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ISSN 2358-6974 VOLUME 3 Jan/Mar 2015 Doutrina Nacional / Leonardo Estevam de Assis Zanini / Ricardo Lucas Calderon / Michele Mayumi Iwasaki / Thaís Fernanda Tenório Sêco Pareceres / Luiz Edson Fachin / Luiz Gastão Paes de Barros Leães Atualidades / Vivianne da Silveira Abílio Resenha / Gustavo Tepedino Vídeos e Áudios / Anderson Schreiber Revista Brasileira de Direito Civil

Revista Brasileira de Direito ISSN 2358-6974 · Paes de Barros Leães ... tem por fim assegurar a todos existência ... percepção de que as disposições normativas que extrapolem

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ISSN 2358-6974

VOLUME 3

Jan/Mar 2015

Doutrina Nacional / Leonardo Estevam de Assis Zanini / Ricardo Lucas Calderon / Michele Mayumi Iwasaki / Thaís Fernanda Tenório Sêco Pareceres / Luiz Edson Fachin / Luiz Gastão Paes de Barros Leães Atualidades / Vivianne da Silveira Abílio Resenha / Gustavo Tepedino

Vídeos e Áudios / Anderson Schreiber

Revista

Brasileira

de Direito

Civil

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 2

APRESENTAÇÃO

A Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil tem por objetivo fomentar o

diálogo e promover o debate, a partir de perspectiva interdisciplinar, das novidades

doutrinarias, jurisprudenciais e legislativas no ambito do direito civil e de areas

afins, relativamente ao ordenamento brasileiro e a experiência comparada,

que valorize a abordagem histórica, social e cultural dos institutos jurídicos.

A RBDCivil é composta das seguintes seções:

Editorial;

Doutrina:

(i) doutrina nacional;

(ii) doutrina estrangeira;

(iii) jurisprudência comentada; e

(iv) pareceres;

Atualidades;

Vídeos e áudios.

Endereço para contato:

Rua Primeiro de Março, 23 – 10º andar

20010-000 Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Tel.: (55) (21) 2505 3650

Fax: (55) (21) 2531 7072

E-mail: [email protected]

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EXPEDIENTE

Diretor

Gustavo Tepedino - Doutor em Direito Civil pela Università degli Studi di Camerino,

Professor Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,

Brasil

Conselho Editorial

Francisco Infante Ruiz - Doutor em Direito Civil e Internacional Privado pela

Universidad de Sevilla, Professor Titular de Direito Civil (Direito Privado

Comparado) na Universidad Pablo de Olavide (Sevilla), Espanha.

Gustavo Tepedino - Doutor em Direito Civil pela Università degli Studi di

Camerino, Professor Titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de

Janeiro, Brasil.

Luiz Edson Fachin – Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, Professor Titular de Direito Civil da Universidade Federal do Paraná, Brasil.

Paulo Lôbo - Doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, Professor

Titular da Universidade Federal de Pernambuco, Brasil.

Pietro Perlingieri - Professor Emérito da Università del Sannio. Presidente da

Società Italiana Degli Studiosi del Diritto Civile - SISDiC. Doutor honoris causa da

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Coordenador Editorial

Aline de Miranda Valverde Terra

Carlos Nelson de Paula Konder

Conselho Assessor

Eduardo Nunes de Souza

Fabiano Pinto de Magalhães

Louise Vago Matieli

Paula Greco Bandeira

Tatiana Quintela Bastos

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SUMÁRIO

Editorial

Contratos empresariais na unidade do ordenamento – Gustavo

Tepedino

6

Doutrina nacional

O surgimento e o desenvolvimento do right of privacy nos Estados

Unidos – Leonardo Estevam de Assis Zanini

9

Usucapião familiar: quem nos salva da bondade dos bons? –

Ricardo Lucas Calderon e Michele Mayumi Iwasaki

28

Prescrição e decadência no direito civil: em busca da distinção

funcional – Thaís Fernanda Tenório Sêco

55

Pareceres

Contrato de seguro de vida e o agravamento do risco – Luiz Edson

Fachin

80

O contrato EPC e o princípio do equilíbrio econômico – Luiz Gastão

Paes de Barros Leães

109

Atualidades

A questão da configuração de fraude nas alienações envolvendo bem

de família e suas consequências: análise da jurisprudência do

Superior Tribunal de Justiça a partir do Recurso Especial nº

1.227.366 – Vivianne da Silveira Abílio

Resenhas

135

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Resenha a Arnoldo Wald (organizador), Doutrinas Essenciais –

Mediação e Arbitragem, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais,

2014 – Gustavo Tepedino

151

Vídeos e áudios

Direito e Mídia – palestra proferida pelo Professor Anderson

Schreiber na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro

(EMERJ) em 03/11/2014

--

Submissão de artigos

Saiba como fazer a submissão do seu artigo para a Revista Brasileira

de Direito Civil - RBDCivil

154

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EDITORIAL

CONTRATOS EMPRESARIAIS NA UNIDADE DO ORDENAMENTO

Gustavo Tepedino

Nos dias 26 e 27 de fevereiro de 2015, o Conselho da Justiça Federal e a

Escola Nacional de Formação de Magistrados (ENFAM), sob a liderança dos Ministros

Humberto Martins e João Otávio de Noronha, promoveram a II Jornada de Direito

Comercial, destinada à discussão e elaboração de Enunciados Interpretativos relacionados

ao direito empresarial, contratual e societário. O evento reuniu professores, magistrados e

profissionais do Direito de todo o Brasil, propiciando riquíssima discussão sobre os temas

atuais do direito comercial.

