa riferimento agli atti adottati a conclusione del vertice e in particolare alla Dichiarazione di

Rio su ambiente e sviluppo, all’Agenda 21 e alla Dichiarazione sulla gestione, la conservazione e lo

sviluppo sostenibile delle foreste. 32

Ci si riferisce alla Convenzione sulla diversità biologica, entrata in vigore nel 1993, e alla

convenzione sui cambiamenti climatici, entrata in vigore nel 1994. 33 E. CICIGOI – P. FABBRI, Mercato delle emissioni e dell'effetto serra. Istituzioni ed imprese

protagoniste dello sviluppo sostenibile, Bologna, 2007.

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Gli atti di Rio e le successive conferenze mondiali promosse dalle

Nazioni Unite34, confermano un concetto di sviluppo sostenibile fondato su tre fattori

interdipendenti: tutela dell’ambiente, crescita economica e sviluppo sociale35.

Tra gli intenti della Comunità si annoverano anche la salvaguardia,

tutela ed il miglioramento della qualità dell’ambiente; protezione della salute umana;

utilizzazione accorta e razionale delle risorse naturali e promozione sul piano

internazionale di misure destinate a risolvere i problemi dell’ambiente a livello regionale

e mondiale36. Gli atti adottati dall'Unione Europea hanno prodotto effetti oltre il territorio

comunitario così che sono stati promulgati regolamenti che vietano l’importazione di

avorio, con lo scopo di proteggere l’elefante africano, e l’esportazione di rifiuti in Stati al

di fuori dell’OCSE, per preservare i paesi del terzo mondo37.

Altre analoghe iniziative provvedimentali di natura proteiforme sono

state adottate per la prevenzione degli inquinamenti ovvero ricerca in campo ambientale,

promozione di strategie di sensibilizzazione, educazione nelle scuole e adozione di nuove

tecnologie, molte delle quali finalizzate anche alla protezione della salute umana38.

Si può affermare, dunque, che le finalità perseguite dall’Unione

Europea siano il miglioramento dell'ambiente e la protezione della salute umana, valori

spesso interconnessi come dimostrato in modo quasi icastico dalla recente definizione

34

Ci si riferisce in specie alla Conferenza di Johannesburg del 2002, vertice organizzato dalle

Nazioni Unite con la partecipazione di 189 dei 195 Stati membri dell’ONU, di numerosi capi di Stato e di

governo, dei rappresentanti delle Organizzazioni non governative del settore privato e di altri gruppi di

interesse che hanno ribadito formalmente il loro impegno a conseguire uno sviluppo sostenibile adottando

un documento che di tale intento riassume l'oggetto e le modalità di attuazione. Il documento consiste in

una Dichiarazione politica sullo sviluppo sostenibile, in cui gli Stati firmatari hanno dichiarato di voler

perseguire molteplici obiettivi tra cui: lo sradicamento della povertà; il cambiamento dei modelli di

consumo e produzione insostenibili; la protezione e gestione delle risorse naturali. E’ stato adottato inoltre

un Piano di azione diretto ad affrontare tematiche non adeguatamente discusse in occasione del Vertice sulla

Terra al fine di raggiungere un equilibrio tra sviluppo economico e sociale, nel rispetto all'ambiente e del

futuro del genere umano. 35 E. ROZO ACUNA, (a cura di), Profili di diritto ambientale da Rio de Janeiro a Johannesburg.

Saggi di diritto internazionale, pubblico comparato, penale ed amministrativo, Torino, 2004; v., ivi, i saggi

di S. MARCHISIO, Il diritto internazionale ambientale da Rio a Johannesburg, pp. 21 ss. e G. CORDINI,

Il diritto ambientale da Rio a Johannesburg, pp. 101 ss.; C. ROMANO, La prima conferenza delle Parti

della Convenzione quadro delle Nazioni Unite sul cambiamento climatico, Da Rio a Kyoto via Berlino, in

Riv. giur. ambiente, 1996, 1, p. 163 s. 36

Si v. art 191 T.F.U.E, ex art. 174 T.C.E. in cui vengono definiti tali piani di azione in maniera

testuale. 37 L. KRAMER, Manuale di diritto comunitario per l'ambiente, Milano, 2002; G. STROZZI, Diritto

dell'Unione Europea, cit. 38

Espressamente menzionata nell’art. 191 T.F.U.E tra gli obiettivi della politica dell’Unione

Europea.

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adottata dal codice dell'ambiente39 che qualifica come danno al terreno qualsiasi

contaminazione dello stesso che crei un rischio significativo di effetti negativi sulla salute

umana40.

Anche la Carta dei diritti fondamentali dell’uomo, nonostante sia solo

allegata al Trattato, assume valore giuridico pieno e vincolante a partire del 200941. La

linea tracciata dalla stessa impone agli Stati Membri dell’Unione Europea di integrare le

proprie politiche per tutelare e migliorare l’ambiente garantendo un suo sviluppo

sostenibile42; l’art. 37 prevede standards qualitativi di livello elevato basati sul tale

principio e rappresenta il tentativo di ricercare un equilibrio tra progresso tecnologico e

ambiente, il cui bilanciamento è irrinunciabile per il progresso umano43 .

2. La nascita del diritto costituzionale dell’ambiente

39

Ci si riferisce alla norma adottata in seguito al recepimento della direttiva in materia di danno

ambientale 2004/35/CE. Sui profili evolutivi della direttiva, e per una sintesi delle più rilevanti iniziative

europee, dalla Convenzione di Lugano alla direttiva in materia di responsabilità per danno all’ambiente

(Convenzione di Lugano sulla responsabilità civile per danni all’ambiente derivanti da attività pericolose,

21-22 giugno 1993, in Riv. giur. ambiente, 1994, pp.145-160; Libro Verde sulla responsabilità per i danni

causati all’ambiente, COM(93) 47, GUCE, 29 maggio 1993, n. C 149/12; Libro Bianco sulla responsabilità

per danni all’ambiente, COM(2000), 66 def., pp. 2-3; Proposta di direttiva del Parlamento europeo e del

Consiglio sulla responsabilità ambientale in materia di prevenzione e riparazione del danno ambientale

(COM(2002)17 def. 2002/0021[COD]), GUCE, 25 giugno 2002, n. C151E; Direttiva 2004/35/CE del

Parlamento europeo e del Consiglio del 21 aprile 2004, sulla responsabilità ambientale in materia di

prevenzione e riparazione del danno ambientale, GUCE, L 143, 30 aprile 2004, pp. 56-75) v., B. POZZO,

Verso una responsabilità civile per danni all’ambiente in Europa: il nuovo libro Bianco della Commissione

delle Comunità europee, in Riv. giur. ambiente”, 2000, p. 623 ss.; ID., La Proposta di nuova Direttiva sulla

prevenzione e il risarcimento del danno all’ambiente, in Danno e resp., 2002, p. 11 ss.; ID., I problemi

della responsabilità per i danni causati dall’inquinamento: profili di diritto comparato, in La nuova

responsabilità civile per il danno all’ambiente, a cura di B. Pozzo, Giuffrè, Milano, 2002, p. 23 ss.; L.

BUTTI, L’ordinamento italiano e il principio ‘chi inquina paga’, in Contratto e impresa, 1990, p. 561 ss.;

F. M. PALOMBINO, Il significato del principio ‘chi inquina paga’ nel diritto internazionale, in Riv. giur.

ambiente, 2003, p. 871 ss.; G. TUCCI, Tutela dell’ambiente e diritto alla salute nella prospettiva del diritto

uniforme europeo, in Contratto e impresa Europa, 2003, p. 1141 e ss.; A. VENCHIARUTTI, Il Libro

Bianco sulla responsabilità civile per danni all’ambiente, in La nuova responsabilità civile per il danno

all’ambiente, a cura di B. Pozzo, Giuffrè, Milano, 2002, p. 77 ss.; C. VIVANI, Origini e linee evolutive del

principio ‘chi inquina paga’ nell’ordinamento comunitario, in Resp. civ. e prev., 1992, p. 752 ss.

40 G. RECCHIA, La tutela dell’ambiente in Italia: dai principi comunitari alle discipline nazionali

di settore in Diritto e gestione dell’ambiente, 2001, p. 29 s.; G. STROZZI, Diritto dell’unione europea, cit. 41 R. BIFULCO, M. CARTABIA, A. CELOTTO (a cura di), L’Europa dei diritti. Commento alla

Carta dei diritti fondamentali dell’Unione Europea, Bologna, 2001. 42 P. MADDALENA, L’evoluzione del diritto e della politica per l’ambiente nell’Unione Europea.

Il problema dei diritti fondamentali, in Riv. amm. R. it., 2000; U. FANTIGROSSI, Debole sull’ambiente il

progetto di carta fondamentale dell’Unione, in, Riv. amm. R. it., 2000. 43 M. S. GIANNINI, Difesa dell’ambiente e del patrimonio naturale e culturale, in Riv. trim. dir.

pubbl., 1971, p.1122 ss.; P. D’AMELIO Ambiente (Tutela dell’), Vol. II, in Enc. Giur., Roma, 1988, 1 ss.;

G. MORBIDELLI, Il regime amministrativo speciale dell’ambiente, in Scritti in onore di Alberto Predieri,

Milano, 1996, pp. 1121 ss.; G. RECCHIA, La tutela dell’ambiente in Italia: dai principi comunitari alle

discipline nazionali di settore, cit.

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Il diritto dell’ambiente, per sua natura, deve essere confrontato con altri

di rango Costituzionale, tra i quali ed in primo luogo la libertà di iniziativa economica

privata; l’art. 41 Cost. nell'enunciare che la stessa non può svolgersi in contrasto con

l’utilità sociale44 ne dispone il contro bilanciamento con altri distinti ontologicamente45,

per evitare che possa porsi in contrasto con l’ecosistema46.

D’altra parte, la mancata indicazione della locuzione ambiente nella

Costituzione47, - introdotta soltanto con il novellato art. 117, in sede di ripartizione delle

competenze tra Stato e regioni48- non ha impedito l’interpretazione espansiva di alcune

44

Cfr. Corte cost., 3 giugno 1998, n. 196, Giur. cost., 1998, per la quale nell’ambito dell’utilità

sociale “sicuramente rientrano gli interessi alla tutela dell’ambiente e della salute”.

45 F. SABATELLI, Diritti economici e solidarietà ambientale. Spunti per una funzionalizzazione

delle disposizioni costituzionali sui rapporti economici a fini ambientali - Economics rights and

environmental solidarity. Ideas for the “functionalization” of constitutional provisions to economic

transactions for environmental purposes., in Dir. econ., 2013, p. 211 s.; C. SALVI, Libertà economiche,

funzione sociale e diritti personali e sociali tra diritto europeo e diritti nazionali - Economic freedom,

personal and social rights and social scope between European and state law, in Eur. dir. priv., 2011, p. 437

s.

46 M. S. GIANNINI, Ambiente: saggio sui diversi aspetti giuridici, cit.; G. MORBIDELLI, Il regime

amministrativo speciale dell'ambiente, cit., pp. 1121 ss. 47

Ci si riferisce alla legge Costituzionale 18 ottobre 2001, n. 3, cit.. 48 G. DE VERGOTTINI, La ripartizione dei poteri in materia ambientale, tra comunità, Stato e

Regioni, in C. Murgia (a cura di), L'ambiente e la sua protezione, Milano, 1991, pp. 39 ss.; ID., La tutela e

la valorizzazione del patrimonio storico-artistico fra Unione Europea, Stato e Regioni, in Riv. giur. urb.,

1996. Per una sintesi del confronto sulla configurabilità dell’ambiente come “materia” o come “valore”

dopo la riforma del titolo V della Costituzione, v. P. DELL’ANNO, La tutela dell’ambiente come ‘materia’

e come valore costituzionale di solidarietà e di elevata protezione, cit.; R. FERRARA, La tutela

dell’ambiente fra Stato e regioni: una ‘storia infinita’, cit.; M. OLIVETTI, Tutela dell’ambiente in

Costituzione: una buona occasione da non perdere, in Guida dir., 2004, n. 34, p. 10; N. OLIVETTI

RASON, Tutela dell’ambiente: il giudice delle leggi rimane fedele a se stesso, in Foro it., 2003, I, c. 696

ss.; C. SARTORETTI, La tutela dell’ambiente dopo la riforma del titolo V della seconda parte della

Costituzione: valore costituzionalmente protetto o materia in senso tecnico?, in Giur. it., 2003, p. 417 ss.;

Id., La ‘materia’ e il ‘valore’ ambiente al vaglio della Corte costituzionale: una dicotomia davvero

impossibile?, Giur. it., 2003, p. 1995 ss. La Corte costituzionale, con due pronunce di fondamentale

importanza perché alla base di tutto il filone giurisprudenziale successivo (Corte cost., 26 luglio 2002, n.

407, in Giur. it., 2003, p. 417; Corte cost., 20 dicembre 2002, n. 536, in Giur. it., 2003, p. 1995 ss.), ha

sostenuto la natura di “valore trasversale” dell’ambiente e la sua immanenza all’ordinamento costituzionale

anche prima della riforma, con ciò chiarendo significato e valenza dell’introduzione nel lessico

costituzionale del termine ambiente ad opera dell’art.117, 2° co., lett. s, cost.; afferma la Corte

“l’evoluzione legislativa e la giurisprudenza costituzionale portano a escludere che possa identificarsi una

‘materia’ in senso tecnico, qualificabile come ‘tutela dell’ambiente’, dal momento che non sembra

configurabile come sfera di competenza statale rigorosamente circoscritta e delimitata, giacché, al

contrario, essa investe e si intreccia inestricabilmente con altri interessi e competenze. In particolare, dalla

giurisprudenza della Corte antecedente alla nuova formulazione del titolo V della Costituzione è agevole

ricavare una configurazione dell’ambiente come ‘valore’ costituzionalmente protetto, che, in quanto tale,

delinea una sorta di materia ‘trasversale’, in ordine alla quale si manifestano competenze diverse” (Corte

cost., 26 luglio 2002, n. 407, cit.). Nella successiva pronuncia (Corte cost., 20 dicembre 2002, n. 536, cit..)

viene chiarito il rapporto tra testo originario e testo novellato dell’art. 117: “già prima della riforma del

titolo V della parte seconda della Costituzione, la protezione dell’ambiente aveva assunto una propria

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disposizioni già presenti nella Carta fondamentale per conseguire una maggiore tutela del

bene in esame49.

L’art. 9 Cost. che garantisce la tutela del paesaggio e del patrimonio

storico - artistico - nazionale50, già volto alla rappresentazione del paesaggio quale

semplice somma di alcuni beni giuridici determinati (ville, giardini di interesse artistico

o storico e complessi di cose immobili avente valore estetico e tradizionale) esprime oggi

una nozione più ampia non limitata alle bellezze naturali da conservare come aspetto e

forma del territorio statico51, bensì valore in costante evoluzione e mutamento. La tutela

paesaggistica è ora improntata a criteri di integrità e globalità che comportano una

autonoma consistenza (…). La natura di valore trasversale, idoneo a incidere anche su materie di

competenza di altri enti nella forma degli standards minimi di tutela, già ricavabile dagli artt. 9 e 32 della

Costituzione, trova ora conferma nella previsione contenuta nella lett. s, secondo comma, dell’art. 117

della Costituzione, che affida allo Stato il compito di garantire la tutela dell’ambiente e dell’ecosistema”.

Da allora, e con continuo rinvio a tali pronunce, la giurisprudenza costituzionale afferma che l’ambiente è

un “valore trasversale” di natura primaria più che una “materia” in senso stretto (Corte cost., 5 maggio

2006, n. 182, in Giur. it., 2008, p. 41; Corte cost., 31 marzo 2006, n. 133, in Foro it., 2007, I, c. 1076;

Corte cost., 10 febbraio 2006, n. 49, in Urbanistica e app., 2006, p. 409; Corte cost., 31 maggio 2005, n.

214, in Foro it., 2006, I, c. 1990; Corte cost., 24 marzo 2005, n. 135, in Foro it., 2006, I, c. 1990; Corte

cost., 18 marzo 2005, n. 108, in Urbanistica e app., 2005, p. 535; Corte cost., 22 luglio 2004, n. 259, in

Urbanistica e app., 2004, p. 1281; Corte cost., 28 giugno 2004, n. 196, in Riv. giur. urbanistica, 2005, p.

41). 49

A partire dagli anni settanta, infatti, gli artt. 2, 9 e 32 della Costituzione, sono stati posti a

fondamento della rilevanza sovraordinaria dell’ambiente, a prescindere dalla mancata previsione testuale

del bene in questione nella Carta Fondamentale. Si v. sul punto E. GIARDINI, La nozione giuridica di

ambiente e la sua configurazione nella disciplina costituzionale, in Arch. giur. CCXXV, 2005. p. 199 s. 50 F. MERUSI, Art. 9, in G. Branca (a cura di), Commentario della Costituzione. Principi

fondamentali, Bologna – Roma, 1975; S. LABRIOLA, Dal paesaggio all’ambiente un caso di

interpretazione evolutiva della norma costituzionale, in Dir. e soc., 1987, p 113-129. Si v. anche, a titolo

esemplificativo e non esaustivo, Corte Cost. n. 151/1986; Corte Cost. n. 417/1995 e Corte Cost. n. 49/2006. 51 Sul concetto di ambiente da individuarsi “con riferimento allo spazio che ci circonda, ai luoghi

nei quali l’uomo vive e svolge la sua attività” v. S. PATTI, Ambiente, in N. Irti, (a cura di ), Dizionario di

diritto privato, Milano 1981, p. 32. Per la nozione di paesaggio come forma dell’ambiente creata dall’uomo

cfr: A. PREDIERI, voce Paesaggio, in Enc. dir., XXXI, Milano, 1981, p. 503 ss., per il quale: “il

paesaggio... viene a coincidere con la forma e l’immagine dell’ambiente, come ambiente visibile, ma

inscindibile dal non visibile, come un conseguente riferimento di senso o di valori a quel complesso di

cose”(p. 507); nello stesso senso, più recentemente, v. M. FRANZONI, Il danno all’ambiente, cit., p. 1017,

in senso contrario, invece, G. TORREGROSSA, Profili della tutela dell’ambiente, in Riv. trim. dir. proc.

civ., 1980, p.1441; si segnala al riguardo la pronuncia della Corte cost., 28 giugno 2004, n. 196, in Riv.

giur. urbanistica, 2005, p. 41, ove si afferma che “non v'è dubbio che gli interessi coinvolti nel condono

edilizio, in particolare quelli relativi alla tutela del paesaggio come ‘forma del territorio e dell'ambiente’,

siano stati ripetutamente qualificati da questa Corte come ‘valori costituzionali primari’ (cfr., tra le molte,

le sentenze n. 151 del 1986, n. 359 e n. 94 del 1985)”. In dottrina, v.,ancora, P. MANTINI, Per una nozione

costituzionalmente rilevante di ambiente, cit., p. 207 s.; P. CARPENTIERI, La nozione giuridica di

paesaggio, in Riv. trim. dir. pubb., 2004, p. 363 s.; F. S. MARINI, Profili costituzionali della tutela dei beni

culturali, in Nuova rass. leg. dottrina giur., 1999, p. 633 s.; B. CARAVITA, Profili costituzionali della

tutela dell’ambiente in Italia, in Pol. dir., 1989, p. 569 ss.; A. PREDIERI, Urbanistica, tutela del paesaggio,

espropriazione, Milano, 1969; A. M. SANDULLI, La tutela del paesaggio nella Costituzione, Giuffrè,

1967, Vol. III, p. 893 s.

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riconsiderazione dell’intero territorio nazionale in ragione ed attuazione del valore

estetico culturale52.

Anche l’art. 32 Cost. concorre alla qualificazione del bene ambiente53,

posto che la giurisprudenza costituzionale, superando l’originario significato di tutela del

singolo, ha interpretato la disposizione come diritto di ciascuno a vivere in un ambiente

salubre54 colmando un vuoto di disciplina contrastante con la pregnanza del bene in

52 Cfr. Corte cost., 27 giugno 1986, n. 151, in Foro it., 1986, I, c. 2689 ss. e Corte cost., 15 novembre

1998, n. 1029, in Cons. Stato, 1988, II, p.2031 e in Foro Amm., 1988, p. 2739 con nota di Barbagallo; Riv.

giur. ambiente, 1989, p. 330;

Riv. Amm. della Repubblica Italiana, 1989, p. 230, secondo cui la tutela del paesaggio è contrassegnata da

una strettissima contiguità con la protezione della natura in quanto caratterizzata da interessi estetico-

culturali che, ancorché presenti nella materia disciplinata dall’art. 83 del d. P.R. n. 616/ 77, sono in

quest’ultimo caso intesi in una visione più ampia, basata primariamente sugli interessi ecologici e sulla

difesa dell’ambiente come bene unitario, pur se composto da molteplici aspetti per la vita naturale e umana.

In dottrina per un concetto di ambiente “progressivamente arricchito di valori anche storici ed estetico-

culturali” L. BIGLIAZZI GERI, Divagazioni su tutela dell’ambiente e uso della proprietà, in Riv. critica

dir. priv., 1987, p. 496 ss. Id., L’art. 18 della legge 349/1986 in relazione all’art. 2043 ss. c.c., in Il danno

ambientale con riferimento alla responsabilità civile, a cura di P. Perlingieri, Esi, Napoli, 1991, p. 75 ss.,

p. 75 ss.; F. GIAMPIETRO, La valutazione del danno all’ambiente: i primi passi dell’art. 18, legge

349/1986, in Foro amm., 1989, p. 2958; Id., Il danno all’ambiente innanzi alla Corte costituzionale, in

Foro it., 1988 I, c. 698; P. TRIMARCHI, Istituzioni di diritto privato, Giuffrè, Milano, 2007, p. 115, per

il quale ambiente è “la situazione generale dello spazio in cui si svolge la vita di tutti, con le sue

caratteristiche di salubrità, il suo equilibrio ecologico e i pregi estetici e i valori culturali del paesaggio”. 53 R. FERRARA, Salute (diritto alla), in Digesto pubbl., vol. XIII, Torino, 1997; M. LUCIANI, Il

diritto Costituzionale alla salute, in Dir. soc., 1980, pp. 769 ss.; B. CARAVITA, La disciplina

Costituzionale della salute, in Dir. soc., 1984, pp. 21 ss.; V. F. MASTROPAOLO, Il risarcimento del danno

alla salute, Jovene, Napoli, 1983. 54 Si v. ex plurimis: Corte cost., 30 dicembre 1987, n. 641, in Foro it., 1988, I, cc. 705-706 ss secondo

cui l’ambiente è protetto come elemento costitutivo e determinativo della qualità della vita, da intendersi

non in modo astratto ma come esigenza concreta di un habitat nel quale l’uomo vive ed agisce e dal quale

la collettività non può prescindere; Corte Cass. S.U. n. 5172/1979 in base alla quale la tutela garantita

dall’art. 32 Cost. non si limita all’incolumità fisica dell’uomo preso come singola unità nella sua abitazione,

ma come effettivo partecipante alla comunità familiare, abitativa e di lavoro e tutte quelle in cui si svolge

la sua personalità. Ne consegue che la tutela si estende alla vita associata dell’uomo nelle varie aggregazioni

in cui si articola l’attività umana, in modo da assumere non solo un contenuto di socialità e di sicurezza ma

di vero e proprio diritto ad un ambiente salubre; tale diritto ha “la strumentazione giuridica del diritto

soggettivo, anzi del diritto assoluto”, (Cass., Sez. un., 6 ottobre 1979, n. 5172, cit., c. 2305), il diritto

all’ambiente tuttavia non assume autonomia ma viene comunque riferito alla salute; appaiono significative

al riguardo le riflessioni della dottrina (P. Perlingieri, Il diritto alla salute quale diritto della personalità, in

Rass. dir. civ., 1982, p. 1020 ss., che sottolinea come la salute sia “nozione esprimibile non soltanto dal

punto di vista strettamente sanitario, ma anche da quello comportamentale, sociale e ambientale” (p. 1022);

tale interesse è “indissolubile da quello del libero sviluppo della persona e si può atteggiare in forme diverse,

assumendo rilevanza e configurazioni diverse, secondo se inteso come diritto al servizio sanitario, alla

salubrità dell’ambiente, all’integrità fisica o a quella mentale” (p. 1025). L’approdo delle Sezioni unite in

tema di diritto all’ambiente salubre rappresenta una tappa significativa di un iter giurisprudenziale che solo

qualche mese prima aveva portato le stesse Sezioni Unite della Cassazione (Cass., Sez. un., 9 marzo 1979,

n. 1463, in Foro it., 1979, I, c. 939 ss.) a riconoscere in capo al singolo l’esistenza di una situazione

soggettiva di interesse alla fruizione dell’ambiente “connessa al particolare legame che, nei casi concreti

viene a stabilirsi tra l’individuo e l’ambiente che lo circonda (...) può assumere la configurazione del diritto

soggettivo quando sia collegato alla disponibilità esclusiva di un bene, la cui conservazione, nella sua

attuale potenzialità di recare utilità al soggetto, sia inscindibile dalla conservazione delle condizioni

ambientali”: Cass., Sez. un., 9 marzo 1979, n. 1463, cit. ,c. 943. In dottrina, per lo stretto collegamento tra

ambiente e salute, v., oltre alla ricordata posizione di P. Perlingieri, v., anche, A. CORASANITI, Interessi

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questione55. Tale evoluzione pretoria ci consegna una definizione di ambiente quale bene

immateriale unitario, protetto come elemento determinativo della qualità della vita alla

cui base c’è l’esigenza di vivere in un habitat salubre che non limiti la libertà d’azione

dell’uomo né arrechi ad esso pregiudizio nello sviluppo della sua personalità56.

3. Principi di diritto ambientale

Un primo delineato concetto unitario di ambiente va ascritto alla

giurisprudenza costituzionale57, alla quale si deve anche l’individuazione dei principi58

che regolano la materia tra i quali, primo ad emergere sullo sfondo del più ampio contesto

diffusi, in Dizionario del diritto privato, a cura di Natalino Irti, 1, Diritto civile, Giuffrè, Milano, 1980, p.

442, per il quale la tutela ambientale è volta alla preservazione “delle condizioni naturali d’insieme

(equilibrio ecologico) che secondo le conoscenze in un dato momento storico si ritengono indispensabili

alla salute dell’uomo, intesa questa a sua volta come benessere, cioè come modo essenziale di essere

dell’uomo sotto l’aspetto biologico e psichico, sempre secondo le conoscenze (o le valutazioni) di un dato

momento storico”; R. TOMMASINI, Danno ambientale e danno alla salute, in Il danno ambientale con

riferimento alla responsabilità civile, a cura di P. Perlingieri, Esi, Napoli, 1991, p. 139 ss.) per il quale il

concetto di ambiente comprende necessariamente la salute. 55

Si v. Cass. civ. n. 5172/1979 in Giur. it., 1980, I, 1, p. 859 in cui i giudici di legittimità specificano

che l’art. 32 Cost. si configura come diritto fondamentale dell’individuo protetto in via primaria, in maniera

incondizionata ed assoluta come modo d’essere della persona umana. Il collegamento tra l’art. 32 e l’art. 2

Cost. attribuisce al diritto alla salute un contenuto di socialità e di sicurezza tale che esso si presenta non

solo come mero diritto alla vita e all’incolumità fisica, ma come vero e proprio diritto all’ambiente salubre

che neppure la pubblica amministrazione può sacrificare o comprimere in ragione della salute pubblica; si

v. anche S. GRASSI, Costituzione e tutela dell’ambiente, cit., p. 389 s.; A. ALBAMONTE, Il diritto

all’ambiente salubre: tecniche di tutela, in Giust. civ., 1980 II p. 479 s.; in senso opposto si v. anche G.

TORREGROSSA, Profili di tutela dell’ambiente, cit. 56

Corte cost., 30 dicembre 1987, n. 641, cit., cc. 705-706.

57 Cfr. ex plurimis: Corte Cost., 30 dicembre 1987, n. 641, cit., cc. 705-706 nella quale si definisce

l’ambiente come valore assoluto primario ed unitario, se pur composto da molteplici aspetti rilevanti per la

vita naturale ed umana, bene immateriale unitario, anche se formato da varie componenti, ciascuna delle

quali può anche costituire, isolatamente e separatamente, oggetto di cura e tutela; Corte cost., 28 maggio

1987, n. 210, in Foro it., 1988, I, c. 329 ss; Corte Cost. n. 1029/1988; Corte Cost n. 1031/1988; Corte Cost.

n. 67/1992; Corte Cost. n. 318/1994. In senso opposto si v. M.S. GIANNINI, Ambiente: saggio sui diversi

aspetti giuridici, cit., il quale adotta un approccio settoriale nella considerazione giuridica di ambiente,

sostenendo che non esiste un interesse ecologico unitario, ma vi sono molteplici principi e criteri nel campo

della tutela del diritto ambientale. 58

Si v. sul punto M. CECCHETTI, Principi costituzionali per la tutela dell’ambiente, cit., il quale

compie una ricognizione dei principi in materia di ambiente suddividendoli in tre categorie: la prima

raccoglie i principi che identificano i caratteri fondamentali dell’ambiente come oggetto di tutela giuridica

(il principio dell’antropocentrismo, il principio di unitarietà, il principio di primarietà e il principio di

economicità, che comprende il principio “chi inquina paga”); la seconda comprende i principi inerenti alla

tutela dell’ambiente, che indicano le esigenze fondamentali cui deve essere orientata la concreta

predisposizione delle azioni di tutela (il principio dell’azione preventiva ed il principio di precauzione, il

principio del bilanciamento, con i due corollari della gradualità e della dinamicità delle misure di tutela,

nonché il principio dell’informazione ambientale); nella terza, infine, i principi sul ruolo dei soggetti

pubblici e privati nella tutela dell’ambiente (il principio di corresponsabilità o della condivisione delle

responsabilità, il principio di cooperazione e i principi di sussidiarietà, dell’azione unitaria del livello

territoriale superiore, della tutela più rigorosa del livello territoriale inferiore).

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internazionale, è l’antropocentrismo59 volto a significare come

la normativa sulla tutela dell’ambiente sia ispirata all’incessante ricerca di equilibrio tra

la concezione ecocentrica e quella antropocentrica da intendere, quest’ultima, non come

centralità dell’uomo sull’ambiente, ma come sistema imperniato su una dialettica naturale

il cui risultato non sia la manipolazione dell’ecosistema quanto, piuttosto, la sintesi della

comunione di vita quotidiana tra l’essere umano e ciò che lo circonda60.

In quest’ottica l’approccio antropocentrico ai problemi di diritto

ambientale non concerne una contrapposizione utilitaristica tra uomo ed ecosistema bensì

una relazione tra gli stessi in cui il primo, in ragione del radicamento nel mondo in cui

vive, è responsabile dell’equilibrio con il suo habitat61.

Anche il principio di globalità o unitarietà, caratterizza il diritto

dell’ambiente; sul punto a lungo vi è stata contrapposizione tra coloro che lo ritenevano

un bene giuridico unitario62 e chi, al contrario, gli attribuiva una natura frazionata63.

Tuttavia da tempo si è approdati alla prima formulazione, secondo cui il diritto

dell’ambiente non mira a proteggere in maniera distinta singoli fattori (aria, acqua,

59

Principio che la Corte Costituzionale ritiene collegato inscindibilmente a quello di sviluppo

sostenibile, con ciò prendendo coscienza dell’importanza delle risorse ambientali necessarie alla

conservazione della vita umana, come affermato dal Principio 1 della Dichiarazione di Rio su Ambiente e

sviluppo. Si v. inoltre V. S. GRASSI, Principi costituzionali e comunitari per la tutela dell'ambiente, in

Scritti in onore di Alberto Predieri, Milano, 1996; P. DELL’ANNO, Principi del diritto ambientale europeo

e nazionale, Milano, 2004, p. 75 ss. La formulazione dell’art. 37 della Carta di Nizza rafforza il richiamo

al principio dello “sviluppo sostenibile” (l’integrazione deve essere garantita “conformemente” a tale

principio; laddove l’art. 6 del Trattato prevede l’integrazione solo “nella prospettiva di promuovere” la

sostenibilità). 60 S. GRASSI, Costituzioni e tutela dell’ambiente, cit. 61 Si v. Corte Cost. n 210/1987, cit., in cui i giudici della Consulta evidenziano come l’ambiente

comprenda “in definitiva la persona umana in tutte le sue estrinsecazioni”, cosicché emerge un

“riconoscimento specifico alla salvaguardia dell’ambiente come diritto fondamentale della persona ed

interesse fondamentale della collettività”; Corte Cost. n. 641/1987 ancora più esplicita nell’affermare che

l’ambiente è protetto come elemento determinativo della qualità della vita. La sua protezione non concerne

astratte finalità naturalistiche o estetizzanti, ma esprime l’esigenza di un habitat naturale nel quale l’uomo

vive e agisce, necessario alla collettività.

62 In questo senso B. CARAVITA, Diritto dell’ambiente, Bologna, 2005, p. 17 ss.; M. CATENACCI,

La tutela penale dell’ambiente, Padova, 1996, p. 2 s.; L. RAMACCI, I reati ambientali e il principio di

offensività, in Giur. mer., 4/2003, p. 820 s.; L. SIRACUSA, La tutela penale dell’ambiente: bene giuridico

e tecniche di incriminazione, Milano, 2007 p. 8 e s.

63 Cfr. M. S. M. S. GIANNINI, Ambiente: saggio sui diversi aspetti giuridici, cit., p. 15 ss. Sul

concetto giuridico di ambiente si ricordano inoltre: P. D’AMELIO, Tutela dell’ambiente, cit., 1 ss.; A.

GUSTAPANE, voce Tutela ambiente (diritto interno), in Enc. dir., XLV, Milano, 1992, p. 413 ss.; F.

FONDERICO, La tutela dell’ambiente, in S. Cassese (a cura di), Trattato di diritto amministrativo, Vol. V,

Diritto amministrativo speciale, 2003, 2015 ss.; A. MONTAGNA, Ambiente (dir. pen.), in A. Cassese (a

cura di), Dizionario di diritto pubblico, Milano, 2006, p. 229 ss.; R. FERRARA, voce Ambiente, cit.; F.

GIUNTA, voce Ambiente (dir. pen.), in S. Patti (a cura di), Il diritto, cit., Vol. I, 280 ss.

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paesaggio ecc.), ma persegue una tutela integrale e complessiva dell’ecosistema64. Sulla

stessa lunghezza d’onda si è schierata da tempo la giurisprudenza del Consiglio di Stato65

che ha fatto proprio l’orientamento per il quale non si può ritenere l’intervento del potere

pubblico autonomo e distinto per ogni singolo settore afferente all’ambiente, dovendo

questo assumere un ruolo unificante nelle modalità e, in particolare, nello scopo da

raggiungere recependo in questo modo le coordinate dettate dalla Corte Costituzionale66

Il principio di prevenzione o precauzione67, che anche ispira il diritto

ambientale, traccia concreti interventi ratione temporis, al fine di evitare la

concretizzazione irreversibile dell’evento lesivo sul bene ambientale68.

La centralità del momento preventivo dell’azione evidenzia come il

modello generale, in materia di politica ambientale, imponga di preservare, piuttosto che

ripristinare, equilibri compromessi, cosicché il principio di precauzione giustifica e anzi

fornisce la copertura giuridica a risoluzioni legislative che, per quanto improntate ad un

giudizio di ragionevolezza69 e proporzionalità70, possano risultare limitativi di diritti

64 A. PREDIERI, Paesaggio, cit., p. 511 ss. 65 “La tutela dell'ambiente, lungi dal costituire un autonomo settore d'intervento dei pubblici poteri,

assume il ruolo di momento unificante e finalizzante di distinte tutele giuridiche predisposta a favore dei

beni della vita che nell'ambiente si collocano”: Cons. Stato, sez. IV, 11 aprile 1991, n 257, in Cons. Stato,

1991, I, p.605; in Foro Amm., 1991, p.1023; in Giut. Civ., 1991, I, p.2512. 66 Ex plurimis: Corte Cost. n 641/1987, c. 705, dove si afferma che la costituzione del Ministero

dell’ambiente ha lo scopo di realizzare “il coordinamento e la riconduzione ad unità delle azioni politico-

amministrative finalizzate alla tutela dell’ambiente”; Corte Cost. n. 800/1988 in cui la Corte fa riferimento

a “esigenze di carattere unitario connesse con l’interesse generale indivisibile ad una politica organica di

risanamento dell’ambiente”; Corte Cost. n. 1029/1988 che definisce l’ambiente come “bene unitario pure

se composto da molteplici aspetti rilevanti per la vita naturale e umana”. 67 C. M. GRILLO, Radiazioni elettromagnetiche (nel dubbio difendiamoci), in Riv. amb., 2002, pp.

77 ss.; M. TALLACCHINI, Ambiente e diritto della scienza incerta, in Grassi, Cecchetti, Andronio (a cura

di), Ambiente e diritto, Vol. I, pp. 57 ss.; S. GRASSI, Prime osservazioni sul principio di precauzione come

norma di diritto positivo, in Dir. gest. amb., 2001, pp. 37 ss.; E. D. COSIMO, Il principio di precauzione

fra Stati membri e Unione Europea, in Dir. pubb. comp. Europ., 2006, pp. 1121 ss.; L. BRUTTI, Principio

di precauzione, Codice dell'ambiente e giurisprudenza delle Corti comunitarie e della Corte Costituzionale

in Riv. giur. ambiente, 2006, pp. 809 ss. 68 Si v. Corte. Cost. n. 142/1972, in cui la Corte afferma che la tutela del suolo e la tutela

idrogeologica esigono interventi volti a prevenire danni provenienti da eventi naturali o da opere dell’uomo,

capaci di comprometterne l’integrità; Corte Cost n. 72/1977, arresto dal quale emerge con nitidezza il

principio di precauzione quando la Corte afferma che lo svolgimento di una politica ecologica non sarebbe

proficua senza interventi idonei a prevenire catastrofi naturali o derivanti dall’attività dell’uomo; Corte

Cost. n. 96/1994, ove si sottolinea la necessità di agevolare un’efficace vigilanza e controllo sull’intero

processo di smaltimento dei rifiuti, anche mediante la preventiva individuazione di soggetti che provvedono

ad una o più fasi dell’attività di smaltimento. 69

R. BIN, Diritti e argomenti: il bilanciamento degli interessi nella giurisprudenza costituzionale,

Giuffrè, Milano, 1992; G. SCACCIA, Controllo di ragionevolezza delle leggi e applicazione della

Costituzione, in Nova juris interpretatio, Roma 2007, p 286 s; G. ZAGREBELSKY, Il diritto mite, Einaudi,

Torino, 1992, p. 203 s. 70 Cfr. Corte Cost. n. 116/2006 in tema di OGM, in cui i giudici hanno avuto modo di prendere in

esame un bilanciamento tra principi contrastanti: da un lato la libertà di iniziativa economica e dall'altro la

coppia ambiente – salute, in ciò rilevando il principio di precauzione quale limite della libertà di iniziativa

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Costituzionali come la libertà personale, di circolazione, di iniziativa economica se

finalizzati alla tutela del diritto dell’ambiente.

Strettamente correlato al principio di prevenzione è il concetto di

sviluppo sostenibile71, obiettivo da perseguire a fronte della consapevolezza che la

rimissione in pristino mediante l’eliminazione degli eventi dannosi all’ambiente, talvolta,

può essere tecnicamente molto più complessa, se non addirittura impossibile e molto

gravosa, rispetto al mantenimento dello status quo.

Senza dubbio apprezzabile è l’elaborazione della giurisprudenza

costituzionale dei principi di primarietà72 e bilanciamento73, la cui distinzione non ne

elide il collegamento, poiché il primo presuppone che la tutela dell’ambiente sia collocata

tra i principi fondamentali della Costituzione con conseguente vincolo per il legislatore e

l’interprete, di vagliare e decidere quali siano gli interessi prevalenti ai fini della soluzione

della contrapposizione74.

economica e soglia oltre la quale si mette in pericolo l'ambiente e la salute. La Corte considera tale principio

quale parametro per il giudizio di bilanciamento al fine di perimetrare la compressione di uno dei valori

contrapposti ed individuare il punto di equilibrio tra di loro. Si v. anche G. MASTRODONATO, I principi

di proporzionalità e precauzione nella giurisprudenza della Corte di giustizia verso l'effettività della tutela

del cittadino (nota a Corte giust. Ce, sez. IV, 8 luglio 2010 n. C-343/09), in Riv. e giur. Agr., 2011, 183, pp.

3 ss. 71 F. SALVIA, Ambiente e sviluppo sostenibile, cit.; V. PEPE, Lo sviluppo sostenibile, cit., pp. 209

ss.; G. GRASSO, Solidarietà ambientale e sviluppo sostenibile in Pol. Dir., 2003, pp. 581 ss.; A.

MARZANATI, Lo sviluppo sostenibile, in AA.VV., Studi sulla costituzione europea. Percorsi e ipotesi, (a

cura di) A. Lucarelli – A. Patroni Griffi, Napoli, 2004, pp. 139 ss. 72

La primarietà consiste nella necessaria considerazione del valore ambientale all’interno di tutti i

processi decisionali: v., S. GRASSI, La carta dei diritti dell’Unione Europea ed il principio di integrazione

per la tutela dell’ambiente, in Diritti, nuove tecnologie e trasformazioni sociali, Scritti in memoria di Paolo

Barile, Padova, 2003, p. 393 s.; sul punto si v. Corte Cost., 7 novembre 2007, n. 367, in Riv. giur. ambiente,

con nota di F. DI DIO, Lo Stato protagonista nella tutela del paesaggio: la Consulta avvia l'ultima riforma

del Codice dei beni culturali e del paesaggio; in Giur. cost., 2007, 4075; Cfr. anche Corte Cost. n 46/2001

in cui viene precisato che la tutela del paesaggio rientra tra i principi fondamentali della Costituzione come

forma di tutela della persona umana nella sua vita, sicurezza e sanità, con riferimento anche alle generazioni

future, in relazione al valore estetico - culturale assunto dall’ordinamento quale valore insuscettibile di

essere subordinato a qualsiasi altro.

73 Cfr. Corte Cost. 127/1990, ove il rapporto tra gli interessi primari dell’ambiente (in quel caso la

tutela della salute) e gli interessi dello sviluppo economico non può superare i limiti di tollerabilità per la

salute; si v. anche R. ROMBOLI, Il significato essenziale della motivazione per le decisioni della Corte

costituzionale in tema di diritti di libertà pronunciate a seguito di bilanciamento tra valori costituzionali

contrapposti, in V. Angiolini (a cura di), Lib. giur. cost., Torino, 1992 p. 206 s.; A. CERRI, Appunti sul

concorso conflittuale di diverse norme della Costituzione, in Giur. cost., 1976, pp. 272 s.; N.

BOBBIO, L’età dei diritti, Einaudi, Torino, 1990, p. 11 s.

74 Il predetto giudizio è particolarmente difficile poiché il perseguimento dell’enunciata tutela

richiede un doppio ordine di bilanciamento, verso l’interno e verso l’esterno; nel primo caso, come si è

evidenziato, l’ambiente è un bene giuridico unitario, frutto della sintesi di molteplici interessi tutti di natura

ambientale che dovranno essere considerati nella loro globalità al momento della identificazione delle

misure più efficaci; verso l’esterno, invece, il bilanciamento si riferisce al rapporto con gli altri beni di

rango costituzionale. Per un approfondimento sul punto si v. M. CECCHETTI, Principi costituzionali per

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Anche alla luce del principio di precauzione, quello di bilanciamento

non si esaurisce nella mera ricerca dell’interesse prevalente ma assurge a strumento utile

per determinare in che misura i diritti in contrasto con l’ambiente possano essere

compressi nella tutela dell’equilibrio dell’ecosistema75, dal che il bilanciamento tra diritti

costituzionalmente rilevanti costituisce il presupposto logico di ogni intervento

normativo, provvedimento amministrativo ovvero statuizione giurisdizionale, per

l’intrinseca capacità dell'ecosistema di entrare in contatto con altri beni giuridici

fondamentali.

