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ISSN 2358-6974 VOLUME 3 JAN / MAR 2015 Doutrina Nacional / Leonardo Estevam de Assis Zanini / Ricardo Lucas Calderon / Michele Mayumi Iwasaki / Thaís Fernanda Tenório Sêco Pareceres / Luiz Edson Fachin / Luiz Gastão Paes de Barros Leães Atualidades / Vivianne da Silveira Abílio Resenha / Gustavo Tepedino Vídeos e Áudios / Anderson Schreiber Revista Brasileira de Direito Civil

Revista Brasileira de Direito ISSN 2358-6974 · das fontes normativas e diversidade de cenários econômicos, não afastam a unidade do ordenamento e a necessidade de se rejeitar

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ISSN 2358-6974VOLUME 3

JAN / MAR 2015

Doutrina Nacional / Leonardo Estevam de Assis Zanini / Ricardo

Lucas Calderon / Michele Mayumi Iwasaki / Thaís Fernanda Tenório Sêco

Pareceres / Luiz Edson Fachin / Luiz Gastão Paes de Barros Leães

Atualidades / Vivianne da Silveira Abílio

Resenha / Gustavo Tepedino

Vídeos e Áudios / Anderson Schreiber

RevistaBrasileirade DireitoCivil

ISSN 2358-6974VOLUME 2

OUT/DEZ 2014

Doutrina Nacional / Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho /

EroulthsCortiano Júnior / Guilherme Calmon Nogueira da Gama / João

Gabriel Madeira Pontes / Pedro Henrique da Costa Teixeira / José

Fernando Simão

Doutrina Estrangeira / Neil Andrews

Pareceres / Arnoldo Wald / Gustavo Tepedino

Atualidades / Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior

Resenha / Fabiano Pinto de Magalhães

Vídeos e Áudios / Gustavo Tepedino

RevistaBrasileirade DireitoCivil

ISSN 2358-6974VOLUME 1

JUL / SET 2014

Doutrina Nacional / Gustavo Tepedino / Luiz Edson Fachin / Paulo

Lôbo / Anderson Schreiber / Paulo Nalin / Rodrigo Toscano de Brito

Doutrina Estrangeira / Gerardo Villanacci

Jurisprudência Comentada / Marília Pedroso Xavier

Pareceres / Judith Martins-Costa

Atualidades / Bruno Lewicki

Resenha / Carlos Nelson Konder

Vídeos e Áudios / Caio Mário da Silva Pereira

RevistaBrasileirade DireitoCivil

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 2

APRESENTAÇÃO

A Revista Brasileira de Direito Civil tem por objetivo fomentar o diálogo

e promover o debate, a partir de perspectiva

que valorize a abordagem histórica, social e cultural dos institutos jurídicos.

A RBDCivil é composta das seguintes seções:

Editorial;

Doutrina:

(i) doutrina nacional;

(ii) doutrina estrangeira;

(iii) jurisprudência comentada; e

(iv) pareceres;

Atualidades;

Vídeos e áudios.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 3

EXPEDIENTE

Diretor

Gustavo Tepedino

Conselho Editorial

Francisco Infante Ruiz

Gustavo Tepedino

Luiz Edson Fachin

Paulo Lôbo

Pietro Perlingieri

Coordenador Editorial

Aline de Miranda Valverde Terra

Carlos Nelson de Paula Konder

Conselho Assessor

Fabiano Pinto de Magalhães

Louise Vago Matieli

Paula Greco Bandeira

Paula Moura Francesconi de Lemos

Tatiana Quintela Bastos

Vivianne da Silveira Abílio

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 4

SUMÁRIO

Editorial

Contratos empresariais na unidade do ordenamento – Gustavo Tepedino 5

Doutrina nacional

O surgimento e o desenvolvimento do right of privacy nos Estados Unidos

– Leonardo Estevam de Assis Zanini 8

Usucapião familiar: quem nos salva da bondade dos bons? – Ricardo

Lucas Calderon e Michele Mayumi Iwasaki

28

Prescrição e decadência no direito civil: em busca da distinção funcional –

Thaís Fernanda Tenório Sêco

56

Pareceres

Contrato de seguro de vida e o agravamento do risco – Luiz Edson Fachin 82

O contrato EPC e o princípio do equilíbrio econômico – Luiz Gastão Paes

de Barros Leães

112

Atualidades

A questão da configuração de fraude nas alienações envolvendo bem de

família e suas consequências: análise da jurisprudência do Superior

Tribunal de Justiça a partir do Recurso Rspecial nº 1.227.366 – Vivianne

da Silveira Abílio

Resenhas

140

Resenha a Arnoldo Wald (organizador), Doutrinas Essenciais – Mediação

e Arbitragem, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2014 – Gustavo

Tepedino

157

Vídeos e áudios

Direito e Mídia – palestra proferida pelo Professor Anderson Schreiber na

Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) em

03/11/2014

--

Submissão de artigos

Saiba como fazer a submissão do seu artigo para a Revista Brasileira de

Direito Civil - RBDCivil

160

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 5

EDITORIAL

Contratos empresariais na unidade do ordenamento

Nos dias 26 e 27 de fevereiro de 2015, o Conselho da Justiça Federal e a

Escola Nacional de Formação de Magistrados (ENFAM), sob a liderança dos

Ministros Humberto Martins e João Otávio de Noronha, promoveram a II Jornada

de Direito Comercial, destinada à discussão e elaboração de Enunciados

Interpretativos relacionados ao direito empresarial, contratual e societário. O

evento reuniu professores, magistrados e profissionais do Direito de todo o Brasil,

propiciando riquíssima discussão sobre os temas atuais do direito comercial.

Ao lado da excelência de diversos Enunciados aprovados, amplamente

divulgados e destinados a exercer papel central na prática jurídica, vale refletir

sobre a superação da consumida controvérsia acerca da autonomia do direito

comercial e da unicidade do direito obrigacional. Isto porque a classificação

didática dos diversos ramos do direito não exclui o tratamento interpretativo

unitário de todas as disciplinas jurídicas, especialmente no caso de matérias afins,

que se sobrepõem inevitavelmente no direito obrigacional. Verifica-se, a mais não

poder, na jurisprudência e, notadamente, na utilização intensa dos princípios

normativos pelo Superior Tribunal de Justiça, que as peculiaridades dos diversos

ramos do direito não afastam a construção dogmática informada por valores

comuns que tornam o direito empresarial integrado à teoria das obrigações.

Afinal, a unidade do direito decorre não de suposta dogmática monolítica do

direito obrigacional e empresarial, mas da dinâmica funcional do sistema jurídico,

articulado em ordenamento complexo sob a regência de Texto Constitucional

rígido. Compreende-se, assim, que a livre iniciativa tenha foro constitucional,

assim como a dignidade humana, a isonomia substancial e a solidariedade social

(art. 1º, III e IV; e art. 3º, I e III, C.R.), fundamentos e objetivos fundamentais da

República. Do mesmo modo, na linguagem do constituinte, a ordem econômica,

fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a

todos existência digna, conforme ditames da justiça social, observados numerosos

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 6

princípios socializantes prescritos pelo art. 170 e por seus incisos. Trata-se de

ordem econômica que estimula e promove, a um só tempo, a liberdade e a

solidariedade; a autonomia privada e a igualdade.

Longe de trazer incerteza, essa opção do constituinte de conectar a atividade

econômica a interesses existenciais e sociais serve de suporte para a estabilidade

do sistema, de modo a evitar guetos setoriais isolados, erigidos ao sabor de

pressões econômicas. Cabe à magistratura, mediante suficiente fundamentação de

suas decisões, depurar a nova concepção de segurança jurídica, firme na legalidade

constitucional e em parâmetros objetivos que permitam a transparência e o

controle social da atividade jurisdicional. Na esteira dessa perspectiva de

segurança, os princípios e cláusulas gerais não devem ser tomados como opção

ideológica ou redacional, e sim como fenômeno cada vez mais frequente nos países

da civil law (e mesmo nos países da common law), a traduzir técnica legislativa

própria da era tecnológica: a iniciativa privada caminha em velocidade frenética,

tornando impossível disciplinar a atividade econômica senão mediante o recurso a

princípios e cláusulas gerais.

Nesse cenário, com o propósito de estabelecer padrões hermenêuticos

coerentes, assume relevância a distinção estabelecida pelo constituinte,

fundamentada não mais em aspectos estruturais e estáticos, mas em critérios

funcionais e dinâmicos, que aparta as relações existenciais das patrimoniais.

Nestas últimas privilegia-se, sem ruptura do sistema, o legítimo escopo econômico

dos titulares, justificando-se assim o tratamento igualitário das partes nos

contratos empresariais, em que há simetria de informações entre os contratantes.

Não há aqui fuga do sistema mas reconhecimento da legitimidade da autonomia

privada no âmbito do mesmo sistema jurídico que agrega e concilia valores sociais

e existenciais.

De fato, o contrato constitui-se no principal instrumento para a realização

da autonomia privada, que se expressa no acordo de vontade. Há de ser prestigiada

a atividade empresarial sem prejuízo do respeito a valores extrapatrimoniais

alcançados pelos negócios jurídicos. Nessa mesma linha de análise, a preocupação

constitucional com o meio ambiente equilibrado, a tutela do consumidor, a livre

concorrência e a integridade psicofísica dos trabalhadores corrobora o valor social

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 7

da livre iniciativa, mostrando-se equívoca a percepção de que as disposições

normativas que extrapolem a letra regulamentar da lei sejam fonte de insegurança.

Na mesma linha de análise, os princípios da função social, da boa-fé

objetiva e do equilíbrio econômico das prestações, longe de intimidarem os atores

jurídicos ou reduzirem a atividade empresarial, refletem a dimensão axiológica

estabelecida pela ordem constitucional. Mostra-se assim plenamente compatível

com os contratos empresariais o controle de merecimento de tutela das cláusulas

negociais, assim como, nos termos da previsão do Código Civil, a repressão a

cláusulas abusivas; a possibilidade de resolução e revisão de obrigações tornadas

excessivamente onerosas; a maior proteção do aderente, e assim por diante.

Na legalidade constitucional, as peculiaridades dos contratos empresariais

encontram plena justificação axiológica, sendo inconcebível, por exemplo, a leitura

dos princípios acima mencionados associados à pretensa vulnerabilidade em

relações paritárias. Tais singularidades, contudo, compatíveis com a pluralidade

das fontes normativas e diversidade de cenários econômicos, não afastam a

unidade do ordenamento e a necessidade de se rejeitar a fragmentação do sistema

jurídico – e de sua tábua de valores – em que se manifesta a identidade cultural da

sociedade.

GT

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 8

SEÇÃO DE DOUTRINA: Doutrina Nacional

O SURGIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DO RIGHT OF

PRIVACY NOS ESTADOS UNIDOS

The emergence and development of the right of privacy in the United

States

Leonardo Estevam de Assis Zanini

Pós-doutorado em Direito pelo Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales

Strafrecht (Alemanha). Doutor em Direito Civil pela USP, com estágio de doutorado na Albert-

Ludwigs-Universität Freiburg (Alemanha). Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Bacharel em

Direito pela USP. Juiz Federal. Professor universitário. Ex-Diretor da Associação dos Juízes

Federais de São Paulo e Mato Grosso do Sul. Ex-Delegado de Polícia Federal. Ex-Procurador do

Banco Central do Brasil. Ex-Defensor Público Federal. Ex-bolsista da Max-Planck-Gesellschaft e da

CAPES. Ex-Diretor Acadêmico da Escola de Formação e Aperfeiçoamento da Justiça Federal em

São Paulo.

RESUMO: O artigo aborda o surgimento e a evolução do right of privacy nos Estados

Unidos. Analisa a publicação de Warren e Brandeis e sua influência na doutrina,

na jurisprudência e na legislação. Cuida das construções doutrinárias posteriores

ao artigo de Warren e Brandeis, como é o caso dos estudos de Prosser e Bloustein.

Trata da distinção entre o right of privacy e o right of publicity, bem como da

formulação do privacy constitucional. Por fim, examina a relação existente entre os

direitos da personalidade e o right of privacy.

PALAVRAS-CHAVE: Right of privacy; Right of publicity; Direitos da personalidade;

Dignidade da pessoa humana; Common law.

ABSTRACT: The article discusses the emergence and evolution of the right of privacy

in the United States. It analyzes the publication of Warren and Brandeis and its

influence in doctrine, case law and legislation. It examines the doctrinal

constructions subsequent to the article of Warren and Brandeis, such as the

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 9

studies of Prosser and Bloustein. It seeks to trace the differences between the right

of privacy and right of publicity, as well as the formulation of the constitutional

privacy. Finally, it examines the relationship between the personality rights and

the right of privacy.

KEYWORDS: Right of privacy; Right of publicity; Personality rights; Human dignity;

Common law.

SUMÁRIO: Introdução – 2. O surgimento do right of privacy e a contribuição de

Warren e Brandeis – 3. O reconhecimento do right of privacy nos tribunais dos

Estados Unidos – 4. As dificuldades para o desenvolvimento do privacy até a

década de 1950 – 5. O right of publicity – 6. A difícil distinção entre o privacy e o

publicity – 7. O privacy na construção doutrinária de Prosser – 8. O privacy como

tutela da dignidade e da individualidade – 9. A formulação do privacy

constitucional – 10. A consolidação do entendimento do caso Griswold – 11. A

relação entre o right of privacy e os direitos da personalidade – 12. Considerações

finais

1. Introdução

O right of privacy surgiu nos Estados Unidos e difundiu-se para os países

que adotam o sistema da common law. Tais países, entretanto, apresentam um

grau bastante variado de proteção da personalidade humana, valendo notar, por

exemplo, que no Direito inglês não haveria uma espécie de proteção geral, mas

apenas uma tutela indireta, relacionada com elementos constitutivos de

determinados delitos.1

Desta feita, considerando sua origem e os grandes avanços de seu sistema

protetivo, bem como que se trata de modelo utilizado por outros países de

common law e mesmo de civil law, objetivamos realizar um breve estudo sobre o

right of privacy nos Estados Unidos, passando pelas diversas fases de seu

desenvolvimento até seu reconhecimento no âmbito constitucional.

Nossa análise, ao lado do estudo do privacy, também buscará a

compreensão dos principais pontos de divergência e convergência entre o sistema

1 LÉVY, Vanessa. Le droit à l‘image: définition, protection, exploitation. Zürich: Schulthess, 2002, p. 152.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 10

dos Estados Unidos e o dos direitos da personalidade, tradicionalmente

reconhecido pelos países de direito continental, como é o caso do Brasil.

2. O surgimento do right of privacy e a contribuição de Warren e

Brandeis

A ideia de privacy, conforme asseveram muitos autores, já estava presente

no sistema jurídico dos Estados Unidos no século XIX, sendo possível o

h çã “

ó” Wh . P S C

1834. No entanto, o conceito de privacy não chegou a receber reconhecimento

formal da comunidade jurídica como um right, o que somente ocorreu com a

publicação do artigo de Samuel D. Warren e Louis D. Brandeis.2;3

Antes do artigo de Warren e Brandeis, vamos encontrar na obra do juiz

Th C y 1880 í “A Treatise on the Law of Torts”

z çã ã “right to be let alone”. A h

expressão, Cooley não a relacionou com a noção de privacy,4 mencionando-a em

seu trabalho sobre responsabilidade civil (torts) como parte do seguinte trecho:

“The right to one‘s person may be said to be a right of complete immunity: to be

let alone”.5

A expressão forjada por Cooley somente ganhou relevo com a publicação,

em 15 de dezembro de 1890, na Harvard Law Review, do artigo de autoria de

S D. W L D. B “The Right to Privacy”. N

autores colocam em evidência a ocorrência de transformações sociais, políticas e

econômicas, bem como o surgimento de novos inventos, como a fotografia, que

contribuíram para a ocorrência de violações da vida privada das pessoas.6;7

2 SOMA, John T. Privacy law. St. Paul: Thomson/West, 2008, p. 11. 3 Apesar de muitos estudiosos admitirem na common law o reconhecimento jurisprudencial do right of privacy antes do artigo de Warren e Brandeis, o tema não é, entretanto, isento de discussões. De fato, há um grupo considerável de estudiosos que vê nos casos apontados pelo artigo como de reconhecimento do privacy apenas a admissão de outros institutos, como o direito de propriedade, a quebra de contrato, a violação de confiança ou mesmo a ocorrência de difamação, sendo a eventual proteção do privacy apenas incidental. Afirma-se ainda que os argumentos utilizados por Warren e Brandeis para a construção do privacy partiram da errônea compreensão dos precedentes examinados. FESTAS, David de Oliveira. Do conteúdo patrimonial do direito à imagem. Coimbra: Coimbra, 2009, p. 156-157. 4 RIGAUX, François. La protection de la vie privée et des autres biens de la personnalité. Bruxelas: Bruylant, 1990, p. 272. 5 COOLEY, Thomas McIntyre. A treatise on the law of torts. Chicago: Callaghan, 1880, p. 29. 6 W B çã y : “The intensity and complexity of life, attendant upon advancing civilization, have rendered necessary some retreat

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 11

Partindo desses problemas, os autores analisam um bom número de

decisões de tribunais ingleses e americanos, deduzindo então a existência de um

princípio geral na common law, o right of privacy. Assim, utilizando o termo

“right to be let alone” õ “tort” ã “privacy” q

constituiria uma profunda ofensa, que lesionaria o senso da própria pessoa sobre

sua independência, individualidade, dignidade e honra.8

Nessa linha, o direito em questão garantiria ao indivíduo uma ampla

liberdade contra intromissões não desejadas em sua vida, tutelando seus

pensamentos, sentimentos, emoções, dados pessoais e até mesmo o nome.9 A

imagem também foi incluída no âmbito de proteção do privacy,10 destacando-se

que os avanços da fotografia tornaram possível a captação de forma oculta dos

traços pessoais, pelo que se fazia necessária a utilização da lei de torts diante dos

riscos inerentes ao progresso técnico.11

Para fundamentar o privacy, os autores recorreram ao direito à vida,

expressamente enunciado na declaração de independência dos Estados Unidos e

formalmente reconhecido pela quinta emenda da Constituição. Acrescentaram

ainda que apesar de a Constituição não fazer qualquer menção à palavra privacy,

seus princípios já faziam parte da common law, particularmente no que diz

respeito à proteção do domicílio, tendo o desenvolvimento tecnológico apenas

from the world, and man, under the refining influence of culture, has become more sensitive to publicity, so that solitude and privacy have become more essential to the individual; but modern enterprise and invention have, through invasions upon his privacy, subjected him to mental pain and distress, far greater than could be inflicted by mere bodily injury.” WARREN S D.; BRANDEIS, Louis D. The Right to Privacy. Harvard Law Review, v. 4, n. 5, p. 193-220, dez. 1890, p. 196. 7 Há muito debate em torno da motivação de Warren e Brandies para a publicação do artigo dedicado ao privacy. Alguns estudiosos especulam que foi uma resposta ao aumento de sensacionalismo da imprensa em geral. Outros apontam que seria uma reação direta aos abusos cometidos pela imprensa contra a família de Warren, uma das mais influentes na sociedade de Boston do final do século XIX. Seja como for, independentemente das razões que levaram ao artigo, é certo que ele causou muito impacto no âmbito da common law, sendo ainda hoje inegável a sua importância. WAGNER W zy w J. L “ ‟ é” E -Unis. Revue Internationale de Droit Comparé, v. 17, n. 2, p. 365-376, abr.-jun. 1965, p. 366. 8 SOMA, John T, op. cit., p. 11. 9 PLACZEK, Thomas. Allgemeines Persönlichkeitsrecht und privatrechtlicher Informations- und Datenschutz. Hamburg: LIT, 2006, p. 46-47. 10 É í q “ y” ã ã “ ” í . D de Warren e Brandeis como das primeiras decisões sobre a matéria que o privacy assumiu, desde o início, vocação para ampla tutela dos valores da personalidade, não se limitando apenas à tutela da privacidade (FESTAS, David de Oliveira. Do conteúdo patrimonial do direito à imagem, p. 32). Desse modo, considerando a dificuldade na tradução do termo, que não se confunde com a privacidade e nem com os direitos da personalidade, preferimos utilizar nesse trabalho, para não incorrermos em nenhuma imprecisão, a expressão em inglês. 11 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D., op. cit., p. 211.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 12

tornado necessário reconhecer expressamente e separadamente esta proteção sob

o nome de privacy.12

Outrossim, apresentam no artigo limitações ao privacy, como por

exemplo: a permissão de publicação de material de interesse geral e público, a

possibilidade de publicação de fatos danosos quando o indivíduo consente, bem

como a inexistência de defesa quando se alega que o fato é verdadeiro ou então que

ã h “ í ” çã .13

O artigo de Warren e Brandeis vai provocar um impacto considerável no

sistema jurídico norte-americano, mas isso não vai ocorrer de maneira imediata.

De fato, em um primeiro momento ocorreu hesitação por parte da doutrina quanto

ao privacy, pois muitos autores negaram energicamente as novas ideias, enquanto

que outros defenderam o instituto com entusiasmo.14

Nos tribunais o efeito da publicação do artigo também não foi imediato,

uma vez que os primeiros casos julgados não reconheceram a existência do

privacy. Contudo, a ideia foi aos poucos sendo adotada e até expandida pelos

tribunais estaduais e federais, valendo ainda notar que nas primeiras décadas de

existência o right of privacy foi defendido ao abrigo da property theory, mas

depois passou a ser progressivamente abordado como um direito pessoal.15

De qualquer forma, é interessante notar que para o sistema da common

law dos Estados Unidos é bastante incomum que um artigo publicado em uma

revista tenha sido decisivo para desenvolvimento de um direito. Também é muito

supreendente o fato de que um artigo publicado em 1890 ainda continue a ser

considerado hodiernamente como a obra fundamental sobre o tema, sem tem

perdido sua validade, especialmente se levarmos em conta a importância e

atualidade da matéria.16

12 SOMA, John T., op. cit., p. 13-14. 13 Ibidem, p. 14. 14 PROSSER, William Lloyd. Handbook of the law of torts. 4 ed. St. Paul: West, 1971, p. 802. 15 FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 164-165. 16 KAMLAH, Ruprecht. Right of privacy. Köln: Carl Heymanns, 1969, p. 58-59.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 13

3. O reconhecimento do right of privacy nos tribunais dos Estados

Unidos

Os casos Schuyler v. Curtis (1891)17 e Marks v. Jaffa (1893) são

normalmente apontados, por um grande número de doutrinadores, como aqueles

que teriam iniciado as discussões a respeito do right of privacy nos tribunais dos

Estados Unidos. Apesar da precedência, mais célebres se tornaram outros dois

casos, que foram julgados de forma diversa e coincidentemente envolveram lesão

ao direito à imagem.18

O primeiro deles, o caso Roberson v. Rochester Folding Box Co., conhecido

“F h F y” z à inserção da fotografia de uma moça em

um cartaz publicitário divulgado por um fabricante de farinha. A ação foi rejeitada

em 1902 pela Court of Appeals de Nova Iorque, mas a existência do right of

privacy aparentemente tinha sido reconhecida pelas duas cortes inferiores.19

Na decisão da Court of Appeals, tomada por estreita maioria de quatro

votos a favor e três contra, foi negada a existência do direito em questão pela falta

de precedente, pelo caráter puramente mental da lesão, pela dificuldade de se

estabelecer a distinção entre natureza pública e privada, bem como pela indevida

restrição à liberdade de imprensa e liberdade de expressão.20

Em seguida, três anos mais tarde, o caso Pavesich v. New England Life Ins.

Co. foi levado à Suprema Corte da Georgia. Nele foi debatida a reprodução não

autorizada em um jornal do retrato do senhor Pavesich, que foi colocado ao lado

da foto de um homem em farrapos, tendo sido atribuída a prosperidade do

primeiro ao fato de ter contratado uma apólice de seguro.21

Na decisão, proferida em 1905, a corte rejeitou os argumentos levados

anteriormente ao caso Roberson, pelo que acabou aceitando o entendimento de

17 O caso Schuyler v. Curtis é particularmente interessante, pois além de apresentar um problema que abrangeria o reconhecimento do direito à imagem, também levanta a questão da imagem da pessoa falecida. A demanda foi iniciada por Philip Schuyler, sobrinho de Mary Hamilton Schuyler, que se opôs à construção e exposição de uma estátua de sua falecida tia em um evento em Chicago. A Supreme Court de Nova Iorque (primeira instância), em 1891, apoiada no artigo de Warren e Brandeis, acolheu o pedido, sustentando que a falecida tinha mantido em vida uma postura reservada, que não seria compatível com a pretendida exposição. A Court of Appeals, entretanto, asseverou que não era relevante o desejo da falecida, pois eventual right of privacy não teria sobrevivido à morte da senhora Schuyler. HAND, Augustus N. Schuyler against Curtis and the Right to Privacy. The American Law Register and Review, Philadelphia, vol. 45, n. 12, p. 745-759, dez. 1897, passim. 18 FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 161-165. 19 RIGAUX, François, op. cit., p. 278. 20 PROSSER, William Lloyd, op. cit., p. 803. 21 Ibidem, p. 803.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 14

Warren e Brandeis. Assim, os juízes consideraram que a publicação da imagem de

uma pessoa, sem seu consentimento e com o propósito de exploração comercial,

configuraria uma violação do right of privacy, o que não demandaria da pessoa

retratada prova especial do dano.22

A decisão do caso Pavesich v. New England Life Ins. Co. foi então sendo

paulatinamente seguida por tribunais de vários outros estados americanos, de

modo que na década de 1950 a oposição ao right of privacy já tinha praticamente

desaparecido.23

Por conseguinte, fica evidente que as duas últimas decisões mencionadas

são extremamente importantes para o desenvolvimento do privacy nos Estados

Unidos, motivo pelo qual são reiteradamente analisadas nos manuais. Também é

interessante observar que os casos apresentados estão associados à defesa de

valores patrimoniais, ainda que ligados a valores pessoais. Ademais, vale ainda

destacar que apesar de no caso Roberson v. Rochester Folding Box Co. ter sido

rejeitada a concepção de Warren e Brandeis, não podemos nos esquecer que tal

julgado contou com opiniões divergentes, bem como deu causa à promulgação de

uma lei sobre privacy no Estado de Nova Iorque.24

4. As dificuldades para o desenvolvimento do privacy até a década de

1950

O período que vai do início até a metade do século XX não apresentou

evolução aparente da doutrina do privacy, registrando apenas decisões que

confirmaram a concepção desenvolvida por Warren e Brandeis. Perdeu-se então a

oportunidade de incluir os avanços tecnológicos do período na proteção.25

A estagnação do desenvolvimento do privacy provavelmente está

associada à apresentação aos tribunais de um reduzido número de casos com

novos pontos de vista, bem como pelo fato de que os tribunais não estavam

dispostos a avançar no tema sem apoio em figuras jurídicas tradicionais, como a

proteção da honra ou da propriedade.26

22 O íz : “The publication of a picture of a person, without his consent, as a part of an advertisement, for the purpose of exploiting the publisher‘s business, is a violation of the right of privacy of the person whose picture is reproduced, and entitles him to recover, without proof of special damage”. LÉVY V op. cit., p. 150. 23 KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 59-60. 24 Ibidem, p. 59-60. 25 Ibidem, p. 61. 26 Ibidem, p. 61.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 15

A problemática é muito bem representada pela decisão do caso Olmstead

v. United States, que pode ser considerada como uma das corresponsáveis pela

referida estagnação da doutrina do privacy. O processo envolvia escutas

telefônicas feitas pelo FBI contra Roy Olmstead e muitas outras pessoas, que

teriam transportado e vendido bebidas alcoólicas em violação à lei nacional.27

O tribunal decidiu que as escutas telefônicas realizadas, que constituíam o

principal meio de prova, não tinham sido feitas com invasão da propriedade

privada, já que os cabos telefônicos interceptados se localizavam na rua, em áreas

próximas das casas e dos escritórios investigados. No voto vencedor, o juiz Taft

esclareceu que a escuta por meios eletrônicos não poderia ser considerada como

busca, no sentido empregado pela Constituição, uma vez que não houve invasão

física, e que não teria ocorrido apreensão inconstitucional, na medida em que não

envolveu nenhum bem tangível.28

Desse modo, como os locais investigados não foram fisicamente invadidos,

as interceptações telefônicas não violariam a Quarta Emenda da Constituição, que

garante a inviolabilidade da pessoa, da sua casa, de seus documentos e dos seus

bens contra a realização de buscas e apreensões ilegítimas. Assim, foi dada

interpretação literal à Quarta Emenda constitucional, que seria aplicável somente

na hipótese de busca envolvendo invasão física e de apreensão de objetos

tangíveis.29

Apesar do entendimento da Suprema Corte dos Estados Unidos, o juiz

Brandeis, coautor do famoso artigo já mencionado, apresentou voto em sentido

contrário, propugnando por uma aplicação liberal da Quarta Emenda

constitucional, que protegeria o cidadão contra qualquer violação injustificada do

privacy, seja qual for o meio utilizado. Asseverou ainda que o governo deveria ter

obtido um mandado de busca antes de ter invadido a privacidade alheia, mesmo

porque a Constituição protege os cidadãos não apenas em aspectos materiais, mas

também em suas crenças, pensamentos, emoções e sensações.30

Nessa linha, Brandeis, usando na decisão linguagem similar àquela do

artigo publicado muitos anos antes, ampliou o foco do privacy, destacando que o

right to be let alone encontra proteção não somente na common law, mas também

27 MCWHIRTER, Darien Auburn; BIBLE, Jon D. Privacy as a constitucional right: sex, drugs, and the right to life. New York: Quorum Books, 1992, p. 92. 28 O‟BRIEN D M. Privacy, law, and public policy. New York: Praeger, 1979, p. 51-52. 29 Ibidem, p. 51. 30 MCWHIRTER, Darien Auburn; BIBLE, Jon D., op. cit., p. 93.

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na Constituição. Também identificou o Estado como um potencial ofensor desse

direito.31

Nos anos que se seguiram, a posição defendida por Brandeis foi

continuamente sustentada por outros juízes, mas a Suprema Corte dos Estados

Unidos, apesar de pronunciamentos ousados em muitos julgados, manteve reserva

ao right of privacy quando se discutia seu reconhecimento constitucional e a

admissão de provas em processos criminais.32

Assim, também não foi reconhecida a ocorrência de violação ao privacy no

caso Goldman v. United States (1942), em que a conversa do acusado foi gravada

por um microfone instalado na parede do apartamento contíguo, uma vez que a

prova não teria sido obtida com invasão física.33 O posicionamento foi mais uma

vez confirmado no caso On Lee v. United States (1952), quando o tribunal admitiu

as provas colhidas pela escuta de conversações entre On Lee e um agente

infiltrado, que estava com um microfone. O mesmo pode ser constatado em

Silvermann v. United States (1961), que, confirmando a regra do caso Olmstead,

apenas condenou a utilização de microfones pelo fato de ter ocorrido invasão de

propriedade.34

5. O right of publicity

Em 1953 mais um passo importante é dado no julgamento do caso Haelan

Laboratories Inc v. Topps Chewing Gum Inc, que colocou em evidência a falta de

adaptação e a insuficiência do privacy para a resolução de problemas relativos a

interesses patrimoniais, estabelecendo novos limites para esse direito.35

A demanda envolveu a celebração de vários contratos entre a empresa

Haelan Laboratories Inc e jogadores profissionais de baseball, nos quais foi

estabelecido um direito exclusivo de utilização da imagem, do nome e de

elementos biográficos dos jogadores para a venda de produtos da empresa.

Conhecendo a existência do contrato, a empresa concorrente Topps Chewing Gum

Inc procurou os mesmos jogadores e obteve, em violação à obrigação contratual

31 SOLOVE, Daniel J.; ROTENBERG, Marc; SCHWARTZ, Paul M. Privacy, information, and technology. New York: Aspen, 2006, p. 28-29. 32 KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 61-63. 33 DIONISOPOULOS, Allan; DUCAT, Craig R. The Right to Privacy: Essays and Cases. St. Paul: West, 1976, p. 18. 34 O‟BRIEN D M. op. cit., p. 54-55. 35 ROUVINEZ, Julien. La licence des droits de la personnalité. Zürich: Schulthess, 2011, p. 81.

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anterior, semelhante autorização para utilização da imagem, o que deu ensejo à

demanda judicial por parte da primeira empresa.36

Em sua defesa, a ré asseverou que os contratos celebrados entre a autora e

os jogadores não poderiam transferir o right of privacy, visto que tal direito tinha

natureza pessoal e intransferível. Também argumentou que nos contratos não

havia previsão de nenhum property right que pudesse ser invocado.37

Entretanto, o tribunal rejeitou os argumentos da defesa, considerando,

sem nenhuma preocupação teórica, a necessidade de se destacar uma parte do

right of privacy e reconhecer a existência de um right of publicity. Tal direito foi

considerado independente do privacy e garantiria um privilégio exclusivo à pessoa

quanto ao aproveitamento econômico de sua notoriedade, o que poderia ser

considerado um property right, na medida em que teria valor pecuniário.38

Assim sendo, apesar de guardar suas origens históricas no right of

privacy, o surgimento do right of publicity não decorreu de um processo

evolutivo, mas é resultado de uma radical ruptura do right of privacy, que

produziu um direito transmissível, inclusive, na opinião da doutrina majoritária,

por herança.39

Após a decisão do caso Haelan, a nova figura jurídica foi rejeitada por

alguns tribunais e aceita por outros. A mesma diversidade de entendimentos pôde

ser vista na doutrina, que contou, entre os defensores do right of publicity, com

Grodin e Nimmer. Este último acabou fixando os contornos do novo instituto,

destacando que o right of privacy não era adequado para a integral proteção do

cidadão na segunda metade do século XX, em especial pela presença maciça da

publicidade.40

No âmbito da Suprema Corte dos Estados Unidos, o right of publicity

somente foi reconhecido em 1977, no julgamento do caso Zacchini v. Scripps-

Howard Broadcasting Company, quando se admitiu a existência de interesse

ô çã “h - ” q

televisão sem sua autorização.41

36 RIGAUX, François, op. cit., p. 395. 37 FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 176. 38 RIGAUX, François, op. cit., p. 393 e 396. 39 GÖTTING, Horst-Peter. Persönlichkeitsrechte als Vermögensrechte. Tübingen: Mohr Siebeck, 1995, p. 191. 40 FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 179. 41 FREEDMAN, Warren. The Right of Privacy in the Computer Age. Nova Iorque: Quorum, 1987, p. 28.

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Na demanda, o tribunal atribuiu ao right of publicity um interesse análogo

à propriedade (propietary interest) e afirmou ainda que a finalidade de tal direito

é muito próxima à de uma patente ou de um copyright, na medida em que é

protegido o direito de colher os frutos de uma atividade individual, que nada tem a

ver com a proteção dos sentimentos ou da reputação.42

Depois dessa decisão o right of publicity foi sendo progressivamente

admitido pelos Estados do país, muitos deles consagrando até mesmo uma

legislação específica sobre o tema.43

Portanto, a proteção do direito à imagem na common law passou a

compreender um modelo dualista, composto tanto pelo right of privacy como pelo

right of publicity. O primeiro voltado para a tutela de valores pessoais, enquanto

que o segundo se destina à proteção de valores patrimoniais.44

6. A difícil distinção entre o privacy e o publicity

Como foi visto, o right of publicity pode ser concebido, em linhas gerais,

como o direito que cada pessoa tem de controlar o uso comercial de sua

identidade, dirigindo sua tutela para aspectos meramente patrimoniais. O instituto

é visto como uma espécie do gênero da concorrência desleal, uma vez que garante

o privilégio exclusivo quanto à exploração da identidade, particularmente no que

toca à publicação de fotografias.45

Ocorre que o fato do right of publicity ser mencionado em ligação com a

identidade não significa que a sua proteção está relacionada apenas com os bens

da personalidade. Na verdade, essa tutela vai muito além, abrangendo todas as

formas de identificação da pessoa, como a imagem, o nome ou a voz, bem como

objetos materiais.46

Nessa linha, a despeito da definição doutrinária aparentemente clara do

right of publicity, bem como do estabelecimento de suas diferenças em relação ao

privacy, na prática a distinção não é tão simples, mesmo porque existe uma

grande afinidade entre esses direitos.

Normalmente um dos critérios utilizados na distinção é o comportamento

anterior da vítima. Assim, se a pessoa, como ocorreu no caso Zacchini, não se opõe

42 RIGAUX, François, op. cit., p. 393-394. 43 ROUVINEZ, Julie, op. cit., p. 82. 44 LÉVY, Vanessa, op. cit., p. 151. 45 FREEDMAN, Warren, op. cit., p. 28. 46 FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 166.

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à publicidade, contanto que ela receba as vantagens financeiras pela exposição,

estaríamos diante do publicity. Também ocorrerá atentado apenas ao right of

publicity quando uma pessoa autoriza a publicação de seu nome ou de sua imagem

em um determinado periódico, mas não em um outro, ou quando a extensão da

utilização publicitária excede o que foi previsto contratualmente.47

Por outro lado, estaremos diante de invasão do privacy se os fatos em

análise indicam que o indivíduo jamais explorou o valor associado a sua reputação

ou a sua atividade profissional, bem como que não houve qualquer consentimento

no que toca à utilização do seu nome ou de sua imagem.48

A partir daí, parte da doutrina e da jurisprudência passaram a considerar,

de modo geral, que a utilização do nome ou da imagem de pessoas célebres, sem

autorização, em uma propaganda, somente afeta o right of publicity. De contrário,

tratando-se de uma pessoa não conhecida do público, a defesa da utilização não

autorizada do nome e da imagem deve ser feita pelo right of privacy.49

Outrossim, podemos arrolar ainda a distinção no que toca à

patrimonialidade e à transmissibilidade do interesse protegido. Assim sendo,

considerando a patrimonialidade do publicity, a doutrina reconhece que ele faz

parte do próprio patrimônio da pessoa (estate) e admite a possibilidade de sua

cessão contratual ou transmissão hereditária. O mesmo não valendo para o right

of privacy, que se volta para a proteção de interesses ideais e não permite a

transmissão.50

Por conseguinte, deve-se admitir que são poucas as situações em que a

delimitação se apresenta tão evidente. A despeito disso é sem dúvida sempre

conveniente analisar o comportamento anterior da vítima, investigar a natureza da

agressão, bem como buscar interpretar o consentimento do sujeito para que se

possa chegar à conclusão se estamos diante de um caso de privacy ou publicity,

sobretudo quando foi contratualmente autorizada a exploração do nome ou da

imagem.51

47 RIGAUX, François, op. cit., p. 394-396 e 407. 48 Ibidem, p. 394-396. 49 GÖTTING, Horst-Peter, op. cit., p. 243. 50 ROUVINEZ, Julien, op. cit., p. 82. 51 RIGAUX, François, op. cit., p. 395.

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7. O privacy na construção doutrinária de Prosser

Somente na década de 1960 é que vai ser visto o surgimento de novas

discussões doutrinárias e jurisprudenciais a respeito do privacy. No que toca à

doutrina, inicia-se então um debate contrapondo pontos de vista favoráveis e

opostos às ideias de Warren e Brandeis.

Entre as críticas dirigidas à concepção, podem ser distinguidas diversas

orientações, como a que substitui o conceito de privacy por outro considerado

mais adequado, a que censura a utilização de um vocábulo único para diversos atos

ilícitos e a que contesta a definição do privacy “ ó”.52

Entretanto, vamos aqui destacar o embate mais célebre, que envolveu

Prosser e Bloustein, tendo exercido, como será visto, indiscutível influência nos

desenvolvimentos posteriores do privacy.53

William Prosser, aclamado professor da California School of Law

(Berkeley) e à época uma das maiores autoridades em responsabilidade civil (tort

law), apresentou em 1960 um estudo bastante preciso acerca das decisões

prolatadas sobre o right of privacy. Nele o estudioso procurou evidenciar as regras

emanadas de cada caso e os desenvolvimentos jurídicos daí decorrentes54-55.

Após a análise de substancial amostra do repertório jurisprudencial

disponível, Prosser admitiu a existência de confusão e inconsistências no

desenvolvimento do privacy, mas tentou sistematizar a matéria. Asseverou que

não se estava diante de apenas um tort, mas sim de quatro grupos diversos, vendo

em cada um deles a lesão de diferentes tipos de interesses protegidos. Nessa linha,

destacou que os interesses tutelados pelo privacy não teriam quase nada em

comum, exceto que todos eles representariam uma interferência no right to be let

alone.56

Prosser passa então a classificar o privacy nas seguintes espécies: 1)

invasão em assuntos privados da pessoa (intrusion); 2) publicação de fatos

embaraçosos relativos à vida privada de determinada pessoa (public disclosure); 3)

publicação que leve a opinião pública a uma falsa compreensão (false light), o que

se assimila à difamação (defamation), mas enquanto esta requer que a informação

52 Ibidem, p. 630. 53 DIONISOPOULOS, Allan; DUCAT, Craig R., op. cit., p. 25-26. 54 KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 71. 55 O trabalho de Prosser foi ampliado e atualizado por Keeton, contando com última edição (5. ed.) publicada em 1984 sob o título Prosser and Keeton on the Law of Torts. 56 PROSSER, William Lloyd, op. cit., p. 804.

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seja falsa, no privacy a informação geralmente é verdadeira, mas cria uma falsa

impressão e; 4) abuso do nome ou da imagem de outrem para benefício próprio

(appropriation),57 conceito que se aproximaria do right of publicity, no entanto,

este direito protege a pessoa contra a exploração comercial não autorizada

(property right), enquanto que o privacy diz respeito à tutela de valores pessoais

da personalidade.58

O estudioso não foi, obviamente, o primeiro a apresentar uma classificação

do right of privacy em diferentes tipos. Na verdade, o que torna seu trabalho

relevante, a ponto de ser considerado por muitos como leitura obrigatória para as

discussões sobre privacy, não é somente o fato de ter desenvolvido uma

classificação que impôs ordem e clareza à matéria, mas também por ter

identificado o bem jurídico protegido em cada uma das hipóteses apresentadas.59

Destarte, ainda que de forma implícita, pode-se deduzir do pensamento de

Prosser que não existe unidade na tutela do privacy, visto que não estaríamos

diante de um valor independente, mas sim de uma composição de interesses que

vai abranger a reputação, a tranquilidade emocional e a propriedade imaterial.60

8. O privacy como tutela da dignidade e da individualidade

Os ensinamentos de Prosser não ficaram isentos a críticas, como a

H y K “Privacy in Tort

Law – Were Warren and Brandeis Wrong?” 1966. N

questiona a proteção do privacy por meio da legislação de torts, concluindo que,

com exceção dos casos de apropriação, a tentativa de proteger o privacy no âmbito

da responsabilidade civil é um erro.61

Edward Bloustein, em trabalho publicado em 1964, assevera que a análise

em grupo de casos, apresentada por Prosser, contrariou o que Warren e Brandeis

defendiam, uma vez que acabava indicando a incapacidade dos tribunais de

continuarem o desenvolvimento do privacy sem que fosse necessário o apoio em

figuras jurídicas tradicionais, como a propriedade e a honra.62

57 KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 72. 58 FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 179. 59 KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 72. 60 BLOUSTEIN, Edward J. Privacy as an aspect of human dignity: an answer to dean Prosser. New York University Law Review, v. 39, p. 962-1007, 1964, p. 962. 61 FREEDMAN, Warren, op. cit., p. 8. 62 KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 73.

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Nessa linha, Bloustein destaca a existência de uma considerável confusão

no que toca à natureza do bem jurídico protegido pelo privacy, entendendo que

Prosser remete esse direito novamente às antigas instituições jurídicas, o que

estaria em contradição com o pensamento de Warren e Brandeis, na medida em

que viam no privacy uma figura jurídica nova e unitária.63

Partindo desses problemas, Bloustein propõe em seu artigo uma teoria

geral do privacy, levando em conta, para tanto, o bem jurídico protegido em todos

os casos. Considera então que a dignidade humana seria esse bem jurídico, que

ligaria o right of privacy do direito privado ao direito público, vínculo este

totalmente ignorado por Prosser. Acrescenta ainda que o privacy não é limitado à

common law, abrangendo o direito como um todo, inclusive as disposições de

direito processual penal.64

Outrossim, Bloustein lembra da existência de muitas leis mais recentes,

que regulam o uso de sistemas eletrônicos de vigilância ou que proíbem a

interceptação telefônica de conversas, exemplos que seriam suficientes para

comprovar a proteção do right of privacy de forma independente, não somente

como uma proteção civil contra atos ilícitos.65

Além disso, outra questão que se colocava era a respeito dos

desenvolvimentos futuros do privacy. De acordo com o estudioso, a influência do

trabalho de Prosser era patente, já que nos anos que se seguiram à sua publicação

quase toda decisão sobre privacy mencionava sua concepção, bem como também

refletiu na elaboração do Restatement of Torts. Assim sendo, nas palavras de

Bloustein, se seu posicionamento não estivesse correto, então seria importante

demonstrar suas falhas e apresentar uma teoria alternativa.66

Desse modo, em suma, sugere Bloustein que o raciocínio de Prosser não

estava correto, pois o privacy envolveria o mesmo interesse na preservação da

dignidade e da individualidade do ser humano, falando-se então em apenas um

tort, que garantiria uma proteção abrangente e sem lacunas.67

Alguns autores americanos concordaram com Bloustein, especialmente

diante dos fortes argumentos lançados contra Prosser no sentido de que sua visão

63 Ibidem, p. 74. 64 Ibidem, p. 74. 65 Ibidem, p. 74. 66 BLOUSTEIN, Edward J., op. cit., p. 964. 67 Ibidem, p. 1005.

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se limitava à common law, bem como que a classificação por ele proposta não era

exaustiva e ainda apresentava distinções insuficientemente esclarecidas.68

Contudo, boa parte dos estudiosos acabou seguindo o posicionamento de

Prosser, sendo certo que alguns deles, como é o caso de Wade, até avançaram em

suas ideias.69 De qualquer forma, é interessante notar que as ideias de Bloustein

em muito se assemelham à concepção em vigor no direito continental,

especialmente pela menção à tutela da dignidade humana.

Por conseguinte, o fato é que as ideias de Prosser acabaram saindo

vitoriosas e sua sistemática passou a exercer uma influência tão grande que foi

seguida de forma quase unânime pela doutrina e pela jurisprudência, ecoando

ainda no Second Restatement of Torts, de 1977, bem como na constituição, nas leis

e na common law de vários estados.70 E o resultado não poderia ser diverso, uma

vez que independentemente da denominação utilizada, o fato é que o conceito de

privacy procura realmente dar uma visão unitária a um grande número de

situações ou de relações que são heterogêneas,71 isso sem falar na ampla e já

tradicional aceitação pela jurisprudência da inclusão desse instituto entre os

torts.72

9. A formulação do privacy constitucional

Paralelamente ao debate doutrinário, viu-se que ao longo do tempo o right

of privacy, desenvolvido como um conceito da common law, passou a aparecer em

casos envolvendo a Constituição dos Estados Unidos. Todavia, apesar do início dos

debates ter ocorrido ainda na primeira metade do século XX, o reconhecimento do

right of privacy na Constituição somente veio com o caso Griswold v. Connecticut,

decido em 1965 pela Suprema Corte dos Estados Unidos.73

Na demanda foi debatida uma lei de Connecticut, que tornou ilegal o uso

ou a distribuição de anticoncepcionais, o que configuraria ingerência do Estado no

privacy. A lei deu causa à condenação de um médico, que examinou uma mulher

68 RIGAUX, François, op. cit., p. 633. 69 KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 75. 70 GÖTTING, Horst-Peter, op. cit., p. 185-186. 71 RIGAUX, François, op. cit., p. 632. 72 FREEDMAN, Warren, op. cit., p. 8-9. 73 RIGAUX, François, op. cit., p. 167.

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casada e prescreveu métodos contraceptivos, bem como do senhor Griswold,

diretor da clínica onde o referido médico trabalhava.74

Na Suprema Corte dos Estados Unidos o juiz Douglas, que tinha assumido

a cadeira de Brandeis, redigiu o voto do caso Griswold v. Connecticut, que se

tornou célebre. Nele o magistrado declarou a inconstitucionalidade da lei e

reconheceu a existência de um direito geral de privacy, que decorreria das

seguintes emendas à Constituição dos Estados Unidos: primeira (liberdade de

expressão), terceira (restrição ao aquartelamento de soldados em casas

particulares), quarta (busca e apreensões ilícitas), quinta (autoincriminação) e

nona (declara que os direitos não especificados na Declaração de Direito são

também protegidos por ela).75

A decisão ainda destaca o caráter sacro da união conjugal e o respeito que

merece a intimidade do casal, considerando, por conseguinte, inadmissível que a

polícia pudesse estender suas investigações ao quarto do (“the sacred

precincts of marital bedrooms”).76

Dessa forma, somente a partir do caso Griswold v. Connecticut que vai ser

reconhecido constitucionalmente, pela primeira vez, o right of privacy, que apesar

de não ser expressamente mencionado pela Constituição, estaria localizado,

conforme o voto do juiz Douglas, no interior das penumbras ou zonas de liberdade

criadas por uma interpretação mais abrangente da declaração de direitos.77

10. A consolidação do entendimento do caso Griswold

Em 1967 a Suprema Corte dos Estados Unidos vai finalmente superar a

doutrina Olmstead, analisando o caso Katz v. United States, no qual policiais, sem

autorização judicial, interceptaram conversações telefônicas realizadas de uma

cabine telefônica.