Ao lado da excelência de diversos Enunciados aprovados, amplamente

divulgados e destinados a exercer papel central na prática jurídica, vale refletir sobre a

superação da consumida controvérsia acerca da autonomia do direito comercial e da

unicidade do direito obrigacional. Isto porque a classificação didática dos diversos ramos do

direito não exclui o tratamento interpretativo unitário de todas as disciplinas jurídicas,

especialmente no caso de matérias afins, que se sobrepõem inevitavelmente no direito

obrigacional. Verifica-se, a mais não poder, na jurisprudência e, notadamente, na utilização

intensa dos princípios normativos pelo Superior Tribunal de Justiça, que as peculiaridades

dos diversos ramos do direito não afastam a construção dogmática informada por valores

comuns que tornam o direito empresarial integrado à teoria das obrigações.

Afinal, a unidade do direito decorre não de suposta dogmática monolítica

do direito obrigacional e empresarial, mas da dinâmica funcional do sistema jurídico,

articulado em ordenamento complexo sob a regência de Texto Constitucional rígido.

Compreende-se, assim, que a livre iniciativa tenha foro constitucional, assim como a

dignidade humana, a isonomia substancial e a solidariedade social (art. 1º, III e IV; e art. 3º,

I e III, C.R.), fundamentos e objetivos fundamentais da República. Do mesmo modo, na

linguagem do constituinte, a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho e na livre

iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme ditames da justiça social,

observados numerosos princípios socializantes prescritos pelo art. 170 e por seus incisos.

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Trata-se de ordem econômica que estimula e promove, a um só tempo, a liberdade e a

solidariedade; a autonomia privada e a igualdade.

Longe de trazer incerteza, essa opção do constituinte de conectar a

atividade econômica a interesses existenciais e sociais serve de suporte para a estabilidade

do sistema, de modo a evitar guetos setoriais isolados, erigidos ao sabor de pressões

econômicas. Cabe à magistratura, mediante suficiente fundamentação de suas decisões,

depurar a nova concepção de segurança jurídica, firme na legalidade constitucional e em

parâmetros objetivos que permitam a transparência e o controle social da atividade

jurisdicional. Na esteira dessa perspectiva de segurança, os princípios e cláusulas gerais não

devem ser tomados como opção ideológica ou redacional, e sim como fenômeno cada vez

mais frequente nos países da civil law (e mesmo nos países da common law), a traduzir

técnica legislativa própria da era tecnológica: a iniciativa privada caminha em velocidade

frenética, tornando impossível disciplinar a atividade econômica senão mediante o recurso

a princípios e cláusulas gerais.

Nesse cenário, com o propósito de estabelecer padrões hermenêuticos

coerentes, assume relevância a distinção estabelecida pelo constituinte, fundamentada não

mais em aspectos estruturais e estáticos, mas em critérios funcionais e dinâmicos, que aparta

as relações existenciais das patrimoniais. Nestas últimas privilegia-se, sem ruptura do

sistema, o legítimo escopo econômico dos titulares, justificando-se assim o tratamento

igualitário das partes nos contratos empresariais, em que há simetria de informações entre

os contratantes. Não há aqui fuga do sistema mas reconhecimento da legitimidade da

autonomia privada no âmbito do mesmo sistema jurídico que agrega e concilia valores

sociais e existenciais.

De fato, o contrato constitui-se no principal instrumento para a realização

da autonomia privada, que se expressa no acordo de vontade. Há de ser prestigiada a

atividade empresarial sem prejuízo do respeito a valores extrapatrimoniais alcançados pelos

negócios jurídicos. Nessa mesma linha de análise, a preocupação constitucional com o meio

ambiente equilibrado, a tutela do consumidor, a livre concorrência e a integridade psicofísica

dos trabalhadores corrobora o valor social da livre iniciativa, mostrando-se equívoca a

percepção de que as disposições normativas que extrapolem a letra regulamentar da lei sejam

fonte de insegurança.

Na mesma linha de análise, os princípios da função social, da boa-fé

objetiva e do equilíbrio econômico das prestações, longe de intimidarem os atores jurídicos

ou reduzirem a atividade empresarial, refletem a dimensão axiológica estabelecida pela

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ordem constitucional. Mostra-se assim plenamente compatível com os contratos

empresariais o controle de merecimento de tutela das cláusulas negociais, assim como, nos

termos da previsão do Código Civil, a repressão a cláusulas abusivas; a possibilidade de

resolução e revisão de obrigações tornadas excessivamente onerosas; a maior proteção do

aderente, e assim por diante.

Na legalidade constitucional, as peculiaridades dos contratos empresariais

encontram plena justificação axiológica, sendo inconcebível, por exemplo, a leitura dos

princípios acima mencionados associados à pretensa vulnerabilidade em relações paritárias.