Valga considerare, altresì, il principio di responsabilità76 per danni

ambientali e minacce imminenti di danni risultanti da attività professionali ove sia

rinvenibile un nesso di causalità tra il danno e l'attività in questione77. Il principio è posto

in stretta correlazione dalla direttiva 2004/3578 con quello del “chi inquina paga”79, ed ha

prodotto una distinzione tra attività pericolose o potenzialmente pericolose

(specificatamente indicate) e quelle che non sono considerate tali in quanto non

la tutela dell’ambiente, cit. In giurisprudenza, cfr. Corte cost., 24 luglio 2009, n. 250, in

www.cortecostituzionale.it (sito uff. Corte cost.), che, con riferimento all’attività d’impresa, ha affermato:

“l’esigenza di tutelare l'affidamento dell'impresa circa la stabilità delle condizioni fissate

dall'autorizzazione è certamente recessiva a fronte di un’eventuale compromissione, se del caso indotta dal

mutamento della situazione ambientale, del limite «assoluto e indefettibile rappresentato dalla tollerabilità

per la tutela della salute umana e dell'ambiente in cui l'uomo vive” (sentenza n. 127 del 1990). Essa, inoltre,

non può prevalere sul perseguimento di una più efficace tutela di tali superiori valori, ove la tecnologia

offra soluzioni i cui costi non siano sproporzionati rispetto al vantaggio ottenibile: un certo grado di

flessibilità del regime di esercizio dell'impianto, orientato verso tale direzione, è dunque connaturato alla

particolare rilevanza costituzionale del bene giuridico che, diversamente, ne potrebbe venire offeso, nonché

alla natura inevitabilmente, e spesso imprevedibilmente, mutevole del contesto ambientale di riferimento”.

75 Si afferma, cioè, che la tutela dell’ambiente deve essere costantemente esaminata in relazione agli

altri diritti costituzionali con cui entra in contatto, senza che ciò comporti necessariamente un obbligo

assoluto di non facere, ma piuttosto un’attenta riflessione sulla disciplina generale da applicare e sulle

singole misure di prevenzione da attuare in relazione alle istanze di fondo del sistema e alle necessità legate

alla fruizione ed allo sfruttamento dell’ambiente. Il divieto assoluto di porre in essere qualsiasi tipo di

condotta rappresenta quindi l’extrema ratio, utilizzabile quando non vi sia altro modo per tutelare

efficacemente il bene ambientale.

76 A fondamento del quale c’è l’idea che si possa attribuire un valore economico al bene ambiente,

prendendo le mosse dall’idea che ogni danno all’equilibrio ambientale ad opera dell’uomo possa essere

ripristinato o convertito in termini economici, ancorché gravosi, che ricadono sul danneggiante.

77 Cfr. Direttiva 2004/35 CE del Parlamento Europeo e del Consiglio, del 21 aprile 2004, in materia

di prevenzione e riparazione del danno all'ambiente. 78

B. POZZO, La proposta di nuova Direttiva sulla prevenzione e il risarcimento del danno

all’ambiente, cit., p. 11 ss..

79 Principio inserito nell’art. 174 del Trattato CE, come fattore autonomo e distinto dai principi di

prevenzione e correzione, formulato per la prima volta nella OECD Recomendation of the council n. 128,

26 Maggio 1972 e successivamente ripreso al punto 16 della Dichiarazione di Rio de Janeiro del Giugno

1972.

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esplicitamente elencate nel correlato allegato III. Per le prime80 l'operatore può essere

considerato responsabile anche se non ha commesso errori e senza per ciò versare in

colpa, in base alla sola sussistenza del nesso causale tra la condotta e l'evento dannoso,

mentre per le seconde81 sarà soggetto a tale disciplina solo quando avrà colposamente

prodotto il danno, salvo che si configurino particolari situazioni di esclusione della

responsabilità ambientale82. Nell’impianto normativo italiano il legislatore, al momento

della redazione del d. lgs. n. 152/2006, ha dovuto fare i conti con una normativa specifica

e settoriale già vigente, stabilendo un regime generale imperniato su una responsabilità

per colpa83. Tale impianto ha subito più di una modifica a seguito della procedura di

infrazione avviata proprio per la non corretta trasposizione della direttiva sotto il profilo

dei criteri di imputazione della responsabilità. Più nel dettaglio, però, il sistema ci

consegna un quadro multiforme84; dalle norme del codice si evince, infatti, che se da un

lato - in una fase iniziale, e sino all’esito della procedura d’infrazione - non è stato

accantonato il principio della responsabilità per colpa85, dall’altro la disciplina di

80

Si tratta in particolare di attività agricole o industriali soggette ad un’autorizzazione ai sensi della

direttiva sulla prevenzione e riduzione integrate dell’inquinamento, di attività che comportano lo scarico

di metalli pesanti nell’acqua o nell’aria, di impianti che producono sostanze chimiche pericolose, di attività

di gestione dei rifiuti, nonché attività concernenti gli organismi e i microrganismi geneticamente modificati.

81 Si fa riferimento a tutte quelle estranee all’allegato III della direttiva, più nel dettaglio quando un

danno o una minaccia imminente di danno siano causati a specie e habitat naturali protetti dalla legislazione

comunitaria.

82 Ciò in caso di danno o minaccia imminente di danno derivante da un conflitto armato, una

catastrofe naturale o un'attività prevista dal Trattato che istituisce la Comunità europea dell'energia atomica,

da un'attività di difesa nazionale o di sicurezza internazionale, nonché un'attività che rientra in alcune

convenzioni internazionali elencate all'allegato IV.

83 Non è stata prevista una differenziazione di criteri di imputazione della responsabilità in base al

tipo di operatore, a seconda cioè che venga o meno esercitata un’attività tale da comportare un rischio per

la salute umana e per l’ambiente e al contempo non è stato stilato un elenco di attività pericolose in

difformità alla normativa comunitaria. La mancata introduzione di un modello di responsabilità oggettiva

per le attività rischiose previste all’allegato III della direttiva comunitaria ha formato oggetto di un ricorso

di infrazione da parte della Commissione Europea n. 4679/2007 per inesatta trasposizione della direttiva e,

nonostante l’intervento del legislatore con l’art. 5 bis del d. l. n. 135/2009 (intervenuto a riscrivere il titolo

VI del d. lgs. 152/2006), la responsabilità per colpa ha continuato a costituire il modello su cui poggia la

tutela dell’ambiente fino alle attuali modifiche apportate dalla Legge 6 agosto 2013, n. 97 - Legge europea

(sul punto, e per le modifiche al sistema apportate a seguito della procedura di infrazione, v. §6).

84 Si consideri il titolo III della parte sesta del decreto legislativo che prevedeva, prima delle

modifiche apportate dalla Legge 97/2013, una tutela risarcitoria di tipo civilistico (che va dagli artt. 311 a

318) che si integrava con un sistema di misure a carattere preventivo e ripristinatorio disciplinato dal titolo

II (che va dagli artt. 304 a 310) ponendo non pochi problemi di coordinamento fra le due forme di tutela.

85 Si v. l’art 311 del d. lgs. n. 152/2006 che ricalcava in parte le scelte fatte con la legge n. 349/1986

sancendo un generale principio di responsabilità per colpa.

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prevenzione e ripristino, prevista dal titolo II86, ha recepito la normativa comunitaria

delineando un criterio di imputazione oggettivo87 così come può evincersi anche dall’art.

308, nella parte in cui non limita la prova liberatoria alla dimostrazione dell’assenza di

colpa ma la condiziona all’eventuale riconducibilità dell’evento in capo ad un terzo

oppure al rispetto di un ordine pubblico ovvero, infine, con riferimento alla minaccia di

danno ambientale, quando l’operatore è costretto a provare la sussistenza di altre

condizioni diverse dalla sua condotta colposa88.

4. Ambiente paesaggio e governo del territorio

La tutela del bene ambiente è in stretta correlazione alle variegate

attività di pianificazione urbanistica e disciplina del paesaggio89, fino alla localizzazione

di opere pubbliche. Di conseguenza, materie come l’urbanistica hanno risentito, già a

cominciare dal periodo successivo alla seconda guerra mondiale, della rilevanza che

l’ambiente ha acquistato nel nostro ordinamento90. A riprova si consideri che la Corte

Costituzionale, nell’estendere la tutela dei beni culturali a quella del paesaggio, ha

precisato che la stessa costituisce compito della Repubblica nelle sue diverse

articolazioni: Regioni ed Enti Locali91. In linea il legislatore ha previsto la possibilità per

le Regioni di adottare “piani urbanistico-territoriali con specifica considerazione dei

86

Ci si riferisce alla parte VI del Codice dell’ambiente intitolata prevenzione e ripristino ambientale

che recepisce criteri di responsabilità oggettiva così come indicati nella direttiva comunitaria recepita dal

legislatore del 2006 nel codice dell’ambiente.

87 Nell’ipotesi in cui un danno ambientale ancora non si sia verificato ma esista una minaccia

imminente si ha l’obbligo per l’operatore di adottare a proprie spese le necessarie misure di prevenzione e

messa in sicurezza, intendendosi per operatore colui che esercita o controlla l’attività, e responsabile in via

solidale il soggetto (ex art. 313, comma terzo) nel cui effettivo interesse il comportamento fonte del danno

è stato tenuto o che ha tratto obiettivamente vantaggio dal fatto dannoso.

88 Ci si riferisce all’art. 308 del d. lgs. n. 152/2006 nella parte in cui richiede la prova del rispetto

delle autorizzazioni ambientali o l’inesistenza di un rischio conosciuto o conoscibile relativo ad

un’emissione, a un’attività o modo di utilizzo di un prodotto.

89 M. CAMMELLI, (a cura di) Il codice dei beni culturali e del paesaggio - Commento al decreto

legislativo 22 gennaio 2004, n. 42, Il Mulino, Bologna, 2004. 90 M. S. GIANNINI, “Ambiente”: saggio sui diversi suoi aspetti giuridici, cit., pp. 15 ss. 91

Si v. Corte Cost n. 183/1983 in cui i giudici delle leggi ritengono non sia configurabile una

competenza statale rigorosamente circoscritta e delimitata giacché il paesaggio, e in senso più ampio

l’ambiente, si intreccia inestricabilmente con altri interessi e competenze; si consideri, anche, Corte Cost.

n. 536/2002 che ribadisce nuovamente la valenza trasversale dell’ambiente e l’ammissibilità in capo alle

Regioni di competenze legislative su materie come il governo del territorio e la tutela della salute per le

quali il valore ambiente assume rilievo.

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valori paesistici ed ambientali92 anche se un decisivo avvicinamento delle materie, dal

punto di vista della distribuzione delle funzioni amministrative, si è avuto con il decreto

legislativo 22 gennaio 2004, n. 42 noto come “codice Urbani”93.

Si deve in ogni caso tener presente che le due discipline, quella

ambientale e del governo del territorio, pur se contigue, sono da ritenersi distinte ed

operanti mediante istituti giuridici ed effetti diversi94. La ratio della differente

attribuzione di competenza è da rinvenirsi nella vis expansiva della materia ambientale in

grado di investire tutti settori nei quali il legislatore ha il compito di assicurare, sull’intero

territorio nazionale, il godimento di prestazioni garantite e standards minimi di

soddisfacimento95, tutelando e perseguendo un interesse che non esclude la sussistenza in

capo alle Regioni di competenze legislative se costituzionalmente rilevanti. In definitiva

l'ambiente è un valore trasversale96 idoneo ad incidere anche su ambiti settoriali attribuiti

ad altri enti, eguale, nei livelli minimi di tutela non derogabili in peius, in tutte le

articolazioni territoriali senza, tuttavia, escludere che le leggi regionali emanate

nell’esercizio della potestà concorrente, prevedano gradi di salvaguardia più elevati97.

92 Ci si riferisce all’art. 1-bis del d.l. 27 giugno 1985, n. 312 convertito in legge 8 agosto 1985, n.

4. 93

Si v. art. 143 del d. lgs. n. 42/2004 in cui si fa riferimento ai piani come strumenti obbligatori e in

grado di definire trasformazioni compatibili con i valori paesaggistici, le azioni di recupero e

riqualificazione degli immobili e aree sottoposti a tutela, nonché gli interventi di valorizzazione del

paesaggio anche in relazione alle prospettive di sviluppo sostenibile.

94 Si prenda in considerazione l’art. 117 della Costituzione in cui “tutela dell’ambiente,

dell’ecosistema e dei beni culturali” sono oggetto di legislazione esclusiva dello Stato in base alla lettera

s), mentre a tenore del comma seguente il “governo del territorio” spetta alla legislazione concorrente tra

Stato e Regioni.

95 Si v. Corte Cost. n. 222/2003; Corte Cost. n. 407/2002; Corte Cost n. 507/2000; Corte Cost. n.

382/1999 e anche Corte Cost. n 282/2002 in cui si specifica che i livelli essenziali delle prestazioni

concernenti diritti civili e sociali non costituirebbero una “materia” in senso stretto ma “una competenza

del legislatore statale idonea ad investire tutte le materie, rispetto alle quali il legislatore deve assicurare il

godimento di prestazioni garantite a tutti i cittadini sul territorio, senza che la legislazione regionale possa

limitarle o condizionarle”. 96

Per un approfondimento del concetto di “materia trasversale” si v. V. MOLASCHI, Sulla

“determinazione dei livelli essenziali delle prestazioni”: riflessioni sulla vis espansiva di una “materia”

in San. pubb e priv., 2003, p. 523 s., G. ARCONZO, Le materie trasversali nella giurisprudenza della Corte

costituzionale dopo la riforma del Titolo V, in N. Zanon, A. Concaro (a cura di), L’incerto federalismo,

Milano, 2005, p. 181 s.

97 Si confronti Corte Cost. n. 222/2003 e Corte Cost. n. 307/2003: in entrambe si evidenzia che lo

Stato conserva il potere di dettare standards di protezione uniformi validi in tutte le Regioni e non

derogabili ma ciò non esclude affatto la possibilità che leggi regionali, emanate nell'esercizio della potestà

concorrente o di quella residuale, possano assumere fra i propri scopi anche finalità di tutela ambientale.

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Per quel che riguarda il paesaggio98 l’art. 117 Cost., nella rinnovata

formulazione, attribuisce alla potestà legislativa esclusiva dello Stato la “tutela

dell’ambiente, dell’ecosistema e dei beni culturali” e inserisce, nell’elenco delle materie

di competenza, la “valorizzazione dei beni culturali e ambientali”, ma non menziona il

paesaggio, benché espressamente enunciato nell’art. 9 Cost., inducendo ad una riflessione

sulla sua nozione che, come è già stato detto, ha subito nel tempo profondi mutamenti. La

materia è stata disciplinata dalla legge 29 giugno 1939 n. 1497 “sulla protezione delle

bellezze naturali”, per la quale il paesaggio era essenzialmente caratterizzato dal suo

pregio estetico99 e la protezione del patrimonio della collettività affidata all’imposizione

di un controllo preventivo di ogni intervento sul bene vincolato, che potesse “recare

pregiudizio a quel suo esteriore aspetto”100 protetto dalla legge opportunamente

predisposta.

L’individuazione degli immobili vincolati doveva avvenire con

apposito procedimento diretto ad accertare di volta in volta l’esistenza del valore da

difendere. Con la legge 8 agosto 1985, n. 431 (legge Galasso) la nozione di paesaggio

cambia radicalmente, oltre ai beni oggetto di specifico procedimento di accertamento del

valore da tutelare, vengono sottoposti a vincolo paesaggistico ex lege un’ampia serie di

territori tra i quali le coste marine e lacuali, le sponde dei fiumi, le montagne, i boschi,

ecc. La dichiarata prerogativa della disposizione legislativa è la conservazione delle

caratteristiche naturali, mettendo in luce il valore estrinseco e relazionale del bene in

questione e relegando ad un piano di minore importanza il valore intrinseco dello stesso;

finalità poi recepita a chiare lettere dal decreto legislativo 22 gennaio 2004, n. 42 che

prevede la tutela del paesaggio non tanto per la sua connaturata bellezza quanto per “i

valori che esso esprime quali manifestazioni identitarie percepibili”101.

98 M. A. CRESCENZI, in P. Dell'Anno, Manuale di diritto ambientale, Padova, 1995, pp. 467 ss.; F.

CARTEI, La disciplina del paesaggio, tra conservazione e fruizione programmata, Torino, 1995. 99

Tale normativa riguardava, infatti, gli immobili aventi “cospicui caratteri di bellezza naturale”,

“le ville i giardini e i parchi che si distinguono per la loro non comune bellezza”, “i complessi di cose

immobili che compongono un caratteristico aspetto avente valore estetico e tradizionale”, nonché “le

bellezze panoramiche considerate come quadri naturali e così pure quei punti di vista o di belvedere

accessibili al pubblico, dai quali si gode lo spettacolo di quelle bellezze”.

100 Ci si riferisce all’art. 7 della legge n. 1497/1939 che in particolare inibiva qualsiasi condotta

volta a modificare i beni sottoposti a vincolo paesaggistico senza previa autorizzazione di competenza della

Soprintendenza.

101 Si veda in particolare l’art. 131 del d. lgs. n. 42/2004.

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Proprio la mutata rappresentazione di paesaggio da nozione meramente

estetica (tutela del paesaggio come tutela del bello naturale) a concezione basata su

caratteri che identificano il territorio, ha fatto sì che il paesaggio e il governo del territorio,

temi originariamente distinti, abbiano finito per sovrapporsi. D’altro canto il motivo della

separazione originaria era duplice: il primo riguardava la non interferenza geografica,

poiché il piano regolatore generale comprendeva solamente l’abitato e le eventuali zone

di espansione102, mentre il vincolo paesaggistico le bellezze naturali e quindi zone non

costruite103; il secondo le finalità104.

La limitazione di ambito materiale viene meno con l’art. 1 della legge

19 novembre 1968, n. 1187 perché il piano regolatore si estende alla totalità del territorio

comunale e l’eventuale sovrapposizione è risolta privilegiando l’interesse paesaggistico,

pacificamente prevalente nella gerarchia degli interessi pubblici105. La sovrapposizione

di campi produce problemi di portata limitata dato che il vincolo paesaggistico è legato,

in questa fase, ad un procedimento di verifica del notevole interesse pubblico106. Si giunge

così ad una vera e propria esplosione del vincolo, che viene esteso a numerose tipologie

zonali107. Per altro verso si attribuisce alle Regioni, seppure limitatamente alle aree

sottoposte a restrizione, la competenza per la redazione di piani urbanistico territoriali

102

Si prenda a riferimento la legge urbanistica nazionale, legge 17 agosto 1942, n. 1150, in cui si

traccia una figura di piano avente come unico oggetto di interesse il regolamento della crescita urbana.

103 Si confronti la Legge n. 1497/1939 e la Legge 431/1985 per la tutela dei beni naturalistici ed

ambientali sulle bellezze naturalistiche classificate in base alle loro caratteristiche peculiari e suddivise per

classi morfologiche.

104 Infatti, la legge urbanistica aveva ad oggetto l’assetto e l’incremento edilizio dei centri abitati e

lo sviluppo in generale del territorio; la legge sulle bellezze naturali, invece, aveva riguardo alla tutela

dell’aspetto esteriore dei luoghi al fine di non utilizzare le aree delle località in questione in modo

pregiudizievole rispetto alla bellezza panoramica.

105 Si v. Corte Cost. n. 367/2007 ove si afferma che il concetto di paesaggio indica, innanzitutto, la

morfologia del territorio (riguarda cioè l’ambiente dal punto di vista visivo) ragione per cui non si

riscontrano particolari specificazioni nell’art. 9 Cost., a voler significare la rilevanza in sé dell’aspetto

esteriore del territorio; ne consegue la sua primazia nei confronti degli altri interessi pubblici assegnati alla

competenza concorrente delle Regioni in materia di governo del territorio e valorizzazione dei beni culturali

e ambientali. Nello stesso senso Corte Cost n. 180 e n. 232 del 2008. In senso critico si v. D. TRAINA, Il

paesaggio come valore costituzionale assoluto, in Giur. cost., 2007, p. 4108 ss., in cui l’autore evidenzia

come il paesaggio non sia completamente sovrapponibile al bene ambiente, contenendo al suo interno

componenti identitarie e di civiltà di natura essenzialmente culturale, oltre che ecologiche e naturalistiche.

106 Il riferimento è alla Legge 8 agosto n. 435/1985 che ha introdotto una serie di vincoli sui beni

paesaggistici ambientali e che prende il nome dal politico e storico Giuseppe Galasso.

107 Si prenda in considerazione l’art. 1 della Legge n. 431/1985.

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con specifica considerazione dei valori paesaggistici ed ambientali108. La previsione

costituisce indubbiamente un primo passo verso l’unificazione delle distinte discipline

dell’urbanistica e paesaggio, che hanno quale denominatore comune il territorio.

Una completa sovrapposizione, come già precedentemente annunciato,

si ha con il D. lgs. n. 42 del 2004, secondo cui il piano paesaggistico si estende all’intero

territorio regionale, sottopone a specifiche misure di salvaguardia e di utilizzazione anche

aree ulteriori rispetto a quelle già impegnate, ed inoltre definisce parametri vincolanti per

le specifiche previsioni da introdurre negli strumenti urbanistici, acquistando, in questo

modo, una funzione di regolazione alla discrezionalità insita nel potere di pianificazione

urbanistica, vale a dire di disciplina sostanziale del potere stesso109.

Il piano paesaggistico è particolarmente efficace poiché non si limita

alla creazione di un obbligo di adeguamento degli strumenti urbanistici comunali sul

modello del tradizionale piano di coordinamento, ma produce disposizioni

immediatamente prevalenti tra quelle difformi, eventualmente contenute negli stessi

incidendo direttamente sulle singole proprietà e stabilendo norme di salvaguardia

applicabili in attesa del loro adeguamento110. In definitiva il piano paesaggistico e quelli

comunali coprono oggi l’intero medesimo territorio e, per quanto nel rapporto tra i due

prevalga il primo, può essere utile analizzare le diverse finalità poiché la legge

urbanistica111, da questo punto di vista, ammette espressamente l’introduzione di vincoli

propri diversi da quelli regionali.

Viene così in evidenza che manca un orientamento giurisprudenziale

circa la possibilità che il piano paesaggistico comprenda anche prescrizioni non attinenti

alla tutela del paesaggio. Il testo del decreto legislativo, inoltre, non è esplicito sul punto,

108 P. STELLA RICHTER, I principi del diritto urbanistico, Milano, Giuffrè, 2002. 109

La particolare efficacia del piano paesaggistico si manifesta nel non limitarsi alla creazione di

un obbligo di adeguamento degli strumenti urbanistici comunali, sul modello del tradizionale piano di

coordinamento, ma nell’essere le sue previsioni immediatamente prevalenti sulle disposizioni difformi

eventualmente contenute negli strumenti urbanistici e nell’incidere altresì sulle singole proprietà, stabilendo

norme di salvaguardia in attesa dell’adeguamento degli stessi.

110 Come si ricava in particolare dall’articolo 145, comma terzo, del Codice ove si dispone che “le

previsioni dei piani paesaggistici di cui agli articoli 143 e 156 non sono derogabili da parte di piani,

programmi e progetti nazionali o regionali di sviluppo economico, sono cogenti per gli strumenti urbanistici

dei comuni, delle città metropolitane e delle province, sono immediatamente prevalenti sulle disposizioni

difformi eventualmente contenute negli strumenti urbanistici, stabiliscono norme di salvaguardia

applicabili in attesa dell’adeguamento degli strumenti urbanistici e sono altresì vincolanti per gli strumenti

settoriali”. Cfr. anche T.A.R Umbria, Perugia, sez. I, n. 402/2006.

111 Si veda art. 7 della legge n. 1150/1942

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anche se ci sono degli elementi che inducono a ritenere che esso possa contenere

prescrizioni urbanistiche112. In ogni caso il codice dei beni culturali e del paesaggio

prevede che le Regioni approvino “piani paesaggistici ovvero piani urbanistico-

territoriali con specifica considerazione dei valori paesaggistici”113.

La totale sovrapposizione di cui si è detto sussiste anche in relazione ai

piani di rilevanza ambientale (si pensi ai parchi, alle aree protette, ai piani di bacino) in

quanto lo stesso Decreto stabilisce espressamente che “le previsioni dei piani

paesaggistici sono altresì vincolanti per gli interventi settoriali”114.

Emblematica in tal senso è stata l’istituzione dell’Autorità di Bacino115

e del relativo “piano di bacino”116 che essendo un modello pianificatorio con obiettivi di

carattere ambientale, può anche eseguire valutazioni urbanistiche117, prevalendo sugli

altri piani, generali e di settore, assurgendo a piano dei piani; strumento a scala territoriale

in cui le ragioni dell'ambiente e le trasformazioni urbanistiche possono trovare una sintesi

compiuta da far valere sul resto della pianificazione118.

112

Si consideri ad esempio l'art. 15 nella parte in cui si precisa che, “per quanto attiene alla tutela

del paesaggio, le disposizioni dei piani paesaggistici sono comunque prevalenti sulle disposizioni contenute

negli atti di pianificazione” e che prevede, anche se con un linguaggio contraddittorio, disposizioni non

funzionali al paesaggio; inoltre si consideri che il piano paesaggistico non solo è preceduto da una

necessaria “ricognizione dell'intero territorio”, ma dispone una ripartizione dell'intero territorio regionale

in ambiti omogenei (art. 143, primo comma), dato confermato dall'art. 135, secondo il quale i piani

concernono “l'intero territorio regionale” e disciplinano finanche le zone prive di pregio paesistico. Non

ultimo, si consideri la complessità dell’elaborazione del piano paesaggistico ormai divenuta così elevata da

indurre a ritenere che, almeno di regola, la Regione competente ad adottare il proprio piano territoriale, vari

un solo piano attuativo di tutte le proprie scelte di assetto del territorio e perciò anche quelle concernenti la

distribuzione degli insediamenti e localizzazione delle infrastrutture.

113 Si v. a tal proposito l’art 135 d. lgs. n. 42/2004.

114 Si v. art. 145, comma terzo, del d. lgs. n 42/2004.

115 L’autorità di bacino è un ente istituito dalla legge 18 maggio 1989, n.183 (Norme per il riassetto

organizzativo e funzionale della difesa del suolo) con l’obiettivo di superare le frammentazioni di

competenza ed istituzionali che non consentono una pianificazione unitaria ed integrata.

116 Il piano di bacino ha valore di piano territoriale di settore, nel senso che può intervenire nei

settori di riferimento al bacino idrografico di propria competenza, senza la possibilità di sostituirsi agli

strumenti urbanistici per quanto attiene all'assetto del territorio.

117 Si confronti l’art. 17, comma terzo, del capo II della legge n. 183/1989, norme per il riassetto

organizzativo e funzionale della difesa del suolo.

118 F. MIRABELLI, Il Governo del Territorio. Aspetti Culturali, Evoluzione normativa, in Formez-Progetto

Ripam, Febbraio 2002.

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A conferma della ritenuta sovrapposizione si consideri l’orientamento

della Corte Costituzionale119, pacifico nel ritenere che non tutti gli ambiti specificati nel

comma 2 dell'art. 117 Cost. sono materie nelle quali l’ambiente interseca

trasversalmente120 le competenze statali e regionali121 in raccordo con altri interessi e

competenze122.

In tal senso la Consulta ha rimarcato che l'art.117, comma 2 (lettera –

s) Cost. esprime “una esigenza unitaria per ciò che concerne la tutela dell'ambiente e

dell'ecosistema”123 e si pone come limite per gli interventi regionali che possono

pregiudicare gli equilibri ambientali, senza tuttavia escludere la titolarità in capo alle

Regioni di competenze legislative in tema di governo del territorio o tutela della salute124.

Ecco che l'evoluzione della disciplina amministrativa delle tre materie:

paesaggio, governo del territorio e ambiente, pur nettamente distinte quanto a potestà

legislative, convergono o divergono dal medesimo centro istituzionale, in ragione del

119

Ci si riferisce in particolar modo a Corte Cost. n. 407/2002 che ha avuto modo di affermare la

capacità dell’ambiente, inteso come materia, di incidere per sua stessa natura su di una molteplicità di settori

inerenti al territorio.

120 In particolare dalla giurisprudenza della Corte, antecedente alla riforma del titolo V Cost., si

ricava una configurazione dell'ambiente come materia trasversale, in ragione della quale si manifestano

competenze diverse, anche regionali, spettando allo Stato le determinazioni che rispondono ad esigenze

meritevoli di disciplina uniforme sull'intero territorio nazionale. Si v. sul punto ex multis: Corte Cost. n.

507 e n. 54/2000, Corte Cost n. 382/1999 e, ancora, Corte Cost. n. 273/1998.

121 Si v. sul punto anche Corte Cost. n. 282/2002, in Foro amm., CdS., 2002, 2791 con nota di C.E. GALLO,

La potestà legislativa regionale concorrente, i diritti fondamentali ed i limiti alla discrezionalità del

legislatore davanti alla Corte costituzionale; in Le Regioni, 2002, 1144, con nota di R. BIN, il nuovo riparto

di competenze legislative: un primo, importante chiarimento. 122

In tal senso Corte Cost. n. 407/2002 in cui i giudici delle leggi evidenziano che “I lavori

preparatori riguardanti la lettera -s del nuovo art 117 Cost. inducono, d'altra parte, a considerare che

l'intento del legislatore sia stato quello di riservare comunque allo Stato il potere di fissare standards di

tutela uniformi sull'intero territorio nazionale, senza peraltro escludere in questo settore la competenza

regionale alla cura degli interessi funzionalmente collegati con quelli propriamente ambientali. In

definitiva si può ritenere che riguardo alla protezione dell'ambiente non si sia sostanzialmente inteso

eliminare la preesistente pluralità di titoli di legittimazione per interventi regionali diretti a soddisfare

contestualmente, nell'ambito delle proprie competenze, ulteriori esigenze rispetto a quelle di carattere

unitario definite dallo Stato”, in tal senso confronta anche Corte Cost. n. 307/2003.

123 Ci si riferisce testualmente a Corte Cost. n. 536/2002.

124 Cfr. sent. Corte Cost., n. 407 del 2002 in cui i giudici ammettono standards di tutela uniformi sull'intero

territorio nazionale, anche incidenti sulle competenze legislative regionali ex art 117 Cost. Già nel 1982 la

Corte costituzionale aveva affermato che la protezione dell’ambiente “in senso lato comprende com’è

comunemente ammesso, oltre la protezione ambientale collegata all’assetto urbanistico del territorio, anche

la tutela del paesaggio, la tutela della salute nonché la difesa del suolo, dell’aria e dell’acqua

dall’inquinamento”: Corte cost., 29 dicembre 1982, n. 239, in Foro it., 1983, I, c. 5 ss.

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principio di sussidiarietà125 ed alla capacità di dare prevalenza all'ambiente su tutte le

attività legate al territorio e alla sua trasformazione.

5. L’interesse all'ambiente

Per quanto riconosciuta l’importanza dell’ambiente in relazione alla sua

vis expansiva multisettoriale e alla capacità di condizionamento di ogni attività umana sul

territorio, non è rinvenibile un’esplicita e soddisfacente disciplina in ordine alle tutele dei

singoli o privati aggregati in associazioni126, in caso di negativa incidenza nella loro sfera

del danno ambientale.

D’altra parte, la definizione di ambiente come interesse “adespota”127,

fonda sul presupposto che si tratti di un bene la cui tutela non è suscettibile di essere

ascritta in modo frazionato ai singoli128 né all'amministrazione in via esclusiva, bensì in

capo all'intera collettività, per quanto sfornita di un centro istituzionalizzato cui

attribuirne la titolarità. Poiché tali interessi in quanto appartenenti ad una serie

indeterminata di soggetti e, nel contempo, riferibili a ciascuno di essi nella loro

interezza129, rappresentano uno dei punti critici in materia di diritto ambientale e rendono

125

Si fa riferimento alla legge n. 59/1997, cui si deve la prima applicazione del principio in

questione nella distribuzione delle funzioni amministrative tra i vari livelli di territorio. In tema di

sussidiarietà verticale, principio dirimente in tema di esercizio e allocazione delle funzioni amministrative,

si v. anche l’art. 118, primo comma, e l’art. 120, secondo comma, Cost, nonché gli artt. 2, 7 e 8 della legge

n. 131/2003. L’operatività di tale principio in materia ambientale si ricava dall’art. 3 quinquies, commi 3 e

4, del d. lgs. n. 152/2006, inserito nel codice dell’ambiente dal d. lgs. n. 4/2008.

126 Appare inadeguata la disciplina del risarcimento del danno ambientale nel caso di lesione ai

singoli cui si fa riferimento nel comma settimo dell’art. 313 ove si dispone che “resta in ogni caso fermo il

diritto dei soggetti danneggiati dal fatto produttivo di danno all’ambientale, nella loro salute o nei beni di

loro proprietà, di agire in giudizio nei confronti del responsabile a tutela dei diritti e degli interessi lesi”.

127 V. CAIANIELLO, La tutela degli interessi ambientali e delle formazioni sociali nella materia

ambientale, in G. De Vergottini, Localizzazione degli impianti energetici e tutela dell’ambiente e della

salute, Rimini, 1988, p. 35 ss.; M.S. GIANNINI, Difesa dell’ambiente e del patrimonio naturale e culturale,

cit. Si veda Cass. S.U. n. 440/1989 in cui i giudici di legittimità affermano la natura adespota dell’ambiente

quale bene immateriale e giudicano irrilevante il profilo dominicale delle sue componenti naturali.

128 Cfr. T.A.R. Lazio, sez. I, 19 gennaio 1983, n. 47, in Foro amm.,1983, 1071 secondo cui il

fenomeno degli interessi diffusi riguarda le utilità che attengono identicamente e indivisibilmente ad una

pluralità di soggetti, nessuno dei quali, pertanto ne ha la totale disponibilità. 129 V. CAIANIELLO, La tutela degli interessi individuali e delle formazioni sociali nella materia

ambientale, in Foro amm., 1987, pp. 1318 ss. L'autore dopo aver rilevato come la locuzione “interesse

adespota” non neghi l'esistenza di una titolarità, se non a pena di capovolgere la concezione stessa di

interesse privandola del necessario riferimento soggettivo, osserva che tale formula utilizzata come

sinonimo di interesse diffuso è stata coniata per interessi che, pur riguardando non i singoli ma la

collettività, non siano stati istituzionalizzati dall’ordinamento mediante l'attribuzione della titolarità ad una

soggettività pubblica.

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complesso il riconoscimento di coloro che, differenziandosi in qualche misura dal resto

della collettività, potrebbero essere legittimati ad agire, sia in fase procedimentale che

processuale, per la loro tutela130, si è ritenuto di affiancarli a quelli cd. collettivi131

connotati dal peculiare loro riferimento ad un ente esponenziale organizzato132. In pratica

l’ambiente, originariamente configurato come interesse diffuso, si tramuterebbe in

collettivo ogniqualvolta un ente legittimato decidesse di farlo valere in concreto133. In tal

modo alle associazioni ambientaliste, in considerazione della loro competenza ed

organizzazione stabile sul territorio, nonché per la dotazione di strumenti in grado di

svolgere interventi di affiancamento all’amministrazione in difesa delle risorse

130 In conseguenza di questo dibattito ha preso piede, nel corso degli anni, la figura dell’associazione

ambientalista, ente in grado di rappresentare quel necessario momento di aggregazione spontanea attraverso

cui l'originario, e soggettivamente indifferenziato, interesse diffuso trova una sua concreta titolarità

giuridica, che risulta differenziata sia rispetto a quella facente capo alla generalità dei cittadini, sia a quella

propria degli appartenenti alla categoria. La legge 349/1986 attribuiva, inizialmente, la legittimazione

all’azione solo allo Stato e agli enti territoriali; i commi 4 e 5 dell’art. 18 l. 349/1986 riservavano alle

associazioni ambientaliste esclusivamente il potere di denuncia dei fatti lesivi (potere, quest’ultimo,

attribuito anche a ogni singolo cittadino) e di intervento nei giudizi per danno ambientale. In virtù delle

modifiche apportate dall’art. 4, 3º comma, della legge 3 agosto 1999, n. 265 la legittimazione all’azione 16

è stata estesa anche alle associazioni ambientaliste di cui all’art. 13 della legge. L’art. 309 del codice

ambientale prevede ora che “le organizzazioni non governative che promuovono la protezione

dell'ambiente, di cui all'articolo 13 della legge 8 luglio 1986, n. 349” che “sono o che potrebbero essere

colpite dal danno ambientale o che vantino un interesse legittimante la partecipazione al procedimento

relativo all'adozione delle misure di precauzione, di prevenzione o di ripristino previste dalla parte sesta

del presente decreto possono presentare al Ministro dell'ambiente e della tutela del territorio, depositandole

presso le Prefetture - Uffici territoriali del Governo, denunce e osservazioni, corredate da documenti ed

informazioni, concernenti qualsiasi caso di danno ambientale o di minaccia imminente di danno ambientale

e chiedere l'intervento statale a tutela dell'ambiente a norma della parte sesta del presente decreto”.

131 A. PROTO PISANI, Appunti preliminari per uno studio sulla tutela giurisdizionale degli

interessi collettivi (o più esattamente: superindividuali) innanzi al giudice civile ordinario, in Dir. giur.,

1974, p.801 ss. ; C. M. BIANCA, Note sugli interessi diffusi, in La tutela giurisdizionale degli interessi

collettivi e diffusi, a cura di Lanfranchi, Torino, 2003, p. 67 ss.; M. CAPPELLETTI, Appunti sulla tutela

giurisdizionale di interessi collettivi o diffusi, in Giur. it., 1975; A. CARRATTA, Profili processuali della

tutela degli interessi collettivi e diffusi, in La tutela giurisdizionale degli interessi collettivi e diffusi, a cura

di Lanfranchi, Torino, 2003, p. 79 ss.; R. DONZELLI, La tutela giurisdizionale degli interessi collettivi,

Napoli, 2008; V. DENTI, Le azioni a tutela degli interessi collettivi, in Riv. dir. proc., 1975, 361 ss.; G.

COSTANTINO, Brevi note sulla tutela giurisdizionale degli interessi collettivi davanti al giudice

civile, in Le azioni a tutela di interessi collettivi, Padova, 1976, p. 223 ss.; V. VIGORITI, Interessi collettivi

e processo, Milano, 1979, p. 58; A. CORASANITI, La tutela degli interessi diffusi davanti al giudice

ordinario, in Riv. dir. civ., 1978, I, p.196 ss.; M.S. GIANNINI, La tutela degli interessi collettivi nei

procedimenti amministrativi, in Le azioni a tutela di interessi collettivi, Padova, 1976, p. 23 ss.; E.

GRASSO, Gli interessi della collettività e l'azione collettiva, in Riv. dir. proc., 1983, p. 24 s.

132 M. NIGRO, Le due facce dell’interesse diffuso: ambiguità di una formula e mediazione della

giurisprudenza in Foro it., 1987, V, p. 7 ss.

133 M. S. GIANNINI, Diritto amministrativo, Milano, 1970, definisce appunto gli interessi diffusi

come privi di un soggetto titolare individuabile ex ante, in quanto attribuibili unicamente a categorie

indeterminate di persone, ma capaci di trasformarsi in interessi collettivi o pubblici non appena trovano un

loro portatore determinato.

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naturali134, viene attribuita una posizione centrale anche per la possibilità loro accordata

di svolgere, tra le varie funzioni, quelle di denuncia, all’autorità amministrativa

competente, i fatti lesivi di beni ambientali dei quali siano a conoscenza, partecipando

inoltre a programmi di ricerca, formazione e gestione di alcune aree protette135.

Per completezza è necessario ricordare che gran parte delle attività sono

esercitabili soltanto dalle associazioni136 ambientali maggiormente rappresentative, alle

quali sia stata previamente riconosciuta rilevanza giuridica dall’ordinamento137.

La carente linearità della scelta operata138 si sostanzia nella violazione

del diritto di difesa ex art. 24 Cost.139, in quanto l’impostazione restrittiva (a tenore della

quale solo le associazioni individuate mediante il procedimento dell'art. 13 della L. n.

349/1986 sarebbero legittimate a tutelare il bene ambiente), assegna in via esclusiva140

alla amministrazione il potere di selezionare i soggetti titolati ad agire avverso i propri

atti, ex art. 310 del d. lgs. 152/2006141. E’ opinione condivisibile quella di affiancare alla

134 V. CAIANIELLO, La tutela degli interessi individuali e delle formazioni sociali nella materia

ambientale, cit.; A. POSTIGLIONE, L'azione civile in difesa dell'ambiente, in Riv. trim. dir. pubb., 1987

ove si osserva come l'associazione che si erge a difesa dell'ambiente sia espressione sociale della personalità

individuale dei suoi membri, rafforzando un valore ambientale che già esiste a livello personale e facilitando

la sua difesa in giudizio. 135

Si v. l’art. 13 della L. 349/1986 e da ultimo l’art. 309 del Codice dell’ambiente (d. lgs. n.

152/2006); sul punto cfr. anche B. POZZO, Danno ambientale, in Riv. dir. civ., 1997, II, p. 775 ss.

136 Se ne riportano di seguito alcune a titolo esemplificativo e non esaustivo: A.C.L.I, Agriambiente,

ANEV, ANIS, A.S.I, A.N.P.AN.A, Associazione ambiente e lavoro, Associazione Italiana insegnanti di

Geografia, Associazione Nazionale per la Tutela dell'Ambiente. 137

L'art. 13, comma 1, della legge n. 349 del 1986 prevede questo procedimento di individuazione,

il cui contenuto è destinato a confluire in un decreto del Ministero dell'Ambiente e della Tutela del

Territorio, con il quale si verifica la sussistenza o meno, in capo all'associazione, dei requisiti necessari per

ottenere il riconoscimento. Si tratta sostanzialmente di accertare: il carattere nazionale, la presenza in

almeno cinque Regioni, la sussistenza di un ordinamento interno a carattere democratico e la previsione

come finalità della tutela dell'ambiente all'interno dello statuto; per quanto concerne invece gli aspetti

relativi non alla struttura, bensì all'attività svolta da tali enti, l'esame ministeriale tiene conto della continuità

e della rilevanza esterna dell’attività svolta.

138 Si v. art. 18, L. n. 349/1986 istitutiva del Ministero dell’ambiente.

139 Diritto in base al quale tutti possono agire in giudizio per la tutela dei propri diritti e interessi per

ottenere il risarcimento del danno da fatto illecito, con il solo limite rappresentato dall’art. 2697, comma

prima, c.c. in base al quale chi vuol far valere un diritto in giudizio deve provare i fatti che ne costituiscono

il fondamento.

140 Pur considerando che questa risoluzione avrebbe il pregio di risolvere il problema della tutela

della posizione lesa e della qualificazione come “adespota” del diritto all'ambiente, il riconoscimento

ministeriale è senz’altro elemento arbitrario e lesivo della tutela dell’interesse in questione.

141 Sul punto è intervenuta la giurisprudenza con sentenze plurime che hanno affermato la non

vincolatività del dato normativo. Si cfr. ad esempio Consiglio di Stato, sez. IV, n. 2151/2006, in cui si

afferma che la legittimazione ad agire per le associazioni ambientaliste riconosciute (ex art. 18 L. 8 luglio

1986 n. 349) non preclude l’accertamento in concreto della legittimazione di altre che si assumano portatrici

di interessi diffusi, purché venga verificata la sussistenza di una pluralità di indici: finalità statutarie, grado

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predetta criptica opzione legislativa i previgenti criteri giurisprudenziali che

permettevano anche alle associazioni non riconosciute142, pur tuttavia operanti sul

territorio e rappresentative della collettività, di agire concretamente a tutela del bene143.

D’altra parte l'art. 13 della L. n. 349/1986144 piuttosto che creare un numero chiuso di

associazioni ambientaliste, le ha distinte in due categorie: quelle individuate, la cui natura

di soggetti portatori di interessi diffusi è presunta e le altre, per le quali si applicano le

regole ordinarie al fine di comprovare la loro legittimazione procedimentale e

di rappresentatività, maggiore o minore persistenza temporale, iniziative ed azioni intraprese nonché il

concreto e stabile collegamento con un dato territorio tale da rendere localizzabile l’interesse esponenziale

dell’associazione.