O voto vencedor foi proferido pelo juiz Stewart, que mencionou o

posicionamento do tribunal no caso Griswold e reconheceu a violação do privacy

decorrente de injustificada medida de busca e apreensão, na hipótese envolvendo

bem imaterial. O magistrado ainda acrescentou em sua decisão que Katz tinha uma

razoável expectativa de privacy quando entrou na cabine telefônica e fechou a

74 MCWHIRTER, Darien Auburn; BIBLE, Jon D., op. cit., p. 93. 75 Ibidem, op. cit., p. 97. 76 RIGAUX, François, op. cit., p. 167. 77 SOLOVE, Daniel J.; ROTENBERG, Marc; SCHWARTZ, Paul M., op. cit., p. 28-29.

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porta, estando assim resguardado pela Quarta Emenda, que protege pessoas e não

lugares (the Fourth Amendment protects people, not places).78

Em seguida, em 1969, no caso Stanley v. Georgia, novamente foi colocada

em prova a solução dada ao caso Griswold. A demanda envolveu a realização de

busca e apreensão na casa de Stanley, estando a polícia munida do respectivo

mandado, deferido para que fossem encontradas provas da atividade de

agenciamento de apostas. Todavia, durante o procedimento, foram encontrados

vídeos obscenos no quarto de Stanley, que foi acusado de violação da legislação da

Georgia.79

Pois bem, na Suprema Corte dos Estados Unidos todos os juízes estavam

de acordo com a absolvição de Stanley, mas houve divergência quanto aos

fundamentos. Nesse particular, vale destacar o voto do juiz Marshall, que citou

tanto a manifestação proferida pelo juiz Brandeis no caso Olmstead quanto o

entendimento acolhido pelo tribunal no caso Griswold, argumentando ainda que a

Constituição protege os cidadãos contra invasões não esperadas em seu direito de

privacy.80

Por derradeiro, as decisões posteriores ao caso Griswold permitiram então

a construção e consolidação do privacy constitucional, que foi ainda dividido em

é : Q E “ ”

de outras emendas (primeira, terceira, quarta, quinta e nona), enquanto que a

segunda está voltada para o devido processo substantivo.81

11. A relação entre o right of privacy e os direitos da personalidade

No Direito dos Estados Unidos, como foi exposto, não é comum a menção

a bens da personalidade, mesmo porque não existe a figura dos direitos da

personalidade, como é conhecida nos países de tradição continental. Para a

solução de eventuais demandas relacionadas com os bens da personalidade, os

norte-americanos desenvolveram então o right of privacy, que constitui uma

categoria de direitos que não é equivalente aos direitos da personalidade.82

De fato, o right of privacy apresenta inúmeros pontos de divergência,

abarcando, por um lado, aspectos que não se incluem no âmbito dos direitos da

78 KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 71. 79 MCWHIRTER, Darien Auburn; BIBLE, Jon D., op. cit., p. 99. 80 Ibidem, p. 99. 81 Ibidem, p. 100. 82 FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 166.

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personalidade, bem como deixando de tutelar temas que são evidentemente

abrangidos pelos direitos da personalidade.

Em linhas gerais, apresentamos a evolução do right of privacy naquele

país, cuja origem doutrinária foi lentamente sendo consagrada na jurisprudência,

na legislação de um grande número de estados e, finalmente, foi elevado ao nível

constitucional pela Suprema Corte.

Nesse contexo, pode-se notar que há um paralelo entre o desenvolvimento

do privacy e dos direitos da personalidade. É que para problemas muito

semelhantes, surgidos no decorrer do século XX e início do século XXI, foram

apresentadas pelos dois sistemas soluções muitas vezes bastante parecidas, não

obstante a diversidade da fundamentação.

Todavia, é certo que os norte-americanos levam o individualismo ao

extremo, bem como possuem uma mentalidade pouco solidária, o que, somado ao

raciocínio da common law sustentado pela técnica de solução de casos pelos

precedentes,83 acaba por deixar claro que é bastante complicada qualquer

aproximação teórica entre o right of privacy e os direitos da personalidade. A isso

deve ser acrescido o fato de que há uma grande dificuldade de se estabelecer uma

definição adequada entorno do privacy, havendo diferentes formas de se ver o

instituto.84

Realmente, esses institutos apresentam origem, natureza jurídica,

abrangência, fundamentação e limites bastante diversos. Todavia, considerando a

similude dos problemas enfrentados pelos países da civil law e da common law,

não nos parece despropositada a constante análise do direito dos Estados Unidos,

que sempre poderá contribuir com soluções criativas para a inovação da civil law.

Por fim, no que toca especificamente ao direito à imagem, vale lembrar

que o sistema jurídico dos Estados Unidos é bastante particular, uma vez que

reconhece dois direitos distintos para a sua proteção, conforme o atentado diga

respeito a um aspecto da vida privada ou à utilização comercial da imagem. Assim,

tal solução apresenta o inconveniente da dificuldade de delimitação do conceito e

das fronteiras entre o privacy e o publicity, o que, a nosso ver, não aconselha sua

adoção no direito pátrio.

83 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil: Teoria Geral. Vol. 1. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 60. 84 SOMA, John T., op. cit., p. 16.

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12. Considerações finais

Reputamos ser sempre interessante o conhecimento de outros sistemas

jurídicos, tanto que nos propusemos a estudar o privacy, no entanto, a mera

transposição de institutos da common law para a seara dos direitos da

personalidade, sem um aprofundado exame da matéria, em especial no que toca à

tutela da imagem, não parece apresentar grandes vantagens. Ao contrário, tal

tentativa pode representar uma ameaça aos direitos da personalidade, cuja

proteção já conta com legislação, doutrina e jurisprudência bastante sólidas nos

países de tradição romano-germânica.

Portanto, consideramos ser sempre necessária muita cautela ao se tentar

uma aproxição do privacy aos direitos da personalidade, pelo que vemos com certa

restrição a conduta daqueles estudiosos, entusiastas do Direito dos Estados

Unidos, que procuram, sem maiores cuidados, a transposição para o direito

continental de institutos da common law.

Recebido em 23/01/2015

1º parecer em 24/02/2015

2º parecer em 24/02/2015

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USUCAPIÃO FAMILIAR: QUEM NOS SALVA DA BONDADE DOS

BONS?

Family’s Adverse Possession: who save us from good’s goodness?

Ricardo Lucas Calderon

Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal do Paraná-UFPR.

Pós-graduado em Teoria Geral do Direito e em Direito Processual Civil.

Professor dos cursos de pós-graduação da Fundação Getúlio Vargas – FGV/ISAE e da Universidade

Positivo.

Coordenador da especialização em Direito das Famílias e Sucessões da Academia Brasileira de

Direito Constitucional. Professor dos cursos de Graduação da UNIBRASIL. Pesquisador do grupo

q D C “V C é ” PPGD-UFPR. Membro

do Instituto Brasileiro de Direito Civil. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família-

IBDFam. Membro do Instituto dos Advogados do Paraná. Membro da Comissão de Educação

Jurídica da OAB/PR. Advogado em Curitiba.

Michele Mayumi Iwasaki

Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal do Paraná-UFPR.

Pós-graduada em Sociologia Política-UFPR. Pesquisadora do grupo de estudos e

q D C “V C é ” PPGD-UFPR.

Advogada em Curitiba.

RESUMO: Em 2011 foi introduzida no Brasil a denominada usucapião familiar (art.

1.240-A do Código Civil). O texto legal dispõe que o ex-cônjuge ou ex-companheiro

poderá adquirir a propriedade total do imóvel objeto do lar conjugal, desde que

demonstrada posse superior a dois anos ininterruptos, agregada ao abandono do

lar pelo outro consorte. Nesse trabalho, parte-se da premissa que esse instituto

pretende, em última ratio, tutelar a família e o direito à moradia, o que lhe

garantiria guarida constitucional. A partir disso, procura contribuir na apuração do

seu significado hodierno, que deve resultar de uma interpretação sistemática que

leve a sua escorreita tradução. Nesse mister, importa imprimir uma hermenêutica

crítico-construtiva que permita extrair um sentido do instituto que reverbere,

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muito mais do que apenas a sua estrutura, a sua função naquelas dadas situações

fáticas.

PALAVRAS-CHAVE: Usucapião familiar; Família; Propriedade; Abandono; Moradia.

ABSTRACT: In 2011 a new form of acquisition of property was introduced in

Brazilian law: the family adverse possession (Civil C ‟ 1.240-A). The

legal text determines that the ex-spouse or ex-partner may acquire the total

property to the real estate of the conjugal home as long as he/she proves

possession of more than two years without interruption and the abandonment of

the home by the other consort. In this paper we part from the premise that this

institute seeks, ratio ultima, to support the family and the fundamental right to

housing, which guarantees a certain level of constitutional protection. Aside from

this, it seeks to contribute to the comprehension of its hodiernal meaning, which

should result a systematic interpretation that leads to its more perfect translation.

In this manner it is important to make use of critical-constructive hermeneutics,

which allow for the extraction of the institute that resounds much further than the

structure, to its function in those factual situations.

KEYWORDS: Family adverse possession; Family; Property; Abandonment; Housing.

SUMÁRIO: Introdução – 1. Constitucionalidade do dispositivo – 2. Requisitos legais

e questões controversas da usucapião familiar – 3. O sentido funcionalizado da

expressão abandono do lar – Considerações Finais.

Introdução

A celeridade das mutações fáticas do líquido cenário contemporâneo acaba

por apresentar novas questões ao Direito, não raro com complexos e intricados

fatores envolvidos.85 O afã de procurar respostas imediatas para alguns destes

intrigantes litígios do presente acaba, muitas vezes, por levar a uma precipitação

que nem sempre é recomendável aos juristas.

85

“Num mundo em que as coisas deliberadamente instáveis são a matéria-prima das identidades, que

são necessariamente instáveis, é preciso estar constantemente em alerta; mas acima de tudo é preciso manter

a própria flexibilidade e velocidade de reajuste em relação aos padrões cambiantes do mundo „lá fora‟.”

(BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 100).

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É o que se percebe na introdução no direito brasileiro da denominada

usucapião familiar,86 novel modalidade aquisitiva da propriedade que decorre do

abandono do lar por um dos cônjuges ou companheiros, agregado a outros

requisitos descritos na regra que o instaurou. Tal usucapião extraordinária urbana

foi regulada pela incorporação do art. 1.240-A no Código Civil,87 criando um

instituto sem qualquer prévia discussão doutrinária ou jurisprudencial a respeito.

Em um primeiro momento, pode-se vislumbrar uma provável boa intenção

do legislador ao procurar tutelar um problema social muitas vezes reiterado: o

imbróglio resultante de um fim conflituoso de uma relação de conjugalidade88 sem

a resolução das questões patrimoniais relativas ao imóvel que serve de moradia

para os integrantes daquele núcleo familiar. Isso porque, com a separação de fato,

usualmente um dos membros do casal permanece no lar conjugal (muitas vezes a

mulher com filhos) enquanto o outro dali se retira (nestes casos, o homem). E o

posterior pleito de partilha do bem pelo cônjuge ou convivente que se afastou

pode, em muitos casos, trazer dificuldades de moradia e subsistência para aqueles

que restaram no imóvel, implicando em problemas de diversas ordens.

É possível que o legislador tenha tentado tutelar situações fáticas como

essas, amparando o consorte abandonado que permaneceu no imóvel (a mulher

com a prole, na imagem que foi retratada como corriqueira nos debates legislativos

sobre o tema) e que então necessitaria do bem para sua moradia.89 Observa-se,

assim, primeiramente, uma certa preocupação em tutelar a família abandonada e

garantir o seu direito de moradia, o que pode parecer justificável.

86

Também denominada usucapião conjugal, usucapião por abandono afetivo, ou, ainda, usucapião

extraordinária por abandono do lar. Parece que a definição mais adequada é efetivamente usucapião familiar. 87

“Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta,

com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja

propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia

ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano

ou rural. (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011). § 1o O direito previsto no caput não será reconhecido ao

mesmo possuidor mais de uma vez.§ 2o (VETADO).” (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011, que alterou a

Lei 11 977/2009 – reguladora do programa federal Minha Casa, Minha Vida). 88

Utiliza-se neste trabalho da expressão conjugalidade como significante que engloba tanto as

relações consagradas pelo matrimônio como as relações mantidas sob a forma de união estável. 89

Ao comentar o trâmite do projeto de lei nas casas legislativas do Congresso, Ricardo Aronne

assevera: “Dentro das comissões, no debate das propostas ao Minha Casa Vida, um dos pontos em que os

iluminados legisladores do planalto se detiveram, foi que não raro os casais constituintes das famílias simples

da planície, para os quais o programa se dirige, tinham sua união dissolvida. Que em razão disso, a mulher,

normalmente, era abandonada e ficava vulnerável; enquanto o homem depois, ao divórcio, separação ou

dissolução, viria a postular a sua meação. E mais, que esse era mais um problema que atribulava o Judiciário,

sendo desejável um mecanismo que lograsse aliviar-lhe tal peso.” ARONNE, Ricardo. A usucapião por

abandono familiar e o cinismo: ligeiro ensaio cínico de longo título sobre o que não é, mesmo que digam ser

o que jamais será. p. 4. Artigo atualmente no prelo.

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Contudo, em que pese uma provável boa intenção na origem da inclusão

desta nova modalidade da usucapião familiar, calha aqui o célebre questionamento

de Agostinho Ramalho Marques Neto: quem nos salva da bondade dos bons?90

Isso porque, a regulação posta com o referido dispositivo legal não é muito clara

nas expressões que elegeu para retratá-lo. Diversas inconsistências técnicas são

observadas e, quiçá, não proteja nem mesmo o bem jurídico que pretendeu

(proteção da família e do direito à moradia), de modo que a norma resultante da

leitura desse dispositivo pode levar a algumas situações não previstas e certamente

não desejadas nem mesmo por quem a aprovou. A precipitação e a generalização

praticada com a imposição da usucapião familiar exige um esforço hermenêutico

dos civilistas, com o objetivo de evitar um inadmissível retrocesso e permitir uma

significação jurídica alinhada ao estágio atual da nossa literatura jurídica e da

nossa jurisprudência.91

O intuito do presente artigo é contribuir com a apuração do sentido civil-

constitucional desse dispositivo, adequado a este momento do direito privado,

averiguando qual sua função no nosso ordenamento jurídico, sempre com especial

atenção para os princípios constitucionais incidentes na hipótese, com observância

da funcionalização do direito das coisas e sem descurar da estatura do pulsante

direito de família brasileiro hodierno.

Anteriormente à análise dos aspectos jurídicos envolvidos na temática,

importa anotar ao menos uma percepção prévia que salta aos olhos ao apreciar o

texto legal da usucapião familiar: os sociólogos afirmam que, dentre as principais

características dos relacionamentos afetivos atuais, estão a flexibilidade e a

efemeridade, as quais levaram Zygmunt Bauman a denominar o período como a

era do amor líquido.92 Para Gilles Lipovestky “ ã í ã í

90

MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. O Poder Judiciário na Perspectiva da Sociedade

Democrática: O Juiz Cidadão. In: Revista ANAMATRA. São Paulo, n. 21, p. 30-50, 1994: “Uma vez

perguntei: quem nos protege da bondade dos bons? Do ponto de vista do cidadão comum, nada nos garante,

„a priori‟, que nas mãos do Juiz estamos em boas mãos, mesmo que essas mãos sejam boas. (...)”. 91

Como se perceberá a seguir, não são poucos os questionamentos apresentados a referida usucapião,

muitos deles contundentes. Ademais, a literatura jurídica e o conjunto de decisões dos nossos tribunais

consolidaram conquistas que não podem ser renunciadas pelos civilistas. 92

“Pode-se supor (mas será uma suposição fundamentada) que em nossa época cresce rapidamente o

número de pessoas que tendem a chamar de amor mais de uma de suas experiências de vida, que não

garantiriam que o amor que atualmente vivenciam é o último, que têm expectativa de viver outras

experiências como essa no futuro. Não devemos nos surpreender se essa suposição se mostrar correta. Afinal,

a definição romântica do amor como „até que a morte nos separe‟ está decididamente fora de moda, tendo

deixado para trás seu tempo de vida útil em função da radical alteração das estruturas de parentesco às quais

costumavam servir e de onde extraía seu vigor e sua valorização.” (BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido:

Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos. Op. cit., p. 19).

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família pós-moralista hodierna, que já é possível fazer a montagem ou

”.93

Não deixa de ser sintomático que, justamente no momento de maior

liberdade e permissividade para dissoluções e recombinações dos relacionamentos

í „ ‟.

Prova disso é que um dos temas mais discutidos no direito de família atualmente é

o abandono afetivo.94 Paralelamente, segue o abandono elencado no Código Civil

como uma das hipóteses de impossibilidade da comunhão de vida conjugal95 e,

agora, com repercussão também no direito das coisas, de forma até mesmo

surpreendente, nota-se que um aspecto relevante da locução que instituiu a

usucapião familiar está na expressão abandono do lar.96 Essa centralidade que

pretende ser conferida às consequências jurídicas das situações fáticas decorrentes

do abandono é merecedora de percepção e reflexão.

Para além disso, o histórico do direito brasileiro exige que o significante

abandono do lar mereça especial atenção dos juristas na extração do seu

significado atual, visto não ser indicado, neste momento, retomar o sentido que a

denominação já teve outrora.97 A partir desta percepção, um dos pontos centrais

da análise ora proposta se debruçará na tradução atual para o termo abandono do

lar previsto na regra da usucapião conjugal, pois esse parece ser um dos pontos

93

LIPOVETSKY, Gilles. A Sociedade Pós-Moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos

novos tempos democráticos. Trad. Armando Braio Ara. Barueri: Manole, 2005. p. 139. 94

CALDERON, Ricardo Lucas. Abandono Afetivo: reflexões a partir do entendimento do Superior Tribunal

de Justiça. IN: RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. et all (orgs.) A ressignificação da função dos institutos

fundamentais do Direito Civil contemporâneo e suas consequências. Florianópolis: Conceito Editorial, 2014.

(p. 545-564) 95

O Código Civil de 2002 também refere ao abandono nos relacionamentos familiares no seu art. 1.573, IV:

“Art. 1.573. Podem caracterizar a impossibilidade da comunhão de vida a ocorrência de algum dos

seguintes motivos: (.;..) IV - abandono voluntário do lar conjugal, durante um ano contínuo.” 96

Cujo sentido não é descrito pela regra, o que pode levar (e já tem levado) a questionamentos quanto ao seu

significado atual. 97

Isto porque, durante grande parte do século passado o abandono do lar como descumprimento dos deveres

do casamento acabou por servir de embasamento para situações de repressão e até mesmo dominação da

mulher, com um viés totalmente equivocado, incompatível com a igualdade de gêneros garantida pela atual

Constituição: “No regime originário do Código Civil de 1916 o desquite litigioso deveria caber em uma das

causas especificadas no art. 317: „ adultério, tentativa de morte, sevícias ou injúria grave, abandono

voluntário do lar por mais de dois anos‟. A jurisprudência do passado procurou alargar esse aparente

numerus clausus, entendendo que o abandono do lar por menos de dois anos poderia constituir injúria

grave, expandindo o conceito de injúria.” VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil – Direito de Família. 14

ed. v.6. São Paulo: Atlas, 2014. p. 197. Quem aponta a direção a ser seguida neste particular é Ana Carla

Harmatiuk Matos: “Desta maneira, objetivamos não reproduzir uma dogmática ultrapassada, comprometida

com ideais dominantes de uma classe social, artificial, excludente, discriminatória à condição feminina, a

qual não abrange as diferentes espécies de relações familiares. Tal modelo foi erigido em um determinado

momento histórico, entretanto, os valores atuais estão a exigir novas estruturas jurídicas de respostas.”

MATOS, Ana Carla Harmatiuk. As famílias não fundadas no casamento e a condição feminina. Rio de

Janeiro: Renovar, 2000. p.164.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 33

nevrálgicos do tema em comento. Outro aspecto que será tratado diz respeito à

necessária imbricação que o direito à moradia deverá ter no momento da

concretização do referido instituto.

Para melhor clareza do que se propõe, dividiu-se a análise em quatro

pontos: o primeiro discorrerá sobre a constitucionalidade do dispositivo; o

segundo sobre os aspectos centrais desta modalidade aquisitiva; o terceiro

sustentará o sentido que deve ser conferido a expressão abandono do lar com a

necessária tutela da família; e, por derradeiro, considerações finais são

apresentadas com destaque no perfil funcional que deve ser conferido à usucapião

familiar.

1. Constitucionalidade do dispositivo

O processo legislativo de aprovação da Lei 12.424 de 2011 (que introduziu

o art. 1.240-A no Código Civil) está repleto de peculiaridades que, para alguns

autores, maculariam o dispositivo de insanável inconstitucionalidade, a qual

sustentam ser também de ordem material, por tratar equivocadamente como

usucapião uma situação que afronta aspectos basilares desta modalidade

aquisitiva.98

No âmbito formal, a referida lei teve como ponto de partida uma Medida

Provisória que atualizava as regras do programa do governo federal Minha Casa

Minha Vida,99 que originariamente nada falava sobre a nova modalidade de

usucapião. No decorrer do debate desta Medida Provisória nas comissões do

Congresso Nacional, foi suscitada a possibilidade de introdução desta usucapião

familiar, o que acabou prevalecendo no projeto final que foi aprovado. Entretanto,

não houve discussão no plenário sobre tal novel usucapião, que não constou nem

mesmo da exposição de motivos do referido projeto de lei. Por tudo isso, há quem

alegue ―que o próprio processo legislativo resta contaminado‖.100

Essas inconsistências formais do atabalhoado processo de aprovação da lei

que implantou o art. 1.240-A no Código Civil podem, efetivamente, maculá-lo por

completo, visto que são relevantes os questionamentos apresentados (o que não se

ignora). Apesar disso, até este momento nenhuma medida que o retire do

98

Por todos, as contundentes observações de: ARONNE, Ricardo. A usucapião por abandono familiar e o

cinismo: ligeiro ensaio cínico de longo título sobre o que não é, mesmo que digam ser o que jamais será. p.

4. Artigo atualmente no prelo. 99

Medida Provisória 514 de 2010. 100

Ob. Cit. p. 5.

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ordenamento (ou suspenda sua eficácia) foi proferida, de modo que segue em

vigência e, ainda, vem sendo aplicado reiteradamente pelos nossos tribunais.

Apesar da possibilidade até mesmo de uma declaração incidental de

inconstitucionalidade no julgamento dos casos concretos, fato é que até este

momento a majoritária corrente doutrinária e jurisprudencial aponta no sentido

de sua validade e constitucionalidade, o que tem feito avançar o debate relativo ao

seu conteúdo material e a forma da sua concretização.

A partir da premissa de que a Constituição é a bússola que deve orientar a

interpretação do Código Civil (e não o contrário) entende-se possível extrair um

sentido da usucapião familiar que seja adequado ao texto constitucional.101 Diante

disso, com esta observação prévia, sem deixar de anotar a pertinência de muitas

das objeções formais que lhe são postas, passa-se a análise das questões materiais

do dispositivo, pois é este o objetivo central do presente trabalho.

Ao lado do aspecto formal, como antes mencionado, alguns autores

questionam também uma suposta inconstitucionalidade material da usucapião

familiar, entendendo haver afronta injustificada a segurança jurídica e o direito de

propriedade, por não demonstrar uma função social compatível com a

expropriação pretendida e, ainda, não atentar para as atuais diretrizes

constitucionais sobre direito de família.102

Nesse particular, não parecem se sustentar os argumentos dos defensores

da inconstitucionalidade material, pois é possível encontrar guarida constitucional

para uma adequada interpretação desse instituto, sem embargo dos diversos

equívocos terminológicos que ele apresenta. Em outras palavras, pode-se

identificar uma leitura do dispositivo adequada aos princípios e valores

constitucionais incidentes na hipótese, o que faria reluzir sua constitucionalidade.

101

“É verdade que a boa hermenêutica deve impedir retrocessos, na medida em que a Constituição Federal é

que deve conformar a disciplina do Código Civil. Nunca o contrário. Não é menos verdade, todavia, que em

um campo no qual o político e o jurídico encontram-se tão próximos, o texto do Novo Código referencia um

posicionamento teórico diverso daquele conquistado a partir da paulatina construção doutrinária e

jurisprudencial consolidada.” LEONARDO, Rodrigo Xavier. A função social da propriedade: em busca de

uma contextualização entre a Constituição Federal e o Novo Código Civil. IN: Revista da Faculdade de

Direito de São Bernardo do Campo. A. 8. N. 10. São Paulo, 2004. (p. 271-287). p. 285-286. 102

“Nessa linha, não se descarta a inconstitucionalidade do novel artigo 1240-A.” DONIZETTI, Elpídio.

Usucapião do lar serve de consolo para o abandonado. Artigo publicado na Revista Consultor Jurídico de 20

de setembro de 2011. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2011-set-20/consolo-abandonado-

usucapiao-lar-desfeito>. Acesso em 02 de agosto de 2014.

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O princípio basilar da nossa Constituição é o da dignidade da pessoa

humana,103 que aponta no sentido de proteção desta esfera dos particulares com a

maior efetividade possível. A escorreita atenção ao princípio não abarca apenas a

proteção contra tratamentos degradantes ou desumanos, mas se circunscreve em

um invólucro que pode assumir inclusive relevos patrimoniais.104 Uma especial

proteção da dignidade daqueles integrantes do núcleo familiar que restaram

desamparados e necessitam do uso do imóvel para sua subsistência pode dar

suporte a constitucionalidade da modalidade aquisitiva ora apreciada.105

Outro princípio que assume densidade na análise da constitucionalidade

da usucapião familiar é o da solidariedade,106 também previsto expressamente pela

Constituição de 1988.107 A diretriz que impele a um tratamento solidário assume

especial destaque quando do trato de conflitos entre cônjuges ou conviventes,

podendo inclusive resultar em obrigações específicas decorrentes de tais relações

de conjugalidade, com extensão até mesmo para após o término do relacionamento

(como o exemplo da obrigação alimentar). Assim, a destinação da propriedade do

imóvel apenas a apenas um dos integrantes da respectiva relação pode se justificar

em um espectro de prevalência do princípio da solidariedade, no sentido concreto

de que o patrimônio de um dos consortes acolha, naquele momento, o outro.

103

Art. 1º da CF/88. Sobre o tema: MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana:

substrato axiológico e conteúdo normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos

Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 116 104

“[...] o princípio constitucional visa a garantir o respeito e a proteção da dignidade humana não apenas no

sentido de assegurar um tratamento humano e não degradante, e tampouco conduz ao mero oferecimento de

integridades físicas ao ser humano. [...] Neste ambiente, de um renovado humanismo, a vulnerabilidade

humana será tutelada, prioritariamente, onde quer que ela se manifeste. De modo que terão precedência os

direitos e as prerrogativas de determinados grupos considerados, de uma maneira ou de outra, frágeis e que

estão a exigir, por conseguinte, a especial proteção da lei.” (MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de

dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. Op. cit., p. 116) 105

“A proteção jurídica à dignidade da pessoa humana, valor fundamental do ordenamento brasileiro,

abrange, como se sabe, a tutela dos múltiplos aspectos existenciais da pessoa: nome, imagem, privacidade

etc. Inclui também a garantia dos meios materiais razoavelmente necessários – em não apenas mínimos –

para o pleno desenvolvimento da personalidade humana. Tal garantia decorre logicamente da própria tutela

da dignidade humana, que se converteria em fórmula vazia não fosse dever do Estado, das instituições e da

sociedade civil assegurar os meios necessários ao pleno exercício desta dignidade.” SCHREIBER, Anderson.

Direito à moradia como fundamento para impenhorabilidade do imóvel residencial do devedor solteiro. IN:

RAMOS, Carmem Lucia Silveira. et. al. (org.) Diálogos sobre direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p.

84. 106

Art. 3º da CF/88. 107

LÔBO, Paulo Luiz Netto. O princípio constitucional da solidariedade nas relações de família. In:

CONRADO, Marcelo (Org.). Direito Privado e Constituição: ensaios para uma recomposição valorativa da

pessoa e do patrimônio. Curitiba: Juruá, 2009. p. 327.

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O direito à moradia108 também pode contribuir para uma densificação

constitucional da usucapião familiar, desde que sua materialização vise tutelar essa

premente questão habitacional. Na perspectiva do direito italiano Pietro

Perlingieri assevera que:

A inegável relevância jurídica do interesse à moradia permitiu à Corte C „ ‟ „ q q z q E C çã ‟ a ser q „ que a vida de cada pessoa reflita a cada dia e sob qualquer aspecto, a h ‟.109

A Constituição Federal brasileira possui expresso dispositivo que aponta

na proteção do direito à moradia, art. 6º, devidamente incluído no rol dos direitos

çã q “ z -se necessários novos

instrumentos jurídicos destinados a garantir a efetiva tutela do direito à

moradi ”.110 Nesse contexto, é possível vislumbrar uma áurea de

constitucionalidade desta nova modalidade de usucapião caso sua interpretação

priorize a consagração do constitucional direito à moradia.111

Os questionamentos quanto a eventual desrespeito ao direito de

propriedade e à segurança jurídica podem ser respondidos com a observância da

sua funcionalização, que também é reverenciada constitucionalmente. Norberto

Bobbio preconiza que o direito deve atentar para além da estrutura dos institutos

jurídicos, dedicando especial relevo para a sua função.112 O movimento de

108

Art. 6º da CF/88. Sobre o tema: “A moradia como direito, formalizado em texto normativo, somente

aparece em 2000, com a inclusão realizada via Emenda Constitucional 26, no art. 6º. O que significa dizer

desde logo que, assim como o direito não acompanhou a idéia da questão social e da política pública, a

moradia também não figurou no rol das „novas‟ regulações fundamentais e sociais estabelecidas inicialmente

no período da redemocratização.” PONTES, Daniele Regina. Direito à Moradia: entre o tempo e o espaço

das apropriações. Curitiba: Juruá, 2014. p. 129-130 109

PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de

Janeiro: Renovar, 2008. p. 888. Em nota de rodapé. 110

SCHREIBER, Anderson. Direito à moradia como fundamento para impenhorabilidade do imóvel

residencial do devedor solteiro. IN: RAMOS, Carmem Lucia Silveira. et. al. (org.) Diálogos sobre direito

civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p.85. 111

Nessa perspectiva a posição de Nelson Nery Junior, para quem o sentido finalístico da usucapião familiar

deve estar atrelado ao direito à moradia: “É mecanismo de incentivo à aquisição de imóveis urbanos para

famílias com pequena renda mensal, bem como visa proteger aquele que rompeu união estável ou sociedade

conjugal, mais que ainda reside no imóvel, dividindo-o com o ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou

o lar. (...) O elemento finalísitico da utilização do imóvel como sua moradia própria, individual, ou de sua

família, deve estar presente para que possa ser declarado proprietário pela usucapião.” NERY JUNIOR,

Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 10 ed. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2013. p. 1162. 112

“Sem fazer concessões a rótulos, sempre perigosos por mais úteis que sejam, acredito ser possível afirmar

com certa tranqüilidade que, no seu desenvolvimento posterior à guinada kelseniana, a teoria do direito tenha

obedecido muito mais a sugestões estruturalistas do que funcionalistas. Em poucas palavras, aqueles que se

dedicaram à teoria do direito se preocuparam muito mais em saber „como o direito é feito‟ do que „para que o

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 37

repersonalização do direito civil também conferiu uma nova coloração a muitos

destes conceitos.113

A função social é elemento estrutural da propriedade, obriga o proprietário

e deve restar atendida no caso concreto, sob pena até mesmo de fulminar a

titularidade desse direito na sua esfera jurídica.114 Conforme afirma Eroulths

Cortiano Junior, a adequada função social da propriedade aponta na melhor

utilização do bem no específico caso concreto

Na apreciação da função social da propriedade, o operador do Direito tem de atentar para a concretude da situação proprietária, levando em conta a posição ocupada pelo sujeito proprietário – na sua vida de relações e na sua relação com o bem apropriado -, as características do bem sobre o qual incide a propriedade e a forma do exercício dos poderes proprietários. A função social da propriedade remete, sempre, a uma visão concreta das relações em que incide o fenômeno proprietário, cujo balizamento será feito a partir da normativa, mas cujo objetivo é garantir a melhor utilização social da propriedade. Aqui se dá a ruptura do modelo proprietário.115

Nesta perspectiva, mostra-se viável sustentar a constitucionalidade da

usucapião familiar como instrumento que vise proteger a mais adequada utilização

concreta do imóvel, o que retrataria o atendimento escorreito da sua função social,

apontando, inequivocamente, para a prevalência do direito à moradia como acesso

ao direito de propriedade116.

direito serve‟. A conseqüência disso foi que a análise estrutural foi levada muito mais a fundo do que a

análise funcional.” (BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Barueri:

Manole, 2007. p. 53-54. 113

“Neste sentido se julga oportuna a «repersonalização» do direito civil – seja qual for o invólucro em que

esse direito se contenha –, isto é, a acentuação da sua raiz antropocêntrica, da sua ligação visceral com a

pessoa e os seus direitos.” (CARVALHO, Orlando de. A Teoria Geral da Relação Jurídica. 2. ed. Coimbra:

Centelha, 1982. p. 90) 114

“Diante de tais reflexões críticas, construiu-se o entendimento de que a função social da propriedade

consiste em elemento interno do direito de propriedade, aspecto funcional que integra o conteúdo do direito,

ao lado do aspecto estrutural. A partir daí, transforma-se a concepção segundo a qual o proprietário deteria

amplos poderes, limitados apenas externa e negativamente, na medida em que o legislador imponha confins

para o regular exercício dos direitos. Diversamente, os poderes concedidos ao proprietário adquirem

legitimidade na medida em que o exercício concreto da propriedade adquire legitimidade na medida em que o

exercício concreto da propriedade desempenhe função merecedora de tutela, tendo em conta os centros de

interesse extra-proprietários alcançados pelo exercício do domínio, a serem preservados e promovidos na

relação jurídica da propriedade, como expressão de sua função social.” TEPEDINO, Gustavo. A Função

Social da Propriedade e o Meio Ambiente. IN: Temas de Direito Civil. v. III. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.

p. 187. 115

CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O Discurso Jurídico da Propriedade e suas rupturas. Rio de Janeiro:

Renovar, 2002. p. 146-147. 116

“O direito à moradia, como direito ao acesso à propriedade da moradia, é um dos instrumentos, mas não o

único, para realizar a fruição e a utilização da coisa.” PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade

constitucional. Op. Cit. p. 888.

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No campo das titularidades é inequívoco que nossa Constituição Federal

assegura o direito a um mínimo existencial,117 o que pode vir a justificar a aquisição

da propriedade na forma do art. 1.240-A do Código Civil.118 Exemplificativamente:

na hipótese de um dos consortes necessitar do imóvel para sua moradia, como

condição vital para sua mantença e de seus familiares, viável a sua proteção

também em observância do direito ao mínimo existencial.

Ainda sob a ótica constitucional, percebe-se uma especial tutela da família,

ao ser descrita como base da sociedade e merecedora de especial proteção do

Estado (art. 226), de maneira que latente a constitucionalidade dos institutos que

pretendam efetivar essa proteção.119 Na esteira disso, uma leitura da usucapião

familiar que objetive proteger a esfera patrimonial da família se afigura claramente

q é “ é

pessoa e da família; isso tem consequências notáveis no plano das relações

í ”.120 Há sólida corrente doutrinária nesse sentido. Luiz Edson Fachin é

um dos defensores da constitucionalidade do art. 1.240-A do Código Civil

Apreende-se que o novo dispositivo legal encartado ao Código Civil é adequado aos vetores que esteiam o ordenamento jurídico brasileiro, sendo possível o acolhimento sistemático ao art. 1240-A em leitura orientada pelas determinantes principiológico-constitucionais.121

A partir das considerações acima, afigura-se possível sustentar a

constitucionalidade de uma leitura da usucapião familiar ao afiná-la com tais

pressupostos constitucionais, que devem, inexoravelmente, reverberar na

definição das balizas de aplicação de referido instituto.

117

“Há um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção

do Estado e que ainda exige prestações estatais positivas”. TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo

existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p.8. 118

“A guarida a essa esfera patrimonial básica acentua a consideração de valores que denotam interesses

sociais incidentes sobre as titularidades. Tais valores recaem, ainda que de modo diverso, sobre a posse a

propriedade.” FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 2 ed. atual. Rio de Janeiro:

Renovar, 2006. p. 285. 119

“Em verdade a grande reviravolta surgida no Direito de Família com o advento da Constituição Federal

foi a defesa intransigente dos componentes que formulam a inata estrutura humana, passando a prevalecer o

respeito à personalização do homem e de sua família, preocupado o Estado Democrático de Direito com a

defesa de cada um dos cidadãos. E a família passou a servir como espaço e instrumento de proteção à

dignidade da pessoa, de tal sorte que todas as esparsas disposições pertinentes ao Direito de Família devem

ser focadas sob a luz do Direito Constitucional.” MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 4. ed.,

rev. atual. amp. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 42. 120

PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de

Janeiro: Renovar, 2008. p. 888. 121

FACHIN, Luiz Edson. A constitucionalidade da usucapião familiar do art. 1.240-A do Código Civil. In:

Revista Carta Forense, de 2 de outubro de 2011. Disponível em:

<http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/a-constitucionalidade-da-usucapiao-familiar-do-artigo-

1240-a-do-codigo-civil-brasileiro/7733>. Acesso em: 02 de agosto de 2014.

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2. Requisitos legais e questões controversas da usucapião familiar

Inegável que faltou ao legislador uma precisão terminológica para a

definição do instituto da usucapião familiar, o que já vem sendo observado por

parte da doutrina e alguns precedentes nos tribunais.122

Nesse contexto, na apuração do sentido do instituto não se pode perder de

vista a essência da necessária hermenêutica com a superação da simples

subsunção conforme apregoa Gustavo Tepedino

[...] se o ordenamento é unitário, moldado na tensão dialética da argamassa única dos fatos e das normas, cada regra deve ser interpretada e aplicada a um só tempo, refletindo o conjunto das normas em vigor. A norma do caso concreto é definida pelas circunstâncias fáticas na qual incide, sendo extraída do conjunto normativo em que se constitui o ordenamento como um todo.123

Com a vigência da Lei Federal 12.424 de 16.06.2011 foi incluído no

Có C “ ã ” ( . 1.240-A, CC),

pelo qual se passa a admitir a exceção de hipótese de prescrição aquisitiva da posse

entre ex-cônjuges ou ex-companheiros (art. 197, I, CC).

Da letra fria da lei extrai-se tratar de instituto aplicável a imóvel

urbano com até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados), objeto de

partilha de bens em que uma das partes abandona o lar em detrimento do

exercício da posse pela outra, que utiliza o bem para sua moradia ou de sua

família, sem que esta seja proprietário de outro imóvel, urbano ou rural:

Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

A primeira controvérsia em torno do tema parece estar

praticamente superada e diz respeito ao marco temporal inicial da contagem do

prazo da prescrição aquisitiva pela incidência do instituto em razão da sua eficácia

no tempo. Para delimitar a prazo inicial da usucapião familiar prevalece o

122

No caso da usucapião familiar há dificuldade ainda maior devido ao curto lapso temporal entre a

aprovação da norma e a de vigência da lei que a criou. Além disso, há dificuldade de acesso a amostragem

mais ampla de julgados em vários de tribunais devido a tramitação em segredo de justiça nos processos de

famílias (art. 155, II, CPC). Essa pesquisa tem por base a pesquisa de jurisprudência no Supremo Tribunal

Federal, Superior Tribunal de Justiça e Tribunais de Justiça das unidades da federação de Alagoas, Rondônia,

Mato Grosso do Sul, Distrito Federal e Territórios, Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa

Catarina e Paraná. 123

TEPEDINO, Gustavo. O ocaso da subsunção. Disponível em: <http://www.tepedino.adv.br/wp/wp-

content/uploads/2012/09/RTDC.Editorial.v.034.pdf>. Acesso em 28.07.2014.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 40

entendimento da sua ocorrência a partir da vigência da Lei 12.424/2011, que visa

assegurar a segurança jurídica das relações jurídicas previamente estabelecidas.

Esse é o entendimento firmado por muitos tribunais e que vêm sendo

acompanhado em uma razoável quantidade de precedentes,124 assim como foi

deliberado na V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal125

Enunciado 498 - A fluência do prazo de 2 (dois) anos previsto pelo art. 1.240-A para a nova modalidade de usucapião nele contemplada tem início com a entrada em vigor da Lei n. 12.424/2011.

Assim, independentemente do exercício prévio da posse de forma

exclusiva por um dos cônjuges ou companheiro (a), segundo a decisão reiterada

dos tribunais, a data inicial a qual se aplica a usucapião familiar é 16.06.2011,

quando passou a vigorar o dispositivo em tela no Código Civil.

Outra questão que em princípio se evidenciava mais tortuosa na

caracterização do começo do prazo da prescrição aquisitiva está na definição da

data separação do casal, o que não implica, necessariamente, na existência de

separação judicial, medida cautelar de separação de corpos ou até mesmo do

divórcio.

O texto legal faz referência a çã “ -cônjuge ou

h ” “ ”. N q

coabitação prescindível à constituição da entidade familiar, a data da separação

fática do casal será o marco para a contagem do período aquisitivo, sendo

irrelevante o seu prévio reconhecimento formal (seja pela via judicial ou por

escritura pública).

Nessa linha é a interpretação dada pelo Enunciado 501 da V Jornada de

Direito Civil

124

EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - USUCAPIÃO FAMILIAR - LEI 12.424/11 - VIGÊNCIA -

PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA. O prazo de 02 anos da prescrição aquisitiva, exigido pela Lei nº

12.424/11, deve ser contado a partir da sua vigência, por questões de segurança jurídica, vez que antes da

edição da nova forma de aquisição da propriedade não existia esta espécie de usucapião. (Apelação Cível

1.0177.11.001434-3/001, Relator(a): Des.(a) Antônio de Pádua , 14ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em

07/03/2013, publicação da súmula em 19/03/2013). No mesmo sentido: TJ/MG Apelação Cível

1.0702.12.035148-2/001, Apelação Cível 1.0702.11.079218-2/001, Apelação Cível 1.0598.11.002678-1/001;

TJ/SP Apelação 0012360-17.2013.8.26.0032, Apelação 0707317-31.2012.8.26.0020, Apelação 0001253-

55.2013.8.26.0426, Apelação 0040665-69.2011.8.26.0100, Apelação 0052438-14.2011.8.26.0100, Apelação

0023846-23.2012.8.26.0100; TJ/RS Apelação Cível Nº 70050616598; TJ/PR Apelação Cível 3201-

90.2011.8.16.0002, Apelação Cível 0007120-30.2011.8.16.0021). 125

Jornadas de direito civil I, III, IV e V: enunciados aprovados / coordenador científico Ministro Ruy

Rosado de Aguiar Júnior. – Brasília: Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2012. In:

<http://www.cjf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/enunciados-aprovados-da-i-iii-iv-e-v-jornada-de-direito-

civil/compilacaoenunciadosaprovados1-3-4jornadadircivilnum.pdf>. Acesso em: 28.07.2014.

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501 - A õ “ - ô ” “ - h ” . 1.240-A do Código Civil, correspondem à situação fática da separação, independentemente de divórcio.126, 127

Nota-se a necessária adequação dos termos empregados na redação do art.

1.240-A, CC pela interpretação sistemática da concepção de ex-cônjuge ou

companheiro, tendo em vista a dignidade constitucional para a pluralidade de

entidades familiares. Vide o Enunciado 500 da V Jornada de Direito Civil

500 - A modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil pressupõe a propriedade comum do casal e compreende todas as formas de família ou entidades familiares, inclusive homoafetivas.128

O q ã q çã é “

” obre o bem, que não se confunde com aquela definida no art. 1.197 do

Código Civil

Enunciado 502 - O conceito de posse direta referido no art. 1.240-A do Código Civil não coincide com a acepção empregada no art. 1.197 do mesmo Código.129

Conforme leciona Pontes de Miranda, o conceito e natureza jurídica da

posse, por essência é suporte fático da relação inter-humana de poder exercido

entre o possuidor e o alter, ou seja, a comunidade. Não se trata de poder ou o seu

exercício relativo ao domínio ou à propriedade (usus, fructus, abusos). 130 Assim, a

posse pertence ao mundo dos fatos e pode ingressar no plano jurídico em razão de

ato, negócio, ato-fato ou fato jurídico puro. O exercício da posse, ainda que

acrescida de algum direito, é do plano fático e o que importa ao titular.131 Fundada

na sua natureza fática, a teoria clássica da posse admite distintas gradações e uma

consequente pluralidade de sujeitos que variam do possuidor imediato (posse

direta) ao mediato (posse indireta), adotada pelo Código.

Assim, dispõe o texto legal que a usucapião familiar poderá ser concedida

àquele que exercer a posse direta por 02 (dois) anos ininterruptos, sem oposição e

126

Jornadas de direito civil I, III, IV e V. Op. cit. 127

No mesmo sentido julgou o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: Ementa: APELAÇÃO

CÍVEL Usucapião familiar, com fundamento no artigo 1.240-A do Código Civil Ação de extinção do feito,

sem resolução do mérito, afastada. O evento a quo para o início da contagem do prazo prescricional é a

separação de fato do casal, com o abandono do lar por um dos cônjuges. Ação em condições de ser

julgada (art. 515, § 5º, do CPC). Lapso temporal não verificado. Pedido improcedente. (Apelação 0023846-

23.2012.8.26.0100, Relator(a): Des.(a) José Carlos Ferreira Alves, 2ª Câmara de Direito Privado, julgamento

em 03.12.2013) (grifo nosso) 128

Jornadas de direito civil I, III, IV e V. Op. cit. 129

Jornadas de direito civil I, III, IV e V. Op. cit. 130

MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Parte Especial, Tomo 10, Direito das Coisas:

Posse. Atualizado por Vilson Rodrigues Alves. 2ª ed. Campinas: Bookseller, 2001. p. 31. 131

MIRANDA. Ibid. p. 32-33.

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com exclusividade. Nesse contexto, é preciso registrar que a finalidade do instituto

não pode restringir o direito a aquisição originária da propriedade àquele que

permanece na posse efetiva do lar conjugal, devendo ser contextualizada com as

múltiplas vicissitudes que motivam a saída de uma das partes.

Darcy Bessone há muito já sustentava a necessidade de uma releitura

contemporânea do instituto e do Direito das Coisas

Não estamos a refletir apenas a figura complexa da posse. Queremos saltar para fora de um círculo tão estrito para vermos todo o descompasso entre o Direito e a vida, especialmente no campo do Direito privado. Tem faltado imaginação e criatividade aos cientistas do Direito. Não conseguem vincular-se à evolução resultante das novas descobertas e inventos. De ordinário, viram-se para trás, em lugar de volverem-se para frente.132

Por estar diretamente atrelada à proteção da família e à concretização da

h h q “ çã

”133 para evitar situações concretas de injustiça.

Por isso, em alguns casos é possível a concessão da usucapião familiar até mesmo

para o consorte que não está na posse efetiva do bem.134

Uma sociedade desigual na qual persistem condições de desigualdade de

gênero e de altos índices de violência doméstica, não se pode limitar a conferir

apenas a aplicação do instituto àquele cônjuge ou companheiro que permaneceu

fisicamente no imóvel.

É necessária uma reinterpretação dos institutos do direito das coisas em

sintonia com o Direito de Família hodierno. Exemplo da insuficiência das teorias

possessórias clássicas135 para a correta aplicação da usucapião familiar pode ser

verificada na situação abaixo

DIREITO CIVIL. UNIÃO ESTÁVEL. IMÓVEL ADQUIRIDO DURANTE PERÍODO DE CONVIVÊNCIA. PERDA DA MEAÇÃO PELO COMPANHEIRO. ART. 1.240-A. APLICAÇÃO ANALÓGICA. COMPANHEIRA VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. INAPLICABILIDADE. PARTILHA NECESSÁRIA.

Segundo dispõe o art. 1.725 do Código Civil, reconhecida a união estável, aplica-se o regime da comunhão parcial de bens.

132

BESSONE, Darcy. Da Posse. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 7. 133

FACHIN, Luiz Edson; GONÇALVES, Marcos Alberto Rocha. 10 anos do Código Civil: o ser e o ter no

direito de família a partir da aquisição pela permanência na morada familiar. In: Direito civil constitucional e

outros estudos em homenagem ao Prof. Zeno Veloso. Coordenação Pastora do Socorro Teixeira Leal. Rio de

Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. p. 646. 134

SIMÃO, José Fernando; TARTUCE, Flávio. Direito Civil. v. 4 . Direito das Coisas. São Paulo:

Método, 2013. p. 172. 135

Em que pese a velocidade das enormes transformações sociais ocorridas no século passado e início deste,

as teorias objetiva e subjetiva de Ihering e Savigny, respectivamente, que datam do século XIX, permanecem

bastante fortes na codificação vigente.

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Não comprovado, na hipótese, os requisitos para usucapião nos termos do art. 1.240-A, em especial o abandono do lar e a posse sem oposição, inviável aplicação analógica deste dispositivo à companheira anteriormente vítima de violência doméstica e familiar a partir da interpretação dos justos objetivos da Lei Maria da Penha, ainda mais quando já reparada financeiramente por tal ocorrência.

(Acórdão n.690599, 20120310272384APC, Relator: CARMELITA BRASIL, Revisor: WALDIR LEÔNCIO LOPES JÚNIOR, 2ª Turma Cível, Data de Julgamento: 03/07/2013, Publicado no DJE: 10/07/2013. Pág.: 122)

Não raro as vítimas de violência doméstica não representam seus

agressores por temer o agravamento do conflito familiar, e, com o intuito de

proteger a si e eventual prole, saem do lar conjugal. Assim, a interpretação acerca

do requisito da posse direta deve ser orientada para a finalidade de tutelar a

entidade familiar e o conjunto de direitos que compõe a sua esfera existencial

mínima, não para coagi-la a permanecer onde sequer a sua integridade física e

moral é respeitada.136

Outro ponto controvertido sobre o tema diz respeito ao foro competente

para julgar as ações relativas à usucapião familiar. Como pertine tanto ao Direito

das Coisas como ao Direito de Família, atualmente discute-se qual o foro

competente para o julgamento dessas demandas: se o foro cível comum ou as varas

especializadas de família.