Tais singularidades, contudo, compatíveis com a pluralidade das fontes normativas e

diversidade de cenários econômicos, não afastam a unidade do ordenamento e a necessidade

de se rejeitar a fragmentação do sistema jurídico – e de sua tábua de valores – em que se

manifesta a identidade cultural da sociedade.

G.T.

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SEÇÃO DE DOUTRINA: Doutrina Nacional

O SURGIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DO RIGHT OF PRIVACY NOS

ESTADOS UNIDOS

The emergence and development of the right of privacy in the United States

Leonardo Estevam de Assis Zanini

Pós-doutorado em Direito pelo Max-Planck-Institut für ausländisches und

internationales Strafrecht (Alemanha). Doutor em Direito Civil pela USP, com estágio de doutorado na

Albert-Ludwigs-Universität Freiburg (Alemanha). Mestre em Direito Civil pela PUC-SP. Juiz Federal.

Professor universitário.

Resumo: O artigo aborda o surgimento e a evolução do right of privacy nos Estados Unidos.

Analisa a publicação de Warren e Brandeis e sua influência na doutrina, na jurisprudência e

na legislação. Cuida das construções doutrinárias posteriores ao artigo de Warren e Brandeis,

como é o caso dos estudos de Prosser e Bloustein. Trata da distinção entre o right of privacy

e o right of publicity, bem como da formulação do privacy constitucional. Por fim, examina

a relação existente entre os direitos da personalidade e o right of privacy.

Palavras-chave: Right of privacy; Right of publicity; Direitos da personalidade; Dignidade

da pessoa humana; Common law.

Abstract: The article discusses the emergence and evolution of the right of privacy in the

United States. It analyzes the publication of Warren and Brandeis and its influence in

doctrine, case law and legislation. It examines the doctrinal constructions subsequent to the

article of Warren and Brandeis, such as the studies of Prosser and Bloustein. It seeks to trace

the differences between the right of privacy and right of publicity, as well as the formulation

of the constitutional privacy. Finally, it examines the relationship between the personality

rights and the right of privacy.

Keywords: Right of privacy; Right of publicity; Personality rights; Human dignity;

Common law.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 10

Sumário: Introdução – 1. O surgimento do right of privacy e a contribuição de Warren e

Brandeis – 2. O reconhecimento do right of privacy nos tribunais dos Estados Unidos – 3.

As dificuldades para o desenvolvimento do privacy até a década de 1950 – 4. O right of

publicity – 5. A difícil distinção entre o privacy e o publicity – 6. O privacy na construção

doutrinária de Prosser – 7. O privacy como tutela da dignidade e da individualidade – 8. A

formulação do privacy constitucional – 9. A consolidação do entendimento do caso Griswold

– 10. A relação entre o right of privacy e os direitos da personalidade – 11. Considerações

finais

Introdução

O right of privacy surgiu nos Estados Unidos e difundiu-se para os países

que adotam o sistema da common law. Tais países, entretanto, apresentam um grau bastante

variado de proteção da personalidade humana, valendo notar, por exemplo, que no Direito

inglês não haveria uma espécie de proteção geral, mas apenas uma tutela indireta,

relacionada com elementos constitutivos de determinados delitos.1

Desta feita, considerando sua origem e os grandes avanços de seu sistema

protetivo, bem como que se trata de modelo utilizado por outros países de common law e

mesmo de civil law, objetivamos realizar um breve estudo sobre o right of privacy nos

Estados Unidos, passando pelas diversas fases de seu desenvolvimento até seu

reconhecimento no âmbito constitucional.

Nossa análise, ao lado do estudo do privacy, também buscará a

compreensão dos principais pontos de divergência e convergência entre o sistema dos

Estados Unidos e o dos direitos da personalidade, tradicionalmente reconhecido pelos países

de direito continental, como é o caso do Brasil.

1. O surgimento do right of privacy e a contribuição de Warren e Brandeis

A ideia de privacy, conforme asseveram muitos autores, já estava presente

no sistema jurídico dos Estados Unidos no século XIX, sendo possível o reconhecimento de

uma primeira manifestação do interesse individual de “ser deixado só” no caso Wheaton v.

Peters, decidido pela Suprema Corte no ano de 1834. No entanto, o conceito de privacy não

1 LÉVY, Vanessa. Le droit à l’image: définition, protection, exploitation. Zürich: Schulthess, 2002, p. 152.

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chegou a receber reconhecimento formal da comunidade jurídica como um right, o que

somente ocorreu com a publicação do artigo de Samuel D. Warren e Louis D. Brandeis.2;3

Antes do artigo de Warren e Brandeis, vamos encontrar na obra do juiz

Thomas Cooley, publicada em 1880, sob o título “A Treatise on the Law of Torts”, a primeira

utilização da expressão “right to be let alone”. Apesar de ter cunhado a expressão, Cooley

não a relacionou com a noção de privacy,4 mencionando-a em seu trabalho sobre

responsabilidade civil (torts) como parte do seguinte trecho: “The right to one’s person may

be said to be a right of complete immunity: to be let alone”.5

A expressão forjada por Cooley somente ganhou relevo com a publicação,

em 15 de dezembro de 1890, na Harvard Law Review, do artigo de autoria de Samuel D.