142 In sostanza si è messa in discussione la bontà dell'idea secondo la quale ci sarebbe bisogno di un

riconoscimento ministeriale in grado di differenziare tra di loro le organizzazioni private operanti nel settore

della tutela dell'ambiente. Sul punto si veda F. DE LEONARDIS, Verso un ampliamento della

legittimazione per la tutela delle generazioni future, in Cittadinanza e diritti delle generazioni future (Atti

del Convegno di Copanello, 3-4 luglio 2009), F. Astone, F. Manganaro, A. Romano Tassone, F. Saitta (a

cura di), Catanzaro, Rubbettino, 2010, p. 51 s.; TIGLIONI, L'azione civile di difesa dell'ambiente. La tutela

civile del danno ambientale, in Riv. trim. dir. pubb., 1987, pp. 304 ss.; in particolare l’autore criticamente

osserva che il riconoscimento delle associazioni con decreto ministeriale rappresenta “un errore non solo

politico ma anche giuridico”, giuridico in quanto le condizioni di ammissibilità al giudizio appartengono

alla valutazione del singolo giudice, caso per caso, politico, invece, in quanto il Ministero sarà costretto a

forme di mediazione improprie, sotto la spinta delle forze politiche diverse e persino delle associazioni già

consolidate, gelose di cedere spazio a nuovi fenomeni associativi. 143 Com'è noto la giurisprudenza amministrativa aveva elaborato diversi criteri di selezione,

attraverso cui poter individuare caso per caso la sussistenza o meno di elementi in grado di differenziare e

qualificare gli interessi di cui le singole associazioni sono portatrici; tra questi il più idoneo rimane tuttora

quello della vicinitas, strumento che permette di individuare caso per caso la legittimazione ad agire in base

ad uno stabile collegamento di interessi sul territorio, quale elemento sintomatico della sussistenza di un

pregiudizio concreto ed attuale (Cons. St., sez IV, 13 luglio 1998, n. 1088, in Giur. it., 1990, 180 ss.). Sul

punto M. CALABRO', Sui presupposti della legittimazione ad agire delle associazioni ambientaliste, in

Foro amm. TAR, 2003, 412.

144 Art.13.

1. Le associazioni di protezione ambientale a carattere nazionale e quelle presenti in almeno cinque

regioni sono individuate con decreto del Ministro dell'ambiente sulla base delle finalità programmatiche e

dell'ordinamento interno democratico previsti dallo statuto, nonché della continuità dell'azione e della sua

rilevanza esterna, previo parere del Consiglio nazionale per l'ambiente da esprimere entro novanta giorni

dalla richiesta. Decorso tale termine senza che il parere sia stato espresso, il Ministro dell'ambiente decide

(1).

2. Il Ministro, al solo fine di ottenere, per la prima composizione del Consiglio nazionale per

l'ambiente, le terne di cui al precedente art. 12, comma 1, lett. c) , effettua, entro trenta giorni dall'entrata

in vigore della presente legge, una prima individuazione delle associazioni a carattere nazionale e di quelle

presenti in almeno cinque regioni, secondo i criteri di cui al precedente comma 1, e ne informa il Parlamento

(2).

(1) Così modificato dall'articolo 17 della legge 23 marzo 2001, n. 93.

(2) A norma dell'articolo 4 della legge 3 agosto 1999, n. 265 le associazioni di protezione

ambientale di cui al presente articolo, possono proporre le azioni risarcitorie di competenza del giudice

ordinario che spettino al Comune e alla Provincia, conseguenti a danno ambientale. L'eventuale

risarcimento è liquidato in favore dell'ente sostituito e le spese processuali sono liquidate in favore o a

carico dell'associazione.

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processuale.145 Non solo; l’interpretazione restrittiva del combinato disposto degli artt.

13 e 18, L. n. 349/1986, palesa146 in modo plastico l’ inadeguatezza applicativa del

principio di sussidiarietà orizzontale147 secondo il quale alla cura dei bisogni collettivi e

delle attività di interesse generale debbono provvedere direttamente i privati cittadini (sia

come singoli che come associati) relegando ai pubblici poteri una funzione appunto

sussidiaria di programmazione, coordinamento e gestione148. L’azione pubblica è

ravvisabile nella sola ipotesi di incapacità dei privati o delle associazioni, di soddisfare

efficacemente interessi ed esigenze di ordine generale149.

145 N. LUGARESI, Diritto dell'ambiente, Padova, 2004, p. 69; si veda anche T.A.R Veneto, 12

agosto 1998, n. 1414, in Riv. giur. ambiente, 1999, p. 364, ove si specifica che l'accertamento della

rappresentatività delle associazioni ambientaliste si basa su un duplice sistema ricavabile dagli artt. 13 e

18, L. 8 luglio 1986, n. 349, il secondo dei quali lascia al giudice l'accertamento dei requisiti di

legittimazione. 146 G. DE MINICO, Brevi note sulle associazioni ambientali ex art. 18 della L. n. 349 del 1986, in

Riv. giur. edil., 1994, pp. 23 ss. 147

E. FASOLI, Associazioni ambientaliste e procedimento amministrativo in Italia alla luce degli

obblighi della Convenzione UNECE (United Nations Economic Commission for Europe) di Aarhus del

1998 – (Environmental associations and administrative procedure in Italy in the light of the requirements

of UNECE Aarthus Convention of 1998), in Riv. giur. ambiente, 2012, p. 331 ss.; A. MAESTRONI,

Sussidiarietà orizzontale e vicinitas, criteri complementari o alternativi in materia di legittimazione ad

agire?, in Riv. giur. ambiente, 2011, p. 528 s.; A. POGGI, Autonomie funzionali e sussidiarietà orizzontale,

in Giur. it., 2011. P. 1473 ss.; F. GIGLIONI, Il principio di sussidiarietà orizzontale nel diritto

amministrativo e la sua applicazione, in Foro. amm. CdS., 2009, p. 2909 s.; M. GRECO, Sussidiarietà

orizzontale e legittimazione ad agire, in Non profit, 2008, p. 345 s.; P. DURET, Riflessioni sulla legitimatio

ad causam in materia ambientale tra partecipazione e sussidiarietà, in Dir. proc. amm., 2008, p. 668 s.; A.

ALBANESE, Il principio di sussidiarietà orizzontale: autonomia sociale e compiti pubblici, in Dir. pubb.,

2002, p. 51 s.; G. U. RESCIGNO, Principio di sussidiarietà verticale e diritti sociali, in Dir. pubbl., 2002,

p. 5 s.; G. ARENA, Il principio di sussidiarietà orizzontale nell’art. 118 u.c. della Costituzione, in AA. Vv.,

Studi in onore di Giorgio Berti, vol. I, Napoli, 2005; L. GRIMALDI, Il principio di sussidiarietà orizzontale

tra ordinamento comunitario e ordinamento interno, Bari, 2006.

148 Il principio di sussidiarietà orizzontale, solo accennato nelle leggi Bassanini, è stato poi

formalmente introdotto nel nostro ordinamento ad opera dell'art. 2 della legge 265 del 1999 (poi confluito

nell'ultimo comma dell'art. 3 del D. Lgs. n. 267 del 2000) ai sensi del quale “i comuni e le province sono

titolari di funzioni proprie e di quelle conferite loro, con legge dello Stato e delle Regioni, secondo il

principio di sussidiarietà. I comuni e le province svolgono le loro funzioni anche attraverso le attività che

possono essere adeguatamente esercitate dalla autonoma iniziativa dei cittadini e delle loro funzioni

sociali”. Invero in dottrina era auspicata già da tempo una riforma in tal senso, osservando come una corretta

interpretazione degli artt. 2 e 18 Cost., nonché la più generale tensione pluralistica della Costituzione

finivano inevitabilmente per rendere “gli interessi superindividuali non più appannaggio esclusivo dello

Stato”. Si v. F. SALVIA, L'inquinamento, profili pubblicistici, Padova, 1984, 65; Per un approfondimento

sul principio di sussidiarietà si rinvia a A. D'ATENA, Il principio di sussidiarietà nella costituzione

italiana, in Riv. dir. pubb. com., 1997, pp. 603 ss.; P. DURET, La sussidiarietà «orizzontale»: le radici e le

suggestioni di un concetto, in Jus, 2000, pp. 95 ss.; G. PASTORI, La sussidiarietà «orizzontale» alla prova

dei fatti nelle recenti riforme legislative, in A. Rinella, L. Coen, R. Scarciglia (a cura di) Sussidiarietà e

ordinamenti costituzionali. Esperienze a confronto, Cedam, 1999, p 177 ss. 149 L'azione dei pubblici poteri è sussidiaria a quella di singoli e associati, nel senso che gli enti

istituzionali possono legittimamente intervenire, ove le funzioni amministrative assunte siano svolte in

modo più efficiente e con risultati più efficaci che se fossero lasciate alla libera iniziativa privata. Cfr.

T.A.R. Liguria, sez. I, 18 marzo 2004, n. 267, in Riv. giur. edil.,2004, 1445.

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In particolare, alla luce del principio di effettività di tutela150 del bene

in questione e del più ampio contesto europeo151 nel quale la stessa si incardina, il

legislatore meglio avrebbe dovuto mitigare il profilo formalistico, preservando la

sostanziale legittimazione processuale dei danneggiati piuttosto che limitare in modo

apodittico o, per meglio dire, aprioristico i soggetti lesi dal danno all’ambiente,

considerando l’interesse non soltanto come requisito processuale di esperibilità di

un’azione a tutela del proprio diritto, ma vero e proprio interesse sostanziale alla tutela e

al risarcimento del danno, il quale non può essere enucleato in astratto152 bensì valutato

in base al caso concreto, lasciando al giudice, organo di raccordo tra l’ordinamento ed i

privati, la possibilità di individuare le posizioni che siano effettivamente bisognose di

essere salvaguardate153.

La progressiva rivalutazione del concetto di interesse ha condotto ad

identificarlo con il valore che rappresenta per il soggetto, piuttosto che con il bene, in

ordine al quale, peraltro, è possibile una gradazione di interessi154.

Interesse, quindi, come ragione di agire, fondamento della situazione

giuridica soggettiva155 che opera alla stregua di un criterio di ricostruzione della

valutazione normativa ovvero come misura di valore156.

150

G. BRONZINI, Le tutele dei diritti fondamentali e la loro effettività: il ruolo della Carta di

Nizza, in Riv. giur. lav. prev. soc., 2012, p. 53 s.

151 La politica della Comunità in materia ambientale mira a raggiungere livelli elevati di tutela,

tenendo conto della diversità delle varie regioni della Comunità. Essa è fondata sui principi della

precauzione e dell'azione preventiva, sul principio della correzione, alla fonte, dei danni causati

all'ambiente, nonché sul principio «chi inquina paga».

152 Il legislatore del 2006 con il Codice dell’ambiente riserva allo Stato la legittimazione ad agire in

giudizio, sia in sede penale che in sede civile, per il risarcimento del danno ambientale (art. 311 D. Lgs.

152/2006) escludendo, con l'abrogazione dell'art. 18 della L.349/86, la possibilità per gli enti territoriali di

promuovere la stessa azione.

153 In questo senso, dunque, è fondamentale l’utilità che la cosa o il bene rappresenta per l’individuo,

in guisa tale da poter assurgere a livello di interesse giuridicamente tutelabile. La teoria maggiormente

diffusa nella dottrina tradizionale, infatti, è quella che definisce l’interesse come rapporto di tensione tra un

soggetto ed un bene, destinato a risolversi con la soddisfazione del soggetto interessato. Per tutti, si v. F.

CARNELUTTI, Teoria generale del diritto, Roma, 1951, p. 11 s.; A. LEVI, Teoria generale del diritto,

Padova, 1953, p. 264 s.

154 Così, testualmente, F. SANTORO PASSARELLI, Dottrine generali del diritto civile, Napoli,

1981, p. 69 s., che interpreta il diritto soggettivo come potere riconosciuto al singolo per la realizzazione di

un suo interesse.

155 A tal proposito, P. FEMIA, Interessi e conflitti culturali nell’autonomia privata e nella

responsabilità civile, Napoli, 1996, p. 347 ss.

156 G. ROMANO, Interessi del debitore e adempimento, Napoli, 1995, p. 44 s.

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D’altronde spetta all’associazione o al singolo che lamenta una lesione,

dimostrare di aver patito un danno157 di un interesse costituzionalmente qualificato come

diritto della personalità158, nettamente distinto dal diverso danno pubblico preso in

considerazione nel codice dell’ambiente le cui coordinate fondano sulla sussidiaria

disciplina in tema di responsabilità civile159.

Nel delineare il danno non patrimoniale160 è stato posto l’accento sulla

gravità dell’offesa161, ineludibile per l’ammissione al risarcimento dei danni non

patrimoniali alla persona, anziché sull’ingiustizia costituzionalmente qualificata162.

157

Ai sensi dell’art. 313, comma 7, “resta in ogni caso fermo il diritto dei soggetti danneggiati dal

fatto produttivo di danno ambientale, nella loro salute o nei beni di loro proprietà, di agire in giudizio nei

confronti del responsabile a tutela dei diritti e degli interessi lesi”. Questa disciplina deve ritenersi senza

dubbio di completamento e non sostitutiva di quella prevista da codice civile, sicché le associazioni

ambientaliste sono senz’altro legittimate a costituirsi parte civile iure proprio nel processo penale per il

risarcimento del danno direttamente subito, in quanto diverso ed ulteriore rispetto a quello contemplato,

avente natura pubblica. Sul punto abbondante la giurisprudenza della Cassazione penale: ex plurimis Cass.

pen., sez. III n. 2010/41015, Cass. pen. sez III 14828/2010, Cass. pen. sez. III n. 36514/2006.

158 Si cfr. Corte Cost. n. 210/1987, cit., e 641/1987, cit., ove si rinviene un riconoscimento specifico

della salvaguardia dell’ambiente non solo come diritto fondamentale della collettività ma anche come

diritto fondamentale della persona. Si consolida una concezione unitaria del bene ambientale, comprensiva

di tutte le risorse naturali e culturali. Esso comprenderebbe: la conservazione, la razionale gestione ed il

miglioramento delle condizioni naturali, l’esistenza e la preservazione dei patrimoni genetici terrestri e

marini, di tutte le specie animali e vegetali che in esso vivono allo stato naturale e in definitiva la persona

umana in tutte le sue estrinsecazioni; cfr. anche P. RESCIGNO, Premesse civilistiche, AA. VV., La

responsabilità dell’impresa per i danni all’ambiente e ai consumatori, Giuffrè, Milano, p. 69 s. E’ la nota

tesi di Patti (S. PATTI, La tutela civile dell’ambiente, cit.; Id., voce Ambiente (tutela dell’) nel diritto civile,

in Digesto civ., I, Utet, Torino, 1987, p. 289; Id., Diritto all’ambiente e tutela della persona, in Giur. it.,

1980, I, 1, p. 868, per il quale il diritto all’ambiente si configura quale diritto della personalità, situazione

soggettiva autonoma rispetto al diritto alla salute da classificarsi tra i diritti fondamentali della persona; tale

inquadramento soddisfa l’esigenza “della ricorrenza di una situazione giuridica soggettiva qualificabile

come diritto soggettivo perché sia possibile il ricorso agli strumenti di tutela presenti nel sistema –

soprattutto alle regole della responsabilità civile – in caso di sua violazione” (p.199); v., però, in senso

contrario, G. Alpa, Pubblico e privato nel danno ambientale, in Contratto e impresa, 1987, p. 701 e Id.,

La natura giuridica del danno ambientale, in Il danno ambientale con riferimento alla responsabilità civile,

a cura di P. Perlingieri, Esi, Napoli, 1991, p. 110 per il quale si tratta di un interesse collettivo

159 D. MESSINETTI, Voce “Personalità (diritti della)”, in Enc. dir., XXXIII, Giuffrè, Milano p

355 s.; P. PERLINGIERI, Il diritto civile nella legalità costituzionale, Napoli, 1991; V. SCALISI, Danno

alla persona e ingiustizia, in Riv. dir. civ., 2007, I, p. 152 s.

160 Ci si riferisce a Cass. S.U. n. 26793/2008.

161 La lesione deve superare una certa soglia di offensività rendendo il pregiudizio sufficientemente

serio e perciò meritevole di tutela, tale giudizio determina il bilanciamento tra il principio del neminem

laedere e quello di tolleranza ex art. 2 Cost., con la conseguenza che il risarcimento del danno non

patrimoniale si configura solo nel caso in cui sia superato un certo livello di tollerabilità e il danno sia reale,

mutatis mutandis in campo ambientale, significa discernere interessi astratti non risarcibili, da quelli

concreti meritevoli di tutela.

162 Si ritiene pacificamente superata la stretta connessione tra l’art. 185 c.p e l’art. 2059 c.c., che

aveva dato luogo alla stagione del “travaso” inaugurata negli anni ottanta dalla Corte Costituzionale per

rendere risarcibile il danno alla salute, che altrimenti avrebbe potuto essere tutelato solo in caso di reato e

con modalità analoghe a quelle previste nel processo penale. L’interpretazione costituzionalmente orientata

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Tuttavia, ciò che più rileva è che le conseguenze, se del caso apprezzabili anche sul piano

economico, sono rimesse alla valutazione del danneggiato tenuto, nel rispetto della

disciplina dell’illecito aquiliano, a provare: la colpa163, il nesso di causalità164 tra la

condotta e fatto illecito, l’effettiva produzione del danno165 per causa diretta ed immediata

del fatto illecito altrui166, ponendo così fine alla discutibile distinzione tra danno evento

o in re ipsa e danno conseguenza167.

Valga poi ricordare che ai sopraindicati vagli, connotati da tipicità

ordinamentale, si aggiunge quello non meno importante dell’abuso del processo168 filtro

atipico ma ormai pacificamente fatto proprio dalla giurisprudenza169 che consente,

dell’art. 2059 c.c. e la sua tipicità relativizzata riconducono il danno alla salute nell’alveo del danno non

patrimoniale unitamente al danno morale soggettivo. Sul punto si v. Corte Cost. n. 233/2003 in base alla

quale possono individuarsi altre ipotesi di danni non patrimoniali, derivante dalla lesione di interessi

costituzionalmente garantiti e perciò risarcibili a prescindere dalla configurabilità di un reato.

163 Sul punto si v. già cit. Corte Cost. n. 233/2003 ove si precisa che la colpa dell’imputato può

essere provata anche in base a presunzione di legge e non necessariamente dimostrata dal soggetto che

lamenta il pregiudizio, secondo rigidi paradigmi penalistici. In tal senso si v. Corte Cost. n. 365/2003.

164 Si v. la notissima Cass. pen., S.u., n. 30328/2002 che ha fissato in maniera inequivocabile le

regole e i principi in base ai quali il nesso di causalità si può dire accertato; tali principi hanno poi trovato

applicazione anche in campo civile, con una differenza di non poco momento: ciò che muta sostanzialmente

tra il processo penale e quello civile è la regola probatoria, in quanto nel primo vige la regola della prova

“oltre ogni ragionevole dubbio”, mentre nel secondo vige la regola della preponderance of evidence ossia

del più probabile che nonostante la diversità dei valori in gioco nel processo penale tra accusa e difesa. Si

cfr. sul punto Cass. civ. S.U. n. 584/2008 e Cass. civ. sez. III n. 12961/2011.

165 Cfr. sul punto Corte Cost. n. 372/1994 in tema di danno biologico, ove si specifica che la lesione

in sé non è sufficiente ai fini del risarcimento del danno, perché è sempre necessaria l’ulteriore prova del

quantum, cioè la concretizzazione di un pregiudizio consistente nella diminuzione o privazione di un valore

personale (non patrimoniale), al quale il risarcimento deve essere equitativamente commisurato. In senso

opposto si v. Corte Cost n. 184/1986.

166 Si v. sul punto Cass. S.U. n. 9556/2002 e Cass. Civ. sez III n. 882/2003 ove si chiarisce che il

collegamento giuridico tra il fatto e le conseguenze dannose va operato in base alla causalità giuridica

regolata dall’art. 1223 c.c., che limita il risarcimento ai soli danni che siano conseguenza immediata e diretta

dell’illecito.

167 Si v. la già menzionata sentenza della Corte Cass. S.U n. 26793/2008 e Cass Civ. sez. III n.

7844/2011 ove si chiarisce che il danno, in caso di lesione ai diritti della persona non può considerarsi in re

ipsa, in quanto ne risulterebbe snaturata la funzione, non più conseguenza dell’effettivo accertamento di un

danno bensì pena privata per una condotta antigiuridica. I giudici affermano che gli stessi paradigmi sono

applicabili anche al danno non patrimoniale la cui prova può essere data con ogni mezzo, anche con

presunzioni legali. In tal senso si v. anche Cass civ., sez III, n. 2228/2012. Sulla questione della prova si

tenga in considerazione A. ASTONE, I danni non patrimoniali alla persona: il problema della prova,

Milano, 2011, p. 41 s.

168 M. TARUFFO, Elementi per una definizione di abuso del processo, in AA. VV., L’abuso del

diritto, Padova, 1998, p. 435 s.; L. P. COMOGLIO, Abuso dei diritti di difesa e durata ragionevole del

processo: un nuovo parametro per i poteri direttivi del giudici?, in Riv. dir. proc. 2009, p. 1686 s.

169 Ex multis Cass. S. U. n. 23726/2007 in Foro. it, 2008, I, 1514; Cass. sez. I n. 11271 e n.

6900/1997; Cass. sez. III n. 28286/2011 e ancora Cons. di Stato n. 656/2012.

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proprio per la sua peculiarità il rifiuto di tutela a tutte quelle situazioni che non abbiano

altro scopo che un utilizzo strumentale o distorto del sistema giudiziario, al fine di evitare

proliferazioni di giudizi e condotte dilatorie non sostenute da un effettivo interesse del

ricorrente170. In buona sostanza, alla luce del principio del giusto processo legato a filo

doppio con quello di lealtà e probità delle parti, l’interprete dispone di mezzi idonei171 ad

evitare che l’esercizio dell’azione assuma forme eccedenti o devianti rispetto ad un

interesse sostanziale che rappresenta presupposto e limite del diritto potestativo ad

intermediazione giudiziaria del privato.

6. Il risarcimento del danno ambientale: l’opaco profilo

L’opacità del profilo risarcitorio del danno nella complessa disciplina

ambientale si palesa nell’avvicendarsi di disposizioni che si sono succedute nel tempo,

dall’originaria stesura del 2006 sino alle attuali previsioni172. Il susseguirsi di norme ha

condotto ad un assetto, probabilmente definitivo, dove, a seguito della procedura

d’infrazione per non corretta trasposizione della direttiva sulla responsabilità

ambientale173, il legislatore nazionale ha reciso il contestato legame tra responsabilità e

criteri di imputazione soggettivi e tra risarcimento per equivalente patrimoniale e danno

ambientale, dando così corretta attuazione alla direttiva.

170

Si v. ex multis Cass. S.U n. 155/2011 ove si afferma che l’abuso del processo consiste in un vizio

per sviamento della funzione ovvero in frode alla funzione e si realizza tutte le volte in cui un diritto o una

facoltà processuale vengano esercitati per scopi diversi da quelli per i quali l’ordinamento astrattamente li

riconosce.

171 Si pensi all’inammissibilità che è un vizio che osta alla disamina della pretesa avanzata dalla

parte, non presentando i requisiti stabiliti dalla legge. Il codice prevede numerose ipotesi di inammissibilità

come sanzione posta a carico della parte, per un vizio intrinseco nell’atto di impugnazione, ovvero per

difformità dal paradigma legislativo. Con riferimento al processo civile il codice detta singole ipotesi di

inammissibilità in materia di impugnazione (artt. 331, 342, 348 bis, 360 bis, 365, 398 c.p.c). Più in generale

una valutazione di merito sulla fondatezza della domanda è rinvenibile nell’art. 140 bis del Codice del

Consumo (d. lgs. n. 206/2005), la cui finalità è senz’altro quella di evitare lungaggini processuali e utilizzi

distorti della giustizia.

172 Legge 6 agosto 2013, n. 97 - Legge Europea. Sui profili evolutivi dei modelli di tutela

dell’ambiente nella successione delle discipline sulla responsabilità per danno all’ambiente, v. U.

SALANITRO, L'evoluzione dei modelli di tutela dell'ambiente alla luce dei principi europei: profili

sistematici della responsabilità per danno ambientale, in Nuove Leggi Civili, 2013, 4, p. 795 ss .

173 Procedura di infrazione 2007/4679 – Violazione del diritto UE – Non corretta trasposizione della

direttiva 2004/35/CE sulla responsabilità ambientale in materia di prevenzione e riparazione del danno

ambientale – La Commissione europea ha deciso l’archiviazione della procedura il 23 gennaio 2014.

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In antitesi con l’esigenza di tutela perseguita dal diritto Unionale, ancor

prima che nazionale, che ha trovato espressione nella direttiva 2004/35/CE finalizzata ad

armonizzare i regimi di responsabilità civile degli Stati membri, con l’introduzione di

discipline che, alla luce del principio «chi inquina paga», si muovessero nella prospettiva

della “oggettivazione” della responsabilità ambientale, il d. lgs. n. 152/2006, pur

abrogando l'art. 18174 della L. 349/1986 (ad esclusione del quinto comma) che, com’è

noto, tratteggiava un modello di responsabilità soggettiva aveva delineato un modello

risarcitorio sostanzialmente ancora plasmato sul principio dell’illecito doloso o colposo.

La disciplina dettata in sede di trasposizione della direttiva, fortemente

innovativa quanto ai profili dell’affermazione dei principi comunitari di prevenzione,

precauzione, correzione e riduzione degli inquinamenti, rimaneva ambigua quanto alle

formule di responsabilità civile che avrebbero dovuto dare attuazione al principio “chi

inquina paga”.

Il Codice ambientale prevedeva, infatti, differenti criteri di imputazione

(soggettivi, oggettivi) a seconda che si trattasse del sostenimento dei costi delle attività di

prevenzione e ripristino o del risarcimento del danno; in particolare, la normativa, nel

disciplinare in titoli differenti le azioni di prevenzione e ripristino ambientale (Titolo II)

e il risarcimento del danno (Titolo III) individuava negli operatori professionali i soggetti

tenuti a sostenere i costi della prevenzione e del ripristino ambientale mentre lasciava

priva di ogni specificazione la norma volta ad individuare i soggetti tenuti al risarcimento

del danno. L’art. 311175, rubricato “azione risarcitoria in forma specifica e per equivalente

174

U. SALANITRO, L'evoluzione dei modelli di tutela dell'ambiente, cit., p.795 ss., sottolinea

come “nel modello originario, la responsabilità per danno all’ambiente costituisce un rimedio ancillare al

sistema di tutela modale dell’ambiente, da applicare ogni qualvolta l’atto lesivo sia già vietato e sottoposto

a sanzioni penali o amministrative: l’insufficienza dell’apparato sanzionatorio di diritto penale o

amministrativo ad eliminare integralmente il pregiudizio causato dal comportamento vietato costituisce

pertanto la ragione di fondo giustificatrice del rimedio risarcitorio”.

175 Il testo della norma, prima della modifica apportata dall’art. 25, lett. i), L. 6 agosto 2013, n. 97

era il seguente:

Art. 311 (Azione risarcitoria in forma specifica e per equivalente patrimoniale).

1. Il Ministro dell’ambiente e della tutela del territorio agisce, anche esercitando l’azione civile in

sede penale, per il risarcimento del danno ambientale in forma specifica e, se necessario, per equivalente

patrimoniale, oppure procede ai sensi delle disposizioni di cui alla parte sesta del presente decreto.

2. Chiunque realizzando un fatto illecito, o omettendo attività o comportamenti doverosi, con

violazione di legge, di regolamento, o di provvedimento amministrativo, con negligenza, imperizia,

imprudenza o violazione di norme tecniche, arrechi danno all’ambiente, alterandolo, deteriorandolo o

distruggendolo in tutto o in parte, è obbligato all’effettivo ripristino a sue spese della precedente situazione

e, in mancanza, al risarcimento per equivalente patrimoniale nei confronti dello Stato.

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patrimoniale”, ricollegava l’obbligo risarcitorio al comportamento di “chiunque”, con

violazione di legge, di regolamento, o di provvedimento amministrativo, con negligenza,

imperizia, imprudenza o violazione di norme tecniche, avesse arrecato danno

all’ambiente”. La formulazione, che mal cela la riproposizione dell’art. 18 della l.

349/1986, ha sollevato il problema della responsabilità oggettiva, la cui affermazione di

principio rappresenta la struttura portante dell’impianto di responsabilità ambientale

comunitaria che vede nel libro Verde, nel Libro Bianco, nella proposta di direttiva e nella

direttiva i punti fondamentali176.

Proprio la questione della responsabilità oggettiva ha dato luogo alla

procedura d’infrazione per violazione della direttiva 2004/35/CE sulla responsabilità

ambientale in materia di prevenzione e riparazione del danno ambientale.

In particolare, e sotto il profilo in discorso, la Commissione177 ha

rilevato come la regola generale, stabilita dalla direttiva, della responsabilità oggettiva

degli operatori economici che esercitino le attività professionali elencate nell’allegato tre

della direttiva sia stata violata sotto il duplice profilo dell’ambito soggettivo di

applicazione e della non previsione della responsabilità oggettiva. Al riguardo, si segnala

come “l’art. 311, comma 2, del d. lgs. 152/2006 non si riferisce affatto ad attività

professionali di alcun tipo e pone obblighi in capo a <<chiunque>> anziché in capo ad

<<operatori>>, le due disposizioni riguardano due fattispecie diverse: l’articolo 3,

paragrafo 1, della direttiva riguarda la responsabilità ambientale degli operatori

economici; l’articolo 311, comma 2, del d. lgs. 152/2006 riguarda invece la

responsabilità ambientale di qualunque soggetto, a prescindere dal fatto che tale

soggetto abbia causato il danno ambientale nell’esercizio, o al di fuori dell’esercizio, di

un’attività professionale”178.

3. Alla quantificazione del danno il Ministro dell’ambiente e della tutela del territorio provvede in

applicazione dei criteri enunciati negli Allegati 3 e 4 della parte sesta del presente decreto. All’accertamento

delle responsabilità risarcitorie e alla riscossione delle somme dovute per equivalente patrimoniale il

Ministro dell’ambiente e della tutela del territorio provvede con le procedure di cui al titolo III della parte

sesta del presente decreto.

176 Per i riferimenti, v. retro, nota 39

177 Cfr. Commissione Europea - Parere motivato complementare - Infrazione n. 2007/4679 - 26. 1.

2012

178 V. Commissione Europea - Parere motivato complementare - Infrazione n. 2007/4679 - 26. 1.

2012.

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Tale responsabilità, si ribadisce, deve avere natura oggettiva: in forza

del “combinato disposto degli articoli 3 e 6 della direttiva (...) nel caso in cui il danno

ambientale sia stato causato da una delle attività professionali elencate nell’allegato III

della direttiva, l’operatore è tenuto ad adottare le necessarie misure di riparazione anche

qualora non vi sia stata colpa o dolo da parte sua”179; l’art 311, comma 2, del d. lgs.

152/2006 – rileva la Commissione – àncora, invece, la responsabilità per danno

ambientale ai requisiti del dolo o della colpa, anche nel caso in cui il danno ambientale

sia stato causato da una delle attività professionali elencate nell’allegato III della direttiva,

violando con ciò l’articolo 3, paragrafo 1, lettera a), e l’articolo 6 della direttiva.

Anche la norma relativa all’eccezione a tale regola – che la direttiva

espressamente prevede (art.8) e in forza della quale l’operatore può esonerarsi dalla

responsabilità oggettiva se soddisfa alcune condizioni (articolo 8, paragrafi 3 e 4) – non

è stata correttamente trasposta. La normativa italiana, infatti, “prevede solo le eccezioni

(articolo 308, commi 4 e 5, del d. lgs. 152/2006) senza aver prima stabilito la regola

generale della responsabilità oggettiva, come risulta dal fatto che il d. lgs. 152/2006 ha

omesso del tutto di recepire l’articolo 3, paragrafo 1, della direttiva”.

Ulteriore, ed altrettanto importante, addebito mosso dalla Commissione

nel parere motivato riguarda il risarcimento pecuniario in luogo della riparazione, in

violazione degli articoli 1 e 7 e dell’allegato II della direttiva; la riparazione costituisce,

infatti, il principale strumento attuativo del principio “chi inquina paga”, la cui operatività

risulta fortemente depotenziata dalla previsione relativa alla possibilità di sostituire la

riparazione (primaria, complementare o compensativa) con il risarcimento.

In ottemperanza agli obblighi derivanti dalle violazioni contestate, il

legislatore nazionale aveva modificato, con l’articolo 5-bis della legge 166/2009,

l’articolo 311, commi 2 e 3, del decreto legislativo 152/2006, aggiungendo un riferimento

alle misure di riparazione complementare e compensativa; restava però la previsione

dell’obbligo per il danneggiante al risarcimento pecuniario in via sostituiva, qualora la

riparazione, primaria, complementare e compensativa, venisse omessa o risultasse

impossibile o eccessivamente onerosa; pertanto – osserva la Commissione – “per quando

riguarda la suddetta modifica dell’articolo 311, comma 2, del decreto legislativo

152/2006, (...) il nuovo testo della disposizione, pur migliorando la normativa italiana in

179

V. Commissione Europea - Parere motivato complementare - Infrazione n. 2007/4679 - 26. 1.

2012.

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quanto aggiunge il riferimento alle misure di riparazione complementare e compensativa

(laddove il testo originario si riferiva soltanto alla riparazione primaria),conferma

tuttavia che ai sensi della normativa italiana un operatore che abbia causato un danno

ambientale può essere tenuto al risarcimento pecuniario in luogo della riparazione

primaria, complementare e compensativa. Pertanto, a parere della Commissione, tale

modifica dell’articolo 311, comma 2, del decreto legislativo 152/2006 non fa cadere

l’addebito mosso nel parere motivato.”

Con il nuovo testo della disposizione, dunque, il legislatore italiano

confermava la possibilità – nell’ipotesi di danno ambientale causato da un operatore – del

risarcimento pecuniario in luogo della riparazione e ciò in palese contrasto con la direttiva

a tenore della quale si può usare il metodo della valutazione monetaria per determinare

quali misure di riparazione complementare e compensativa siano necessarie (Allegato II,

punto 1.2.3, della direttiva), ma non si possono sostituire le misure di riparazione

mediante risarcimenti pecuniari.

Ulteriori addebiti, poi180, ineriscono all’ambito di operatività delle

direttiva che la non corretta trasposizione ad opera del legislatore italiano avrebbe

limitato.

In adempimento degli obblighi derivanti dall’appartenenza dell’Italia

all’Unione Europea, la legge 6 agosto 2013, n. 97, Legge europea 2013, con l’art. 25, ha

apportato le modifiche alla parte VI del codice ambientale; in particolare, e sotto il profilo

che ci occupa, si è operata, quanto all’ambito di operatività della normativa, la

suddivisione tra danno ambientale causato da attività professionali (elencate nell’allegato

5 della parte sesta) e danno ambientale causato da attività diverse da quelle elencate

180 C) L’esclusione prevista dall’articolo 303, lettera i), del decreto legislativo 152/2006: violazione

degli articoli 3 e 4 della direttiva. Nel parere motivato la Commissione ha inoltre rilevato come l’articolo

303, lettera i), del decreto legislativo 152/2006 escluda dall’ambito di applicazione della normativa italiana

sulla responsabilità ambientale le “situazioni di inquinamento per le quali siano effettivamente avviate le

procedure relative alla bonifica, o sia stata avviata o sia intervenuta bonifica dei siti nel rispetto delle norme

vigenti in materia, salvo che ad esito di tale bonifica non permanga un danno ambientale”, esclusione che

non è prevista dall’articolo 4 della direttiva. Poiché tale norma sembra introdurre un’indebita limitazione

del campo d’applicazione della direttiva, se ne conclude che l’articolo 303, lettera i), del decreto legislativo

152/2006 viola gli articoli 3 e 4 della direttiva. La Commissione osserva che a tutt’oggi le Autorità italiane

non hanno fornito alcun chiarimento sull’effettiva portata dell’articolo 303, lettera i), del decreto legislativo

152/2006, con particolare riferimento al rapporto tra la Parte Quarta, Titolo V (Bonifica di siti contaminati),

del decreto legislativo 152/2006 e la Parte Sesta (Norme in materia di tutela risarcitoria contro i danni

all’ambiente) dello stesso decreto legislativo.

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nell’allegato 5 della parte sesta in caso di comportamento doloso o colposo181. Si è,

inoltre, eliminato ogni riferimento al risarcimento del danno per equivalente patrimoniale,

concentrandosi invece sulla riparazione e sul ripristino (art. 25, n. 1, lett. c, d, f ,g, h che

sostituisce l’intero terzo comma dell’art. 311, lett. i e lett. l); in particolare, la lettera i) ha

modificato parte del comma dell’art. 313, precisamente la previsione della possibilità del

risarcimento per equivalente pecuniario nel caso in cui il ripristino risulti “in tutto o in

parte impossibile, oppure eccessivamente oneroso ai sensi dell’art. 2058 del codice

civile”. La modifica apportata all’art. 313 ha eliminato tale opzione, prevedendo che

qualora il responsabile del fatto che ha provocato danno ambientale non provveda in tutto

in parte al ripristino nel termine ingiunto «o all'adozione delle misure di riparazione nei

termini e modalità prescritti, il Ministro dell'ambiente e della tutela del territorio e del

mare determina i costi delle attività necessarie a conseguire la completa attuazione delle

misure anzidette secondo i criteri definiti con il decreto di cui al comma 3 dell'articolo

311 e, al fine di procedere alla realizzazione delle stesse, con ordinanza ingiunge il

pagamento, entro il termine di sessanta giorni dalla notifica, delle somme corrispondenti».

In linea con lo spirito della normativa, la lettera l) sopprime il 3 (oltre che il 2°) comma

dell’art. 314 relativo alla quantificazione del danno che l’ordinanza ministeriale doveva

contenere; la norma, oltre a determinare i criteri di quantificazione del danno (da valutare

con riferimento al costo necessario per il ripristino), faceva espresso riferimento al

risarcimento per equivalente patrimoniale nell’ipotesi di impossibilità di quantificazione

del danno non risarcibile in forma specifica.

La procedura d’infrazione ed i rilievi mossi hanno portato alle

modifiche attuali (Legge Europea) con le quali l’illecito ambientale ha cambiato

fisionomia, abbandonando lo schema della tutela aquiliana (art. 2043) nel cui ambito la

corte costituzionale, nel 1987, aveva ricondotto la responsabilità per danno

all’ambiente182, circostanza che rispecchia la concezione di ambiente quale interesse

fondamentale della collettività; “interesse pubblico ambientale”183 il cui deterioramento

deve essere riparato, data la natura primaria del bene e la sua appartenenza collettiva, e

181

V. l’art. 298-bis, Principi generali, introdotto dall’art. 25, n. 1, lett. a, della L. 6 agosto 2013, n.

97 , ed il “nuovo” secondo comma dell’art. 311 interamente riscritto dalla lett. g) del medesimo art. 25, n.

1, della L. 97/2013.

182 Corte cost., 30 dicembre 1987, n. 641, cit. c. 706.

183 Corte cost., 30 dicembre 1987, n. 641, cit., c. 706.

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non risarcito alla stregua della lesione di un qualsiasi altro bene di appartenenza

individuale.

Il precipuo rilievo del recupero delle risorse collettive e l’esclusione di

ogni riferimento ai profili risarcitori sembrerebbe chiudere per sempre la possibilità di

ingresso ad ogni rivendicazione privata, con ciò ponendosi in contrasto, però, con quella

definizione di ambiente quale interesse fondamentale dell’individuo, che la Corte

costituzionale184 e lo stesso legislatore dell’ambiente185 riconoscono e che ha portato la

giurisprudenza di legittimità ad affermarne la triplice dimensione186. Ad un’evoluzione

verso una tutela risarcitoria anche del singolo può, però, pervenirsi, abbastanza

semplicemente ma non semplicisticamente, ove si assuma a punto focale dell’indagine la

natura di valore primario del bene ambiente, del suo essere interesse fondamentale della

collettività e al tempo stesso della persona, con la conseguente pluridimensionalità del

danno187.

A conclusioni più coerenti e comprensibili può giungersi, però, solo

dopo un’attenta disamina dell’illecito ambientale nella sua evoluzione e nel confronto con

l’illecito civile.

184

Corte cost., 28 maggio 1987, n. 210, cit.. c. 346.

185 Sono più di uno i riferimenti allo stretto collegamento tra la qualità della vita umana (art. 1) e le

condizioni dell’ambiente la cui tutela costituisce attuazione dell’art. 2 della Costituzione (oltre che di altre

norme costituzionali, nel rispetto del Trattato dell’ Unione europea: v. art. 3-bis)

186 “II danno ambientale risarcibile presenta una triplice dimensione: personale quale lesione del

fondamentale diritto all’ambiente salubre da parte di ogni individuo; sociale quale lesione del diritto

all’ambiente nelle articolazioni sociali nelle quali si sviluppa la personalità umana; pubblica quale lesione

del diritto-dovere pubblico spettante alle istituzioni centrali e periferiche”: Cass. pen., sez. III, 5 aprile 2002,

n. 22539, Giur. it., 2003, p. 696; tale ultimo principio, affermato in precedenza da Cass. pen., sez. III, 1º

ottobre 1996, n. 9837, Arch. nuova proc. pen., 1996, p. 871, è stato successivamente ribadito da Cass. pen.,

21 ottobre 2004, sez. III, n. 46746, Arch. nuova proc. pen., 2005, p. 181; Cass. pen., sez. III, 6 marzo 2007,

n. 16575, Danno e resp., 2008, p. 406 ss. e Cass. pen., sez. II, 25 maggio 2007, n. 20681, CED, 2007; Cass.

pen, sez. III, 11 febbraio, 2010, n. 14828, CED, 2010.

187 Cfr. Cass. pen., sez. III, 11 febbraio 2010, n. 14828, CED, 2010: “Tale nocumento ha dimensioni

diversificate: la giurisprudenza di legittimità ha chiarito che il danno in esame presenta, oltre a quella

pubblica, una dimensione personale e sociale quale lesione del diritto fondamentale all’ambiente salubre di

ogni uomo e delle formazioni sociali nelle quali si sviluppa la personalità: il danno ambientale in quanto

lesivo di un bene di rilevanza costituzionale, quanto meno indiretta, reca una offesa alla persona umana

nella sua sfera individuale e sociale. In tale contesto, è riscontrabile in capo alle associazioni ecologiche un

interesse legittimo alla tutela del territorio ed è stata riconosciuta la loro possibilità di costituirsi parti civili

nel processo alle seguenti condizioni. Le ricordate associazioni non possono costituirsi parte civile al fine

di chiedere la liquidazione del danno ambientale di natura pubblica (a sensi della legge 348/1986, art. 18 e

ora del D. lgs. 152/2006), ma possono agire in giudizio – in virtù del principio fondamentale in tema di

nocumento ingiusto risarcibile enucleato dall’art. 2043 c.c. – per il risarcimento dei danni patiti dal sodalizio

a causa del degrado ambientale”.

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L’assetto attuale rappresenta il punto d’arrivo, il precipitato di un

processo osmotico dove il danno all’ambiente188 e la responsabilità che ne deriva hanno

a lungo oscillato tra disciplina privatistica e disciplina pubblicistica, tra funzione

compensativo-satifattoria e sanzionatorio-riparatoria, per assumere una connotazione

decisamente pubblicistica189 con l’elaborazione di un modello risarcitorio strutturato con

modalità volte alla pressoché esclusiva tutela dello Stato.

Di ciò ne è riprova il fatto che il Codice dell’ambiente assegnando al

Ministro competente due rimedi alternativi190 e caducando l’art. 18, L. n. 349/1986,

determina l’inammissibilità di un’autonoma azione risarcitoria da parte delle associazioni

ambientaliste, in capo alle quali residua il potere di partecipare al procedimento relativo

all'adozione di misure di precauzione, prevenzione o ripristino dello status quo ante

188

Il Codice ambientale esprime la nozione di “danno ambientale” in due norme: gli artt. 300

(Danno ambientale) e 311 (Azione risarcitoria in forma specifica e per equivalente patrimoniale); tali

disposizioni se collocano la nozione in una dimensione comunitaria la agganciano, al tempo stesso,

all’impianto normativo precedente. Il legislatore del 1986 forniva con l’art. 18 una nozione di danno ampia

idonea a ricomprendere tutti i possibili interessi tutelati facenti capo al concetto di ambiente (v. R.