Nessa questão vislumbra-se uma tendência dos tribunais a decidir pela

competência cível:

AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE DIVÓRCIO - RECONVENÇÃO - USUCAPIÃO FAMILIAR - ART. 1240-A DO CC/02 - COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO - DIREITO REAL - COMPETÊNCIA DA VARA CÍVEL - DECISÃO MANTIDA.

Na usucapião familiar, prevista art. 1240-A do CC/02, a existência de instituição familiar, seja o casamento ou a união estável, é apenas um dos requisitos necessários para a sua constituição. A questão de fundo nela contida refere-se a constituição de domínio sobre imóvel, constituindo-se, portanto, ação de cunho patrimonial. Tendo em vista que a usucapião familiar não se refere a estado de pessoas, mas sim a aquisição originária de propriedade imobiliária, cujos efeitos poderão atingir terceiros, a competência para seu julgamento é dos Juízes da Vara Cível, e não da Vara de Família. (TJMG, Agravo de Instrumento Cv 1.0024.13.206443-

136

Nessa linha, José Fernando Simão e Flávio Tartuce sustentam que o abandono do lar não tem

vinculação necessária com a posse direta do imóvel: “Desse modo, o requisito do abandono do lar merece

uma interpretação objetiva e cautelosa. (...) Como incidência concreta desse enunciado doutrinário, não se

pode admitir a aplicação da nova usucapião nos casos de atos de violência praticados por cônjuge ou

companheiro para retirar o outro do lar conjugal. Em suma, a expulsão do cônjuge ou companheiro não pode

ser comparada ao abandono.” In: SIMÃO, José Fernando; TARTUCE, Flávio. DIREITO CIVIL. v. 4 .

Direito das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 172.

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7/001, Relator(a): Des.(a) Afrânio Vilela, 2ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 11/03/2014, publicação da súmula em 21/03/2014)137

Sendo a aquisição da propriedade uma consequência do abandono

familiar, questão que diz muito mais com o direito de família, a competência para

o processamento do pedido deve ser atribuída às varas de família.138

Conforme se verá adiante, a usucapião familiar tem caráter principalmente

existencial, pois visa tutelar a família e o seu direito à moradia, de modo que sua

análise é matéria que deve restar sob a incumbência dos juízos de família.

3. O sentido funcionalizado da expressão abandono do lar

O dispositivo legal que introduziu a usucapião familiar traz como um dos

q „ ‟ ã . 1240-A

do Código Civil. Infeliz a escolha deste significante pelo legislador, como já

exposto, pois a figura do abandono do lar desempenhou outro papel no direito

brasileiro recente, atualmente já totalmente superado.

Como o instituto visa tutelar um aspecto patrimonial de uma relação

familiar, deve, necessariamente, corresponder ao momento atual do direito de

família brasileiro, sob pena de incorrer em inadmissível retrocesso. As alterações

neste ramo do direito foram tantas que alguns autores até preferem referir a um

direito das famílias,139 no plural, para bem demarcar esse multifacetado sentido

contemporâneo.

Quem descreve com clareza a alteração que se processou é Maria Celina

Bodin de Moraes

Esse processo foi acompanhado de perto pela legislação e pela jurisprudência brasileiras que tiveram nas duas últimas décadas, inegavelmente, um papel promocional na construção do novo modelo familiar. Tal modelo vem sendo chamado, por alguns especialistas em „ ‟ h ó significativa novidade, em decorrência da inserção, no ambiente familiar, de princípios como igualdade e liberdade.140

137

No mesmo sentido TJ/SP Conflito de competência nº 0180277-60.2013.8.26.0000 e TJ/PR

AGRAVO DE INSTRUMENTO n.º 966031-5. 138

LIMA, Susana Borges Viegas de Lima. Usucapião familiar. In: Direito das famílias por juristas

brasileiras. Organizadoras Joyceane Bezerra de Menezes e Ana Carla Harmatiuk Matos. São Paulo: Saraiva,

2013. p. 805-821. 139

DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2007. 140

MORAES, Maria Celina Bodin de. A Família Democrática. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.).

Anais do V Congresso Brasileiro do Direito de Família. São Paulo: IOB Thomson, 2006. p. 615.

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A partir dessas diretrizes constitucionais o trato atual das relações

familiares fez emergir, dentre outros, os princípios da responsabilidade141 e da

afetividade142, que conferem outra coloração às diversas categorias do direito de

família. Para proteção dessa família democrática hodierna, inviável a utilização de

figuras jurídicas que incompatibilizem com o momento alcançado.143

Importa destacar que uma adequada tutela das relações jurídicas

familiares existenciais não se compatibiliza com meras técnicas subsuntivas,

exigindo muito mais do intérprete.144 Essa especialidade das situações familiares

já era sustentada por José Lamartine de Oliveira e Francisco Muniz

Poderíamos dizer, pois, que os direitos de família, por razões éticas e pelo caráter eminentemente pessoal da relação, exigem formas próprias de tutela, inteiramente distintas das que caracterizam a defesa dos direitos de crédito, dos direitos reais e dos próprios direitos da personalidade.145

Diante disso, ao significante abandono do lar deve ser conferido um

significado adequado com a tutela da relação familiar subjacente. Ou seja,

compatível com um retrato civil-constitucional contemporâneo da família

brasileira, de modo que sua significação se circunscreva aos contornos

constitucionais e às categorias vigentes do nosso atual direito privado.

Consequentemente, se mostra inconcebível qualquer interpretação da

expressão abandono do lar que busque retomar a averiguação da culpa na

dissolução do vínculo conjugal, visto ser esta uma questão já superada no direito

de família brasileiro, máxime após a Emenda Constitucional 66/2010. Do mesmo

modo, não se pode vislumbrar na figura do abandono do lar uma mera sanção a

141

SANCHES, Fernanda Karam de Chueiri. A Responsabilidade no Direito de Família Brasileiro

Contemporâneo: Do Jurídico à Ética. Dissertação. (Mestrado em Direito) - Programa de Pós-Graduação em

Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2013. p. 157. 142

CALDERON, Ricardo Lucas. Princípio da Afetividade no Direito de Família. Rio de Janeiro: Renovar,

2013. p. 320. 143

“Não se pode esquecer que a família, nas últimas décadas e neste início de milênio, busca mecanismos

jurídicos diversos de proteção para seus membros, o respeito às diferenças, necessidades e possibilidades.”

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v. 5. 22 ed. atual. Tânia da Silva Pereira. Rio

de Janeiro: Forense, 2014. 144

“Più che mai dunque nel diritto familiare risulta evidente la necessita di rinnovare le tecniche di

interpretazione e di qualificazione con il superamento di qualsiasi operazione argomentativa di tipo

sillogistico che pretenda di fermarsi alla lettera del legislatore e di espungere dall‟analisi, che è a

fondamento del convincimento giuridico, il profilo funzionale rappresentato dagli interessi e dai valori.”

(PERLINGIERI, Pietro. La persona e i suoi diritti: problemi del diritto civile. Napoli: Edizione Scientifiche,

2004. p. 378). Em tradução livre: “Mais do que nunca, portanto, no direito de família resulta evidente a

necessidade de renovar as técnicas de interpretação e de qualificação com a superação de qualquer operação

argumentativa de tipo silogístico que pretenda se deter nas palavras do legislador e afastar da análise, que é o

fundamento do convencimento jurídico, o perfil funcional representado pelos interesses e pelos valores.” 145

OLIVEIRA, José Lamartine de; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Curso de Direito de Família. 4 ed.

Curitiba: Juruá, 2008. p. 14.

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um dos cônjuges ou conviventes. Calha, aqui, a alteração de enfoque que se

percebe na própria responsabilidade civil: muito mais do que se sancionar um

culpado, o que na maioria das vezes não é simples, o foco atual visa a

recomposição da vítima. Embora não se ignore que existam autores que sustentem

que a perda da propriedade pelo cônjuge que abandona o lar simbolize uma

verdadeira sanção pelo descumprimento dos deveres do casamento ou da união

estável (a utilização da expressão abandono do lar como elemento desta usucapião

inicialmente reforça essa visão, pois é a mesma que é descrita como um dos

deveres do casamento).146

Como se pode perceber, é complemente inviável a restauração da figura do

abandono do lar com uma interpretação quase literal, que possa inicialmente

induzir a um retrocesso que busque requentar questões já superadas. A busca de

um culpado pelo fim do relacionamento somente aumenta a litigiosidade, sem

nada agregar, de modo que a solução das controvérsias só tende a agravar dada a

infinita quantidade de motivos que ambas as partes podem trazer em seu favor.

Esta leitura é incompatível com o estádio do nosso direito jusfamiliar.

Por outro lado, também o direito das coisas assumiu uma feição

constitucionalizada. A partir desta percepção não parece adequado atribuir ao

abandono do lar um sentido meramente objetivo de ausência de vínculo efetivo

com o imóvel, de ausência de posse, ausência de relação direta de uso do bem,

como é usual nas demais modalidades de usucapião. Diversos autores estão a

sustentar que a expressão abandono do lar para fins desta usucapião deve ser

146

“A nova modalidade de usucapião inserida no Código Civil pela Lei 12.424/2011 consiste em

sanção civil pelo descumprimento dos deveres do casamento e da união estável. Aquele que abandona

voluntária e injuriosamente o domicílio familiar, nas condições descritas neste dispositivo legal, descumpre

gravemente os deveres conjugais e os deveres oriundos da união estável e fica sujeito à perda do direito de

propriedade em favor do consorte que ali permanece durante dois anos e sem oposição. Este é mais um dos

artigos do Código Civil que oferece proteção ao consorte inocente e punição ao culpado pelo

descumprimento dos deveres familiares, reforçando essas normas de conduta após a Emenda Constitucional

66/2010. Recordemos que dever sem sanção não é norma de conduta, mas sim, mera recomendação ou

simples conselho, o que seria inadmissível, por inconstitucional, ou seja, por violar principalmente o art. 226,

caput, da Constituição Federal, que impõe ao Estado proteção especial à família e, por conseguinte, aos seus

membros.” FIUZA, Ricardo; TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. Código civil comentado. 9ª ed. São

Paulo: Saraiva, 2013. p. 1171. Ainda: “O abandono do lar pelo cônjuge consiste em infração grave para a

relação jurídica de casamento. O art. 1.566, II, do CC estabelece que (...) „são deveres de ambos o cônjuges

(...) II – vida em comum, no domicílio conjugal; (...)‟. O casamento ou a união estável marcam a opção da

vida conjugal, que pode ser consolidada pelo contrato de casamento ou pela união estável.” MEDINA, José

Miguel Garcia; ARAÚJO; Fábio Caldas de. Código Civil Comentado. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2014. p. 781.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 47

entendida de modo objetivo, com um sentido que indique apenas vínculo efetivo

com o uso do imóvel.147

Novamente aqui as vicissitudes das relações familiares impedem que se

denote ao abandono do lar um significado que retrate meramente a ausência de

vínculo efetivo com a coisa (de uso concreto do imóvel). Isto porque, em muitos

casos, o consorte que resta no imóvel não é o que necessita dele para a moradia,

não é o que está com a prole, não é o que foi desamparado pelo outro, não é o que

está fazendo frente às responsabilidades parentais; por tudo isso, não é o que será

merecedor da titularidade plena do lar conjugal.

Corolário disso, por envolver relações familiares que possuem infinitas

delineações, se mostra totalmente descabida a fixação, a priori, de um critério

objetivo e singelo como este: que identifique a expressão abandono do lar com o

mero distanciamento físico do imóvel.

Um exemplo hipotético concreto pode auxiliar na compreensão do que se

está a sustentar: não raro muitas das mulheres vítimas de violência doméstica

simplesmente saem do lar com seus filhos para parar de sofrer tais sevícias; grande

parte delas não ajuíza as competentes ações judiciais no exíguo prazo de dois anos

e sequer registra os competentes boletins de ocorrência (pois muitas vezes estão

mais preocupadas com a segurança e subsistência - sua e dos seus filhos - naquele

difícil momento da vida, ainda mais quando o pai-agressor está sem emprego e

possui ainda vícios de drogas ou álcool). Também não é incomum que o agressor

que restou fisicamente no lar não faça frente as suas responsabilidades parentais:

não pague alimentos, não visite os filhos, não exerça sua autoridade parental, não

permita que a mulher entre em contato e que sequer volte ao lar pegar os seus

pertences e os dos filhos. Este quadro sombrio ocorre com mais frequência em

famílias de baixa renda, desestruturadas e com diversos problemas sociais, mas

atualmente muitas delas são proprietárias de imóvel pelo referido programa

federal Minha Casa, Minha Vida. Sobrevinda uma ação real, imagine-se que tais

fatos se comprovem facilmente (até com confissão de ambas as partes: o pai das

agressões e descumprimentos das obrigações com os filhos; a mãe com seu

147

“É mecanismo de incentivo à aquisição de imóveis urbanos para famílias com pequena renda mensal, bem

como visa proteger aquele que rompeu união estável ou sociedade conjugal, mais que ainda reside no imóvel,

dividindo-o com o ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar. (...) O elemento finalístico da

utilização do imóvel como sua moradia própria, individual, ou de sua família, deve estar presente para que

possa ser declarado proprietário pela usucapião.” NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade.

Código Civil Comentado. 10 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 1162.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 48

distanciamento do local por mais de dois anos sem ajuizar qualquer demanda).

Pois bem, seria sustentável no atual direito civil-constitucional brasileiro afirmar

que o consorte-agressor que restou fisicamente no lar por dois anos seguidos, mas

abandonou por completo sua família neste período, descumprindo in totum sua

responsabilidade familiar e parental, venha a receber a propriedade total do imóvel

pelo mero atendimento objetivo dos requisitos formais da usucapião familiar?

Parece que não.

Conceder a aquisição da propriedade a este pai-agressor apenas porque foi

ele quem restou fisicamente no imóvel pelo prazo de dois anos afrontaria

justamente os princípios constitucionais que conferem guarida à usucapião

familiar: dignidade, solidariedade, função social, direito à moradia e direito a um

mínimo existencial. Este é um dos pontos nodais da presente proposta: exaltar

que a significação da usucapião familiar não pode descurar dos princípios

constitucionais que a sustentaram. Ou seja, a caracterização dos requisitos do

instituto não pode olvidar dos comandos que advém dos valores constitucionais

que o fundamentam e, com isso, o integram. Impensável sustentar a

constitucionalidade da usucapião familiar com base na dignidade da pessoa

humana, solidariedade, função social, direito à moradia e, no momento da

aplicação concreta dos seus requisitos, virar as costas para tais questões e se ater

apenas aos elementos estruturais-formais, contrariando os supracitados valores

constitucionais.148

Há que se apurar a adequada função contemporânea desta recente

modalidade de usucapião familiar, de acordo com uma análise unitária do

ordenamento, sempre a partir da Constituição Federal e do Código Civil, com o

intuito de constatar o papel que este instituto deve desempenhar naquela dada

situação jurídica. Gustavo Tepedino esclarece a relação entre o aspecto estrutural e

funcional dos bens jurídicos

Como se pode observar, a disciplina dos bens jurídicos, delineada de maneira minuciosamente tipificadora e abstrata no Código Civil, embora tradicionalmente difundida em seu aspecto estrutural, a desenhar classificação aparentemente neutra de objetos sujeitos ao tráfego jurídico, adquire renovada dimensão e importância no direito contemporâneo. Para tanto, há que se deslocar a análise para perspectiva funcional, de tal

148

“Desse modo, o requisito do abandono do lar merece uma interpretação objetiva e cautelosa. (...) Como

incidência concreta desse enunciado doutrinário, não se pode admitir a aplicação da nova usucapião nos

casos de atos de violência praticados por cônjuge ou companheiro para retirar o outro do lar conjugal. Em

suma, a expulsão do cônjuge ou companheiro não pode ser comparada ao abandono.”. SIMÃO, José

Fernando; TARTUCE, Flávio. DIREITO CIVIL. v. 4 . Direito das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 172.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 49

modo que a qualificação do bem jurídico se encontre sempre associada à sua função, investigando-se, na dinâmica da relação jurídica em que se insere, a destinação do bem de acordo com os interesses tutelados.149

A percepção da dimensão funcional da usucapião familiar demonstrará,

sem maiores dificuldades, qual o seu efetivo papel na relação jurídica subjacente e

evidenciará mais facilmente qual o bem jurídico que deve ser tutelado.

Consequentemente, nessas condições, impõe-se buscar um sentido compatível de

abandono do lar, que exalte essa função e o permita transitar tanto no direito das

coisas como no direito de família, densificando as normas constitucionais que o

fundamentam.

Resta patente que este sentido não pode significar nem a busca por um

culpado pelo término da relação, nem restar adstrito à mera retirada física do

imóvel, conforme exposto acima (visões que têm sido difundidas). Nenhuma

dessas duas opções permite a consagração das diretrizes da Constituição que

incidem sob a matéria e muito menos destacam o aspecto funcional da inovadora

modalidade aquisitiva.

Diante dessas considerações, o que se mostra indicado é que se traduza a

expressão abandono do lar como um abandono familiar, no sentido de um

desamparo da família por um daqueles que deveria ser seu provedor. Em outras

palavras, retrate o não atendimento das responsabilidades familiares e parentais

incidentes no caso concreto, um desassistir que venha a trazer dificuldades

materiais e afetivas para os familiares que restaram abandonados. Exemplificando:

não prestar alimentos, não contribuir para as despesas do lar, não manter os

vínculos afetivos com os demais integrantes da família, dentre outros.

O foco de análise deve ser a partir da situação jurídica dos entes familiares

que restaram desamparados e podem vir a merecer certa proteção patrimonial.

Substitui-se eventual busca pelo sancionamento de um ofensor pela priorização na

recomposição das vítimas do desamparo.150 Este abandono familiar equivaleria ao

149

TEPEDINO, Gustavo. Regime Jurídico dos Bens no Código Civil. IN: Silvio de Salvo Venosa; Rafael

Villar Gagliardi e Paulo Magalhães Násser (Org.). Dez anos do Código Civil: desafios e perspectivas. São

Paulo: Atlas, 2012. p. 30. 150

“Essa espécie de usucapião visa à proteção do cônjuge que, abandonado ou, mesmo, privado de

assistência material e do sustento e da moradia, mantém-se no imóvel e se responsabiliza pelos respectivos

encargos, situação que justifica a aquisição da propriedade por usucapião e a alteração do regime de bens

quanto ao respectivo imóvel.” CHALHUB, Melhim Namem. Direitos Reais. 2 ed. rev. atual. e ampl. São

Paulo: Editora Saraiva, 2014. p. 90-91.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 50

sentido contemporâneo de abandono do lar para fins da usucapião e permitiria a

averiguação dos seus demais requisitos legais.151

Consequentemente, só faria jus à aquisição da propriedade quem cumpriu

com suas responsabilidades familiares, ou seja, quem fez frente a sua obrigação

alimentar (ainda que não fixada judicialmente), exerceu efetivamente sua

autoridade parental, visitou os filhos, não agrediu fisicamente o outro consorte ou

demais integrantes da família, dentre outros critérios a apurar na situação

concreta. Com tal sentido de abandono do lar o exemplo hipotético acima descrito

estaria sanado, pois aquele pai-agressor não seria agraciado com a propriedade.

Uma leitura de abandono do lar próxima ao que se descreveu como um

abandono familiar já foi retratada, de algum modo, no enunciado 499 da V

Jornadas de Direito Civil

499 - A aquisição da propriedade na modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil só pode ocorrer em virtude de implemento de seus pressupostos anteriormente ao divór . O q “ ” çã que o afastamento do lar conjugal representa descumprimento simultâneo de outros deveres conjugais, tais como assistência material e sustento do lar, onerando desigualmente aquele que se manteve na residência familiar e que se responsabiliza unilateralmente pelas despesas oriundas da manutenção da família e do próprio imóvel, o que justifica a perda da propriedade e a alteração do regime de bens quanto ao imóvel objeto de usucapião.

Nas entrelinhas do enunciado é possível perceber as questões materiais

atinentes ao cumprimento das responsabilidades familiares (assistência material,

sustento do lar), em consonância com o que se ora defende.152

Muito mais do que simplesmente vincular o abandono do lar a um

requisito objetivo de uso do imóvel há que se edificar um sentido ético para a

expressão, único passível de bem retratar a sua função. A própria nomenclatura de

“ ã ” ituto, ao invés de outras nominações,

151

Alguns autores sustentam nesse sentido, como Priscila Maria Pereira Correa da Fonseca: “O abandono

que rende ensejo às consequências previstas no art. 1.240-A é aquele efetivado de má-fé, aquele claramente

levado a efeito com o intuito de relegar à família repudiada ao signo de desamparo moral e/ou material.

Insista-se: não é apenas a falta de assistência financeira daquele que se desligou do antigo lar que

proporcionará o pedido de aquisição do domínio nos moldes do comando sub examine. Há, por igual, de

configurar o abandono referido pelo art. 1240- A, aquele praticado pelo ex-cônjuge ou ex-companheiro que,

não obstante diligencie satisfatoriamente à mantença dos componentes da família, a eles volta às costas,

passando a ignorar o atendimento assistencial necessário, ainda que não de ordem moral.” FONSECA,

Priscila Maria Pereira Correa da. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre,

Magister/Belo Horizonte, IBDFAM, v. 23,ago./set. 2011. p. 120. 152

Uma única observação quanto a redação do enunciado: prefere-se aqui referir a um desatendimento da

responsabilidade familiar pelo abandonador do que descumprimento dos deveres conjugais, como constou na

ementa.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 51

pode contribuir para destacar o aspecto que ora pretende se jogar luz (a tutela da

família).

Referir a um sentido de abandono familiar como pressuposto para a

usucapião familiar permite uma aproximação com todos os princípios e valores

constitucionais que foram justificadores da aplicação do dispositivo e, ainda,

atenta para a sua devida função na respectiva relação jurídica. Já há quem defenda

uma leitura arejada e atualizada de abandono do lar, com vistas a bem retratar a

adequada função do instituto

No seio desta perspectiva não se pode aproximar a locução abandono do lar às matizes de um tempo no qual a dissolução das relações era exclusivamente pelo desfazimento do casamento, sempre a partir da conduta culposa de um dos cônjuges. (...) Não parece correto interpretar o termo abandono, nesta singra, como mera saída temporária do lar ou mesmo mudança de endereço, mormente pela flexibilidade da estrutura familiar antes explicitada. O abandono é, efetivamente, o movimento peremptório e unidirecionalmente manifestado de abdicar por ação ou omissão aos vínculos afetivos, cindindo-se a conexão com núcleo intersubjetivo de convergência afetiva. Compreende-se assim como a interrupção do projeto de vida constituído pela coletividade de sujeitos ligados pelo afeto, retirando-se aquele que abandona o lar de todos os vínculos que o conectavam, seja eles financeiros, afetivos ou mesmo de íon livre que se desatrela do papel desempenhado naquele conteúdo coletivo de direitos. Deve-se interpretar a norma, quanto a este tema, em convergência com sentido mais benéfico aos direitos fundamentais que, mediatamente, pretende-se tutelar. Não há que se falar em conceito apriorístico de abandono, demandando-se interpretação casuística construtiva.153

A presente proposta de leitura do abandono do lar como um verdadeiro

abandono familiar, retratado pelo desatendimento da responsabilidade familiar

inerente ao caso concreto, permite ir ainda mais longe, de modo até mesmo a

vislumbrar a possibilidade de se conceder a propriedade para um dos cônjuges ou

conviventes que teve que deixar o imóvel, mas restou desamparado pelo outro

(com a sua prole) por dois anos ou mais, e está a necessitar do lar conjugal para

moradia. Dito de outro modo, eventualmente conceder a usucapião aquisitiva

mesmo para aquele que não está na posse efetiva do bem, mas que tenha sido

abandonado pelo outro e que necessite do bem para sua moradia e sobrevivência

(muitas vezes com os filhos). Acaso presente os demais requisitos, se afigura

153

FACHIN, Luiz Edson; GONÇALVES, Marcos Alberto Rocha. “10 Anos do Código Civil: O ser e o ter no

Direito de Família a partir da aquisição pela permanência na moradia familiar” IN: LEAL, Pastora do

Socorro Teixeira (coord.). Direito Civil Constitucional e outros estudos em homenagem ao Prof. Zeno

Veloso. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. (p.632-648) p. 641.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 52

possível esta hipótese. Com isso se permitiria o desacoplamento pontual da

usucapião da posse efetiva do bem.154

Outra questão a ser observada é que sendo a usucapião um modo de

aquisição originário da propriedade, em regra, adere a esfera jurídica do novo

titular sem os gravames que pendiam anteriormente sobre o bem. Face às

peculiaridades desta usucapião, inclusive pela lei vir com o Programa Minha Casa,

Minha Vida parece recomendável se adotar o entendimento de que para esta

modalidade de usucapião permanecem hígidas e plenas as garantias reais que

pendiam anteriormente sobre o bem (até mesmo para se evitar um incentivo à

fraude e preservar o interesse de terceiros).

Estas considerações ressaltam a necessidade de uma hermenêutica crítico-

construtiva na apuração do sentido civil-constitucional da usucapião familiar que

seja, sempre, harmônica com os tempos presentes.

Considerações Finais

O esforço exigido para conceder contornos adequados a esta nova

modalidade aquisitiva da propriedade é prova maior do desacerto do legislador na

colocação do instituto, visto que os equívocos não foram poucos. Ainda assim,

parece possível se extrair um significado constitucional para o dispositivo.

Ciente que uma norma não nasce norma, mas sim se faz norma no dia-a-

dia dos embates jurídicos doutrinários e jurisprudenciais, entende-se possível a

edificação de um sentido funcionalizado da usucapião familiar.

Ainda assim, não sem deixar de anotar as críticas pertinentes. Uma delas,

a descabida escolha da usucapião para proteger os bens jurídicos pretendidos

(tutela da família e do direito à moradia), pois acabou mantenedora do discurso

proprietário que impera no direito brasileiro.155 Isto porque, a forma eleita para

tutelar àquelas situações jurídicas foi a concessão do status proprietário ao

consorte abandonado, o que demonstra a prevalência da outorga da apropriação

154

“Nesse contexto, não há necessidade de que o imóvel esteja na posse direita do ex-cônjuge ou ex-

companheiro, podendo ele estar locado a terceiro; sendo viável do mesmo modo a nova usucapião pelo

exercício da posse indireta.” SIMÃO, José Fernando; TARTUCE, Flávio. Direito Civil. v. 4 . Direito das

Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 172. 155

CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio de Janeiro:

Renovar, 2002. p. 259.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 53

das coisas ao invés da garantia do seu uso, uma lógica de mercado que segue

presente no nosso imaginário coletivo.156

Para preservação da família e garantia do uso do imóvel muito mais

razoável seria se o legislador tivesse conferido apenas a garantia do direito de

moradia, sem ônus, para o membro da família abandonado; ao invés de o permitir

usucapir a totalidade do bem e lhe entregar a propriedade plena. Bastava que

„ h çã ‟ – já de há muito conhecido

dos civilistas - que estaria suficientemente protegido o bem jurídico que se

pretendia tutelar. Com tal proceder priorizaria o uso ao invés da apropriação.

Entretanto, a mentalidade proprietária reinante certamente ofuscou tal

alternativa. O equívoco na eleição da usucapião como solução para estes casos

concretos pode acabar por não proteger nem mesmo um dos seus objetos centrais

(como a garantia da moradia), visto que com o regramento atual nada impede que

quem tenha adquirido o bem com a usucapião o coloque a venda a seguir, ao invés

de permanecer com o mesmo para moradia da família.

Com estas ressalvas, defende-se a tese que é viável prospectar uma

definição contemporânea adequada para esta usucapião familiar, desde que se

perceba a exata dimensão da influência que as vicissitudes jusfamiliares terão

nesta configuração (daí a recomendação para que o foro adequado seja sempre o

do juízo das varas de família). O tratamento desta relevante questão patrimonial

dos litígios familiares não pode, mais do que nunca, ignorar a necessária

prevalência do ser sobre o ter.157

A regra posta pelo legislador é apenas o marco inicial da norma que será

erigida, pois mesmo quando o legislador ordinário permanecer inerte, deve o juiz

156

“Proprietà privata e autonomia privata, dunque, sono i due principi cardine attorno ai quali il diritto

moderno organizza i rapporti giuridici individuali, dando ad essi la forma tipica dei rapporti di mercato: il

diritto di appropriarsi in via esclusiva di una quota della ricchezza sociale non può non comportare anche il

diritto di realizzarne il controvalore mediante un libero atto di scambio, istituendo cioè con chi è disposto a

convenirlo un libero rapporto contrattuale.” (BARCELLONA, Pietro. Diritto privato e Società Moderna.

Napoli: Jovene Editore, 1996. p. 320) Em tradução livre: “Propriedade privada e autonomia privada, então,

são os dois princípios cardinais em torno dos quais o direito moderno organiza as relações jurídicas

individuais, dando a elas a forma típica das relações de mercado: o direito de apropriar-se de forma exclusiva

de uma parte da riqueza social deve comportar também o direito de realizar a contrapartida mediante um ato

livre de escambo, estabelecendo, com quem estiver disposto a celebrá-la, uma livre relação contratual.” 157

“O evidente artificialismo da noção clássica faz alargar a distância entre o que a lei civil estabelece como

sendo pessoa e o indivíduo homem, este a merecer proteção não pelo que tem, mas pelo que é. Por certo, não

deve a proteção patrimonial suplantar a proteção dos seres humanos”. (MEIRELLES, Jussara. O ser e o ter na

codificação civil brasileira: do sujeito virtual à clausura patrimonial. In: FACHIN, Luiz Edson (Coord.).

Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 92-

93)

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 54

e o jurista proceder ao inarredável trabalho de adequação da legislação civil,

através de interpretação dotadas de particular ‗sensibilidade constitucional‘, que,

em última análise – e sempre – vivifiquem o teor e o espírito da Constituição.158

Com observância desta orientação o trabalho construtivo deixado aos civilistas

poderá ser exitoso.

As dificuldades que se apresentam na adequada significação da usucapião

familiar comprovam que:

será íngreme e necessária, imprescindível mesmo, a tarefa hermenêutica para reconhecer, na investigação teórica e na aplicação prática, o Código Civil que o Século XXI da sociedade brasileira está a demandar, clamando por justiça e igualdade substancial. Impende, pois, nessa quadra, subscrever uma hermenêutica construtiva apta a realizar, na doutrina e na jurisprudência que seguir-se-ão, esse mister.159

As direções apontadas pela bússola da Constituição são as que deverão

orientar a consolidação de um adequado sentido para a usucapião familiar, que

observe sua função no ordenamento e esteja afinado com atual estágio do direito

civil-constitucional brasileiro.

Bem no fundo

No fundo, no fundo,

bem lá no fundo,

a gente gostaria

de ver nossos problemas

resolvidos por decreto

a partir desta data,

aquela mágoa sem remédio

é considerada nula

e sobre ela — silêncio perpétuo

158

MORAES, Maria Celina Bodin de. Na Medida da Pessoa Humana: estudos sobre direito civil. Op. cit., p.

20. 159

FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao Código Civil. Direito das Coisas. (art. 1277 a 1368). Antonio

Junqueira de Azevedo (coord.). São Paulo: Saraiva, 2003. p. 374.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 55

extinto por lei todo o remorso,

maldito seja quem olhar pra trás,

lá pra trás não há nada,

e nada mais

mas problemas não se resolvem,

problemas têm família grande,

e aos domingos

saem todos a passear

o problema, sua senhora

e outros pequenos probleminhas.

Paulo Leminski

Recebido em 22/01/2015

1º parecer em 27/02/2015

2º parecer em 27/02/2015

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PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA NO DIREITO CIVIL: EM BUSCA DA

DISTINÇÃO FUNCIONAL

Lapsing and prescription in civil law: seeking a functional distinction

Thaís Fernanda Tenório Sêco

Mestre em direito civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Professora permanente no curso de pós-graduação lato sensu em direito civil da Pontifícia

Universidade Católica de Minas Gerais e

Advogada.

RESUMO: Pela ausência de previsão da distinção entre prescrição e decadência na

sistemática do Código Civil de 1916, e pela previsão flexibilizada no sistema atual,

entende-se que a questão da distinção entre os prazos passou por um processo de

“ çã ” q ã trinária sobre o tema. Outros

institutos há muito passaram do jusnaturalismo à exegese chegando, por fim, às

metodologias contemporâneas, como o direito civil-constitucional. Quanto à

distinção entre prescrição e decadência vigora a perplexidade de não se saber se o

poder do legislador sobre o tema é total ou nenhum. O trabalho pretende inscrever

a temática nas premissas metodológicas do direito civil-constitucional pela

investigação de um possível aspecto funcional da distinção a partir da revisitação

ao legado doutrinário sobre o tema.

PALAVRAS-CHAVE: Prescrição; Decadência; Funcionalização; Fireito civil-

constitucional.

ABSTRACT: As there is no distinction between lapsing and prescription on 1916

Brazilian civil code, and for the flexible distinction there is in the actual system, we

h “ ” h wh h q w h

impacts on the way doctrine sees it. Other institutes came over the jusnaturalism

to the exegese, getting on to contemporaneous methods, as the civil-constitutional

approach. About the distinction between lapsing and prescription, although,

prevails some astonishment since we cannot know if the legislator power on the

theme its full or no. The study seeks to attract the problem to the civil-

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 57

constitutional assumptions investigating its possible function, trying to

comprehend it from the doctrinal legacy on the subject.

KEYWORDS: Prescription; Lapsing; Functionalization; Civil-constitutional law.

SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. Efeitos da positivação tardia da distinção entre

prescrição e decadência no direito civil nacional – 3. A inscrição do problema em

uma metodología constitucionalizada (e a insuficiencia do criterio topográfico da

distinção) – 4. O legado civilista com relação à distinção entre os prazos: os

criterios empírico e científico de distinção – 5. Um balanço teórico: os criterios de

distinção e sua crítica rumo a uma compreensão funcional – 6. Conclusão: uma

proposta funcional de distinção – 7. Considerações finais

1. Introdução160

A consulta imediata ao Código Civil de 1916 daria a impressão de que a

decadência não constava na sistemática civil nacional. Por um conhecido equívoco

da técnica legislativa aplicada pela Comissão de revisão extraparlamentar, os

prazos de decadência previstos pontualmente na Parte Especial do Código

Beviláqua foram inteiramente reunidos na Parte Geral juntamente do dispositivo

que tratava da prescrição, pensando-se obter com isso um implemento da clareza

adequada a um projeto de codificação.

Como se sabe, equipararam-se, assim, os prazos de decadência com os

prazos de prescrição no texto legal. No entanto, a doutrina e a jurisprudência não

çã q “

çã ” 161 sendo pois mantida com base no entendimento de

q ã é “ z ”.162

160

Com minha gratidão ao Prof. Gustavo Tepedino que por duas vezes oportunizou enriquecedora discussão

sobre a abordagem ora apresentada do problema, com caras observações, suas e dos colegas, sobre conteúdo

e forma de exposição. 161

AMORIM FILHO, Agnelo. „Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para

identificar as ações imprescritíveis‟. Revista dos Tribunais. n.836. jun. 2005. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais. (Originalmente publicado em out. de 1960). 162

THEODORO JR., Humberto. „Alguns aspectos relevantes da prescrição e da decadência no novo código

civil‟. Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, n. 23, mai., 2003, p. 3.

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Fato é que diante da carência de previsão legal que distinguisse os prazos,

o ambiente da aplicação do direito quanto a eles se mostrava assistemático.163

Careciam fundamentos que permitissem estabelecer com segurança a distinção

entre os prazos, ainda que esforços doutrinários não faltassem para favorecer uma

solução isonômica do problema.164 Ainda assim, a distinção permaneceu sendo

afirmada e a discussão não dizia respeito a haver ou não uma distinção, e sim a

como identificar a distinção – que obviamente existiria.

Por tratar- “ ” 165 a doutrina buscou seu

embasamento na teoria filosófica disponível para tanto, o jusnaturalismo,

aduzindo tratar-se a distinção de algo necessário, atinente a alguma metafísica dos

prazos que não poderia ser contrariada. Posteriormente, com a positivação da

distinção pelo Código Civil de 2002 e sua flexibilização no direito positivo, o

paradigma filosófico antitético do formalismo jurídico, em confronto com o

paradigma metafísico anterior tem provocado perplexidade na abordagem do

tema. Tratando-se de uma distinção por tanto tempo afirmada a despeito da lei,

não se sabe como lidar com as flexibilizações legais atuais, notadamente quando o

argumento metafísico não se faz mais aceito.

O ã é “I ”

jurídico; um inconsciente que o afirma e a ele se apega ainda que não se possa

conhecer precisamente porque razões. A doutrina contemporânea do direito civil

tem encontrado dificuldades para vislumbrar o caminho pelo qual a temática

poderá ser compreendida conforme as premissas do método civil-constitucional,

buscando compreender em que pode ser importante à concreção dos interesses

humanos.

Neste escopo, a investigação apresentada parte da premissa segundo a

qual a toda distinção estrutural deve corresponder uma distinção funcional,

163

Assim se expressa REALE, Miguel. „Visão geral do projeto de código civil‟. Revista dos Tribunais, v.

752, São Paulo, jun. 1998, p. 23. “Assisti uma vez, perplexo, num mesmo mês, a um Tribunal de São Paulo

negar uma apelação interposta por mim e outros advogados, porque entendia que o nosso direito estava

extinto por força de decadência; e, poucas semanas depois, ganhávamos, numa outra Câmara, por entender-se

que o prazo era de prescrição, que havia sido interrompido! Por isso, o homem (sic) comum olha o Tribunal e

fica perplexo.” 164

Dignos de destaque são os trabalhos de AMORIM FILHO, Agnelo. „Critério científico para distinguir a

prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis‟. cit.; e CAMARA LEAL, Antônio Luís

da Da prescrição e da decadência: teoria geral do direito civil. 2ª Ed (1ª Ed. Publicada em 1939). Atualizada

por José Aguiar Dias. Forense: Rio de Janeiro, 1959. 165

AMORIM FILHO, Agnelo. „Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para

identificar as ações imprescritíveis‟. cit.

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encontrando-se na função, e não propriamente na estrutura, o que pode melhor

explicitar a diferença entre prescrição e decadência.

Acredita-se que a afirmação relutante da distinção entre os prazos mesmo

quando a lei os equiparava pode ser um ponto de partida importante para formular

uma base funcional de diferenciação. Esta pode ser um passo para o

desenvolvimento das temáticas que dizem respeito aos prazos, tanto para as

situações dúbias, ainda carentes de paradigmas interpretativos, quanto para as

inovações ou reformas legislativas relativas à questão, as quais devem também

promover e preservar a coerência no sistema jurídico.

2. A positivação tardia da distinção entre prescrição e decadência no

direito civil nacional e seus efeitos doutrinários

Prescrição e decadência são institutos assemelhados em relação aos quais

são apresentadas distinções quanto ao objeto e quanto aos efeitos.

Diz-se que a prescrição é a perda da ação, ou, como se propagou adiante,

“ ã ” q ó . Q

diferenças de tratamento jurídico, já ensinava Santiago Dantas que:

Enquanto a prescrição geralmente consiste no decurso de um prazo, que se interrompe, que se suspende, que pode, por conseguinte, recomeçar a contar, muitas vezes e que as partes interessadas processam alegar para que o juiz dela tome conhecimento, as decadências, são aquelas que, na linguagem forense, costuma-se chamar de prazos fatais. Nada os interrompe, nada os suspende e quando decorrem, o juiz pronuncia a decadência de ofício sem ser necessário que ninguém alegue.166

Além dessas, tem-se ainda que a prescrição pode ser alvo de renúncia de

quem dela se beneficia depois de exaurido o prazo, enquanto a decadência não

comporta essa faculdade.

Como se pode constatar, tais distinções não dizem respeito propriamente

aos efeitos, já que neste ponto é que se observa a maior semelhança entre os

prazos: ambos provocam uma extinção de algum tipo. As diferenças dizem

respeito, antes, aos pressupostos fáticos para que se opere a extinção e, por tudo,

se inscrevem em aspectos estruturais dos institutos.167

166

DANTAS, San Tiago. „Prescrição e decadência‟. Programa de direito civil: Parte Geral. 4ª Tiragem. Rio

de Janeiro: Editora Rio, 1942, p. 396. 167

Nesse sentido, também Antônio Luís da Câmara Leal entende ser a extinção de um direito ou de uma ação

o efeito da decadência ou da prescrição. Já as típicas diferenças relativas à possibilidade de interrupção,

suspensão ou impedimento e à possibilidade de renúncia e conhecimento de ofício pelo juiz, são classificadas

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Essas clássicas diferenças sempre estiveram na base das distinções

concebidas para os dois prazos. A diferença, por exemplo, em relação à

possibilidade de reconhecimento de ofício é o argumento pelo qual Humberto

Theodoro Jr. entende que existe uma distinção quanto ao objeto dos respectivos

prazos. Para ele, se a prescrição extinguisse o direito não precisaria

necessariamente ser arguida em Juízo para o seu reconhecimento.168

Não havendo, porém, qualquer distinção entre os prazos na lei, e

adotando-se, ainda assim, a ideia de que a prescrição extingue a ação e a

decadência extingue o direito, observa-se que a construção doutrinária

correspondente ao período de vigência do Código Civil de 1916 adotava

implicitamente um pressuposto filosófico jusnaturalista, base para afirmação de

uma distinção metafísica dos prazos.169

Essa visão pode ser percebida na mais importante obra sobre o tema no

Brasil, em que Agnelo Amorim Filho se propôs, em 1960, a estabelecer um critério

científico de distinção, lamentando a equivocada equiparação entre os prazos, do

q “ é h

çã ”.170

Posto em xeque de forma indefensável o pressuposto da racionalidade do

legislador que fundamenta uma afirmação exegética da lei, optou a doutrina por

afirmar a qualquer custo a manutenção da decadência no sistema civil, havendo no

jusnaturalismo o único recurso filosófico para resistir ao desacerto:

por Câmara Leal como “diversidades de consequência”. (CÂMARA LEAL, Antônio Luís da. Da prescrição

e da decadência: teoria geral do direito civil. cit. p. 394, 395.) 168

THEODORO JR, Humberto. „Alguns aspectos relevantes da prescrição e da decadência no novo código

civil‟ cit. p. 13: “A simples consumação do prazo prescricional não priva, de imediato e de todo, o interesse

do credor da tutela jurisdicional. O efeito extintivo não opera ipso iure, pela mera ultrapassagem do termo

fixado em lei. Para que a pretensão do credor seja paralisada é indispensável que o devedor, quando

demandado, argúa a prescrição como meio de defesa (art. 193). O que esta, na verdade, gera é uma exceção

que o devedor usará, ou não, segundo suas conveniências.” A construção é interessante, e atende à visão

metodológica que vai “da estrutura à função”, embora tenha se esvaziado depois da reforma processual de

2006 (Lei 11.280/2006). 169

V. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. São Paulo: Ícone, 2003, p. 15: “a contraposição entre

„positivo‟ e „natural‟ é feita relativamente à natureza não do direito mas da linguagem: esta traz a si o

problema (que já encontramos nas disputas entre Sócrates e os sofistas) da distinção entre aquilo que é por

natureza (physis) e aquilo que é por convenção ou posto pelos homens (sic) (thésis). O problema que se põe

pela linguagem, isto é, se algo é „natural‟ ou „convencional‟, põe-se analogamente também para o direito.” 170

AMORIM FILHO, Agnelo. „Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para

identificar as ações imprescritíveis‟. cit., p. 734. O mesmo fato também foi lamentado por THEODORO JR.,

Humberto: “Sobre essa esdrúxula e confusa unificação não chegou a haver debate, de sorte que o planejado

melhoramento acabou por redundar, para os aplicadores do Código num dificílimo problema, pois o que

efetivamente se deu foi um „erro manifesto de classificação‟”. („Distinção científica entre prescrição e

decadência. Um tributo à obra de Agnelo Amorim‟. In Revista dos Tribunais. n.836. jun. 2005. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais. p. 50).

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Ou se adota essa atitude de franca rebeldia contra o texto legal, ou ter-se-á que chegar a conclusão ainda mais absurda, isto é, admitir que certos prazos classificados pelo Código como sendo de prescrição (mas que são, indiscutivelmente, de decadência), podem ser objeto de suspensão, de interrupção e de renúncia.171

Por essa argumentação fica claro que a afirmação de uma distinção entre

os prazos de prescrição e decadência exigiu uma tomada de posição filosófica,

ainda que inconsciente, pois afirmações como essa alimentaram uma premissa

metafísica na abordagem da distinção entre os prazos. 172

Resta aí configurada a perplexidade atual no estudo do tema da distinção

entre prescrição e decadência, pois trata-se de um positivismo tardio que desafia

as construções bem assentadas de um jusnaturalismo igualmente tardio.173

Se, por exemplo, a impossibilidade de reconhecimento de ofício da

prescrição é tão determinante para a compreensão da distinção, como retratar

doutrinariamente a reforma processual da Lei 11.280/06 pela qual o §5º, do art.

219 Có P C q : “ z ciará, de

í çã ”? T -se-ia por este detalhe alterado toda a natureza da

prescrição, que assim passou a referir-se à extinção de um direito? (Ou não

çã “ z ”?)

171

AMORIM FILHO, Agnelo. „Critério científico para distinguir a prescrição da decadência‟, cit. p. 735. No

mesmo sentido, Humberto Theodoro Junior justificou a postura doutrinária contra legem adotada em relação

à distinção entre prescrição e decadência sob a égide do Código de 16: “Como a lei não pode contrariar a

natureza das coisas, doutrina e jurisprudência tiveram de assumir a tarefa de joeirar entre os prazos ditos

prescricionais no texto da lei os que realmente se referiam a prescrição e os que, embora assim rotulados,

representavam, na verdade, casos de decadência”. („Alguns aspectos relevantes da prescrição e da decadência

no novo código civil‟. cit., p. 3.). 172

Cabe realçar, novamente, o mérito da formulação de Camara Leal a respeito da distinção, o qual,

diferentemente de outros autores de seu tempo, não justificou em alguma base metafísica a existência da

decadência apesar de sua exclusão do texto da lei, e, sim, em uma autêntica interpretação sistemática que

chamava a atenção para a existência da decadência com base no pressuposto de coerência do sistema: “Não

houve, porém, a eliminação da decadência de nosso Código, porque há, em contraposição a regras gerais,

preceitos especiais estabelecidos pelo legislador, cuja contradição com essas regras só poderá ser explicada

pela sua atinência a um instituto diverso daquele a que as mesmas dizem respeito. Assim, não obstante a

regra geral que veda a prescrição entre cônjuges, na constância do casamento, a ação do marido contra a

mulher para contestar legitimidade do filho prescreve, diz o Código, em dois meses da data do nascimento do

filho, se o marido estava presente, e em três meses da data de seu regresso, se estava ausente, ou da data da

ciência do nascimento se este lhe foi ocultado. Deixará de haver antinomia entre esse preceito especial e a

regra geral, se o legislador assim preceituou atendendo a que, no caso, não se trata de prescrição, rediga pela

regra geral, mas de decadência, não subordinada àquela regra.” (CAMARA LEAL, Antonio Luiz da. Da

prescrição e da decadência. cit. p. 396.) 173

Conforme ensina Norberto Bobbio, o termo “positivismo” é dual, podendo referir-se tanto ao movimento

filosófico-metodológico que buscava conferir cientificidade às Ciências Humanas e Sociais nos idos do

século XX, quanto pode referir-se ao registro escrito da lei tradicional por uma autoridade considerada

legítima para tanto. Em ambos os casos, a palavra comunica a ideia muito comum e aproximada de que a lei

deve ser seguida a qualquer custo, identificando com a norma jurídica o próprio direito. É assim que,

havendo dois sentidos para o termo positivismo, os dois sentidos exprimem uma mesma ideia de

cumprimento da lei positivada – escrita – tomada como fonte privilegiada do direito, senão como única fonte.

(V. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. cit., p. 15).

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Em contradição à fala de Amorim, em que mais absurdo do que

descumprir a lei é aplicar a interrupção, impedimento e suspensão a prazos que

são sabidamente de decadência, o próprio Código Civil de 2002 em seu art. 207 diz

ser possível aplicá-los à decadência se disposição legal expressa o determinar. Mas

se justamente por inadmitir-se essa possibilidade a distinção foi afirmada ainda

que contrariamente à lei, que distinção se preserva diante dessa flexibilização

legal? (Ou não poderá a lei valer nestes termos?)

O jusnaturalismo, como se sabe, está na base da formação dos conteúdos

típicos do direito privado. Entendeu-se, por muito tempo, que a positivação do

direito privado – no momento da codificação – consistia estritamente em

ú é “ z ” ã -

los ou de formulá-los com vistas a atingir propósitos externos ao direito.174 Diante

da positivação tardia da distinção entre os prazos de prescrição e decadência,

tratou a doutrina, portanto, de afirmar a distinção a despeito do direito positivo,

dando entender que a questão remonta a valores fundamentais que não podem ser

contrariados.