Warren e Louis D. Brandeis, intitulado “The Right to Privacy”. Nele os autores colocam em

evidência a ocorrência de transformações sociais, políticas e econômicas, bem como o

surgimento de novos inventos, como a fotografia, que contribuíram para a ocorrência de

violações da vida privada das pessoas.6;7

Partindo desses problemas, os autores analisam um bom número de

decisões de tribunais ingleses e americanos, deduzindo então a existência de um princípio

geral na common law, o right of privacy. Assim, utilizando o termo “right to be let alone”,

propõem um novo “tort”, a invasão do “privacy”, que constituiria uma profunda ofensa, que

2 SOMA, John T. Privacy law. St. Paul: Thomson/West, 2008, p. 11. 3 Apesar de muitos estudiosos admitirem na common law o reconhecimento jurisprudencial do right of privacy

antes do artigo de Warren e Brandeis, o tema não é, entretanto, isento de discussões. De fato, há um grupo

considerável de estudiosos que vê nos casos apontados pelo artigo como de reconhecimento do privacy apenas

a admissão de outros institutos, como o direito de propriedade, a quebra de contrato, a violação de confiança

ou mesmo a ocorrência de difamação, sendo a eventual proteção do privacy apenas incidental. Afirma-se ainda

que os argumentos utilizados por Warren e Brandeis para a construção do privacy partiram da errônea

compreensão dos precedentes examinados. FESTAS, David de Oliveira. Do conteúdo patrimonial do direito

à imagem. Coimbra: Coimbra, 2009, p. 156-157. 4 RIGAUX, François. La protection de la vie privée et des autres biens de la personnalité. Bruxelas: Bruylant,

1990, p. 272. 5 COOLEY, Thomas McIntyre. A treatise on the law of torts. Chicago: Callaghan, 1880, p. 29. 6 Warren e Brandeis consideram a proteção do privacy uma necessidade: “The intensity and complexity of life,

attendant upon advancing civilization, have rendered necessary some retreat from the world, and man, under

the refining influence of culture, has become more sensitive to publicity, so that solitude and privacy have

become more essential to the individual; but modern enterprise and invention have, through invasions upon

his privacy, subjected him to mental pain and distress, far greater than could be inflicted by mere bodily

injury.” WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D. The Right to Privacy. Harvard Law Review, v. 4, n. 5,

p. 193-220, dez. 1890, p. 196. 7 Há muito debate em torno da motivação de Warren e Brandies para a publicação do artigo dedicado ao

privacy. Alguns estudiosos especulam que foi uma resposta ao aumento de sensacionalismo da imprensa em

geral. Outros apontam que seria uma reação direta aos abusos cometidos pela imprensa contra a família de

Warren, uma das mais influentes na sociedade de Boston do final do século XIX. Seja como for,

independentemente das razões que levaram ao artigo, é certo que ele causou muito impacto no âmbito da

common law, sendo ainda hoje inegável a sua importância. WAGNER, Wienczyslaw J. Le “droit à l’intimité”

aux Etats-Unis. Revue Internationale de Droit Comparé, v. 17, n. 2, p. 365-376, abr.-jun. 1965, p. 366.

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lesionaria o senso da própria pessoa sobre sua independência, individualidade, dignidade e

honra.8

Nessa linha, o direito em questão garantiria ao indivíduo uma ampla

liberdade contra intromissões não desejadas em sua vida, tutelando seus pensamentos,

sentimentos, emoções, dados pessoais e até mesmo o nome.9 A imagem também foi incluída

no âmbito de proteção do privacy,10 destacando-se que os avanços da fotografia tornaram

possível a captação de forma oculta dos traços pessoais, pelo que se fazia necessária a

utilização da lei de torts diante dos riscos inerentes ao progresso técnico.11

Para fundamentar o privacy, os autores recorreram ao direito à vida,

expressamente enunciado na declaração de independência dos Estados Unidos e

formalmente reconhecido pela quinta emenda da Constituição. Acrescentaram ainda que

apesar de a Constituição não fazer qualquer menção à palavra privacy, seus princípios já

faziam parte da common law, particularmente no que diz respeito à proteção do domicílio,

tendo o desenvolvimento tecnológico apenas tornado necessário reconhecer expressamente

e separadamente esta proteção sob o nome de privacy.12

Outrossim, apresentam no artigo limitações ao privacy, como por

exemplo: a permissão de publicação de material de interesse geral e público, a possibilidade

de publicação de fatos danosos quando o indivíduo consente, bem como a inexistência de

defesa quando se alega que o fato é verdadeiro ou então que não houve “malícia” na

publicação.13

O artigo de Warren e Brandeis vai provocar um impacto considerável no

sistema jurídico norte-americano, mas isso não vai ocorrer de maneira imediata. De fato, em

um primeiro momento ocorreu hesitação por parte da doutrina quanto ao privacy, pois

8 SOMA, John T, op. cit., p. 11. 9 PLACZEK, Thomas. Allgemeines Persönlichkeitsrecht und privatrechtlicher Informations- und Datenschutz.