TOMMASINI, Danno ambientale e danno alla salute, cit., p. 145; L. BARBIERA, Qualificazione del danno

ambientale nella sistematica generale del danno, in Il danno ambientale con riferimento alla responsabilità

civile, a cura di P. PERLINGIERI, Esi, Napoli, 1991, p. 115); nel nuovo assetto normativo, il danno

ambientale è qualsiasi deterioramento delle risorse naturali e il deterioramento causato alle biodiversità

protette; l’art. 300 infatti che espressamente definisce il danno ambientale ai sensi della direttiva

comunitaria (1. È danno ambientale qualsiasi deterioramento significativo e misurabile, diretto o indiretto

di una risorsa naturale o dell’utilità assicurata da quest’ultima. 2. Ai sensi della direttiva 2004/35/CE

costituisce danno ambientale...), fornisce, una descrizione analitica e molto dettagliata di pregiudizi a beni

ambientali. L’art. 311, contiene, invece, così come l’abrogato art. 18, una nozione di danno lata, senza

specificazioni quasi a significare l’impossibilità di ridurre il danno ambientale alle sola lesione alle risorse

naturali (a quei pregiudizi da ritenersi indicati, dunque, solo in via esemplificativa e non tassativa dall’art.

300) e ciò in linea con quell’ idea, di “danno all’ambiente considerato in senso unitario, quale bene a sé

stante, ontologicamente diverso dai singoli beni che ne formano il substrato” che si rinviene nella

giurisprudenza di legittimità (Cass., 3 febbraio 1998, n. 1087, in Foro it., 1998, I, c. 1151) e costituzionale

(Corte cost, 30 dicembre 1987, n. 641, cit. e, tra le più recenti Corte cost., 14 novembre 2007, n. 378, in

Giur. it., 2007, p. 1628 ss) e che riflettere la complessità, unitarietà e immaterialità dell’ambiente (Cass.,

17 aprile 2008, n. 10118, in Giur. it., 2008, p. 2708; Cass. pen., 6 marzo 2007, n. 16575, in Danno e resp.,

2008, p.406 ss.; Cass., 3 febbraio 1998, n.1087, cit.; Cass., 1 Settembre 1995, n. 9211, in Riv. giur.

Ambiente, 1996, pp. 472-473; Cass., 9 aprile 1992, n. 4362, in Mass. Giur. it., 1992).

189 V. sul punto U. SALANITRO, L'evoluzione dei modelli di tutela dell'ambiente alla luce dei

principi europei, cit., p.795 ss.

190 Il primo rimedio è l'azione civile innanzi al giudice ordinario, il secondo concerne l'adozione di

un'ordinanza ex art. 313 d. lgs. n. 152/2006 con cui si dispone il risarcimento del danno e qualificabile come

provvedimento autoritativo. La legittimazione a ricorrere al G.A., in sede esclusiva, avverso gli atti e i

provvedimenti assunti in violazione delle disposizioni del decreto, nonché contro il silenzio inadempimento

del ministro dell'ambiente e per il risarcimento del danno da ritardo nell'attivazione delle misure di

precauzione, prevenzione, o di contenimento del danno ambientale compete ex art. 310 «alle regioni, le

province autonome e gli enti locali, anche associati, nonché le persone fisiche o giuridiche che sono o

potrebbero essere colpite dal danno ambientale».

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oltreché la facoltà di invocare l'intervento dello Stato a tutela dell'ambiente attraverso la

presentazione di denunce e osservazioni191.

Quanto al primo dei rimedi cui si è fatto cenno, è utile sottolineare il

radicale mutamento della tutela ambientale attraverso l'ordinanza dello Stato192 che ha

conferito l’esclusiva legittimazione all’azione all’autorità deputata piuttosto che al

soggetto direttamente leso, in tal modo configurando il danno ambientale come illecito

amministrativo193 sanzionato con il ripristino o con l’adozione delle misure di

riparazione194.

Ma vi è di più; la disciplina codicistica195 palesa la propria

inadeguatezza salvaguardando il risarcimento dei soli beni elencati in modo tassativo196

e determinando, al contempo, una condizione di incertezza procedurale poiché omette

l’indicazione del giudice competente, diversamente da quanto previsto dall'abrogato art.

18197.

L’intelligibilità dell’assunto normativo è reso ancora più complesso ove

il danno venisse accertato e quantificato dall'ordinanza ministeriale, poiché in questa

ipotesi la potestas iudicandi traslerebbe in capo al giudice amministrativo soltanto nel

caso in cui il provvedimento venisse impugnato198.

In base alle sinteticamente ricostruite coordinate, anche la nuova

responsabilità per danno ambientale anziché porre attenzione ai soggetti danneggiati

191

Cfr. art. 309 d. lgs. n. 152/2006 ove si specifica che le associazioni sono considerate soggetti

titolari della facoltà di presentare al Ministero dell’ambiente e della tutela del territorio denunce e

osservazioni corredate da documenti, concernenti fattispecie di danno ambientale o di minaccia imminente

al fine di sollecitare l’intervento statale.

192 Si veda la disciplina prevista nell’art. 313 del d. lgs. n. 152/2006.

193 M. ATELLI, Prime note sul danno ambientale nel nuovo codice dell’ambiente, in resp. civ.,

2006, p. 669s..

194 Cfr. art. 313, comma 2, così modificata dall’art. 25, lett. i) L. 6 agosto 2013, n. 97 (Legge europea

2013).

195 Ci si riferisce in particolare alla opaca formulazione del comma settimo dell’art. 313 del d.lgs.

n. 152/2006.

196 L’art. 313 del d.lgs. 152/2006 si riferisce espressamente alla salute e ai beni di proprietà.

197 L’articolo 18 della legge n. 349/1986 radicava, infatti, expressis verbis la giurisdizione in capo

al giudice ordinario e tutt’ora non si può dubitare, in base al normale riparto che tale soluzione sia quella

preferibile.

198 Si v. art. 316 del d. lgs. 152/2006 ove si specifica che il ricorso debba essere presentato al

Tribunale amministrativo regionale competente in relazione al luogo nel quale si è prodotto il danno

ambientale.

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appare protesa a sanzionare l’autore dell'illecito per i danni procurati alla collettività199,

e ciò in antitesi con il sistema della responsabilità civile e piuttosto in linea con la vecchia

sistematica del Codice Codacci-Pisanelli del 1865, ove l'illecito civile altro non era che

la trasposizione in campo civilistico della fattispecie penale200.

Il dissenso a detto orientamento è in primo luogo dovuto dall’attuato

pieno riconoscimento dell’autonomia dell'illecito civile rispetto a quello penale,

evidentemente distinti in quanto a genesi, funzione e struttura201. Inoltre giovi ricordare

che nel sistema penale la finalità è sanzionatoria allorquando in quello civile

precipuamente riparatoria, tant’è che nel reato al centro del palcoscenico troviamo il

carnefice da sanzionare nel mentre nell’illecito civile la vittima ovvero il danneggiato da

risarcire202. Ciò spinge a considerare quanto possa essere irragionevole che il danneggiato

subisca le conseguenze altrui piuttosto che il danneggiante renda conto dell’illecito

commesso203.

La responsabilità ambientale che riecheggiava alcuni elementi di quella

civile204, si sarebbe caratterizzata per difetto di tutela ove si fosse negata la possibilità di

199 M. LIBERTINI, La nuova disciplina del danno ambientale e i problemi generali del diritto

dell'ambiente, in Riv. critica dir. priv., 1987, pp. 581 ss.; F. GIAMPIETRO, La responsabilità per danno

all’ambiente in Italia: sintesi di leggi e di giurisprudenza messe a confronto con la direttiva 2004/35/CE e

con il T.U. ambientale, in Riv. giur. ambiente, 2006, fasc. 1, p. 19 s. 200

Il codice previgente del 1865 poneva l’illecito civile sullo stesso piano del reato nell’ambito di

un sistema tratteggiato da perfetta omogeneità sul piano della finalità e degli altri profili disciplinari. Si cfr.

sul punto B. ALBANESE,voce Illecito (storia), in Enc .dir., XX, Milano, 1970, p. 50 s.

201 Sul punto è illuminante la Corte di Cass., S.U., n. 581/2008 con riferimento alla causalità e ai

diversi criteri di accertamento. Si v. anche Cass., S.U., n. 1768/2011 ove si afferma che disposizioni come

quella dell’art. 652 c.p.p. costituiscono eccezioni al principio di autonomia e separazione dei giudizi penale

e civile.

202 È questa una considerazione condivisa dalla dottrina; cfr., tra gli altri, C. SALVI, Il danno

extracontrattuale, modelli e funzioni, Napoli, 1985, 85; L. CORSARO, Tutela del danneggiato e

responsabilità civile, Milano, 2003, 2. In giurisprudenza si consideri sul punto Cass. sez. III n. 11755/2006.

203 Questo perché il sistema penale è imperniato su principi come quello della presunzione di

innocenza, personalità della responsabilità, funzione rieducativa della pena che non sono presenti nel

sistema civile e che ad esempio determinano l’assoluzione ex art. 530 c.p. per insufficienza o

contraddittorietà della prova della colpevolezza. La privazione della libertà del singolo si concreta solo

quando non residui alcun dubbio sulla prova della colpevolezza o della causalità. Nel sistema civile, al

contrario dove questi principi non hanno medesima forza e soprattutto dove sono pacificamente ammissibili

ipotesi di responsabilità oggettiva, è più giusto che le conseguenze dannose di un rischio vengano traslate

in capo al danneggiante, piuttosto che sul danneggiato incolpevole.

204 Ciò dallo stretto legame tra l’art. 2043 c.c. e l’art 18 dell’art. 349/1986 nella parte in cui

disponeva che qualunque fatto doloso o colposo che compromettesse l’ambiente obbligava l’autore del fatto

al risarcimento nei confronti dello Stato. Sulla possibilità di sussumere la responsabilità ambientale sotto

quella da illecito extracontrattuale si v. G. GRECO, Danno ambientale e tutela giurisdizionale, in Riv. giur.

ambiente, 1987, p. 525 s.

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una interpretazione ed applicazione, per quanto rispettosa, non vincolata al dato

normativo.

La tipizzazione della condotta illecita205, il richiamo all’inosservanza di

leggi o di provvedimenti adottati in base alle stesse206 e, non ultimo, il riferimento alla

gravità della colpa nella valutazione del risarcimento207, ci consegnavano uno schema

prevalentemente basato su logiche penalistiche non condivisibile per l’assenza del

vincolo di solidarietà tra i danneggianti, che le modifiche alla norma hanno conservato,

nell’ipotesi di pluralità di condotte lesive dell’integrità ambientale,208 e la preferenza per

il ripristino della situazione lesa in luogo del risarcimento per equivalente209.

Le attuali modifiche alla parte VI del Codice dell’ambiente che – come

si è detto – hanno caratterizzato l’illecito ambientale in termini amministrativo-

penalistici, sembrano non tenere conto della “triplice dimensione” – pubblica, personale

e sociale210 – dell’ambiente e della circostanza che il fatto dannoso per l'ambiente può

comportare conseguenze pregiudizievoli anche di interessi privati quindi non

205

L. BIGLIAZZI GERI, Quale futuro dell’art. 18 legge 8 luglio 1986 n. 349? in Riv. critica dir.

priv., p. 685 s.; C. CASTRONOVO, Il danno all’ambiente nel sistema di responsabilità civile, in Riv.

critica dir. priv., 1987, p. 512 s. U. NATOLI, Osservazioni sull’art. 18 legge 349/86, in Riv. critica dir.

priv., 1987, p. 703 s.

206 Cfr. RICCARDO BAJINO, Profili penalistici nella legge istitutiva del Ministero dell'Ambiente,

in Studi parlamentari e di politica costituzionale, n. 71 1986, p.81-86.

207 S. PATTI, La valutazione del danno ambientale, in Riv. dir. civ., 1992, p. 447 ss.

208 L’art. 311 d. lgs. n. 152/2006 dispone che “nei casi di concorso nello stesso evento di danno,

ciascuno risponde nei limiti della propria responsabilità personale”, introducendo un’eccezione alla più

generale disciplina prevista dall’art. 2055 c.c. sulla responsabilità dei condebitori che sono tenuti a

rispondere in modo solidale nei confronti del soggetto leso. Sulle obbligazioni solidali si v. A. DI MAJO,

voce Obbligazioni solidali (e indivisibili), in Enc. dir., XXIX, Milano, 1979, p. 323 s.

209 Questa asserzione trova conferma sia nella originaria previsione dell’art. 311, comma secondo,

che in quella successiva, conseguente alla riforma del 2009 (art. 5-bis, DL 25 settembre 2009, n. 135), che

diversamente da quanto previsto dall’art. 2058 c.c., ove è sancito il principio generale del risarcimento per

equivalente, prevedeva per il responsabile l’obbligo all’effettivo ripristino a sue spese della precedente

situazione e, in mancanza, all’adozione delle misure di riparazione complementari e compensative di cui

alla direttiva 2004/35/CE. Solo nel caso in cui ciò sia omesso, attuato in modo incompleto oppure risulti

impossibile o eccessivamente oneroso “il danneggiante è obbligato, in via sostitutiva, al risarcimento per

equivalente patrimoniale nei confronti dello Stato”. Sulla quantificazione del danno si v. da ultimo Cass.

n. 6551/2011 in Giur. it., 2012, p. 554 s.

210 V. retro, nota 186.

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contemplabile entro rigide pareti dispositive211 o limitato212 al fine di restringere l’area

del danno risarcibile213 per evitare il rischio di mettere a repentaglio l’integrale

risarcimento dello Stato.

Una corretta lettura della responsabilità in epigrafe impone un disegno

di tutela che riconosca il diritto del privato ad ottenere il risarcimento del danno non solo

nel caso di lesione alla salute o alla proprietà214, in quanto l’ingiustizia inevitabilmente

determina il pregiudizio di una posizione giuridicamente rilevante, allocabile ben oltre le

frontiere del diritto soggettivo215, rendendo trascurabile la qualificazione formale

dell’ambiente e ponendo l’accento sull’id quod interest di una situazione giuridicamente

qualificata in quanto meritevole di tutela216. I diritti fondamentali come l’ambiente217,

211

L’art. 300 del d. lgs. n. 152/2006 qualifica il danno ambientale come “qualsiasi deterioramento

significativo e misurabile, diretto o indiretto, di una risorsa naturale o dell’utilità assicurata da

quest’ultima”, facendo poi riferimento, nel secondo comma, a particolari risorse naturali elencate in modo

tassativo che vengono tutelate. Sul concetto di ambiente delimitato alle fattispecie indicate nella norma si

v. U. SALANITRO, Il risarcimento del danno ambiente: un confronto tra vecchia e nuova disciplina, in

Riv. giur. ambiente, 2008, p. 939 s.; F. GIAMPIETRO La nozione di ambiente e di illecito ambientale: la

quantificazione del danno, in Ambiente e sviluppo, 2006, p. 463 s.

212 Si pensi al comma settimo dell’art. 313 che sembra limitare il danno risarcibile alla salute o alla

proprietà, quando dispone che “resta in ogni caso fermo il diritto dei soggetti danneggiati dal fatto

produttivo del danno ambientale, nella loro salute o nei beni di loro proprietà, di agire in giudizio nei

confronti del responsabile a tutela dei diritti e degli interessi lesi”, non considerando ad esempio, il danno

esistenziale per perdita della possibilità di svolgere le attività dinamico-relazioni o il danno morale come

sofferenza transeunte, patiti in conseguenza di un danno all’ambiente produttivo di conseguenze

pregiudizievoli sulla sfera giuridica di chi assuma violato il proprio diritto all’ambiente.

213 Sul punto si v. Cass. sez. III n. 4186/98 ove si afferma che la questione da risolvere non è tanto

quella dell’ammissibilità o meno del risarcimento del danno morale, quanto piuttosto la dimostrazione sul

piano probatorio delle conseguenze dannose. Cfr. anche Corte Cass. n. 8827/2003.

214 Nel caso di perdita di una risorsa naturale in seguito alla distruzione di un bosco, contaminazione

del terreno, dell'aria o dell’acqua, si potrebbe ricorrere ad un intervento legislativo che consenta al

proprietario dell'immobile che abbia provveduto al ripristino dello status quo ante di chiedere il rimborso

delle spese al danneggiante come accade in Germania; Sul punto cfr. E. REHBINDER, ‘A German Source

of Inspiration? Locus Standi and Remediation Duties under the Soil Protection Act, the Environmental

Liability Act and the Draft Environmental Code’ in Betlem, G. and Brans, E. (eds.), Environmental Liability

in the EU – The Proposed Directives, GMOs and Mineral Resource Extraction (London, Cameron May,

forthcoming 2004). Si potrebbe, inoltre, ipotizzare il riconoscimento della legittimità ad agire non solo in

capo singolo, ma anche a tutte quelle associazioni portatrici di questi interessi che dal danno ambientale

subiscano un pregiudizio non necessariamente legato alla salute o alla proprietà, qualificabile tuttavia come

danno serio e apprezzabile in termini di danno conseguenza ex artt. 1223 e 1227 c.c.; si veda, però, in senso

contrario,U. SALANITRO, L'evoluzione dei modelli di tutela dell'ambiente, cit.

215 S. RODOTA’, Il problema della responsabilità civile, Milano 1964, p. 139 ss.; C.

CASTRONOVO, La nuova responsabilità civile, Milano, 2006, p. 22 s.

216 Sul punto si v. P. RESCIGNO, Introduzione al codice civile, Bari, 1991.

217 Si cfr. Corte Cost. n. 210/1987, cit., ove si afferma che già prima della riforma del titolo V è

rinvenibile nella Costituzione un riconoscimento specifico della salvaguardia dell’ambiente come diritto

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dunque, non possono esserne privati218 con conseguente ammissibilità al risarcimento del

danno non patrimoniale prodotto dalla compromissione degli stessi, per realizzare una

riparazione piena ed integrale non soltanto nel caso di pregiudizio nominato dalla

legge219, ma anche quando, per l’appunto, esso rappresenti conseguenza diretta ed

immediata220 della lesione di un interesse221. L’indirizzo ha trovato peraltro conferma

nella più attenta giurisprudenza di legittimità222 che, seppur non indicando un criterio di

selezione delle situazioni giuridiche rilevanti223, rimanda alla mera sussistenza di una

causalità immediata e diretta di un interesse meritevole224, qual è il danno morale

soggettivo all’ambiente, ammettendone il risarcimento quando sia conseguenza

dell'attività illecita altrui.

Inoltre non si può non tener conto del parallelismo tra l’ingiustizia del

danno225, riferita a situazioni giuridiche diverse dal diritto soggettivo assoluto,

fondamentale della persona ed interesse fondamentale della collettività; in tal senso si v. anche Corte Cost.

n. 641/1987.

218 F. D. BUSNELLI, Il danno alla persona: un dialogo incompiuto tra giudici e legislatore, in

Danno e resp., 2008, p. 609 s.

219 In tal senso si cfr. l’art. 313 del d. lgs. n. 152/2006 cit. con riferimento alla salute e ai beni di

proprietà dei singoli.

220 L’art. 1225 c.c. in tema di causalità giuridica dispone expressis verbis il risarcimento di tutti quei

pregiudizi che siano conseguenza diretta ed immediata o mediata purché normale dell’evento di danno.

221 Cfr. M. FRANZONI, Dei fatti illeciti (artt. 2043-2059) in Commentario del codice civile

Scialoja-Branca a cura di F. Galgano, Bologna-Roma, 1993.

222 Cass. S.U. n. 2515/2002, in Giur. it, 2002, 1270, ove i giudici ammettono che in caso di disastro

colposo è risarcibile il danno non patrimoniale sub specie di danno morale soggettivo subito da chi abita o

lavora in un certo contesto se si prova in concreto di aver subito un turbamento psichico di natura transitoria

a causa dell'esposizione a sostanze inquinanti. 223

L’art. 2 Cost. è clausola generale aperta, che non ammette una elencazione tassativa di diritti

inviolabili, potendo essi cambiare, modificarsi o nascere in base all’evoluzione dei rapporti sociali. Sul

punto si v. F. GAZZONI, L’art. 2059 c.c. e la Corte costituzionale: la maledizione colpisce ancora, in

Resp. civ. prev., 2003, p. 1306 s.; E. NAVARRETTA, Diritti inviolabili e risarcimento del danno, Torino,

1996.

224 Sul punto si veda, anche, la storica sentenza n. 500/1999 delle Sezioni Unite di Cassazione che,

nell’ammettere la risarcibilità dell’interesse legittimo, afferma che è sufficiente l’esistenza di una posizione

meritevole di tutela in base all’ordinamento per poter accedere alla tutela risarcitoria ex art. 2043 c.c.; cfr.

C. M. BIANCA, La responsabilità, Milano, 1994, p. 113 s.

225 Sulla nozione di ingiustizia del danno ampia la letteratura: G. ALPA, La responsabilità civile.

Parte generale, Milano, 2010, p. 358 ss.; R. SACCO, L’ingiustizia del danno di cui all’art. 2043, in Foro

pad., 1960, p. 1420 s.; P. SCHLESINGER, La “ingiustizia” del danno nell’illecito civile, in Jus, 1960, p.

338. s.; S. RODOTA’, Il problema della responsabilità civile, cit., p. 46. s.; G. CIAN, Antigiuridicità e

colpevolezza. Saggio per una teoria dell’illecito civile, Padova, 1966, p. 154 s.; P. TRIMARCHI, voce

Illecito (diritto privato), in Enc. dir., XX, Milano, 1970, p. 90 s.; R. SCOGNAMIGLIO, Responsabilità

civile, in Nuovo Dig. it., Torino, 1962, XV, p. 628; P. G. MONATERI, La responsabilità civile, in Trattato

di diritto civile, diretto da R SACCO, Torino, 1998, p. 567 s; E. NAVARRETTA, Il danno ingiusto, in

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ciononostante meritevoli di tutela, e il venir meno della rigorosa tipicità del danno non

patrimoniale226, risarcibile anche laddove una norma puntuale non lo contempli, a fronte

della lesione di valori inviolabili della persona ex art. 2 Cost. e per ciò solo in grado di

soddisfare la riserva di legge dell’art. 2059 c.c.227.

La violazione del diritto all'ambiente, in quanto diritto fondamentale,

non può essere sottoposto ad altri limiti oltre quelli della meritevolezza228 e dimostrazione

del pregiudizio subito, in quanto si configura oltre che nel venir meno di utilità ambientali

(sulle quali il privato ha fatto affidamento) anche nella sincopata libertà di azione e di

vita, oltre che nei controlli sanitari, talvolta coattivi, determinando, in tutti questi casi,

posizioni soggettive differenziate229 che pongono il soggetto leso in una condizione

tutt’altro che assimilabile al resto della collettività e come tale, meritevole di salvaguardia

dall'ordinamento giuridico230.

Diritto civile, diretto da N. LIPARI e P. RESCIGNO coordinato da A. ZOPPINI, Attuazione e tutela dei

diritti, IV, La responsabilità e il danno, III, Milano, 2009, p. 137 s.; G. VISINTINI, Trattato breve della

responsabilità civile. Fatti illeciti, inadempimento, danno risarcibile, Padova, 2005, p. 38 s.

226 L’impostazione più risalente ammetteva il risarcimento del danno non patrimoniale solo nel caso

di espressa previsione legislativa; nel corso degli ultimi anni si è abbracciato, al contrario, l’approccio che

relativizza il principio di tipicità del danno non patrimoniale e che prevede la possibilità di agire in giudizio

ogni volta che ad essere leso sia un diritto fondamentale della persona, anche senza che vi sia una norma

specifica che ne ammetta la risarcibilità.

227 Per “casi previsti dalla legge” si intendono non piu e non solo norme puntuali, ma anche tutti

quei precetti costituzionali che garantiscono i diritti inviolabili e ne impongono la piena tutela

indipendentemente dall’illecito penale, introducendo così un concetto di ingiustizia costituzionalmente

qualificata rafforzata dall’inerenza del diritto leso ai valori inviolabili della persona. Sul punto illuminante

la più recente giurisprudenza della Corte di legittimità: Cass. Civ. n. 8827 e n. 8828; Cass. Sez. un. 11

novembre n. 2008/26972.

228 Si potrebbe utilizzare il criterio della vicinitas, non solo come riconoscimento della

legittimazione dei singoli che agiscano a tutela del bene ambiente ma anche quale criterio che evidenzi la

stretta correlazione tra soggetto e bene di cui si lamenti la lesione, in modo da distinguere pretese serie da

quelle prive di fondamento. Sul criterio della vicinitas si v. Cons. Stato Sez. V, 31-03-2011, n. 1979.

229 P. RESCIGNO, Introduzione al codice civile, cit., p. 159 s. l’autore sottolinea che “oggetto di

tutela non è solamente il diritto soggettivo ma ogni interesse socialmente apprezzabile”. Nel fare ciò

richiama, tra le più pregnanti novità in tema di fatto illecito, la disciplina del danno ambientale.

230 Sul danno ambiente come danno ingiusto si cfr. in particolare E. LECCESE, Danno all’ambiente

e danno alla persona, cit., p. 247 s. Il danno all’ambiente è danno ingiusto anche alla luce della recente

giurisprudenza della Corte europea dei diritti dell’uomo. La Corte di Strasburgo (Sentenza della Corte

Europea dei Diritti dell'Uomo del 10 gennaio 2012 – Ricorso n 30765/08 – Di Sarno e altri c. Italia) ha

ritenuto che il danno ambientale, provocato dal cattivo funzionamento del sistema di gestione dei rifiuti (e

denunciato da diciotto cittadini italiani, con ricorso proposto contro la Repubblica italiana per violazione

dei diritti garantiti dalla Convenzione, in particolare l’art. 8), sia tale da “colpire il loro benessere” e ha

dichiarato che vi è stata violazione dell’art. 8 della Convenzione, sotto il profilo materiale, con ciò

riconoscendo il lamentato danno morale che, tuttavia, è stato ritenuto sufficientemente riparato con la

constatazione della violazione. La Corte (par. 104) ha ricordato “che i gravi danni ambientali possono

incidere sul benessere delle persone e privarle del godimento del loro domicilio in modo da nuocere alla

loro vita privata e familiare”; in particolare, si afferma nella pronuncia: “i ricorrenti sono stati costretti a

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Ciò collide con la disciplina del codice dell’ambiente; infatti, da

un'attenta ermeneusi delle norme sul danno si può dedurre che l'obiettivo principale

perseguito dal legislatore è stato ottenere, in modo anche derogatorio alla normale

disciplina in tema di illecito civile, il ripristino della situazione originaria senza la

necessità di una specifica richiesta della parte in causa in quanto disposta ex officio231.

La ratio della disciplina mira alla ricomposizione dello stato dei luoghi

preesistenti all’eventus damni ponendo l’accento sul ruolo rieducativo più che sul fine

riparatorio che dovrebbe, al contrario e più giustamente, connotare tale disciplina.

La Corte di legittimità delle Sezioni Unite ha chiarito che la

giustificazione alla base di questo ordine di preferenza dei rimedi è rinvenibile nell'intento

di favorire una coincidenza tra i soggetti portatori degli interessi lesi dal degrado

ambientale ed i beneficiari del ripristino dello stato dei luoghi232, dimenticando però che

non sempre il risarcimento in forma specifica233 è sufficiente alla ricomposizione e

riparazione degli interessi in gioco potendo gli stessi essere diversi da quelli del semplice

ripristino del bene o dal pagamento di una somma idonea ad una messa in ripristino234.

La configurazione del danno non patrimoniale, alla stregua di lesione

di un interesse della personalità, pone l’accento su un piano diverso da quello del

vivere in un ambiente inquinato dai rifiuti abbandonati per le strade almeno dalla fine del 2007 al mese di

maggio 2008. La Corte ritiene che questa situazione abbia potuto portare ad un deterioramento della qualità

di vita degli interessati e, in particolare, nuocere al loro diritto al rispetto della vita privata e del domicilio.

Pertanto nel caso di specie è applicabile l'articolo 8 (...). La Corte ritiene che la presente causa verta non su

una ingerenza diretta nell'esercizio del diritto al rispetto della vita privata e del domicilio dei ricorrenti che

si sarebbe materializzata con un atto delle autorità pubbliche, ma sulla lamentata omissione di queste ultime

nell'adottare misure adeguate per assicurare il corretto funzionamento del servizio di raccolta, trattamento

e smaltimento dei rifiuti nel comune di Somma Vesuviana. La Corte ritiene quindi appropriato porsi sul

piano degli obblighi positivi derivanti dall'articolo 8 della Convenzione” ed afferma che “gravava sullo

Stato l'obbligo positivo di adottare delle misure ragionevoli ed idonee in grado di proteggere i diritti delle

persone interessate al rispetto della loro vita privata e del loro domicilio e, in genere, al godimento di un

ambiente sano e protetto”.

231 S. PATTI, La valutazione del danno ambientale, in BUSNELLI-PATTI, Danno e responsabilità

civile, Giappichelli, Torino, 2003, p. 100 ss.; S. MAZZAMUTO, Osservazioni sulla tutela reintegratoria

di cui all’art. 18 della legge n. 349 del 1986, in Riv. critica dir. priv., 1987, p. 699 s.; M. MORBIDELLI,

Il danno ambientale nell’art. 18 L. 349/86. Considerazioni introduttive, in Riv. critica dir. priv., 1987, p.

599 ss.; L. M. DELFINO, Ambiente e strumenti di tutela: la responsabilità per danno ambientale, in Resp.

civ. e prev., 2002, 873. 232 Sul punto interessante l’arresto della Cass. Civ. S.U. n. 440/1989. 233

Si cfr. C. CASTRONOVO, Il danno all’ambiente nel sistema della responsabilità civile, cit., p.

517 s, ID., Il risarcimento in forma specifica come risarcimento del danno, in Processo e tecniche di

attuazione dei diritti, a cura di S. Mazzamuto, Napoli 1989, p. 513 s.

234 Basti ricordare i disastri ambientali di Chernobyl (26 aprile 1986), di Seveso (10 luglio 1976) e,

più di recente, la catastrofe in Giappone.

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risarcimento in forma specifica, essendo il danno alla persona235 campo di elezione del

risarcimento per equivalente. Se al danno biologico236, che fa perno su criteri obiettivi,

come l’accertamento medico-legale, si può agevolmente affiancare il sistema tabellare237,

ciò non può dirsi per il danno morale soggettivo e per quello esistenziale, attinenti

entrambi a profili intrinseci della persona238. E’ chiaro dunque che l’accertamento è

opinabile basandosi prevalentemente, ai fini dell’an e del quantum, su presunzioni

legali239.

Data l’impossibilità del ripristino dello status quo ante del bene in

questione240, assume ruolo determinante la valutazione equitativa di cui agli artt. 1226 e

235

G. BONILINI, Il danno non patrimoniale, Milano, 1983, p. 29 ss.; ID., Il danno non

patrimoniale, in La responsabilità civile, V, diretta da G. Alpa e M. Bessone, in Giur. sist. dir. civ. e comm.,

fondata da W. Bigiavi, Torino, 1987, p. 388; L. BIGLIAZZI GERI, Interessi emergenti, tutela risarcitoria

e nozione di danno, in Riv. critica dir. priv., 1996, p. 54 s.; G. ALPA, Responsabilità civile e danno.

Lineamenti e questioni, Bologna, 1991, p. 463 ss.; C. SCOGNAMIGLIO, Il danno biologico: una categoria

italiana del danno alla persona, in Europa e dir. priv., 1998, p. 274 s.; V. SCALISI, Danno alla persona e

ingiustizia, cit., p. 147 s.

236 Si v. art. 313. del d. lgs. 152/2006 cit.

237 Si v. Cass. n. 8827/2003 in Corriere giur., 2003, p. 1017 ss., con nota di M. FRANZONI, Il

danno non patrimoniale, il danno morale: una svolta per il danno alla persona; in Danno e resp., 2003, p.

819 s., con note di F. D. BUSINELLI, Chiaroscuri d’estate. La Corte di Cassazione e il danno alla persona

e G. PONZANELLI, Ricomposizione dell’universo non patrimoniale: le scelte della Corte di Cassazione,

in Resp. civ. e prev., 2003, p. 675 s.; si v. anche Cass. n. 8828/2003, in Corr. giur., 2003, p. 1024 s.; in

Rass. dir. civ., 2005, p. 1104 s., con nota di G. CAIAFFA, L’art. 2059 c.c. profili riparatori (e risarcitori?)

del danno alla persona; in Danno e resp., 2003, p. 816 s, con nota di M. DI MARZIO, Il danno esistenziale

e le sentenze gemelle; in Giur. it , 2004, p. 29. Cfr. inoltre Corte Cost. n. 233/2003, in Danno e resp., 2003,

p. 939 s. con note di M. BONA, Il danno esistenziale bussa alla porta e la Corte Costituzionale apre (verso

il “nuovo” art. 2059); P. PERLINGIERI, L’art. 2059 c.c. uno e bino: una interpretazione che non convince,

in Corriere. giur., 2003, p. 1028 s.

238 Si v. Cass. civ. sez. III n. 14402/2011 che afferma la necessaria integralità del risarcimento del

danno esistenziale che non può essere ridotto, neppure indirettamente ad una frazione del danno biologico,

ma deve essere valutato equitativamente in relazione al caso concreto, in quanto motiva la S.C., occorre

verificare quali aspetti relazionali siano stati presi in considerazione nel caso sottoposto al vaglio del

giudice.

239 Cfr. Cass. n. 6572/2006 che ha affermato che il G.L. può far ricorso in via esclusiva alla

presunzioni “purché, secondo le regole di cui all'art. 2727 c.c. venga offerta una serie concatenata di fatti

noti, ossia di tutti gli elementi che puntualmente e nella fattispecie concreta (e non in astratto) descrivano:

durata, gravità, conoscibilità all'interno ed all'esterno del luogo di lavoro della operata dequalificazione,

frustrazione di (precisate e ragionevoli) aspettative di progressione professionale, eventuali reazioni poste

in essere nei confronti del datore comprovanti la avvenuta lesione dell'interesse relazionale, gli effetti

negativi dispiegati nella abitudini di vita del soggetto; da tutte queste circostanze, il cui artificioso

isolamento si risolverebbe in una lacuna del procedimento logico (tra le tante Cass. n. 13819 del 18

settembre 2003), complessivamente considerate attraverso un prudente apprezzamento, si può

coerentemente risalire al fatto ignoto, ossia all'esistenza del danno, facendo ricorso, ex art. 115 c.p.c., a

quelle nozioni generali derivanti dall'esperienza, delle quali ci si serve nel ragionamento presuntivo e nella

valutazione delle prove”.

240 In particolare si v. Cass civ. sez. III n. 16448/2009 ove si afferma che l’unica forma di

liquidazione, per ogni danno privo delle caratteristiche della patrimonialità, è quella equitativa. Una precisa

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2056 comma secondo, c.c.241, sorretta dagli elementi di esperienza e coscienza sociale, di

cui il giudice è l’interprete, oltre che su prove presuntive o indiziarie a fondamento del

pregiudizio subito242.

Per eludere il rischio di un meccanismo di tipo quasi indennitario243 che

allarghi in modo tendenzioso l’area del danno risarcibile244, si dovrà partire

dall’interesse245 quale elemento costituzionale imprescindibile in ogni situazione posta al

vaglio dell’interprete e dal quale si potrà poi procedere, secondo le coordinate qui

tratteggiate, per distinguere richieste futili da quelle meritevoli.

quantificazione pecuniaria è solo quando esistano dei parametri normativi fissi di commutazione, in difetto

degli stessi non può mai essere provato il suo preciso ammontare fermo restando il dovere del giudice di

dar conto delle circostanze di fatto e di diritto da lui apprezzate nel compimento della valutazione equitativa

e del percorso logico giuridico che lo ha condotto a quella soluzione.

241 Sulla valutazione equitativa si v. C. CASTRONOVO, Il danno alla persona tra essere e avere,

in Danno e resp., 2003, p. 237 s.; R. SCOGNAMIGLIO, Il danno morale, in Riv. dir. civ., 1957, p. 597 s.;

G. PONZANELLI, Le tre voci di danno non patrimoniale: problemi e prospettive, in Danno e resp, 2004.

242 Sul punto si v. Corte dei Conti, Sezioni riunite, n. 10/2010.

243 G. PONZANELLI, Il “nuovo” art. 2059, in G. Ponzanelli (a cura di), il “nuovo” danno non

patrimoniale, Cedam, Padova, 2004, p. 66 s.

244 Si v. Cass. n. 3284/2008, in Danno e resp., 2008, p. 445 s. Nel caso in questione la pretesa

risarcitoria avanzata era stata avanzata in ordine alla collocazione di un lampione per l’illuminazione

pubblica, posizionato ad una distanza tale da consentire a eventuali malintenzionati di accedere

all’appartamento. La vicenda giunta alla Suprema Corte è stata l’occasione per affermare che stress

psicologico e timore vengono in gioco solo quando siano conseguenza di un interesse costituzionalmente

protetto, il quale va previamente individuato in quanto “né la serenità né la sicurezza costituiscono diritti

fondamentali di rango costituzionale inerenti alla persona”.

245 Cfr. in tema di disastro ambientale, Cass. n. 11059/2009 nella quale si fa riferimento all’interesse

per distinguere posizioni tutelabili da quelle che invece non risultano pregiudicate. In particolare la Corte

afferma che è ammissibile il risarcimento del danno non patrimoniale, derivante dal reato di disastro

ambientale, a coloro che si trovano con stabilità in prossimità del luogo in cui si è verificato l’evento e che

siano stati sottoposti, in quanto soggetti a rischio, a ripetuti controlli sanitari sia nell’immediatezza

dell’evento sia successivamente per parecchi anni.

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SEÇÃO DE DOUTRINA: Jurisprudência Comentada

AGRG NO RESP 827.143/DF: PRECEDENTE OU DECISÃO JUDICIAL?

Marília Pedroso Xavier Doutoranda em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São

Paulo (USP). Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Professora das Faculdades Integradas

do Brasil e do Centro Universitário Curitiba. Advogada.

Dr. William Soares Pugliese Doutorando em Direitos Humanos e Democracia pelo Programa de Pós-Graduação

em Direito da Universidade Federal do Paraná. Mestre em Direito das Relações Sociais pelo

PPGD/UFPR. Advogado.

Não se pode trazer, apenas

por força de interpretação literal da lei, a

conclusão de que, com a morte do segurado,

toda a situação de fato se alterou de um dia

para o outro, com vistas a igualar o percentual

de recebimento de pensão, sob pena de se

retirar de quem necessita do percentual maior,

para atribuir mais a quem antes não

necessitava de tanto. (TRF2, AC

20025101503923-2/RJ, Rel. Juiz Federal Abel

Gomes, DJU 08/08/2005)

Resumo: A partir da análise do acórdão proferido no Agravo Regimental no Recurso

Especial n. 827.143/DF, que aplicou o texto literal do art. 218, §1º, da Lei 8.112/1990,

aos casos em que há concorrência entre dois ou mais beneficiários de pensão por morte,

o presente artigo procura questionar a possibilidade de se considerar como precedente

uma decisão judicial que deliberadamente deixa de considerar os argumentos levantados

pelas partes. Para tanto, argumenta-se que a definição de um precedente depende dos

requisitos da potencialidade da decisão firmar-se como paradigma e do enfrentamento de

todos os argumentos relacionados ao caso pelo tribunal. Ao final, observa-se que o

tratamento de uma decisão com mero potencial de aplicação como precedente pode ser

extremamente prejudicial ao ordenamento jurídico.

Palavras-chave: precedente; decisão judicial; fundamentação.

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Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 210

Abstract: From the analysis of the judgment on the Special Appeal no. 827.143/DF,

which applied the literal text of art. 218, Paragraph 1, of Statute no. 8112/1990, to cases

where there is a concurrence between two or more beneficiaries to death pension, this

article seeks to question the possibility to consider as a precedent the judicial decision

that deliberately fails to consider the arguments raised by the parties. For this, it is argued

that the definition of a precedent depends on the requirements of the potentiality of the

decision to establish itself as a paradigm and the confrontation of all arguments related to

the case by the court. At the end, it is observed that the treatment of a decision with mere

potential of application as a precedent can be extremely harmful to the legal system.

Keywords: precedent; judicial decision; reasoning.

Sumário: Introdução – 1. Breve exposição do REsp 827.143/DF – 2. Ausência de respeito

à segurança jurídica – 3. Respeito ao princípio da autonomia privada – 4. Respeito ao

princípio da boa-fé e vedação do venire contra factum proprium – 5. Enriquecimento sem

causa – 6. Observância do princípio da distributividade na prestação – 7. Conclusão.

Introdução

Luiz Guilherme Marinoni afirma que precedente não é sinônimo de

decisão judicial.1 Para o autor, fundado na melhor doutrina internacional, só há sentido

falar em precedentes quando se observa que uma decisão é dotada de determinadas

características, “basicamente a potencialidade de se firmar como paradigma para a

orientação dos jurisdicionados e dos magistrados”.2 Sem esta pretensão de universalidade,

tem-se uma simples decisão judicial. Mas apenas isso não basta: para se ter um verdadeiro

precedente “é preciso que a decisão enfrente todos os principais argumentos relacionados

à questão de direito posta na moldura do caso concreto”,3 deste modo conferindo

materialidade ao direito legislado.4

Ainda, convém mencionar que o precedente pode ser formar a partir de

um conjunto de decisões, a que se dá o nome de jurisprudência. É de se notar, porém, que

1 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010,

p. 215.

2 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010,

p. 215.

3 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010,

p. 216.

4 PUGLIESE, William Soares. Teoria dos Precedentes e Interpretação Legislativa. Dissertação

(Mestrado). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2011, p. 80 e ss.

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a jurisprudência pode ou não formar um precedente, pois para Marinoni esta definição

depende dos requisitos da pretensão de universalidade e da completude do julgado ao

analisar os argumentos pertinentes.

Em síntese, “é possível dizer que o precedente é a primeira decisão que

elabora a tese jurídica ou é a decisão que definitivamente a delineia, deixando-a

cristalina”.5 Para tanto, a decisão precisa ser contundente ao acolher e rejeitar argumentos,

bem como se mostrar adequada para a orientação dos demais juízes e cidadãos.

Deve-se ressaltar, porém, que os requisitos estabelecidos por Marinoni

estão em planos distintos, sob uma ótica hartiana: a qualidade da decisão de acolher e

rejeitar argumentos de forma exauriente encontra-se na dimensão interna, ou seja, está

relacionada à possibilidade de completude e inteligibilidade do discurso jurídico.6

Por outro lado, o requisito da referida potencialidade de se firmar como

um paradigma de orientação está relacionado à dimensão externa, pois sua constatação

depende mais do tribunal que proferiu a decisão e de uma constatação de eficácia social

do que, propriamente, das qualidades da decisão judicial. Em outras palavras, esta

característica, quando vista de modo isolado, significa que pode se tornar um precedente

qualquer decisão, desde que proferida por um tribunal de alta hierarquia e de sua aplicação

posterior pelos demais magistrados.

É justamente esta a hipótese que se pretende apresentar e discutir no

presente artigo: como se classifica e quais são os efeitos de uma decisão

argumentativamente pobre mas com potencial de generalidade? Ou, de modo ainda mais

objetivo, como tratar uma decisão do Superior Tribunal de Justiça que não apreciou todos

os argumentos necessários para concluir a análise da questão, mas ainda assim passa a ser

aplicada pelos demais magistrados e chamada de “precedente”?

Infelizmente, esta hipótese não se verifica apenas na teoria, como se

observa no seguinte julgado:

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL.

ADMINISTRATIVO. PENSÃO VITALÍCIA. SERVIDOR

PÚBLICO. MAIS DE UM BENEFICIÁRIO HABILITADO.

5 MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2010,

p. 216.

6 Ver, neste sentido, HART, H. L. A. The concept of Law. 3ª Ed. Oxford: Oxford University Press,

2012; SHAPIRO, Scott J. What Is the Internal Point of View? 75 Fordham L. Rev. 1157, 2006.

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DIVISÃO EM COTAS-PARTES IGUAIS. ART. 218, § 1º, DA LEI Nº

8.112/90.

Nos termos dos arts. 217 e 218, § 1º, ambos da Lei nº 8.112/90, havendo

mais de um beneficiário habilitado à percepção do benefício de pensão

por morte de servidor público, o rateio deste será feito em cotas-partes

iguais.

Agravo regimental desprovido.7

A decisão acima é responsável por um fenômeno pouco conhecido,

inesperado e temerário que pode ser assim sintetizado: após o falecimento do servidor

público, todos os beneficiários da pensão por morte do de cujus dividem o benefício em

partes iguais, sem consideração dos valores percebidos antes da morte. Na prática, o

resultado é o de que um dos beneficiários pode ser “premiado” pela morte do servidor,

recebendo um aumento no valor da pensão, enquanto outro deverá suportar a dor de

perder o companheiro e grande parte da renda familiar.