Passando-se por uma distinta mentalidade sobre o direito, uma visão

positivista estrita afirmaria, pelo contrário, que não haveria qualquer distinção

entre prescrição e decadência na sistemática do Código Civil de 1916, a qual seria

resgatada com o Código Civil de 2002. Mas o positivismo jurídico é uma

abordagem que opta conscientemente por ignorar alguns aspectos do direito (que

para os positivistas não são propriamente jurídicos).175

174

V. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. cit., p. 29: “Todas estas relações sociais [do estado de

natureza] eram reguladas por normas jurídicas (tinha-se, assim, os direitos reais, o direito das obrigações, o

direito de família e aquele das sucessões). Segundo os jusnaturalistas a intervenção do Estado limita-se a

tornar estáveis tais relações jurídicas. Por exemplo, segundo Kant, o direito privado já existe no estado de

natureza e a constituição do Estado determina apenas o surgimento do direito público; contrapõe o modo de

ser do direito privado no estado de natureza àquele característico do mesmo direito na sociedade política,

afirmando que no primeiro momento tem-se um „direito provisório‟ (isto é, precário) e no segundo momento

um „direito peremptório‟ (isto é, definitivamente afirmado graças ao poder do Estado).” 175

Há nas teorias juspositivistas um corte epistemológico que estabelece a partir de que ponto ou de que

plano se estabelece uma análise propriamente jurídica, e não de outros fatores ideológicos, políticos, etc. Na

teoria de Hans Kelsen, o corte é dado pela enigmática Norma Fundamental, mas não só nela. Vê-se, a teor de

suas considerações sobre a teoria da interpretação, que foram conscientemente eliminados outros dados que

sabidamente interferem na aplicação da norma atribuindo-se somente um poder de preenchimento da

“norma-quadro” conforme entendimentos até certo ponto discricionários, na medida em que as razões que

podem fundamentar a escolha do juiz pela interpretação em um ou outro sentido não podem ser apreendidas

pela Ciência Jurídica e seriam estranhas ao seu objeto. (V. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 1ª edição

publicada em 1934. São Paulo: Martins Fontes, 2009). Seria quase como afirmar que a hermenêutica não

compõe a Ciência Jurídica.

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Por opção metodológica, uma abordagem positivista toma como

irrelevante o fato de que o resgate da positivação da prescrição e da decadência

como prazos distintos no Código Civil de 2002 se deu justamente por causa de sua

afirmação insistente na jurisprudência e na doutrina a despeito de sua negação na

lei.176 Neste ponto, tem-se um paralelo com a visão jurídica do momento

imediatamente posterior à codificação no século XIX que reproduziu

substancialmente o direito afirmado ao longo da Idade Média, em um esforço de

enunciação de quais são as regras que regem a vida privada pelo registro estático e

codificado dos entendimentos há muito aplicados e jurisprudencialmente

construídos.177

A percepção da positivação tardia da distinção entre os prazos, atrelada a

um jusnaturalismo igualmente tardio induziria o intérprete, hoje, a retratar o tema

da prescrição e da decadência em suas bases estritamente legais, ou legalistas,

despertando dúvidas somente no que diz respeito ao convincente legado civilista

que, no entanto, abordava o problema em bases jusnaturalistas. Por tudo, a

temática tem sido ainda mantida imune a recursos metodológicos recentes de

compreensão do direito civil, como a consideração do aspecto dinâmico das

situações subjetivas, a superação do dualismo entre norma e fato, e o delineamento

do perfil funcional dos institutos jurídicos.178

Haveria uma questão complicada em torno da indagação sobre estar a lei

“ z ” q ã se adota um

176

Importa lembrar o papel da doutrina e da jurisprudência, senão como fonte de direito – a depender do

sistema jurídico –, de base para a institucionalização de normas jurídicas. Vale dizer que o papel da doutrina

não é somente o de inspirar a jurisprudência, mas também o de, conjuntamente a ela, inspirar a legislatura. A

abordagem funcional da distinção parece relevante não só para a compreensão sistemática do ordenamento

civil, como também para orientar o legislador a respeito da natureza das escolhas feitas no momento da

proposição das leis. Sobre a temática da institucionalização das normas jurídicas a partir de sua cognição e

propagação cultural, veja-se o ensaio esclarecedor de PEREIRA, Flávio Henrique Silva. „Ordem normativa e

institucionalização‟. In: LACERDA, Bruno Amaro; FERREIRA, Flávio Henrique; FERES, Marcos Vinício

Chein (org.). Instituições de direito. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2011. 177

V. VAN CAENEGAN, R. C. Uma introdução histórica ao direito privado. São Paulo: Martins Fontes,

2000, p. 8: “As fontes imediatas usadas pelos autores do Code civil de 1804 foram o direito comum francês

tradicional do século XVIII, que era um amálgama dos direitos eruditos e consuetudinário, parte do qual era

bem antiga; e, em segundo lugar, as inovações feitas durante a Revolução. Essa mistura do velho e do novo

adequava-se ao clima político da nação e, depois da queda do ancien régime, mostrou-se também bastante

adequada à sociedade pequeno-burguesa do século XIX.” 178

Sobre os referidos recursos metodológicos, ver, por todos, PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na

legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008; BODIN DE MORAES, Maria Celina. „A caminho

de um direito civil-constitucional‟. In: Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional.

Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 3 – 20 (originalmente publicado em Direito, Estado e Sociedade, n. 1. Rio

de Janeiro, 1991); TEPEDINO, Gustavo. „Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito

civil‟. In: Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 1 – 22 (aula inaugural do ano acadêmico

de 1992, proferida no salão nobre da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

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ó q “ z ”

contrariada.179 Por isso, há ímpetos de afirmação de alguma ilegitimidade da

reforma processual procedida pela Lei 11.280/2006, por exemplo, querendo

identificar nela uma inconstitucionalidade que não tem, ou uma contrariedade a

princípios e valores jurídicos tais que não contraria em momento algum, ou

acabando por afirmar escatologicamente, no outro extremo, que já não existe mais

distinção entre prescrição e decadência.

3. A inscrição do problema em uma metodologia constitucionalizada (e

a insuficiência do critério topográfico de distinção)

Atrair a temática da distinção entre os prazos de prescrição e decadência

ao método civil-constitucional significa inscrevê-lo na legalidade constitucional.

Não se trata de afirmar, como há muito tem sido feito, que o tema não está à

disposição do legislador, mas ao mesmo tempo em que a legalidade não é reduzida

a legalismo.

Deve a legalidade ser entendida de forma conectada à igualdade e ao

sentido aristotélico de justiça que, na formulação de Claus Wihelm Canaris, está na

base do pensamento sistemático aplicado à Ciência do Direito.

A ordem interior e a unidade do Direito (...) pertencem (...) às mais fundamentais exigências jurídicas e radicam na própria ideia de Direito. A „ ‟ h postulado de justiça, de tratar o igual de modo igual e o diferente de modo diferente, de acordo com a medida da sua diferença. (...) A regra da „ q çã ‟ í primeira indicação decisiva para a aplicação do pensamento sistemático na Ciência do Direito.180

179

Ver, por exemplo, a visão da distinção entre prescrição e decadência contida em NEVES, Gustavo Kloh

Müller. Prescrição e decadência no direito civil. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008: “hoje, diante do

avanço da ciência jurídica e da sofisticação da atividade legislativa, acrescidos do fato de que o CC/2002

diferencia expressamente a prescrição da decadência, cabe ao legislador, em especial, determinar se um prazo

é de prescrição ou de decadência. Em se tratando de um diploma legislativo de elaboração antiga, no qual não

haja diferenciação precisa entre prescrição e decadência, podemos nos valer desses critérios [propostos por

Agnelo Amorim]; se um diploma, todavia, distingue os institutos, não consideramos possível a interpretação

que um prazo de prescrição, assim denominado no texto da lei, seja de decadência, e vice-versa.” Embora o

autor tenha construído uma base principiológica para a abordagem do tema da prescrição, fundando-o no

princípio da segurança jurídica, que, por sua vez, atrai a legalidade, trata-se, no que diz respeito à temática da

distinção, do brocardo in claris non fit interpretatio, já que o critério científico de Agnelo Amorim seria

usado somente de forma supletiva às lacunas deixadas pela lei. Do ponto de vista filosófico, tem-se

claramente reconhecida a mudança de paradigma, pela qual anteriormente valeria uma abordagem

jusnaturalista do tema, a qual deveria ser dispensada no momento subsequente à positivação. 180

CANARIS, Claus-Wihelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na Ciência do Direito. 3ª ed.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 18.

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Segundo Canaris, a sua referência com relação aos critérios de ordem e

adequação valorativa se reporta a um sentido interno de sistema jurídico e não em

q “ ; ã

visa, ou não visa em primeira linha, descobrir a unidade de sentido interior do

Direito, antes se destinando, na sua estrutura, a um agrupamento da matéria e à

çã ã q í ”.181

Dessas premissas teóricas, parte, em primeiro lugar, a consideração básica

para uma distinção funcional no sentido de que, inscrevendo-se a temática nas

noções de ordem e adequação valorativa, parte-se do princípio de que à distinção

estrutural deve corresponder uma distinção funcional.

Vislumbra-se, assim, a insuficiência do primeiro critério de distinção entre

prescrição e decadência, e que diz re “ ”

localização no código. Este foi apontado por Miguel Reale como apto a eliminar as

dúvidas e perplexidades que pendem sobre o assunto:

Quem é que no Direito Civil brasileiro ou estrangeiro, até hoje, soube fazer uma distinção nítida e fora de dúvida entre prescrição e decadência? Há as teorias mais cerebrinas e bizantinas para se distinguir uma coisa da outra. (...) Ora, quisemos por um termo a essa perplexidade, de maneira prática, porque o simples é o sinal da verdade, e não o bizantino e o complicado.

Preferimos, por tais motivos, reunir as normas prescricionais, todas elas, enumerando-as na Parte Geral do Código. Não haverá dúvida nenhuma: ou figura no artigo que rege as prescrições ou então se trata de decadência.182

A proposta, em verdade, não é inovadora. Esse tipo de organização era já o

pretendido no projeto do código de Beviláqua. Era também o tipo de organização

constante em códigos predecessores, como o Code Napoleon que regulamenta em

um mesmo dispositivo a prescrição e a usucapião (chamada prescrição aquisitiva)

e nada aduz, em termos gerais, sobre a decadência. Mas o fato de não ser uma

estratégia nova não chega a ser uma crítica. Convém, de fato, que o sistema

externo do direito facilite a assimilação do sistema interno, de forma que a divisão

consiste ao menos em aplicação de boa técnica legislativa. Entretanto, o problema

181

CANARIS, Claus-Wihelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. cit. p. 26. 182

REALE, Miguel. „Visão Geral do Projeto do Código Civil‟. In Revista dos Tribunais, v. 752, São Paulo,

jun. 1998, p. 23. Na verdade, o critério topográfico não diz respeito, propriamente, à localização do prazo na

Parte Geral ou na Parte Especial, pois há prazos na Parte Geral. O prazo para anulação do negócio jurídico,

por exemplo, embora esteja na Parte Geral, é de decadência. A ideia do critério topográfico é de distinguir os

prazos que são previstos juntamente das situações que visam extinguir, dos prazos que são previstos em

geral, nas disposições dos art. 205 e 206 do Código.

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hermenêutico da distinção entre os prazos não se resolve. Não é, pois, que se trate

de um critério equivocado, mas insuficiente.

A insuficiência do critério repercute na prática por não explicitar, por

exemplo, quais são as situações subjetivas que não se sujeitam a prazo algum,

sendo imprescritíveis, e quais são as situações que se sujeitam ao prazo decenal do

art. 205, ou porque também não esclarece qual a natureza dos prazos previstos em

outros diplomas que não o Código Civil, como o Código de Defesa do Consumidor

e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Por fim, o critério não pode ser tomado

como definitivo sequer para a classificação dos prazos previstos no próprio Código

Civil. Dentro de uma abordagem sistemático-valorativa do direito não é a

localização do prazo que permite dizer se o prazo é de prescrição ou de decadência,

mas o fato de dever ser de prescrição ou de decadência, conforme o distinto perfil

funcional em cada caso, é que deverá servir a identificar qual é ou qual deveria ser

sua melhor localização no código.

4. O legado civilista com relação à distinção entre os prazos: os

critérios empírico e científico de distinção

A partir da distinção prévia quanto ao objeto, os civilistas brasileiros

tributários do Direito Romano ou influenciados pelo direito alemão, herdeiro

direto da Pandectística, adotaram a visão da prescrição como perda da ação. É esse

o caso de Antônio Luís da Camara Leal, responsável pela formulação do chamado

critério empírico.183

A questão se reporta à polêmica entre Windcheid e Müther sobre a função

que a ação (actio nata) cumpria no Direito Romano. Como naquele sistema não

existisse a figura do direito subjetivo, discutia-se se a actio nata cumpria esse

papel.184 O desenvolvimento dessas discussões gerou no direito processual uma

teoria da ação que repercutiu no direito material para transformar a teoria sobre a

183

CÂMARA LEAL, Antônio Luís da. Da Prescrição e da Decadência. cit. p. 23. Foi Agnelo Amorim Filho

quem denominou empírico esse critério já em vias de criticá-lo. 184

Em Roma, um cidadão que buscasse a tutela do Estado precisava, antes, por meio da editio, requerer a

fórmula da ação (actio nata). Essa fórmula designava qual regime jurídico deveria ser aplicado ao caso a ser

pleiteado. Junto dessa designação nomeava-se também um juiz para avaliar o caso que se apresentava a partir

da fórmula que se concedia. Foi da nomeação desse juiz que se passou a conceber a prescrição. No termo

praescriptio está contida, justamente, a ideia do “pré-escrito” que seria uma fórmula prévia dada ao caso

segundo a qual o interessado deve promover o processo em certo tempo, sujeitando-se, caso contrário, a

perder o direito de ver sua demanda apreciada. CARREIRA ALVIM, J. E. Teoria Geral do Processo. – 11ª

Ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2007, passim.

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prescrição. Anteriormente, vigorava a chamada teoria imanentista da ação,

propugnada por Savigny, sendo, depois, substituída pela teoria autonomista da

ação.

Na teoria imanentista, não há direito sem ação nem ação sem direito.185

Pensavam os partidários da prescrição como perda da ação que fazia sentido

estabelecer que o que se extingue é a ação, consequência do direito, e não o próprio

direito, asseverando que o direto só é atingido de forma indireta.

Para outros autores, porém, esses ligados à tradição ítalo-francesa, a

ligação entre ação e direito seria tão próxima que não faria sentido falar-se da

manutenção do segundo diante da extinção do primeiro. Para Caio Mário da Silva

Pereira, por exemplo, a distinção não estaria no objeto, mas no fundamento:

O fundamento da prescrição encontra-se (...) em um interesse de ordem pública em que se não perturbem situações contrárias, constituídas através do tempo. O fundamento da decadência é não se ter o sujeito utilizado de um poder de ação dentro dos limites temporais estabelecidos à sua utilização.186

Com a prevalência da teoria autonomista da ação na Teoria Geral do

Processo, ao invés de perder importância a distinção entre os prazos quanto ao

objeto, foi apenas criada uma modalidade intermediária de situação subjetiva, a

pretensão, para explicar que é essa que se extingue com o exaurimento do prazo de

prescrição, e não propriamente a ação.

Essa é a claramente a visão adotada no texto do código de 2002, como

explicitado por Moreira Alves, responsável direto pela redação da Parte Geral:

Adotou-se [para a prescrição], à falta de uma nomenclatura melhor, a figura da pretensão, que vem do Direito germânico. Violado o direito, nasce para o titular a pretensão que se extingue pela prescrição dos prazos. Pelo sistema do Projeto, há direitos e poderes que dão margem à violação, em decorrência da qual – foi a posição doutrinária que se adotou – surge esse instituto da pretensão.187

Muito embora a adoção do critério de Camara Leal tanto quanto a adoção

do critério de Agnelo Amorim não estejam vinculadas a uma posição quanto à

perda do direito ou à perda da ação ou pretensão, a partir da distinção ou não

quanto ao objeto podem ser despertadas reflexões distintas.

185

V. CARREIRA ALVIM, J. E.. Teoria Geral do Processo. cit. p. 116. Essa teoria foi assumidamente

adotada pelo Código de 16 que dizia em seu art. 75 que “a todo direito corresponde uma ação, que o

assegura.” 186

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Intituições de Direito Civil, Vol. I. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002,

p. 435. Assim, também GOMES, Orlando. Introdução do Direito Civil. 17ª ed. Atualizações e notas de

Humberto Theodoro Júnior. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 496. 187

MOREIRA ALVES, José Carlos. „A parte geral do projeto do Código Civil‟. Revista CEJ, v. 3, n. 9, p. 5-

11, set./dez., 1999.

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Assim se deu quanto ao critério empírico de Camara Leal, segundo o qual

os prazos são distinguidos casuisticamente, identificando- “ ”

se dá juntamente com um direito ou com a violação de um direito – ou, seja, com a

ação (ou pretensão) voltada a sua tutela. Nessa proposta, o direito que decai nasce

já tendo em seu próprio conteúdo um prazo de exercício. O prazo, porém, que

surge de forma sucessiva a uma violação (e nasce posteriormente ao surgimento do

próprio direito) é de prescrição.188 Para explicitar com mais clareza o critério, o

q z “

”:

1.ª – Focalizar a atenção sobre estas duas circunstâncias:

se o direito e a ação nascem, concomitantemente, do mesmo fato;

se a ação representa o meio de que dispõe o titular, para tornar efetivo o exercício de seu direito.

2.ª – Se essas duas circunstâncias se verificarem, o prazo estabelecido pela lei para o exercício da ação é um prazo de decadência, e não de prescrição, porque é prefixado, aparentemente, ao exercício da ação, mas, na realidade, ao exercício do direito representado pela ação.189

Agnelo Amorim Filho rejeitou o critério proposto por Câmara Leal. Para

atingir seu anseio de estabelecer um critério científico de distinção, utilizou em sua

abordagem as teorias que buscaram a sistematização e a categorização dos direitos

como marco teórico e estabeleceu um fundamento racional com pretensões

científicas para a distinção. Valeu-se da classificação de direitos pensadas por

Chiovenda. A partir delas, defendeu que a prescrição se refere a direitos subjetivos

que têm por finalidade um bem da vida a ser obtido por meio de uma prestação;

enquanto que a decadência diria respeito aos chamados direitos potestativos ou

poderes formativos. Segundo tal classificação, ao direito subjetivo corresponderia,

188

CÂMARA LEAL, Antônio Luís da. Da Prescrição e da Decadência. cit., p. 37: “Há [entre a decadência e

a prescrição] uma substancial diversidade de objetos, recaindo a decadência sobre o próprio direito, que já

nasce condicionado, e recaindo a prescrição sobre a ação, que supõe um direito atual e certo. A prescrição

tem como uma de suas condições a que ação tenha nascido, isto é, se tenha tornado exercitável; ao passo que

a decadência, extinguindo o direito antes que ele se fizesse efetivo, impede o nascimento da ação. Tendo por

objetivo proteger e garantir o direito, a ação tem uma individualidade própria, distinta do direito, em

benefício do qual exerce a sua atividade, e, por isso, diferentes são as suas origens. É assim que o direito

nasce do fato que o gera, jus oritur ex facto; e ação, da violação por ele sofrida. Enquanto nenhuma

perturbação sofre o direito, nenhuma ação existe que possa ser posta em atividade pelo seu titular.” Sobre a

decadência: “Todo direito nasce de um fato a que a lei atribui eficácia para gerá-lo. Esse fato ou é um

acontecimento natural, alheio à vontade humana, ou é um ato, dependente dessa vontade (...). Em ambos

esses casos, a lei ou o agente pode subordinar o direito, para se tornar efetivo, à condição de ser exercido

dentro de um certo período de tempo, sob pena de caducidade. Se o titular do direito assim condicionado

deixa de exercitá-lo dentro do prazo estabelecido, opera-se a decadência, e o direito se extingue, não mais

sendo lícito ao titular pô-lo em atividade.” (p. 119) 189

Ibid. p. 397.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 69

para sua tutela, uma sentença condenatória, e a extinção da ação pelo prazo de

prescrição; ao direito potestativo, por sua vez, corresponderia uma sentença

constitutiva, e sua subordinação ao prazo de decadência; por fim, ações

imprescritíveis seriam aquelas que buscam sentença declaratória.

O critério proposto por Amorim segue hegemônico na doutrina brasileira,

não se tendo apresentado razão ou argumentação doutrinária que merecesse

superá-lo,190 tendo sido claramente o orientador da positivação subsequente da

distinção no Código Civil de 2002, como se infere da leitura de Moreira Alves:

Não há pretensão justamente porque são direitos não susceptíveis de violação, mas pode haver a necessidade de prazo para o exercício deles, e mais, de prazo para o seu exercício por via judicial, a fim de que se demonstre neles não a sua violação, mas a sua existência para o efeito de seu exercício, como é o caso, por exemplo, da anulação de casamento e, em face do Projeto, da anulação de negócio jurídico. Nesses casos, o que ocorre é a decadência.191

Segundo essa visão, se o objeto da prescrição, que é a pretensão, surge da

violação de um direito, esse direito só pode ser daquele tipo que possui em sua

correlação na relação jurídica um dever de prestação, o que está ao encontro das

construções de Amorim. Os direitos sujeitos à decadência, por outro lado, seriam

insusceptíveis de violação.

5. Um balanço teórico: os critérios de distinção e sua crítica rumo a

uma compreensão funcional

Sendo inegável a clareza da técnica metodológica usada por Amorim, e

ainda que suas bases teóricas tenham sido recepcionadas na sistemática do Código

de 2002, não é certo, ainda assim, que a caracterização da situação jurídica como

direito subjetivo ou potestativo interfira realmente sobre a caracterização do prazo

para o seu exercício.

Tome-se, por exemplo, o inc. II, do art. 1.814 do Código Civil, que prevê a

possibilidade de exclusão da sucessão em face da calúnia praticada pelo herdeiro

contra o autor da herança. Essa prerrogativa pode realmente ser entendida como

direito potestativo, mas não há razões para se dispensar automaticamente a

190

THEODORO JR., Humberto. „Distinção científica entre prescrição e decadência. Um tributo à obra de

Agnelo Amorim‟. cit. 191

MOREIRA ALVES, José Carlos. „A parte geral do projeto do Código Civil‟. Revista CEJ, v. 3, n. 9, p. 5-

11, set./dez., 1999.

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possibilidade de ser vista como uma pretensão nascida da violação de um direito

outro, no caso o direito à honra.

Se a exclusão da herança é insusceptível de violação – o que, como se verá

à frente, não é propriamente verdadeiro –, isso não interfere no fato de que a

honra é susceptível de violação e de que a partir de uma violação ao direito à honra

nasce a faculdade de se promover a exclusão da herança. Neste caso, dever-se-ia

inferir que o prazo do art. 1.815 do Código Civil é de prescrição ou de decadência?

A situação subjetiva está sujeita a compreensões variáveis, conforme o

realce ao seu perfil dinâmico, funcional, etc. e pode, inclusive, assumir conotações

especiais em face do caso concreto. A classificação da situação subjetiva como

direito subjetivo ou potestativo e a classificação de um prazo como de prescrição

ou de decadência se reportam a reflexões de tipo diverso – possivelmente (mas não

necessariamente) conectado. Por tudo, o que se mostraria especialmente

equivocado seria cristalizar o entendimento sobre a exclusão da herança, aduzindo

tratar-se notoriamente de direito potestativo, ante o fato de que se sujeita a prazo

de decadência.192

Em uma abordagem dinâmica e funcional das situações jurídicas

subjetivas, e tendo em vista o tipo de valoração que subjaz à juridicidade dos fatos,

é tênue a variação pela qual se diz que um prazo nasce juntamente do direito, ou

posteriormente a um direito, com sua violação, uma vez que a função cumprida em

ambas as hipóteses permaneceria a mesma. Pode-se dizer que a faculdade de

excluir da herança nasce com a calúnia, tanto quanto se pode dizer que nasce pela

violação à honra. Não se trata necessariamente, neste caso, do resultado de uma

profunda reflexão sobre estrutura e função da exclusão da herança. Trata-se, antes,

de uma escolha quanto à organização das palavras que condiz mais com uma

variação de significantes do que de significados.

Não parece, então, funcionalmente adequado estabelecer uma alteração do

tipo de prazo com base apenas em uma alteração das palavras selecionadas para

tratar da situação subjetiva que por ele se extinguiria. Neste sentido, é o

192

Veja-se que, nos termos da proposta do critério científico, se estabelece uma relação lógica do tipo “se e

somente e se”. Quer dizer, embora Amorim faça parecer que a relação é do tipo “Se direito subjetivo, então

prescrição”, e “Se direito potestativo, então decadência”, a ordem inversa do enunciado é também autorizada

por suas análises, de forma que “Se prescrição, então direito subjetivo” e “Se decadência, então direito

potestativo”. A questão está em que, como diz o art. 189 do Código: “Violado o direito, nasce para o titular a

pretensão.” E casos há em que se pode discutir se o direito potestativo em questão não é, na verdade, uma

pretensão, nos moldes do que define o próprio artigo. Ou mesmo se a pretensão não é, por si só, um direito

potestativo.

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entendimento de Pietro Perlingieri, que a respeito do paralelismo entre a

classificação da situação subjetiva e a classificação dos prazos aduziu:

Por vezes, procurou-se individuar uma distinção nítida entre o direito subjetivo e o direito potestativo no fato que somente este último poderia se extinguir por decadência. Uma das distinções que a doutrina apresenta entre o instituto da decadência e o instituto da prescrição extintiva consistiria justamente no objeto dos dois institutos: enquanto a prescrição (não exercício de um direito por um determinado período de tempo) extinguiria os direitos subjetivos, a decadência seria o modo de extinção típico dos poderes formativos. Prescindindo da distinção entre prescrição e decadência, é necessário esclarecer que não é o objeto – direito subjetivo de um lado, direito potestativo do outro – o elemento diferenciador entre os dois institutos. Nem mesmo sob este perfil é útil uma construção unitária do direito potestativo, o qual às vezes se extingue porque a situação mais complexa se extingue por prescrição ou por decadência, às vezes se extingue autonomamente porque ele mesmo se submete à prescrição ou à decadência.193

Observe-se, ademais, que, em que pese a visão comum da exclusão da

herança como direito potestativo, essa pode perfeitamente ser vista como

pretensão. Aliás, a pretensão, por si, não deixa de ser um direito potestativo,

conforme a visão do próprio Chiovenda:

A ação é, pois, no meu entender, um direito potestativo e até se pode dizer um direito potestativo por excelência. Até aqui, a categoria de direitos potestativos foi agrupada em torno da característica comum, isto é, da tendência de produzir um estado jurídico novo perante um adversário.194

Sendo possível substituir ação por pretensão também neste caso, estará

agravada a dificuldade teórica de se distinguir um prazo como sendo de prescrição

ou decadência conforme a caracterização da situação subjetiva por ele extinta, seja

ela o direito potestativo, seja a pretensão. Assim é que, aduz : “O

potestativo não tem nenhuma relação especial com a prescrição; inclusive

comumente o que se prescreve é um direito potestativo – çã .”195

Mediante a classificação de Chiovenda, também a regra sobre a

imprescritibilidade não se sustenta. Ao explicar porque entende ser a ação um

direito potestativo, Chiovenda cita como exemplo outro direito que ele classifica

também como potestativo, qual seja, o direito de impugnar a legitimidade do filho.

Embora esse direito se sujeite a prazo, no entendimento de Chiovenda, a sentença

que resulta do pedido de impugnação não é constitutiva, mas declaratória.196

193

Assim, PERLINGERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. cit. p. 689, 690. 194

CHIOVENDA, Giuseppe. A ação no sistema dos direitos, cit, p. 31. 195

Ibid. p. 33. 196

“Quando entre os direitos potestativos estiver compreendido o direito de impugnar a legitimidade do filho,

já se abrem as portas dessa categoria para a ação. O direito de impugnar a legitimidade não é mais do que

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Aduz-se, portanto, que os critérios de Amorim e de Camara Leal não

saturam o problema da distinção e, levados ao extremo, não deixam de apresentar

falhas comuns – sendo notável, aliás, uma semelhança tal entre eles, que é possível

inferir que se reportam a uma mesma compreensão da distinção, embora sob

perspectivas diversas.

É certo, todavia, que tanto a proposta de Camara Leal quanto a proposta

de Agnelo Amorim foram representativas para o sistema civil. A verdade é que

sendo o critério de Camara Leal anterior ao de Amorim, este, ao estabelecer a sua

distinção científica, não deixou de reproduzir a distinção que já era aplicada no

ordenamento jurídico e que, por sua vez, operava segundo a proposta empírica.197

Como é possível compreender atualmente (através de um paradigma

científico pós-moderno)198 enunciados de investigação jurídica não são descritivos,

mas propositivos e, embora Amorim pretendesse sinceramente a cientificidade de

seu estudo, não poderia se dar conta do seu papel de participante, e não de

observador, na ordem jurídica. Assim, ambas as teorias, embora assumissem

implicitamente uma postura metodológica de cientista-observador e embora

bus çã “ ”

z çã “

” í – colaborador na construção dos

entendimentos sobre o direito.199

pura ação, e, exatamente, uma ação de declaração de certeza, que é direito subjetivo por si própria, mas não

exercício de algum outro direito subjetivo” (Ibid, p. 32) 197

CAHALI, Yussef Said. Prescrição e Decadência – 2ª Ed. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 31:

“A pretendida distinção científica entre os dois institutos não passa, na essência, de um desdobramento

dinâmico da distinção segundo a origem da ação, a que completaria: nos direitos potestativos, o poder

outorgado ao respectivo titular origina-se com o próprio direito; se estabelecido prazo para o seu exercício,

será de decadência; nos direitos subjetivos, a pretensão condenatória nasce posteriormente, com a lesão

representada pelo descumprimento da prestação; assim será de prescrição o prazo para a respectiva ação.” 198

A respeito de um paradigma científico pós-moderno e sua relevância para a Ciência do Direito, v.

SANTOS, Boaventura de Sousa. „Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna‟.

Estudos avançados. 1988, vol.2, n.2, pp. 46-71. 199

Conforme os ensinamentos de Boaventura de Souza Santos, pode-se perceber que a postura de

participante é mais do que uma opção metodológica que se reporta à superação do positivismo. Ela é um fato

tão verdadeiro com relação à Ciência do Direito, quanto com relação até mesmo a Ciências Naturais ditas

“exatas” como a Física. A superação do paradigma newtoniano na Física diz respeito a uma limitação de que

da nem mesmo Newton poderia se dar conta, já que aprisionado às suas experiências pessoais acerca da

natureza. Na Modernidade, a incerteza é uma preocupação metodológica das Ciências Sociais que, assim,

tentam se valer ao máximo dos métodos precisos das Ciências Naturais. Simbólico da alteração dessa

dinâmica é a comprovação do princípio da incerteza de Heisenberg. Ficou então demonstrado que nem

mesmo na Física, Ciência Natural cujo desenvolvimento teórico é digno de destaque, é possível eliminar a

incerteza em uma experimentação. Lidar com a incerteza é um desafio para a metodologia da ciência, mas a

incerteza sempre esteve lá. A diferença do paradigma pós-moderno é que se trata de um paradigma

consciente da incerteza, e que procura lidar com ela. (SANTOS, Boaventura de Sousa. „Um discurso sobre as

ciências na transição para uma ciência pós-moderna‟. cit.).

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P q ã “ í z ” q ç

essencial de Amorim foi de identificação e articulação de algo que já se encontrava

presente entre os juristas. Tal como Camara Leal, tudo que ele fez foi dar uma das

articulações possíveis para a questão, argumentando, não obstante, que era a única

articulação correta. Uma articulação interessante, na medida em que se baseava

em critérios que faziam sentido, mas ainda assim, uma articulação de certo modo

contingente que, somente por sua própria intervenção como jurista que, pensando

“ ” “ ”

necessária no sistema do ordenamento nacional.

Camara Leal e Agnelo Amorim, então, não elucidaram a distinção que não

era pré-existente. Eles propuseram uma maneira de enxergar a distinção, a qual,

tendo sido aceita, passou a ser aplicada e tornou-se efetivamente a distinção

existente. De tal forma que, como dito, a proposta de Amorim foi acatada por

Moreira Alves na redação da Parte Geral do Código Civil de 2002.

Por tudo, a manutenção dos critérios hoje não significa o reconhecimento

de sua validade, mas a assunção de uma postura segundo a qual neles está prevista

uma maneira adequada e conveniente de retratar a questão.200 Já não parece,

entretanto, ser o caso de manter-se esse mesmo entendimento, havendo a

necessidade de inscrever-se a abordagem do tema no método civil-constitucional.

6. Conclusão: uma proposta funcional de distinção

Na linha do que foi acima exposto, vale destacar que uma distinção

funcional a ser proposta a respeito dos prazos de prescrição e decadência não pode

se afastar sobremaneira da distinção científica, tal qual a distinção científica

também não se afastava da empírica. Isso se dá, em primeiro lugar, porque, de

fato, para se chegar a uma distinção funcional foi revisitado o legado civilista sobre

a questão, sendo o trabalho de Agnelo Amorim a mais importante referência sobre

o assunto no direito civil nacional. Além disso, afastar-se o critério completamente

200

A esse respeito, é inspiradora a passagem conclusiva da obra de DWORKIN, Ronald. O império do

direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 492: “A atitude do direito é construtiva: sua finalidade, no

espírito interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro

melhor, mantendo a boa-fé com relação ao passado. É, por último, uma atitude fraterna, uma expressão de

como somos unidos pela comunidade apesar de divididos por nossos projetos, interesses e convicções. Isto é,

de qualquer forma, o que o direito representa para nós: para as pessoas que queremos ser e para a

comunidade que pretendemos ter.”

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 74

da proposta de Amorim seria descaracterizar os próprios institutos no direito

nacional, já que veem sendo entendidos e aplicados de acordo com a construção

pregressa sobre o tema. A diferença em relação à distinção funcional que se

constrói e a distinção científica de Amorim, portanto, estará, ao menos, com

relação ao enfoque dado para a questão (mas não só aí, como em breve será

exposto).

Realçar o perfil funcional de um instituto jurídico no ordenamento atual,

em que a dignidade humana é o valor unificador do sistema, é revelar a maneira

pela qual o instituto se presta à realização de propósitos humanos e à proteção da

pessoa. Descarta-se, desde já, a visão pela qual seria a prescrição ou a decadência

uma sanção aplicada a quem tenha se quedado inerte no exercício de um direito,

simplesmente porque, neste caso, não haveria sujeito de direito a ser protegido por

meio dessa sanção, nem mesmo algum interesse público estaria sendo preservado.

A função da prescrição e da decadência deve ser buscada em seu aspecto

positivo, em relação ao indivíduo que se beneficia desses institutos. São, pois,

mecanismos de proteção do interesse daquele que ocupa o polo

(predominantemente) passivo de uma relação jurídica e que, assim, se liberta de

uma situação de incerteza. Para Chiovenda, por exemplo, o direito de impugnar o

í “ q

potestativo, à prescrição ou à decadência, ou como se queira dizer, porque o estado

jurídico indeciso deve cessar o mais rápido”.201

A passagem do tempo somada à inércia do titular constitui um fato

juridicamente valorado de uma forma específica. Onde se pensava haver um

interesse jurídico, a inércia do titular indica haver razões para crer que não há

interesse de fato, deixando de ter sentido o interesse que se atribuía àquela pessoa.

Diante dos fatos, ficam caracterizadas as razões para se retratar os prazos como

um mecanismo de assimilação dos fatos da vida pelo direito.

Bem mais adequada, portanto, é outra perspectiva que trata desses dois

institutos como mecanismo de se promover a segurança e a estabilidade das

relações. Fraçois Ost retrata a prescrição, mais do que isso, como uma

manifestação do perdão na ordem jurídica:

Como para o desuso, a prescrição extintiva surge, assim, como um mecanismo de adaptação do direito ao fato: na falta de ter podido se realizar conforme a sua prescrição, o direito (aqui entendido como direito

201

CHIOVENDA, Giuseppe. A ação no sistema dos direitos, cit, p. 33 (sem grifos no original).

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subjetivo) alinha-se na situação de fato contrária que se consolidou no intervalo. De novo, ou se pode lamentar o revés do direito que, por preocupação com efetividade e realismo, acaba por consagrar uma injustiça, ou, ao contrário, admirar as capacidades de autoadaptação de uma regulamentação jurídica que consegue finalmente inscrever qualquer fato ou ato à série ininterrupta do tempo, e consagra, assim, uma outra ideia de justiça que quer que se esqueça o que durou demais sem chegar a se realizar.202

Mas para compreender, propriamente, em que consiste a distinção

funcional que se propõe haver entre prescrição e decadência, vale visualizar o

esquema abstrato da relação jurídica, pelo qual existe um polo

(predominantemente) ativo correspondente a um polo (predominantemente)

passivo.

No esquema de compreensão da função dos prazos de prescrição e

decadência, ao polo ativo é conferido um poder tal que sujeita o polo passivo, seja

para constranger-lhe ao cumprimento de uma prestação, seja para submeter-lhe,

de qualquer forma, às consequências de uma decisão que incumbe

predominantemente à vontade do polo ativo e independe da vontade do polo

passivo. Fica então o polo passivo acoplado a uma definição que incumbe ao polo

ativo, restando aprisionado em um estado de incerteza e descontrole de sua

própria sorte.

Se não houvesse um prazo para o exercício desse poder ou faculdade

atinente ao polo ativo, o estado de incerteza seria absoluto e no mínimo

angustiante, pois somente em seu desfavor poderia ter desfecho, podendo este se

passar em qualquer momento até a eternidade.203 Por isso mesmo, é comum que a

lei preveja um prazo í “ ”

pelo polo ativo.

Assim, o estado de incerteza pode cessar (i) pelo exercício da faculdade que

incumbe ao polo ativo, se o fizer, ou, se não o fizer, (ii) pelo decurso do tempo,

conforme a previsão de um prazo legal. O prazo em questão é variável, tanto no

202

OST, François. „Perdão. Desligar o Passado‟. In O Tempo do Direito. Tradução de Élcio Fernandes.

Bauru: Edusc, 2005. 203

Fala-se, neste caso, em “angústia” e não se entende haver aí uma falha metodológica, mas, pelo contrário,

uma observância estrita ao sentido de uma abordagem funcional. A funcionalização das situações jurídicas

subjetivas se reporta, em último grau, à dignidade da pessoa humana, enquanto a consciência da necessidade

de tornar concreta essa funcionalização exige também a consideração de um parâmetro de alteridade que leve

em conta um ser humano concreto, e não um padrão abstracionista de pessoa. Toma-se sempre por referência

a crítica de Costas-Douzinas que aduziu: “O sujeito jurídico, o conceito-chave sem o qual os direitos não

podem existir, é, por definição, altamente abstrato, uma estrutura ou esqueleto que será preenchido com a

carne fraca dos deveres e o sangue desbotado dos direitos. A metafísica jurídica não tem tempo para dor das

pessoas reais.” (DOUZINAS, Costa. O fim dos direitos humanos. 1ª Ed. São Leopoldo: Unisinos, 2009, p.

165).

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aspecto quantitativo (pelo tempo fixado) quanto no aspecto qualitativo (pelo tipo

de prazo previsto, ou pelas regras fixadas para sua contagem). De qualquer modo,

a variedade de formas pelas quais são previstos os prazos corresponde a uma

distinta valoração do estado de incerteza a que põe termo.

Há casos, porém – talvez a maioria deles – em que existirá ainda uma

terceira forma de cessar o estado de incerteza, a qual poderá se dar (iii) pela

prática de um ato jurídico específico que compete ao próprio polo passivo da

relação. Trata-se do adimplemento ou de outros atos que o equivalham. Neste

caso, a condição de incerteza do polo passivo é qualitativamente distinta da sua

condição no caso em que não se lhe faculta a prática de qualquer ato hábil a

liberar-lhe dessa condição.

O que distingue funcionalmente a prescrição da decadência, conforme a

proposta ora apresenta, é a condição para a liberação do polo passivo nesses dois

casos. No primeiro caso, em que ao polo passivo não é atribuída a legitimidade

para praticar qualquer ato hábil a provocar sua liberação o prazo é de decadência.

No segundo caso, em que ao polo passivo é dado praticar um ato correspondente à

satisfação do interesse do polo ativo na relação jurídica o prazo é de prescrição.

A incerteza neste último caso é, aliás, compartilhada entre os polos ativo e

passivo da relação. Enquanto o polo passivo pode desconhecer a intenção do polo

passivo de constranger-lhe ou não à prática do ato que lhe caberia praticar, o polo

ativo, por sua vez, pode desconhecer a intenção do polo passivo de fazê-lo

espontaneamente ou não. Isso justifica, por exemplo, as hipóteses em que a

prescrição se interrompe por um ato tal do polo ativo que demonstre

inequivocamente a intenção de constranger o polo passivo à prática do ato em

questão, ou pela afirmação inequívoca, por parte deste, seja da existência da

relação jurídica, seja de sua intenção de adimpli-la. A interrupção do prazo não

deixa de corresponder a uma renovação das expectativas quanto ao adimplemento

ou à intenção de exigi-lo, seguindo o impedimento e a suspensão a mesma lógica.

O mesmo não se passa com as circunstâncias em que o prazo previsto é o

de decadência. Como neste não é dado ao polo passivo a prática de qualquer ato,

nem ato algum dele se espera, não faz sentido pensar-se em interrupção,

suspensão ou impedimento do prazo, tanto quanto não faz sentido pensar-se em

renúncia. A renovação do prazo no caso da prescrição faz sentido porque significa

a reafirmação da relação jurídica e da expectativa de que o ato a ser praticado pelo

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 77

polo passivo efetivamente o será. Se nenhum ato se espera do polo passivo, por

outro lado, nem a ele é atribuído qualquer outro papel senão o de se sujeitar ao que

ficar decidido pelo polo ativo, não faz sentido estabelecer uma renovação do prazo

que, assim, toma seu curso linear.

A renúncia, nos casos de prescrição faz sentido, porque importa uma

manifestação da intenção do polo passivo de fazer extinguir a sua condição de

devedor, não pelo decurso do prazo, mas pela prática do ato de adimplemento que

lhe incumbe praticar. No caso da decadência, porém, nenhum ato incumbia ao

polo passivo, nem qualquer poder lhe foi conferido com relação a sua condição de

polo passivo na relação, de maneira que também exaurido o prazo – que era o

único meio de resolver-se o estado de incerteza em seu benefício – este não condiz

com alguma renúncia.

Adota-se, pois, uma visão aproximada à de Moreira Alves que por sua vez

inspirou-se em Agnelo Amorim, mas de forma desprendida dos modelos do direito

subjetivo ou do direito potestativo; atendo-se ao perfil dinâmico das situações

subjetivas (embora não tenha se expressado nesses termos) que se distinguem pelo

fato de serem ou não passíveis de violação.

É de se observar, então, que essa divisão poderia corresponder em linhas

gerais à mesma distinção que se faz entre direito subjetivo e potestativo, nos

moldes em que se baseou Agnelo Amorim.204 Via de regra, será mesmo possível

observar-se um paralelo, já que o objeto prestacional do direito subjetivo é o que se

põe em destaque para afirmar que se conecta a prescrição. No entanto, o

paralelismo, neste caso, não é necessário, mas contingente.

No caso do divórcio, por exemplo, tem-se um direito potestativo que não

se sujeita a prazo. Deveras, entre pessoas casadas, o estado de incerteza é uma

constante que não pode ser suprimida por qualquer regra legal. Em contrariedade

à proposta de Agnelo Amorim (se bem que esta fosse anterior à legalização do

divórcio) ainda que seja este um direito potestativo, não se submete a qualquer

prazo.

204

Vale observar, ainda mais uma vez, que não se trata, neste ponto, de uma proposta “inaugural” de

distinção, nem poderia valer uma proposta deste tipo. A linha adotada, aliás, se assemelha bastante à

abordagem de Moreira Alves sobre o tema, mais do que qualquer outra, mas somente por um

comprometimento com o propósito de identificar uma distinção funcional foi possível formar um

entendimento sobre a adequação dessa construção. (V. MOREIRA ALVES, José Carlos. „A parte geral do

projeto do Código Civil‟. Revista CEJ. cit.).

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Não apenas isso, direitos potestativos podem, sim, estar ligados a um

prazo de prescrição. Pense-se o caso em que um vendedor, ou adquirente

inviabiliza, por qualquer expediente, o exercício de um direito de preferência.

Trazendo-se a incidência dos deveres anexos de boa-fé, tem-se que ao polo passivo,

titular da situação jurídica de sujeição (correlata à situação de direito potestativo),

não é dado obstaculizar o exercício do poder atribuído pelo ordenamento ao polo

ativo.205 S z í . “V

ã ” z z çã

qual se submeterá a prazo de prescrição.

Valendo lembrar que a pretensão por si é também um direito potestativo, o

que, sem dúvida pode provocar confusões, vale também lembrar que se extingue

por prescrição, e não por decadência. De fato, embora seja a pretensão um direito

potestativo, pode perfeitamente ser extinta com base em um ato que o polo passivo

é legítimo a praticar. No caso da violação de um direito, por exemplo, como um

acidente de trânsito que tenha sido causado pelo polo passivo, pode esse se dispor

a arcar com todos os custos de reparos daí advindos. Com o acidente, nasceu a

pretensão, a qual pode ser extinta pelo adimplemento espontâneo e pelo acordo

entre as partes, podendo também ser exercida pelo ajuizamento da respectiva ação

de reparação de danos se necessário e podendo, por fim, se extinguir pela

prescrição.

Retomando-se a citação a François Ost, é possível vislumbrar ainda mais

uma distinção funcional entre os institutos. Ao titular de um direito possivelmente

violado atribui-se um interesse jurídico que este não se mostrou realmente

interessado em exercer. O interesse atribuído não se mostra real ou, se for real,

adiou-se por um tempo tal que já se mostraria excessivamente prejudicial ao polo

passivo o seu exercício. A prescrição se volta a consolidar uma situação de fato

oposta ao que se pensava corresponder à efetivação de um direito. Trata-se de um

processo de assimilação jurídica dos fatos sociais.206

205

V. PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. cit., p. 687: “Se for verdade,

porém, que o titular da sujeição não pode impedir a produção dos efeitos na própria esfera, é também verdade

que ele é titular de um dever específico (obbligo) ou, se se preferir, de um dever genérico de não impedir ao

titular do poder não somente de realizar o ato, mas também de alcançar o resultado. O titular da situação de

sujeição deve também cooperar para que o titular do poder formativo possa exercê-lo utilmente. Não se trata

de simples sujeição: é, ao revés, presente um dever de cooperação. A sujeição é a situação de um momento: o

efetivo exercício por parte do titular do direito potestativo.” 206

Tais considerações são hábeis a fortalecer a tese da imprescritibilidade do dano moral, ou ao menos de sua

flexibilização, tendo em vista que tais presunções não se fazem igualmente lógicas na hipótese de danos à

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A decadência, porém, não se enquadra neste papel, mas diz respeito,

precisamente, a um dos aspectos regulamentares que compõem a própria situação

jurídica subjetiva que visa extinguir.

Essa noção está em sintonia com o próprio critério topográfico, em que a

decadência é prevista juntamente da fattispecie que por ela se extingue,

possivelmente na Parte Especial, devendo ser entendida como parte componente

dessa mesma fattispecie. Assim, não só existe um direito de pedir a anulação do

negócio jurídico, como esse direito existe precisamente quatro anos (art. 178,

Código Civil) e nada mais, o que seria uma das pretendidas distinções entre

negócio nulo e anulável – ultrapassado um termo temporal, a anulabilidade se

convalida.

Essa noção está em sintonia também com critério empírico em que a

decadência nasce juntamente ao direito que com ela se extinguiria. O nascer

juntamente ao direito é compor intrinsecamente o direito e integrar sua própria

estrutura. Seria parte imanente do direito de arrependimento previsto no Código

de Defesa do Consumidor (art. 49) que ele seja exercido no prazo de sete dias. O

prazo compõe completamente o conteúdo do direito de arrependimento no caso e

não condiz com uma expressão externa limitadora do seu exercício. Simplesmente,

não poderia haver direito de arrependimento se este não contivesse um prazo para

o seu exercício, sendo adequado que seja um prazo curto.

A decadência, dessa forma, embora possua, por si, uma função que diz

respeito a excluir um estado gravoso de incerteza, é extremamente afetada pela

função da situação jurídica que integra, estando aí o mais relevante aspecto de sua

adequação valorativa. Esse aspecto explica, por exemplo, a inexistência de prazo

para o exercício do divórcio, já que um prazo seria incompatível com a própria

função do direito.

Analisada em concreto, vê-se que, diferentemente da prescrição que é um

instituto jurídico, funcionalizado à instituição de uma modalidade de perdão, a

decadência não se atribui uma função própria, senão residual. É elemento

pessoa humana. A prescrição, via de regra, diz respeito à situações precisas. Um inadimplemento, por

exemplo, advém de uma obrigação que deveria ter sido paga em certo tempo e não o foi. Fica clara a natureza

da violação tanto quanto as circunstâncias jurídicas que dela surgem. O dano moral, como decorrente da

cláusula geral de tutela da pessoa humana, se sujeita a formas variáveis e mesmo subjetivas de assimilação.

Sua configuração perante o direito depende de argumentação e ponderação. Sua configuração perante a

pessoa depende de um processo muitas vezes lento de racionalização do trauma. A previsão de prazo – ainda

por cima tão exíguo – para o dano moral é possivelmente contrário ao imperativo de tutela da pessoa

humana, provocando um obstáculo disfuncional.

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componente e integrante da situação jurídica que extingue, e revela mais sobre o

aspecto funcional desta situação subjetiva do que de si mesma, como detalhe

isolado e reduzido da situação que se investiga. Por outro lado, o que a decadência

revelará da respectiva situação é, justamente, que ela provoca um estado de

incerteza a outrem, o qual, salvo exceções, não deve durar eternamente.