Hamburg: LIT, 2006, p. 46-47. 10 É importante observar, já de início, que o termo “privacy” não pode ser confundido com a expressão

“privacidade” da língua portuguesa. De fato, deflui tanto do artigo de Warren e Brandeis como das primeiras

decisões sobre a matéria que o privacy assumiu, desde o início, vocação para ampla tutela dos valores da

personalidade, não se limitando apenas à tutela da privacidade (FESTAS, David de Oliveira. Do conteúdo

patrimonial do direito à imagem, p. 32). Desse modo, considerando a dificuldade na tradução do termo, que

não se confunde com a privacidade e nem com os direitos da personalidade, preferimos utilizar nesse trabalho,

para não incorrermos em nenhuma imprecisão, a expressão em inglês. 11 WARREN, Samuel D.; BRANDEIS, Louis D., op. cit., p. 211. 12 SOMA, John T., op. cit., p. 13-14. 13 Ibidem, p. 14.

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muitos autores negaram energicamente as novas ideias, enquanto que outros defenderam o

instituto com entusiasmo.14

Nos tribunais o efeito da publicação do artigo também não foi imediato,

uma vez que os primeiros casos julgados não reconheceram a existência do privacy.

Contudo, a ideia foi aos poucos sendo adotada e até expandida pelos tribunais estaduais e

federais, valendo ainda notar que nas primeiras décadas de existência o right of privacy foi

defendido ao abrigo da property theory, mas depois passou a ser progressivamente abordado

como um direito pessoal.15

De qualquer forma, é interessante notar que para o sistema da common law

dos Estados Unidos é bastante incomum que um artigo publicado em uma revista tenha sido

decisivo para desenvolvimento de um direito. Também é muito supreendente o fato de que

um artigo publicado em 1890 ainda continue a ser considerado hodiernamente como a obra

fundamental sobre o tema, sem tem perdido sua validade, especialmente se levarmos em

conta a importância e atualidade da matéria.16

2. O reconhecimento do right of privacy nos tribunais dos Estados Unidos

Os casos Schuyler v. Curtis (1891)17 e Marks v. Jaffa (1893) são

normalmente apontados, por um grande número de doutrinadores, como aqueles que teriam

iniciado as discussões a respeito do right of privacy nos tribunais dos Estados Unidos. Apesar

da precedência, mais célebres se tornaram outros dois casos, que foram julgados de forma

diversa e coincidentemente envolveram lesão ao direito à imagem.18

O primeiro deles, o caso Roberson v. Rochester Folding Box Co.,

conhecido como “Flour of the Family”, diz respeito à inserção da fotografia de uma moça

14 PROSSER, William Lloyd. Handbook of the law of torts. 4 ed. St. Paul: West, 1971, p. 802. 15 FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 164-165. 16 KAMLAH, Ruprecht. Right of privacy. Köln: Carl Heymanns, 1969, p. 58-59. 17 O caso Schuyler v. Curtis é particularmente interessante, pois além de apresentar um problema que

abrangeria o reconhecimento do direito à imagem, também levanta a questão da imagem da pessoa falecida. A

demanda foi iniciada por Philip Schuyler, sobrinho de Mary Hamilton Schuyler, que se opôs à construção e

exposição de uma estátua de sua falecida tia em um evento em Chicago. A Supreme Court de Nova Iorque

(primeira instância), em 1891, apoiada no artigo de Warren e Brandeis, acolheu o pedido, sustentando que a

falecida tinha mantido em vida uma postura reservada, que não seria compatível com a pretendida exposição.

A Court of Appeals, entretanto, asseverou que não era relevante o desejo da falecida, pois eventual right of

privacy não teria sobrevivido à morte da senhora Schuyler. HAND, Augustus N. Schuyler against Curtis and

the Right to Privacy. The American Law Register and Review, Philadelphia, vol. 45, n. 12, p. 745-759, dez.

1897, passim. 18 FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 161-165.

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em um cartaz publicitário divulgado por um fabricante de farinha. A ação foi rejeitada em

1902 pela Court of Appeals de Nova Iorque, mas a existência do right of privacy

aparentemente tinha sido reconhecida pelas duas cortes inferiores.19

Na decisão da Court of Appeals, tomada por estreita maioria de quatro

votos a favor e três contra, foi negada a existência do direito em questão pela falta de

precedente, pelo caráter puramente mental da lesão, pela dificuldade de se estabelecer a

distinção entre natureza pública e privada, bem como pela indevida restrição à liberdade de

imprensa e liberdade de expressão.20

Em seguida, três anos mais tarde, o caso Pavesich v. New England Life

Ins. Co. foi levado à Suprema Corte da Georgia. Nele foi debatida a reprodução não

autorizada em um jornal do retrato do senhor Pavesich, que foi colocado ao lado da foto de

um homem em farrapos, tendo sido atribuída a prosperidade do primeiro ao fato de ter

contratado uma apólice de seguro.21

Na decisão, proferida em 1905, a corte rejeitou os argumentos levados

anteriormente ao caso Roberson, pelo que acabou aceitando o entendimento de Warren e