O caso julgado não só decidiu uma situação concreta mas também

firmou o entendimento do STJ a respeito do tema, e por consequência determinou o rumo

a seguir de toda a jurisprudência. Apesar disso, de todos os argumentos e fundamentos

que mereciam ser considerados no caso, a corte utilizou apenas um: a literal aplicação de

dispositivo legal.

Tem-se aqui, lamentavelmente, uma decisão exatamente como a

concebida na hipótese acima firmada, ou seja, destituída de fundamentação mas com

amplo potencial para ser seguida. Aliás, é o que o próprio STJ vem praticando:

DIREITO ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. SERVIDOR

PÚBLICO FEDERAL. PENSÃO POR MORTE. MAIS DE UM

BENEFICIÁRIO HABILITADO. DIVISÃO EM PARTES IGUAIS.

ART. 218, § 1º, DA LEI 8.112/90. RECURSO CONHECIDO E

PROVIDO.

1. Nos termos dos arts. 217 e 218 da Lei 8.112/90, havendo a habilitação

de vários titulares à pensão vitalícia (no caso viúva e ex-esposa separada

judicialmente, com percepção de pensão alimentícia), o valor do

benefício deverá ser distribuído em partes iguais entre eles. Precedentes

do STJ. 2. Recurso especial conhecido e provido.8

ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO

7 BRASIL. STJ. AgRg no REsp 827.143/DF, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA,

julgado em 21/11/2006, DJ 05/02/2007, p. 358.

8 BRASIL. STJ. REsp 721.665/RJ, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA

TURMA, julgado em 08/05/2008, DJe 23/06/2008

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ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. PENSÃO POR

MORTE DE MAGISTRADO. APLICAÇÃO ANALÓGICA DA LEI

N.º 8.112/90. BENEFICIÁRIAS LEGALMENTE HABILITADAS.

RATEIO EM PARTES IGUAIS. DECISÃO MANTIDA POR SEUS

PRÓPRIOS FUNDAMENTOS.

1. A Agravante não trouxe argumento capaz de infirmar as razões

consideradas no julgado agravado, razão pela qual deve ser mantido por

seus próprios fundamentos.

2. Diante da ausência de previsão expressa na Lei Orgânica da

Magistratura Nacional acerca do presente tema, é cabível a aplicação

analógica do Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União

– Lei n.° 8.112/90.

3. Nos termos do art. 217 c.c.o 218, § 1.° da Lei n.º 8.112/90, a divisão

da pensão vitalícia entre as beneficiárias habilitadas deve ser

feita em partes iguais. Precedentes.

4. Agravo regimental desprovido. Petição n.º 204868/07 não

conhecida.9

Uma vez constatado que uma decisão com fundamentação deficitária

alcançou o status de precedente, como mencionado pelas decisões do próprio STJ, passa

a ser imprescindível sua análise.

Destaque-se, porém, que comentar uma decisão judicial não significa

um ataque pessoal ao relator ou ao tribunal responsável pelo julgamento. Pelo contrário,

este é um dos papeis da doutrina,10 que deve se manter atenta às decisões em busca do

constante aprimoramento do Direito.

Para cumprir seu objetivo, o artigo apresentará de forma breve as

circunstâncias que deram origem ao caso e às razões que fundamentam o acórdão. Em

seguida, serão considerados outros fundamentos ignorados pelo Tribunal e sumariamente

excluídos do âmbito de conhecimento da decisão. Ao final, será considerada a validade

da definição de precedente diante do caso em apreço com vistas à necessidade de

mudança de postura diante das decisões judiciais quando precedente não reflete

entendimento adequado.

9 BRASIL. STJ. AgRg no RMS 24.098/RJ, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA,

julgado em 26/06/2008, DJe 04/08/2008.

10 Sobre o tema ver: RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Dogmática e crítica da jurisprudência

(ou da vocação da doutrina em nosso tempo). Revista dos Tribunais. v. 891. São Paulo, 2010, p. 65-106;

SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2ª ed. São

Paulo: Malheiros, 2011, p. 33 e ss.

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1. Breve exposição do REsp 827.143/DF

No ano de 2006, foi distribuído à Quinta Turma do STJ o recurso

especial 827.143/DF, que teve como relator designado o Min. Felix Fischer. A recorrente

questionava a aplicação literal dos artigos 217 e 218, ambos da Lei 8.112/91, que

determina a divisão em partes iguais da pensão por morte do servidor público. No caso

concreto, a recorrente era a companheira do de cujus que viveu a seu lado até o último

dia; do outro lado, encontrava-se a ex-esposa, que percebia 13% (treze por cento) de seus

vencimentos em vida, percentual definido por decisão judicial.

Monocraticamente, o relator considerou apenas que a ex-esposa do de

cujus recebia pensão alimentícia por conta do divórcio e que, por consequencia, era titular

da pensão vitalícia juntamente com a companheira do servidor falecido. Por conta disso,

aplicou a literalidade da lei ("ocorrendo habilitação de vários titulares à pensão vitalícia,

o seu valor será distribuído em partes iguais entre os beneficiários habilitados") e decidiu

que a pensão fosse rateada entre as duas beneficiárias, companheira e ex-esposa.

Provocado por agravo regimental a levar o caso para o colegiado, o

Ministro relator apresentou seu voto, fundamentalmente idêntico à decisão monocrática

e com ele votaram os demais ministros. Note-se, portanto, que não houve qualquer

dissidência no julgamento.

Em uma última tentativa, a recorrente opôs embargos de declaração

questionando que o acórdão "teria dado tratamento igual a duas beneficiárias de pensão

que se encontram em situações jurídicas distintas relativamente ao de cujus". O que a

recorrente pretendia, aqui, era demonstrar que uma das pensionistas teria uma evidente

diminuição de seu padrão de vida enquanto a outra receberia um aumento da pensão e

que estas duas consequências teriam como origem a morte de um indivíduo.

Ao julgar os embargos de declaração, os argumentos do recurso foram

novamente afastados e não apreciados, sob o exclusivo fundamento de que a legislação

aplicável à espécie regula o tema de forma cogente e impõe a divisão da pensão em partes

iguais.

Esta decisão, que aplicou friamente o texto da lei sem considerar os

argumentos da parte recorrente e sem observar os efeitos produzidos pelo entendimento

tomado, tornou-se o precedente firmado pelo STJ a respeito da matéria. Neste sentido,

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passou a ser amplamente aplicado pelos tribunais brasileiros que reduziram a pensão de

uns e ampliaram a de outros, com fundamento na morte de um servidor público.

O caso narrado suscita ao menos duas questões. A primeira diz respeito

aos riscos de se firmar um precedente sem ampla discussão das questões em juízo. A

segunda volta-se, justamente, aos fundamentos não considerados pela corte: segurança

jurídica, autonomia privada, o enriquecimento a partir da morte de uma pessoa, dentre

outros. Os itens seguintes apresentarão tais argumentos com a intenção de demonstrar que

o caso em análise tem uma dimensão muito mais ampla e que a ele não é adequado a

simples aplicação do texto legal.

Ao final, retorna-se à primeira pergunta, se os precedentes firmados

sem discussão aprofundada podem ser considerados pelos tribunais e se vinculam os

demais juízes e o jurisdicionado.

2. Ausência de respeito à segurança jurídica

Não foi apenas o julgado, mas é possível afirmar que o próprio artigo

218, §1º da Lei 8.112/1990 desrespeita a garantia de constitucional da segurança jurídica,

especialmente nos planos da coisa julgada e do ato jurídico perfeito. Neste sentido, a

exigência literal da norma não pode prevalecer diante das decisões proferidas e transitadas

em julgado. Afinal, as decisões dos juízos de família costumam são mais acuradas do que

a previsão geral da Lei 8.112/90, uma vez que para definir o valor dos alimentos leva-se

em consideração as necessidades e possibilidades dos envolvidos.

A legislação previdenciária, ao definir um único critério para a divisão

da pensão por morte, deixa de observar que o caso pode ter sido previamente analisado

pelo Judiciário e ter uma decisão coerente e adequada regulando-o.

Vale destacar, aqui, que a no mesmo período que o precedente do STJ

foi firmado haviam outros entendimentos a respeito da matéria. Dentre as decisões então

proferidas, destaca-se a seguinte:

ADMINISTRATIVO. RATEIO DE PENSÃO POR MORTE ENTRE

A VIÚVA E EX-ESPOSA. PENSÃO ALIMENTÍCIA DEVIDA À

EX-ESPOSA FIXADA POR SENTENÇA DO JUÍZO DE FAMÍLIA.

RESPEITO À COISA JULGADA. INTELIGÊNCIA DOS ART. § 1º

ART. 128 DA LEI 8.112/90 e § 2º ART. 76 DA LEI 8.213/91.

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Recurso de apelação interposto para reformar a sentença que manteve

a divisão igualitária de pensão por morte de servidor entre a viúva e a

ex-esposa. A interpretação da norma deve ser feita no sentido de

adequá-la à coisa julgada, expressa na sentença proferida pelo Juízo de

Família, que fixou os alimentos devidos à ex-esposa em observância às

necessidades da mesma. Reforma da sentença para que o rateio respeite

os alimentos fixados em ação própria, devendo a viúva receber a

diferença. Recurso parcialmente provido.”11.

Além dos casos transitados em julgado, também é importante

considerar que após a Lei 11.441/2007, os divórcios de casais sem filhos menores de

idade podem ser realizados por escritura pública, na qual pode haver estipulação de

pensão alimentícia. O divórcio direto assinado pelas partes é um caso de ato jurídico

perfeito, assim definido o ato realizado e acabado de acordo com a lei vigente ao tempo

em que se efetuou. Se este ato seguiu os requisitos formais para gerar a plenitude de seus

efeitos, ele se torna perfeito. A este respeito, vale destacar os requisitos legais exigidos

pelo art. 1.124-A, do Código de Processo Civil, incluído pela Lei 11.441/2007:

Art. 1.124-A. A separação consensual e o divórcio consensual, não

havendo filhos menores ou incapazes do casal e observados os

requisitos legais quanto aos prazos, poderão ser realizados por escritura

pública, da qual constarão as disposições relativas à descrição e à

partilha dos bens comuns e à pensão alimentícia e, ainda, ao acordo

quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à

manutenção do nome adotado quando se deu o casamento.

§ 1o A escritura não depende de homologação judicial e constitui título

hábil para o registro civil e o registro de imóveis.

Por outro lado, a Lei 8.112/90 considera todo cônjuge que percebe

alimentos como beneficiário vitalício. Independentemente da origem – se por decisão

judicial ou por escritura –, a sorte dos alimentandos também é alterada pelo falecimento

do servidor público, sendo sempre divididas em partes iguais. Portanto, pelo

entendimento do STJ, nem a coisa julgada nem o ato jurídico perfeito sobrevivem diante

da conversão da pensão alimentícia em pensão por morte.

Não por acaso, é razoável sustentar que a interpretação da norma

prevista no art. 218, §1º, da Lei 8.112/90 poderia ser interpretada à luz da coisa julgada e

do ato jurídico perfeito, de modo que a divisão em partes iguais fosse aplicada apenas na

11

BRASIL. TRF da Segunda Região; Apelação Cível – Processo n. 1999.51.01.059876-0; Oitava

Turma Especializada; Relatora Juíza Maria Alice Paim Lyard; 26/09/2006.

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hipótese de não haver previsão anterior a respeito da divisão das quotas da pensão. Nos

demais casos, por força do princípio da gravitação jurídica, a pensão por morte

(assessória) segue a sorte da pensão alimentícia (principal).

3. Respeito ao princípio da autonomia privada

Da mesma forma que a decisão em comento não respeitou a exigência

constitucional de preservação da segurança jurídica, a aplicação irrazoada do art. 218,

§1º, da Lei 8.112/1990, também viola a autonomia privada. Entendida como o poder que

os particulares têm de regular, pelo exercício de sua própria vontade, as relações de que

participam12, esta garantia parte do pressuposto que as normas jurídicas de natureza

patrimonial são disponíveis.

Desta forma, na hipótese em que as partes estipulam consensualmente,

mediante acordo judicial ou extrajudicial, os valores da pensão alimentícia, não cabe à

legislação previdenciária impor uma modificação na relação jurídica previamente

consolidada. Também, se o quantum fixado pelo magistrado não for impugnado, parte-se

da premissa que houve concordância de ambas as partes ou a conformação com o

resultado da demanda.

Destaque-se, ainda, que a manutenção da divisão dos valores da pensão

nos moldes fixados ainda em vida não importa em qualquer prejuízo para os cofres

públicos. Trata-se, simplesmente, de uma revisão da interpretação da legislação,

beneficiando a parte que mais necessita com um valor proporcionalmente maior.

4. Respeito ao princípio da boa-fé e vedação do venire contra factum proprium

Tem-se como um princípio geral do Direito Civil, mais especificamente

do Direito Obrigacional e da Boa-fé no Direito Privado, a regra de que a ninguém é dado

agir contra um fato previamente praticado – nemo potest venire contra factum proprium13.

12

AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 347.

13 Nesse sentido, ver SCHREIBER, Anderson. A proibição de comportamento contraditório: tutela

da confiança e venire contra factum proprium. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

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Quer isto dizer que na medida em que a parte eventualmente concorda

com um determinado pensionamento quando da assinatura do divórcio, não tem o direito

de pleitear sua revisão simplesmente porque a parte alimentante faleceu.

Sabe-se que a matéria de alimentos admite revisão a qualquer tempo.

No entanto, essa revisão deve ser fundamentada em uma mudança de estado posterior ao

momento em que o pensionamento foi fixado, caso contrário, incide sobre o caso a

proteção da coisa julgada ou do ato jurídico perfeito.

Se algum fato tivesse prejudicado a situação econômica de uma das

partes, caberia ajuizar uma ação de revisão de alimentos, medida processual adequada

para rever esse valor. Sendo assim, não se observa qualquer fundamento para que o valor

seja dividido entre dois pensionistas de forma absolutamente igual.

5. Enriquecimento sem causa

De acordo com o art. 884, do Código Civil, “[a]quele que, sem justa

causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido,

feita a atualização dos valores monetários”. Trata-se da definição de enriquecimento sem

causa.

No presente caso, deve ser problematizado o fato de que subitamente

haverá uma alteração radical no quantum da pensão alimentícia justamente no momento

de fragilidade de um parente próximo. Enquanto uma parte verá seus proventos reduzidos,

a outra perceberá considerável aumento injustificado. O fato descrito pode, assim,

configurar o enriquecimento sem causa.

Talvez o ponto mais sensível seja que a leitura literal do art. 218, §1º,

da Lei 8.112/1990 conduz ao seguinte resultado paradoxal: para uma das partes,

geralmente a que menos tinha vínculo, a morte do servidor terá natureza premial.

O que deve pesar para o órgão previdenciário, ao analisar a divisão da

pensão, são os princípios norteadores da família e da dignidade da pessoa humana. Desta

forma, a divisão das cotas de pensão deve ser realizada sem conferir a nenhum dos

beneficiários qualquer tipo de vantagem exagerada.

Neste sentido, apresenta-se outra decisão que apreciou caso semelhante

em que acertadamente se refutou a interpretação literal do art. 218, §1º, da Lei

8.112/1990:

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CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE

SEGURANÇA CONTRA ATO DO CONSELHO DE

ADMINISTRAÇÃO DO E. TRF 2A REGIÃO. PENSÃO POR

MORTE. RATEIO DE PENSÃO ESTATUTÁRIA DE JUIZ

FEDERAL. DIVISÃO ENTRE A EX-ESPOSA, VIÚVA E

COMPANHEIRA. AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO A DIREITO

LÍQUIDO E CERTO DAS IMPETRANTES.

1. Decisão do Conselho de Administração deste E. TRF da 2a Região

concedendo pensão vitalícia por morte de magistrado à ex-esposa e à

viúva, mantendo o percentual já auferido pelas Impetrantes a título de

alimentos, destinando o percentual restante à companheira que manteve

com o falecido entidade familiar até o seu óbito.

2. Ato administrativo que rende homenagem aos princípios

consagrados na Constituição Federal de proteção à família, mormente

considerando a realidade fática. Manutenção por seus próprios

fundamentos.

3. Interpretação funcional e teleológica do art. 218, § 1º da Lei nº

8.112/90, em consonância com os princípios norteadores da ordem

constitucional.

4. Ausência de violência a direito líquido e certo das Impetrantes, que

não tiveram qualquer alteração fática, no que tange à necessidade do

pensionamento, em razão do falecimento do instituidor do benefício.

5. Denegação da Ordem.14

Também merece destaque julgado do ano de 2005, portanto anterior ao

assim propalado “precedente” firmado pelo STJ, que reduz a pensão por morte para o

patamar que orientou o pagamento dos alimentos em vida. Além de constar na própria

epígrafe deste artigo, destaca-se o seguinte trecho:

O só fato de ser cônjuge não pode fazer com que se majore uma pensão

por ocasião da morte do segurado, além daquilo que necessitava o outro

cônjuge que antes vivia sob dependência econômica dele. Assim como

não será o fato de ser companheira, que acarretará a majoração do

percentual que recebia em vida, de alimentos incidentes na

aposentadoria do segurado, se era este o percentual que cobria a

necessidade econômica da referida companheira.15

14

BRASIL. TRF2, MS 20030201006967-4/RJ, Rel. Juiz Federal Paulo Barata, DJ 24/11/2006.

15 BRASIL. TRF2, AC 20025101503923-2/RJ, Rel. Juiz Federal Abel Gomes, DJU 08/08/2005.

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Igualmente nesta tônica, desde 1998 já se encontravaM

fundamentações semelhantes ao da decisão acima transcrita. Em caso levado a

julgamento naquele ano, o Poder Judiciário entendeu que não admite à divorciada ter sua

pensão majorada em razão do falecimento do instituidor, até porque não é viúva. Deveria

receber a mesma proporção que recebia, a título de pensão, quando ainda em vida o

alimentante 16.

Ora, causa estranheza que nenhuma dessas decisões tenham sido

mencionadas no julgado selecionado para comento. Ao contrário, o tom utilizado na

decisão monocrática do AgRg no REsp 827.143/DF é de obviedade na aplicação da letra

da lei.

6. Observância do princípio da distributividade na prestação

O princípio da distributividade, próprio do Direito Previdenciário,

refere-se à seleção das pessoas que deverão ser protegidas prioritariamente pela

Seguridade Social. A preocupação relacionada à distributividade é a de atender,

prioritariamente, aqueles indivíduos que estão em maior estado de necessidade.

Em consonância com o princípio da distributividade, o TRF da Quarta

Região já decidiu em sentido diverso do empregado pelo caso paradigma do STJ, embora

a legislação interpretada tenha sido a de pensão de militares:

ADMINISTRATIVO. MILITAR. PENSÃO. ORDEM DE

PRIORIDADE. RATEIO. EX-ESPOSA, VIÚVA E FILHA. LEI

3.765/60. A parcela deixada à viúva se sujeita a rateio, com a ex-esposa

pensionada ou companheira, eis que o direito de ambas origina-se da

relação conjugal. A cota-parte da pensão devida à ex-esposa deve

guardar proporção com os proventos que auferia quando o de

cujus ainda era vivo, em face de acordo realizado por ocasião do

divórcio. Consoante dispõe a legislação de regência, os filhos oriundos

de outro matrimônio, ou de outro leito, fazem jus à metade da pensão.

Portanto, a metade da filha não pode ser alcançada para fins de rateio

com a mãe.17

16

BRASIL. TRF4; Apelação Cível – 1996.0446149-4; Terceira Turma; Rel. Juíza Maria de Fátima

Freitas Labarrére; DJU: 25/11/1998.

17 BRASIL. TRF Quarta Região; Apelação Cível n. 2001.04.01.078846-7/RS; Terceira Turma;

Relatora Juíza Taís Schilling Ferraz, 30/02/2002.

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Desta forma, em conformidade com o princípio da distributividade e

por força do direito fundamental à igualdade, parece adequada a interpretação segundo a

qual o pensionamento do ex-cônjuge deve ser proporcional aos proventos que recebia

quando o de cujus era vivo.

No direito brasileiro, à luz do princípio da justiça distributiva, o

princípio da isonomia deve ser lido com vistas ao alcance de uma igualdade material que

leve em conta a situação fática, e não uma mera igualdade formal e matemática. É o que

considerou o TRF2, em decisão que desafiou o precedente do STJ:

DIREITO ADMINISTRATIVO – PENSÃO ESTATUTÁRIA –

DIVISÃO ENTRE VIÚVA E EX-ESPOSA DIVORCIADA – COTA-

PARTE CALCULADA DE ACORDO COM O PERCENTUAL

FIXADO JUDICIALMENTE NA AÇÃO DE ALIMENTOS.

I - Trata-se de ação na qual a autora, viúva, objetiva a majoração

do percentual de sua pensão vitalícia de 50% para 85%, tendo em vista

que a segunda ré, ex-esposa divorciada, era beneficiária da pensão

alimentícia de 15% dos vencimentos do falecido instituidor da pensão;

II - Tendo sido fixada pensão alimentícia por sentença judicial para a

ex-esposa, os parâmetros adotados naquela decisão devem ser

respeitados no cálculo da pensão vitalícia, de forma a garantir o sustento

da dependente dentro dos limites da obrigação do ex-marido à prestação

de alimentos. Tal se deduz da própria alínea “b”, do inciso I, do art.

217, da Lei 8.112/90, que indica a necessidade de se respeitar a decisão

judicial que estipulou alimentos a favor da ex-esposa. Precedentes

desta Corte;

III - Recursos e remessa a que se nega provimento.18

Como se vê, algumas decisões mais recentes indicam que o art. 218,

§1º, não deve ser interpretado de forma literal. Esta observação reacende a esperança de

que o Poder Judiciário tem condições de examinar criticamente a sua própria produção,

sempre em busca do aprimoramento das interpretações e do esgotamento dos argumentos

das partes.

7. Conclusão

18

BRASIL. TRF2. AC 200651020001587. Sexta Turma Especializada. Rel. Juíza Carmen Silvia

Lima De Arruda. J. 08/09/2010.

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Após a detida análise do caso selecionado para análise, é chegada a hora

de se retornar à lição de Marinoni: precedente é a decisão judicial com (i) potencialidade

de se firmar como paradigma para a orientação dos jurisdicionados e dos magistrados e

que (ii) enfrente todos os principais argumentos relacionados à questão de direito posta

na moldura do caso concreto. A hipótese suscitada para desenvolvimento do trabalho era

a de investigar a natureza do ato judicial dotado apenas da primeira característica. Seria

a decisão dotada apenas da pretensão de universalidade um precedente?

É pouco mais do que evidente que não. Caso um ato dotado de simples

autoridade e generalidade tivesse, por si só, o condão de ser integrado ao ordenamento

jurídico, qualquer ato normativo aprovado pelo Poder Legislativo e regularmente

sancionado pelo Executivo seria válido, inclusive uma lei que autorizasse a tortura, outra

que regulasse atos de racismo e uma terceira que conferisse a onze pessoas poder absoluto

sobre o Estado. Pior: as três leis cogitadas poderiam, neste caso, ter validade e eficácia

pelo simples fato de existirem, sem qualquer fundamentação ou justificativa.

O mesmo raciocínio se aplica à formação dos precedentes. Não é

suficiente que uma decisão judicial tenha sido proferida por um dos tribunais superiores.

Para que ela alcance o patamar de um verdadeiro precedente, o tribunal deve examinar

exaustivamente os argumentos, considerar todas as teses levantadas e todos os possíveis

resultados do julgamento. Não basta, assim, que repita o texto legal.

Afirmar o contrário e chamar de precedente uma decisão destituída de

fundamentação é mais do que se afastar do conceito. Ao decidir de modo sintético, como

fez o STJ, a decisão se mostra em descompasso com os ditames da legislação processual

(seja do Código de 1973, em seu artigo 458, II, bem como do Código vindouro) como

também à Constituição da República de 1988, especialmente o art. 93, IX.

Na hipótese em que a fundamentação é insatisfatória, as decisões não

podem ser tratadas como precedentes. Insistir nesta tese é condenar o Estado brasileiro a

um ciclo de incertezas e à pobreza argumentativa.

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PARECER

CONTRATO DE DE SEGURO. SUICÍDIO DO SEGURADO. ART. 798,

CÓDIGO CIVIL. INTERPRETAÇÃO. DIRETRIZES E PRINCÍPIOS DO

CÓDIGO CIVIL. PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR.

Insurance contract. Suicide of insured. Art. 798, civil code. Interpretation.

Guidelines and principles of the civil code. Consumer protection.

Judith Martins-Costa Livre Docente e Doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP).

Lecionou entre 1992 e 2010 na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

(UFRGS), nos cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado, as disciplinas: Direito Civil (Parte Geral,

Obrigações e Contratos); Fundamentos Culturais do Direito Civil; Direito Comparado e História do

Direito. É atualmente Professora Colaboradora no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Medicina

da UFRGS e profere palestras em Universidades brasileiras e estrangeiras. Escreveu, entre outros, os

livros: A Boa-Fé no Direito Privado (1999); Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil Brasileiro (2002);

Comentários ao Novo Código Civil - Do Adimplemento das Obrigações (2005); Comentários ao Novo

Código Civil - Do Indimplemento das Obrigações (2009); Narração e Normatividade (org., 2012);

Modelos do Direito Privado (org., 2014). É Presidente do Comitê brasileiro da Association Internationale

des Sciences Juridiques e Vice-presidente do Instituto de Estudos Culturalistas (IEC).Também atua como

Árbitra e Parecerista em litígios civis e comerciais no Brasil e no Exterior.

Sumário: Consulta. II. Parecer. A) Do modelo jurídico do “seguro de pessoa” e da

hipótese do suicídio do segurado (i) Do Seguro como Contrato Comunitário. (ii) Do

suicídio e da questão de sua “voluntariedade”, ou não. B) Da regulação da matéria no

Código Civil de 2002. (i) Do art. 798: a diretriz da operabilidade e o critério objetivo

adotado no “Substitutivo Comparato” e acolhido no Anteprojeto e no Projeto de Código

Civil. (ii) Da interpretação do art. 798 do Código Civil em vista do sistema civil e

constitucional, e de seus princípios e valores. III. Das Conclusões sintéticas.

I. Consulta

O ilustre Colega, Doutor Moulin Vert, procurador da Seguradora

Pamplemousse, dá-me a honra de formular Consulta acerca da interpretação a ser

conferida ao texto do art. 798 do Código Civil de 2002, versando sobre o “prazo de

carência” para o recebimento do capital, pelo beneficiário, quando do suicídio do

segurado. A Consulta vem formulada nos seguintes termos:

"Senhora Professora,

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Na qualidade de procurador da Seguradora Pamplemousse, vimos

consultar V. Senhoria acerca da interpretação a ser conferida ao art. 798 do Código Civil

de 2002.

Nesse sentido, pediríamos a atenção de V. Senhoria em especial

para os seguintes tópicos:

a) A evolução legislativa do CC, tanto omissiva como

comissivamente, no que se refere ao pré-falado artigo 798 do CC, admite a conclusão de

presunção absoluta de suicídio premeditado no biênio pós-contratação ou recondução?

b) A recepção do Substitutivo de lei do Eminente Mestre Fábio Konder

Comparato, municiado da sua indiscutível exposição de motivos, e consagrada,

positivamente, na derradeira exposição de motivos do CC, da lavra do Eminente Mestre

Miguel Reale, admite, no que se refere ao artigo 798 do CC, a conclusão de presunção

absoluta de suicídio premeditado no biênio pós-contratação ou recondução?

c) A não-recepção do Esboço ou Anteprojeto do CC de 1965, no que

se refere ao artigo 798 do CC, prejudica a aceitação, para fins de norte da doutrina do

Eminente Mestre Caio Mario da Silva Pereira?

d) As súmulas 105 do STF (que inclusive despreza a carência,

reconhecida nos artigos 797 e 798 do CC) e 61 do STJ, amplamente conhecidas na

gestação do CC, permanecem efetivas no que se refere ao “fenômeno” do suicídio,

doravante e durante o hiato do artigo 798 do CC?

e) O artigo 798 do CC, cuidando do suicídio, sem qualquer indexação,

melhor, adjetivação (“voluntário ou involuntário”), em comparação com o Código

Beviláqua e com o Anteprojeto de 1965, admite a conclusão de presunção absoluta de

suicídio premeditado no biênio pós-contratação ou recondução?

f) A consolidação do CC, em especial do artigo 798 do CC, como

“produto” do poder Executivo e “verdade” do Poder Legislativo, permite a rediscussão

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da mens legis (não se falando da discricionariedade propiciada pelas cláusulas abertas),

em vertente hermenêutica, pelo Poder Judiciário?

g) A ruptura legislativa do CC de 2002, lançando idéia inédita na

discussão quanto ao suicídio (artigo 798 do CC), admite a manutenção/utilização do

mesmo universo/desfecho jurisprudencial de outrora, antes do seu nascimento?

h) A destinação da chamada “prova diabólica”, foi, no artigo 798 do

CC, o banimento ou o seu endereçamento ao beneficiário?

i) O entendimento de presunção relativa de suicídio premeditado, a

partir e com vistas ao puerpério estabelecido no artigo 798 do CC, atenderia aos “fins” da

lei, considerando a perpetuação do tormentoso ônus da carga dinâmica das provas?

Esses motes, resumidos, são alguns vetores, sem embargo de outros,

para o pleno exercício e fomento intelectual de V.Exa., preambularmente, apenas no que

se refere à decisão de enfrentamento, formal, da quaestio.

Acompanha esta: (i) cópia do substitutivo de lei do Eminente Mestre

Fábio Konder Comparato; (ii) cópia do acórdão proferido pelo TJRS; (iii) indicações

doutrinárias.

No mais, insistimos no agradecimento pela disponibilidade,

cordialidade e, sobretudo, sinceridade de V.Exa., a quem rendemos, independente do

parecer pretendido, as mais altas homenagens científicas, acadêmicas e profissionais.

No vosso aguardo.

Dr. Moulin Vert

Passo, em separado, a emitir o meu parecer.

De Porto Alegre para o Rio de Janeiro, em 25 de junho de 2008,

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II. Parecer

1. O questionamento proposto pelo ilustre Consulente exige a

apreciação preliminar do modelo jurídico do “seguro de pessoa”, em que se inclui a

hipótese de suicídio do segurado tal qual regulado no art. 1.440, parágrafo único, do

Código de 1916, origem da orientação sumulada indicativa da distinção entre “suicídio

voluntário” e “suicídio involuntário” (Parte A). Subsequentemente deverei determinar o

sentido e o alcance da regra do art. 798 do Código Civil de 2002 para o que se fará

necessário buscar as suas raízes, trazendo à baila os critérios para a sua adequada

interpretação (Parte B). Ultrapassados esses pontos poderei expressar, em modo

conclusivo, as razões de minha convicção, respondendo aos quesitos propostos

(Conclusão).

A) Do modelo jurídico do “seguro de pessoa” e da hipótese do suicídio do segurado

2. O contrato de seguro se insere entre os chamados “contratos

comunitários”, classificação que pretende por em evidência a sua base transindividual,

pois impensável seria o seguro na relação exclusivamente intersubjetiva (i). Dentre as

hipóteses de seguro de pessoa está a que contempla o suicídio do segurado, tema a que

subjaz à regulação legal uma perspectiva mais ampla, de ordem meta-jurídica (ii).

(i) O Seguro como Contrato Comunitário.

3. Muito embora apresente peculiaridades relativamente aos seguros de

danos, o seguro de pessoa não foge ao modelo geral do seguro como contrato tipicamente

comunitário. Isto significa dizer que, diferentemente dos contratos estruturados na

contraposição de interesses individuais, como a compra-e-venda, o contrato de seguro se

caracteriza pela transindividualidade ou comunitariedade do interesse (na acepção

jurídica deste termo) subjacente à concreta relação creditícia. Como sintetiza Ovídio

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Batista da Silva configura o seguro “um sistema de poupança, ou de economia coletiva,

impensável quando ajustado individualmente1”.

4. Todo e qualquer contrato constitui, nas conhecidas palavras de Enzo

Roppo2, a veste jurídica de determinada operação econômica. A dimensão

“exclusivamente” jurídica não é uma realidade autônoma, constituída apenas pelas letras

dos textos legais ou dos livros de doutrina, antes refletindo uma realidade exterior a si

própria, “uma realidade de interesses, de relações, de situações econômico-sociais,

relativamente aos quais cumpre, de diversas maneiras, uma função instrumental3”.

Assim sendo, falar em contrato significa, sempre, remeter “explícita ou implicitamente,

direta ou indiretamente, para a idéia de operação econômica4”.

4.1. A operação econômica que está na base dos diferentes tipos

contratuais é apreendida, no Direito, pela idéia de causa, ao sentido que dá a essa

expressão Emílio Betti5, isto é, determinada função econômico-social que o particulariza

frente aos demais tipos contratuais, refletindo determinado escopo prático típico que

governa a circulação de bens e a prestação dos serviços, conforme certos valores

ordenados pelo Direito. A sua causa é, nessa acepção, a “razão prática típica que lhe é

imanente (...) um interesse social objetivo e socialmente verificável” 6, ao qual o negócio

deve corresponder.

4.2. Assim sendo, para compreender a causa, ou função social típica do

contrato de seguro, é preciso, como pressuposto iniludível alcançar a idéia que lhe subjaz

orientando teleológicamente a sua função. Essa é, justamente, a idéia de relação jurídica

comunitária expressa pela técnica do mutualismo e revelada pela obrigação principal do

1BAPTISTA DA SILVA, Ovídio, Natureza Jurídica do Monte de Previdência, in Anais do II Fórum

de Direito do Seguro José Sollero Filho, Porto Alegre, novembro de 2001, p. 105.

2ROPPO, Enzo, O Contrato, tradução de COIMBRA, Ana, e GOMES, Januário, Coimbra,

Almendina, 1988.

3ROPPO, Enzo, O Contrato, tradução de COIMBRA, Ana, e GOMES, Januário, Coimbra,

Almendina, 1988, p. 7.

4ROPPO, Enzo, O Contrato, tradução de COIMBRA, Ana, e GOMES, Januário, Coimbra,

Almendina, 1988 p. 8.

5BETTI, Emilio, Teoria Geral do Negócio Jurídico, Tomo I, tradução de MIRANDA, Fernando,

Coimbra, Coimbra Editora, 1969, p. 333 e ss.

6BETTI, Emilio, Teoria Geral do Negócio Jurídico, Tomo I, tradução de MIRANDA, Fernando,

Coimbra, Coimbra Editora, 1969, p. 334.

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segurador, de garantir risco previamente determinado, mediante o pagamento de um

prêmio, como ora está no texto do art. 757 do Código Civil (“obrigação de garantia”).

5. A noção de comunidade subjaz ao contrato de seguro, em primeiro

lugar, porque este é um mecanismo de diluição de riscos e sempre que há um risco, seja

provocado por acidentes naturais, seja pela vida em sociedade, os homens - cuja

existência “n’est que une quête de securité 7” - esperam estar mais bem protegidos se

reagrupando.

5.1. Na impossibilidade de eliminar os riscos, busca-se, pelo seguro,

oferecer paliativos às suas conseqüências, mediante a diluição dos seus efeitos. E diluir

significa, como expressa Veronique Nicolás, “se regrouper pour constituer une

collectivité, repartir sur plusieurs ce que quelques uns ont subi”8.

5.2. Uma coletividade não é formada, todavia, pela mera soma de

individualidades, já tendo percebido a filosofia grega que o todo não é apenas a mera

soma das partes: no todo, há um plus que se agrega, e este é o interesse comum ao grupo

ou a coletividade de interessados. Esse interesse é inconfundível com cada interesse

isoladamente considerado. É justamente a existência de um interesse comum a todos os

membros que conduz à idéia de comunidade e é justamente esse o sentido do “interesse”

a ser considerado para a visualização do interesse contratual típico, qualificador do

seguro como tipo contratual. Interesse - ensina a etimologia - é o inter est, o quid que está

entre a pessoa (o credor) e o bem, tendo em vista a necessidade ou a utilidade que pode

ser proporcionada por aquele bem9.

5.3. Esse modelo contratual não se iguala àqueles outros baseados na

contraposição de interesses individuais. Por isso mesmo, é preciso – principalmente no

plano hermenêutico - compreender o contrato de seguro como um arranjo jurídico-

econômico distinto dos vínculos bilaterais que unem indivíduos isolados e cujos

interesses são contrapostos. É que, no contrato de seguro a idéia de comunidade reside

7NICOLAS, Véronique, Essai d’une nouvelle analyse du contrat d’assurance, Paris, LGDJ, 1996,

p. 11. Em tradução livre : « nada mais é do que a busca de segurança”.

8NICOLAS, Véronique, op. cit., p. 11. Em tradução livre: « reagrupar-se para constituir uma

coletividade, repartir sobre muitos aquilo que muitos ou alguns sofreram”.

9 “Assente na necessidade ou carência de que aquele [bem] é portador”, afirma João Calvão,

lembrando ainda as palavras de Gropalli para quem interesse é “a exigência de um bem que se considera

útil, isto é, apto a satisfazer uma necessidade”. (CALVAO DA SILVA, João. Cumprimento e Sanção

Pecuniária Compulsória. 4ª ed. Coimbra, Almedina, 2002, p. 61 e nota 121).

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em sua própria natureza, consistindo, como diz Calmon de Passos, “uma técnica a serviço

do interesse geral”10 estruturada sobre a base econômica comunitária apreendida pela

técnica jurídica por meio do mecanismo do mutualismo.

6. O mutualismo é um mecanismo econômico e contábil no qual

assentada toda a técnica do seguro como operação jurídico-econômica. Partindo-se do

pressuposto de que é mais fácil suportar coletivamente as conseqüências danosas dos

riscos individuais do que suportá-las sozinho, distribui-se, "pulveriza-se” ou se opera a

dispersão do custo, para o efeito de diluir entre todos os participantes da operação o

prejuízo patrimonial do dano, o que é feito por meio do mutualismo. Esse mecanismo,

afirma STiglitz11 e explicitam Tzirulnik e Octaviani consiste na “linha mestra da

estruturação jurídica da operação securitária”12. Para esses autores, com efeito, “a

função social do seguro revela-se de forma cristalina: garantir, com o auxílio de muitos,

que a desorganização que atingiu a uns poucos possa ser superada. Satisfaz-se o interesse

de todo o ´sistema´ em questão, uma vez que as relações podem continuar a se

desenvolver, de tal forma que praticamente não sejam sentidas as conseqüências do

ocorrido”13.

6.1. Direcionado pelos valores jurídicos do interesse comum e da

função social do contrato, o mutualismo é estruturado consoante modelos matemáticos

que determinam preços, estabelecendo equilíbrio entre as receitas e despesas de um plano

de seguro por um período de cobertura determinado14 (“regimes financeiros”). Os

regimes financeiros constituem técnicas voltadas a repartir os custos entre os segurados e

patrocinadores dos planos de seguros15. Conforme se trate de seguro de danos ou de

pessoas será diversa a equação, havendo ainda distinções entre as espécies, pois no seguro

10

CALMON DE PASSOS, J. J, A atividade securitária e sua fronteira com os interesses

trasindividuais – responsabilidade da SUSEP e competência da Justiça Federal, RT 763, p. 97.

11STIGLITZ, Rubén S. Derecho de Seguros, T. I, Buenos Aires, Abeledo Perrot, 3ª edição

atualizada, 2001, p. 27.

12TZIRULNIK, Ernesto, e OCTAVIANI, Alessandro, Fraude contra o seguro, Revista dos Tribunais

v. 722, p. 12.

13TZIRULNIK, Ernesto, e OCTAVIANI, Alessandro, Fraude contra o seguro, Revista dos Tribunais

v 722, p. 12..

14 BERTOCHE FILHO, Adolpho et. al. Seguros de Pessoas: Vida individual, vida em grupo e

acidentes pessoais. Rio de Janeiro: Funenseg, 2004. p.30.

15 SOUZA, Antonio Lober Ferreira de. et. al. In Dicionário de Seguros. RJ: Funenseg, 2000, p. 98.

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Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 230

para o caso de morte (incluso aos seguros de pessoas) o risco é a morte do segurado,

sendo o prêmio estipulado de acordo com a taxa de mortalidade de pessoas com condições

normais de saúde16 que se baseia em uma “tábua de mortalidade” 17.

6.1.1. Essa é a equação que subjaz à obrigação de garantia que é a

obrigação principal (“dever principal de prestação”) tendo, como tal, papel estruturante

do contrato de seguro, definindo a sua configuração típica18 e correspondendo

diretamente ao direito de crédito atribuído ao credor (segurado ou beneficiário).

6.2. A obrigação de garantia, no seguro de pessoas, vincula o segurador

a “prestar capital, ou renda periódica, a partir de determinado momento, no caso de morte

do contraente, ou de outrem (satisfeitos os pressupostos especiais), ou no caso de duração

da vida” 19. Todo o equilíbrio do contrato (atingindo a comunidade segurada e não apenas

à relação bipolar segurado-seguradora) repousa sobre a equação do mutualismo, na

medida em que a garantia (constituinte da obrigação principal da seguradora) é

viabilizada pelo fundo de previdência constituído pela poupança coletiva da comunidade

segurada de cujo quantum “haverão de sair as indenizações devidas pelo sistema”20.

7. Do ponto de vista econômico, o mecanismo do mutualismo está

assentado naquilo que no léxico securitário denomina-se “surplus cooperativo”.

7.1. O sistema de Direito Privado requer dos privados – participantes

ativos das dinâmicas do mercado, e, como tal, para tal se valendo do instrumento jurídico

16

BERTOCHE FILHO, Adolpho et. al. Seguros de Pessoas: Vida individual, vida em grupo e

acidentes pessoais. Rio de Janeiro: Funenseg, 2004. p. 23.

17Assim entendida como o instrumento básico utilizado pelo atuário para medir a probabilidade

de morte. Conforme explica BERTOCHE, em sua forma mais elementar, a tábua de mortalidade é uma

tabela que registra – partindo de um grupo inicial de pessoas de mesma idade e sexo – o número daquelas

que vão atingindo, sucessivamente, as idades subseqüentes, até a extinção completa do grupo”.

BERTOCHE FILHO, Adolpho et. al. Seguros de Pessoas: Vida individual, vida em grupo e acidentes

pessoais. Rio de Janeiro: Funenseg, 2004, p. 27.

18 A obrigação principal constitui o núcleo, a “alma da relação obrigacional” (ALMEIDA COSTA,

Mário Júlio, Direito das Obrigações, 10ª edição, Coimbra, Almedina, 2006, p.p. 75-80), pois está voltada

a realizar os interesses do credor à prestação (“interesses de prestação”). No mesmo sentido CARNEIRO

DA FRADA, Manuel,Contrato e Deveres de Proteção, Coimbra, 1994, Separata do vol. XXXVIII do

Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, p. 37 e o meu: MARTINS-

COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil- Do Adimplemento das Obrigações. Tomo I. Rio de

Janeiro, Forense, 2ª edição, p. 45-51.

19 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado, Rio de Janeiro: Borsoi, 1964. v. 46, p. 3.

20BAPTISTA DA SILVA, Ovídio, Natureza Jurídica do Monte de Previdência, in Anais do II

Fórum de Direito do Seguro José Sollero Filho, Porto Alegre, novembro de 2001, pp. 105 e 106.

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denominado “contrato” – que levem em conta o resultado global da operação econômica,

e não apenas alguns dos seus aspectos parciais.

7.1.1. Como explicita Alberto Monti, trata-se de considerar o produto

do interesse conjunto das partes contratantes, ainda que em prejuízo de eventuais

vantagens imediatas (oportunistas) de caráter individual21. O surplus cooperativo explica,

portanto, a razão pela qual certas desvantagens (assim tidas se adotada exclusivamente a

ótica de um ou de alguns contratantes, individual e individualistamente considerada)

serão, na verdade - se considerarmos o conjunto de contratantes - vantagens. Uma

vantagem dada indevidamente a um só, ou a alguns, atingirá o surplus cooperativo,

transmutando-se em desvantagem à comunidade de interesses envolvidos na relação

securitária.