7. Considerações finais

Por fim, vale destacar que prescrição e decadência não são modalidades

estanques de prazos, os modelos não reduzem as possibilidades pensáveis de

fixação de um termo temporal. São modelos e, como tais, são referências úteis às

quais pode ser válido recorrer em circunstâncias diversas, tendo em vista que

sobre eles já se produziu um legado. Mas o ordenamento jurídico é um sistema

móvel e aberto e se não há qualquer metafísica dos prazos também não há porque

restringir os prazos a esses modelos.

Pode-se, por exemplo, prever um prazo tal que, diante de determinado fato

jurídico, reduz-se à metade ou prolonga-se ao dobro se assim se mostrar

conveniente para a regulamentação de alguma situação jurídica. Não se terá, por

isso, qualquer falha de técnica legislativa. Será possível dizer deste prazo que é de

prescrição ou de decadência, como será possível dizer que é sui generis. A

discussão será, não sobre a compreensão do sistema jurídico, mas sobre o

significado das palavras.

Prescrição e decadência são, sobretudo, palavras. Palavras que expressam

algum sentido que aqui se procurou investigar, mas que não limitam os sentidos

todos que são possíveis e que não foram captados por algum outro significante. E,

ainda assim, como palavras que são, estão também sujeitas à transformação de

seus sentidos, conforme os sentidos variados que assumem ao longo do tempo.

Sendo palavras que expressam normas, estão sujeitas à variações de sua

compreensão, seja como palavras, seja como normas.

Tem-se nelas, hoje, distinções estruturais bem conhecidas e ministradas,

mas que não se ofendem diante de alguma flexibilização, como a prevista no art.

207 do Código Civil.

É possível dizer que com a possibilidade de impedimento, deixa-se de ser

decadência para ser prescrição, mas isso não é certo. O prazo de quatro anos para

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impugnar o reconhecimento de paternidade do filho menor se conta a partir de sua

maioridade do filho, sendo exemplo de impedimento aplicado a um prazo de

decadência. Será possível dizer que não se trata propriamente de um impedimento

com fins de manter-se cristalizado o sentido da decadência, mas isso será uma

escolha sobre palavras e não sobre normas, pois o regramento da questão será o

mesmo.

É possível dizer que, com a possibilidade de impedimento, o prazo não é

de decadência, mas de prescrição. Isso, porém, à custa da melhor compreensão

sobre as normas jurídicas, pois o direito de impugnar o reconhecimento de

paternidade não sofre nenhum dos outros fenômenos atinentes à prescrição, como

a suspensão, a interrupção e o impedimento em todas as demais hipóteses, além

da impossibilidade de renúncia.

Com a reforma processual de 2006 (Lei 11.268/2006) alterou-se

substancialmente o regime da prescrição, que passou a poder ser conhecida de

ofício. Isso, sem dúvida diminui a distinção entre prescrição e decadência, mas

tantas mútuas particularidades se mantêm que não há razões para pensar-se ter

havido uma diluição entre os institutos. Apenas, por essa mudança das estruturas,

vislumbram-se escolhas distintas a respeito das funções a serem ou não

promovidas.

Vale dizer que para novas funções ou para funções distintas devem ser

concebidas novas estruturas, ou devem ser adaptadas as estruturas pré-

concebidas. Os prazos para o exercício de situações jurídicas estão à disposição da

legalidade, para fazer tratar igualmente aos iguais, e desigualmente aos desiguais,

na medida em que se desigualem – “ ” a pelo legislador.

conforme o juízo que se faça de cada caso. Nisso consiste a superação de uma visão

jusnaturalista sobre o tema sem decair, por isso, em um formalismo jurídico.

Recebido em 17/09/2014

1º parecer em 07/01/2015

2º parecer em 02/03/2015

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PARECER

CONTRATO DE SEGURO DE VIDA E O AGRAVAMENTO DO RISCO

Luiz Edson Fachin

Professor Titular de Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Pós

Doutor. Pesquisador convidado do Instituto Max Planck, de Hamburg (DE). Professor Visitante do

K ‟ C L . A .

SUMÁRIO: 1. Da consulta – 2. Dos quesitos – 3. Do objeto do Parecer – 4. Breve

escorço fático – 5. Reflexões teóricas preambulares: do contrato de seguro de vida

– 6. Inteligência e aplicabilidade do art. 768 do Código Civil: da necessária

vinculação da intencionalidade de agravamento do risco – 7. Da prova e do ônus

probatório da intencionalidade de agravamento do risco – 8. Das circunstâncias

concretas: ausência de prova que corrobore a intencionalidade de agravamento do

risco – 9. Resposta aos quesitos apresentados

1. Da consulta

Consultam-nos acerca da repercussão jurídica de questões pertinentes ao

pagamento de capital decorrente de contratos de seguro de vida em face de

passamento.

Apresenta-se cópia de documentos, em especial daqueles oficiais atinentes

à investigação da morte e as respostas negativas de cobertura (e consequente

pagamento do valor do capital contratado) de diversas seguradoras com as quais o

de cujus mantinha relação contratual.

2. Dos quesitos

Diante de interesses legítimos decorrentes de contratos de seguro de vida

firmados pelo falecido Sr. X, vêm de nos consultar seus beneficiários, solicitando

análise e a apresentação de parecer a respeito do seguinte:

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(i) À luz dos fatos, como deve ser a aplicação do artigo 768 do Código Civil ao presente caso?

( ) O q “agravamento do risco” 768 Código Civil?

(iii) A quem cabe o ônus probatório da intencionalidade do segurado dirigida ao agravamento do risco e que prova é apta para atender a esse ônus?

(iv) No presente caso, pode-se dizer que há prova que sustente a alegação do agravamento do risco por parte do Sr. X, consoante narram as respostas negativas de pagamento das seguradoras?

3. Do objeto do Parecer

Em decorrência dos questionamentos erigidos, o cerne deste parecer

cinge-se às reflexões teóricas, em cotejo com a matéria fática desenhada in casu,

acerca do contrato de seguro de vida e de circunstâncias que autorizem às

seguradoras ao não pagamento do capital contratado em sede de seguro de vida.

Preambularmente, far-se-ão breves considerações teóricas acerca dos

contratos de seguro de vida. Na sequência, ainda em sede de delineamentos

teóricos, debruçar-se-á sobre a análise do agravamento do risco e a necessidade

de sua intencionalidade quanto à percepção do capital contratado, em especial

diante das disposições do art. 768 do Código Civil pátrio, bem como sobre o

sentido que se deve atribuir a essa intencionalidade.

Em um segundo momento, à luz das normas atinentes à distribuição do

ônus da prova e ao sistema de proteção ao consumidor, analisar-se-á a natureza da

prova necessária à eventual desconstituição do direito dos beneficiários à

percepção da prestação da seguradora, bem como a quem caberia o onus probandi

pertinente à intencionalidade no agravamento do risco objetivo do contrato.

Por final, já aportando nas linhas conclusivas deste parecer, ponderar-se-á

sobre a existência ou não, nos documentos submetidos à presente análise, de prova

dessa estirpe no presente caso que tenha condão de afastar o pagamento do seguro

contratado, fornecendo, então, respostas aos quesitos.

4. Breve escorço fático

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Narra-se que X faleceu aos 38 (trinta e oito) anos de idade, em vinte e

quatro de maio no hotel Y, na cidade de W.

Conforme se depreende da documentação apresentada, mormente

inquérito policial, de acordo com depoimento prestado à polícia local pelo Sr. Z,

amigo do de cujus que o acompanhava, o Sr. X chegou naquela localidade no dia

vinte e três daquele mês, motivado por questões de trabalho. Ambos hospedaram-

se naquela localidade no hotel KK.

Verifica-se do inquérito policial a informação de que o Sr. X foi encontrado

morto pela Sr.ª GG, que o conheceu em W. A morte foi declarada no quarto de

hotel da referida senhora, no estabelecimento Y, por volta das seis horas da

manhã, do dia vinte e quatro.

De acordo com o laudo policial oficial das autoridades de W a causa mortis

“envenenamento acidental por exposição a narcóticos e psicodisléticos‖.

Dos documentos recebidos, dentre os quais se destacam declarações

pessoais de saúde complementar feitas de próprio punho pelo de cujus quando da

contratação do seguro, depreende-se que o Sr. X não era usuário de quaisquer

substâncias químicas que causem dependência.

O Sr. X era titular de alguns seguros de vida no Brasil.

De modo sistemático, as seguradoras, diante da requisição de pagamento

feita pela viúva beneficiária, em face do contido em seu atestado de óbito,

negaram-se ao pagamento haja vista que a conduta do de cujus supostamente teria

agravado o risco, elevando-o a patamares que fogem à cobertura contratada.

Da documentação entregue infere-se que companhias de seguros

consideraram indevido o pagamento, nos termos do artigo 768 do Código Civil,

alegando suposto agravamento do risco provocado pela conduta do Sr. X.

Eis a base fática narrada, que se depreende da documentação apresentada,

e que informa a análise a ser efetuada no presente parecer.

A partir desses pressupostos de fato, à luz dos quesitos formulados, passo

a examinar as questões jurídicas que vêm à tona como instrumentais à adequada

compreensão da matéria. Principie-se, nessa toada, com um necessário conjunto

de reflexões preliminares acerca do contrato de seguro de vida, de modo a aferir

quais as consequências jurídicas que dele podem derivar diante das circunstâncias

de fato objeto da Consulta.

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5. Reflexões teóricas preambulares: do contrato de seguro de vida

A compreensão da matéria a que se refere este parecer pressupõe reflexões

preliminares que situem o tema à luz da espécie de relação obrigacional de que se

está a tratar.

Cabe versar a respeito do conceito e dos caracteres fundamentais do

contrato de seguro, de modo a construir os subsídios necessários para a

investigação das repercussões jurídicas que advêm dos fatos narrados na Consulta.

O contrato de seguro, como se sabe, é modalidade contratual típica no

contexto do direito obrigacional pátrio.

Mister advertir que em que pese o objeto das reflexões no presente parecer

seja especificamente o seguro de vida, a especificação do objeto não o faz diferir da

disciplina geral da regulação dos contratos securitários no direito brasileiro.207

Não há consenso ao redor de definição una para os contratos de seguro,

todavia, de modo geral, poder-se-ia apontar, como um delineamento a título de

definição precária, os elementos que conformam esta modalidade contratual, quais

sejam: o interesse segurável, a prestação do segurador, o prêmio e o risco.

Conforme explica Pontes de Miranda:

Contrato de seguro, segunda a definição corrente, é o contrato pelo qual o segurador se vincula, mediante pagamento de prêmio, a ressarcir ao segurado, dentro do limite que se convencionou, os danos produzidos por sinistro, ou a prestar capital ou renda quando ocorra determinado fato, concernente à vida humana, ou ao patrimônio. Aí a falta de unidade na definição resulta de se ter em vista a distinção entre os seguros.208

Nessa moldura especial destaque tem o risco. A aleatoriedade é elemento

essencial das relações securitárias e consiste na superveniência de episódio futuro,

incerto, involuntário, todavia, possível – ou, no caso do seguro de vida

acontecimento certo (morte) de data incerta.

Acerca desse elemento preponderante nos contratos de seguro, a doutrina

h q A q “ é ”209 vez que,

ocorrido o sinistro, nenhum prejuízo advirá ao contratado.

207

O Código Civil anterior trazia no seu artigo 1.471 definição específica sobre o seguro de vida, a saber: “O

seguro de vida tem por objeto garantir, mediante o prêmio anual que se ajustar, o pagamento de certa soma a

determinada ou determinadas pessoas, por morte do segurado, podendo estipular-se igualmente o pagamento

dessa soma ao próprio segurado, ou terceiro, se aquele sobreviver ao prazo de seu contrato”. O código

vigente trata de maneira genérica o contrato de seguro. 208

PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Vol. XLV. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1964. 209

ASCARELLI, Túlio. Panorama do Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 1947. p. 173.

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Ademais, o contrato de seguro é essencialmente aleatório vez que não há

equivalência entre as prestações e sua execução, em face da dependência de evento

futuro e incerto. Por meio desta relação contratual entabulada há o translado do

risco do segurado à seguradora em virtude do pagamento de um prêmio.

A matéria geral das relações contratuais de seguro é regida

legislativamente de modo dual: de um lado, apóia-se nas previsões previstas nos

artigos 757, e seguintes do Código Civil, por outro, está albergada dentro do

sistema de proteção ao consumidor, com especial atenção ao Código de Defesa do

Consumidor.210

As previsões do Código Civil têm o condão de fixar as linhas gerais do

instituto, definindo-o e contextualizando-o dentro de acordo com os pilares que

inspiram o codex.

N 757 CC q : “pelo contrato de seguro, o

segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse

í ”.

Em que pese a manutenção dos padrões estruturais do Direito Civil

herdado da tradição moderna, o r. diploma legal aponta a necessidade, já presente

no Código de Bevilacqua, da observância dos princípios gerais informativos da

ordem contratual, a exemplo da boa- é . 765: “O

segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do

contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das

çõ ”.

Pondere-se que o esteio civilístico é apenas parcela do que suporta a

temática.

Consoante já ressaltado, ao lado da previsão do Código Civil, deve o direito

securitário ser mirado, concomitante e harmonicamente, também sob as lentes do

sistema nacional de proteção legal ao consumidor.

Tal baldrame bipartido deve-se às características das relações de seguro,

em especial no que tange à possível diferenciação de posicionamento entre as

partes contratantes, e pelas relações econômicas e sociais que encerram. Por tais

razões os contratos de seguro devem possuir ordenação especial.

210

É complexa a legislação específica que se espraia, para além dos diplomas indicados, em decretos-leis,

leis, portarias e medidas provisórias.

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No contexto consumeirista, o contrato de seguro encontra-se imerso em

paradigma distinto daquele presente na codificação civil hodierna que, em que

pese alguns avanços – a exemplo do artigo 765 supra transcrito – em grande

medida, prestou-se a repetir o modelo codificado anterior, fixando-se no dogma da

autonomia da vontade e do pacta sunt servanda.

A esse respeito, Fernando Noronha anota que:

A teoria jurídica construída pela ideologia liberal assentava em alguns dogmas, que hoje estão em crise: a irredutível oposição entre indivíduo e sociedade (o Estado seria um mal necessário cujas atividades era necessário restringir ao mínimo; o princípio moral da autonomia da vontade (a vontade humana seria o elemento essencial na organização do Estado, na assunção de obrigações, etc.); o princípio da liberdade econômica (laissez faire, laissez passer) e, finalmente, a concepção formalista, meramente teórica, da igualdade e da liberdade política (afirmava-se que os homens eram livres e iguais em direitos, sem se curar de saber se a todos eles seriam proporcionadas as condições concretas para exercitarem tais liberdades).211

Neste paradigma contratual renovado, o Código de Defesa do Consumidor

dispõe expressamente sobre as relações securitárias dentre aquelas por ele

abarcadas. Nessa senda, o § 2° do artigo 3º Código de Defesa do Consumidor fixa

que:

Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços.

§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.

§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.

Nota-se a expressa referência às atividades de seguro como forma de

ressaltar a natureza híbrida – civil e consumidor – de seu alcance legal. Acerca do

R zz N q “

especial, no caso preocupado com que os bancos, financeiras e empresas de seguro

conseguissem, de alguma forma, escapar çã CDC”212.

Pelo exposto não restam dúvidas que no segmento de seguros podem-se

entabular relações jurídicas de natureza tipicamente de consumo. Complementa

211

NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais. São Paulo: Saraiva,

1994. p. 94. 212

NUNES, Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor. 4ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 95.

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Claudia Lima Marques ressaltando o caráter consumerista das relações

securitárias:

Resumindo, em todos estes contratos de seguro podemos identificar o fornecedor exigido pelo art. 3º do CDC, e o consumidor. Note-se que o destinatário do prêmio pode ser o contratante com a empresa seguradora (estipulante) ou terceira pessoa, que participará como beneficiária do seguro. Nos dois casos, há um destinatário final do serviço prestado pela empresa seguradora. Como vimos, mesmo no caso do seguro-saúde, em que o serviço é prestado por especialistas contratados pela empresa (auxiliar na execução do serviço ou preposto), há a presença do „ ‟ é q õ . 2º parágrafo único.213

É certa, portanto, da localização do contrato de seguro como modalidade

típica que se assenta, respectiva e concomitantemente, na codificação civil pátria e

no microssistema de defesa do consumidor, que tempera a herança oitocentista do

Direito Civil com sua lógica diferenciada e princípios protetivos.

A vinculação dos contratos de seguro à tutela especial de defesa do

consumidor, busca suavizar, por meio da vertente material do princípio da

isonomia constitucional,214 o desequilíbrio entre as partes pertencentes a um

contrato não paritário.

Destarte, a hermenêutica da compreensão do contrato de seguro deve

guardar proximidade teleológica com a ótica protetiva inerente ao Código de

Defesa do Consumidor, destinado este ao abrigo da parte mais vulnerável no

contexto de determinada relação contratual que, pelo desequilíbrio econômico e

financeiro, não se coloca em pé de igualdade em face do outro fornecedor

contratante.

Esta proteção diferenciada deriva também da natureza de contrato por

adesão da qual o seguro é legítima espécie. Esta modalidade contratual

caracteriza-se por apresentar conteúdo preestabelecido por uma das partes

. R “ ”

aceitar as cláusulas já formuladas, sem possibilidade de discussão sobre situação

contratual previamente definida.

213

MARQUES, Claudia Lima. Contratos do Código de Defesa do Consumidor. 4ª edição. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 2002. p. 141. 214

Nesse trajeto de sistemas interdependentes, impende registrar o sentido dessa travessia: “el cambio más

significativo del tránsito Del Estado de derecho al Estado social de derecho lo constituye la superación de

uma concepción formal por uma concepción material de la igualdad. La realización de la igualdad ya no

queda librada así únicamente a las fuerzas del mercado, sino que depende de la contínua y deliberada

intervención de las autoridades públicas para promover personas, grupos, y sectores desfavorecidos”.

ARANGO, Rodolfo. La jurisdicción social de la tutela. In: BETANCUR, Carlos M. Molina. Corte

Constitucional. Bogotá: Centro Editorial de la Universidad del Rosario, 2003. p. 108.

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O consentimento dado pelo segurado contratante é manifestação de sua

adesão ao conteúdo contratual, restando-lhe somente à opção de acatar o contrato

nas condições que lhe é ofertado pelo fornecedor.

Nesse passo, concernente aos contratos por adesão, lança Maria Helena

Diniz:

Os contratos por adesão constituem uma oposição à idéia de contrato paritário, por inexistir a liberdade de convenção, visto que excluem a possibilidade de qualquer debate e transigência entre as partes, uma vez que um dos contratantes se limita a aceitar as cláusulas e condições previamente redigidas e impressas pelo outro, aderindo a uma situação contratual já definida em todos os seus termos. Esses contratos ficam, portanto, ao arbítrio exclusivo de uma das partes – o policitante –, pois o oblato não pode discutir ou modificar o teor do contrato ou as suas cláusulas. É o que ocorre com: os contratos de seguro; os de venda das grandes sociedades; os de transporte; os de fornecimento de gás, eletricidade, água; os de diversões públicas; os de consórcio; os de financiamento bancário. Eis por que preferimos denominar o contrato de adesão de contrato por adesão, verificando que se constitui pela adesão da vontade de um oblato indeterminado à oferta permanente do proponente ostensivo.215

Categoricamente afirma a referida ilustre autora que a modalidade

“é ã -se com a aceitação

pelo segurado, sem qualquer discussão, das cláusulas impostas ou previamente

ó ”216.

O consentimento indiscutido conferido pelo segurado, marca dos contratos

por adesão, é elemento que consolida o desequilíbrio contratual e a posição de

hipossuficiência que o segurado assume diante da seguradora uma vez que não há

possibilidade ordinária de se alterar o estabelecido.

Pode-se dizer que nos contratos por adesão, ainda que exista a liberdade

“ ” h ã

“ ” q çã

contrato.

Enquanto a parte que formula o contrato exerce plenamente sua

autonomia privada, ao aderente resta sujeitar-se ao disposto previamente na

proposta, sem efetiva possibilidade de modificação das cláusulas que lhe são

submetidas.

Há, portanto, claro desequilíbrio entre as partes contratuais nesses casos,

ainda que ambos sejam entes privados. Diante da questão concernente ao

215

DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 3° volume. 23. Ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p.

89. 216

Ibidem, p. 520.

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desequilíbrio contratual presente nos contratos de adesão, parece possível – e, no

mais das vezes, necessário – regular nos casos concretos, de acordo com os

parâmetros legais constitucionais, o conteúdo e a interpretação das cláusulas

contratuais. Isto porque a existência da liberdade negocial não afasta a atuação

estatal protetiva da ordem constitucional e, em consequência, de um conjunto de

direitos fundamentais.

No mesmo sentido a paradigmática jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal aponta que:

As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados.217

Eis, portanto, em breves linhas, alguns dos alicerces constitutivos da

disciplina jurídica dos contratos de seguro da qual o presente parecer parte.

6. Inteligência e Aplicabilidade do art. 768 do Código Civil: da

necessária vinculação da intencionalidade de agravamento do risco

Consoante o acima exposto, a problemática que abrolha das relações

securitárias deverá ser mirada sempre no cotejo civilístico-consumeirista para

conformação de hermenêutica que melhor atenda aos anseios jurídicos

contemporâneos.

É nesse influxo que o artigo 768 do Código Civil deve ser analisado. O r.

q : “o segurado perderá o direito à garantia se agravar

intencionalmente o risco objeto do contrato‖.

Sublinhe-se que, consoante acima destacado, o risco é a essência do

contrato de seguro de vida, sendo ônus de o segurador assumi-lo, diante do

pagamento do prêmio como acontecimento futuro e incerto, tanto no que se refere

à concreta realização, quanto ao momento em que ocorrerá.

Para uma melhor interpretação do artigo ora em foco, mister sublinhar

que, nos termos legais do artigo 757 também do Código Civil, pela análise do risco

(“riscos predeterminados”)

calcula e cobra o prêmio que considera devido, proporcionalmente.

217

STF, Segunda Turma, RE nº 201.819/RJ, Relator p/ acórdão Ministro Gilmar Mendes, DJ 27.10.2006.

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Em Silvio Rodrigues se explana de forma concisa a maneira de análise do

referido cálculo de proporcionalidades entre o prêmio e os riscos apresentados:

O cálculo das probabilidades é o elemento a que recorre o segurador para fixar, de antemão, o prêmio que será pago pelo segurado. Pelo exame das estatísticas, observando por vários anos e incidência dos sinistros num determinado risco, verifica o analista, com extraordinário grau de precisão, qual será a referida incidência no ano em estudo. É a aplicação da lei dos grandes números. Um exemplo. Ainda que elementar, servirá para esclarecer a hipótese: examinando os casos de homicídios culposos resultantes de atropelamentos automobilísticos, durante alguns anos, e tendo em vista, digamos, dez mil segurados, verifica-se que sua incidência é de determinada razão percentual. Daí deduz o calculista que todas as coisas remanescendo as mesmas, tal razão deve perdurar no ano seguinte. Com base nessa lei estatística, fixa o segurador a taxa de seguro, taxa que será suficiente não só para pagar todas as indenizações, como também para proporcionar um lucro razoável àquele.218

Isto posto, a fixação do valor a ser pago pelo prêmio leva em sua base

constitutiva a equação risco/valor e deve ser estipulada com base em juízos de

probabilidade.

A importância paga leva em consideração o risco médio previsto para

aquele conjunto de variáveis não podendo ser revisto consoante flutuações para

mais ou para menos conforme o desenrolar da vida humana, salvo em hipóteses

quantitativamente expressivas nos termos do artigo 769 do Código Civil. Episódios

singulares, portanto, não devem ser considerados para este fim.

O segurador, em face do prêmio recebido, assume os riscos inerentes à

pessoa ou bens do segurado e, por sua vez, calcula o valor de sua remuneração em

função dos riscos assumidos.

S S R “ é

constitui o seu próprio objeto. (...) No seguro de vida o risco consiste no fato de a

”.219

Conclui-se, portanto, o dever de suportar o risco assumido pelo segurador

em razão do acordado entre as partes contratantes. Neste sentido, poder-se-ia

q “ çã é q

seguro, o contratante transfere à seguradora, e não as circunstâncias de sua

”.220

Orlando Gomes confirma tal pensamento e alude:

A noção de seguro pressupõe a de risco, isto é, o fato de estar o indivíduo exposto à eventualidade de um dano à sua pessoa, ou ao seu patrimônio,

218

RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Volume 3. 28. Ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 331 e 332. 219

Ibidem, p. 336. 220

TJ-PR, 9ª Câmara Cível, AC nº 0485604-0, Relator Des. Sérgio Luiz Patitucci, DJ 11.01.2010.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 92

motivado pelo acaso. Verifica-se quando o dano potencial se converte em dano efetivo. Quando o evento que produz o dano potencial é infeliz, chama-se sinistro. Assim, o incêndio. Tal evento é aleatório, mas o perigo de que se verifique sempre existe. Por isso se diz, com toda procedência, que o contrato de seguro implica transferência de risco, valendo, portanto, ainda que o sinistro não se verifique, como se dá, alias, as mais das vezes.221

A fixação do prêmio e a análise dos riscos devem observar o dever de boa-

fé e veracidade que as partes contratantes guardam entre si. A esse respeito, ensina

Caio Mário:

O segurado e o segurador são obrigados a observar, tanto na fase das tratativas, quanto na conclusão e execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade. A boa-fé objetiva é elemento essencial deste tipo de contrato, em razão de a fixação do prêmio depender de informações prestadas pelo segurado, e em razão de sua aleatoriedade, tendo em vista sempre haver a possibilidade de agravamento da álea do contrato durante a sua execução, por fato que possa ou não ser imputado ao segurado.222

É com esteio no dever de boa-fé que o agravamento do risco pode ser

excludente do dever de pagamento da garantia, em circunstâncias que estejam

preordenadas à obtenção, em favor do beneficiário, do capital a que se obrigou a

seguradora. Isto porque o agravamento intencional do risco, após a celebração do

contrato, acaba por acarretar prejuízos financeiros para com o segurador.

Todavia, impende esclarecer, em primeiro lugar, que consoante a proteção

do consumidor nos contratos de seguro, cabe à seguradora contratada, com base

nas probabilidades, sopesar os riscos e a eles atribuir valor respectivo do prêmio.

Em segundo lugar, importa ressaltar que, com base na equação risco/valor, o

cálculo do prêmio é feito com base em risco médio previsto, sem levar em conta

circunstâncias pontuais para além deste padrão. Haja vista a natureza de adesão

dessa forma contratual, não há, via de regra, possibilidade de discussão material

por parte do contratado.

O dever de boa-fé exposto no artigo 765 do Código Civil impõe que se leve

em consideração, na interpretação do contrato, a situação díspar existente entre as

partes, pois, tratando-se de contrato por adesão, a liberdade contratual é

evidentemente reduzida ou, quiçá, eliminada no que tange ao aderente. Com

ç “ ”

celebração ou não do contrato, ainda que esteja presente, não é suficiente para

221

GOMES, Orlando. Contratos. Atualizadores Antônio Junqueira de Azevedo e Francisco Marino. São

Paulo: Forense, 2008. p. 505. 222

PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. 11. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.

457 e 458.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 93

çã ç “ ”

definir o conteúdo do contrato.

Daí porque a boa-fé objetiva, em sua função integrativa, impõe em

contratos dessa natureza especial dever de proteção ao aderente imposto ao

contratante que formula as cláusulas.

Demais disso, não se pode olvidar que no âmbito dos contratos por adesão,

mormente tratando-se de relação de consumo, nem sempre é atendido em sua

plenitude o dever de informação e clareza imposto às seguradoras.

À z é q ã “agravar

intencionalmente o risco‖ incrustada na disposição supramencionada.

Não é qualquer majoração a que se refere este artigo. Note-se que o

próprio artigo 768 afirma que o agravamento em questão não é de qualquer risco,

q “risco objeto do contrato‖. Ou seja, colhe-se da mens legis o

liame entre majoração do risco e o contrato de seguro.

Pelo exposto resta claro que o próprio legislador vinculou o risco agravado

em tela ao contrato de seguro.

Portanto, a elevação da alea apta a afastar o pagamento do valor previsto

na apólice é aquela relacionada a obtenção desta mesma garantia – ou seja,

obtenção do pagamento relativo ao contrato de seguro.

Destarte, deve haver, para a finalidade prática de aplicação do artigo 768,

um nexo causal223 que oriente o agravamento do risco ou, genericamente, a

conduta do segurado, à percepção do pagamento atinente ao contrato de seguro

pactuado.

Para que a seguradora exonere-se do pagamento, nos termos do r. artigo,

há de haver conduta que importe no voluntário e consciente agravamento do risco

por parte do segurado para receber a quantia indenizatória acordada.

No vocabulário jurídico a intencionalidade a que faz referência o artigo

“ .

É o que se quer de modo consciente, de modo voluntário, sem nenhuma pressão ou

co çã q q ç ”.224

223

Acerca da necessidade da comprovação do “nexo de causalidade” da intenção do segurado com o sinistro

eis, a título exemplificativo, a jurisprudência do TJ/PR nas apelações cíveis nº 0461452-4; 0403914-9 e

0293542-6. 224

DELGADO, José Augusto. Comentários ao Novo Código Civil. Volume IX. Tomo I. Coordenador Sálvio

de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 247.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 94

Isso significa que não basta que a conduta tenha sido praticada

voluntariamente pelo segurado, ainda que com culpa grave: mister é que haja a

intenção preordenada de obtenção do capital (objeto do dever da seguradora) em

favor do beneficiário, e que essa conduta tenha, nessa medida, ensejado

incremento do risco segurado.

Não é qualquer conduta culposa que enseja aumento do risco, e, do mesmo

modo, não é qualquer elevação do risco por conduta, ainda que voluntária, que

permite à seguradora eximir-se do pagamento da indenização ou do capital

constantes da apólice. É o direcionamento do elemento subjetivo da conduta do

segurado à obtenção da indenização ou do capital, para si ou para outrem, que

qualifica a hipótese de afastamento do dever de prestação da seguradora.

Esta interpretação que exige tal liame – agravamento do risco/percepção

da indenização – mostra-se mais adequada porque, em primeiro plano, deriva da

própria literalidade de sentido colacionada no r. dispositivo legal que menciona

“agravar intencionalmente o risco objeto do contrato‖225. Em segundo plano, a

senda hermenêutica aqui esposada é mais apropriada à observância constitucional.

Supor que todas as atitudes praticadas em vida interviriam no contrato de seguro

geraria intromissão indevida à esfera da liberdade individual.

Isto porque a liberdade de agir dos sujeitos, em todas as searas de sua

existência, restaria condicionada pelo pacto econômico securitário celebrado,

configurando, destarte, violação injustificada a direitos fundamentais.

Há ocorrências da vida humana que naturalmente geram insegurança –

tais como viajar de avião, trafegar de automóvel, utilizar-se de transporte

rodoviário, submeter-se a serviços médicos e de odontologia, entre outros – nem

por isso podem ser consideradas como agravadoras de risco para fins de seguro.

Não se pode, a conta de suposto agravamento do risco, tolher indivíduo

contratante de seguro da prática de tais atividades, ainda mais se não se

configuram como habitualidade.

225

“O legislador deu ênfase à intencionalidade do agravamento do risco, de onde se depreende que, na falta

desse elemento de vontade, sobrevive o espírito do artigo 1.453 do Código Civil”. In: CASES, José Maria

Trepat. Comentários ao Código Civil. Vol. VIII. Coord. Álvaro Vilaça de Azevedo. São Paulo: Atlas, 2003.

p. 240.

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Ness “ ã h q

angustiosamente atento a todo perigo, para evitá-lo. Ele contrata, em regra, o

qü ”.226

É q “ é co

causado por vontade própria, isto é, com intenção de se beneficiar do valor da

”.227 S “ q

exima do pagamento do seguro, é necessário que comprove que houve voluntário e

consciente agravamento do risco por parte do segurado e, mais ainda, que esta

”.228

O risco apto a sustentar extinção do dever de prestação do capital por

parte da seguradora é aquele gerado de forma preordenada pelo segurado para o

fim de desencadear o pagamento da prestação devida. Não se caracterizando a

intencionalidade, a partir desse baldrame interpretativo pautado no nexo causal

entre conduta de agravamento de risco e obtenção do pagamento do capital

contratado, o dever da seguradora se mantém hígido e íntegro.

Deve, consequentemente, ser restritiva a interpretação deste artigo que

apenas pode ser levado a efeitos práticos quando da existência de prova cabal que

demonstre vontade preordenada do segurado em dolosamente obter o pagamento

da seguradora.

Eis o sentido que se pode atribuir à culpa grave ou ao dolo do segurado:

não se trata de culpa grave ou de dolo direcionados à conduta em si, mas ao

resultado dessa conduta frente ao contrato celebrado. Vale dizer: não se afere

culpa ou dolo do segurado com base na vinculação do seu elemento subjetivo ao

resultado material do ato por ele praticado, como fato da vida, mas, sim, no liame

entre esse resultado e eventual intenção de impor à seguradora o pagamento do

capital contratado.

O liame entre conduta e resultado, na apreciação da existência ou não de

dolo ou culpa grave, está pautado no resultado jurídico, qual seja, o

desencadeamento do dever de prestação da seguradora. Se na prática da conduta

pelo segurado, seja ela voluntária ou acidental, não há a intenção dirigida ao

resultado jurídico pertinente à obtenção, para si ou para outrem, da indenização

226

BEVILACQUA, Clóvis. Código Civil Comentado. Volume V, p. 215. 227

DELGADO, José Augusto, op. cit., p. 247. 228

TJ/PR, 9ª Câmara Cível, AC nº 651148-6, Relator Des. Francisco Luiz Macedo Junior, julgado em

29.04.2010.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 96

ou do capital a ser pago, não se apresenta hipótese apta a desobrigar a seguradora

do seu dever contratual.

A jurisprudência majoritária aponta a necessidade dessa ligação entre o

agravamento do risco, intencionalmente, e voltado à percepção do valor pago pela

seguradora. Eis o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, naquilo que é

relevante para o caso em tela:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO. OFENSA AO ART. 535 DO CPC. INEXISTÊNCIA. SEGURO. MORTE. SUICÍDIO NÃO PREMEDITADO. ACIDENTE PESSOAL. SÚMULA 83/STJ. INCIDÊNCIA. PRECEDENTES.

I. Os embargos declaratórios, ainda que opostos com a intenção de prequestionamento, devem ater-se às hipóteses de cabimento do art. 535 do CPC.

II. Esta Corte Superior firmou seu entendimento no sentido de que o suicídio não premeditado encontra-se abrangido pelo conceito de acidente pessoal, sendo nula, porque abusiva cláusula excludente da responsabilidade da seguradora, à qual cabe, ademais, o ônus de provar eventual premeditação.

III. Agravo desprovido.229

DIREITO CIVIL. CONTRATO DE SEGURO. ACIDENTE PESSOAL. ESTADO DE EMBRIAGUEZ. FALECIMENTO DO SEGURADO. RESPONSABILIDADE DA SEGURADORA. IMPOSSIBILIDADE DE ELISÃO. AGRAVAMENTO DO RISCO NÃO-COMPROVADO. PROVA DO TEOR ALCÓOLICO E SINISTRO. AUSÊNCIA DE NEXO DE CAUSALIDADE. CLÁUSULA LIBERATÓRIA DA OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR. ARTS. 1.454 E 1.456 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916.

1. A simples relação entre o estado de embriaguez e a queda fatal, como única forma razoável de explicar o evento, não se mostra, por si só, suficiente para elidir a responsabilidade da seguradora, com a consequente exoneração de pagamento da indenização prevista no contrato.

2. A legitimidade de recusa ao pagamento do seguro requer a comprovação de que houve voluntário e consciente agravamento do risco por parte do segurado, revestindo-se seu ato condição determinante na configuração do sinistro, para efeito de dar ensejo à perda da cobertura securitária, porquanto não basta a presença de ajuste contratual prevendo que a embriaguez exclui a cobertura do seguro.

3. Destinando-se o seguro a cobrir os danos advindos de possíveis acidentes, geralmente oriundos de atos dos próprios segurados, nos seus normais e corriqueiros afazeres do dia-a-dia, a prova do teor alcoólico na concentração de sangue não se mostra suficiente para se situar como nexo de causalidade com o dano sofrido, notadamente por não exercer influência o álcool com idêntico grau de intensidade nos indivíduos.

4. A culpa do segurado, para efeito de caracterizar desrespeito ao contrato, com prevalecimento da cláusula liberatória da obrigação de indenizar prevista na apólice, exige a plena demonstração de intencional

229

STJ, Quarta Turma, AgRg no Ag 647568/SC, Relator Ministro Aldir Passarinho Junior, DJ 26.06.2006.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 97

conduta do segurado para agravar o risco objeto do contrato, devendo o juiz, na aplicação do art. 1.454 do Código Civil de 1916, observar critérios de eqüidade, atentando-se para as reais circunstâncias que envolvem o caso (art. 1.456 do mesmo diploma).

5. Recurso especial provido.230

O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Paraná já se pronunciou a

respeito deste assunto no sentido de que:

APELAÇÃO CÍVEL - SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS - PREVISÃO DE INDENIZAÇÃO POR MORTE ACIDENTAL - HIPÓTESE DE COBERTURA CONFIGURADA - EMBRIAGUEZ E PORTE DE ARMA DE FOGO - NEXO DE CAUSALIDADE NÃO COMPROVADO - INCUMBÊNCIA DO RÉU - AGRAVAMENTO DO RISCO - ATO INTENCIONAL - NÃO COMPROVAÇÃO - DISPARO ACIDENTAL - INABILIDADE DO SEGURADO - DEVER DE INDENIZAR RECONHECIDO. 2. CLÁUSULA EXCLUDENTE DO RISCO - PRÁTICA DE ATO ILÍCITO - NULIDADE RECONHECIDA - MATÉRIA ABRANGIDA PELO EFEITO DEVOLUTIVO. APELAÇÃO DESPROVIDA.

1a. A nominação do contrato como sendo de seguro por acidentes pessoais não afasta o dever de indenizar diante da expressa previsão de cobertura de morte acidental.

1b. Constitui ônus da seguradora a comprovação da existência de nexo de causalidade entre o evento e os fatores que seriam determinantes para a sua ocorrência.

1c. O estado de embriaguez e o disparo de arma de fogo, ainda que o porte fosse ilegal, não configuram hipótese de agravamento intencional do risco, especialmente quando o disparo decorre de mera inabilidade do segurado no manuseio do revolver.

2. É nula a cláusula contratual que prevê como excludente de responsabilidade da seguradora, de forma genérica, a prática de ato ilícito, pois coloca o consumidor em posição de desvantagem exagerada, deixando-o ao alvedrio do fornecedor.231

No entendimento sumular do STF, súmula nº 105, a ausência de

premeditação, até mesmo em casos de suposto suicídio, não exclui o dever de

pagamento. Não é outro o entendimento do STJ que pacificou jurisprudência na

súmula nº 61 que o seguro de vida cobre o suicídio não premeditado que deve ser

interpretado como morte acidental232.

A lógica em que se pauta o dever da seguradora em caso de suicídio é a

mesma em que deve se compreender qualquer outra conduta que enseje risco de

morte. Com efeito, se a produção do evento morte pelo próprio segurado, como

230

STJ, Quarta Turma, REsp 780757/SP, Relator Ministro João Otávio de Noronha, DJ 14.12.2009. 231

TJPR, 8ª Câmara Cível, AC 0396020-9, Relator: Juiz Subst. Gil Francisco de Paula Xavier F Guerra, DJ

15.05.2008. 232

Precedentes do STJ nesse sentido: Ag. Inst. nº 1150431/RS; AgRg no RESP nº 1047594/RS; AgReg no

Ag nº 632735/RS; RESP nº 472236/RS et ali.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 98

fato objeto do seguro, não afasta o dever de prestação do capital contratado se não

for preordenado ao percebimento desse capital, com maior razão deve-se entender

que se mantém hígido o dever da seguradora em outras hipóteses que não a prática

voluntária de suicídio.

Mister destacar caso análogo ao narrado na Consulta, relacionado à

intoxicação exógena do segurado, em que a Corte de Justiça do Estado do Paraná

fixou este entendimento sumulado, a saber:

AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO DE SEGURO. MORTE DO SEGURADO. INTOXICAÇÃO EXÓGENA AGUDA POR COCAÍNA (OVERDOSE). EQUIPARAÇÃO A SUICÍDIO INVOLUNTÁRIO E NÃO PREMEDITADO QUE, PARA FINS DE SEGURO, É ABRANGIDO PELO CONCEITO DE ACIDENTE. MÁ-FÉ DO SEGURADO. NÃO COMPROVAÇÃO. 1. A morte por overdose de cocaína equipara-se a suicídio involuntário, ou seja, a vítima não premeditou sua morte, não desejou o resultado e não tinha intenção consciente e racional de matar-se. 2. A jurisprudência é pacífica ao considerar, para fins de seguro, o suicídio involuntário e não premeditado como acidente. (Súmulas n° 105 do STF e n° 61 do STJ)

3. A má-fé do segurado traduz-se na omissão de informações que estava obrigado a prestar. Não tendo sido questionado acerca do uso de drogas, não se pode concluir que agiu de má-fé. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO.233

Por todo exposto, diante da melhor interpretação, não há que se falar na

hipótese de agravamento de risco ligada à conduta involuntária e não planejada –

e, portanto, de boa-fé – do segurado, visto que a essência do contrato de seguros é

a aleatoriedade.

É a intenção de fraudar o seguro que afasta a responsabilidade da

seguradora. Consoante já demonstrado, as Cortes Jurisdicionais têm unissonante,

q q “

configuração de hipótese de exclusão da cobertura securitária, exige-se que o

segurado tenha agido propositada e diretamente de forma a aumentar o risco

contratual (colocando-se deliberadamente frente à morte ou ao risco concreto de

)”.234

A possibilidade de um risco futuro e incerto para com o segurado,

resultando na morte não voluntária nem premeditada deste, autoprovocada ou

não, é o cerne do contrato de seguro transferido à seguradora mediante o

233

TA/PR, 4ª Câmara Cível, Ap. Civ. 0155998-2, Rel. Juiz Fernando Wolf Bodziak, Julg. 11.12.2002. 234

TA-PR, 10ª Câmara Cível, AC 0214875-0, Relator Des. Lauri Caetano da Silva, D.J. 12.09.2003. No

mesmo sentido os precedentes: AC 0426882-0; 0281770-9; 0393482-7; 0311081-8 et ali.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 99

pagamento do prêmio. Exonerá-la do pagamento, nestas hipóteses, gera

descumprimento contratual e desequilíbrio da relação entabulada.

Ainda, cumpre registrar que eventual cláusula de exclusão da cobertura

contida no contrato de seguro per se não possuí o condão de afastar o dever de

pagamento da seguradora haja vista que seus contornos estão juridicamente

vinculados pelo modelo de adesão na contratação e pela assimetria marcante em

sua formação e execução.

Neste influxo, impende registrar o enunciado nº 370, aprovado na 4ª

Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal,235 que afirma que os

riscos avençados, nos contratos de seguro por adesão, devem ser interpretados de

acordo com o princípio da dignidade humana, a função social dos contratos, a boa-

fé objetiva e, em especial consonância, com o artigo 424 do Código Civil que

ç q “ ã ã s cláusulas que estipulem a

ú z ó ”.

É legítimo concluir, à luz do paradigma traçado, que apenas se admite o

não pagamento da indenização, independente da literalidade contratual, nos casos

em que for constatada claramente a premeditação juntamente com a má-fé do

segurado. Tais situações nem sempre são fáceis de serem provadas e trazem a

lume importante questão atinente ao ônus probatório nas relações de consumo,

consoante considerações que seguem.

7. Da prova e do ônus probatório da intencionalidade de agravamento

do risco

Examinada a questão atinente ao sentido da intencionalidade do

agravamento do risco, impende analisar o tema pertinente à prova do que se pode

denominar de agravamento intencional, de modo a aferir se no caso concreto há ou

não demonstração de fato hábil a eximir as seguradoras do pagamento do capital

contratado.

Cabe, porém, preliminarmente, examinar com a devida atenção em que

consiste o thema probandum derivado da distribuição do ônus probatório entre as

partes.

235

A literalidade do enunciado afiança: “Nos contratos de seguro por adesão, os riscos predeterminados

indicados no artigo 757, parte final, devem ser interpretados de acordo com os artigos 421, 422, 424, 759 e

799 do Código Civil e 1º, inc. III da Constituição Federal”.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 100

Com efeito, antes de se analisar a prova a respeito da intencionalidade do

agravamento do risco, impende aferir a quem cabe a produção dessa prova.

Trata-se de investigação que vai além da qualificação desse tema como

objeto de prova, mas, sobretudo, a quem caberia produzir prova sobre a existência

ou inexistência do fato apontado pela seguradora como supostamente apto a

eximi-la do dever de pagamento do valor da apólice.

A matéria atinente à prova do fato jurídico transita entre o direito material

e o direito processual, uma vez que diz respeito ao emprego dos meios legal e

moralmente admissíveis para o convencimento do magistrado sobre afirmações de

fatos formuladas pela parte, as quais, a seu turno, dizem respeito aos fatos que

servem de suporte à formação da relação jurídica.

É do convencimento ou não do magistrado sobre as afirmações de fato

formuladas pela parte que pode defluir a conclusão sobre a quem assistem ou não

direitos ou atribuem-se deveres – dependendo, por evidente, da eficácia da norma

que incide sobre os fatos.

A inserção da questão da prova na seara processual a vincula

inexoravelmente às alegações formuladas pelas partes como causas de pedir ou

defesas pautadas no direito material. Trata-se, aqui, menos de prova do fato

propriamente dito, mas, sim, prova sobre alegações de fato, como sustentam Luiz

Guilherme Marinoni e Sergio Arenhart, sendo que são essas alegações que definem

qual será o thema decidendum.236

Tema relevante que emerge da questão atinente da prova é aquele

pertinente à distribuição, no âmbito do processo, do ônus de sua produção.

Aquele que a quem cabe formular a afirmação de fato como causa de pedir

ou como defesa é aquele que, em regra, tem o ônus de provar a veracidade da

afirmação.

Ônus, como se sabe, não se confunde com obrigação: quem tem o ônus de

provar um fato e não o cumpre não viola dever, mas arca com as conseqüências

negativas do descumprimento: no caso, a impossibilidade de se tomar por

verdadeira uma afirmação de fato realizada pela parte que não se desincumbiu de

seu ônus probatório.

236

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sergio. Curso de Processo Civil: Processo de

Conhecimento. vol. 2. São Paulo: RT, 2008, p. 265.

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A lógica da distribuição desse ônus é, portanto, a mesma que define aquilo

que é matéria de alegação quando da dedução da pretensão e aquilo que integra a

defesa a ser formulada pelo réu.

Tem-se, nessa toada, a incidência do artigo 333 do Código de Processo

Civil, que dispõe:

Art. 333 - O ônus da prova incumbe:

I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;

II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

Emerge da norma em comento que cabe ao autor fazer prova do fato

constitutivo do seu direito, e ao réu fazer prova de fato modificativo ou extintivo

desse mesmo direito. Ou, na lógica antes explicitada, cabe ao autor provar suas

afirmações acerca dos fatos constitutivos do seu direito, e ao réu, as afirmações

sobre fatos modificativos ou desconstitutivos.

Coloca-se em pauta, a partir dessa premissa, a questão concreta pertinente

à Consulta formulada, em que ocorreu o fato morte do segurado com negativa de

pagamento do capital contratado por parte da seguradora, sob a alegação de

agravamento do risco segurado.

Trata-se de investigar se a exceção oposta extrajudicialmente pela

seguradora para negar-se ao pagamento do valor contratado seria ou não bastante

para impor à parte autora em eventual demanda (vale dizer, a quem ocupar a

posição de beneficiário do seguro de vida) um recrudescimento do seu ônus

probatório, por meio da imposição ao pólo ativo do ônus de provar a ausência de

agravamento intencional do risco.

A resposta a essa questão é, à luz da adequada distribuição do onus

probandi, necessariamente negativa. Ou seja: não cabe ao beneficiário de seguro

de vida provar que o segurado não agravou intencionalmente o risco.

A alegação de agravamento intencional é matéria integrante do jus

defensionis atribuído à seguradora, e que pode ser apresentado como exceção de

direito material no âmbito do processo em que se venha a exigir o pagamento do

capital contratado.

É o que explicam Marinoni e Arenhart:

Não há racionalidade em exigir que alguém que afirma um direito deva ser obrigado a se referir a fatos que impedem o seu reconhecimento pelo

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 102

juiz. Isso deve ser feito por aquele que pretende que o direito não seja reconhecido, isto é, pelo réu.237

O fato de a alegação ter sido levada a efeito como fundamento da negativa

de pagamento do seguro, em âmbito extrajudicial, não a desnatura como exceção a

ser apresentada e provada na seara processual. Em outras palavras: a alegação, por

parte da seguradora, de agravamento intencional do risco por parte do segurado,

não impõe ao beneficiário do seguro de vida o ônus de provar o fato negativo da

não ocorrência desse agravamento intencional do risco.

O ônus probatório que se impõe à parte autora de uma demanda que vise

ao recebimento do seguro de vida se restringe à demonstração (a) da existência do

contrato de seguro de vida; (b) da ocorrência do evento segurado; (c) da condição

de beneficiário do seguro de vida.