Brandeis. Assim, os juízes consideraram que a publicação da imagem de uma pessoa, sem

seu consentimento e com o propósito de exploração comercial, configuraria uma violação

do right of privacy, o que não demandaria da pessoa retratada prova especial do dano.22

A decisão do caso Pavesich v. New England Life Ins. Co. foi então sendo

paulatinamente seguida por tribunais de vários outros estados americanos, de modo que na

década de 1950 a oposição ao right of privacy já tinha praticamente desaparecido.23

Por conseguinte, fica evidente que as duas últimas decisões mencionadas

são extremamente importantes para o desenvolvimento do privacy nos Estados Unidos,

motivo pelo qual são reiteradamente analisadas nos manuais. Também é interessante

observar que os casos apresentados estão associados à defesa de valores patrimoniais, ainda

que ligados a valores pessoais. Ademais, vale ainda destacar que apesar de no caso Roberson

v. Rochester Folding Box Co. ter sido rejeitada a concepção de Warren e Brandeis, não

19 RIGAUX, François, op. cit., p. 278. 20 PROSSER, William Lloyd, op. cit., p. 803. 21 Ibidem, p. 803. 22 Os juízes se pronunciaram nos seguintes termos: “The publication of a picture of a person, without his

consent, as a part of an advertisement, for the purpose of exploiting the publisher’s business, is a violation of

the right of privacy of the person whose picture is reproduced, and entitles him to recover, without proof of

special damage”. LÉVY, Vanessa, op. cit., p. 150. 23 KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 59-60.

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podemos nos esquecer que tal julgado contou com opiniões divergentes, bem como deu

causa à promulgação de uma lei sobre privacy no Estado de Nova Iorque.24

3. As dificuldades para o desenvolvimento do privacy até a década de 1950

O período que vai do início até a metade do século XX não apresentou

evolução aparente da doutrina do privacy, registrando apenas decisões que confirmaram a

concepção desenvolvida por Warren e Brandeis. Perdeu-se então a oportunidade de incluir

os avanços tecnológicos do período na proteção.25

A estagnação do desenvolvimento do privacy provavelmente está

associada à apresentação aos tribunais de um reduzido número de casos com novos pontos

de vista, bem como pelo fato de que os tribunais não estavam dispostos a avançar no tema

sem apoio em figuras jurídicas tradicionais, como a proteção da honra ou da propriedade.26

A problemática é muito bem representada pela decisão do caso Olmstead

v. United States, que pode ser considerada como uma das corresponsáveis pela referida

estagnação da doutrina do privacy. O processo envolvia escutas telefônicas feitas pelo FBI

contra Roy Olmstead e muitas outras pessoas, que teriam transportado e vendido bebidas

alcoólicas em violação à lei nacional.27

O tribunal decidiu que as escutas telefônicas realizadas, que constituíam o

principal meio de prova, não tinham sido feitas com invasão da propriedade privada, já que

os cabos telefônicos interceptados se localizavam na rua, em áreas próximas das casas e dos

escritórios investigados. No voto vencedor, o juiz Taft esclareceu que a escuta por meios

eletrônicos não poderia ser considerada como busca, no sentido empregado pela

Constituição, uma vez que não houve invasão física, e que não teria ocorrido apreensão

inconstitucional, na medida em que não envolveu nenhum bem tangível.28

Desse modo, como os locais investigados não foram fisicamente

invadidos, as interceptações telefônicas não violariam a Quarta Emenda da Constituição, que

garante a inviolabilidade da pessoa, da sua casa, de seus documentos e dos seus bens contra

a realização de buscas e apreensões ilegítimas. Assim, foi dada interpretação literal à Quarta

24 Ibidem, p. 59-60. 25 Ibidem, p. 61. 26 Ibidem, p. 61. 27 MCWHIRTER, Darien Auburn; BIBLE, Jon D. Privacy as a constitucional right: sex, drugs, and the right

to life. New York: Quorum Books, 1992, p. 92. 28 O’BRIEN, David M. Privacy, law, and public policy. New York: Praeger, 1979, p. 51-52.

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Emenda constitucional, que seria aplicável somente na hipótese de busca envolvendo

invasão física e de apreensão de objetos tangíveis.29

Apesar do entendimento da Suprema Corte dos Estados Unidos, o juiz

Brandeis, coautor do famoso artigo já mencionado, apresentou voto em sentido contrário,

propugnando por uma aplicação liberal da Quarta Emenda constitucional, que protegeria o

cidadão contra qualquer violação injustificada do privacy, seja qual for o meio utilizado.

Asseverou ainda que o governo deveria ter obtido um mandado de busca antes de ter

invadido a privacidade alheia, mesmo porque a Constituição protege os cidadãos não apenas

em aspectos materiais, mas também em suas crenças, pensamentos, emoções e sensações.30

Nessa linha, Brandeis, usando na decisão linguagem similar àquela do

artigo publicado muitos anos antes, ampliou o foco do privacy, destacando que o right to be

let alone encontra proteção não somente na common law, mas também na Constituição.