7.2. Bem por isso, o valor “cooperação” que embasa toda relação

contratual22, tem, na relação contratual securitária, uma valência transindividual. Em

outras palavras: aqui não se trata apenas da cooperação devida por um membro do

conjunto social no interesse típico de outro membro do conjunto social, mas, igualmente,

no interesse típico de um conjunto (o grupo segurado).

8. O mais relevante, para os fins do presente estudo é que esta acepção

da idéia de cooperação, vinculada à causa ou função econômico-social do seguro, terá

reflexos imediatos no plano da hermenêutica contratual, tanto na interpretação legal

quanto na contratual. A interpretação concretizadora postulada pela unanimidade da

doutrina contemporânea23 significa, justamente, a atenção, no momento aplicativo do

21

MONTI, Alberto. Buona Fede e Assicurazione. Milão, Giuffrè, 2002, p. 14.

22 LARENZ, Karl. Derecho de Obligaciones. Tradução espanhola de Jaime Santos Briz. Madrid:

EDERSA, 1958. Tomo I. p. 37-45. Acerca da relação obrigacional como um processo e como totalidade

veja-se, além de COUTO E SILVA, Clóvis. A Obrigação como Processo. . Rio de Janeiro: FGV, 2006;

ANTUNES VARELA, João de Matos. Das Obrigações em Geral. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1973. Vol.

I.; CALVÃO DA SILVA, João.Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória. Coimbra: Almedina, 4ª.

Edição, 2002, p.70-75; a crítica de MENEZES CORDEIRO, A. M. Direito das Obrigações. Lisboa:

Associação Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1980. v. 1; e ALMEIDA COSTA, Mário Júlio.

Direito das Obrigações. 10ª ed. Coimbra: Almedina, 2006. Permito-me ainda referir o meu: Comentários

ao Novo Código Civil - Do Adimplemento das Obrigações. Tomo I. Rio de Janeiro, Forense, 2ª edição, p.

27-60.

23 Exemplificativamente: KAUFMANN, Arthur e HASSEMER, Winifried (org.). Introdução à

Filosofia do Direito e à Teoria do Direito Contemporâneas. Gulbenkian, Lisboa, 2002, pp. 381-408;

CASTANHEIRA NEVES, Antonio. Metodologia Jurídica. Problemas Fundamentais. Coimbra Editora.

Coimbra,1993, p. 15; MULLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. Trad. fran. de Olivier

Jouanjan. Paris. PUF, 1993, p. 221 e ss;. VIOLA, F., e ZACCARIA, F. Diritto e Interpretazione –

Lineamenti di teoria ermeneutica del diritto. Roma: LATERZA, 1999, p. 428; ESSER, J. ESSER,

Precomprensione e scelta del metodo nel processo di individuazione del diritto. Trad. de: Vorverständnis

und Methodenwahl in der Rechtsfindung por Salvatore Patti e Giuseppe Zaccaria. Camerino : Edizioni

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Direito, aos dados de realidade normativa e fática envolvida no caso, evitando que o

intérprete utilize os conceitos jurídicos como meras “palavras encantadas”24, divorciadas

da realidade que ao Direito é dado regular e ordenar.

8.1. Para que possamos compreender os conceitos utilizados pelo

Código ao regular a hipótese de suicídio do segurado - assim adotando uma interpretação

concretizadora do art. 798 do Código Civil - é necessário desvendar os elementos da pré-

compreensão que, na vigência do Código de 1916 embrulhavam a hermenêutica das

regras legais atinentes ao contrato de seguro em uma verdadeira teia de considerações

meta e extra-jurídicas.

(ii) Do suicídio e da questão de sua “voluntariedade” ou não.

10. Segundo o filósofo e escritor Albert Camus “só há um problema

filosófico verdadeiramente sério: o suicídio”25. Tema filosófico por excelência – e assim

já discutido por Platão, no Fédon e nas Leis, justificado pelos estóicos, como Cécero e

Sêneca, escolhido por Hume, no séc. XVII e tornando o centro da filosofia existencialista

no séc. XX 26 - o suicídio interessa à religião, à antropologia, à sociologia, à literatura e à

psicologia, cada um desses campos dando respostas próprias a questão de “julgar se a

vida merece ou não ser vivida”27. Considerado paradoxalmente ato de coragem28 e de

Scientifiche Italiane, 1983, p. 4 e REALE, Miguel. A Teoria da Interpretação Segundo Tullio Ascarelli, in

Questões de Direito, Ed. Sugestões Literárias, São Paulo, 1981, p. 9 e também em Diretrizes de

Hermenêutica Contratual, in Questões de Direito Privado, São Paulo, Saraiva, 1997, pp. 1-19. Ainda

GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo:

Malheiros, 2002, p.p. 72-73. Permito-me ainda lembrar do meu:MARTINS-COSTA, Judith. O Método da

Concreção e a Interpretação dos Contratos: Primeiras Notas de Uma Leitura Suscitada Pelo Código Civil”.

In: SOTO COAGUILA, Carlos Alberto (org.). Tratado de la interpretación del Contrato en la América

Latina. 1. ed. Lima-Perú: Editora Jurídica Grijley, 2007, v.1. p. 683-719.

24A expressão “palavra encantada” está em COHEN, F. S. El método funcional en el Derecho.

Tradução espanhola de Genaro CARRIÒ. Abeledo-Perrot, Buenos Aires,1961, p. 55.

25 CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. São Paulo, Record,

2004, p. 17

26 Para uma síntese v. PAGENOTTO, Maria Lígia. Um Absurdo Razoável. Revista Filosofia, ano

1, n. 11, Ed. Escala, São Paulo, 2007, pp. 24 et seq.

27 CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. São Paulo, Record,

2004, p. 17

28 Catão, o Jovem (95-46 a. C) cometeu suicídio em nome da justiça e da liberdade para se opor ao

Império Romano, assim como no séc. XX os monges vietnamitas se imolavam em protesto contra a

destruição do seu povo. Na Renascença Michel de Montaigne defendia que “na pior hipótese, a morte pode

por termo, quando bem nos pareça e cortar as amarras a todos os outros inconvenientes” (Filosofar é

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covardia29; glorificado como o resultado de uma mente sábia30 (então sendo tido,

inclusive, como a “positivação máxima da vontade humana", como na frase atribuída a

Schopenhauer), ou repudiado como produto de grave perturbação mental, sendo a “causa

mais comum de emergências psiquiátricas”31; reputado pelos cristãos ato contra o

mandamento divino32 e pela cultura oriental como um modo honroso de escapar a

situações vergonhosas ou desesperadoras (como no caso do seppuku japonês geralmente

usado para limpar o nome da família na sociedade, ou como na religião hinduísta); ou,

ainda, tido como uma resposta radical ao absurdo da vida33 como querem os filósofos

existencialistas, o suicídio é fonte permanente e interminável de dissenso.

10. Assim sendo, não se poderia esperar consenso na qualificação do

suicídio e de suas causas. O suicida se mata por estar perturbado ou por ser

demasiadamente lúcido? O ato suicida decorreria sempre de um “incapaz” (nos termos

do Código Civil) por ter o seu processo volitivo perturbado, ou seria, por definição, um

ato de livre vontade?

10.1. Se a Filosofia, a Literatura, a Religião e a Antropologia dão a essas

perguntas respostas díspares e paradoxais conforme o credo adotado ou a cultura em que

vive quem julga o ato suicida, nem mesmo nos campos mais próximos à certeza científica,

como a Sociologia, a Psicologia e a Medicina, se chega a uma resposta minimamente

consensual, capaz de oferecer ao Direito pontos de apoio unívocos e seguros para o

delineamento de suas regras.

aprender a morrer, Liv. I, Cap. XIX, in: MONTAIGNE, Michel. Ensaios. Seleção e tradução de J. M.

Toledo Malta, Rio de Janeiro, José Olympio, 1961 p.30.

29 Assim Platão em As Leis, embora justifique, com quatro exceções, o cometimento de suicídio.

30 Os estóicos, como Sêneca, justificavam o suicídio porque “o essencial não é viver, mas viver

bem” ( V. PAGENOTTO, Maria Lígia. Um Absurdo Razoável. Revista Filosofia, ano 1, n. 11, Ed. Escala,

São Paulo, 2007, pp. 24 et seq).

31 KAPLAN, B. e SADOCK, V. Compêndio de Psiquiatria. 9ª ed. Porto Alegre, Artmed, 9ª ed,

2007, p. 477.

32 O Cristianismo o veda, taxativamente, por ser ato contra o mandamento divino (“Não matarás”),

o que vem de Agostinho de Hipona (354-430): os cristãos não podem cometer suicídio, pois estariam a

infringir o mandamento ‘Não matarás’ (Êxodo 20.13) que proíbe matar a nós mesmos.

33 Para Camus, “matar-se, em certo sentido é confessar”, é confessar que “fomos superados pela

vida ou que não a entendemos”, é admitir “o caráter insensato da agitação cotidiana e a inutilidade do

sofrimento”. (O Mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. São Paulo, Record, 2004, p.

19).

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10.2. Durkheim, em 1897, ao tratar sociologicamente do suicídio,

restringia-o aos casos em que a vítima atentou conscientemente contra a própria vida,

definindo-o como "todo caso de morte provocado direta ou indiretamente por um ato

positivo ou negativo realizado pela própria vítima e que ela sabia que devia provocar

esse resultado"34 O suicídio, portanto, seria sempre um ato intencional na qual a vítima

age com objetivo de provocar sua própria morte, tendo conhecimento de que tal ato

produziria a morte.

10.3. Na tradição psicanalítica, diferentemente, diz-se haver “fatores

inconscientes” ligados ao ato, a maioria dos suicídios estando ligada a transtornos

psiquiátricos35. Segundo esse entendimento, raramente um suicídio decorre de uma

escolha “livre e premeditada, não relacionada a doença mental”, então se classificando

tais suicídios, psicanaliticamente, como “suicídios racionais”36.

11. Conquanto essa radical incerteza, atestada por todos os campos do

saber, na vigência do Código de 1916 a doutrina jurídica e a jurisprudência pretenderam

traçar uma firme linha divisória entre “suicídio voluntário” e “suicídio involuntário” para

o efeito de liberar, ou não, o segurador.

11.1. A impropriedade da adjetivação (pois do ponto de vista lexical

todo o suicídio é voluntário, podendo, igualmente ser considerado, do ponto de vista

psicanalítico, como não-voluntário!) servia como uma cunha na rigidez da construção

jurídica que, fortemente embasada em percepções morais e religiosas, condenava o

suicídio, considerando a cobertura do risco de suicídio pelo seguro uma forma de

induzimento. Por esta razão, explicava Pedro Alvim, “a legislação civil a proíbe”37, o

suicídio liberando o segurador na forma do art. 1.440 do Código de 1916 porquanto

compreender-se que a exclusão do risco consistia em “imperativo de ordem pública”38.

Na voz doutrinária, “a admitir-se a cobertura seguradora, não raro veríamos indivíduos

decididos a cometer suicídio celebrarem contratos de seguro a fim de garantirem a

34

DURKHEIM, Emile - Suicídio: definição do problema, Suicídio Altruísta, Suicídio Egoísta,

Suicídio Anômico. Coleção Grandes Cientistas Sociais, 7ª Edição, Atica, 1995, pp. 103 a 122.

35 SERRANO, Alan I. Suicídio: Epidemiologia e Fatores de Risco. In: CATALDO NETO, A, et

allii. Psiquiatria para Estudantes de Medicina. EDIPUCRS, Porto Alegre, 2003, p. 665.

36 SERRANO, Alan I. Suicídio: Epidemiologia e Fatores de Risco. In: CATALDO NETO, A, et

allii. Psiquiatria para Estudantes de Medicina. EDIPUCRS, Porto Alegre, 2003, p. 665.

37 ALVIM, Pedro. O Contrato de Seguro. 3ª ed. Rio de Janeiro, Forense,1999, p. 234.

38 ALVIM, Pedro. O Contrato de Seguro. 3ª ed. Rio de Janeiro, Forense,1999, p. 234.

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subsistência dos seus ou o enriquecimento de amigos, o que é profundamente imoral, ou,

o que se nos afigura mais grave, por sentirem garantida essa subsistência, decidirem por

termo aos seus dias, decisão que de outro modo não tomariam. Assim, a cobertura de

risco de suicídio não só fomenta a fraude, como pode constituir a razão determinante de

um ato que a sociedade tão veementemente reprova, aviltando o seguro, na medida em

que o transforma num instrumento de dissolução de costumes” 39.

11.2. A concepção moral subjacente ao Código de Bevilaqua fazendo

essa tão radical vedação à cobertura do risco do suicídio motivou aquela distinção entre

“voluntariedade” e “involuntariedade” que decorria do emprego, pela lei, da palavra

“premeditação” conectada a “suicídio”. Assim, conquanto a palavra “suicídio” indique

do ponto de vista léxico-gramatical de per si a morte voluntária (por isso mesmo

“premeditada”), o Código de 1916 optou por se distanciar do vernáculo e, incorrendo em

evidente contradictio in adjectum no parágrafo único do art. 1.440, adjetivou o suicídio

liberatório para o segurador de “suicídio premeditado”.

12. Foi sobre essa contraditória adjetivação que trabalharam a doutrina

e a jurisprudência. A regra do parágrafo único do art. 1.440 incorria em contradictio in

adjectum porque o suicídio é, per definitionem, a morte voluntária e a voluntariedade

implica, em certa medida, em “premeditação”, isto é, no agir para que certo resultado

aconteça, a “premeditação” consistindo na meditação prévia ao ato suicida, e só medita

previamente ao suicídio quem voluntariamente pensa na própria morte. Quem não quer

dar a morte a si mesmo, mas esta acaba acontecendo, não se suicida: ou sofre um acidente,

ou tem morte derivada de outras causas que não o ato voluntário próprio40, distinção que

não está cingida aos dicionários, pois também a doutrina jurídica anota: “Suicida è infatti

chi si cagiona volontariamente la própria morte e suicídio l’atto con il quale un individuo

cagiona volontariamente la propria morte. Il suicidio pressuppone la volontarietà dell’atto

39

J.C. MOITINHO DE ALMEIDA, transcrito por ALVIM, Pedro. O Contrato de Seguro. 3ª ed.

Rio de Janeiro, Forense,1999, p. 234.

40Assim registram os dicionários, vg. Suicida [do lat. Sui, ‘de si’+ se].S. 2g. 1. Pessoa que se matou

a si próprio, que se suicidou. Adj. 2 g. 2. Que serviu de instrumento de suicídio; arma suicida. 3. De que se

participa com a certeza de morrer, ou como que com essa certeza. Luta suicida, ação suicida. 4. Que envolve

dano ou ruína certa: a oposição do Ministro à decisão presidencial foi atitude suicida (Novo Dicionário

Aurélio da Língua Portuguesa. 3ª ed. revista e atualizada. Ed. Positivo, Curitiba, 2004, p.1891. Assim

também em outros idiomas, vg: Suicide: n.m. 1. Action de causer volontairement as propre mort (Micro

Robert – Dictionnaire du Français Primordial, S.N.L.- Le Robert, Paris, 1976, p.1028) ; Suicide. N. 1. the

act of killing oneself deliberately: he tried to commit suicide. 2. a person who kills himself or herself

intentionally. (Collins – Compact English Dictionary. Harper Color Edition 2th ed., reprinted (1997),

Wrothan, 1997, p. 878.

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e questa la sua coscienza: senza coscienza non vi è volontà e senza volontà non vi è

suicidio. La morte autocagionatasi per errore (ad. es., chi ingersisce una dose troppo forte

di un fármaco) o per negligenza (ad es.chi si sporge eccessivamente da una finestra),

morte cioè autocagionatasi involontariamente, non è dovuta a suicidio bensì ad

infortunio”41.

13. Assim não pensava, porém, o legislador brasileiro de 1916. O

Código então vigorante previa em seu art. 1.440, a possibilidade de a vida ser estimada

como objeto segurável, nos casos de “morte involuntária, inabilitação para trabalhar, ou

outros semelhantes”, afastando totalmente dessa possibilidade (por considerar hipótese

de morte premeditada) aquela “recebida em duelo, bem como o suicídio premeditado por

pessoa em seu juízo”. Explicitando essa regra dizia Bevilaqua: “O suicídio para annular

o seguro deve ser conscientemente deliberado porque será, egualmente, um modo de

procurar o risco, desnaturando o contracto. Se, porem, o suicídio resultar de grava ainda

que subtanea perturbação da intelligencia, não anulará o seguro. A morte não se poderá,

neste caso, considerar voluntária; será uma fatalidade; o individuo não há quiz, obedeceu

a forças irresistíveis”42. E João Luiz Alves, outro comentarista do então novel Código

Civil, também se referindo ao parágrafo único do art. 1.440, ajuntava: "O caso de duelo

não oferece dificuldade; o de suicídio, porém, na prática, pode oferecê-la. Todavia, a

premeditação e a sanidade de espírito são questões de fato, dependentes da prova. Essa

prova incumbe ao segurador: a presunção é que o suicídio é um ato de desequilíbrio

mental, que torna involuntário o ato”43.

14. Como se pode perceber, a doutrina então distinguia (ainda que com

terminologia equívoca) entre duas situações de fato: o suicídio de segurado motivado por

dolo contra a comunidade segurada e o suicídio não-doloso porque resultado de um

41

DONATI, Antígono. Il contrato di Assicurazione nel codice civile. Commento agli artt. 1882-

1932. Edizioni Della Rivista Assicurazioni, 1943, p. 260-265. Em tradução livre: “Suicida é aquele que

ocasiona voluntariamente a própria morte e suicídio é o ato com qual um indivíduo ocasiona

voluntariamente a própria morte. O suicídio pressupõe a voluntariedade do ato e sua consciência: sem

consciência não há vontade e sem vontade não há suicídio. A morte auto-ocasionada por erro (i.e., quem

ingere uma dose muito forte de um remédio) ou por negligência (i.e., quem se pendura excessivamente de

uma janela) morte, isto é, auto provocada involuntariamente, não é devida a suicídio, mas sim à desgraça”.

42 BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Commentado. Vol. V. São

Paulo, Francisco Alves, 1919, p. 192.

43 ALVES, João Luiz. Código Civil da República dos Estados Unidos do Brasil Anotado. 5o vol.

3 ed. Rio de Janeiro, Borsoi, 1958, p. 102.

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desequilíbrio mental, de uma ausência de premeditação, a ser comprovada pela

seguradora.

14.1. O chamado “suicídio voluntário” ou “premeditado” era aquele em

que o segurado, para fraudar o seguro (e, assim, prejudicar a comunidade de pessoas

segurada) contratava o seguro já com a intenção de por cabo à própria vida, visando,

muitas vezes, proporcionar ao beneficiário meios de fazer frente aos credores. O suicídio

dito “involuntário”, diferentemente, prescindia dessa intencionalidade. Assim, por

exemplo, o caso de segurado que, posteriormente à conclusão do contrato de seguro de

vida se via acometido por forte doença mental que o levava a atentar contra a própria

vida.

14.2. Como é facilmente compreensível, a prova da intencionalidade, a

cargo da seguradora, consistia, verdadeiramente, numa prova diabólica e, no mais das

vezes, dolorosa para a família e atentatória à privacidade do de cujus, sabendo-se que os

direitos de personalidade têm projeção para após a morte. Não raramente, as seguradoras,

para comprovar a intencionalidade, que as liberaria, se viam obrigadas a invadir a esfera

de privacidade do suicida, buscando os indícios da inexistência ou irrelevância de

elementos psicológicos capazes de motivar (psicologicamente) o ato extremo.

Paralelamente, os beneficiários do seguro se viam constrangidos a afirmar a ausência de

higidez mental do falecido (inclusive apresentando em juízo documentos médicos, o que

pode ofender a esfera da privacidade de quem já não mais se pode defender), tudo para

comprovar a “involuntariedade” do suicídio e, assim, receber o benefício.

15. Essas circunstâncias todas subjazem ao entendimento doutrinário

expresso por Bevilaqua e por Alves, entre outros – construído, note-se bem, na primeira

metade do séc. XX sobre a regra do art. 1.440 do Código hoje revogado – que a

jurisprudência reiterou ao sumular a matéria.

15.1. No Supremo Tribunal Federal editou-se em 13 de dezembro de

1963 a Súmula 105 pela qual se assentou: “Salvo se tiver havido premeditação, o suicídio

do segurado no período contratual de carência não exime o segurador do pagamento do

seguro”.

15.2. Na fundamentação dos acórdãos que a ensejaram explicitou-se,

ora que o suicídio “presume-se ato de inconsciência”44 ora que se equiparava à morte

44

STF, AI 30858, in: Publicação: DJ de 5/5/1964.

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natural, salvo se “o segurado celebrasse o contrato de caso pensado e se suicidasse para

deixar bem à família com o seguro”45.

15.3. Quase trinta anos mais tarde o Superior Tribunal de Justiça

reiterou a distinção e editou a Súmula 61 afirmando: “O seguro de vida cobre o suicídio

não premeditado” 46. A jurisprudência posterior explicitou a extensão da distinção,

realizando a sinonímia entre “voluntário” e “premeditado” como, exemplificativamente,

nos acórdãos cujas ementas são abaixo transcritas47.

15.4. Em suma: doutrina e jurisprudência, com a louvável intenção de

dar uma explicação satisfatória à qualificação legal (“premeditado”) do parágrafo único

do art. 1440, levaram a uma sindicância no âmbito da formação da vontade do suicida em

relação às eventuais causas patológicas que pudessem ter alterado a sua livre

determinação.

15.5. Essa sindicância, para além de consistir em prova diabólica para

a seguradora, era também de molde a atingir direito de personalidade do suicida

(protegido mesmo post mortem48). É que a investigação sobre a voluntariedade, ou não,

45

STF, RExt. n. 50.389 DJ de 5/7/1962. Foram ainda precedentes, além do AI acima citado: RE

31331 embargos, in DJ de 9/7/1959 e RTJ 10/95; RE 47991, in: DJ de 7/8/1961; RE 47991, in: : DJ de

12/4/1962 e RTJ 22/295.:

46 STJ - S2 - SEGUNDA SEÇÃO. J. em 14/10/1992. In: DJ 20.10.1992 p. 18382.RSTJ vol. 44 p.

81;RT vol. 688 p. 172. Precedentes: REsp 16560 SC 1991/0023696-9, j. em 12/05/1992, in: DJ de

22/06/1992, p.09765. REsp 6729 MS 1990/0013089-1. J. em 30/04/1991. In: DJ de 03/06/1991, p. 07424.

REsp 194 PR 1989/0008427-5, de 29/08/1989, in DJ de 02/10/1989, p. 15350.

47 STJ, AgRg no Ag 868283 / MG,Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa. Quarta Turma . J. em

27/11/2007 , in: DJ 10.12.2007 p. 380, in verbis: "(...) Seguro. Suicídio. Não premeditação.

Responsabilidade da Seguradora. Agravo Regimental Improvido. 1. O suicídio não premeditado ou

involuntário, encontra-se abrangido pelo conceito de acidente pessoal, sendo que é ônus que compete à

seguradora a prova da premeditação do segurado no evento, pelo que se considerada abusiva a cláusula

excludente de responsabilidade para os referidos casos de suicídio não premeditado. Súmula 83/STJ.

Precedentes. 2. "Salvo se tiver havido premeditação, o suicídio do segurado no período contratual de

carência não exime o segurador do pagamento do seguro." Súmula 105/STF. 3. Agravo regimental

improvido". E ainda, no STF, RE 100485 / SP – Rel. Min. Néri da Silveira. J. em 06/03/1989. Primeira

Turma. In: DJ 18-10-1993 PP-14550, EMENT vol-01638-02 pp-00245, in verbis: Recurso extraordinário.

Seguro de vida. Morte do segurado. Alegação da seguradora de ter ocorrido suicídio do segurado.

Divergência do acórdão com súmula 105 do STF. Premeditação do ato não demonstrada. Código Civil, art.

1.440. Cláusula da apólice reguladora do seguro não prevalece, quando contrariar disposição legal. Código

Civil, art. 1.435. De acordo com art. 1.440 do Código Civil, considera-se morte voluntária a recebida em

duelo, bem como o suicídio premeditado por pessoa em seu juízo. Não pode se eximir do pagamento

pactuado a seguradora, se não provou que o suicídio foi voluntário ou premeditado. CPC, art. 333, II.

Recurso extraordinário conhecido e provido, para restabelecer a sentença que rejeitou os embargos da

seguradora a execução". Idem, para a distinção (embora julgando a voluntariedade do suicídio) o RE 79956

/ SP – Rel. Min. Aldir Passarinho, Segunda Turma. J. em 19/11/1982. In: DJ 13-05-1983 PP-06501,

EMENT vol 01294-02 pp-00368.

48 Embora morto não tenha direitos, protege-se, para certos efeitos, a sua personalidade, como o

direito ao resguardo de seu bom nome e de sua privacidade (v.g, no célebre “caso Almir”o STF, RE 112263

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do suicídio, comporta uma avaliação das causas do suicídio para só então se decidir se

estas são de molde (ou não) a retirar do agente a sua plena capacidade e liberdade de

determinação.

16. O Direito Comparado é de extrema valia no exame dessa matéria

porque também em outros sistemas vivenciou-se idêntica problemática.

17. Na vigência do velho Codice Commerciale italiano, de 1882, havia

regra por tudo similar a do parágrafo único do art. 1440 do Código de Bevilaqua, dando

azo às mesmas dificuldades probatórias que aqui se verificavam, como relatam Mariano

D'Amelio e Enrico Finzi ao aludir às “gravi questioni” e às ‘notevoli dissensi in dottrina

e in giurisprudenza”49 suscitadas pela expressão legal “suicidio volontario” do antigo art.

45050. Por isso mesmo, o Código italiano de 1942 modificou totalmente a orientação,

fazendo dispor no seu art. 1927 a seguinte regra: "1927- Suicidio dell'assicurato. - In caso

di suicidio dell'assicurato, avvenuto prima che siano decorsi due anni dalla stipulazione

del contratto, l'assicuratore non è tenuto al pagamento delle somme assicurate, salvo patto

contrario. L'assicuratore non è nemmeno obbligato se, essendovi stata sospensione del

contratto per mancato pagamento dei premi, non sono decorsi due anni dal giorno in cui

la sospensione è cessata51.

17.1. Essa “nova” regra foi logo elogiada pela doutrina, justamente por

tornar superadas as discussões e dificuldades probatórias suscitadas pelo critério legal

/ RJ - , Rel. Min. SYDNEY SANCHES. Julgamento: 28/03/1989 - Primeira Turma.In: DJ DATA-10-08-

89 PG-12918 EMENT VOL-01550-03 PG-00458; no Direito alemão é célebre o “caso Mephisto” referido

por MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: Estudos de

Direito Constitucional. São Paulo, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, 1998, pp. 87-89).Também

se protege, desde a antiguidade grega (v. Antígona, de Sófocles) o direito a ser dignamente sepultado (v.g,

TJRS, 20aC, Civ. Ap. Civ.n.º 70002434710, Rel. Des. ARMINIO JOSE LIMA DA ROSA, j. em 25 de

abril de 2001).

49 AMELIO, M. e FINZI, E. (org.). Codice Civile. Libro delle Obligazioni. Vol. II. Dei Contratti

Speciali, Parte II. Barbera, Florença, 1949, PP. 342-343.

50 Entre as várias causas de sinistro que a seguradora, no caso de morte, contratava sobre a vida do

mesmo estipulante implicavam a liberação da seguradora (condenação judicial, duelo, crime ou delito

cometido pelo segurado dos quais ele poderia prever as conseqüências) o artigo 450 do código comercial

italiano contemplava o “suicídio voluntário”. As apólices de seguro às vezes usavam a mesma expressão

do código, às vezes, por outro lado, a substituíam por “suicídio premeditado ou não” ou por “suicídio

consciente”, ou mesmo simplesmente “suicídio” (Assim relata DONATI, Antígono. Il contrato di

Assicurazione nel codice civile. Commento agli artt. 1882-1932. Edizioni Della Rivista Assicurazioni,

1943, p. 260-265).

51 Em tradução livre: “Em caso de suicídio do segurado, ocorrido antes que tenha passado dois anos

da estipulação do contrato de seguro, a seguradora não deve pagar as somas seguradas, salvo pacto em

contrário./A seguradora não é nem mesmo obrigada se, tendo sido suspenso o contrato por falta de

pagamento do prêmio, não tenha se passado dois anos do dia em que a suspensão acabou”.

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anterior. Escrevendo em 1949, D’amelio e Finzi registravam: " “Bene a fatto dunque il

nuovo codice a parlare sic et simpliciter di suicidio/ (...). La distinzione tra suicidio del

capace d’ intendere e volere e quello dell’incapace, se si poteva fare sotto il vecchio

codice, dato che ad essa si poteva cientificamente ricondurre (anche con l’aiutto dell’art.

85 cod. pen) la distinzione legale tra suicidio volontario e suicidio involontario non mi

sembra possibile invece con il nuovo codice, il quale, allo scopo di evitare ogni questione

al riguardo, non fa alcuna distinzione, confidando il favor assecurati alla piena

obbligazione dell’assicuratore decorso un certo tempo”52.

17.1. A doutrina subseqüente seguiu idêntica orientação. Veja-se,

exemplificativamente, a lição de Renato Miccio para quem o Código italiano de 1942

com a sua formulação desprovida de distinção e especificação53 teve o mérito de eliminar

a fonte principal das graves questões que, sob o rigor do Código revogado, apareciam

sobre hipótese de suicídio no caso de seguro de vida. No regime anterior, dizia Miccio, o

artigo 450 continha disposição “infeliz e contraditória”, de interpretação “quase

impossível”, liberando a seguradora da obrigação de pagar a soma segurada no caso de

suicídio voluntário, locução legal que se podia considerar, do ponto de vista filológico e

lexical, “um mero pleonasmo” e, do ponto de vista jurídico, “um autêntico quebra-

cabeça” 54.

17.2. Foi assim comemorada como positiva a disposição do Código de

1942 que veio impedir a verificação da motivação do suicídio e das condições psíquicas

do suicida, cortando a discussão sobre o fato de a decisão de tirar a própria vida implicava,

ou não, fraude à seguradora e ilícita vantagem para uma determinada pessoa. No consenso

doutrinário considerou-se dever excluir a hipótese de um suicida que, com um período de

52

AMELIO, M. e FINZI, E. (org.). Codice Civile. Libro delle Obligazioni. Vol. II. Dei Contratti

Speciali, Parte II. Barbera, Florença, 1949, p. 344, em tradução livre: “Fez bem o Novo Código em falar

sic et simpliciter do suicídio/ (...) A distinção entre o suicídio do capaz de entender e de querer daquele do

incapaz, se se podia estabelecer sob o velho código, dado que a essa se podia cientificamente reconduzir

(também com o auxílio do art. 85 do código penal) a distinção legal entre suicídio voluntário e suicídio

involuntário não me parece possível fazer com o novo código, o qual, com o escopo de evitar toda questão

sobre o referido [problema], não faz nenhuma distinção, conferindo o favor assecurati a plena obrigação

do segurador [uma vez]passado um certo tempo”.

53 MICCIO, Renato. Dei Singoli Contratti e Delle Altre Fonti delle obbligazioni. Libro IV. Unione

Tipográfico – Editrice Torinese, 1959, p. 391-394. Alude o autor ainda à doutrina de BUTTARO, Il suicidio

nell’assicurazione sulla vita di un terzo. Em Assicur. 1955, I, 68; e de GHERSI, Il rischio suicidio

dell’assicurazione vita, ivi, 1954, I, 145.

54 MICCIO, Renato. Dei Singoli Contratti e Delle Altre Fonti delle obbligazioni. Libro IV. Unione

Tipográfico – Editrice Torinese, 1959, p. 391.

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tempo tão longo (dois anos) tivesse não apenas premeditado a própria morte, mas mantido

firmemente a determinação, a ponto de realizar, depois de dois anos, “o plano traçado no

momento da conclusão do contrato”55.

18. Os elogios à redação do art. 1927 do Codice Civile vinham de ter

proporcionado aos operadores um critério seguro e unívoco, qual seja, o transcurso do

lapso temporal de dois anos, findo o que o dever de garantia, a cargo da seguradora, é

indiscutível. O critério anterior, obrigando à pesquisa dos elementos “voluntariedade/

involuntariedade” levava à insegurança de se ter que decidir – resguardados os princípios

da isonomia e da segurança jurídica – se era ou não excludente da obrigação da seguradora

o reconhecimento de um estado de insanidade momentânea (por exemplo, suicídio

durante um acesso de febre); ou uma depressão intermitente; ou num período de

superexcitação nervosa devida à paixão ou prostração física derivada de um excesso

alcoólico ou medicamentoso.

18.1. Na ausência do critério objetivo prevaleceria o entendimento

(também expresso, entre nós, nas citadas Súmulas de jurisprudência) de constituir o

suicídio ou um ato não-imputável à vontade do segurado suicida, ou uma espécie de

fraude do segurado em relação à seguradora (pois se trata de um ato que altera o curso

natural dos acontecimentos e provoca à seguradora a obrigação de cumprir a sua

prestação).

19. Foi por conta dessas dificuldades que o Código italiano (tal qual o

Código Civil brasileiro de 2002) mudou o critério, assinalando a doutrina de Antigono

Donati que a distinção entre suicídio voluntário e involuntário, não mais seria possível

com o Código de 1942, pois este objetivou, justamente, evitar as tormentosas questões a

respeito não fazendo nenhuma distinção e confiando o favor assecurati a plena obrigação

da seguradora decorrido um certo tempo56.

20. A invocação à legislação e doutrina italianas justifica-se, no

presente caso, porque foi justamente a regra do art. 1.927 do Codice Civile o modelo

adotado pelo legislador brasileiro ao editar o Código de 2002. Nesta matéria o nosso

Código – tal qual o seu congênere italiano – expurgou totalmente o exame do pressuposto

subjetivo (qual seja, a voluntariedade ou não do ato), atendo-se exclusivamente ao

55

MICCIO, Renato. Dei Singoli Contratti e Delle Altre Fonti delle obbligazioni. Libro IV. Unione

Tipográfico – Editrice Torinese, 1959, p. 394.

56 DONATI, Antígono. Il contrato di Assicurazione nel codice civile. Commento agli artt. 1882-

1932. Edizioni Della Rivista Assicurazioni, 1943, p. 260-265.

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requisito temporal, de ordem objetiva, na esteira, aliás, de outras legislações

contemporâneas, como a recentíssima Lei Geral dos Seguros portuguesa (Decreto-Lei n.º

72 de 16 de Abril de 2008) e o Substitutivo do Projeto de Lei n. 3555/2004, em tramitação

no Congresso Nacional. É tempo, pois, de voltar os olhos a estes pontos.

B) Da regulação da matéria no Código Civil de 2002

21. Vigente uma nova lei é preciso averiguar quais são os seus

pressupostos teóricos e quais são as suas diretrizes, pois, ao assim não proceder,

estaremos emprestando a força de inércia – ao meramente repetir a tradição – àquilo que

o legislador democraticamente eleito decidiu modificar. Cabe, pois, examinar essas

diretrizes e fundamentos teóricos, tais como expressos nos textos dos responsáveis pela

redação da regra hoje posta no art. 798 (i), alcançando, assim, a sua adequada

interpretação (ii).

(i) Do art. 798: a diretriz da operabilidade e o critério objetivo adotado no

“Substitutivo Comparato” e acolhido no Anteprojeto e no Projeto de Código Civil.

22. Para compreensão da dialética “permanência e mudança, tradição e

ruptura” que perpassa constantemente o fenômeno jurídico é preciso mais que atenção: é

preciso um trabalho de arqueologia jurídica para se chegar aos fundamentos e diretrizes

inspiradoras do legislador, assim se iluminando a tarefa do intérprete que, embora em

parte criador, não deve ser traidor àqueles fundamentos e diretrizes.

22.1. Como é por todos sabido, Miguel Reale, o Presidente da Comissão

Elaboradora do Código Civil, deixou expresso, em numerosas passagens, as diretrizes

que guiaram o trabalho daqueles juristas a quem foi cometida a responsabilidade de

elaborar um novo Código Civil. Entre essas está a diretriz da operabilidade, explicitada

na seguinte forma: "(...) toda vez que tivemos de examinar uma norma jurídica e havia

divergência de caráter teórico sobre a natureza dessa norma ou sobre a conveniência de

ser enunciada de uma forma ou de outra, pensamos no ensinamento de Jhering, que diz

que é da essência do Direito a sua realizabilidade: o Direito é feito para ser executado;

Direito que não se executa – já dizia Jhering na sua imaginação criadora – é como chama

que não aquece, luz que não ilumina. O Direito é feito para ser realizado; é para ser

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operado. (...) Então, é indispensável que a norma tenha operabilidade, a fim de evitar uma

série de equívocos e de dificuldades, que hoje entravam a vida do Código Civil”57.

23. Uma dessas dificuldades que efetivamente “entravavam a vida” do

Código de 1916 estava, justamente, na artificiosa e insegura distinção entre suicídio

voluntário e involuntário.

23.1. Como acima já anotado, do ponto de vista de uma análise

gramatical e semântica, todo o suicídio é, por definição, voluntário. Porém, se partirmos

de uma análise psicanalítica ou cristã, poderíamos chegar a uma conclusão polarmente

oposta, a saber: que todo o suicídio é, por definição, involuntário, pois para praticar o ato

extremo (contra a vida, ou contra o “dom de Deus”) a pessoa humana deveria,

necessariamente, estar incapacitada, entendendo-se a capacidade jurídica como

discernimento, como é requerido pelos artigos 3°, inciso II e 4°, inciso II do Código Civil.

23.2. Ocorre que, conquanto tenha o Código Civil de 2002 muito

aprimorado essa temática em relação ao Código de 1916, ao substituir pelo topos do

“discernimento necessário” (elemento comum tanto à incapacidade absoluta do art. 3º

quanto à incapacidade relativa do art. 4º) a categoria dos “loucos de todo o gênero”, a

verdade é que ainda não está clara a eficácia (ou eficácias) ligadas às formas

intermediárias de capacidades. Não se têm ainda bem delimitadas (nem do ponto de vista

médico, nem do jurídico) as conseqüências ligadas a certas formas de transição entre a

capacidade e a incapacidade ou a certos estados transitórios de inconsciência ou de

alienação regular, e nem mesmo a certas formas de psicopatia que provocam

incapacidades para determinados atos, mas não para outros. A imensa tipologia de

deficiências mentais e a igualmente grande diversidade no grau de discernimento das

pessoas atingidas por um déficit proveniente de suas condições psíquico-sociais ou

atribuíveis ao vício de drogas, por exemplo, torna impossível um tratamento unitário.

Também o discernimento não é uma categoria homogênea, apresentando um extenso

leque de variações em sua graduação. Existem (sem que a técnica jurídica delas se ocupe)

situações de “para-incapacidades58”; de incapacidades intermitentes, e mesmo de

57

REALE, Miguel, na “Exposição de Motivos do Projeto de Código Civil”, ora em O Projeto de

Código Civil – Situação atual e seus problemas fundamentais, São Paulo, Saraiva, 1986, p. 10, grifei.

58 A expressão é de Bulhões Carvalho que reclamava uma “ação socializadora do Estado para

enfrentar os “às vezes estranhos fatos sociais que vão eclodindo à nossa volta” a fim de enfrentar-se os

“estados fronteiriços entre incapacidade e restrição ao exercício da capacidade”. (BULHÕES DE

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“incapacidades mitigadas”59.

Qual dessas seria hábil para etiquetar um suicídio como “involuntário”?

23.3. Justamente pelas incontornáveis dificuldades práticas derivadas

dessas distinções é que o legislador de 2002 fez substituir o critério constante do Código

de 1916 – critério subjetivo, ligado à pesquisa das condições psíquicas do suicida, critério

causador de dificuldades práticas e hermenêuticas – por um critério temporal objetivo,

idêntico ao do Código italiano de 1942, que dispensa a perquirição sobre a voluntariedade

ou não do ato suicida, sendo, assim, plenamente adequado à “diretriz da operabilidade”,

além de estar em consonância – como veremos oportunamente – com outras legislações

contemporâneas.

24. O intento do legislador em adotar um critério puramente objetivo,

expurgando a pesquisa sobre a subjetividade e afastando o estabelecimento de presunções

de premeditação (ou de não-premeditação) é indubitável. Para comprová-lo basta que nos

demos ao trabalho de examinar, em ordenada cronologia, os documentos que levaram à

edição do Código Civil de 2002.

24.1. A primitiva redação do que viria a ser o vigente art. 798,

apresentada por Agostinho Alvim aos seus colegas na Comissão Elaboradora do

Anteprojeto ainda continha uma mescla de critérios, o subjetivo e o objetivo, alinhando à

manutenção da distinção entre “suicídio premeditado” e “não-premeditado” um critério

objetivo temporal:

Art. 570/0. “O seguro de vida somente diz respeito à morte involuntária.

CARVALHO Francisco Pereira de. Incapacidade Civil e Restrições de Direito. Tomo II, § 422. Rio de

Janeiro, Borsói, 1957.., p. 403. n. 336).

59 Atento a variabilidade das situações de incapacidade e às formas intermédias, o Direito

Comparado aponta aos casos e às soluções que vêm sendo intentadas. Uma autora italiana alude ao

necessário reconhecimento de uma “capacidade graduável” a fim de atender-se o interesse de certas

“subjetividades marginais”, como os embriões. (v. SERRAVALE, Paola d’Andino. Questione

Biotecnologiche e Soluzione Normative. ESI, 2001. p. 23.); para o Direito DIAS PEREIRA, André Gonçalo.

A Capacidade para Consentir: um novo ramo da capacidade jurídica. In: Comemorações dos 35 anos do

Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1975. vol. II. A Parte Geral do Código e a Teoria Geral do

Direito Civil. Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Coimbra Editora, 2006. No Brasil,

referências também em STANCIOLI, Brunello Souza. Relação Jurídica Médico-Paciente. Belo Horizonte,

Del Rey, 2004, pp. 44-48 e, na Argentina, em português v. KEMELMAJER DE CARLUCCI, Aida. El

Derecho del Menor a su propio Cuerpo, in BORDA, Guillermo. (org.) La Persona Humana. Buenos Aires,

La Ley, 2001, pp. 249-286.

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§ 1°. Considera-se morte voluntária a recebida em duelo bem como o

suicídio premeditado por pessoa em seu juízo.

Nunca se considera premeditado o suicídio que só ocorreu mais de dois

anos depois de firmado o contrato.

§ 2°. Não se tem como voluntária a morte que ocorreu por ter a pessoa

arriscado a vida por finalidade científica, altruística ou esportiva”60.

24.2. Essa redação era diversa61 daquela constante de outro Anteprojeto

que não fora aprovado, a saber, o Anteprojeto de Código das Obrigações do Professor

Caio Mario da Silva Pereira que em 1963 preparara um Anteprojeto do Código das

Obrigações. Este, em seu artigo 798, dizia:

Art. 798. Depois de emitida a apólice, o segurador não pode recusar o

recebimento do prêmio, nem o pagamento do seguro de vida, salvo se

provar a má-fé do segurado, ou que a morte ou incapacidade tenha

resultado de duelo, ou suicídio premeditado, por pessoa em seu juízo

perfeito.

24.3. Como se vê, na proposição original de Caio Mario adotou-se um

critério exclusivamente subjetivista.

60

Conforme manuscrito dos integrantes da Comissão Elaboradora intitulado Código Civil –

Anteprojeto com m/ revisões, correções substitutivas e acréscimos. Biblioteca de Miguel Reale, p. 85.

61 Nos itens subseqüentes, as fontes de pesquisa foram: Código Civil: anteprojetos. Brasília: Senado

Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 1995. 5 v:V. 1. Anteprojeto de Código das Obrigações - parte

geral (1941) / Comissão: Orosimbo Nonato, Philadelpho Azevedo e Hahnemann Guimarães. Anteprojeto

de lei geral de aplicação das normas jurídicas (1964) / Haroldo Valladão. --- V. 2. Anteprojeto de Código

Civil (1963) / Orlando Gomes. Anteprojeto de Código Civil - revisto (1964) V. 3. Anteprojeto de Código

Civil das Obrigações / Caio Mario da Silva Pereira (1963), Sylvio Marcondes (1964), Theophilo de

Azevedo Santos (1964) --- V. 4. Projeto do governo Castello Branco: projeto de Cóodigo Civil (PL n.