A articulação lógico-temporal do nascimento do direito e do exercício da

pretensão dele derivada é útil à compreensão do tema probandum integrante do

ônus atribuído à parte autora, a saber:

- Ocorrido o evento segurado (morte) nasce o direito subjetivo de o

beneficiário obter o pagamento do valor contratualmente previsto;

- Requerido o pagamento desse capital contratado, caso venha a ocorrer a

negativa por parte da seguradora, restará caracterizada a violação do direito

subjetivo, com a caracterização da pretensão a ser deduzida em juízo;

- Deduzida em juízo a pretensão, cabe à parte autora fazer prova do fato

constitutivo do seu direito, que consiste no evento segurado mediante contrato,

bem como sua condição de beneficiário;

- Caso a seguradora entenda que o valor contratado não é devido, deve

fazer prova de fato extintivo do direito afirmado e provado pela parte autora,

valendo-se da defesa que entender cabível – e que pode consistir na exceção oposta

extrajudicialmente como justificativa para o não pagamento da indenização.

Tem-se, aqui, conclusão que deflui da correta aplicação do inciso II do

artigo 333 do CPC, a prova da ausência de agravamento intencional do risco não

integra o fato constitutivo do direito do beneficiário do seguro, mas, ao contrário, a

prova da eventual existência do agravamento intencional é precisamente o que se

subsume à dicção da norma processual quando se refere a fato extintivo do direito

do autor.

237

Ibidem, p. 266.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 103

Trata-se de entendimento respaldado pela jurisprudência:

SEGURO DE VIDA. MORTE ACIDENTAL. CARACTERIZAÇÃO. AUSÊNCIA DE AGRAVAMENTO DO RISCO PELO SEGURADO. EMBARGOS DESACOLHIDOS NESSE PONTO. APELAÇÃO NÃO PROVIDA.

É da companhia seguradora o ônus de provar o agravamento do risco pelo segurado, por se constituir o comportamento incorreto do co-contratante fato extintivo do direito à indenização ou ao capital segurado. Apelação não provida.238

APELAÇÃO CÍVEL - EMBARGOS À EXECUÇÃO DE TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL - SEGURO DE VIDA EM GRUPO - ADICIONAL POR MORTE ACIDENTAL - MORTE DO SEGURADO -ACIDENTE DE TRÂNSITO - ALEGAÇÃO DE AGRAVAMENTO DO RISCO, DEVIDO À EMBRIAGUEZ DO SEGURADO - CIRCUNSTÂNCIA QUE, POR SI SÓ, NÃO ENSEJA EXCLUSÃO DA RESPONSABILIDADE DA SEGURADORA, PREVISTA NO CONTRATO - PRECEDENTES DO STJ E DESSA CORTE - NEXO DE CAUSALIDADE ENTRE A EMBRIAGUEZ DO SEGURADO E O ACIDENTE NÃO COMPROVADO - ÔNUS DA PROVA QUE INCUMBIA À SEGURADORA - REFORMA DA SENTENÇA QUE SE IMPÕE RECURSO PROVIDO.239

Reforça esse entendimento a relação entre boa-fé subjetiva e boa-fé

objetiva que se pode identificar no âmbito dos contratos de seguro.

A boa-fé subjetiva deverá presumir-se nos contratos de seguro de vida, até

que consiga se provar o oposto.

Vale dizer: não se presume má-fé do segurado, cabendo à seguradora, se

entender que esta estaria presente, dela fazer a prova cabível.

Para além da boa-fé subjetiva (pertinente ao estado de boa-fé), há, como se

sabe, a boa-fé dever, ou boa-fé princípio, que se impõe a ambos os contratantes

tanto no momento de celebração do contrato, quanto no momento em que ocorrer

– se vier a acontecer – o sinistro. À luz do art. 765, do código civil vigente, temos o

q : “ urado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na

execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto

çõ ”.

Há, aqui, o encontro entre o proceder conforme a boa-fé objetiva e o

estado de boa-fé subjetiva: do dever de agir conforme a boa-fé emergem tanto a

presunção de boa-fé (subjetiva) do segurado como a exigibilidade frente à

seguradora de condutas que atendam aos deveres laterais decorrentes do

princípio.

238

TJPR, 10ª Câmara Cível, AC 0612049-0, Rel. Juiz Albino Jacomel Guerios, DJ 11.03.2010. 239

TJPR, 9ª Câmara Cível, AC 0590916-0, Rel. Des. José Augusto Gomes Aniceto, DJ 10.12.2009.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 104

A repercussão da presunção de boa-fé para a matéria em comento é

evidente: o ônus de provar eventual ausência de boa-fé cabe a quem afirma a má-

fé.

Se para eximir do dever de indenizar a seguradora tem de demonstrar má-

fé por parte do segurado na realização do risco segurado, é evidente que a ela cabe

o ônus probatório respectivo.

Releva atentar para o fato de que, se fosse necessária para fazer prova dos

fatos constitutivos do direito do autor, seria viável a inversão do ônus da prova,

haja vista tratar-se de relação de consumo.

Demonstrada a verossimilhança das alegações ou, alternativamente, a

hipossuficiência do consumidor, cabível é a inversão do onus probandi¸ de modo a

tomarem-se como presumidos os fatos que constituem o direito do autor (com

base na afirmação de fato por ele formulada), impondo-se ao réu (fornecedor) o

ônus de desconstituir a presunção de veracidade dessa afirmação de fato.

Respaldando esse entendimento, Rizzatto Nunes explana a respeito desta

inversão do ônus da prova em face do fornecedor:

A possibilidade de inversão do ônus da prova está prevista no inciso VIII do art. 6º do CDC. Ela é norma adjetiva que se espalha por todas as situações em que, eventualmente, o consumidor tenha que produzir alguma prova. Logo, respondendo à questão: é ao consumidor a quem incumbe a realização da prova do dano, do nexo de causalidade entre o dano e o serviço, com a indicação do responsável pela prestação do serviço. Contudo, o ônus de produzir essa prova pode ser invertido nas hipóteses do inciso VIII do art. 6º. Concluída pelo consumidor essa fase da prova do dano, do nexo de causalidade entre o dano sofrido e o serviço prestado, com a indicação do responsável pela prestação de serviço, deve este último pura e simplesmente pagar o valor da indenização que for apurada, sem praticamente possibilidade de defesa.240

Conforme já se demonstrou, todavia, a correta aplicação da distribuição do

onus probandi levada a efeito pelo Código de Processo Civil já seria bastante, por

si só, para atribuir à seguradora o ônus de provar aquilo que reputa fato

desconstitutivo do direito dos beneficiários do seguro.

Mediante o exame da doutrina e de entendimento jurisprudencial, é,

portanto, evidenciado que em casos de alegação de agravamento de risco, para

afastar o dever de prestação do capital contratado, é ônus da seguradora provar a

má-fé e desvinculação dos princípios basilares norteadores do contrato de seguro

de vida. Cabe a quem tiver interesse provar o contrário, de modo a destruir tal

240

NUNES, Rizzatto, op cit., p. 314.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 105

presunção. Trata-se, conforme exposto, de decorrência direta da distribuição do

ônus da prova advindo do inciso II do artigo 333 do Código de Processo Civil.

Cabe, assim, identificar os critérios nos quais deve se pautar operador do

direito, mormente o magistrado, no intuito de aferir o atendimento ou não desse

ônus probatório por parte do segurado.

A chave para a compreensão do tema reside na constatação de que a recusa

do pagamento da indenização ou do capital importa na frustração do programa

obrigacional derivado do contrato de seguro. Ou seja, o não pagamento da

indenização mesmo diante da ocorrência do sinistro importa a não realização do

telos contratual.

Embora não se afaste a matéria da regra geral atinente à admissibilidade

de qualquer meio de prova moral e legalmente admitido, não se pode olvidar que, a

par da questão atinente à admissibilidade está o tema da apreciação da prova.

Em outras palavras: a prova pode ser admissível, por não ser proibida (ou

por não haver previsão legal de prova específica sobre certo fato ou dada alegação

de fato), mas pode não ser idônea à sua primordial finalidade, que é o

convencimento do magistrado a quem se dirige – matéria que diz respeito,

portanto, à apreciação da prova.

A apreciação da prova, em hipótese de afirmação de fato apto a gerar a

frustração do programa obrigacional, não pode conduzir a uma prevalência prima

facie do não atendimento do telos obrigacional. Isso significa que a prova apta a

demonstrar a eventual ausência do direito à indenização ou do capital securitário

deve ser robusta, cabal, não bastando a mera presença de dados indiciários.

A formação do convencimento, não se pode olvidar, pressupõe a prova

prévia a respeito da ocorrência do sinistro e da condição de beneficiário do seguro,

da qual decorre, em princípio, o direito ao capital contratado. Para afastar esse

direito, necessário se faz que se prove cabalmente o agravamento preordenado e de

má-fé do risco contratado.

Não basta, nessa toada, que o risco tenha sido elevado por conta de

conduta do segurado: é necessário provar que essa conduta estava dirigida à

obtenção do pagamento do capital pactuado. Não se trata essa intenção de algo que

se possa presumir ipso facto de uma conduta que realize o risco segurado, mesmo

que ela seja voluntária (como já se demonstrou mais acima ao se examinar a

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 106

questão atinente ao dever das seguradoras mesmo em hipóteses de suicídio, o que

não é o caso presente).

A exigência de prova cabal é reconhecida pela jurisprudência, como se

colhe do pronunciamento abaixo transcrito:

AÇÃO DE COBRANÇA - SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS - AMPUTAÇÃO DO DEDO POLEGAR ESQUERDO - COBERTURA CONTRATUAL - INDENIZAÇÃO DEVIDA - APELAÇÃO 01 - RELAÇÃO TÍPICA DE CONSUMO - INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA - ALEGAÇÃO DE FRAUDE E AGRAVAMENTO DE RISCO POR PARTE DO AUTOR - AUSÊNCIA DE PROVA CABAL - RECURSO DESPROVIDO - APELAÇÃO 2 - PREVISÃO CONTRATUAL DE INDENIZAÇÃO PELA PERDA 'TOTAL' DO USO DE UMA DAS MÃOS - PRETENSÃO DE COBERTURA PROPORCIONAL AO GRAU DE GRAVIDADE - IMPOSSIBILIDADE - PEDIDO ALTERNATIVO - REALIZAÇÃO DE PERÍCIA - PRECLUSÃO - RECURSO DESPROVIDO - APELAÇÃO 3 - COMPENSAÇÃO DE HONORÁRIOS - POSSIBILIDADE - SÚMULA 304, DO STJ E ART. 21, DO CPC - SENTENÇA MANTIDA - RECURSOS A QUE SE NEGA PROVIMENTO.

1. "A seguradora só pode negar o pagamento da cobertura do seguro com prova inequívoca de que tenha o segurado agido com culpa grave, dolo ou má-fé." (TJPR - Nona Câmara Cível- AC nº 358749-5, Rel. Juiz Sergio Luiz Patitucci, j. 16/11/2006)

2. Não há que se falar em cobertura proporcional ao grau de gravidade, como pretendido, vez que o contrato prevê apenas indenização pela perda 'total' do uso de uma das mãos.

3. "É defeso à parte discutir no curso do processo, as questões já decididas, a cujo respeito se operou a preclusão". (Art. 473 do Código de Processo Civil)

4. Possível a compensação de honorários de sucumbência, a teor da Súmula 304, do STJ, e do art. 21, do CPC.241

Assim, a prova da natureza do elemento subjetivo da conduta do segurado

(ou seja, se havia ou não a intenção de realizar o risco segurado para fins de

obtenção do pagamento do seguro), e de seu nexo causal frente ao resultado

consumado (realização do risco) integram o thema probandum que pertinente ao

ônus atribuído à seguradora.

Em suma: qualquer alegação das seguradoras pertinente à conduta do

segurado que tenha por escopo eximi-las do dever de pagamento do seguro impõe

a elas, inexoravelmente, o ônus de comprovar que a conduta do segurado estava

preordenada à realização do risco segurado, com o manifesto intuito de obtenção

do capital contratado em favor dos beneficiários. Assim, indispensável a

comprovação de que a conduta, seja ela eivada ou não de culpa, foi realizada de

241

TJPR. 8ª C.Cível, AC 0392154-4, Rel. Des. Carvilio da Silveira Filho, DJ 13.11.2008.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 107

má-fé, com a intenção de desencadear o surgimento do dever por parte da

seguradora.

Assentadas essas premissas, cabe, por derradeiro, examinar o material

probatório disponível até o momento em que é exarado este parecer, de modo a

aferir se as afirmações de fato formuladas extrajudicialmente pelas seguradoras

para se negarem ao pagamento do capital contratado encontram ou não respaldo

probatório.

8. Das circunstâncias concretas: ausência de prova que corrobore a

intencionalidade de agravamento do risco

Após a análise pertinente à repercussão do direito probatório sobre o

exame da matéria em comento, cabe investigar se, diante da documentação

apresentada com a Consulta, seria ou não sustentável a negativa das seguradoras

em pagar o capital contratado com base em argumento centrado na conduta do

segurado.

À luz desse escopo, e considerando que a eventual demonstração das

afirmações das seguradoras se qualifica como prova de fato desconstitutivo do

direito ao capital contratado, principio pelo exame da prova dos fatos constitutivos

do direito dos beneficiários dos seguros.

Com efeito, o que existe até o momento é requerimento formulado junto a

seguradoras visando ao pagamento do capital contratado pelo segurado, com

respostas negativas da seguradora que, sem embargo, em momento algum negam

a condição da beneficiária nem, por evidente, o fato (morte, comprovada por laudo

de necropsia e certidão de óbito) que desencadeia o dever de prestar. Tampouco há

controvérsia sobre o pagamento do prêmio, do que decorre da apreciação da

documentação a nós submetida.

O que se observa é que não há controvérsias acerca dos fatos que,

abstraída a exceção formulada extrajudicialmente pelas seguradoras, ensejariam o

direito da beneficiária ao recebimento do capital.

Há, entretanto, como exposto, múltiplas negativas por parte das

seguradoras quanto ao pagamento da prestação contratada, todas elas centradas

na qualificação da conduta do segurado como ilícita e apta a gerar agravamento do

risco.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 108

Ocorre que, como exaustivamente exposto, não basta para eximir a

seguradora de seu dever de prestação, a qualificação da conduta como culposa, ou

mesmo ilícita, nem, tampouco, a demonstração de sua aptidão para gerar

incremento nos riscos. É indispensável a prova cabal do elemento subjetivo da

conduta do agente, direcionada à produção do evento que gera o dever de

pagamento do capital contratado.

Antecedeu esse exame daquilo que integra o ônus probatório da

seguradora a constatação, já afirmada em passagens anteriores deste parecer, de

que a conduta do segurado somente pode ser apta a afastar o dever de prestar da

seguradora se for intencionalmente dirigida à produção do evento que enseja o

pagamento do seguro. Se não houver esse liame causal como marca inafastável da

intencionalidade, pouco importa a qualificação que se dê à conduta, se foi culposa

ou não, lícita ou ilícita, apta ou não a agravar os riscos.

O que é determinante para a exclusão do dever de pagar o capital é a

intenção preordenada e de má-fé de encetar a realização do evento que

desencadeia o dever por parte da seguradora. Se essa intenção preordenada não

estiver provada, o capital deverá ser pago aos beneficiários.

Assim, passando ao exame da prova dos fatos extintivos do direito dos

beneficiários, tem-se óbice preliminar: as alegações das seguradoras se restringem

ao agravamento do risco, sem, todavia, qualificá-lo como agravamento intencional,

ao menos nos termos aqui explicitados. Vale dizer, todas as negativas se limitam a

afirmar que a morte decorreu do uso de substância ilícita o que teria agravado o

risco de morte.

Não há nas negativas, porém, sequer a afirmação de que teria havido a

intenção de gerar a morte para o fim de obter o pagamento do capital contratado

ou, mesmo, o intuito consciente de agravar esse risco de morte.

Vale dizer: eventual prova sobre o que se alega nas negativas de

pagamento, nos termos estritos ali explicitados, não tem o condão de afastar o

dever de indenizar, pela ausência de prova cabal da intenção maliciosa, da

preordenação da conduta do segurado que se tem por necessária ao afastamento

do dever da seguradora.

Para atender ao escopo deste parecer, todavia, é necessário investigar se

haveria na documentação apresentada, mormente o inquérito policial, algum meio

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 109

de prova a respeito de preordenação ou de má-fé por parte do segurado que

pudesse qualificar a intencionalidade nos termos aqui expostos.

O que se observa dos depoimentos tomados pelas autoridades de W, e que

constam do inquérito policial, inexiste qualquer espécie de indício de que o

consumo da substância cujos efeitos adversos conduziram à morte tenha se dado

com o fim de produzir a morte nem, tampouco, para a obtenção de pagamento do

capital contratado.

As narrativas convergem para a utilização episódica da substância que

conduziu à morte, sem estar caracterizado histórico de abuso de drogas –

conforme deflui do laudo de necropsia. Não houve, portanto, violação de dever de

informação por parte do segurado a respeito desse tema.

Ausentes, pois, até mesmo indícios de intencionalidade dirigida seja à

morte seja à obtenção do pagamento do seguro à beneficiária. À luz do inquérito

policial, por conseguinte, não há elementos aptos a sustentar a recusa no

pagamento do capital contratado.

Cabe enfatizar, por oportuno, que tampouco a pluralidade de contratos de

seguro teria qualquer aptidão para, sequer, qualificar-se como indício de

intencionalidade. A existência de múltiplos seguros no caso concreto não tem o

condão de per se comprovar intencionalidade ou preordenação de agravamento do

risco para percepção da garantia.

A O G : “

q z ”.242 Assim, também quanto a esse aspecto

não há qualquer demonstração, nem mesmo indiciária, de intencionalidade

dirigida à obtenção do capital em favor dos beneficiários.

De tudo o que se pôde examinar, tem-se que o dever de pagamento do

capital contratado não é elidido pelo material fático-probatório submetido a este

parecer.

9. Resposta aos quesitos apresentados

(i) À luz dos fatos, como deve ser a aplicação do artigo 768 do Código

Civil ao presente caso?

242

GOMES, Orlando, op. cit., p. 512.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 110

Resposta: A adequada aplicação do dispositivo legal em comento importa afirmar

que não é qualquer majoração do risco que enseja a exclusão do dever de

pagamento pela seguradora, mas apenas aquela voltada à percepção da prestação

do capital contratado. Ainda, apenas pode ser levado a efeitos práticos o presente

dispositivo quando existir prova cabal que demonstre vontade preordenada do

segurado em dolosamente obter o pagamento da seguradora.

(ii) O que configura o “agravamento do risco” elencado no artigo 768

do Código Civil?

Resposta: A fim de configurar o agravamento do risco previsto no artigo 768 do

Código Civil é necessário que o ato de majoração praticado pelo segurado seja fruto

de sua vontade consciente, sem nenhuma coerção exógena, predeterminada à

obtenção da finalidade do pagamento pela seguradora. Imperativo ressaltar que

deve de haver liame que oriente o intencional agravamento do risco à percepção do

pagamento atinente ao contrato de seguro pactuado.

(iii) A quem cabe o ônus probatório da intencionalidade do segurado

dirigida ao agravamento do risco e que prova é apta para atender a

esse ônus?

Resposta: À luz da distribuição do ônus probatório à luz do artigo 333 do Código

de Processo Civil, corroborado pelas regras a respeito do direito probatório nas

relações de consumo, à seguradora cabe produzir essa prova. A prova apta a

comprovar agravamento de risco seria a prova cabal a respeito de conduta do

segurado dirigida especificamente a esse agravamento, não bastando, para tanto,

meros indícios ou circunstâncias indicativas.

(iv) No presente caso, pode-se dizer que há prova que sustente a

alegação do agravamento do risco por parte do Sr. X, consoante

narram as respostas negativas de pagamento das seguradoras?

Resposta: Do rol documental apresentado a este subscritor, composto pelo

inquérito policial pertinente às investigações sobre a morte de X e pelas negativas

de pagamento do capital pelas seguradoras contratadas, depreende-se não haver

meio de prova hábil a sustentar a posição das seguradoras em negar-se ao

pagamento do valor contratado, haja vista inexistir prova cabal de agravamento

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 111

intencional nem, tampouco, indícios de que tal intencionalidade estaria presente,

nos termos expostos neste parecer.

É o Parecer.

Professor Doutor Luiz Edson Fachin, Titular da Faculdade de Direito da UFPR.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 112

O CONTRATO EPC E O PRINCÍPIO DO EQUILÍBRIO ECONÔMICO

Luiz Gastão Paes de Barros Leães

PARECER

I. OS FATOS

1/1. A Consulente - E (“E”) - é uma empresa brasileira, cujas sócias fazem

parte do grupo E, com atuação em diversos países, nas áreas de energia,

engenharia, transporte, logística e serviços. Por sua vez, A (“A”) - a outra

protagonista da controvérsia objeto do presente parecer - é uma sociedade de

propósito específico (SPE), criada com a finalidade de construir e explorar uma

usina termoelétrica em Camaçari, Bahia, contando inicialmente, com os seguintes

: “C S/A” 50% çõ ; “P S/A”P 30%; “G L .” m

20%.

1/2. E 2011 A N E E é (“ANEEL”)

expediu Portaria, autorizando a A a estabelecer-se como produtora independente

de energia elétrica, prevendo um cronograma de implantação que permitiria que

as obras da usina s “até 7 de janeiro de 2012”, e que

çã “em janeiro de 2013”.

1/3. Antes dessa Portaria, já em janeiro de 2011, as empresas C e P se

í “chamada de propostas”

cotação de preços, incluindo o fornecimento de moto-geradores e transformadores

de potência, com vista à construção, não de uma, mas de duas usinas

termoelétricas, tomando por base o detalhamento técnico preparado pela empresa

XY Projetos. Naquela oportunidade, o termo de referência previa que os motores

seriam fornecidos pelas empresas M&M Diesel ou W&T, razão pela qual tais

empresas assumiram a iniciativa das negociações, alinhando-se com a TT

E h S/A (“TT”) E para atenderem ao restante dos serviços.

1/4. Depois de meses de negociação, E e W&T apresentaram uma proposta

conjunta, que seria a seguir alterada, em julho de 2011, com o fim de rever os

prazos de entrega dos motores, incluindo a tancagem de combustível. Nessa

ocasião, E foi informada de que a proposta da TT teria triunfado. Tal informação

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 113

seria, porém, logo no mês seguinte, retificada, quando a E foi instada pela P a

apresentar nova proposta, desta feita com motores H, que seriam adquiridos

diretamente pela A da H Co. Ltd. Convite idêntico foi estendido à TT.

1/5. Também nesse caso a proposta apresentada pela TT, com a inclusão

dos motogeradores HH e transformadores de potência DEU, estava a indicar que,

de novo, se sagraria vencedora do certame, visto que o preço ofertado para a

construção da referida usina, excluído o fornecimento dos motores, girava em

torno de R$ 73 milhões, abaixo da cifra proposta pela E (R$ 75 milhões). Nessa

altura, a TT começou a apresentar sinais de debilidade financeira que a levaria,

posteriormente, a requerer recuperação judicial. Diante desse quadro, C e P

convocaram E, quando lhe transmitiram o interesse em consagrá-la vencedora do

certame licitatório, desde que procurasse se avizinhar do patamar estabelecido na

proposta da TT.

1/6. Na realidade, E já fora anteriormente contratada para implantar duas

outras usinas na região nordeste, e, agora, a P se mostrava categórica em sua

convocação para a assunção das obras de Camaçari, sinalizando que eventual

recusa por parte da E em assumir os serviços, em termos aproximados aos da

proposta da TT, poderia ser interpretada como falta de cooperação em momento

delicado, eis que a construção de Camaçari, segundo a portaria da ANEEL, deveria

iniciar-se em 7 de janeiro de 2012. Ademais, considerando o peso da P em termos

de Brasil, a reticência poderia colocar em risco a continuidade dos serviços que a E

vinha prestando, e almejava continuar a prestar, àquela empresa.

1/7. N çã P “fato necessário”

que compelia a E à aceitação do negócio, tanto mais que entre elas tinha havido,

paralelamente, consenso no sentido de que – dada a premência do tempo para

reformulação do orçamento – ambas as partes se dispunham a implementar os

ajustes que se revelassem indispensáveis para a execução do contratado. Nesse

contexto, os entendimentos travados com a P foram reduzidos a um documento

“termo de compromisso” q é q

fossem observados os mesmos prazos e condições pactuados anteriormente com a

TT, foi previsto um limite de preço da obra superior ao oferecido por esta empresa,

no valor de R$ 75.000.000,00.

1/8. Em 2 de outubro de 2011, a A “formalizou” a licitação privada e

promoveu a publicação de edital de chamada de propostas para construção da

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 114

Usina Termoelétrica, cerca de pouco mais de dois meses antes da data prevista

para o início das obras, em 7 de janeiro de 2012. Em observância às condições do

termo de compromisso, E apresentou a sua proposta formal, que inicialmente não

incluía serviços de terraplanagem, mas que, ao depois, em nova redação, os

incluiria, com acréscimo do valor do preço combinado (de R$ 75 milhões para R$

80.000.000,00). No final de outubro, as partes deram início às tratativas finais

para a contratação, que se prolongaram até o segundo mês de 2012 (quatro meses,

portanto). Nessa altura, dado o exíguo prazo para a entrega da obra, a A se

antecipou, iniciando em dezembro de 2011 a disponibilização de recursos

financeiros (cerca de 20% do valor do Contrato, em duas parcelas, segundo consta

da cláusula 6.2(1) do Contrato) para que a E pudesse de imediato se condicionar

para dar início às obras, antes mesmo da assinatura do instrumento contratual.

1/9. S 15 2012 “Contrato de

Engenharia, Suprimentos e Construção” çã

ç (“turn key”) R$

80.000.000,00, de todos os serviços que se fizessem necessários para que a A

recebesse a usina na data aprazada, ou seja, em 30 de novembro de 2012,

devidamente testada, comissionada e apta a iniciar a sua operação comercial

(“Contrato”).

1/10. Mal firmado o Contrato, logo a E se deu conta de que havia sido

z q “base do

negócio” q çã A, viu-se envolvida com a

introdução de alteração no arranjo geral conceitual do empreendimento,

para acolher a adequação do lay-out às estruturas que comporiam a futura usina,

como postulado pela A. Não bastasse isso, esta ainda determinou a modificação

das condições do acesso principal de caminhões e a construção de ligação do pólo-

plástico ao site da futura usina, com acréscimo de serviços de terraplenagem,

drenagem e pavimentação. Ora, como é curial, a alteração no lay-out da usina,

com tais ampliações, implicava modificação substancial de todo o

empreendimento, comprometendo, por consequência, a base sobre a qual fora o

negócio pactuado. Com efeito, a alteração no design da planta resultou em

diferentes platôs, com declives acentuados, impactando tanto o tempo para a

execução das obras de formação dos taludes, quanto os custos das mesmas,

majorados com o significativo acréscimo de serviços e materiais.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 115

1/11. A esses fatos, somou-se o atraso por mais de um mês por parte da A

na obtenção das licenças ambientais, municipais e estaduais, necessárias aos

serviços de terraplenagem, pois, para que as obras se iniciassem em 7 de janeiro de

2012, fazia-se mister que tais licenças fossem obtidas até essa data. Foi necessário,

ainda, implementar soluções técnicas para contenção de deslizamentos e erosões

dos taludes, sem falar que se mostrou imperiosa a aquisição de terra mais

consistente para essas obras, proveniente de regiões afastadas.

1/12. Definidas tais alterações no arranjo geral conceitual, a E foi ainda

surpreendida, no período de março a julho de 2012, com chuvas torrenciais

imprevisíveis, provocando grande incidência de deslizamentos durante a

movimentação de terra. Nessa altura, as partes decidiram contratar a SSSS

G (“SS”) h çã z

empresa a revisão de todos os trabalhos efetuados e implantando nova forma de

medição dos serviços; alteração esta que, além de retardar também a obra, não foi

formalizada em Aditivo. Isso não bastasse, verificou-se, nesse período, aumento

abrupto e imprevisível nos preços dos insumos (aço, concreto, cobre),

comp “equilíbrio econômico-financeiro do

Contrato”. T q í çõ

“excessivamente oneroso” E. Acresce ainda o fato de que a Hyundai

igualmente atrasou na entrega dos equipamentos, afetando o curso das obras.

1/13. A vista disso, a E, em 27 de agosto de 2012, cinco meses da

assinatura do Contrato, encaminhou à A a Proposta Técnica nº 000.001, com o

objetivo de promover a adequação do preço contratual, em valores calculados até

aquele mês de referência. Após a apresentação de mais duas versões da referida

proposta, a A sinalizou que concordaria em parte com os aspectos financeiros, os

quais deveriam ser ajustados. Em função disso e à luz do agravamento das

circunstâncias, E formulou a a Proposta Técnica nº 000.003, em 3 de outubro de

2012, a qual não apenas reiterou os termos da proposta anterior, mas também

ressaltou as medidas necessárias para se buscar a recuperação dos atrasos naquela

altura.

1/14. Em reunião realizada em 9 de outubro de 2012, A acatou apenas

parcialmente o pleito financeiro de E, o que ficou registrado em ata que passou a

“aditivo contratual” é q é

preço do Contrato da ordem de R$ 25.000,000,00, majorando o valor contratado

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 116

R$ 80.000.000 00 R$ 105.000.000 00 (“Aditivo”). O

em reunião da qual participou apenas um representante da E e, na ocasião, fez-se

constar que dependeria da aprovação de E até 13 de outubro de 2012. Esse fato

importava, inegavelmente, por si só, no reconhecimento cabal por parte da A de

q í h “excessivamente

onerosa” E, justificando- “correção” q

infelizmente, não restou de todo materializada com essa majoração, como logo se

verificaria.

1/15. Advirta-se que, no segundo semestre de 2012, quadra em que esses

eventos se desenrolavam, o aumento dos insumos persistia em níveis ainda mais

desnorteantes, em razão da crise econômica que assolava a economia mundial. Em

meio a essa conjuntura, eis que A solicitou a alteração da capacidade dos tanques

de combustível de 900m3 para 1.100m3, o que atrasaria ainda mais a construção

da usina, demandando acréscimo de mão-de-obra para cumprimento do prazo do

Contrato a fim de atender a essa nova modificação de escopo. Durante essa etapa,

entre outubro e novembro de 2012, a E se viu também na contingência de

enfrentar movimentos grevistas, que, se não constituem, em si, fatos imprevisíveis

numa construção, assumiram, na ocasião, magnitude que fugia da normalidade.

Todos esses eventos foram acompanhados pela A através da presença do

“engenheiro do proprietário”.

1/16. Em dezembro de 2012, A e E acordaram que, não obstante os

percalços, o empreendimento teria condições de ser concluído, no cenário mais

pessimista, até março de 2013, já que mais de 80% das obras estava concluído,

sendo necessário, no entanto, reunir mais recursos adicionais para fazer frente à

contratação de pessoal para recuperar os atrasos - a que, de resto, a E, como

apontado, não dera causa. Eis que, nesse momento, foi a E surpreendida com a

mudança de comportamento da A, a qual manifestou a decisão de abandonar a

idéia do novo cronograma e iniciar tratativas no sentido de realizar um distrato

amigável, visando a assumir, ela própria, a responsabilidade pela conclusão da

obra por sua conta e risco. Em reunião de 12 de dezembro de 2012, ficou acertado

que a partir dessa data a A assumiria os serviços, cabendo à E colaborar no

período de transição.

1/17. Não obstante esse acerto, combinado em 15 de dezembro de 2012,

em meio a uma reunião em que se discutia dita transição, a A enviou notificação à

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 117

E q “resolvido” o Contrato, por conta de alegado

inadimplemento (atrasos) por parte da empreiteira de suas obrigações contratuais,

ao mesmo tempo em que notificava os diversos fornecedores indicados pela E,

informando que havia rescindido o Contrato e que estava assumindo a obra. Ao

mesmo tempo em que participava a muitos fornecedores que não tinha interesse

em continuar contando com a prestação de seus serviços. Numa conduta

contraditória em relação às tratativas que vinha desenvolvendo, desconsiderava

o fato de que, em dezembro de 2012, a E já havia executado por volta de 80% da

totalidade do Contrato, como o confirmariam as planilhas de medição da SS,

contratada por ambas as partes. Ademais, em vistoria realizada no local da obra, a

pouco mais de um mês dessa notificação, em 30 de janeiro de 2013, a ANEEL

consignaria que a A h q “o empreendimento encontrava-se

com avanço de aproximadamente 86%”.

1/18. Oito meses depois, em 14 setembro de 2013, a A, em lugar de quitar

os débitos ainda pendentes, enviou notificação à E, reclamando (i) multa diária

por atrasos nos marcos parciais e (ii) multa por atraso na entrada da operação da

usina, e (iii) devolução de valores que teriam sido pagos em excesso e pagamento

de custos que defluiriam da retomada da obra, incorridos até agosto de 2013.

Nesse sentido, fez cobrança no valor de R$ 98.642.242,95, sendo que R$

80.643.568,99 a título de custos despendidos com a obra remanescente realizada

após a retirada da E - cifra que excedia o preço original pactuado para a obra

inteira, e só por si, evidenciaria que o Contrato, todo ele, estaria econômica e

financeiramente desequilibrado. Em 24 de setembro de 2013, a E respondeu,

apresentando contra-notificação.

1/19. Diante desse quadro, E resolveu submeter a controvérsia à

arbitragem, para que fosse declarada a improcedência das pretensões da A,

arguindo que a resilição do Contrato não decorreria de qualquer conduta a ela

imputável, como alegado, mas sim de decisão unilateral da A, que, sobre

encontrar-se inadimplente em suas obrigações contratuais, enriqueceu-se

indevidamente com o desequilíbrio econômico-financeiro do referido Contrato.

Nesse sentido, fazia-se necessária a revisão do mesmo, restabelecendo esse

equilíbrio, comprometido pela ocorrência de fatos imprevisíveis e de força maior,

reconhecidos pela A e dos quais resultaria um crédito a favor da E.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 118

1/20. Nesse sentido, requereu a E que o tribunal arbitral (i) declarasse a

ilicitude da resolução unilateral do Contrato por parte da A, à míngua de

inadimplemento a ela imputável, assim como das aplicações das penalidades por

atrasos de marcos contratuais suscitadas pela A, em manifesta contrariedade a

comportamento anterior; (ii) condenasse a A ao pagamento de reparação por

danos morais no valor mínimo de R$ 1 milhão, em virtude do aviltamento de sua

imagem perante subcontratados e fornecedores; (iii) condenasse a A ao

pagamento de indenização por danos materiais, decorrentes da desmobilização

antecipada da obra, quando já se avizinhava a sua conclusão; (iv) condenasse a A

ao pagamento de R$ 10.477.189,00, relativos a serviços prestados e ainda não

quitados à E, gerando enriquecimento sem causa em favor da primeira ; (v)

recompusesse o equilíbrio econômico-financeiro do Contrato, condenando a A a

reparar a E prejuízos por esta sofridos em montante não inferior a R$

21.386.071,35, que derivaria da diferença entre os custos orçados e os valores

realmente despendidos na execução do Contrato; e (vi) condenasse a A a ressarcir

custas, despesas processuais e honorários incorridos processo arbitral.

1/21. Em sua resposta, a A salientou que a discussão do procedimento

prescindiria da qualificação dos argumentos fáticos e jurídicos aduzidos pela E, na

medida em que o cerne da controvérsia se concentraria, fundamentalmente, na

natureza do Contrato EPC, de sorte que o exame das razões deduzidas para

justificar o aumento de preço e o atraso da usina seria até dispensável. De qualquer

forma, aduzia que tais razões não procederiam, visto que as alegadas alterações no

objeto original do Contrato foram expressamente aceitas pela E por meio do

Aditivo, sem que tivesse havido qualquer mudança no que toca ao prazo de entrega

da usina, livremente pactuado.

1/22. Abordando, no entanto, as questões fáticas e jurídicas alinhadas pela

E para esclarecer as circunstâncias em que se deu a celebração do Contrato e

explicar os atrasos ocorridos na conclusão da obra, a A arguiu, inicialmente, que a

contratação da E para a realização da obra da usina não se deu em substituição à

da TT, como alega a E, visto que não teria havido qualquer prévia contratação

dessa empresa, mas meras tratativas comerciais ocorridas anteriormente ao

certame em que a E se sagrou vencedora. Por outro lado, o termo de compromisso

que E enviou por e-mail à A, e no qual não haveria a aposição das assinaturas dos

diretores desta última, é de 15.8.2011, data anterior, portanto, e não posterior, ao

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 119

processo de concorrência, no qual a E se sagraria vencedora, visto que este só teria

sido formalizado pela diretoria da A em reunião de 24.10.2011, e, dessa forma, não

desfrutaria de qualquer caráter vinculante.

1/23. Rejeita, a seguir, a alegação da E de que teria sido induzida em erro

pela A a respeito das condições básicas do negócio, já que não só foram

promovidos sucessivos encontros prévios entre todos os proponentes do certame e

a H, fornecedora dos equipamentos, como também as necessidades para a

implantação da usina teriam sido desenhadas em conjunto pela fornecedora e pela

empreiteira, cabendo sempre aos proponentes, supostos experts no assunto,

detalhar o escopo do empreendimento, motivo pelo qual não lhes assistiria o

direito de suscitar tais questões. De resto, eventuais alterações no projeto básico

são normais, visto que, no referido plano, apenas se estabelecem as linhas cardeais

do empreendimento. Mas mesmo que assim não fosse, as alterações do lay-out

foram previstas no Aditivo e acordadas pelas partes contratantes, (a) com

robusta majoração do preço, e (b) sem que se admitisse outra data

para a entrega da usina.

1/24. Ademais, não concorda a A com a alegação de que os serviços de

terraplenagem da nova área de tanques, objeto da negociação dos termos do

Aditivo, tenham comprometido o prazo pactuado para a entrega da usina, ou que

tenha havido demora na obtenção das licenças ambientais, até porque a obtenção

dessas licenças era, pelo Contrato, da responsabilidade da empreiteira. Também

não concorda com a invocação da ocorrência de chuvas a índices pluviométricos

extraordinários e do aumento abrupto nos preços de insumos, encarados como

casos de força maior que justificariam atrasos e alterações no preço, pois que ainda

que tivessem ocorrido tais eventos, houve expressa exclusão dos mesmos em

disposições contratuais na caracterização do fortuito (cláusula 6.4), sendo certo

que a A teria admitido a inclusão desses fatores na alteração de preço operada no

A 9 2012 “mera liberalidade”, mantendo-se, porém,

inalterado o prazo de conclusão da obra.

1/25. Não aceita, também, a alegação de que o atraso na entrega de

equipamentos pela H e a alteração na capacidade dos tanques de combustíveis

tenham provocado prejuízos à E, já que, de um lado, a entrega de tais

equipamentos teve de ser postergada em razão de atrasos imputáveis à própria E

que não providenciara, a tempo e hora, espaço onde depositá-los, e, de outro, a

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 120

alteração da capacidade dos tanques de combustível fora contemplada no Aditivo,

mantendo-se sempre nesse instrumento, repita-se, inalterado o prazo de entrega

da usina. Quanto aos movimentos grevistas, seria sabido que não consubstanciam

fatos imprevisíveis.

1/26. Conclui, por fim, asseverando que, em momento algum, acordou

com qualquer novo cronograma em que se tenha previsto a entrega da usina até

março de 2013, registrando apenas, nas reuniões realizadas em dezembro de 2012,

que, com base no que se via nos canteiros, constatara que não seria possível à E

entregar a usina no tempo estipulado, não concebendo outra solução senão a

rescisão do Contrato, avocando para si a responsabilidade pelo término da obra.

Rejeita também a alegação de que, quando da rescisão do Contrato, as obras

encontravam-se 86% concluídas, asseverando que o relatório da SS, invocada pela

E para chegar a esse percentual, apresenta graves inconsistências, sendo que o

estágio dos avanços nos marcos contratuais, por ela apontado, não guarda sequer

proporcionalidade com a tabela do mesmo relatório, nem levam em consideração

critérios de pesos adequados.

1/27. Nesse sentido, a A impugna todas as afirmações, pedidos e valores

que compõem as pretensões deduzidas pela E na notificação de instituição de

arbitragem, acima reproduzidas (item 1/20, supra), assim como aduz, em

reconvenção, os seguintes pleitos contrapostos: (i) requer a devolução dos valores

pagos à E em razão de não ter sido concluída a usina conforme obrigada, nas datas

pactuadas, tendo esta, no entanto, recebido a totalidade do valor global

originalmente pactuado; (ii) o ressarcimento do quanto foi necessário empregar

para a conclusão dos trabalhos, por força do inadimplemento da E, por rescisão

por justa causa do Contrato; (iii) a declaração do limite máximo de aplicação da

penalidade por atraso correspondente ao percentual de 20% sobre o valor global

do Contrato, correspondendo ao valor original, mais aditivo; (iv) condenação da E

na indenização pelos danos morais e materiais suportados pela A; (v) condenação

da E nos ônus da sucumbência.

1/28. Levando em conta todos os fatos acima sumariados, que nos foram

apresentados pela Consulente e que defluem também de documentação que nos

foram presentes, fomos honrados com uma longa série de indagações que serão

respondidas à medida que forem sendo aqui reproduzidas.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 121

II. OS PRINCÍPIOS

2/1. O cerne da controvérsia reside, segundo a A, na natureza do Contrato

firmado entre E e A. Trata-se de um ajuste complexo do tipo contratual conhecido

ô EPC (“Engineering, Procurement and

Construction Contract”)

a preço certo e com data determinada de conclusão de uma usina térmica, chave-

na- ã (“turn-key”) çõ (C

2).243 Como toda empreitada, trata-se de um contrato comutativo, quer dizer,

um contrato em que as prestações das partes são de antemão conhecidas e

guardam entre si uma relativa equivalência de valores. Nele não se exige igualdade

rigorosa entre as prestações recíprocas, mas é imperioso que aproximadamente se

correspondam. Por outro lado, como ambas as partes, desde o início, sabem a

tarefa que será desenvolvida por uma e quanto a outra irá receber por ela,

q “salvo estipulação em contrário” ro, que se

incumbir de executar uma obra, segundo plano aceito por quem a encomendou,

“não” “acréscimo do preço” (CC/2002 . 619). E

princípio, portanto, a empreitada em questão era sem reajustamento.

2/2. Isso não quer dizer que na empreitada, seja qual for o tipo, não haja

sempre uma margem de risco para os contratantes. Projetando os seus efeitos para

o futuro, todas as relações contratuais duradouras ou sucessivas contêm uma

“álea” í çã in abstracto, pois todo contrato comporta

sempre riscos para as partes, muitos deles exclusivos da operação concretamente

. C M B “Il contratto stesso è um rischio”

posto que o risco é elemento inerente à atividade econômica.244 Mas como é

co “álea normal do contrato” - conceito

introduzido pelo art. 1467 [2] do CC/italiano - é prioritariamente determinada

pelo contrato in concreto, fornecendo o tipo negocial apenas elementos

circunstanciais para efeito de sua configuração.245

243

José Emílio Nunes Pinto, “O Contrato de EPC para construção de grandes obras de engenharia e o novo

Código Civil”, Revista Jus Vigilantibus, acesso segunda feira, 30 de dezembro de 2002; cf. modelo de

Contrato EPC proposto pela FIDIC (International Federation of Consulting Engineers),

http://www.fidic.com. 244

Mario Bessone, Adempimento e rischio contrattuale, Milão, Giuffrè, 1975, p. 4. 245

Agostino Gambino, “Eccessiva onerosità della prestazione e superamento dell‟alea normale del

contratto”in Rivista del diritto commerciale, n. 58, p. 448, 1960.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 122

2/3. Nos contratos de empreitada, mormente naqueles contratos a preço

global e fixo, em que há a aceitação de um plano prévio por parte do dono da obra,

o risco contratual se acentua e se reflete no preço contratual, que, regra geral, é

pactuado sem possibilidade de revisão (CC/2002, art. 619). A formação de um

contrato de EPC deve, portanto, procurar antever tanto os custos quantos os riscos

a que empreitada, normalmente, está sujeita e, consequentemente, otimizar a

alocação de ambos no processo de definição consensual do preço. Mas é curial que

essa regra comporta exceções, relativos aos riscos que extravasam a álea contratual

normal, que ocorrem quando dizem respeito a eventos (i) que sejam

comprovadamente alheios à vontade do empreiteiro, de acordo com os princípios

de força maior e caso fortuito (CC/2002, artigos 625, I, c/c artigo 393, § único), ou

(ii) que se enquadrem nas hipóteses de imprevisibilidade e onerosidade excessiva,

elevadas a categorias legais pelos artigos 317 e 478 do CC/2002, inclusive na sua

versão aplicada à empreitada (CC/2002, artigo 625, II).

2/4. Em escólio ao artigo 625, II, do CC/2002, que admite que o

ç “suspenda a obra” q

decorrer dos serviços, se manifestem dificuldades imprevisíveis na execução,

Fátima Nancy Andrighi, Sidnei Beneti e Vera Andrighi observam que essa regra é

expressão do princípio do equilíbrio econômico que deve prevalecer na

maior parte dos contratos.246 E Ruy Rosado de Aguiar Júnior acrescenta em

comentário ao mesmo artigo que o dispositivo em referência permite que o

empreiteiro, nas aludidas circunstâncias, suste a obra e possa ir a juízo pleitear a

resolução do contrato, na via autorizada pelo artigo 478 do CC/2002. Ou a revisão

das cláusulas contratuais, já que quem pode o mais, pode o menos.247

2/5. Em suma, seja qual for o tipo de empreitada, com ou sem

reajustamento, é pressuposto que, no curso da execução da obra, deverá ser

mantido o equilibro econômico entre as prestações recíprocas, sem o qual o

contrato, de matriz comutativa, se desfigura, convertendo-se em negócio

aleatório, com incerteza em relação à verdadeira extensão das prestações. Pois é

no contrato aleatório que a contraprestação tem a chance de ser desproporcional

ao valor da prestação, seja em relação às duas partes, seja apenas a uma delas

(CC/2002, artigo 458 usque 461). Assim, na empreitada sem reajustamento,

246

Fátima Nancy Andrighi e outros, Comentários ao novo Código Civil, Forense, 2008, v. IX, p. 347. 247

Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Comentários ao novo Código Civil, Forense, 2011, v. VI, p. 324.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 123

“acréscimo no preço” o uma álea

ilimitada, não fosse sua submissão ao princípio geral do equilíbrio econômico do

contrato, que constitui um dos dogmas nucleares do direito contratual atual.

2/6. N “justo”

que, sendo querido pelas partes, resultaria de uma livre apreciação dos respectivos

interesses pelos próprios contratantes, de onde lícito seria presumir o equilíbrio

das prestações. Sendo justo o contrato e presumido o equilíbrio, seguia-se que aos

contratantes deveria ser reconhecida ampla autonomia de vontade, limitada tão-

somente por considerações de ordem pública e pelos bons costumes.

2/7. E “autonomia de vontade” -se, então, os

três princípios informativos do direito contratual: (i) o princípi “liberdade

de contratar” -se como tal a aptidão dos contratantes de auto-

regulamentar os seus interesses, estipulando o que lhes aprouver, dentro dos

: ( ) í “intangibilidade do conteúdo” q

contrato, uma vez firmado, adquire força de lei entre as partes, só podendo ser

alterado em sua substância por novo encontro de vontades: e (iii) o princípio da

“relatividade do contrato” q z

exclusivamente entre as partes, não aproveitando, nem prejudicando terceiros.

2/8. A esses três princípios tradicionais, que gravitam em torno do

conceito de autonomia de vontade, foram acrescentados três outros, que, sem os

eliminarem, vieram amoldá-los às novas demandas. Operou-se uma mudança de

z ( ) í “função social” ( )

í “boa-fé objetiva” ( ) í “equilibro econômico”

contrato. O Código Civil de 2002 deu guarida, explícita ou implicitamente, a esses

novos princípios. Explicitamente, no caso da função social do contrato, através do

artigo 421, e da boa-fé objetiva, através do artigo 422, combinado com os artigos

113 e 187. No que tange ao princípio do equilíbrio econômico do contrato, embora

não tenha sido exteriorizado em um dispositivo individualizado, manifestou-se

“estado de perigo” ( . 156)

“lesão” ( . 157) “onerosidade excessiva” ( . 478 usq. 480) e do

“enriquecimento sem causa” ( . 884 usq. 886).248

248

Cf. Antônio Junqueira de Azevedo, “Princípios do novo Direito Contratual e Desregulamento do

Mercado”, in Revista dos Tribunais 750/115.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 124

2/9. A autonomia de vontade já tinha, na teoria contratual clássica, como

ó “paridade dos contratantes” q ó h

em liberdade de contratar e imprimir força obrigatória ao ajuste quando uma das

partes não se visse na contingência de simplesmente se submeter à vontade

exclusiva da outra, pois, caso contrário, a sua autonomia de vontade seria apenas

formal. Para que o contrato fosse livremente concluído e executado, força seria que

o mesmo resultasse de um encontro de vontades, de partes que se mantivessem

dentro de certo nível de paridade, ou seja, providas de iguais poderes negociais.

E é q q “princípio do equilíbrio econômico do contrato”.

Esse princípio visa a impedir que as prestações contratuais expressem, seja na sua

conclusão seja na sua execução, um desequilíbrio real e injustificável entre as

vantagens obtidas por um e por outro dos contraentes. Ou, em outras palavras, que

“sinalagma contratual” l funcional.