Também identificou o Estado como um potencial ofensor desse direito.31

Nos anos que se seguiram, a posição defendida por Brandeis foi

continuamente sustentada por outros juízes, mas a Suprema Corte dos Estados Unidos,

apesar de pronunciamentos ousados em muitos julgados, manteve reserva ao right of privacy

quando se discutia seu reconhecimento constitucional e a admissão de provas em processos

criminais.32

Assim, também não foi reconhecida a ocorrência de violação ao privacy

no caso Goldman v. United States (1942), em que a conversa do acusado foi gravada por um

microfone instalado na parede do apartamento contíguo, uma vez que a prova não teria sido

obtida com invasão física.33 O posicionamento foi mais uma vez confirmado no caso On Lee

v. United States (1952), quando o tribunal admitiu as provas colhidas pela escuta de

conversações entre On Lee e um agente infiltrado, que estava com um microfone. O mesmo

pode ser constatado em Silvermann v. United States (1961), que, confirmando a regra do

caso Olmstead, apenas condenou a utilização de microfones pelo fato de ter ocorrido invasão

de propriedade.34

29 Ibidem, p. 51. 30 MCWHIRTER, Darien Auburn; BIBLE, Jon D., op. cit., p. 93. 31 SOLOVE, Daniel J.; ROTENBERG, Marc; SCHWARTZ, Paul M. Privacy, information, and technology.

New York: Aspen, 2006, p. 28-29. 32 KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 61-63. 33 DIONISOPOULOS, Allan; DUCAT, Craig R. The Right to Privacy: Essays and Cases. St. Paul: West, 1976,

p. 18. 34 O’BRIEN, David M., op. cit., p. 54-55.

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4. O right of publicity

Em 1953 mais um passo importante é dado no julgamento do caso Haelan

Laboratories Inc v. Topps Chewing Gum Inc, que colocou em evidência a falta de adaptação

e a insuficiência do privacy para a resolução de problemas relativos a interesses patrimoniais,

estabelecendo novos limites para esse direito.35

A demanda envolveu a celebração de vários contratos entre a empresa

Haelan Laboratories Inc e jogadores profissionais de baseball, nos quais foi estabelecido um

direito exclusivo de utilização da imagem, do nome e de elementos biográficos dos jogadores

para a venda de produtos da empresa. Conhecendo a existência do contrato, a empresa

concorrente Topps Chewing Gum Inc procurou os mesmos jogadores e obteve, em violação

à obrigação contratual anterior, semelhante autorização para utilização da imagem, o que

deu ensejo à demanda judicial por parte da primeira empresa.36

Em sua defesa, a ré asseverou que os contratos celebrados entre a autora e

os jogadores não poderiam transferir o right of privacy, visto que tal direito tinha natureza

pessoal e intransferível. Também argumentou que nos contratos não havia previsão de

nenhum property right que pudesse ser invocado.37

Entretanto, o tribunal rejeitou os argumentos da defesa, considerando, sem

nenhuma preocupação teórica, a necessidade de se destacar uma parte do right of privacy e

reconhecer a existência de um right of publicity. Tal direito foi considerado independente do

privacy e garantiria um privilégio exclusivo à pessoa quanto ao aproveitamento econômico

de sua notoriedade, o que poderia ser considerado um property right, na medida em que teria

valor pecuniário.38

Assim sendo, apesar de guardar suas origens históricas no right of privacy,

o surgimento do right of publicity não decorreu de um processo evolutivo, mas é resultado

de uma radical ruptura do right of privacy, que produziu um direito transmissível, inclusive,

na opinião da doutrina majoritária, por herança.39

Após a decisão do caso Haelan, a nova figura jurídica foi rejeitada por

alguns tribunais e aceita por outros. A mesma diversidade de entendimentos pôde ser vista

35 ROUVINEZ, Julien. La licence des droits de la personnalité. Zürich: Schulthess, 2011, p. 81. 36 RIGAUX, François, op. cit., p. 395. 37 FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 176. 38 RIGAUX, François, op. cit., p. 393 e 396. 39 GÖTTING, Horst-Peter. Persönlichkeitsrechte als Vermögensrechte. Tübingen: Mohr Siebeck, 1995, p. 191.

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na doutrina, que contou, entre os defensores do right of publicity, com Grodin e Nimmer.

Este último acabou fixando os contornos do novo instituto, destacando que o right of privacy

não era adequado para a integral proteção do cidadão na segunda metade do século XX, em

especial pela presença maciça da publicidade.40

No âmbito da Suprema Corte dos Estados Unidos, o right of publicity

somente foi reconhecido em 1977, no julgamento do caso Zacchini v. Scripps-Howard

Broadcasting Company, quando se admitiu a existência de interesse econômico na

apresentação de um “homem-bala” que foi transmitida pela televisão sem sua autorização.41