3.263/65), projeto de obrigações (PL n. 3.264/65) --- V. 5, Tomo 1. Anteprojeto de Código Civil (1972) /

Comissão elaborada e revisora: Miguel Reale, José Carlos Moreira Alves; Agostinho de Arruda Alvim,

Sylvio Marcondes, Erbert Chamoun, Clovis do Couto e Silva e Torquato Castro; Tomo 2. Anteprojeto de

Código Civil - revisto (1973)/ Comissão elaboradora e revisora: Miguel Reale, José Carlos Moreira Alves;

Agostinho de Arruda Alvim, Sylvio Marcondes, Erbert Chamoun, Clovis do Couto e Silva e Torquato

Castro. E ainda: O Projeto de Código Civil no Senado Federal. Brasília: Senado Federal, 1998. 2 v:V. 1.

Projeto de lei da Câmara n. 118, de 1984, n. 634/5 na Casa de Origem --- V. 2. Opinião do Min. Moreira

Alves Sobre as Emendas dos Senadores Relativas à Parte Geral. Opinião do Prof. Miguel Reale Sobre as

Emendas dos Senadores Relativas à Parte Especial. Sugestões dos Profs. Alvaro Villaça Azevedo e Regina

Beatriz Tavares S. P. dos Santos Sobre o Direito de Família. Estudo e Sugestões do Prof. Mauro Rodrigues

Penteado Sobre Títulos de Crédito. Sugestões do Prof. Luiz Edson Fachin Sobre Direito das Coisas.

Sugestão do Prof. Fabio Konder Comparato e de Marcelo Gazzi Taddei Sobre Desconsideração da Pessoa

Juridica. Contribuição do Prof. José Teixeira Sobre Vários Pontos, e da Consultoria Legislativa Sobre o

Direito de Família e das Sucessões. Também: em COMPARATO, Fábio Konder. Substitutivo ao Capítulo

referente ao Contrato de Segurado no Anteprojeto de Código Civil. In: Revista de Direito Mercantil,

Industrial, Econômico e Financeiro n. 5, p. 144 a 151. Também referências em REALE, Miguel. História

do Novo Código Civil, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 23.

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24.4. Porém, em 1965, o Anteprojeto Caio Mario foi encaminhando ao

então Presidente Castello Branco, que o reenviou ao Congresso Nacional (Projeto n. PL

3264/65). Nesse intervalo, foi o Anteprojeto revisado, alterando-se a redação do artigo

798 e, ainda, se acrescentando um parágrafo único. A redação do artigo (agora, numerado

como 748), ficou com o seguinte texto:

Art. 748. Depois de emitida a apólice, o segurador não pode recusar o

recebimento do prêmio, nem o pagamento do seguro de vida, salvo se

provar a má-fé do segurado, ou que a morte ou incapacidade tenha

resultado de duelo, ou suicídio premeditado.

Parágrafo único. Decorridos dois anos da celebração do contrato, o

suicídio do segurado, qualquer que seja a causa, não obsta ao

pagamento do seguro.

24.5. Repare-se que a expressão 'por pessoa em seu juízo perfeito' foi

suprimida da redação do artigo, adotando-se parágrafo único o critério objetivista,

mesclado, porém, com o subjetivista, constante do seu caput.

24.5. Entretanto, como é por todos sabido, o Projeto Caio Mario, bem

como o Projeto de Código Civil, redigido por Orlando Gomes, apresentados em 1965

pelo Executivo ao Congresso Nacional não vingaram. Foi criada nova Comissão de

Revisão do Código Civil, em 1969, chefiada por Miguel Reale que apresentou seu

primeiro Anteprojeto em 1972.

24.6. Nesse, o capítulo referente ao Contrato de Seguro ficou regulado

nos artigos 784 a 830 (46 artigos).

24.7. Os dispositivos acerca da 'carência e suicídio no contrato de

seguro de vida’, tiveram suas redações, e objetivos, radicalmente alterados, em

comparação com o Anteprojeto e o Projeto (1963 e 1965) do professor Caio Mario e

mesmo com a primitiva redação apresentada por Agostinho Alvim aos seus colegas na

Comissão Elaboradora. Confira-se:

Art. 825. No seguro de vida para o caso de morte, é lícito estipular-se

um prazo de carência, dentro do qual o segurador não responde pela

ocorrência de sinistro.

Parágrafo único. Neste caso, porém, o segurador é obrigado a devolver

ao beneficiário o montante da reserva técnica já formada.

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Art. 826. O beneficiário não tem direito ao capital segurado quando o

segurado se suicida dentro dos primeiros dois anos de vigência inicial

do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o

disposto no artigo anterior, parágrafo único.

Parágrafo único. Ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a

cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do

segurado.

28. A alteração radical foi fruto do acolhimento, pela Comissão, em

1969, da proposta de substitutivo do professor Fabio Konder Comparato em relação ao

capítulo do Contrato de Seguro. Pela simples leitura, percebe-se que a redação do

primeiro Anteprojeto (de 1972) e do Substitutivo Comparato são idênticas. Assim estava

no Substitutivo:

Art. XXXVII - No seguro de vida para o caso de morte, é lícito

estipular-se um prazo de carência, dentro do qual o segurador não

responde pela ocorrência de sinistro.

Parágrafo único. Neste caso, porém, o segurador é obrigado a devolver

ao beneficiário o montante da reserva técnica já formada.

Art. XXXVIII – O beneficiário não tem direito ao capital segurado

quando o segurado se suicida dentro dos primeiros dois anos de

vigência inicial do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso,

observado o disposto no artigo anterior, parágrafo único.

Parágrafo único – Ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a

cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do

segurado.

28.1. Contudo, o primeiro Anteprojeto foi revisado pela Comissão

chefiada pelo professor Miguel Reale, e, novamente publicado para apreciação, críticas e

sugestões da comunidade jurídica nacional. Neste, chamado de “Segundo Anteprojeto”,

em 1973, o capítulo de seguro perdeu um artigo (o artigo 803 no Primeiro Anteprojeto:

“Quando houver no contrato cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a

interpretação mais favorável ao segurado.”) e ficou regulamentado nos artigos 773 a 818.

Os textos referentes ao tema 'carência e suicídio' eram os 813 e 814. A redação

permaneceu inalterada considerados o Primeiro e o Segundo Anteprojetos). Novamente,

confira-se:

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Art. 813. No seguro de vida para o caso de morte, é lícito estipular-se

um prazo de carência, dentro do qual o segurador não responde pela

ocorrência de sinistro.

Parágrafo único. Neste caso, porém, o segurador é obrigado a devolver

ao beneficiário o montante da reserva técnica já formada.

Art. 814. O beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o

segurado se suicida dentro dos primeiros dois anos de vigência inicial

do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o

disposto no artigo anterior, parágrafo único.

Parágrafo único. Ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a

cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do

segurado.

28.2. Com esse texto, o Segundo Anteprojeto foi encaminhado ao

Congresso Nacional pelo Poder Executivo. Tramitando inicialmente na Câmara dos

Deputados, recebeu a numeração PL 634/75. Depois de nove anos, foi aprovado e enviado

ao Senado Federal, onde recebeu nova numeração: PLC 118/84.

29. Na forma como o Projeto foi recebido no Senado, o Contrato de

Seguro estava regulado nos artigos 757 a 802, e os referentes à 'carência e suicídio', com

redação idêntica foram numerados como 797 e 798, da seguinte forma:

Art. 797. No seguro de vida para o caso de morte, é lícito estipular-se

um prazo de carência, dentro no qual o segurador não responde pela

ocorrência de sinistro.

Parágrafo único. Neste caso, porém, o segurador é obrigado a devolver

ao beneficiário o montante da reserva técnica já formada.

Art. 798. O beneficiário não tem direito ao capital segurado quando o

segurado se suicida dentro nos primeiros dois anos de vigência inicial

do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o

disposto no artigo anterior, parágrafo único.

Parágrafo único. Ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a

cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do

segurado.

29.1. Após longos 14 anos de tramitação no Senado Federal, em 1998,

o PLC 118/84 foi então aprovado e enviado, novamente, para a Câmara dos Deputados.

Na versão final aprovada pelos senadores, o Contrato de Seguro estava capitulado entre

os artigos 756 e 801. Os artigos 797 e 798 tiveram somente suas numerações alteradas,

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para 796 e 797, respectivamente, ficando sua redação incólume. Veja-se:

Art. 796. No seguro de vida para o caso de morte, é lícito estipular-se

um prazo de carência, dentro no qual o segurador não responde pela

ocorrência de sinistro.

Parágrafo único. Neste caso, porém, o segurador é obrigado a devolver

ao beneficiário o montante da reserva técnica já formada.

Art. 797. O beneficiário não tem direito ao capital segurado quando o

segurado se suicida dentro nos primeiros dois anos de vigência inicial

do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o

disposto no artigo anterior, parágrafo único.

Parágrafo único. Ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a

cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do

segurado.

29.2. Novamente na Câmara dos Deputados (sob o número - Projeto

634/75), foi o Projeto reapreciado, sem nenhuma alteração, porém, dos textos ora em

análise. A versão final, aprovada e sancionada pelo então Presidente Fernando Henrique

Cardoso, trouxe o Capítulo de Seguro nos artigos 757 a 802. Com as redações ainda

inalteradas, o tema 'carência e suicídio no contrato de seguro de vida’, na Lei

10.406/2002, ficou assim redigido:

Art. 797. No seguro de vida para o caso de morte, é lícito estipular-se

um prazo de carência, durante o qual o segurador não responde pela

ocorrência do sinistro.

Parágrafo único. No caso deste artigo o segurador é obrigado a devolver

ao beneficiário o montante da reserva técnica já formada.

Art. 798. O beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o

segurado se suicida nos primeiros dois anos de vigência inicial do

contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o

disposto no parágrafo único do artigo antecedente.

Parágrafo único. Ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a

cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do

segurado.

30. De tudo resultam cristalinas e insofismáveis certezas que podem

assim ser sumarizadas: a) a proposição do ilustre professor Caio Mario não teve nenhuma

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influência na formação da vontade legislativa, sendo inclusive totalmente distante do

texto aprovado; b) o legislador brasileiro rejeitou a solução proposta pelo insigne

professor Caio Mario da Silva Pereira, de modo que as suas lições, por valiosas que sejam,

não servem para aclarar o sentido e o alcance do art. 798; c) durante toda a tramitação do

Código Civil, desde o acolhimento do “Substitutivo Comparato”, os textos em causa não

sofreram nenhuma modificação, afirmando-se e se reafirmando, sem dissensões e na

forma prevista pelo princípio democrático, a vontade legislativa de consagrar-se o critério

objetivista, exclusivamente, na regulação dos efeitos do suicídio do segurado; d) o

legislador brasileiro, ao acolher o “Substitutivo Comparato” e ao aprovar a redação do

art. 798 do vigente Código, optou por um critério objetivista, afastando, explicitamente,

o critério subjetivista, bem demonstrando, assim, a firme, coerente e reiterada intenção

legislativa de por uma pá de cal nas tormentosas discussões acerca da voluntariedade, ou

não, do suicídio; e) o art. 798 foi expressamente inspirado no art. 1927 do Código Civil

italiano, razão pela qual os subsídios doutrinários e jurisprudenciais daquele sistema são

de valia para a compreensão da nossa regra.

31. Fábio Konder Comparado adotou a redação que provinha, em linha

reta, do art. 1927 do Código Civil italiano. Explicitando o teor da redação proposta,

correspondente integralmente ao teor dos vigentes arts. 797 e 798, dizia o Professor, nas

Notas Explicativas ao Substitutivo:

No art. XXXVIII vem regulada a debatida questão do direito do

beneficiário ao capital garantido, na hipótese de suicídio do segurado.

O atual Código Civil exclui a garantia em se tratando de “suicídio

premeditado (art. 1440, parágrafo único). O Projeto de 1965[n: ref. ao

chamado Projeto Caio Mario], após reproduzir essa disposição,

acrescenta que passados dois anos da conclusão do contrato “o suicídio

do segurado, qualquer que seja a sua causa, não obsta ao pagamento do

seguro”.

Como é sabido, a fim de evitar a probatio diabólica da premeditação do

suicida segurado, as companhias brasileiras sempre inseriram em suas

apólices de seguro de vida a cláusula de exclusão da garantia quando o

suicídio, qualquer que seja o grau de voluntariedade do ato, ocorre

dentro dos primeiros dos anos de vigência do contrato. Essa cláusula

porém, não foi admitida nos tribunais (Súmula do Supremo Tribunal

Federal n. 105).

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A orientação do Projeto de 1965, copiada do Código Civil, não parece

a melhor. Ao falar em suicídio premeditado o legislador abre ensejo a

sutis distinções entre a premeditação e a simples voluntariedade do ato,

tornando na prática sempre certo o direito ao capital segurado, pela

impossibilidade material de prova do fato extintivo, o que não deixa de

propiciar a fraude.

Preferimos seguir nesse passo o Código Civil italiano (art. 1927),

excluindo em qualquer hipótese o direito ao capital estipulado se o

segurado se suicida nos primeiros dois anos da vigência inicial do

contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, e proibindo em

contrapartida a estipulação de não pagamento para o caso de o suicídio

ocorrer após esse lapso de tempo. O único fato a ser levado em

consideração é, pois, o tempo decorrido desde a contratação ou

renovação do seguro, atendendo-se que ninguém, em são juízo, contrata

o seguro exclusivamente com o objetivo de se matar dois anos após 62.

32. De tudo se conclui, com base nos métodos hermenêuticos genético

e histórico, acima desenvolvidos63, que as referências feitas em certas obras doutrinárias

e mesmo em alguns acórdãos às origens do art. 798 (situando-as no Anteprojeto Caio

Mario) não estão conformes ao que indicam os documentos relativos à tramitação do

Código Civil, conforme atestado, inclusive, pelo jurista encarregado de presidir a

Comissão Elaboradora.

33. O método da interpretação genética, conquanto relevantíssimo

(principalmente para a análise de uma nova lei) não é, contudo, suficiente, devendo ser

conectado aos demais métodos de interpretação das leis.

34. Já bem assentada a intenção firme e indiscutível do legislador bem

como o processo genético do texto em exame, cabe agora contrastá-lo com os demais

critérios hermenêuticos, a saber, o literal, o lógico-sistemático e o axiológico, estes

últimos exigindo a conjugação entre valores postos na Constituição Federal, no Código

Civil e no Código de Defesa do Consumidor.

62

COMPARATO, Fábio Konder. Substitutivo ao Capítulo referente ao Contrato de Segurado no

Anteprojeto de Código Civil. In: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro n. 5,

p.p. 150-151, grifei.

63Os argumentos históricos não se confundem com os argumentos genéticos: enquanto os

argumentos históricos fazem referência a textos normativos anteriores, e com semelhante âmbito de

incidência relativamente ao da norma objeto de interpretação, os argumentos genéticos dizem respeito a

textos não-normativos (discussões parlamentares, projetos de lei, discursos legislativos, exposições de

motivos), e se referem à formação do próprio dispositivo objeto de interpretação. (assim FERRARA,

Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. In ANDRADE, Manoel Domingues de .Ensaio sobre a

Teoria da Interpretação das Leis. Coimbra. Armênio Amado, 1987, p., p. 143.

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(ii) Da interpretação do art. 798 do Código Civil em vista do sistema civil e

constitucional, e de seus princípios e valores.

35. Segundo Larenz, a apreensão do sentido literal das expressões

constantes do texto constitui o ponto de partida da atividade hermenêutica64. Também

assim Francesco Ferrara, para quem a interpretação literal é o primeiro sentido da

interpretação65.

35.1. Com efeito, o intérprete não pode deixar de considerar o dado

lingüístico, ponto de partida da atividade hermenêutica, sendo permitido o afastamento

da littera só em ocasiões muito excepcionais (quando evidente o erro de redação por parte

do legislador, conforme podem indicar dados históricos e a interpretação sistemática).

Assim refere Friedrich Müller em sua excepcional obra Juristische Methodik, em que

afirma consistir o texto da lei um elemento de “delimitação do espaço de um jogo de

concretização regular”66, porque afeiçoado aos valores democráticos. Num Estado

Democrático de Direito o seu afastamento pelo intérprete só se justifica, pois, quando

“incontestável” o erro, para serem superadas antinomias sistemáticas (lógicas e

axiológicas) acaso existentes.

35.2. Por isso a importância de se conjugar a interpretação literal

(gramatical) com a interpretação histórico-genética, a lógico-sistemática e a axiológica

(ou teleológica).

35. 3. A importância da conjugação entre os métodos hermenêuticos

resulta da circunstância, também apontada por Larenz, de o texto só “falar” ao intérprete

quando considerado certo contexto, fático e normativo. Conquanto o objeto da

interpretação seja o texto, este "nada diz a quem não entenda já alguma coisa daquilo

que ele trata", assim expressando o grande jurista germânico que o texto só "fala" a quem

o interroga corretamente. É, pois, essencial, para formular corretamente a pergunta,

64

LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução portuguesa de José Lamego,

Coimbra: Fundação Calouste Gulbekian, 3ª edição,1997 , p. 451.

65 FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. In ANDRADE, Manoel Domingues

de .Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis. Coimbra. Armênio Amado, 1987, p.139.

66 MÜLLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. Tradução francesa de Oliver Jouuanjan.

Paris, P.U.F, 1996, p. 240 em que afirma o valor democrático do texto como limite da concretização regular,

ressalvando apenas a possibilidade da existência de um erro (“d'une erreur de rédaction incontestée") que

tenha se introduzido no texto.

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"conhecer a linguagem da lei e o contexto de regulação em que a norma se encontra” 67,

por isso o contexto (histórico, lingüístico, lógico, sistemático e axiológico) sendo da

maior importância: um mesmo vocábulo pode ter significações diversas e convém preferir

a que se mostrar mais idônea, dada a sua relação com a conexão68. Por isso têm os autores

acentuado que os critérios hermenêuticos não constituem categorias entre si estanques,

mas “subsídios” a que recorre concorrentemente o intérprete, havendo entre eles, como

explicam Viola e Zaccaria a existência de uma “contaminação”69.

35.4. Já vimos que a hipótese de “erro do legislador” não é sequer

pensável no caso ora examinado. Em face do texto do art. 798 - considerada a sua história

legislativa, as suas declaradas origens italianas e o explícito propósito em acabar com a

prova diabólica e com presunções de difícil averiguação - de erro do legislador não se

pode cogitar.

36. Não há, igualmente, nenhuma contradição lógico-sistemática com

os demais artigos do Código Civil. A redação do Capítulo tem, como reiteradamente

assinalado, uma única e mesma proveniência, o Subsídio oferecido à Comissão

Elaboradora pelo Professor Fabio Konder Comparato, havendo total coerência entre o art.

798 e o que lhe antecede.

36.1. Na doutrina tradicional, o método lógico visa “estabelecer os

motivos que determinaram o preceito” 70. É a investigação da ratio, que “consiste em

apreender a causa justificadora do preceito”, ou, como diz Ferrara, aquela que “remonta

ao espírito da disposição, inferindo-o dos fatores racionais que a inspiraram”71, por isso

sendo conectada à investigação histórica. Autores mais modernos entendem que o

elemento lógico concentra a sua atenção na relação recíproca entre as partes do enunciado

67

LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução portuguesa de José Lamego,

Coimbra: Fundação Calouste Gulbekian, 3ª edição,1997, p. 441.

68 RUGGIERO, Roberto. Instituições de Direito Civil- vol. I. Tradução de Ary dos Santos. São

Paulo: Saraiva, 1957, p. 155.

69VIOLA, Francesco, e ZACCARIA, Giuseppe.Diritto e Interpretazione. Lineamenti di teoria

ermeneutica del diritto. Roma: Laterza,1999, p.221.

70 RUGGIERO, Roberto. Instituições de Direito Civil- vol. I. Tradução de Ary dos Santos. São

Paulo: Saraiva, 1957, p. 157.

71FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. In ANDRADE, Manoel Domingues

de .Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis. Coimbra. Armênio Amado, 1987, p.140.

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normativo, o que conduz a sólidos vínculos entre a interpretação lógica e a sistemática

bem como entre a lógica e a gramatical e a lógica e a teleológica72.

36.2. Ora, contrariaria a lógica e ao sistema considerar lícito estipular-

se um prazo de carência “durante o qual o segurador não responde pela ocorrência do

sinistro” em qualquer seguro de vida para o caso de morte, como permite o art. 797 do

Código Civil e entender-se, no caso de morte por suicídio, estar a incidência desse prazo

de carência dependente da prova da intencionalidade do suicida. Haveria, na verdade,

uma dupla contradição lógica: em caso de morte por doença ou por acidente (morte

incontrolável e não-programável pelo agente/paciente) no período de carência, nada seria

devido ao beneficiário; em caso de morte por suicídio (em tese “programável” pelo

agente/paciente, podendo consistir em ato contra a comunidade segurada e à função social

do contrato) o beneficiário receberia bastando provar não ter sido a morte “deliberada”.

A hipótese menos geral (suicídio) seria mais ampla que a geral (qualquer outra causa de

morte)!

36.3. A ilogicidade é manifesta, seja ao atribuir-se o onus probandi à

seguradora, seja ao próprio beneficiário. Mas essa última é a interpretação expressa no

Enunciado nº 187 da III Jornada de Direito Civil (com a qual absolutamente não se pode

concordar) segundo a qual “[n]o contrato de seguro de vida, presume-se, de forma relativa

ser premeditado o suicídio cometido nos dois primeiros anos de vigência da cobertura,

ressalvado ao beneficiário o ônus de demonstrar a ocorrência do chamado "suicídio

involuntário"73. Tal qual a primeira exegese (defendida em alguns julgados do Colendo

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul74), esta outra, para além de divorciada do texto

legal, infringe, ainda, o sistema – e não apenas o do Código Civil, mas, igualmente, o do

Código de Defesa do Consumidor.

36.4. Com efeito, ao se entender pela existência “implícita”, no art. 798,

de presunção relativa (iuris tantum) no sentido de que o suicídio dentro do prazo de dois

anos é premeditado, afastando o direito à garantia, atribuiu-se ao beneficiário “demonstrar

72

VIOLA, Francesco, e ZACCARIA, Giuseppe. Diritto e Interpretazione. Lineamenti di teoria

ermeneutica del diritto. Roma: Laterza,1999, p. 227.

73 Conforme proposição de Guilherme Couto de Castro/ Guilherme Calmon Nogueira da Gama,

Juiz Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro/ Juiz Federal Convocado 5ª Turma - TRF/2ª Região. In:

http://www.consulex.com.br/news.asp?id=2523 (acessado em 14 de junho de 2008)

74 Confira-se, adiante, nota n. 98.

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que o suicídio não foi premeditado, fazendo jus ao recebimento do capital segurado”75.

Assim, ao beneficiário do seguro (parte vulnerável na relação de consumo) caberia se

desincumbir, no biênio, do ônus de provar que o segurado não premeditou o suicídio.

36.5. Essa interpretação não pode prevalecer porque prejudica o

contratante que a Constituição Federal (art. 5º, inciso XXXII) e o Código de Defesa do

Consumidor (art. 6°, inc.VII) visaram favorecer.

37. Desde os monumentais estudos de Savigny, no século XIX, é

assente que um princípio jurídico (ou uma regra) não existe isoladamente, mas está ligado

por nexo íntimo com outros princípios e regras, havendo entre as leis conexões inter e

intra-sistemáticas76. Não se interpreta o Direito “em tiras”, diz Eros Grau77, assim

expressando que o direito objetivo não é um aglomerado de disposições, mas um

“organismo”, um sistema de preceitos coordenados.78 Há portanto conexões (por relações

de geral a particular, deduções ou corolários), das quais “cada norma particular recebe a

sua luz79.

37.1. Consideradas as conexões entre as regras do próprio Código Civil

(arts. 797 e 798) e entre este último e o Código de Defesa do Consumidor, anti-sistemática

seria a interpretação pela qual se atribuísse: (i) a possibilidade de ter-se um prazo de

carência fixado contratualmente para quaisquer seguros por morte (art. 797) e a limitação

do prazo de carência fixado legalmente para o caso de morte por suicídio (art. 798),

limitação essa derivada da existência de uma presunção pela qual esse prazo poderia ser

afastado; (ii) a possibilidade de uma presunção vindo em desfavor do próprio beneficiário

do seguro.

38. Superados esses pontos resta examinar o art. 798 à luz do critério

axiológico, para saber se a interpretação que ali percebe um critério puramente objetivo

(o transcurso de dois anos), afastando a sindicância sobre a

75GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2008. 26ª ed. (atualizada por Antônio

Junqueira de Azevedo e Francisco Paulo de Crescenzo Marino) p. 513.

76 Permito-me aludir ao meu: Culturalismo e Experiência no Novo Código Civil. Revista do

Tribunal Regional Federal 1. Região, v. 6, p. 21-34, 2006.

77 GRAU, Eros. Ensaio e Discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo:

Malheiros, 2002, XVIII.

78 FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. In ANDRADE, Manoel Domingues

de .Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis. Coimbra. Armênio Amado, 1987, p.143.

79 FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. In ANDRADE, Manoel Domingues

de .Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis. Coimbra. Armênio Amado, 1987, p.143.

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voluntariedade/involuntariedade do ato suicida, é ou não compatível com os princípios

valorativos expressos no Código Civil e na Constituição da República.

38.1. Já observamos que o art. 798 é plenamente compatível com a

diretriz da operabilidade. E também o é com as diretrizes da eticidade (expressa no

princípio da boa-fé, Código Civil, art. 422) e da socialidade (expressa no princípio da

função social do contrato, Código Civil, art. 421).

39. A expressão “boa-fé”, embora semanticamente vaga, não expressa

“qualquer coisa”, não lhe podendo, por isso, ser imputado qualquer conteúdo ao alvedrio

isolado do intérprete. Em sua raiz romana, fides, está a fé como reitora das condutas

comunicativas na ordem social, de modo a suscitar a confiança (cum fides). Na sua origem

está, portanto, uma relação de recíproca fidúcia e está (na relação de crédito) aquele que

acredita (creditor) em algo que possa ser objeto de crença fundada, pois do seu

qualificativo bona vem a noção de uma fé justa ou virtuosa80.

39.1. Dessas raízes resulta a expressão boa-fé objetiva81 que exprime o

standard de lisura, correção, probidade, lealdade, honestidade – enfim, o civiliter agere

que deve pautar as relações inter-subjetivas regradas pelo Direito sob pena de o próprio

80

Assim escrevi em MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Do

Inadimplemento das Obrigações. Vol. V, Tomo II, 2ª ed. São Paulo, Saraiva, 2008, p.73 et seq.

81 Permito-me lembrar, entre outros: COUTO E SILVA, Clóvis. O princípio da boa-fé no Direito brasileiro

e português. In: Estudos de Direito Civil Brasileiro e Português. São Paulo: [s.n.], 1986. p. 55 et seq.;

NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-

fé e justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994; AZEVEDO, Antônio Junqueira de. O princípio da boa-fé

nos contratos. Revista do CEJ, Brasília, vol. 9, 1999, disponível em

http://www.cjf.gov.br/Publicacoes/Publicacoes.asp; NEGREIROS, Teresa. Fundamentos para uma

interpretação constitucional do princípio da boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1998; MOREIRA ALVES,

José Carlos. A boa-fé objetiva no sistema contratual brasileiro. Revista Roma e América: Diritto Romano

Comunne, Roma, vol. 7, p. 187-204, 1999, p. 192; REALE, Miguel. Um artigo-chave do Código Civil. In:

Estudos Preliminares do Código Civil. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2003, pp. 75-80; SAMPAIO,

Laerte Marrone de Castro. A Boa-Fé Objetiva na Relação Contratual. Manole – Escola Paulista da

Magistratura, 2004; e os nossos: MARTINS-COSTA, Judith. Princípio da Boa-Fé. Revista AJURIS, Porto

Alegre, vol. 50, p. 207-227, 1990; A incidência do princípio da boa-fé no período pré-negocial: reflexões

em torno de uma notícia jornalística. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, vol. 4, p. 140-172,

1992; A Boa-Fé no Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999; O Direito Privado como um

sistema em construção: as cláusulas gerais no Projeto do Código Civil Brasileiro. Revista dos Tribunais,

São Paulo, vol. 753, p. 24-48, julho 1988 (também em Revista de Informação Legislativa, Brasília, n. 139,

p. 5-22, 1998); A Boa-Fé como Modelo: uma aplicação da Teoria dos Modelos de Miguel Reale. (In:

MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil

Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 187-226); Mercado e solidariedade social entre cosmos e taxis: a

boa-fé nas relações de consumo. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A Reconstrução do Direito

Privado: reflexos dos princípios, garantias e direitos constitucionais fundamentais no Direito Privado. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 611-661; Os campos normativos da boa-fé objetiva: as três

perspectivas do Direito privado brasileiro, publicado in Revista do Consumidor, Universidade de Coimbra,

nº6, Coimbra/ Portugal, 2005, pp 85 – 128 e em Revista Forense vol. 382, Rio de Janeiro, 2005, pp.120-

143; Os avatares do Abuso do direito e o rumo indicado pela Boa-Fé, in Novo Código Civil – Questões

Controvertidas. In: NICOLAU, Mário Júnior (org.). Novos Direitos. Curitiba: Juruá, 2007, p. 193-232.

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Ordenamento não ser funcional, pois sem um mínimo de lealdade entre os participantes

do tráfego jurídico, permitindo confiar na palavra dada e nas “regras do jogo”

predispostas impossível se torna a gestão do risco e a previsibilidade das ações futuras.

39.2. Justamente por conta desses significados e destas funções, a boa-

fé objetiva, quando apreendida em um princípio jurídico (como está no Código Civil e no

Código de Defesa do Consumidor) tem por função estabelecer um padrão

comportamental. Esse padrão é o da conduta proba, correta, leal, que considera os

legítimos interesses do alter, tendo em vista a natureza, a ambiência e a função da relação,

pois visa, imediatamente, a lograr o correto processamento da relação e, mediatamente,

assegurar a confiança no tráfego negocial. Na relação obrigacional, portanto, considerado

o mandamento de “agir segundo a boa-fé”, as partes se devem mutuamente lealdade e

probidade (como correção de condutas) no trato dos interesses envolvidos naquela relação

a fim de que esta chegue ao adimplemento satisfativo.

39.3. Do vetor “correção” ou “probidade” nascem os deveres de

cooperação mútua; do vetor “lealdade” e “consideração aos interesses alheios” nascem as

especiais cautelas de proteção para que, da relação jurídica em que estão co-envolvidos,

não resultem danos injustos à pessoa e ao patrimônio da contraparte. Estes significados

são indiscutíveis em face da tendência contemporânea em matéria de Teoria dos

Contratos (revelada em várias legislações) de realizar uma revisão crítica dos paradigmas

contratuais “clássicos” e de introduzir, nas relações entre empresas e Mercado (incluindo

os consumidores) padrões de lealdade ou fairness. Assim registra ALBERTO MONTI ao

perceber o direcionamento das regras concernentes à boa-fé ao asseguramento da

transparência e das expectativas razoáveis dos contraentes82. E assim está, igualmente, no

Código de Defesa do Consumidor em cujo texto se revela a boa-fé como padrão de

conduta dirigido a ambos os contraentes (art. 4°, inc. III), assegurando a “transparência”

que permitirá reduzir a assimetria informativa e como regra de limite às condutas

contratuais abusivas (art. 51, inciso IV).

39.4. Em exaustivo trabalho de Direito Comparado, em que compara os

sistemas norte-americano, inglês, italiano, francês, indiano e chinês, conclui Alberto

Monti que a operacionalidade da boa-fé no contrato de seguro persegue dois objetivos

principais: a redução do “tecnicismo exasperado que prejudica a plena

compreensibilidade da linguagem” e a “eliminação de qualquer efeito surpresa derivado

82

MONTI, Alberto. Buona Fede e Assicurazione. Milão, Giuffrè, 2002, p. 20 et seqs.

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da modalidade de apresentação da garantia securitária oferta a fim de proceder a um

tendencial realinhamento entre os termos reais da apólice e as expectativas contratuais

suscitadas no segurado”83.

39.5. Essa é, com efeito, a tendência mundial, apresentada tanto nos

países super-desenvolvidos quanto nos em desenvolvimento e também entre nós

verificada, em que a lei acolhe a boa-fé em sua feição objetiva. Especificamente no que

toca ao suicídio do segurado, a adstrição à boa-fé (como regra de compreensibilidade na

comunicação com o contratante vulnerável) está em que o Código substitui critérios

subjetivistas, de difícil averiguação e comprovação, por critério objetivo que implementa

a segurança de ambas as partes contratantes, eis que cientes, pela mera leitura do texto

legal, com razoável dose de certeza, do que esperar da relação de seguro em que

envolvidas.

39.6. Ora, não se pode imaginar hipótese de afronta à boa-fé ou de

violação à legítima expectativa do segurado derivada da incidência do art. 798 e de sua

interpretação como regra fundada exclusivamente em critérios objetivos.

39.6.1. Não há “tecnicismo exasperado” nem linguagem abstrusa

(“suicídio voluntário”), prejudicando a plena compreensão do segurado. O prazo

carencial é derivado de lei geral (Código Civil) e não de imposição unilateral e abusiva

do fornecedor (seguradora). Não há, também, “efeito surpresa”, em prejuízo do

beneficiário do seguro, pois tanto o segurado, ao contratar, quanto o beneficiário, sabem

de antemão que este último só terá direito capital estipulado passados dois anos da

contratação (vigência inicial) ou recondução (depois de suspenso), pois ninguém se

escusa de não conhecer a lei.

39.6.2. Se o contrato contém idêntica regra, ou a remissão à lei, com o

devido destaque, como exigido pela tutela do contratante vulnerável (Código Civil, art.

424; Código de Defesa do Consumidor, art. 51, inc. I), onde estaria a deslealdade, a

surpresa desleal? Em que se embasaria a “justeza da expectativa” a receber o capital antes

de transcurso o biênio? Onde haveria abusividade contra o segurado, se a regra é

estabelecida com clareza por lei democraticamente votada pelo Congresso Nacional, e

83

MONTI, Alberto. Buona Fede e Assicurazione. Milão, Giuffrè, 2002, p. 265, em tradução livre.

No original: “(...) la riduzione dei tecnicismi esasperati che pregiudicano la piena comprensibilità del

linguaggio e la eliminazione di ogni effeto sorpresa derivante dalle modalità di presentazione della garanzia

offerta, al fine di procedere ad umtendenziale riallineamento tra reali termini di polizza e apettative

contrattuali inerate nell’assicurato.”

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não imposta unilateralmente pela contratante seguradora?

40. Do mesmo modo, não vejo afronta – antes, percebo congruência –

com o princípio da função social do contrato. A existência de um critério objetivo,

exclusivamente temporal, que afasta discussões tormentosas, atende à utilidade social e

ao próprio caráter transindividual do seguro, permitindo a melhor realização do chamado

“surplus cooperativo”. A seguradora é gestora de um “fundo” de interesse comum.

Sempre que esse “fundo” é atacado, a massa de segurados é prejudicada. Custos judiciais

oneram o “fundo” distorcendo a equação em que se ampara a técnica do mutualismo e,

assim, desequilibram as receitas e despesas de um plano de seguro. Não há como imaginar

que essa regra (que protege o interesse transindividual em causa) 84 viole os interesses

institucionais que, segundo Calixto Salomão Filho são, justamente os interesses

protegidos princípio da função social do contrato.

41. O critério temporal objetivo posto no art. 798 também é congruente

com valores situados constitucionalmente, de modo implícito ou explícito. Assim,

nomeadamente, os princípios da segurança jurídica e da proteção à privacidade, este

também de índole infra-constitucional.

41.1. O princípio da segurança jurídica é atendido quando a lei, clara,

genérica e impessoal, estabelece critérios facilmente compreensíveis e observáveis pelos

seus destinatários; quando reduza litigiosidade baseada em contorções do vernáculo ou

nas dissensões entre os vários campos de vida meta-jurídicos envolvidos no problema que

se está a regular, como ocorre justamente com o suicídio - grave pecado para um cristão,

gesto nobre e virtuoso para um hinduísta; e quando, por sua formulação clara, geral e

impessoal, reduz a incerteza e a possibilidade de o beneficiário do seguro deparar-se com

“cláusulas surpresa”, pois de antemão é fixado um critério objetivo, para cuja averiguação

basta a prova do decurso do tempo.

42.2. A proteção da intimidade, como Direito Fundamental (CF, art. 5,

inc. X) e bem jurídico integrante da personalidade (CC, art. 21) também será melhor

observada com o critério objetivo. A sindicância sobre o discernimento (ou ausência de

discernimento) do suicida e as dolorosas pesquisas sobre os motivos que o levaram a

tolher a sua própria existência deixam de ser necessárias. Ao intérprete cabe apenas

constatar se o biênio transcorreu, ou não. Não mais carecerão os advogados das partes

84

SALOMÃO FILHO, Calixto. Função Social do Contrato: primeiras anotações. In Revista dos

Tribunais, vol. 823, São Paulo, 2004, p.p. 71-73.

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digladiarem-se em busca da penosa comprovação da causa do ato extremo: mera

debilidade psíquica? Um temperamento influenciável pelas alterações dos estados de

ânimo? Um coração partido insuportavelmente pela dor de amor? A iminência de uma

revelação desonrosa? Um estado de pânico? Uma total alienação mental?

42.3. Uma interpretação polarizada pelos vetores constitucionais

fundamentais se inclinará, em caso de dúvida, à interpretação que melhor concretize a

fundamentalidade constitucional dos Direitos de Personalidade, objeto, ao mesmo tempo,

da proteção da Constituição e do Código Civil. A proteção a esses direitos não se encerra

com a morte, como decidiram o Tribunal Supremo (BGH) e a Corte Constitucional da

Alemanha no célebre “caso Mephisto”, ainda em meados do séc. XX, ao assentar:

“Resultaría inconciliable con el precepto constitucional de la inviolabilidad de la dignidad

humana que preside todo Derecho Fundamental, que el hombre, al que corresponde dicha

dignidad por ser persona, pudiera quedar desposeído de ella o vejado en su consideración

después de la muerte”85.

42.4. Não parece haver dúvidas que a investigação sobre as condições

mentais do suicida; a pesquisa invasiva de sua privacidade ou a exposição de suas mais

íntimas dores – tudo para demonstrar se houve ou não “voluntariedade” e

“premeditação”- pode, efetivamente, levar ao vexame na consideração que, todavia, lhe

é devida mesmo post mortem. Assim, se dúvida houvesse sobre o teor do art. 798 do

Código Civil – e não as há, dada a clareza do texto, graças ao expresso expurgo do critério

subjetivo - melhor andaria o intérprete que adotasse o caminho ditado pelos vetores

constitucionais.

43. Nessa linha anda também parcela da doutrina brasileira que

escreveu após a vigência do Código de 2002 ainda que não motive a interpretação do art.

798 pelo viés da proteção aos Direitos Fundamentais. Colha-se, exemplificativamente, a

abalizada opinião de Tzirulnik, Cavalcanti e Pimentel: "Este artigo [n: o art. 798]

pretendeu encerrar a discussão acerca da cobertura, ou não, de suicídio no seguro de

pessoas. (...). Ao que tudo indica, o legislador pretendeu pôr fim ao debate, estabelecendo

o critério da carência de dois anos para a garantia de suicídio. O critério é objetivo: se o

85

BGH 250, 133; Tribunal Constitucional, 30, 194, s. Conforme comentário e transcrição de

HATTENHAUER, Hans. Conceptos Fundamentales del Derecho Civil. Tradução de Pablo S. Coderch.

Ariel, Barcelona, 1987, p. 26, grifei. Na doutrina brasileira v. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos

Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. Estudos de Direito Constitucional. São Paulo: Instituto

Brasileiro de Direito Constitucional – Celso Bastos Editos, 1998, p. 87-90.

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suicídio ocorrer nos primeiros dois anos, não terá cobertura; se sobrevier após este

período, nem mesmo por expressa exclusão contratual, poderá a seguradora eximir-se do

pagamento. Não se discute mais se houve ou não premeditação, se foi ou não

voluntário”86.

44. Com igual precisão, e atentos aos elementos genéticos da regra

codificada, anotam Fiúza e Figueiredo Alves: "Agora, porém, a lei veio a estabelecer um

limite temporal, como condição para pagamento do capital segurado, ao afirmar,

categoricamente, que somente após dois anos da vigência inicial do contrato é que o

beneficiário poderá reclamar o seguro devido em razão de suicídio do segurado. A rigor,

é irrelevante, doravante, tenha sido, ou não, o suicídio premeditado, pois a única restrição

trazida pelo NCC é de ordem temporal. A norma, ao introduzir lapso temporal no efeito

da cobertura securitária em caso de suicídio do segurado, recepciona a doutrina italiana,

onde o prazo de carência especial é referido como spatio deliberandi. Esse prazo de

inseguração protege o caráter aleatório do contrato, diante de eventual propósito de o

segurado suicidar-se” 87.

45. Registrando as posições divergentes, também Venosa observa: "O

atual Código procura solucionar de forma mais prática e objetiva a questão, estatuindo

que o suicídio não gerará indenização, se ocorrido nos primeiros dois anos de vigência

inicial do contrato, ou de sua recondução depois de suspenso, permitida esta pelo

ordenamento (art. 798). Sob tal prisma, afastar-se-á a discussão acerca da premeditação.

Com esse período de dois anos, afasta-se a possibilidade de eventual fraude de quem faz

seguro de vida com a intenção precípua de suicidar-se. Esse mesmo art. 798 é expresso

no parágrafo único, estatuindo que "ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é nula a

cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por suicídio do segurado"88.

46. Por igual exprime Paulo Nader: "O Código Civil estipula um

conjunto de critérios a ser considerado na hipótese de suicídio do segurado. O legislador

buscou o fiel da balança, a fim de promover a justiça do caso concreto, dando a César o

que é de César. Partiu do pressuposto de que o suicídio, quase sempre, é ato de

86

TZIRULNIK, Ernesto, CAVALCANTI, Flávio Queirós e PIMENTEL, Ayrton. O Contrato de

Seguro. Novo Código Civil Brasileiro. São Paulo, IBDS, 2002, p. p.212-213, grifei.

87 FIUZA, Ricardo e FIGUEIREDO ALVES, Jones. Novo Código Civil comentado. São Paulo:

Saraiva, 2006. 5ª ed. p. 654

88 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: contratos em espécie. São Paulo: Atlas, vol. III, 2004.

4ª ed. p. 408, grifei.

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desequilíbrio, algumas vezes circunstancial e na maioria dos casos não comporta uma

espera superior a dois anos. O legislador não quis facilitar o pagamento da indenização,

a fim de não incentivar o ato tresloucado, nem pretendeu impedir a contraprestação em

situações justas, que não oferecem indicativos de má-fé. Em caso de suicídio do segurado,

para que o beneficiário faça jus ao pagamento, é preciso que tenha havido, entre a

formação do contrato e o evento, uma carência mínima de dois anos ou, igual prazo, após

o fim da suspensão do contrato. Não preenchida uma destas exigências, a sociedade

seguradora haverá de pagar ao beneficiário o valor correspondente ao da reserva técnica

formada. É a dicção do art. 798” 89.

47. Com base em cuidadosa pesquisa de Direito Comparado, leciona

Kriger Filho: "Entre nós também não passou desapercebido da atenção do legislador [o

tema do suicídio], tanto que o artigo em comento expressamente exclui o direito à

cobertura securitária se o mesmo ocorrer dentro do lapso de dois anos da vigência inicial

do contrato ou da sua recondução, se seus efeitos restarem suspensos. Este tempo de

"carência", pelo qual se outorga ao segurador legitimidade para negar o pagamento da

indenização em caso de suicídio do segurado, é conhecido como "regra da

indisputabilidade" ou spatio deliberandi dos italianos, pertencendo inclusive à

sistemática legal de vários países, a exemplo da Alemanha, em que é de dez anos, da

Argentina, três anos, da França, dois anos e de Portugal, um ano”90.

89 NADER, Paulo. Curso de Direito Civil: Contratos. Rio de Janeiro: Forense, vol. 3, 3ª ed., 2008,

P. 385.

90 KRIGER FILHO, Domingos Afonso. Seguro no Código Civil. Florianópolis: OAB/SC, 2005, pp.

246-244-245.

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48. É bem verdade haver interpretações divergentes na doutrina91 e,

bem mais raramente, na jurisprudência92. Porém, não se afiguram como as mais

adequadas em face da letra expressa do Código, da expressa motivação do legislador

(revelada nas Notas Explicativas de Comparato, da incolumidade da regra por todo o

período da tramitação legislativa do Projeto) bem como em face dos vetores

constitucionais antes referidos.