2/10. Ora, como se depreende dos fatos narrados, é evidentemente que

não se observou, seja na celebração do Contrato, seja na sua execução, esse

equilíbrio funcional entre A e E, a que se alude. Primeiramente, cumpre recordar

que a celebração do Contrato entre a A e E foi precedida pela tentativa de

contratação de outra empresa, a TT, sendo certo que o processo de substituição

“real” E, consumiu meses, atropelado ainda pela mudança dos

fornecedores dos motores e transformadores da usina. Reduzido, por fim, o

“compromisso”

correspondência da E de 15 de agosto de 2011, somente em 2 de outubro de 2011 a

A formalizaria a licitação privada, prevendo o início da obra para 7 de janeiro de

2012. Por seu turno, o Contrato da A com a E, vencedora do certame, só seria

firmado em 15 de fevereiro de 2012, com data aprazada para a entrega da usina em

30 de novembro de 2012.

2/11. Sendo o prazo de entrega da usina, portanto, extremamente exíguo, e

prevendo a licitação um cronograma com início das obras no máximo em 7 de

janeiro de 2012, a A se dispôs a disponibilizar substancial recursos financeiros

(20% do preço original) para que a E desse início imediato às obras, vale dizer, em

15 de dezembro de 2011, mesmo antes de firmado o Contrato, o que somente

ocorreria em 15 de fevereiro de 2012. Ao acelerar o início das obras antes da

formalização do Contrato, a fim de cumprir o cronograma, adiantando os recursos

à empreiteira, lícito é inferir que se firmou entre as partes um consenso tácito

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 125

no sentido de que – dada a premência do tempo para a formulação do orçamento e

para a realocação dos riscos de acordo com o prazo exíguo – ambas se dispunham

a implementar todos os ajustes que se fizessem necessários para a execução em

tempo das obras contratadas.

2/12. Tanto é verdade que, logo que apareceram os primeiros sinais de que

a falta de reexame da avença afetaria a execução das obras, as partes se

movimentaram no sentido de lograr uma composição, atestando a A, ao firmar

com a E o Aditivo que majorava com um acréscimo de quase 1/3 (um terço) do

preço original do Contrato, que a E agira sempre de boa-fé, mesmo diante dos

infortúnios com os quais se deparava. Ao mesmo tempo em que reconhecia,

implicitamente, o desequilíbrio econômico intrínseco da avença, passando o valor

“fixo e global” R$ 80.000.000 00 R$

105.000.000,00.

2/13. Esse desequilíbrio econômico do Contrato ainda mais se acentuaria

com a superveniência de fatos e dificuldades imprevisíveis no curso de sua

execução, que subverteram as bases do negócio originalmente pactuadas. A

própria A, aliás, corroboraria esse entendimento ao cobrar, em sede de

reconvenção, a vultosa quantia de R$ 116.798.223,65 (inicialmente estimada em

R$ 57.602.549,28) a título de supostos custos adicionais que teria incorrido

quando, rescindido o Contrato e já à testa da empreitada, dera remate ao restante

da obra (14% a 20%) – cifra esta que corresponde ao dobro do valor total do

Contrato original.

2/14. Ao empolgar a gestão das obras de construção da usina e tolher o

epcista de cumprir as suas obrigações para a entrega da obra, quando esta já se

avizinhava da sua finalização, negando-se a responder pelo aumento dos custos

decorrente de fatos extraordinários e de dificuldades imprevisíveis, resta evidente

que a A abusou do seu poder negocial. Com isso provocou uma mutação na

natureza do Contrato, pois confinou todo o risco do negócio, nele incidente,

como de exclusiva responsabilidade da empreiteira, emprestando, assim, caráter

aleatório a um ajuste que se requer seja essencialmente comutativo.249

2/15. À vista dessas observações, vejamos os quesitos formulados pela

Consulente, respondendo-os à medida que forem sendo reproduzidos.

249

Na vigência do CC/1916 houve quem sustentasse que a empreitada seria, acessoriamente, um contrato

aleatório (como E.V. de Miranda Carvalho, Contrato de Empreitadas, Rio, Freitas Bastos, 1953, p. 8), no que

era por outros contestado (Almeida Paiva, Aspectos do Contrato de Empreitada, Rio, Forense, 1955, p. 21).

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 126

III. QUESITOS

1º) O contrato de engenharia, suprimento e construção em

questão (―Contrato‖) pressupõe ser uma avença comutativa.

Essa comutatividade foi afetada pelo fato de a negociação

do instrumento contratual e sua assinatura ter ocorrido

cerca de 4 (quatro) meses após o fim da concorrência

privada, durante as quais as partes alteraram o projeto,

mas não modificaram o preço e nem o cronograma para a

conclusão da obra?

3/1. Nos contratos comutativos, a relação entre vantagem e sacrifício

entre as partes é subjetivamente equivalente, havendo sempre certeza quanto às

prestações. Quer dizer, ambas são certas e se compensam (CC/2002, art. 441 e

seguintes.). Na ideia de comutatividade está implícita, portanto, a de equivalência

das prestações, de antemão conhecidas das partes, cada parte só consentindo num

sacrifício se aquilo que obtém em troca for do mesmo porte. Quer dizer, as partes

comutam vantagens, guardando entre si um nível razoável de igualdade de valores.

E nessa composição de sacrifícios e vantagens mútuas, a equivalência das

prestações é determinada em função do volume relativo das prestações recíprocas

e do prazo para executá-las.250

3/2. No caso em exame, o prazo para a entrega da obra de Camaçari era

extremamente exíguo, em se considerando que se cogitava da construção e da

entrega de uma usina termoelétrica em condições de operar em 9 (nove) meses, a

contar da data da assinatura do Contrato. Esse instrumento foi firmado em 15 de

fevereiro de 2012 e a data para a entrega da usina em condições de operar findava

em 30 de novembro de 2012. É verdade que as primeiras tratativas entre as partes

remontam aos primeiros meses de 2011 e tiveram alinhamento final em 15 de

agosto de 2011, depois de várias etapas, já narradas, quando o resultado final foi

reduzido a escrito em um compromisso informal. Em 2 de outubro de 2011, a A

formalizou a licitação privada, sagrando-se a E vencedora Contratos do certame.

250

Domenico Rubino, L‟Appalto, 2ª edição, Turim, 1951, PP. 129/132; Orlando Gomes, Contratos, Forense,

4ª edição, 1973. P. 333.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 127

Somente 4 (quatro) meses depois, ou seja, em 15 de fevereiro de 2012 é que seria,

por fim, celebrado o Contrato.

3/3. Ao longo desse intervalo que permeia a abertura dos resultados da

licitação e a assinatura do Contrato, foram introduzidas significativas alterações no

projeto, sem que essas alterações tenham se refletido em majoração do preço e em

mudança do cronograma de forma compatível com a realidade dos fatos,

comprometendo, assim, a comutatividade originalmente buscada pelo Contrato.

3/4. Advirta-se que as modificações introduzidas não pararam aí: uma vez

assinado o Contrato, a A decidiu promover uma mudança no projeto básico do

empreendimento, com a finalidade de operar a adequação da obra ao novo lay-

out, de forma a propiciar melhores condições de acesso à usina para os

caminhões. Ao lado disso, obras complementares foram adicionadas para permitir

maior estocagem de combustível. Não obstante preveja o Contrato a introdução de

alterações desse naipe por parte da A ( 9) é q “equilíbrio

do negócio” q ncia entre prestações e contraprestações

das partes, foi severamente afetado, agravando-se a posição da E.

3/5. Por outro lado, o fato de a E ter concordado com a introdução de tais

alterações quando da assinatura do Contrato não elimina a existência de

desequilíbrio econômico na avença, tanto que, meses depois, as partes celebrariam

A ç “fixo e global”

um terço do valor contratado, passando de R$ 80.000.000,00 para R$

105.000.000,00, embora sem alteração da data prevista para a conclusão da obra.

A comutatividade fora, portanto, abalada e é indiscutível que através desse Aditivo

se procurava simplesmente restaurá-la.

2º) A realização de serviços preliminares antes da

assinatura do Contrato, inclusive com o pagamento de

adiantamentos pela Contratante, implica que o cronograma

deve ter efeitos retroativos a outubro de 2011, inclusive para

responsabilizar a parte Contratante pelo não cumprimento

de marcos contratuais? As modificações de projeto

solicitadas pela Contratante entre outubro de 2011 e março

de 2013 impõem que esta assuma o ônus desse atraso?

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 128

3/6. Uma vez firmado, todo e qualquer contrato passa a produzir efeitos

obrigacionais a contar do momento do consentimento (ex nunc), podendo,

porém, por vontade das partes, retrotrair, abrangendo relações passadas,

concernentes a um período pretérito (ex tunc).251 O Contrato, celebrado entre a E

e a A, se filia à primeira categoria, inscrevendo-se na modalidade dos contratos de

duração, cuja execução diferida e continuada tinha o seu termo inicial com a

assinatura do instrumento contratual em 15 de fevereiro de 2012 e termo final com

a entrega da obra, em 30 de novembro de 2012, em conformidade com

cronograma de trabalho anexo ao contrato (Anexo C). Gerava, portanto, efeitos

para o futuro.

3/7. É verdade que no próprio corpo do Contrato, embora firmado em 15

de fevereiro de 2012, a empreiteira reconheceu, em cláusula expressa (cláusula 6.2,

“ ”) h 15 z 2011 15 de janeiro de 2012,

respectivamente 5% (cinco por cento) e 15% (quinze por cento) do preço

contratual. Não obstante esses pagamentos antecipados, não há nenhuma

cláusula dando efeito retroativo às obrigações decorrentes do Contrato, de sorte

que as mesmas só passaram a ser vinculantes e coercíveis após a sua celebração,

sempre dentro do cronograma anexo ao instrumento contratual.

3/8. Quer dizer, embora possa ter havido a prestação de serviços

anteriores (o que, em parte, explicaria os referidos pagamentos adiantados), o

marco inicial da empreitada era indubitavelmente a data da assinatura que selou o

negócio, gerando obrigações de parte a parte, a serem futuramente cumpridas.

Vale aqui o significado semântico (ex-sequor) da expressão, podendo dizer-se

q “execução” z çã

“qualcosa che segue, che vien dopo” z G q .252

3/9. Assim, a eventual realização de serviços preliminares por parte da E,

antes da assinatura do Contrato, inclusive com o pagamento de adiantamentos do

preço desses serviços pela A, não implica que o cronograma para a construção da

usina deva ter efeitos retroativos. Mormente quando esses efeitos tenham por

objetivo responsabilizar a empreiteira pelo não cumprimento de marcos

contratuais ajustados para mensurar o avanço físico da obra ao longo do processo

de execução do Contrato, que inicia com o consentimento.

251

Darcy Bessone de Oliveira Andrade, Do Contrato, Forense, 1960, p. 220; Adolfo de Majo Giaquinto,

L‟esecuzione del contratto, Giuffrè, 1967, p. 242 ss. 252

Obra citada, p. 3.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 129

3/10. Por outro lado, se entre outubro de 2011, antes da assinatura do

Contrato, e, dezembro de 2012, quando, já assinado o Contrato, as partes

negociavam o segundo aditivo, até com mudança do cronograma, impunha-se que

A assumisse o ônus dos atrasos decorrentes das alterações por ela propugnadas.

Assim, podemos responder à segunda parte do presente quesito, dizendo que os

encargos ligados às alterações introduzidas no projeto original por determinação

da comitente, entre outubro de 2011 (quando a E se sagrou vencedora do certame

licitatório), e 15 de dezembro de 2012 (quando a A assumiu a obra), devem correr

exclusivamente por conta da dona da obra. Até porque, em sendo a esta imputáveis

os atrasos provocados pelas modificações no plano original, haveria, à época,

justa causa “suspende ” çã ç (arts. 476 e

625, I, do CC/2002).

3º) A assunção de obrigação pela Contratante perante a

autoridade governamental de iniciar a operação comercial

da Usina em determinado prazo impede que o Contrato

sofra alterações que importem na modificação da data para

a entrega da Usina após a data prevista perante o órgão

regulador para início da operação comercial? A recusa da

Contratante em estender o Prazo nesse contexto constitui

abuso de sua posição contratual?

3/11. Em 18 de abril de 2011, a Agência Nacional de Energia Elétrica

(“ANEEL”) P 63 z A a estabelecer-se como

produtora independente de energia elétrica, prevendo um cronograma de

implantação de uma usina termoelétrica em Camaçari, Bahia, iniciando as obras

“até 7 de janeiro de 2012” çã

“em janeiro de 2013”. E 15 2012 A celebrou com a E o

Contrato EPC, assumindo a empreiteira a obrigação de executar os trabalhos de

construção da usina, de forma a entregá-la concl í “até a

data assegurada de conclusão” - “até 30/11/2012” (

1,verbetes, 3.1 e 5.1).

3/12. Tendo em vista a extrema exiguidade dos prazos estabelecidos pela

ANEEL para a empresa autorizada tanto para dar início às obras da construção da

usina, como para a sua conclusão e entrada em operação, compreende-se porque

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 130

as partes acederam em celebrar o Contrato em 15 de fevereiro de 2012,

antecipando o pagamento ao empreiteiro de 20% do futuro preço contratual, em

duas parcelas, em 15 de dezembro de 2011 e em 15 de janeiro de 2012.

Compreende-se também porque, logo depois, passariam elas a negociar a

introdução de alteração do projeto básico do empreendimento, para adequação do

lay-out às estruturas que comporiam a futura usina. Com essas medidas,

imprimia-se velocidade às obras.

3/13. Daí porque, à vista desses acontecimentos, a E encaminhou à A, em

agosto e setembro de 2012, propostas técnicas, objetivando promover a adequação

do preço contratual, a qual só viria a ser materializada em 9 de outubro de 2012,

com a celebração de um aditivo contratual que contemplava um acréscimo

superlativo, da ordem de 1/3 (um terço) do preço, sem que se promovesse, porém,

a alteração do prazo para a conclusão da obra . Ocorre, porém, que já em

novembro de 2012 as partes passariam a discutir a redação de um segundo

aditivo, com novas modificações no projeto, dando prioridade à alteração do

cronograma original. Nessa altura, mais de 80% da obra já estava concluído -

ocasião em que a A manifestou interesse em assumi-la, promovendo a rescisão do

Contrato.

3/14. Dentro desse contexto é formulada a pergunta acima reproduzida: a

assunção pela A perante a autoridade reguladora da obrigação de dar início à

operação comercial da usina em determinada data impediria (indaga-se) que o

Contrato, por ela firmado com a E, sofresse modificações que importassem em

alteração da data de conclusão da obra, postergando-a para data posterior ao

termo acertado junto ao órgão governamental para a entrada em operação

comercial da usina? Ora, embora a construção e a operação da usina dependam de

autorização da ANEEL, essa autorização não consubstancia nem pressuposto,

nem elemento constitutivo do Contrato, formando-lhe a estrutura e

fornecendo-lhe a substância.253

3/15. Com efeito, a ANEEL é pessoa estranha ao Contrato EPC, tendo em

vista o princípio da relatividade das convenções, segundo o qual os efeitos

dos contratos se produzem exclusivamente entre as partes, não aproveitando nem

prejudicando a terceiros. Para a ANEEL, o contrato de construção da usina é res

inter alios acta, visto que, como ato de autonomia privada, ele não pode atingir

253

Darcy Bessone de Oliveira Andrade, Do Contrato, ob. Citada, p. __.

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senão as esferas jurídicas das partes contratantes, comitente e empreiteira. Por

conseqüência, a recusa da A em estender o prazo contratual sob o pretexto de que

estaria presa a prazo mais rígido determinado pela autoridade reguladora

constituiria, na verdade, abuso do seu poder negocial, pois a determinação

administrativa não poderia interferir na execução do ajuste entre a empreiteira e a

empresa autorizada a fornecer energia elétrica. Não se cogita aqui de fato do

príncipe.

4º) A modificação do método de aferição do cumprimento

dos marcos contratuais, sem a celebração de aditamento

contratual, mas acordada entre as partes mediante a

contratação de Terceiro para tal tarefa, deve ser

considerada válida, eficaz e irrevogável, nos termos do

artigo 614, § 1º, do Código Civil, uma vez que a Contratante

conferiu as medições por meio de engenheiro do

proprietário e efetuou os pagamentos respectivos?

5º) À luz do que determina o artigo 614, § 2º, do Código

Civil, a Contratante tem direito ao ressarcimento por

eventuais vícios na obra reclamados no prazo de 30 (trinta)

dias, a contar das respectivas medições? Em caso

afirmativo, a quem incumbe o ônus da prova das falhas na

realização das atividades? O fato de eventuais vícios terem

sido suscitados apenas após a conclusão da obra constitui

violação à boa-fé pela Contratante?

3/16. Versa o artigo 614 do Código Civil a hipótese de empreitada em que a

fixação do preço atende ao fracionamento da obra, considerando-se as partes em

que ela se divide, ou são mensuradas. Essa hipótese não é incompatível com a

empreitada em que a retribuição é estipulada para a obra inteira, nem deixa de ser

fixo e global o preço face ao fato de ter sido ajustado o seu pagamento de forma

escalonada, desde que este seja determinado em função da obra encarada como

um todo. O Contrato entre E e A é um contrato de empreitada por preço fixo e

global, a ser pago, de maneira parcelada, em 11 (onze) prestações sucessivas, sendo

1 (uma ) de 20% e 10 (dez) outras de 8% (oito por cento) do preço cada uma,

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 132

correspondendo essas parcelas do preço aos marcos contratuais previstos no

cronograma de trabalho (cláusula 6.2).

3/17. Com efeito, na cláusula 6.2, in fine, do Contrato, acima citada, ficou

estabelecido que o dono da obra verificaria (cláusula 8) e certificaria por

escrito (cláusula 10) se os eventos previstos no cronograma teriam ou não sido

cumpridos pela empreiteira dentro da data de pagamento de cada uma das

parcelas, reservando- “suspender” é q

atingidos os marcos contratuais representativos dos avanços da obra. Assim,

embora se trate de uma empreitada por preço fixo, o pagamento deste é parcelado,

çã çã h (“obra por medida”). Daí a

pertinência da incidência no caso do artigo 614 da lei civil.254

3/18. Lembre-se que, no curso da execução do Contrato, a A promoveu a

çã SS G E (“SS”)

h q “engenheiro do proprietário” çã

obra, realizando a revisão de todos os trabalhos efetuados e a implantação de uma

nova forma de pagamento atrelado não mais a marcos contratuais, mas sim à

medição do avanço físico dos serviços. Assim, a modificação do método de aferição

do cumprimento dos marcos contratuais, introduzida por iniciativa da SS, ainda

que não tenha sido objeto de aditamento formal entre as partes, foi entre elas

acordada mediante a contratação de uma empresa exatamente com o objetivo de

exercer tal tarefa, motivo pelo qual a introdução de novo método de aferição é,

para todos os efeitos, válido, eficaz e irrevogável.

3/19. Por outro lado, nos termos do disposto no §§ 1º e 2º do artigo 614 do

CC/2002 “de natureza das que se determinam por

medida” ( ) ( ) q e, em todos os

pagamentos efetuados pelo dono da obra, se presume que os resultados da

empreitada foram adrede verificados, e (ii) de que, em todas as medições,

igualmente por ele efetuadas, se presume que os marcos contratuais foram

conferidos, exceto se, em trinta dias, a contar da medição, o dono da obra, ou

quem estiver incumbido da sua fiscalização, vier a denunciar a existência de algum

vício ou defeito na obra executada.

3/20. Nas duas hipóteses a presunção legal é relativa (iuris tantum) e se

dá em prejuízo do comitente e em benefício do empreiteiro, podendo, na primeira

254

Gustavo Tepedino et alii, Código Civil Interpretado, Renovar, Rio, 2006, vol. II, p. 350 ss.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 133

hipótese, ser elidida pelo dono da obra mediante a prova de que, a despeito do

pagamento, via de regra a título de adiantamento, não foi feita a verificação do

andamento da execução dos serviços; e, na segunda hipótese, se, realizada a

medição, houve a denúncia por parte do comitente, no referido prazo de trinta dias

a contar da medição, da ocorrência de vícios na obra executada. Quer dizer, no

primeiro caso, o pagamento implicaria a aceitação da obra pelo comitente, que se

presumiria satisfeito; no segundo caso, a medição, por si só, não geraria essa

presunção, entendendo-se, porém, que, transcorrido o prazo de trinta dias sem

impugnação do dono da obra, seria de presumir essa aceitação. Em ambos os

casos, isso significa dizer que, por força do pagamento ou da medição, o dono

entendeu estar a obra a seu contento.

3/21. Advirta-se que o prazo de trinta dias a contar da medição, para efeito

da impugnação da obra, é de natureza decadencial, motivo pelo qual, uma vez

transcorrido o lapso de tempo referido, caduca o direito do dono da obra de

postular o ressarcimento por eventuais vícios ou defeitos verificados na obra

executada.255 Ademais, cabe a ele, na impugnação, o ônus da prova das falhas de

execução da obra cometidas pelo empreiteiro. Nessas condições, caso o dono da

obra se mantenha inerte em relação ao defeito ou vício identificado, deixando de

requerer, de forma tempestiva, a correção ao empreiteiro e se reservando para

suscitá-lo somente na conclusão da obra, não só decai desse direito, como viola o

princípio de boa-fé contratual a que está obrigado a guardar, seja na conclusão do

contrato, como em sua execução (CC/2002, art. 422).

6º) A celebração de aditamento contratual que acresceu

serviços adicionais e majorou o preço dos serviços originais,

em outubro de 2012, atesta que essas hipóteses constituem

força maior para fins da cláusula 18 do Contrato? A

referida revisão contratual de preço impede que a

Contratada pleiteie posteriormente a extensão do prazo,

caso os planos de recuperação acordados com a engenharia

do proprietário não surtam efeito?

3/22. C Có C ç “fato

necessário” ã h evitar ou impedir, motivo pelo qual o

255

Gustavo Tepedino et alii, Código Civil Interpretado, Renovar, vol. II, 2006, p.353.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 134

devedor não responde pelos prejuízos dele resultantes, a menos que tenha por eles

expressamente se responsabilizado (CC/2002, art. 393). Para sua prova, que deve

ser feita por quem a alega, exigem-se dois elementos: um objetivo - a

inevitabilidade do evento – e o outro subjetivo – a ausência de culpa.

Inevitabilidade traduzida na impossibilidade absoluta de superar o acontecimento,

à luz das circunstâncias em que o obrigado se encontra envolvido; e ausência de

culpa, porque, não podendo a dificuldade no cumprimento da obrigação ser

evitada, não se caracterizaria a culpa do contratante.256

3/23. É dentro desse contexto que deve ser encarada a definição de força

maior constante da cláusula 18.1 do Contrato de 15 de fevereiro de 2012. Para os

efeitos do Contrato, foi pactuado nessa cláusula que as partes estarão liberadas da

responsabilidade pela inexecução de suas obrigações contratuais quando o

ç “tenha

afetado a capacidade da parte em questão de cumprir tais

obrigações”. O q fato irresistível

que impede o cumprimento da obrigação seja apreciada em concreto, levando em

consideração as condições pessoais da parte devedora para adimpli-la.

3/24. A çã “aditivo contratual” 9

2012, que acresceu serviços adicionais e majorou significativamente o preço dos

serviços pactuado no Contrato de 15 de fevereiro de 2012, comprova que tais

aditamentos, se não fossem acertados como o foram, constituiriam fatos

irresistíveis que liberariam a empreiteira do cumprimento de suas obrigações

ã “comprovadamente”

a capacidade da empreiteira de adimpli-las. Por outro lado, como o escopo desse

“equilíbrio econômico-financeiro

do Contrato” ã ç ã q

empreiteira viesse a pleitear posteriormente a extensão do prazo para a entrega da

obra, como de fato o faria ao postular um segundo aditivo, tendo em vista que os

planos de recuperação acordados com a engenharia do proprietário não surtiram

os efeitos almejados.

7º) A proibição de alteração do Preço contida nas cláusulas

6.3(b), 6.3(c) e 6.4 do Contrato deve ser conciliada com a

256

Arnoldo Medeiros da Fonseca, Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão, 3ª edição, Rio de Janeiro, Forense,

1958.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 135

possibilidade de alteração do Preço por Força Maior

prevista na cláusula 18 da referida avença? No caso de

incompatibilidade de tais cláusulas, a vedação ao

enriquecimento sem causa faz com que prevaleça a cláusula

18 em detrimento das cláusulas 6.3(b), 6.3(c) e 6.4?

3/25. Tendo em vista que o Contrato diz respeito a uma empreitada por

ç (“turn-key”) “reconheceram”

cláusulas 6.3 e 6.4 que o p ç ç “todos os

custos e despesas” q çã

ç (6.3 “ ”) “que

porventura ultrapassassem” (6.3 “ ”). N

q ã h “nenhuma alteração no

preço do contrato ou nos prazos previstos” (6.3 “ ”) ç

aumento no custo de equipamentos e mão de obra, seja em virtude do aumento

nos custos diretos e indiretos incorridos pela empreiteira para honrar as suas

obrigações, seja ainda, por decorrência de condições climáticas que viessem

interferir nos serviços prestados (6.4).

3/26. É claro que a natureza fixa e global do preço do contrato e a

consequente proibição de alteração do preço contratual, contida nas cláusulas

6.3(a),(b) e (c) e 6.4, acima citadas, devem ser entendidas em combinação com a

possibilidade de ocorrer modificação desse mesmo preço em decorrência de evento

de força maior, tal como essa expressão é conceituada na cláusula 18 do Contrato.

Em havendo conflito entre tais dispositivos contratuais, a vedação ao

enriquecimento sem causa, que na lei civil figura como princípio geral ao lado

dos negócios jurídicos (CC/2002, art. 884), fará com que a cláusula de força maior

se sobreponha às cláusulas contratuais citadas que tolheriam as alterações no

preço da empreitada, a fim de que se preserve o equilíbrio econômico-financeiro

da avença.257 O contrato deve ser encarado como um todo orgânico, cujo conteúdo,

posto que integrado por várias peças, configura-se como uma unidade, e as

cláusulas devem ser ligadas umas às outras, numa interpretação sistemática.

3/27. Na realidade, ao longo do CC/2002, o princípio do equilíbrio

contratual é consagrado seja através de normas gerais que maculam com

257

Cf. Giovanni Ettore Nanni, Enriquecimento sem Causa, São Paulo, Saraiva, 2004.

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anulabilidade os negócios jurídicos atingidos por lesão (art. 157), resolvendo ou

reajustando os contratos em que se evidencia onerosidade excessiva (arts. 317 e

478 usq. 480), seja através também de normas específicas relativas à revisão do

preço na empreitada (arts. 619, 620 625, I e II).

8º) A exigência contida na cláusula 9.7.2 do Contrato de

que a Contratada permanecerá responsável pela execução

dos trabalhos enquanto as partes não cheguem a um acordo

sobre eventual Pedido de Alteração e seus impactos no

Cronograma de Trabalho e no Preço torna abusiva a

rescisão da avença por iniciativa da Contratante enquanto

ainda não estava encerrada a negociação sobre o pedido de

alteração?

9º) A proposta de reprogramação do Cronograma

contratual apresentada pela Contratada e negociada de

boa-fé com a Contratante impede que esta última se valha

da faculdade prevista na cláusula 17.1(vii) do Contrato para

assumir a obra dez dias após o prazo fixado originalmente

para entrega da Usina?

10º) O fato de a Contratante ter despendido o equivalente a

200% do preço original para concluir a Usina após a

rescisão da avença e ter demorado mais dezessete meses

para executar o restante dos Trabalhos aponta que a

condução da obra após a rescisão não se pautou pelo

parâmetro de eficiência estabelecido na avença em questão?

A Contratada deve suportar os custos adicionais que

tenham sido influenciados por tal ineficiência?

3/28. Dispõe a cláusula 9.7 que, caso a E conclua que a ocorrência de

determinado evento, com características de força maior, poderá comprometer o

prosseguimento do projeto, poderá ela formular um pedido de alteração do

instrumento contratual, com o objetivo de modificar o preço e a data de conclusão

das obras. Para atingir esses objetivos, deverá descrever detalhadamente o fato,

fazendo uma estimativa dos impactos do mesmo no preço contratual e na data de

entrega da obra. Nesse sentido, estabelece a cláusula 9.7.1 que, ao receber o

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 137

pedido, caberá à A entrar em tratativas com a empreiteira, formalizando um

termo aditivo. Acrescenta a cláusula 9.7.2 que, caso as partes não cheguem a um

acordo no prazo em tela, deverá a empreiteira permanecer à testa dos trabalhos,

responsável pela obra.

3/29. À vista desses dispositivos contratuais, lícito é concluir que deverá

ser considerada abusiva a rescisão unilateral da avença por iniciativa da

comitente enquanto as partes não deem por encerrada a negociação a respeito da

matéria. A simples leitura da cláusula contratual conduz a essa interpretação. Em

síntese, não cabe rompimento unilateral sem que haja motivo relevante,

decorrendo tal afirmação da bilateralidade e da comutatividade, características do

contrato de empreitada que implicam obrigações recíprocas e sinalagmáticas,

sendo a prestação de um contratante a causa da prestação do outro.

3/30. Por via de consequência, cumpre concluir que a proposta de

reprogramação do cronograma contratual, apresentada pela E e negociada de boa-

fé com a A, impediria que esta última se valesse da faculdade que lhe era

outorgada pela cláusula 17.1.(vii) do Contrato, rescindindo-o e assumindo a obra.

Na realidade, esse permissivo dizia que a A poderia rescindir o Contrato, caso a E

q q “obrigação substancial”

descumprimento não fosse sanado no prazo de 15 (quinze) dias contados da data

de notificação a ser enviada pela A, ou dentro de qualquer outro prazo negociado

pelas partes de boa-fé. Na hipótese, esse descumprimento não ocorreu.

3/31. Por fim, dispõe a cláusula 17.5.5 do Contrato que em caso de rescisão

por inadimplemento por parte da empreiteira, a A “terá o direito de concluir

(ou fazer que sejam concluídos) os Trabalhos” “com o

direito de receber da Contratada os custos efetivamente incorridos

pela Contratante na conclusão dos Trabalhos”. S

incorridos pela Contratante na conclusão dos trabalhos superar o saldo do preço

contratual em aberto, a Contratada será obrigada a pagar à Contratante a diferença

entre o saldo a receber e o total dos custos incorridos. In casu, levando em conta

que a Contratante (A) alega ter despendido o equivalente a 200% do preço original

para concluir a usina após a rescisão da avença, consumindo mais de dezessete

meses para executar o remanescente da obra, tudo aponta no sentido de que a

condução da obra, por ela feita após a rescisão, não se pautou propriamente pelo

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parâmetro de eficiência estabelecido na avença. É óbvio que a E não deve suportar

os custos adicionais que tenham sido introduzidos por tão grande ineficiência.

11º) A expressão ―desde que tais custos sejam atribuíveis

diretamente à rescisão por evento de inadimplemento da

Contratada‖, incluída na cláusula 17.5.5 da avença, exclui a

responsabilidade da Contratada por eventuais custos

adicionais incorridos pela Contratante em condições

daquelas estabelecidas no Contrato?

3/32. A cláusula 17.1 do Contrato estabelecia, como se observou, que a A,

dona da obra, poderia rescindir a avença em várias circunstâncias, dentre as quais

na hipótese de a E “obrigações

substanciais” C z

( “ ”). N q A poderia

concluir a obra, reservando o direito de receber da E “custos adicionais

efetivamente incorridos” – “ q

“diretamente” ã .

3/33. É o que expressamente está previsto na cláusula 17.5.5 do Contrato,

z “rescisão por Evento de Inadimplemento da

Contratada” “Evento de Inadimplemento da

Contratada” õ 17.1( ) “qualquer outra

obrigação substancial do presente Contratada não sanada”. O q

equivale a dizer que a cláusula em pauta exonera a E “custos adicionais”

incorridos pela A em decorrência de condições distintas daquelas constantes do

Contrato.

12º) A cláusula 16.5 do Contrato pode ser considerada uma

cláusula válida de não-indenizar danos indiretos e lucros

cessantes? Em caso afirmativo, essa limitação de

responsabilidade seria aplicável à rescisão por evento de

inadimplemento da Contratada definida na cláusula 17.5.5

da referida avença?

3/34. Pela cláusula 16 do Contrato, ficou estabelecido que à empreiteira

(E) “indenizar e manter indene” (A), e que esta, vice-

versa, deverá indenizar e manter indene a empreiteira, com relação a danos que,

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 139

na execução da empreitada, uma venha a provocar na outra. Ficou, porém,

16.5 q “as partes não serão responsáveis, uma com

relação outra, por quaisquer danos indiretos ou lucros cessantes, que

venham a sofrer”.

3/35. Cláusulas desse naipe - destinadas a afastar a responsabilidade das

partes contratantes com relação à inexecução de obrigações contratualmente

assumidas - são válidas em nosso Direito,258 desde que o seu campo de incidência

se restrinja ao chamado ilícito contratual e desde que não se caracterize no ato

danoso dolo ou culpa grave. No caso do Contrato entre E e A, essa exoneração

convencional da obrigação de indenizar diz respeito, portanto, aos lucros cessantes

e aos danos indiretos, entendidos aqueles como ganhos frustrados, e estes, como

prejuízos sofridos como conseqüência remota.

3/36. Na cláusula 17.5.5, ficou ajustado que, em caso de rescisão do

Contrato por inadimplemento por parte da E, a A teria o direito de assumir a

gestão das obras, recebendo da empresa inadimplente os custos adicionais

efetivamente incorridos pela dona da obra na conclusão dos trabalhos, desde que

“diretamente” ã

empreiteira. Tais custos adicionais, provocados em ricochete, configuram danos

materiais reflexos, ou seja, indiretos, e estão também cobertos pela exoneração da

responsabilidade convencionada na cláusula 16.5, in fine. Ou seja, são danos que

não decorrem senão remotamente da conduta empreiteira, não havendo um nexo

de causalidade direta e imediata que, de acordo com a lei (CC art. 403),

determinaria a responsabilidade contratual da E.

S.M.J.

São Paulo, 29 de agosto de 2014

Luiz Gastão Paes de Barros Leães

258

José de Aguiar Dias, Cláusula de não indenizar, 4ª edição, Rio de Janeiro, Forense; Sérgio Cavalieri

Filho, Programa de Responsabilidade Civil, São Paulo, Atlas, 7ª edição, p. 497 ss.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 140

ATUALIDADES

A QUESTÃO DA CONFIGURAÇÃO DE FRAUDE NAS ALIENAÇÕES

ENVOLVENDO BEM DE FAMÍLIA E SUAS CONSEQUÊNCIAS:

ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE

JUSTIÇA A PARTIR DO RECURSO ESPECIAL Nº 1.227.366

Fraud identification on disposing of homestead property and its

consequences: study of precedents issued by the Brazilian Superior

Court of Justice (Superior Tribunal de Justiça) inspired by Special

Appeal 1,227,366.

Vivianne da Silveira Abílio

Mestre em Direito Civil pela UERJ

RESUMO: O artigo analisa a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça a

respeito da possibilidade de configuração de fraude em alienações envolvendo

bens alcançados pela proteção consagrada na Lei n.º 8.009/1990 e as possíveis

consequências de seu eventual reconhecimento a partir do Recurso Especial nº.

1.227.366. Para tanto, enfrenta a função exercida pela impenhorabilidade do bem

de família no direito brasileiro e seu consequente tratamento nos Tribunais.

PALAVRAS-CHAVE: Direito Civil; Bem de família; Boa-fé; Direito à moradia; Fraude

ABSTRACT: Th y h S T J ç ‟

regarding the possibility of recognizing fraud in the disposing of assets that are

protected by the homestead right law (Lei n.º 8.009/1990) and the consequences

of this recognition from the perspective settled in one precedent of the Court

(Recurso Especial n.º 1.227.366). To accomplish this purpose, the paper studies

the role of the homestead right in the Brazilian law and its approach on the

Brazilian courts.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 141

KEYWORDS: Private Law; Homestead Right; Good Faith; Right to housing; Fraud

SUMÁRIO: 1. A hipótese apreciada no Recurso Especial nº. 1.227.366 – 2. A proteção

ao bem de família como expressão do direito constitucional à moradia e seu reflexo

na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – 3. A questão da configuração

de fraude na alienação do bem de família e seus efeitos sobre a impenhorabilidade

em julgados do Superior Tribunal de Justiça – 4. À guisa de conclusão: em busca

do equilíbrio entre a proteção à moradia e a tutela da boa-fé

1. A hipótese apreciada no Recurso Especial nº. 1.227.366

Sylvio Carlos Sobrosa da Rocha e sua esposa compraram, em 31.5.1995,

imóvel residencial que passaram a habitar com seus filhos. Alguns anos após a

aquisição, entre junho e agosto de 1997, Sylvio tornou-se réu em ações judiciais

indenizatórias em que, ao final, restou condenado.

Enquanto estavam em curso as aludidas demandas, Sylvio e sua esposa

separaram-se, celebrando acordo (verbal) em relação aos bens do casal, do qual

resultou a doação (efetivada mediante escritura pública) à filha do casal do bem

adquirido em 1995, no qual ex-mulher os filhos permaneceram residindo após a

dissolução da sociedade conjugal.

Sobrevieram em 2000 e 2001 as execuções das condenações sofridas por

Sylvio. Em decorrência de não encontrarem os Exequentes bens a penhorar,

pleitearam a declaração de fraude à execução e consequente ineficácia da

mencionada doação, requerendo a penhora do imóvel.

Acolhidos os pedidos em ambas as execuções,259 opuseram mãe e filha

embargos de terceiro para obstar a ultimação da venda do imóvel, que foi julgado

(i) extinto sem julgamento do mérito em relação à primeira, por não possuir

legitimidade, já que procedera à alienação de sua meação e (ii) parcialmente

259

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul considerou haver diversos processos contra Sylvio em razão

de ter supostamente repassado menos do que deveria aos seus clientes com a venda de ações da CRT e de ter

o casal sonegado outros imóveis nos autos da separação judicial. Compreendeu haver alienação fraudulenta e,

por isso, impossibilidade de premiar com a impenhorabilidade o devedor que obrou de má-fé, além de que o

valor do imóvel permitiria o pagamento das dívidas sem prejuízo da aquisição de outro bem para a residência

familiar com o restante do valor obtido com a alienação.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 142

procedente quanto à segunda, salvaguardando 50% do imóvel da constrição,

parcela decorrente da doação feita por sua mãe, considerada lídima.

A questão foi, então, levada à 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça

para que se avaliasse (i) a inocorrência de fraude à execução, tratando-se de bem

de família antes mesmo da alienação e da própria condenação; e (ii) a

impossibilidade de cindir o bem de família, a impedir sua alienação forçada, já que

o Tribunal de origem reconheceu a exclusão de metade do imóvel.

Consoante se procurará detalhar no item 3, infra, ao julgar o caso no

âmbito do Recurso Especial nº. 1.227.366, o Ministro Relator Luis Felipe Salomão

deu provimento ao apelo extraordinário para, seja por reconhecer incidir à

hipótese o benefício da impenhorabilidade previsto no art. 1º da Lei nº.

8.009/1990 à totalidade do imóvel, seja por compreender incindível o bem de

família, reformar o acórdão recorrido, levantando a penhora que recaía sobre o

imóvel.

Cuida-se de relevante precedente que, ao evocar a necessária ponderação

na análise da possibilidade de configuração de fraude na alienação de bem de

família, permite avaliar o cenário jurisprudencial relativo à funçao da proteção do

bem de família, bem como as consequências de eventual conduta fraudulenta

sobre a impenhorabilidade.260

2. A proteção ao bem de família como expressão do direito

constitucional à moradia e seu reflexo na jurisprudência do Superior

Tribunal de Justiça

O advento da Lei nº 8.009/1990 representou relevante inovação na

proteção das entidades familiares: embora houvesse previsão no Código Civil de

1916 do instituto do bem de família convencional (ou voluntário) – por meio do

qual o proprietário poderia estabelecer que o imóvel de residência familiar ficaria

“ çã í ” (Có C 1916 . 70) te registro

no ofício de imóveis competente261 –, o bem de família legal, por se tratar de

260

Trata-se de questão polêmica, como se consignou no próprio acórdão: “No ponto, aliás, a configuração do

próprio instituto da fraude à execução relacionado a bem de família não é matéria unívoca na jurisprudência

desta Casa.” 261

O instituto permanece positivado no Código Civil de 2002, com disciplina mais ampla, nos artigos 1.711 a

1.722, dos quais se extraem os requisitos para sua instituição, como se tratar de imóvel destinado à habitação

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 143

proteção automática que independe de qualquer ato do proprietário, implicou

evidente ampliação das hipóteses em que se blinda o imóvel residencial de

expropriação por dívidas.262

Estabelece o aludido diploma a regra da impenhorabilidade do bem de

í q “ ã q q í

z ” ( . 1º) çã q

também aos be ó q “ ” ( . 1º ú )

que observadas as exceções previstas no artigo 2º. Cuida-se de mecanismo que

assume papel essencial na concretização dos objetivos traçados pela Constituição

da República – que alçou a pessoa humana a fundamento do ordenamento (art. 1º,

III) –, vez que possui como vocação garantir condições materiais mínimas à

entidade familiar,263 relacionando-se de forma íntima com a promoção do direito

(fundamental) à moradia.264

O reconhecimento do exercício de tais funções ao instituto resultou em

interpretação tendente a ampliar e reforçar a proteção ao bem de família,265 seja

por meio da defesa da aplicação direta das normas constitucionais às relações

da família e que “não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição”

(VELOSO, Zeno. Código Civil Comentado. Vol. XVII. São Paulo: Atlas, 2003, p. 79). 262

“Como resta evidente, nesse conceito, o instituidor é o próprio Estado, que impõe o bem de família, por

norma de ordem pública, em defesa da célula familial. Nessa lei emergencial, não fica a família à mercê de

proteção, por seus integrantes, mas é defendida pelo próprio Estado, de que é fundamento” (AZEVEDO,

Álvaro Villaça. Bem de família (Penhora em fiança locatícia e direito de moradia). NERY, Rosa Maria de

Andrade; e DONNINI, Rogério (orgs.). Responsabilidade Civil: estudos em homenagem ao professor Rui

Geraldo Camargo Viana. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 70). 263

“À guisa de definição da expressão, reúne-se uma série de conceitos que, aglutinados, formam aquilo que

se logrou entender como um complexo absolutamente indispensável à estrutura de segurança material e

moral do sujeito de direito. É o bem que impede ao credor o acesso às coisas indispensáveis à vida do

devedor. Assim, pode-se considerar o bem de família como o bem empregado para assegurar a sobrevivência

digna dos integrantes da família, no mínimo existencial, já que a família é a célula menor e fundamental da

sociedade” (GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Penhorabilidade do bem de família „luxuoso‟ na

perspectiva civil-constitucional. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. 77, p.

282, jul 2014).

Tal função pode também ser evidenciada na análise do art. 4º, §2º da Lei n.º 8.009/1990, em que se observa

que, tratando-se de pequena propriedade rural, o legislador procurou resguardar não apenas o imóvel

residencial propriamente dito, mas também o suficiente para o desenvolvimento da agricultura de

subsistência. Veja-se o teor do dispositivo: “Quando a residência familiar constituir-se em imóvel rural, a

impenhorabilidade restringir-se-á à sede de moradia, com os respectivos bens móveis, e, nos casos do art. 5º,

inciso XXVI, da Constituição, à área limitada como pequena propriedade rural”. 264

“A proteção legal conferida ao bem de família pela Lei n. 8.009/1990, consectária da guarida

constitucional e internacional do direito à moradia, não tem como destinatária apenas a pessoa do devedor.

Protege-se também sua família, quanto ao fundamental direito à vida digna” (STJ, REsp 1.433.636, 4ª T.,

Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julg. 2.10.2014). 265

É o que se observa em significativo excerto da ementa do REsp 1.134.427, 2ª T., Rel. Min. Humberto

Martins, julg. 22.6.2010, publ. 1.7.2010: “deve ser dada maior amplitude possível à proteção consignada na

Lei n. 8.009/90, que decorre do direito constitucional à moradia estabelecido no caput do art. 6º da

Constituição Federal de 1988”.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 144

privadas, seja pela interpretação ampliativa do conceito de entidade familiar.266

Nessa direção, estabeleceu-se que a impenhorabilidade do bem de família deve ser

aplicada a entidade familiar constituída apenas por irmãos,267 e, como amplamente

difundido, alcança o devedor que habita sozinho o imóvel – entendimento que

restou consubstanciado no Enunciado n. 364 da Súmula de Jurisprudência

Dominante do Superior Tribunal de Justiça.268

A amplitude da interpretação do instituto não se limita, contudo, apenas às

pessoas que podem desfrutar da impenhorabilidade, mas também do próprio

objeto em relação ao qual recai a proteção: guiado pela finalidade de garantir

condições de vida mínimas para a família que permeia o instituto previsto na Lei

nº. 8.009/1990, o Superior Tribunal de Justiça compreendeu que a

impossibilidade de execução forçada ali prevista estendia-se também à poupança

cuja destinação estivesse afetada à aquisição do bem de família. Asseverou-se, na

266

“Para além da discussão teórica quanto à aplicação direta ou indireta da norma constitucional, a Corte

Especial, com base na Lei nº 8.009 de 1990, definiu como prioritária a proteção do direito à moradia e da

dignidade do devedor, expandindo o conceito de bem de família, de modo a alcançar, em praticamente todas

as hipóteses, o imóvel residencial, agora impenhorável para pagamento de dívida” (TEPEDINO, Gustavo.

Bem de família e direito à moradia no Superior Tribunal de Justiça. Revista Trimestral de Direito Civil, vol.

36, p. iii, out/dez 2010). 267

“Execução. Embargos de terceiro. Lei 8009/90. Impenhorabilidade. Moradia da família. Irmãos solteiros.

Os irmãos solteiros que residem no imóvel comum constituem uma entidade familiar e por isso o

apartamento onde moram goza da proteção de impenhorabilidade, prevista na Lei 8009/90, não podendo ser

penhorado na execução de divida assumida por um deles. Recurso conhecido e provido” (REsp 159.851/SP,

4ª T., Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, julg. 19.3.1998, publ. 22.6.1998). O fundamento empregado pela

Corte constitui-se na configuração de entidade familiar: “Estes filhos (...) constituem eles mesmos uma

entidade familiar, pois para eles não encontro outra designação mais adequada no nosso ordenamento

jurídico. Se os três irmãos são proprietários de um apartamento e ali residem, esse bem está protegido pela

impenhorabilidade pois a alienação forçada dele significará a perda da moradia familiar.” Igual base foi

empregada no âmbito do REsp 57.606, 4ª T., Rel. Min. Fontes de Alencar, julg. 11.4.1995, publ.DJ

15.5.1995). O entendimento vai ao encontro do defendido em doutrina: “A impenhorabilidade alcança o

imóvel em que vivem irmãos ou pessoas que configurem desenho jurídico familiar, numa concepção aberta e

plural da família” (FACHIN, Luiz Edson. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2ª ed. Rio de Janeiro:

Renovar, 2006, p. 146). 268

Em doutrina, a aplicação ao devedor que habitava sozinho seu imóvel era defendida, antes da edição da

Súmula, por Anderson Schreiber: “A proteção ao imóvel residencial, à moradia da pessoa humana, deve ser

garantida mesmo nos casos de devedores solteiros, em que não há qualquer entidade familiar a ser tutelada.

Habitar é fundamental para a dignidade de qualquer indivíduo, esteja ele integrado a uma família ou não.”

(SCHREIBER, Anderson. Direito à moradia como fundamento para a impenhorabilidade do imóvel

residencial do devedor solteiro. In: RAMOS, Carmem Lucia Silveira et. al. (orgs.). Diálogos sobre Direito

Civil: construindo uma racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 87).

A título exemplificativo, veja-se expressivo precedente do STJ, em que a questão foi amplamente debatida,

assim ementado: “Processual. Execução. Impenhorabilidade. Imóvel. Residência. Devedor solteiro e

solitário. Lei 8.009/90. A interpretação teleológica do Art. 1º, da Lei 8.009/90, revela que a norma não se

limita ao resguardo da família. Seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa

humana: o direito à moradia. Se assim ocorre, não faz sentido proteger quem vive em grupo e abandonar o

indivíduo que sofre o mais doloroso dos sentimentos: a solidão. É impenhorável, por efeito do preceito

contido no Art. 1º da Lei 8.009/90, o imóvel em que reside, sozinho, o devedor celibatário”. (STJ, EREsp

182.223, Corte Especial, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Rel. p/ acórdão Min. Humberto Gomes de

Barros, julg. 6.2.2002).