48.1. Com todo o respeito aos seus ilustrados autores, parecem-me, na

realidade, conclusões ilógicas, efetivamente contraditórias e anacrônicas. Isto porque não

haveria razão para adotar-se um critério temporal objetivo para, em seguida, desmanchá-

lo com a criação de presunções não previstas e justificáveis tão somente se tivesse sido

considerado pela lei o critério subjetivo, como ocorria na vigência do Código de 1916.

48.2. Nesse particular – volto a insistir – são de valia a doutrina italiana,

que enfrentou a questão há sessenta anos, respondendo com firmeza e coerência ao fato

de o novo texto expurgar o critério ligado ao sujeito (premeditação, ou não), substituindo-

o pelo critério objetivo bem como a história da tramitação legislativa, a evidenciar a

91 A doutrina que sustenta a persistência do critério do Código de 1916 parece hesitar. Confira-se,

exemplificativamente em Rizzardo, que, embora registrando a “notável mudança quanto ao sistema do

Código de 1916” e afirmando a “pela presente ordem a única limitação é temporal devendo, para ensejar o

direito, que não ocorra depois do prazo de carência de dois anos. No mais, é indiferente tenha ou não

ocorrido a premeditação, ou a voluntariedade do ato", em outra passagem admite a sindicância sobre a

“alterações da vontade”do suicida (RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2005. 6ª ed.

p. 874). Outros autores (como TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; e MORAES, Maria

Celina Bodin. Código Civil interpretado conforme a Constituição da Républica. Rio de Janeiro: Renovar,

vol. II, 2006, p. 608), reconhecendo a mudança, utilizam o tempo verbal condicional para expressar:

“Discute-se se o dispositivo em questão prevê, na verdade, apenas uma inversão do ônus da prova. Assim,

nos primeiros dois anos, incumbiria ao beneficiário comprovar a não premeditação do suicídio pelo

segurado. Se o beneficiário lograsse comprovar a não premeditação, a seguradora não poderia se eximir da

sua obrigação, ainda que o suicídio ocorra nos primeiros dois anos de vigência do contrato." Do mesmo

modo os atualizadores da obra de Orlando Gomes, Antônio Junqueira de Azevedo e Francisco Paulo de

Crescenzo Marino, que aludem: “Há duas interpretações possíveis desta regra. De acordo com a primeira,

trata-se de espécie de prazo de carência para a cobertura nos casos de suicídio. A estipulação de prazo de

carência será lícita, à luz do art. 797 do Código Civil. Consoante outra interpretação, o dispositivo instituiria

presunção relativa (iuris tantum) no sentido de que o suicídio dentro do prazo de dois anos é premeditado,

afastando o direito à garantia. Nesse caso, seria possível ao beneficiário demonstrar que o suicídio não foi

premeditado, fazendo jus ao recebimento do capital segurado. Esse é o teor do Enunciado nº 187 da III

Jornada de Direito Civil." (GOMES, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 26ª ed., 2008, p. 513).

Já para Cavalieri “A norma é surpreendente e nada feliz, porque estabeleceu uma espécie de suicídio com

prazo de carência, inovando em uma matéria que já estava muito bem equacionada pela doutrina e pela

jurisprudência.”( CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro:

Malheiros, 2004. 5ª ed ,p. 443).

92 TJRS Apelação Cível nº 70022770879, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:

Paulo Sérgio Scarparo, Julgado em 12/03/2008. Idem: Apelação Cível nº 70017404088, Sexta Câmara

Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ubirajara Mach de Oliveira, Julgado em 13/12/2007 e Apelação

Cível nº 70020123949, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Umberto Guaspari

Sudbrack, Julgado em 21/11/2007, todas do mesmo Tribunal.

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reiterada vontade democrática. Ademais, é de se perguntar: porque razão teria o Código

de 2002 mudado radicalmente a regra se fosse para a interpretação continuar a mesma

atribuída ao art. 1.440 do Código revogado? Não se estaria então a repetir o célebre – e

cínico - dito de Trancredi a Don Fabrizio Corbera, Príncipe di Casa Salina, de que “tudo

deve mudar para continuar no mesmo?” 93.

49. Também – como acabamos de anotar - não se afiguram adequadas

por uma interpretação literal, lógico-sistemática e axiológica, à luz dos princípios da

Constituição e do Código Civil.

50. Por fim, não configuram hipóteses de permissão para a livre criação

judicial do sentido do texto.

50.1. Tem a doutrina acentuado, ao longo do séc. XX o abandono do

estreito positivismo legalista que tinha a letra da lei como intocável fetiche. Isto não

obstante, há consenso acerca da existência de espaços e limites para a atividade do

intérprete.

51. Os estudiosos do “Direito dos Juízes” (Richterrech), ao afirmar a

criatividade judicial como “insuprimível e irrefutável94” acentuam, concomitantemente,

o seu espaço, qual seja, o espaço legislativo lacunoso ou aquele que, por mudança

ponderável na realidade fática somada à inércia do legislador, transformou o sentido

originalmente conferido à disposição legal. É este o âmbito do Direito jurisprudencial

que, nessa medida, “vive accanto, o complementarmente, al diritto legale,

determinandolo, arrichendolo o consolidandolo”95 e assim promovendo a permanente

adaptação da lei aos fatos. Há, ademais, técnicas para tanto, seja a interpretação ab-

rogante, seja a analógica, seja a extensiva, não se devendo esquecer que a legitimidade

democrática repele o voluntarismo. É o que lembra Müller ao versar o “estatuto de

93

A famosa frase é: "Se vogliamo che tutto rimanga come è, bisogna che tutto cambi!. (v.

LAMPEDUSA, Giuseppe Tommaso di. Il Gattopardo. 90ª ed. Roma: Feltrinelli, 2008.)

94 ORRU, Giovanni. Richterrech. Il Problema della Libertà e Autorità Gudiziale nella dotrina

tedesca comtemporânea. Milão, Giuffrè, 1988, p. 139. Em tradução livre: “Vive ao lado, ou

complementarmente, ao direito legal, determinando-o, enriquecendo-o ou consolidando-o”. Em similar

sentido REALE, Miguel. Fontes e Modelos do Direito – para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo:

Saraiva, 1994, p. 29-30.

95 ORRU, Giovanni. Richterrech. Il Problema della Libertà e Autorità Gudiziale nella dotrina

tedesca comtemporânea. Milão, Giuffrè, 1988, p. 139.

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prioridade dos dados lingüísticos” típico dos sistemas de direito escrito96 e ao enfatizar

que a concretização jurídica não é a mera “reelaboração” (Nachvollzug) de valorações

legislativas, mas integra um processo mais complexo, do qual a interpretação é “apenas

um elemento entre outros”97.

52. Como bem esclarece Teresa Arruda Alvim Wambier, “(...) o juiz

“cria” direito no sentido de poder engendrar soluções para casos que não sejam rotineiros,

que não estejam “prontas” no sistema (para que a situação fática se encaixe

automaticamente nelas). Mas essas soluções, sob pena de se deixar definitivamente de

lado o valor segurança, devem ser “criadas” a partir de elementos constantes no sistema

jurídico, somados, combinados, engrenados, etc., e não com base em elementos que o

sistema não tenha encampado”98.

53. Não há dúvidas que o sistema não “encampou”, na matéria, o

critério subjetivo que animara o Código de 1916, sendo claro o expurgo do elemento

“discernimento”, afastado que esteve durante toda a tramitação do Anteprojeto, do

Projeto e, finalmente, do Código Civil de 2002. Não podem, portanto, persistir as

interpretações que o tomam em consideração, sob pena de ensejar o arbítrio, o

voluntarismo, contrário ao jogo democrático e aos valores contidos no Estado e Direito,

não se justificando emprestar ao art. 798 o que ele efetivamente não contém99.

96

MULLER, Friedrich. Discours de la Méthode Juridique. Trad. fran. de Olivier Jouanjan. Paris.

PUF, 1993, p.383.

97 MULLER, Friedrich. Métodos de Trabalho do Direito Constitucional. São Paulo, Max Limonad,

2ª ed. revista, 2000, pp. 66-67.

98 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Controle das Decisões Judiciais por Meio de Recursos de

Estrito Direito e da Ação Rescisória. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002, p. 394.

99 Assim o faz a jurisprudência que “lê” no texto legal a exigência da prova da premeditação.

Exemplificativamente a Ap. Civ. Cível nº 70023566433, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS,

Relator: Jorge Luiz Lopes do Canto, Julgado em 21/05/2008, com a seguinte ementa: “APELAÇÃO

CÍVEL. SEGUROS. AÇÃO DE COBRANÇA. COBERTURA DO RISCO DE MORTE. SUICÍDIO NÃO

PREMEDITADO.ÔNUS DA PROVA. NEGATIVA POR PARTE DA SEGURADORA. INDENIZAÇÃO

DEVIDA. 1. O objeto principal do seguro é a cobertura do risco contratado, ou seja, o evento futuro e

incerto que poderá gerar o dever de indenizar por parte do segurador. Outro elemento essencial desta espécie

contratual é a boa-fé, caracterizada pela sinceridade e lealdade nas informações prestadas pelo segurado ao

garantidor do risco pactuado, cuja contraprestação daquele é o pagamento do seguro. 2. Consoante

entendimento jurisprudencial assentado nesse Colegiado e no STJ, haverá pagamento do seguro se o

segurado vier a falecer em razão de suicídio não premeditado, mesmo que dentro do interregno de tempo

assinalado pelo art. 798 do Código Civil. 3. A seguradora não logrou êxito em comprovar a premeditação,

ônus que lhe incumbia e do qual não se desincumbiu, a teor do que estabelece o art. 333, II do CPC,

mostrando-se devida a indenização securitária. Por maioria, negado provimento ao recurso, vencido o

Revisor”. (grifei).

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54. O critério temporal objetivo que dispensa a investigação sobre a

voluntariedade ou não do suicídio é também acolhido pelas mais recentes legislações. A

titulo de exemplo veja-se o que diz novíssima Lei Geral dos Seguros, de Portugal bem

como a lei a argentina, e a francesa, e, inclusive, o Substitutivo do Projeto de Lei n°

3555/2004, em tramitação no Congresso Nacional.

54.1. Na legislação portuguesa, o Decreto Lei n.72 de 16 de abril de

2008 estabelece em seu artigo 191 que está excluída a cobertura da morte em caso de

suicídio ocorrido até um ano após a celebração do contrato, salvo convenção em contrário.

Na legislação argentina também predomina o critério objetivo, visto que a Lei de Seguros

n.º17.418 de 1967, em seu art. 135, dispensa a investigação da voluntariedade do suicídio

depois de três anos de decurso do contrato100. Na França outro não é o critério senão o

temporal, conforme dispõe o art. L132-7 do Code des Assurances: “O seguro em caso de

morte deve cobrir o risco de suicídio a contar do décimo ano do contrato”101.

55. Posso, assim, com base nesses fundamentos, anunciar as minhas

conclusões, o que o faço ao modo sintético, acompanhando o questionamento proposto

pelos Consulentes.

III. Das Conclusões sintéticas

a) A evolução legislativa do CC, tanto omissiva como comissivamente,

no que se refere ao pré-falado artigo 798 do CC, admite a conclusão de presunção

absoluta de suicídio premeditado no biênio pós-contratação ou recondução?

R:A evolução legislativa, evidenciada pela pesquisa genética e

histórica, demonstra ter ocorrido, na matéria, alteração radical passando-se de um critério

baseado na sindicância da premeditação ou não do suicídio, e de presunções de

premeditação, para um critério puramente objetivo, de ordem temporal, exclusivamente,

de modo a afastar a pesquisa sobre o estado mental, as intenções, o dolo ou qualquer outro

aspecto concernente à subjetividade do suicida (conforme itens 21 a 50, supra);

100 In verbis o art. 135: “El suicidio voluntario de la persona cuya vida se asegura, libera al

asegurador, salvo que el contrato haya estado en vigor ininterrumpidamente por tres años.”

101 No original o art. L132-7: “L'assurance en cas de décès doit couvrir le risque de suicide à compter

de la deuxième année du contrat.”

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Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 267

b) A recepção do Substitutivo de lei do Eminente Mestre Fábio Konder

Comparato, municiado da sua indiscutível exposição de motivos, e consagrada,

positivamente, na derradeira exposição de motivos do CC, da lavra do Eminente Mestre

Miguel Reale, admite, no que se refere ao artigo 798 do CC, a conclusão de presunção

absoluta de suicídio premeditado no biênio pós-contratação ou recondução?

R. Como acima registrado, não há que se falar em presunção. O critério

é objetivo, e nada se presume: se ocorrida no biênio pós conclusão do contrato, a morte,

por suicídio, não gera ao segurado o direito ao recebimento do capital; se ocorrida após

esse período, a seguradora deve pagar, qualquer que seja a causa do suicídio (conforme

item 43 supra);

Além do mais, se presunção houvesse (como quer o Enunciado n. 187

da III Jornada sobre o Código Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal) essa

seria uma presunção violadora do sistema, pois estaria posta contra a parte vulnerável

(beneficiário) do contrato (vide item 36.3 supra).

c) A não-recepção do Esboço ou Anteprojeto do CC de 1965, no que se

refere ao artigo 798 do CC, prejudica a aceitação, para fins de norte da doutrina do

Eminente Mestre Caio Mario da Silva Pereira?

R. Sim. O Anteprojeto elaborado pelo Eminente Caio Mário não foi

objeto da deliberação e aprovação pelo Congresso Nacional e, no particular, sequer

influenciou, minimamente que seja, o teor do vigente art. 798 na medida em, na redação

proposta pelo ilustre Professor, mantinha o critério subjetivista, sequer o mesclando com

o critério objetivista. Como fica claro nas Notas Explicativas do Professor Fábio Konder

Comparato, as soluções propostas tanto no Anteprojeto de Caio Mário quanto no de

Miguel Reale, não foram consideradas as melhores. Com a humildade intelectual que é

própria dos grandes juristas, o Professor Miguel Reale reconheceu a superioridade da

proposição de Comparato e a acolheu, apoiando a substituição que, efetivamente, veio a

ser concretizada, sem ter sofrido a menor alteração pelos longos anos em que o Projeto

tramitou no Congresso Nacional. Assim, afirmou-se e reafirmou-se, sem sombra de

dúvidas, a vontade democrática de ver adotado unicamente o critério objetivista (ver itens

30 a 33, acima).

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d) As súmulas 105 do STF (que inclusive despreza a carência,

reconhecida nos artigos 797 e 798 do CC) e 61 do STJ, amplamente conhecidas na

gestação do CC, permanecem efetivas no que se refere ao “fenômeno” do suicídio,

doravante e durante o hiato do artigo 798 do CC?

R. Não. Essas Súmulas, fundadas em Código revogado e em

disposições e presunções que não mais se sustentam em vista da legislação vigente,

perderam a sua razão de ser. (ver item 15, acima)

e) O artigo 798 do CC, cuidando do suicídio, sem qualquer

indexação, melhor, adjetivação (“voluntário ou involuntário”), em comparação com o

Código Beviláqua e com o Anteprojeto de 1965, admite a conclusão de presunção

absoluta de suicídio premeditado no biênio pós-contratação ou recondução?

R. Prejudicada. Como já registrado acima, não há mais que cogitar de

presunções. O critério é exclusivamente o temporal, pois se seguiu, expressamente, o

modelo do Código Civil italiano (ver itens 41 a 43, acima).

f) A consolidação do CC, em especial do artigo 798 do CC, como

“produto” do poder Executivo e “verdade” do Poder Legislativo, permite a rediscussão

da mens legis (não se falando da discricionariedade propiciada pelas cláusulas abertas),

em vertente hermenêutica, pelo Poder Judiciário?

R. Não. Por mais que a doutrina contemporânea valorize o espaço do

“Richterrech” ou “Direito dos Juízes”, afastando-se de um estreito positivismo legalista,

tal não significa que o espaço da decisão judicial possa recair no voluntarismo. Ao

intérprete é dado afastar o texto legal nos casos permitidos pelo sistema (vide item 50,

supra).

Realizada a exaustiva análise dos métodos hermenêuticos (genético-

histórico; literal; lógico-sistemático e axiológico) constatou-se que todos convergem no

sentido de afastar a interpretação ab-rogante proposta por alguns autores e exposta em

alguns julgados, tendo-se por ab-rogante a interpretação que nega valor a uma disposição

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de lei, o que só é admissível quando se verifica a sua absoluta contraditoriedade e

incompatibilidade com outra norma, supra-ordenada e principal.

Também não se justifica a interpretação restritiva, assim considerada a

que constata que a fórmula textual exprime menos do que o pensamento legislativo quis

(minus scripsit quam voluit) porque a restrição só tem lugar quando o texto, entendido

de modo geral, como está redigido, viria a contradizer outro texto ou se contivesse uma

contradição interna ou se ultrapassasse o fim para a qual foi ordenada , hipóteses que se

não verificam (ver itens 41 a 51, supra).

g) A ruptura legislativa do CC de 2002, lançando idéia inédita na

discussão quanto ao suicídio (artigo 798 do CC), admite a manutenção/utilização do

mesmo universo/desfecho jurisprudencial de outrora, antes do seu nascimento?

R. Não. A interpretação é a ponte que une o texto normativo à realidade,

produzindo a norma jurídica. Se alterados os dados do texto normativo – e radicalmente

alterados, pela substituição dos critérios da norma, como na espécie – não se pode, pena

de inconcebível anacronismo, sustentar e privilegiar interpretação congruente com a

realidade normativa já extinta (conforme itens 19 a 28, supra).

h) A destinação da chamada “prova diabólica”, foi, no artigo 798 do

CC, o banimento ou o seu endereçamento ao beneficiário?

R. O destino da “prova diabólica” foi o banimento. Foi esse o expresso

intento a motivar a proposição resultante no texto aprovado (sem ressalvas) do art. 798

do Código Civil. Em face do expresso texto legal não mais se justifica a argumentação

que, para um lado (beneficiário) ou para o outro (seguradora) preserve as discussões

probatórias e/ou sindicâncias acerca da motivação do suicídio no puerpério bienal do

artigo 798 do CC. Esgotado esse prazo, há o dever da seguradora garantir o capital (itens

19 a 28, supra).

i) O entendimento de presunção relativa de suicídio premeditado, a

partir e com vistas ao puerpério estabelecido no artigo 798 do CC, atenderia aos “fins”

da lei, considerando a perpetuação do tormentoso ônus da carga dinâmica das provas?

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R. Não. Entender-se como proposto pelo Enunciado nº 187 da III

Jornada de Direito Civil acarretaria violação aos fins da lei (Código Civil), que pretendeu

pacificar as discussões e onerar o beneficiário/consumidor com a prova diabólica que foi

tout court banida (assim violando também os fins de proteção do Código de Defesa do

Consumidor). Ao contrário desse entendimento penso estar atendidos os fins de segurança

jurídica e proteção ao beneficiário quando a lei, clara, genérica e impessoal, estabelece

critérios facilmente compreensíveis e observáveis pelos seus destinatários, evitando-se a

possibilidade de “cláusulas surpresa” em detrimento do segurado bem como a

litigiosidade baseada em contorções do vernáculo ou nas inevitáveis dissensões entre a

compreensão dada ao suicídio pelos vários campos de vida meta-jurídicos envolvidos no

problema; se está a proteger bens da personalidade do suicida, nomeadamente, a sua

privacidade, expurgando-se a pesquisa e as discussões sobre a sua motivação com o que

melhor se concretiza a fundamentalidade constitucional dos Direitos de Personalidade,

objeto, ao mesmo tempo, da proteção da Constituição e do Código Civil; resguarda a

técnica do mutualismo, atada à função social do seguro, pondo-se um freio aos contratos

preordenados ao suicídio; determina, de modo claro, à seguradora, que cumpra a

obrigação de garantia, ultrapassado o biênio; protege-se, ao fim e ao cabo, os próprios

interesses dos consumidores, não adstritos ao interesse meramente individual e até mesmo

“egoístico” de uns ou de alguns, privilegiando-se a função social, dirigida à

implementação do interesse (coletivo) do grupo segurado. (ver itens 37 a 49, supra).

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ATUALIDADES

METODOLOGIA DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL: FUTUROS

POSSÍVEIS E ARMADILHAS

Bruno Lewicki

Doutor e Mestre em Direito Civil pela UERJ.

Esse é um momento de balanço para a metodologia civil constitucional:

olhar para trás e ver o que alcançamos e olhar para o futuro e ver o que queremos alcançar.

Em momentos assim retrospectivamente descobrimos em nosso passado verdadeiros anus

mirabilis, anos de nossas vidas em que várias epifanias ocorreram e informaram o que

viríamos a viver, estudar e produzir depois.

Em determinado ano da minha vida participei do meu primeiro evento

científico, um congresso do Brasilcon, alguns dias após evento ainda mais marcante: meu

primeiro carnaval em Recife. Naquele mesmo ano me formei em Direito e teria outra

epifania: ler, e por incrível que pareça, assistir a Pietro Perlingieri pela primeira vez, na

minha querida Faculdade de Direito da UERJ. Naquele dia de agosto eu entendi tudo e vi

que não sabia nada. E assim a montanha russa começou sua viagem.

Hoje, passados tantos anos, muita coisa mudou no quadro do direito

civil brasileiro. Lemos e escrevemos páginas e páginas. Mas para fazer esse breve

balanço, não vejo outra saída senão mostrar que aprendemos a lição do mestre Italo

Calvino, e voltar aos clássicos. Após me aventurar com as bibliografias mais exóticas e

os assuntos mais específicos, preciso voltar à base que me fez dar os primeiros passos:

Professor Perlingieri e sua lição sobre a complexidade do ordenamento.

Boa parte da metodologia civil constitucional assenta-se no

reconhecimento da historicidade dos institutos jurídicos, o que normalmente associamos

à releitura de institutos do passado à luz das demandas do presente. Mas igualmente

importante é reconhecer a historicidade do próprio momento presente; a importância do

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que vivemos hoje é diametralmente oposta à duração deste momento histórico, que nada

mais é do que a passagem para outros instantes de contínua evolução.

Pensando nessa contínua evolução, é impossível resistir à tentação de

arriscar um exercício improvisado de futurologia. Pensar alguns cenários que podem

caracterizar o direito civil brasileiro e analisar qual o papel que a metodologia civil

constitucional pode ter nesses futuros possíveis.

O primeiro e principal cenário que sugiro diz com a multiplicação de

matérias, assuntos e interesses subjacentes ao direito civil. Como os outros cenários que

mencionarei, este futuro possível traz em si uma armadilha: o estilhaçamento do

ordenamento calcado na ideia de legalidade constitucional.

A quebra da antiga tabuada “teoria geral-obrigações-contratos-direitos

reais-família-sucessões” é evidente. Campos como responsabilidade civil, direito do

consumidor, direitos da personalidade e direito das garantias vão ocupando também o

proscênio das discussões, por sua importância funcional e relevância prática. Isso tem

impacto inclusive nos currículos dos cursos de graduação, cada vez mais criativos, e é

ainda reflexo de influências norteamericanas: afinal, falar em “direito civil” para um

jurista proveniente da Common Law nos leva a um clássico problema de tradução.

A privacidade é um exemplo. Partimos de um direito à privacidade,

pobremente expresso na ordem infraconstitucional no art. 21 do Código de 2002, para o

surgimento de um Direito da Privacidade. Em pouco tempo teremos um Marco Civil da

Internet regulando alguns aspectos desta questão; logo depois, espera-se, uma lei geral

de proteção de dados, em discussão no Ministério da Justiça. Paralelo a isso tudo temos

o projeto da chamada lei das biografias. Ontem havia quase nada. Amanhã, tudo novo e

cheirando a tinta, leis novas e modernas. Depois de amanhã elas serão duramente

questionadas, senão pelo descasamento com as tendências sociais, quem sabe justamente

pela natureza esparsa. Daí para a futura aprovação de um Código da Privacidade terá sido

um pulo.

Ou seja, a partir de algo que era mero detalhe brota aos poucos o que

aparenta ser outro ordenamento, convivendo com outros tantos. Adverte contudo

Perlingieri que “a teoria da interpretação assume, em um ordenamento complexo e aberto,

a função mais delicada de individuar a normativa a ser aplicada ao caso concreto,

combinando e coligando disposições, as mais variadas, mesmo de nível e proveniência

diversos, para conseguir extrair do caos legislativo a solução mais congruente aos valores

constitucionais”. Há uma lógica que precisa perpassar todos estes dispositivos, leis e

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regulações, e essa lógica precisa estar presente também nas decisões que aplicam esse

ordenamento positivo. Uma coisa não existe sem a outra, como lembra, novamente,

Perlingieri: “a produção da lei e a produção da decisão acabam por representar uma

vicissitude incindível [...] A lei, o fato concreto, a lide e a decisão da lide se configuram

como um procedimento sem fim, onde a situação final se torna inicial, pronta para assumir

o provisório papel final”. O ciclo é infinito.

Bom exemplo de campo onde esta retroalimentação funciona de forma

feroz e necessária é a responsabilidade civil. As tentativas de construir uma teoria geral

propriamente dita da responsabilidade civil mostram-se visivelmente insatisfatórias, tanto

do ponto de vista abstrato - trata-se de uma suposta catedral cujas paredes não se

sustentam, de tantos furos que têm - como do ponto de vista concreto, nas respostas que

são trazidas às questões reais e judicializadas.

Muitos prevêem um futuro de atomização da responsabilidade civil,

com a criação de standards e regras próprias para os diferentes setores da vida em que

esse instituto se manifesta. Esse cenário não deixa de ser desejável quando pensamos na

mencionada insuficiência da sua chamada “teoria geral”, mas os riscos que daí advém são

imensos. Nas palavras de Perlingieri, “qualquer instituto, matéria etc. é sempre e somente

o resultado hermenêutico de todo o direito positivo. A interpretação ou é sistemática (a

360 graus) ou não é interpretação. Os chamados sistemas parciais são, no mais das vezes,

o resultado de uma primeira, provisória, abordagem, diante da qual o intérprete não pode

se ater, especialmente, na presença de valores fundamentais destinados a funcionalizar

cada instituto e à luz dos quais é mister exprimir valorações de validade e de

legitimidade”.

Podemos, assim, escapar à armadilha do estilhaçamento. Mas mesmo

que olhemos para o ordenamento atentando para sua inequívoca unidade, temos que nos

manter alertas para driblar outro problema: a armadilha do esquecimento de certos

institutos. Isso é particularmente importante no cenário de um futuro possível de

ressurgimento com toda a força da autonomia da vontade, inclusive como reação ao

movimento crescente de maior intervenção na liberdade contratual.

Não podemos simplesmente ignorar institutos como a cláusula

resolutiva expressa, hoje mais morta do que a discriminação legal dos filhos adotivos ou

a pena de torturas e galés, apesar de presente no Código Civil como sempre esteve.

Podemos e devemos, como lembra o mote desse nosso encontro, ressignificar esses

institutos; entender seus limites e possibilidades, o que eles representam hoje,

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devidamente filtrados pela legalidade constitucional, em oposição ao que significavam

em outro contexto. Podemos atacá-los e pregar sua obsolescência ou mesmo sua

inconstitucionalidade.

Mas não podemos fingir que eles não estão ali. Não se faz pesquisa em

Direito ignorando o dado normativo. Nunca mais esqueci certa reunião de orientação que

tive com o Professor Tepedino a respeito do meu (então) projeto de tese sobre as

limitações ao direito autoral. Basicamente eu achava que os dispositivos vigentes sobre

aquele assunto eram horrendos. Sabendo onde aquela opereta ia terminar, argutamente

ele me fez ver que nós somos pesquisadores em Direito, não legisladores. Antes de me

arvorar a dizer como as coisas deveriam ser, o meu dever de doutorando era esgotar as

possibilidades interpretativas da lei vigente. Mas isso sem recorrer ao, com o perdão da

expressão, atalho de pular diretamente para uma aplicação direta da normativa

constitucional.

Depois de sangue, suor e lágrimas, naquele capítulo de lei onde antes

eu via terra arrasada passei a ver diversas possibilidades interpretativas. A norma

infraconstitucional que eu julgava fosca e feia ganhou vida com interpretações

sistemáticas, extensivas e analógicas, sempre à luz da Constituição.

Ou seja: não podemos encarar o ordenamento como o proverbial bufê,

onde nos servimos um pouco de cada coisa, a nosso gosto, deixando para lá aquilo que

não nos agrada tanto. Afinal, ele é uno.

Assim como não podemos ignorar normas e institutos, temos também

o dever de nos reconhecer nas demais teorias e escolas que campeiam pela ciência

jurídica, sabendo dialogar com elas, construir pontes e minimizar preconceitos. É

inegável que foram os civilistas, que, a partir da Constituição de 1988, difundiram a

perspectiva relativizadora da summa divisio público-privado entre os estudiosos do

Direito Brasileiro com o direito civil constitucional. Essa primazia não dá, porém, salvo

conduto para fechar-nos em nosso “clube” - e por isso quero falar da armadilha do

ensimesmamento.

É claro que precisamos sempre permanecer ciosos da integridade da

nossa metodologia. Mas se é verdade que só somos nós mesmos porque nos

reconhecemos nos outros, também para corretamente percebermos nossos perfis e

confins é indispensável que nos inteiremos do que está sendo discutido por outras escolas

e metodologias. Isso nos leva a um outro cenário, outro futuro possível que já está se

materializando, que é o crescimento da interseção entre Direito e Economia. Não é mais

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possível reduzir a análise econômica do direito à caricatural adoração de um idealizado

conceito de eficiência, erigido à altura de norma fundamental para aqueles cultores.

Podemos e devemos rechaçar qualquer metodologia que rejeite a noção do Direito como

força transformadora da sociedade e que queira reduzir a decisão jurídica a funções

matemáticas. Nas palavras de Perlingieri, “é necessário rejeitar a pretensão de quem acaba

por reconhecer como válida somente a norma jurídica que responda a um critério de

eficiência econômica preestabelecido - e não assente em critérios de valor aceitos

democraticamente”. Ou, como lembra o próprio Guido Calabresi, “sem se basear em

valores que lhe são externos, a maximizacão do bem-estar é um conceito sem

significado”. Mas é o próprio Perlingieri quem alerta que “o mercado necessita de normas

que o legitimem e o regulamentem: entre mercado e direito não há um antes ou um depois,

mas uma inseparabilidade lógica e histórica”. Ou seja, ignorar os influxos e os insumos

que uma visão de mercado possa trazer à metodologia civil constitucional é também

ignorar esta inseparabilidade.

Mas quando falamos da armadilha do ensimesmamento, e já que

estamos falando de metodologia, isto me remete também a um verso de Allen Ginsberg

de que gosto muito: “O método deve ser a mais pura carne, e nada de molho simbólico”.

Há muitas lições contidas aí, e uma das minhas preferidas diz com a linguagem. Sendo o

direito uma ciência interpretativa, a linguagem é uma das ferramentas mais importantes

para sua correta apreensão. Temos que ser precisos em seu manejo.

Evidentemente há espaço para a criatividade ao se escrever sobre

Direito. Pesquisadores experientes podem e devem recorrer a um estilo mais ensaístico,

sobretudo como forma de provocar o leitor. Mas, com o perdão da manjadíssima

comparação, estilo é de certo modo tempero, e é preciso chefs experimentados para usar

dele em fartas quantidades e produzir obras-primas. A tarefa da metodologia civil

constitucional, se não queremos pregar para convertidos, dependerá sempre da nossa

capacidade de comunicarmos nossos entendimentos à comunidade, não apenas jurídica.

Resumo, assim, este acanhado exercício de futurologia de araque a

essas tarefas que nos são impostas: escapar às armadilhas do estilhaçamento, do

esquecimento e do ensimesmamento.

A lição final, voltando sempre aos nossos clássicos, é uma vez mais do

professor Pietro Perlingieri: “Abre-se para o civilista um vasto e sugestivo programa de

investigação, que se propõe a realização de objetivos qualificados: individuar um sistema

do direito civil mais harmonizado com os princípios fundamentais e, em particular, com

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as necessidades existenciais da pessoa; redefinir o fundamento e a extensão dos institutos

jurídicos, especialmente civilísticos, destacando os seus perfis funcionais, em uma

tentativa de revitalização de cada normativa à luz de um renovado juízo de valor; verificar

e adequar as técnicas e noções tradicionais em um esforço de modernização do

instrumentário e, especialmente, da teoria da interpretação. Muitas das investigações já

realizadas nesse sentido indicam que a estrada traçada é rica de resultados, destinados, na

sua totalidade, a dar uma nova feição ao direito civil, contribuindo à criação do direito

civil constitucional”. Obrigado.

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RESENHAS

O SEGUNDO PASSO: DO CONSUMIDOR À PESSOA

HUMANA

Resenha de SCHMITT, Cristiano Heineck. Consumidores

hipervulneráveis: a proteção do idoso no mercado de consumo. São Paulo: Atlas, 2014.

Carlos Nelson Konder Doutor e mestre em direito civil pela UERJ. Especialista em direito civil pela

Universidade de Camerino (Itália). Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UERJ e do

Departamento de Direito da PUC-Rio

I. Não se pode deixar de reconhecer que algumas das conquistas mais

importantes no âmbito das relações privadas no Brasil, nas últimas décadas, ocorreram

graças à atuação dos juristas dedicados ao direito do consumidor. O impacto social do

advento da Lei 8.078/90 e da jurisprudência que lhe deu aplicação é dos mais relevantes

em termos de efetivação do objetivo constitucional de construir uma sociedade livre, justa

e solidária. Estas vitórias somente foram possíveis graças à incansável atividade dos

“consumeristas”, desde os debates sobre a redação do anteprojeto do CDC até a influência

sobre a consolidação e o desenvolvimento das decisões que efetivaram as conquistas

daquele diploma. Esses juristas assumiram um duplo papel. De um lado, cientistas do

direito, enfrentando a aridez da civilística clássica e superando as divisões tradicionais da

dogmática jurídica (privado x público, substancial x processual) para desenvolver novas

técnicas e instrumentos idôneos à efetivação da tutela dos consumidores. De outro lado,

ativistas sociais, lutando pela eficácia de tais instrumentos contra gigantescas forças

econômicas que, resistentes à mudança, buscavam interferir nos mais diversos níveis. As

conquistas são inquestionáveis. Ainda que o processo não esteja findo, eis que sempre se

abrem novos fronts de batalha (tenha-se em vista as batalhas pela reforma do CDC,

envolvendo o superendividamento, o comércio eletrônico e a tutela coletiva), foram

vencidos os argumentos ad terrorem de que a proteção do consumidor levaria à quebra

da atividade empresarial e a um retrocesso econômico.

Por isso, é com enorme satisfação que assistimos alguns daqueles

juristas darem um segundo passo. A conquista da proteção do consumidor, ainda que em

constante expansão, não é suficiente. Embora a categoria do consumidor seja mais

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concreta e específica do que a generalidade seca do “sujeito de direito” da civilística

clássica, ainda é dotada de alguma abstração, demandando a persistência no esforço de

concretização. O consumidor padrão, ou ainda mais o consumidor pessoa jurídica, não

pode receber o mesmo tratamento protetivo que o consumidor criança, o consumidor

idoso, o consumidor portador de necessidades especiais. Essa constatação conduziu à

recuperação, entre esses juristas, da categoria da vulnerabilidade. Trazida do cenário da

saúde pública, foi presumida e generalizada nas relações de consumo, mas a recente

doutrina a devolve à sua origem natal, restabelecendo e aprofundando o vínculo entre esse

conceito e a inexorável fragilidade da condição humana. Nessa toada, diversos estudos

foram publicados, dedicando-se à construção de mecanismos de tutela diferenciados para

esses sujeitos submetidos, em sua humanidade, a condições ainda mais delicadas e mais

necessitadas de tutela, com fundamento na solidariedade. Ante a insuficiência da

vulnerabilidade consumerista, padronizada para todos os consumidores, construiu-se a

categoria da hipervulnerabilidade, que ganhou ampla difusão a partir de alguns julgados

do Superior Tribunal de Justiça. A categoria, contudo, ainda carecia de sistematização

doutrinária adequada. Esse é o contexto em que surge a bem-vinda obra de Cristiano

Heineck Schmitt.

II. Consumidores hipervulneráveis: a proteção do idoso no mercado de

consumo aborda o dramático problema social dos abusos perpetrados sobre os idosos no

âmbito das relações de consumo. Em uma sociedade em que a novidade é supervalorizada

e o que é antigo é tratado como obsoleto, o idoso é cada vez mais relegado ao segundo

plano no que tange ao adequado acesso a bens e serviços fundamentais como no que se

refere à assistência de saúde e, ao mesmo tempo, quando titular de patrimônio e, muitas

vezes, fonte de renda estável, decorrente de pensões e aposentadorias, vítima fácil da

indústria do superendividamento. A previsão constitucional da tutela do idoso, e mesmo

sua regulamentação pelo Estatuto do Idoso, ainda demandam eficácia adequada para a

viabilização de uma proteção real e concreta. Neste sentido, é mais do que louvável o

objetivo de Cristiano Heineck Schmitt de ampliar a efetivação dessa tutela por meio da

categoria da hipervulnerabilidade.

Para tanto, o autor compõe sua bela obra em três capítulos. No primeiro,

busca estabelecer uma ligação entre direitos do consumidor e direitos fundamentais. Rico

na doutrina acerca da chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais e nas

reflexões acerca do impacto do princípio da dignidade da pessoa humana nas relações

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privadas, alça o consumidor que for “sujeito vulnerável do mercado” a “sujeito

constitucional”. No segundo capítulo, dedica-se à tutela constitucional do consumidor

idoso, com grande manancial de pesquisas e dados empíricos, além de uma análise

minuciosa do superendividamento de idosos. O terceiro capítulo estabelece a passagem

final: da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo à hipervulnerabilidade

do consumidor idoso. Com fundamento nos princípios da igualdade e da

proporcionalidade, o autor parte da premissa de que “a vulnerabilidade é uma

circunstância inseparável da noção jurídica de consumidor” e, diante da vulnerabilidade

potencializada do idoso, como de crianças e enfermos, propõe a figura da

hipervulnerabilidade, que “resulta da soma da vulnerabilidade intrínseca à pessoa do

consumidor, com a fragilidade que atinge determinados indivíduos”. Ao final, recorre ao

ilustrativo exemplo dos contratos de planos e de seguros de assistência privada à saúde,

identificando na aplicação do CDC e da Lei n. 9.656/98 formas de redução dos cenários

de espoliação do idoso.

III. A obra de Cristiano Heineck Schmitt é enriquecedora em diversos

níveis. Em primeiro lugar é um alerta. Os dados apresentados pelo autor revelam a

intensidade e a frequência dos mecanismos negociais de exploração de idosos e a urgência

da atuação dos juristas em prol de soluções mais eficazes. Em segundo lugar, é um

diálogo. O autor estabelece ligações entre teorias e doutrinas que, para prejuízo da

sistematicidade do ordenamento, são muitas vezes tratadas em apartado, como as

reflexões constitucionalistas sobre direitos fundamentais, as informações apresentadas

pela sociologia do direito, as difundidas técnicas do chamado microssistema consumerista

e as tradicionais estruturas do direito privado. E é, ainda, em terceiro lugar, uma proposta

inovadora. Defende, com simplicidade e clareza, a construção de uma nova categoria,

para além do consumidor padrão, a dos “hipervulneráveis”. Reconhece, portanto, que no

mesmo espírito que a categoria dos consumidores foi criada, para tratar de forma

privilegiada uma categoria socialmente desprivilegiada, é necessário ir além. Tratar todos

os consumidores da mesma forma, desconsiderando suas fragilidades humanas, seria

desprestigiar, nesse segundo momento, o princípio da igualdade. Daí a proposta, no

sentido de construir uma nova categoria, para diferenciar, alguns, dentre os já

diferenciados.

Pode-se destacar como um dos pontos altos do trabalho não apenas o

chamado diálogo entre as fontes, mas o diálogo com os direitos fundamentais de alçada

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constitucional que, nesse caso, é menos diálogo e mais monólogo: a normativa

consumerista como forma de efetivação do ditado constitucional. Pode-se salientar

também a passagem da tutela geral do equilíbrio econômico nas relações de consumo

para uma tutela de matiz existencial, fundada na dignidade humana do sujeito consumidor

em concreto. Pode-se questionar a conveniência da criação de mais uma categoria abstrata

para diferenciar a sempre mais rica e complexa condição humana. Como toda grande

obra, suscita reflexões e gera questões, permitindo ao leitor que, após a imersão no texto,

continue a pensar sobre o assunto, instigado pela qualidade do trabalho. Mais um ponto

está fora de questão: Cristiano Heineck Schmitt deu o segundo passo. Cabe a nós o

acompanharmos no diálogo.

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SUBMISSÃO DE ARTIGOS

Os trabalhos a serem submetidos à Revista Brasileira de Direito Civil –

RBDCivil para publicação devem observar às seguintes normas:

1. Os trabalhos deverão ser inéditos e exclusivos, isto é, sua publicação não deve

estar pendente em outro local.

2. Os trabalhos deverão ser enviados via e-mail para o

endereço [email protected]. O processador de texto recomendado é o Microsoft

Word. É permitido, contudo, utilizar qualquer processador de texto, desde que os artigos

sejam gravados no formato .rtf (Rich Text Format), formato de leitura comum a todos os

processadores de texto.

3. Os arquivos do artigo e folha de rosto deverão ser separados e nominados de

acordo com o título do trabalho. O artigo não deverá ser identificado.

4. Os trabalhos para a seção de Doutrina deverão ter preferencialmente entre 15 e

35 laudas. Os parágrafos devem ser alinhados a 3 cm da margem esquerda escrita. Não

devem ser usados recuos, deslocamentos, nem espaçamentos antes ou depois. Não se deve

utilizar o tabulador <TAB> para determinar os parágrafos: o próprio <ENTER> já

determina este, automaticamente. A fonte utilizada deve ser Times New Roman, corpo 12.

Os parágrafos devem ter entrelinha 1,5; as margens são de 3cm no lado esquerdo, 2,5cm

no lado direito e 2,5cm nas margens superior e inferior. O tamanho do papel deve ser A4.

5. Os trabalhos deverão ser precedidos por uma folha de rosto com o título do

trabalho (em inglês e português), nome do autor (ou autores), endereço, telefone, faz, e-

mail, situação acadêmica, títulos, instituições a que pertença e a principal atividade

exercida.

6. As referências bibliográficas deverão ser feitas de acordo com a NBR 6023/89

(Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT). A referência bibliográfica básica

deverá conter: sobrenome do autor em letras maiúsculas; vírgula; nome do autor em letras

minúsculas; ponto; título da obra em itálico; ponto; número da edição; ponto; palavra

edição abreviada; ponto; local; dois pontos; editora (suprimindo-se os elementos que

designam a natureza comercial da mesma); vírgula; ano da publicação; ponto. Exemplo:

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Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 1 – Jul / Set 2014 282

DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 2. ed. São Paulo: Martins

Fontes, 1993.

7. Os trabalhos deverão ser precedidos por um resumo analítico bilíngüe que não

ultrapasse 10 linhas, pela indicação de palavras-chaves em inglês e português e por

um Sumário, numerado, com as divisões do texto, separada cada divisão da outra por um

travessão. Exemplo: SUMÁRIO: 1. Realidade social e ordenamento jurídico – 2. Regras

jurídicas e regras sociais – 3. O jurista e as escolhas legislativas. – 4. O Código Civil – 5.

A Constituição – 6. A chamada descodificação.

8. Qualquer destaque que se queira dar ao texto, sempre com parcimônia, deve ser

feito com o uso do itálico. Não deve ser usado o negrito ou o sublinhado.

9. O Conselho Assessor da Revista reserva-se o direito de propor modificações ou

devolver os trabalhos que não seguirem essas normas. Todos os trabalhos recebidos serão

submetidos ao Conselho Assessor da Revista, ao qual cabe a decisão final sobre a

publicação.

10. A publicação na RBDCivil implica a aceitação das condições da Cessão de

Direitos Autorais de Colaboração Autoral Inédita, e Termo de Responsabilidade, que

serão encaminhados ao(s) autor(es) com o aceite.

11. Como contrapartida pela Cessão de Direitos Autorais, o(s) autor(es)

receberá(ão) um exemplar da RBDCivil.