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 145

ã q “ h ç q çã

í ” q “ autorização para a penhora esvaziaria a

q çã ” “ ã í

h ”.269 Do mesmo modo, garante-se a impenhorabilidade de

bem que, embora não seja diretamente habitado pela entidade familiar, destina-se,

ainda que indiretamente, a garantir o acesso à moradia, como ocorre na hipótese

de bem cujos frutos são empregados para alugar o bem em que moram,

entendimento que restou consagrado no Enunciado n. 486 da Súmula da

Jurisprudência Dominante do Superior Tribunal de Justiça.270

A elogiável construção jurisprudencial, como se observa, encontra-se

permeada pela função exercida pelo bem tutelado no caso concreto,271

identificando a proteção conferida pela lei com a tutela da pessoa humana.272

Aludida orientação também orienta a interpretação dos bens móveis abrangidos

pela impenhorabilidade, a definir em que circunstância contribuem para a

proteção mínima da família e da pessoa ou se tratariam de bens suntuosos

(abarcados, portanto, pela exceção consagrada no art. 2º).273 Já se demonstrou em

269

Trata-se do STJ, REsp 707.623, 2ª T., Rel. Min. Herman Benjamin, julg. 16.4.2009, em cuja ementa se lê:

“Processual Civil e Tributário. Execução Fiscal. Penhora. Poupança vinculada diretamente à aquisição do

bem de família. Impenhorabilidade. 1. O Tribunal de origem indeferiu a penhora de dinheiro aplicado em

poupança, por verificar a sua vinculação ao financiamento para aquisição de imóvel caracterizado como bem

de família. 2. Embora o dinheiro aplicado em poupança não seja considerado bem absolutamente

impenhorável – ressalvada a hipótese do art. 649, X, do CPC –, a circunstância apurada no caso concreto

recomenda a extensão do benefício da impenhorabilidade, uma vez que a constrição do recurso financeiro

implicará quebra do contrato, autorizando, na forma do Decreto-Lei 70/1966, a retomada da única moradia

familiar. 3. Recurso Especial não provido”. 270

“É impenhorável o único imóvel residencial do devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda

obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua família”. 271

Justamente por isso a própria Corte exclui a proteção em hipóteses nas quais o bem não se mostra

essencial para a moradia e sustento da família, como ocorre quando se trata de imóvel desocupado (AgRg no

REsp 1.232.070, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julb. 9.10.2012); que não se reverta sob nenhum aspecto

para a renda familiar (REsp 1.035.248, 4ª T., Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julg. 16.4.2009); ou, ainda,

há indícios de que se busca apenas salvaguardar patrimônio, sem atender aos pressupostos da lei (v., nesse

sentido, STJ, REsp 1.417.629, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 10.12.2013). 272

STJ, REsp 1400342, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 8.10.2013: “Civil e processo civil. Recurso

especial. Indicação do dispositivo legal violado. Ausência. Súmula 284⁄STF. Bem de família. Imóvel

desocupado, mas afetado à subsistência dos devedores. Impenhorabilidade. (...) 4. A regra inserta no art. 5º

da Lei 8.009⁄1990, por se tratar de garantia do patrimônio mínimo para uma vida digna, deve alcançar toda e

qualquer situação em que o imóvel, ocupado ou não, esteja concretamente afetado à subsistência da pessoa

ou da entidade familiar”. 273

Tal lógica parece inspirar o entendimento de que os móveis em duplicidade não são abarcados pela

impenhorabilidade. É ver-se: “Agravo Regimental no Agravo de Instrumento. Execução. Penhora. Móveis

que guarnecem a casa em duplicidade. Bem de família não configurado. Revisão. Impossibilidade. Súmula

7/STJ. Agravo regimental improvido. I. A aferição da essencialidade do bem, para que seja considerado

impenhorável, exigiria o reexame do conjunto fático exposto nos autos, o que é defeso ao Superior Tribunal

de Justiça, nos termos da Súmula 07/STJ. II. Os bens encontrados em duplicidade na residência são

penhoráveis de acordo com a jurisprudência do STJ. Agravo Regimental improvido” (STJ, AgRg no Ag

821.452, 3ª T., Rel. Min. Sidnei Beneti, julg. 18.11.2008, publ. 12.12.2008). Em seu inteiro teor, ao reiterar

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 146

doutrina a evolução da jurisprudência da Corte Superior que, após debate entre

correntes restritivas e ampliativas da impenhorabilidade dos bens móveis que

guarnecem o bem de família, se consolidou no sentido de que abrange o que

normalmente se encontra em uma residência, tais como computador, televisão e

eletrodomésticos em geral,274 asseverando- q “

”.275 Também em relação à definição da

suntuosidade do bem móvel parece ser central avaliação funcional276 – única

forma capaz de definir, à luz das peculiaridades do caso concreto, a relevância do

objeto para a garantia de moradia digna. Compreende-se, assim, a diversa

qualificação do mesmo objeto, ora compreendido como abarcado pela

impenhorabilidade, ora passível de execução.277

os termos do julgamento do Agravo, asseverou-se que a ausência de proteção de tais bens se justificaria “por

não serem absolutamente necessários à manutenção básica da unidade familiar”. No mesmo sentido: “Bem

de família. Equipamentos que guarnecem o bem de família. Precedentes da Corte. 1. Não está sob a cobertura

da Lei n° 8.009/90, nos termos de precedentes da Corte, um segundo equipamento, seja aparelho de televisão,

seja videocassete. 2. Recurso especial conhecido e provido, em parte” (STJ, REsp 326991, 3ª T., Rel. MIn.

Carlos Alberto Menezes Direito, julg. 18.12.2001). 274

COSTA, Pedro Oliveira. O „bem de família‟ na jurisprudência do STJ. Revista Trimestral de Direito Civil,

vol. 3, p. 172-175, jul/set 2000. 275

STJ, REsp 875.687, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julg. 9.8.2011. No mesmo sentido:

“Reclamação. Divergência entre acórdão prolatado por turma recursal estadual e a jurisprudência do STJ.

Embargos à execução. Televisor e máquina de lavar. Impenhorabilidade. I. É assente na jurisprudência das

Turmas que compõem a Segunda Seção desta Corte o entendimento segundo o qual a proteção contida na Lei

nº 8.009/90 alcança não apenas o imóvel da família, mas também os bens móveis que o guarnecem, à

exceção apenas os veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos. II. São impenhoráveis, portanto,

o televisor e a máquina de lavar roupas, bens que usualmente são encontrados em uma residência e que não

possuem natureza suntuosa. Reclamação provida” (STJ, Rcl 4.374, 2ª S., Rel. Min. Sidnei Beneti, julg.

23.2.2011). 276

A respeito da avaliação funcional dos bens jurídicos, confira-se: “a noção de bens jurídicos, embora se

situe na estrutura da relação jurídica, só poderá ser compreendida de acordo com a função desempenhada

pela situação jurídica que serve de objeto. (...) O significado do bem jurídico depende essencialmente do

interesse que o qualifica e, portanto, sua classificação há de ser apreendida na esteira da função que o bem

desempenha na relação jurídica” (TEPEDINO, Gustavo. Regime jurídico dos bens no Código Civil. In:

VENOSA, Sílvio de Salvo et. al. (coords.). 10 Anos do Código Civil: desafios e perspectivas. São Paulo:

Atlas, 2012, p. 50). 277

Sobre o tema, seja consentido relembrar precedentes do Superior Tribunal de Justiça que, ao avaliar a

possiblidade de penhora de piano em distintas situações, concluíram de forma diametralmente diversa.

Enquanto, por um lado, considerou-se abrangido pela proteção legal o instrumento musical por se tratar de

bem essencial para o estudo e a possibilidade de seu emprego no futuro para sustento das filhas da devedora,

por outro, na ausência de circunstâncias capazes de caracterizar a essencialidade desse mesmo bem para a

entidade familiar, entendeu-se não abarcado o móvel pela proteção legal. Veja-se os respectivos precedentes:

“Processual civil. Embargos à execução. Penhora. TV. Piano. Bem de família. Lei 8.009/90. Art. 649, VI,

CPC. A Lei 8.009/90 fez impenhoráveis, além do imóvel residencial próprio da entidade familiar, os

equipamentos e móveis que o guarneçam, excluindo veículos de transporte, objetos de arte e adornos

suntuosos. O favor compreende o que usualmente se mantém em uma residência e não apenas o

indispensável para fazê-la habitável, devendo, pois, em regra, ser reputado insuscetível de penhora aparelho

de televisão. II. In casu, não se verifica exorbitância ou suntuosidade do instrumento musical (piano), sendo

indispensável ao estudo e futuro trabalho das filhas da Embargante” (STJ, REsp 207.762, 3ª T., Rel. Min.

Waldemar Zveiter, julg. 27.3.2000); “Processual civil. Embargos à execução. Impenhorabilidade dos bens

móveis e utensílios que guarnecem a residência, incluindo computador e impressora. Precedentes. Piano

considerado, in casu, adorno suntuoso (art. 2º, da Lei 8.009/90). (...) Quanto ao piano, não há nos autos

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3. A questão da configuração de fraude na alienação do bem de família

e seus efeitos sobre a impenhorabilidade em julgados do Superior

Tribunal de Justiça

Como consequência das restrições à execução forçada dos bens albergados

pela proteção garantida pela Lei nº. 8.009/1990, afigura-se possível que

determinado crédito reste insatisfeito, muito embora o devedor seja proprietário

de determinados bens, por vezes valiosos.278 Com o intuito de evitar que o credor

ficasse à mercê de posturas abusivas do devedor, previu o legislador hipótese

í çã çã q “ -se

insolvente, adquire de má-fé imóvel mais valioso para transferir a residência

familiar, desfazendo- ã ”. O – que,

principalmente por tratar de casos em que nem sempre haverá prejuízo aos

credores, mas também em decorrência da solução apresentada em seu parágrafo

primeiro, sujeita-se a críticas279 – denota a preocupação com o desvirtuamento da

tutela do bem de família.

Trata-se, todavia, de hipótese específica, a suscitar dúvidas a respeito da

possibilidade de intervenção para superar a impenhorabilidade em outros casos

nos quais se configure comportamento abusivo ou fraudulento do devedor. Sobre o

qualquer elemento a indicar que o instrumento musical seja utilizado pelo Recorrente como meio de

aprendizagem, como atividade profissional ou que seja ele bem de valor sentimental, devendo ser

considerado, portanto, adorno suntuoso. Incidência do disposto no artigo 2º da Lei 8.009/90” (STJ, REsp

198370, 3ª T., Rel. Min. Waldemar Zveiter, julg. 16.11.2000). 278

Conquanto controvertida (v., por todos, REDONDO, Bruno Garcia. Impenhorabilidade no Projeto de

Novo Código de Processo Civil: relativização restrita e sugestão normativa para generalização da mitigação.

Revista de Processo, vol. 201, p. 221 e ss., nov. 2011), verificam-se decisões que consideram desimportante

o valor do imóvel que se caracteriza como bem de família, rejeitando-se pedidos para alienação forçada em

que se garantiria ao devedor montante suficiente para a aquisição de novo imóvel: “A Lei nº 8.009/90 não

estabelece qualquer restrição à garantia do imóvel como bem de família no que toca a seu valor nem prevê

regimes jurídicos diversos em relação à impenhorabilidade, descabendo ao intérprete fazer distinção onde a

lei não o fez” (STJ, REsp 1.397.552, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julg. 20.11.2014). V. tb.: STJ,

REsp 1.320.370, 2ª T., Rel. Min. Castro Meira, julg. 16.6.2012. 279

“Todavia, a solução do legislador, neste caso, é complicadíssima, pois não há necessidade de anular a

alienação do primitivo bem de família, se o novo é mais valioso do que o antigo. Basta, isto sim, permitir a

execução do novo imóvel, no valor que ultrapassar o do antigo, restando esse valor antigo impenhorável,

ainda que contido no imóvel mais valioso. Em caso de execução do imóvel mais valioso ou de ser objeto de

concurso de credores, pelo aludido saldo, o incômodo de ter, com esse valor restante, de comprar novo

imóvel, no mesmo valor do antigo, é do mencionado adquirente de má-fé. Tudo, para que se evite anular a

alienação anterior, realizada a terceiro de boa-fé, no mais das vezes. Nem se diga que este terceiro estaria

sujeito à mesma anulação; pois, sendo comprador ou permutante, dinheiro ou bem seu, substituiu, no

patrimônio do alienante, o valor do imóvel por esse terceiro adquirido. Aliás, como visto, nos casos

analisados, existe acréscimo no patrimônio do alienante o que não se coaduna com a ideia de fraude”

(AZEVEDO, Álvaro Villaça. Direito de Família. São Paulo: Editora Atlas, 2013, p. 377).

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 148

assunto, identificam-se duas orientações tendencialmente divergentes no âmbito

da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

Por um lado, verificam-se precedentes que determinam a superação da

proteção conferida ao bem de família em casos de fraude. É o caso do Recurso

Especial 1.299.580,280 em que se avaliou a possibilidade de penhorar residência do

devedor que, ao longo da execução (inicialmente movida em face de empresa da

qual era sócio, à qual passou a responder após a desconsideração da personalidade

jurídica), alienou seu patrimônio de modo a manter apenas o bem de família em

sua propriedade.281 A execução originou-se do descumprimento de obrigação da

entrega de imóvel, adquirido na planta pelo Exequente e jamais construído pela

empresa do Executado, referindo-se à devolução dos valores pagos, tendo

observado a Ministra Relatora Nancy Andrighi, que, após quinze anos, nenhum

valor houvera sido reavido e o adquirente, que buscava adquirir novo imóvel,

enfrentava dificuldades financeiras.282 Ao apreciar o caso, asseverou a 3ª Turma

que a conduta do devedor violava os padrões impostos pela boa-fé objetiva e a

própria finalidade da proteção legislativa.283

O entendimento foi mais uma vez expressado em precedente da 4ª Turma

do Superior Tribunal de Justiça, em que se consignou a ausência de violação ao

artigo 1º da Lei nº. 8.009/1990 por se ter determinado a penhora de imóvel

adquirido com proventos decorrentes de doação efetuada pelos sócios da

280

STJ, REsp 1.299.580, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 20.3.2012. 281

“Cinge-se a lide a estabelecer se é possível ao Tribunal afastar a proteção conferida a bem de família com

fundamento em que o devedor alienou, no curso da execução, outros bens imóveis de que era proprietário,

remanescendo apenas com o de sua residência”. 282

“Na hipótese dos autos, pelo que se depreende da análise das peças processuais, o recorrido, de boa-fé,

procurou adquirir do recorrente, na planta, um imóvel para sua residência. Esse imóvel não foi construído,

motivando a propositura da ação judicial. Mais de quinze anos depois, o credor não logrou êxito em receber o

valor que investiu na compra de sua casa. Há notícia no processo, inclusive, de que ele se casou e tentou,

novamente, adquirir um imóvel para residir com sua nova família, tendo atravessado dificuldades e se

tornado inadimplente, sob o risco de perder esse novo imóvel (fl. 55, e-STJ), não obstante mantenha, perante

o réu, o crédito aqui discutido em aberto. Há, portanto, o interesse de duas famílias em conflito, não sendo

razoável que se proteja a do devedor que vem obrando contra o direito, de má-fé, segundo apurou o TJ/RJ,

em detrimento da do credor que, até onde se pode constatar, vem atuando nos termos da Lei”. 283

“Não há, em nosso sistema jurídico, norma que possa ser interpretada de modo apartado aos cânones da

boa-fé. Todas as disposições jurídicas, notadamente as que confiram excepcionais proteções, como ocorre

com a Lei 8.009/90, só têm sentido se efetivamente protegerem as pessoas que se encontram na condição

prevista pelo legislador. Permitir que uma clara fraude seja perpetrada sob a sombra de uma disposição legal

protetiva implica, ao mesmo tempo, promover uma injustiça na situação concreta e enfraquecer, de maneira

global, todo o sistema de especial de proteção objetivado pelo legislador. (...) Ao alienar todos os seus bens,

menos um, durante o curso de processo que poderia levá-lo à insolvência, o devedor não obrou apenas em

fraude à execução: atuou também com fraude aos dispositivos da Lei 8.009/90. Todo o direito tem como

limite o seu regular exercício, de boa-fé. O abuso do direito deve ser reprimido”.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 149

executada (pessoa jurídica) após o regular conhecimento da execução.284

Consignou a Minis R I G q “ C

origem não destoa do entendimento deste Tribunal, no sentido de que é afastada a

proteção conferida pela Lei 8.009/90, quando está caracterizada a fraude à

çã ”.285 Invocou o julgado orientação consagrada na Corte a partir de

entendimento adotado ainda sob a égide do Código Civil de 1916,286 segundo a qual

não há que se considerar impenhorável bem de família que retorna ao patrimônio

do devedor em decorrência do reconhecimento de fraude em sua alienação.287

T é “ çã í

a ser utilizado como artifício para viabilizar a aquisição, melhoramento, uso, gozo

⁄ çã í h

q í ó ” 288 o Superior Tribunal de

284

Veja-se trecho do acórdão do Tribunal de origem: “Em termos mais específicos e, a fim de corroborar o

posicionamento adotado pelo Juízo, é de se dizer que seu entendimento se mostrou plenamente adequado ao

conjunto encartado aos autos, uma vez que, como bem definido por força da r. sentença, a alienação do bem

discutido nos autos se deu em evidente fraude à execução, uma vez que, conforme resultou demonstrado por

meio do todo processado, notadamente pelo que diz a Matricula do Imóvel carreada ao feito (fls.20/21), o

bem foi adquirido pelas embargantes em 22/05/2003, ou seja, após a propositura da executiva embargada

(25/04/2002), bem como da promoção da regular citação dos devedores (31/03/2003), esta que se deu na

pessoa dos sócios da executada (fls. 132, dos autos da executiva), sendo importante salientar, ademais, que a

aquisição do bem constrito se deu com recursos provenientes de doação promovida pelos pais das

adquirentes da coisa e, ora embargantes, enquanto sócios da executada (...)” (TJSP, Ap. Cív. 9081478-

33.2007.8.26.0000, 16ª Câmara de Direito Privado, julg. 28.2.2012). 285

STJ, AgRg no AREsp 334.975, 4ª T., Rel. Min. Isabel Gallotti, julg. 7.11.2013. 286

“Processual Civil. Lei 8.009/1990. Superveniência. Penhora levada a efeito antes de sua vigência.

Desconstituição. Direito transitório. Bem que retornou ao patrimônio dos devedores por força de ação

pauliana. Irrelevância. Recurso não conhecido. I. A Lei 8.009/1990, de aplicação imediata, incide no curso da

execução se ainda não efetuada a alienação forçada, tendo o condão de levantar a constituição sobre os bens

afetados pela impenhorabilidade. II. Tendo o bem penhorado retornado ao patrimônio do devedor após o

acolhimento de ação pauliana, é de se excluir a aplicação da Lei 8.009/1990, porque seria prestigiar a má-fé

do devedor. III. Segundo a conhecida lição de Clóvis, „não é ao lado do que anda de má-fé que se deve

colocar o direito; sua função é proteger a atividade humana orientada pela moral ou, pelo menos, a ela não

oposta‟” (STJ, REsp 119.208, 4ª T., Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, julg. 18.11.1997). No mesmo

sentido: STJ, REsp 337.222, 4ª T., Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, julg. 18.9.2007; REsp 170.140, 4ª T.,

Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, julg. 7.4.1999; REsp 123.495, 4ª T., Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira,

julg. 23.9.1998. 287

Ao avaliar também hipótese semelhante ao REsp 1.227.366, descrito no item 1, isto é de doação de bem

de família a filho dos executados (mas sem enfrentar se haveria configuração de fraude à execução em razão

da verificação de preclusão sobre a matéria), asseverou a 6ª Turma do STJ: “O bem que retorna ao

patrimônio do devedor, por força de reconhecimento de fraude à execução, não goza da proteção da

impenhorabilidade disposta na Lei nº 8.009/1990, sob pena de prestigiar-se a má-fé do executado” (STJ,

AgRg no REsp 1.085.381, 6ª T., Rel. Min. Paulo Gallotti, julg. 10.3.2009). 288

STJ, REsp 1440786, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 27.5.2014. Em precedente que enfrentou

hipótese semelhante, asseverou o Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior: “Se a proprietária resolve se

desfazer do bem (...) é porque dele não necessita, ou porque pretende aplicar o produto da venda na aquisição

de outra moradia. Recebendo a integralidade do preço e ficando com o imóvel que prometera vender, estará

se locupletando, pois com os recursos auferidos não adquire outro bem, não paga a dívida resultante da

resolução do negócio, nem oferece dinheiro para a penhora, mantendo íntegro o seu patrimônio graças à lei

de impenhorabilidade do bem de família. Fica prejudicado o promissário comprador, cumpridor do contrato.

Nestas circunstâncias, a impenhorabilidade não pode prevalecer, porquanto a sua proprietária foi a primeira a

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 150

Justiça determinou ser penhorável imóvel no caso de execução decorrente da

ausência de devolução de sinal entregue em promessa de compra e venda relativa

ao próprio imóvel, na hipótese de inexistirem outros bens capazes de satisfazer o

credor. Nada obstante se fundamentar a orientação na exceção prevista no art. 3º,

inciso II da Lei nº. 8.009/1990, verifica-se a intenção de coibir comportamentos

incompatíveis com o princípio da boa-fé objetiva.289

Em outra hipótese na qual entendeu o STJ que teria ocorrido fraude à

execução capaz de determinar a penhora de bem em que residia entidade familiar,

afirmou- q “ q ú ó

onde reside com a família, está, ao mesmo tempo, dispondo daquela proteção

”.290 Cuida-se de precedente nos qual se avaliou doação efetuada pelos

genitores – que já sabiam responder por execução – a seu herdeiro, por meio de

terceira pessoa, com quem celebraram contrato de promessa de compra e venda

não registrada.291 Afirmou-se no acórdão que, a despeito do bem já abrigar a

residência familiar antes da doação (e que, portanto, não seria penhorável antes da

operação), estaria configurada conduta maliciosa pelos executados, de modo a

mitigar sua impenhorabilidade. Indicou-se, em sua conclusão, que (i) o

ordenamento não poderia t “ çã

”; ( ) çã ó çã

– gratuita ou onerosa – do bem de família e depois alegar sua proteção

incluí-lo entre os bens alienáveis. Recebido o preço previsto no contrato, é irrecusável o direito do

promissário comprador buscar o que desembolsou, pois ele poderia – reunidos os pressupostos – exigir a

própria adjudicação compulsória e obter do juiz a transferência da propriedade do imóvel que adquiriu, ou

pelo menos a cessão da posição contratual da promitente junto ao instituto de previdência que construiu o

prédio. Além disso, é preciso garantir a prevalência do princípio da responsabilidade pelo ilícito contratual

que teve por objeto o próprio imóvel, além da necessidade de o Direito proteger a boa fé nos negócios”

(REsp 51.480, 4ª T., Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar Júnior, julg. 20.6.1995). 289

Veja-se trecho do inteiro teor: “a devedora claramente se aproveitou da proteção conferida pela Lei nº

8.009/90 para compromissar a venda do próprio bem de família, sabedora de que o negócio seria desfeito e

na predisposição de reter indevidamente o sinal adiantado pelo comprador, ora recorrente. Não cabe dúvida

de que a proteção legal foi desvirtuada, propiciando o enriquecimento ilícito do proprietário do imóvel em

detrimento de terceiro de boa-fé”. 290

STJ, REsp 1.364.509, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 10.6.2014. 291

Em sentido semelhante, a 4ª Turma manteve orientação fixada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo,

embora não tenha apreciado a questão em decorrência do Enunciado n. 7 de sua Súmula de Jurisprudência

Dominante: “Execução. Bem de família. Impenhorabilidade. Aplicação da Lei n. 8009, de 29.03.90, afastada

em virtude da má-fé com que se houveram os executados. Requisito do art. 5º do citado diploma legal não

demonstrado. Matéria de fato. Má-fé dos executados proclamada pela decisão recorrida em razão de

peculiaridades da causa, dentre elas a circunstância de que, por decisão judicial, se declarou ineficaz a doação

pelos mesmos feita aos filhos. Matéria que se insere no plano dos fatos. Precedentes da Quarta Turma no

sentido de que não se deve prestigiar a má-fé do devedor. Requisitos exigidos pela Lei nº 8.009/90 que estão

a depender, por igual, do reexame de matéria fática (súmula nº 07-STJ). Recurso especial não conhecido”

(STJ, REsp 187.802, 4ª T., Rel. Min. Barros Monteiro, julg. 7.12.1999).

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 151

configuraria comportamento contraditório; e (iii) sendo evidente o propósito do

devedor de blindar seu patrimônio – como no caso, já que a doação foi feita dias

ó çã é “ ” – há

de se reconhecer a fraude à execução e rejeitar a conduta maliciosa, determinando-

se a penhora.

Por outro lado, em sentido oposto aos precedentes acima descritos,

verifica-se posicionamento de acordo com o qual, diante da proteção conferida ao

bem de família, não haveria que se cogitar de fraude à execução e a consequente

constrição do imóvel. Nessa esteira, a 1ª Turma do STJ, ao enfrentar hipótese na

qual se verificou alienação após a citação do devedor em execução fiscal e que

çã é q “

imóvel familiar é revestido de impenhorabilidade absoluta, consoante a Lei

8.009/1990, tendo em vista a proteção à moradia conferida pela CF, e de que não

há fraude à execução na alienação de bem impenhorável, tendo em vista que o bem

de família jamais será expropriado para satisfazer a execução, não tendo o

q q q í z”.292

Orientação semelhante foi traçada no REsp 976.566, em que, entre outros

argumentos, se afirmou inexistir qualquer interesse do credor no desfazimento de

negócios jurídicos de alienação envolvendo bens de família, na medida em que se

caracterizam pela impenhorabilidade e, logo, jamais poderão ser excutidos para o

í . E : “ ã h çã lienação de

bem impenhorável nos termos da Lei n.º 8.009/90, tendo em vista que o bem de

família jamais será expropriado para satisfazer a execução, não tendo o exequente

h í z”.293

A inexistência de prejuízo para o credor também permeou acórdão

proferido pela 2ª Turma da Corte Superior, em que se avaliou a legalidade de

alienação de bem de família enquanto em curso execução fiscal. Na esteira dos

precedentes anteriores, destacou- q “ F ã prejuízo com o

afastamento da fraude à execução em razão de o bem objeto da execução ser

292

STJ, AgRg no AREsp 255.799, 1ª T., Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julg. 17.9.2013, grifou-se.

Em seu inteiro teor, o acórdão reproduz trecho da decisão proferida pelo Tribunal de origem (TJRS) em que a

impenhorabilidade absoluta é justificada da seguinte forma: “a proteção do bem de família pela

impenhorabilidade tem como pauta a dignidade da pessoa humana, fundamento da República (art. 1º, III da

Constituição Federal) e valor primordial do ordenamento jurídico pátrio, do qual deriva diretamente o direito

fundamental à moradia (art. 6º da Carta)”. 293

STJ, REsp 976.566, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julg. 20.4.2010.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 152

h ç ”.294 Segundo argumentou o Ministro Relator Castro

M “ q ã q

anulação s ô ” h

que lhe caracterizaria – não tendo o julgado enfrentado as ressalvas estabelecidas

nos precedentes relativos à penhorabilidade do bem de família que retorna ao

patrimônio do devedor por anulação decorrente de ação pauliana (v. nota 28).

A hipótese de doação pelos genitores a seu herdeiro do bem de família que

habitavam foi novamente enfrentada no REsp 1.227.366, consoante descrito no

item 1, supra. Ao contrário do decidido no âmbito do REsp 1.364.509 – o que foi

explicado no acórdão como consequência das peculiaridades daquela hipótese, em

q çã “ ” –, entendeu a 4ª

Turma do STJ que a operação não poderia ser considerada fraudulenta, vez que

inexistentes os requisitos necessários para tanto, notadamente o prejuízo para os

credores, na medida em que o imóvel já consubstanciava bem de família

anteriormente à operação. Consoante expôs o Ministro Relator Luis Felipe

Salomão:

É que o parâmetro crucial para discernir se há ou não fraude à execução é verificar a ocorrência de alteração na destinação primitiva do imóvel – qual seja, a moradia da família – ou de desvio do proveito econômico da alienação (se existente) em prejuízo do credor.

Além de tal fundamento – como visto, também empregado pelos

precedentes da 4ª e da 1ª Turma –, procurou demonstrar o julgado que à luz da

finalidade atribuída pelo ordenamento à proteção do bem de família –

“ ntidade familiar e,

portanto, indispensável à composição de um mínimo existencial para uma vida

” –, que representa orientação legislativa no sentido de que a

impenhorabilidade se afigura mais relevante que a satisfação do credor, o

reconhecimento de fraude envolvendo os imóveis que atraem a proteção legal deve

ser verificada com prudência pelo intérprete, se caracterizando apenas em

hipóteses excepcionais, já previstas na própria Lei n. 8.009/1990, de modo a

excepcionar a impenhorabilidade do bem de família apenas quando configuradas

as circunstâncias previstas nos artigos 3º e 4º.295

294

STJ, REsp 846.897, 2ª T., Rel. Min. Castro Meira, julg. 15.3.2007. 295

No caso concreto, indicou-se, ainda, outro fundamento para a manutenção da impenhorabilidade, relativo

à indivisibilidade do bem. Assim, na medida em que a proteção visa a salvaguardar a moradia da família, não

já o patrimônio do devedor, o reconhecimento, no Tribunal de origem, que 50% do imóvel não seria

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 153

4. À guisa de conclusão: em busca do equilíbrio entre a proteção à

moradia e a tutela da boa-fé objetiva

Diante do destacado papel das funções atribuídas à impenhorabilidade do

bem de família no ordenamento brasileiro, impõe-se ao intérprete cautela na

avaliação da possibilidade de superação da proteção com base em conduta

fraudulenta do devedor.

Consoante se procurou demonstrar no item 2, supra, cuida-se de

importante instrumento para a proteção da pessoa humana, a espancar

interpretações açodadas que representem a superação imotivada da tutela legal.

Nada obstante, não se pode ignorar as diversas hipóteses em que o devedor se vale

de forma reprovável do benefício.

Nesse cenário, parece ser recomendável evitar o recurso a fórmulas

genéricas na determinação da possibilidade de superação da impenhorabilidade do

bem de família em casos de fraude. Cabe ao intérprete avaliar todas as

circunstâncias relacionadas ao caso concreto e identificar, à luz dos diversos

interesses envolvidos, a solução que melhor atenda aos objetivos

constitucionais,296 não se podendo olvidar que, se por um lado a proteção ao bem

de família traduz concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, há

que se prestigiar também o princípio da boa-fé objetiva, expressão, por sua vez, da

solidariedade constitucional297 (e, assim, do próprio conceito de dignidade)298 –

penhorado por não estar envolvido na fraude deveria levar à impenhorabilidade total do bem, na esteira de

remansosa jurisprudência do STJ, que determina a impossibilidade de penhora parcial no caso de

descaracterização do imóvel (v., por exemplo STJ, REsp 1405191, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg.

3.6.2014). Nos termos da decisão: “ainda que, em última instância, fosse caracterizada a doação fraudulenta,

o benefício da impenhorabilidade estender-se-ia à totalidade do bem, mormente ante a sua incontroversa

destinação”. 296

PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.

201. 297

“Como se sabe, a boa-fé objetiva constitui-se em um dos princípios fundamentais do regime contratual

contemporâneo, consagrada nos arts. 113 e 422 do CC/2002, como expressão do princípio constitucional da

solidariedade social” (TEPEDINO, Gustavo. Caução de créditos no direito brasileiro: possibilidades do

penhor sobre direitos creditórios. In: Soluções Práticas de Direito. Vol. III, São Paulo: Revista dos Tribunais,

2012, p. 451, grifou-se). 298

“A pessoa é inseparável da solidariedade: ter cuidado com o outro faz parte do conceito de pessoa”

(PERLINGIERI, Pietro, cit., p. 461). Para Maria Celina Bodin de Moraes a solidariedade social representa

um dos aspectos da dignidade da pessoa humana (O princípio da dignidade humana. In: BODIN DE

MORAES, Maria Celina (org.). Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.

1 - 61).

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 154

igualmente identificada pela Constituição como objetivo fundamental da

República (art. 3º, I da CRFB).

Portanto, conquanto não haja dúvidas que, na esteira do estabelecido no

REsp 1.227.366, a ocorrência de fraude à execução apenas se mostra possível

quando a alienação importar efetivo prejuízo aos credores,299 de modo que a mera

alienação de bem de família não implica, por si só, alteração no panorama

patrimonial do devedor – seja por possuir o devedor outros bens para arcar com a

obrigação, seja pelo bem envolvido já estar albergado pela impenhorabilidade

antes da alienação (o que, ao fim e ao cabo, não implica prejuízos aos credores que

já não poderiam se valer daquele imóvel), há de se reconhecer hipóteses

excepcionais em que, ainda assim, o benefício deve ser suplantado em virtude de

comportamento do devedor capaz de incutir no credor legítima expectativa de

executá-lo.300

299

“Especificamente no que concerne à hipótese prevista no inc. II (...) exigem-se, cumulativamente, três

requisitos fundamentais para a deflagração da fraude à execução, quais sejam: (a) o prévio ajuizamento de

ação capaz de reduzir o devedor à situação de insuficiência patrimonial, instaurada pela sua citação valida;

(b) o dano, isto é, efetiva situação de insuficiência patrimonial oriunda ou agravada direta e necessariamente

do ato de alienação; e (c) o conhecimento do processo por parte do adquirente, a fim de tutelar a situação

jurídica de terceiros de boa-fé” (TEPEDINO, Gustavo. Desconsideração inversa da personalidade jurídica no

direito brasileiro. In Soluções Práticas de Direito, vol. III, cit., p. 134). Cuida-se de requisito também

reconhecido na fraude contra credores: “O êxito da pauliana, em qualquer hipótese, depende da configuração

do prejuízo sofrido pelo credor que a propõe. Além, pois, da prova de seu credito, haverá de demonstrar a

insolvência do devedor, criada ou agravada pelo ato impugnado. Esse déficit patrimonial é que afeta a

garantia de exequibilidade do credito do promovente, gerando a impossibilidade de realizá-lo, no todo ou em

parte (...) Para configurar o eventus damni é, outrossim, necessário que o ato de disposição praticado pelo

devedor tenha como objeto bem penhorável, pois somente assim terá comprometido a garantia genérica de

seus credores quirografários. Se se alienou bem legalmente impenhorável, como a casa de moradia (Lei n.

8009, de 29/3/1990), ou o instrumento necessário ao trabalho ou profissão (CPC, art. 649, VI), nenhum

decréscimo sofreu o patrimônio excutível do devedor. Logo, prejuízo algum adveio do ato de disposição para

os credores do alienante. E, sem prejuízo, não cabe falar em fraude contra credores” (THEODORO JÚNIOR,

Humberto. Fraude contra credores: A natureza da sentença pauliana, 2ª ed., Belo Horizonte: Editora Del

Rey, 2001, p. 141) 300

Há que se valorar, em tal apuração, se o comportamento do devedor era capaz de legitimamente fazer

surgir no credor tal expectativa. Consoante se esclarece em doutrina: “não são todas as expectativas, mas

somente aquelas que, à luz das circunstancias do caso, estejam devidamente fundadas em atos concretos (e

não somente indícios) praticados pela outra parte, os quais, conhecidos pelo contratante, o fizeram confiar na

manutenção da situação assim gerada. Mais que isso, o comportamento contraditório só será alcançado pela

boa-fé objetiva quando não for justificável e, ainda, quando a reversão de expectativas assim ocorrida gere

efetivos prejuízos à outra parte cuja confiança tenha sido traída” (NEGREIROS, Teresa. O princípio da boa-

fé contratual. In: BODIN DE MORAES, Maria Celina. Princípios do Direito Civil Contemporâneo, cit., pp.

239-240).

Ressalte-se que já se defendeu que a proteção do bem de família seria sempre prevalente em relação à boa-fé:

“o argumento de torpeza, baseado na boa-fé subjetiva e, por isso, essencialmente privado, não pode

prevalecer sobre a proteção do Bem de Família Legal, que envolve ordem pública. (...). (...) a prevalência do

direito à moradia sobre a boa-fé serve para afastar o argumento de aplicação da vedação do comportamento

contraditório (venire contra factum proprium). A partir da idéia de ponderação ou pesagem deve entender

que o primeiro direito tem prioriedade e prevalência sobre a boa-fé objetiva. (TARTUCE, Flávio. A polêmica

do bem de família ofertado. Revista da Emerj, v. 11, nº 43, p. 242-243, 2008, grifos no original).

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Identifica-se na própria jurisprudência do STJ casos nos quais se apontou

justamente a necessidade de reconhecer a inaplicabilidade da proteção ao bem de

família em decorrência da conduta do devedor. A título exemplificativo, ao analisar

o comportamento de casal que oferecera voluntariamente em garantia para adesão

a REFIS imóvel que se caracterizava como bem de família, entendeu a 2ª Turma

por não aplicar o benefício da impenhorabilidade em função da reprovabilidade da

conduta dos executados.301 Conforme descrito no acórdão, os proprietários, em

operação anterior à adesão ao REFIS, já haviam hipotecado o imóvel e, quando

executados, alegado se tratar de bem de família impenhorável, argumentação da

qual intentavam, uma vez mais, se valer, dessa vez para não arcarem com os

valores do benefício tributário. Entendeu-se, nesse cenário, na medida em que a

indicação de bem em garantia era condição para usufruir de benefício legal302 e

q h “ h q ”

inadimplementos planejados, pela execução do bem.303 Em outra hipótese,

avaliando-se estar diante de fraude realizada por devedores que, ademais,

expressamente abdicaram do benefício da impenhorabilidade, compreendeu a 3ª

Turma ser imperioso determinar a penhora do imóvel.304

301

STJ, REsp 1.200.112, 2ª T., Rel. Min. Castro Meira, julg. 7.8.2012. 302

“No caso de que ora se cuida, o proprietário do bem agiu de maneira deliberada, consciente de que a

garantia ofertada era iníqua, mas suficiente para permitir-lhe desfrutar de benefício fiscal sabidamente

indevido. Não se pode tolerar que da utilização abusiva do direito, com violação inequívoca ao princípio da

boa-fé objetiva, possa advir benefício para o seu titular que exerceu o direito em desconformidade com o

ordenamento jurídico. Segundo consta do acórdão recorrido, não foi a primeira vez que Ricardo Pereira

Marques e Flávia Pereira Marques ofertaram o bem em garantia para a obtenção de benefício legal e, quando

executada a garantia, simplesmente alegaram a impenhorabilidade do bem. Dito de outra forma, disse o

acórdão recorrido que os proprietários tem atuado de maneira reiteradamente fraudulenta, valendo-se do bem

de maneira abusiva, com consciência e vontade, para a obtenção de benefício sabidamente indevido”. 303

Confira-se eloquente trecho do acórdão: “Um dos princípios fundamentais do ordenamento jurídico

brasileiro é o da boa-fé objetiva que deve reger todas as relações jurídicas, de modo que nenhum ato, contrato

ou direito pode ser exercido sem observância deste princípio. É nesse contexto que deve ser examinada a

regra de impenhorabilidade do art. 1º da Lei 8.009/90, que, antes de ser absoluta, comporta temperamentos

ditados pelo princípio da boa-fé objetiva. Quando o patrimônio do devedor é alienado de maneira fraudulenta

no curso da execução, por exemplo, é difícil admitir que possa ele se escudar na regra protetiva de

impenhorabilidade do bem de família”. 304

SJT, REsp 554.622, 3ª T., Rel. Min. Ari Pargendler, julg. 17.11.2005. Veja-se expressiva passagem do

voto do Min. Carlos Alberto Menezes Direito: “o bem de família que foi retirado por um ato que configurou

uma enganação, um rompimento da boa-fé objetiva, não está alcançado por aquele precedente que, de forma

geral, entendeu que, na verdade, não pode haver a renúncia do bem de família, mas isso, é claro, admitindo-

se a hipótese da normalidade. Quando se enfrenta uma peculiaridade dessa natureza, que está configurada nos

autos, ou seja, três famílias pobres e, portanto, sem cultura, sem saber específico, que habitam em uma

mesma casa pequena e são procuradas por uma empresa de engenharia, que lhes oferece uma permuta de

bem, pega o terreno para construção e lhes oferece dois apartamentos nesse mesmo prédio, não vindo a

cumprir a obrigação, e já tendo sido retirado o bem de família dessas pessoas, que hoje são as credoras,

evidentemente não se pode aplicar a solução técnica adotada em um caso no qual não havia tal

peculiaridade”.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 156

Em síntese, embora não se questione que a Lei nº. 8.009/1990 possui

sólida inspiração em objetivos centrais à Constituição e, como argutamente

RE 1.227.366 “ í

” -se evitar conclusões generalizantes a respeito da

impossibilidade de superar a proteção ao bem de família em decorrência da

conduta do devedor que, excepcionalmente, pode justificar a exclusão do

benefício.305

Cuida-se, enfim, de entender, como se concluiu no acórdão comentado,

q “ h ocorrência de fraude à execução e sua influência na

disciplina do bem de família deve ser aferida casuisticamente, de modo a evitar a

perpetração de injustiças – deixando famílias ao desabrigo – ou a chancelar a

conduta ardilosa do executado em desfavor d í ”.

305

Embora dissertando sobre a proteção do bem de família do fiador, Álvaro Villaça Azevedo emprega

raciocínio semelhante: “Também seria procedimento de alta má-fé que o proprietário de um bem o conferisse

em garantia de uma relação jurídica, para não cumprir o avençado ou já sabendo da impossibilidade de fazê-

lo. O direito não pode suportar procedimento de má-fé, ou de quem alegue nulidade a que tenha dado causa.

Quem viola a norma não pode invocá-lo em seu benefício (nemo auditur turpitudinem suam allegans)”

(AZEVEDO, Álvaro Villaça, cit., p. 72).

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RESENHAS

Resenha a Arnoldo Wald (organizador), Doutrinas Essenciais –

Mediação e Arbitragem, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais,

2014.

Gustavo Tepedino

Professor Titular de Direito Civil e ex-Diretor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado

do Rio de Janeiro – UERJ

A coleção Doutrinas Essenciais – Mediação e Arbitragem, publicada pelos

elegantes tipos da Editora Revista dos Tribunais, congrega em sete volumes e

alguns milhares de páginas duas verdadeiras instituições do direito brasileiro. De

um lado, os 100 anos de tradição doutrinária da Revista dos Tribunais, com

extraordinário acervo representativo do que de melhor já se publicou no cenário

jurídico no último século. De outra parte, o seu organizador, Prof. Arnoldo Wald,

esse notável jurista e intelectual, professor catedrático da Faculdade de Direito da

UERJ, cuja arguta sensibilidade permitiu, mediante criteriosa seleção, reunir os

mais refinados textos em matéria de mediação e arbitragem, constituindo assim

antologia única no panorama editorial brasileiro.

Em divisão didática e eficiente, o primeiro volume é dedicado à

principiologia, bem como à consolidação normativa, jurisprudencial e doutrinária

da arbitragem. O segundo volume volta-se para a convenção de arbitragem, a

cláusula compromissória e o compromisso arbitral: sua dogmática, elementos e

efeitos essenciais. O terceiro volume incorpora toda a matéria procedimental,

incluindo as diversas fases do processo, a produção probatória e a eficácia da

sentença. O quarto volume orienta-se para os domínios específicos em que a

arbitragem se espraia: do direito empresarial – contendo problemas atinentes aos

litígios de construção civil, societário, contratual e falimentar – ao direito

econômico; direito administrativo e tributário; direito do trabalho; do consumidor,

direito desportivo e o ambiental. O quinto volume congrega textos relacionados à

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 158

arbitragem internacional, homologação e eficácia da sentença, arbitragem estatal e

de investimentos estrangeiros. O sexto volume, finalmente, passa em revista os

modos alternativos de solução de conflitos, no Brasil e no exterior, enfrentando as

técnicas de mediação, conciliação e processos híbridos – a cláusula med-arb,

dispute board e assim por diante. O sétimo volume reúne cuidadosos índices; por

texto e capítulo, por autores, onomástico e alfabético-remissivo.

Os sete volumes da coleção buscam oferecer ao leitor o que de melhor já se

produziu na literatura jurídica brasileira sobre o tema, permitindo traçar

interessante histórico do desenvolvimento da arbitragem, identificar os problemas

atuais e propor perspectivas para seu fortalecimento nos próximos anos. A obra

contém contribuições de ilustres autores de todas as especialidades e domínios do

conhecimento jurídico, de Rui Barbosa a Miguel Reale a, no cenário internacional,

Tullio Ascarelli, René David e Mauro Cappelletti – cujas saudosas memórias se

tornam, assim, de alguma forma, resgatadas em suas lições inexcedíveis –, unindo

também, na doutrina contemporânea, as diversas gerações de estudiosos que

integram a coleção.

O procedimento arbitral tem sido crescentemente utilizado no Brasil,

sobretudo em áreas de elevado nível de especialização, destacando-se questões

relacionadas à energia, petróleo, infraestrutura, construção civil, entre outras. Tais

litígios normalmente abrangem valores vultosos e temas complexos que, por conta

do dever de confidencialidade, acabam por não se tornar de conhecimento público,

inexistindo jurisprudência arbitral brasileira que pudesse ser fonte de consulta.

Daí a importância dessas contribuições doutrinárias essenciais, que franqueiam

aos leitores não somente informações dogmáticas mas, ao mesmo tempo, o retrato

da evolução da arbitragem e de suas controvérsias na experiência brasileira.

Na atualidade, a arbitragem tem contribuído para desafogar o sistema

judiciário nacional, que conta com cerca de 100 milhões de processos em

andamento, e cujos julgamentos são precedidos, em regra, por excessivamente

longos períodos de tempo, notadamente nas matérias de elevada complexidade

técnica. A eclosão da arbitragem no Brasil mostra-se ainda recente, já que a

afirmação pelo STF da constitucionalidade da Lei 9.307/1996 ocorreria apenas ao

final de 2001. De todo modo, o fortalecimento progressivo do procedimento

arbitral tem sido incentivado pela dedicada atuação de respeitadas Câmaras de

Arbitragem e de talentosos árbitros, bem como pela intervenção positiva da

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 159

magistratura, que reconhece, reiteradamente, a força vinculante e definitiva das

decisões arbitrais, nas hipóteses em que se procura invalidar o laudo arbitral

perante o Poder Judiciário.

A Arnoldo Wald a cultura jurídica brasileira deve muitíssimo, seja por sua

pujante produção acadêmica dos últimos 60 anos, seja por sua formidável

liderança científica e comprometimento institucional, ocupando numerosos e

operosos postos de destaque no florescimento da arbitragem no Brasil, tais como

Membro da Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio

Internacional; Vice-Presidente do Comitê Brasileiro da Câmara de Comércio

Internacional; Presidente da Comissão de Arbitragem do Comitê Brasileiro da

Câmara de Comércio Internacional, além de idealizador e coordenador da

festejada Revista de Arbitragem e Mediação.

Por tudo isso, tais doutrinas essenciais configuram obra fundamental na

biblioteca jurídica, ponte entre a memória do direito nacional e o alvissareiro

futuro da arbitragem no Brasil.

Petrópolis, fevereiro de 2015

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 160

SUBMISSÃO DE ARTIGOS

Os trabalhos a serem submetidos à Revista Brasileira de Direito Civil –

RBDCivil para publicação devem observar às seguintes normas:

1. Os trabalhos deverão ser inéditos e exclusivos, isto é, sua publicação não

deve estar pendente em outro local.

2. Os trabalhos deverão ser enviados via e-mail para o endereço

[email protected] . O processador de texto recomendado é o Microsoft

Word. É permitido, contudo, utilizar qualquer processador de texto, desde que os

artigos sejam gravados no formato .rtf (RichTextFormat), formato de leitura

comum a todos os processadores de texto.

3. Os arquivos do artigo e folha de rosto deverão ser separados e

nominados de acordo com o título do trabalho. O artigo não deverá ser

identificado.

4. Os trabalhos para a seção de Doutrina deverão ter preferencialmente

entre 15 e 35 laudas.

5. Os parágrafos devem ser alinhados a 3 cm da margem esquerda escrita.

Não devem ser usados recuos, deslocamentos, nem espaçamentos antes ou depois.

Não se deve utilizar o tabulador "TAB" para determinar os parágrafos: o próprio

"ENTER" já determina este, automaticamente. A fonte utilizada deve ser Times

New Roman, corpo 12. Os parágrafos devem ter entrelinha 1,5; as margens são de

3cm no lado esquerdo, 2,5cm no lado direito e 2,5cm nas margens superior e

inferior. O tamanho do papel deve ser A4.

6. Os trabalhos deverão ser precedidos por uma folha de rosto com o título

do trabalho (em inglês e português), nome do autor (ou autores), endereço,

telefone, fax, e-mail, situação acadêmica, títulos, instituições a que pertença e a

principal atividade exercida.

7. As referências bibliográficas deverão ser feitas de acordo com a NBR

6023/89 (Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT). A referência

bibliográfica básica deverá conter: sobrenome do autor em letras maiúsculas;

vírgula; nome do autor em letras minúsculas; ponto; título da obra em itálico;

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 161

ponto; número da edição; ponto; palavra edição abreviada; ponto; local; dois

pontos; editora (suprimindo-se os elementos que designam a natureza comercial

da mesma); vírgula; ano da publicação; ponto. Exemplo: DAVID, René. Os grandes

sistemas do direito contemporâneo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

8. As referências deverão ser feitas em notas de fim, isto é, ao final do

artigo, com a indicaçã “N ”.

9. Os trabalhos deverão ser precedidos por um resumo analítico bilíngüe

que não ultrapasse 10 linhas, pela indicação de palavras-chaves em inglês e

português e por um Sumário, numerado, com as divisões do texto, separada cada

divisão da outra por um travessão.

Exemplo: SUMÁRIO: 1. Realidade social e ordenamento jurídico – 2.

Regras jurídicas e regras sociais – 3. O jurista e as escolhas legislativas. – 4. O

Código Civil – 5. A Constituição – 6. A chamada descodificação.

10. Qualquer destaque que se queira dar ao texto, sempre com parcimônia,

deve ser feito com o uso do itálico. Não deve ser usado o negrito ou o sublinhado.

11. O Conselho Assessor da Revista reserva-se o direito de propor

modificações ou devolver os trabalhos que não seguirem essas normas. Todos os

trabalhos recebidos serão submetidos ao Conselho Assessor da Revista, ao qual

cabe a decisão final sobre a publicação.

12. A publicação na RBDCivil implica a aceitação das condições da Cessão

de Direitos Autorais de Colaboração Autoral Inédita, e Termo de

Responsabilidade, que serão encaminhados ao(s) autor(es) com o aceite.

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14. As revisões ortográfica e gramatical são inteiramente de

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