Na demanda, o tribunal atribuiu ao right of publicity um interesse análogo

à propriedade (propietary interest) e afirmou ainda que a finalidade de tal direito é muito

próxima à de uma patente ou de um copyright, na medida em que é protegido o direito de

colher os frutos de uma atividade individual, que nada tem a ver com a proteção dos

sentimentos ou da reputação.42

Depois dessa decisão o right of publicity foi sendo progressivamente

admitido pelos Estados do país, muitos deles consagrando até mesmo uma legislação

específica sobre o tema.43

Portanto, a proteção do direito à imagem na common law passou a

compreender um modelo dualista, composto tanto pelo right of privacy como pelo right of

publicity. O primeiro voltado para a tutela de valores pessoais, enquanto que o segundo se

destina à proteção de valores patrimoniais.44

5. A difícil distinção entre o privacy e o publicity

Como foi visto, o right of publicity pode ser concebido, em linhas gerais,

como o direito que cada pessoa tem de controlar o uso comercial de sua identidade, dirigindo

sua tutela para aspectos meramente patrimoniais. O instituto é visto como uma espécie do

gênero da concorrência desleal, uma vez que garante o privilégio exclusivo quanto à

exploração da identidade, particularmente no que toca à publicação de fotografias.45

40 FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 179. 41 FREEDMAN, Warren. The Right of Privacy in the Computer Age. Nova Iorque: Quorum, 1987, p. 28. 42 RIGAUX, François, op. cit., p. 393-394. 43 ROUVINEZ, Julie, op. cit., p. 82. 44 LÉVY, Vanessa, op. cit., p. 151. 45 FREEDMAN, Warren, op. cit., p. 28.

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Ocorre que o fato do right of publicity ser mencionado em ligação com a

identidade não significa que a sua proteção está relacionada apenas com os bens da

personalidade. Na verdade, essa tutela vai muito além, abrangendo todas as formas de

identificação da pessoa, como a imagem, o nome ou a voz, bem como objetos materiais.46

Nessa linha, a despeito da definição doutrinária aparentemente clara do

right of publicity, bem como do estabelecimento de suas diferenças em relação ao privacy,

na prática a distinção não é tão simples, mesmo porque existe uma grande afinidade entre

esses direitos.

Normalmente um dos critérios utilizados na distinção é o comportamento

anterior da vítima. Assim, se a pessoa, como ocorreu no caso Zacchini, não se opõe à

publicidade, contanto que ela receba as vantagens financeiras pela exposição, estaríamos

diante do publicity. Também ocorrerá atentado apenas ao right of publicity quando uma

pessoa autoriza a publicação de seu nome ou de sua imagem em um determinado periódico,

mas não em um outro, ou quando a extensão da utilização publicitária excede o que foi

previsto contratualmente.47

Por outro lado, estaremos diante de invasão do privacy se os fatos em

análise indicam que o indivíduo jamais explorou o valor associado a sua reputação ou a sua

atividade profissional, bem como que não houve qualquer consentimento no que toca à

utilização do seu nome ou de sua imagem.48

A partir daí, parte da doutrina e da jurisprudência passaram a considerar,

de modo geral, que a utilização do nome ou da imagem de pessoas célebres, sem autorização,

em uma propaganda, somente afeta o right of publicity. De contrário, tratando-se de uma

pessoa não conhecida do público, a defesa da utilização não autorizada do nome e da imagem

deve ser feita pelo right of privacy.49

Outrossim, podemos arrolar ainda a distinção no que toca à

patrimonialidade e à transmissibilidade do interesse protegido. Assim sendo, considerando

a patrimonialidade do publicity, a doutrina reconhece que ele faz parte do próprio patrimônio

da pessoa (estate) e admite a possibilidade de sua cessão contratual ou transmissão

hereditária. O mesmo não valendo para o right of privacy, que se volta para a proteção de

interesses ideais e não permite a transmissão.50

46 FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 166. 47 RIGAUX, François, op. cit., p. 394-396 e 407. 48 Ibidem, p. 394-396. 49 GÖTTING, Horst-Peter, op. cit., p. 243. 50 ROUVINEZ, Julien, op. cit., p. 82.

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Por conseguinte, deve-se admitir que são poucas as situações em que a

delimitação se apresenta tão evidente. A despeito disso é sem dúvida sempre conveniente

analisar o comportamento anterior da vítima, investigar a natureza da agressão, bem como

buscar interpretar o consentimento do sujeito para que se possa chegar à conclusão se

estamos diante de um caso de privacy ou publicity, sobretudo quando foi contratualmente

autorizada a exploração do nome ou da imagem.51

6. O privacy na construção doutrinária de Prosser

Somente na década de 1960 é que vai ser visto o surgimento de novas

discussões doutrinárias e jurisprudenciais a respeito do privacy. No que toca à doutrina,

inicia-se então um debate contrapondo pontos de vista favoráveis e opostos às ideias de

Warren e Brandeis.

Entre as críticas dirigidas à concepção, podem ser distinguidas diversas

orientações, como a que substitui o conceito de privacy por outro considerado mais

adequado, a que censura a utilização de um vocábulo único para diversos atos ilícitos e a que

contesta a definição do privacy como o “direito de ser deixado só”.52

Entretanto, vamos aqui destacar o embate mais célebre, que envolveu

Prosser e Bloustein, tendo exercido, como será visto, indiscutível influência nos

desenvolvimentos posteriores do privacy.53

William Prosser, aclamado professor da California School of Law

(Berkeley) e à época uma das maiores autoridades em responsabilidade civil (tort law),

apresentou em 1960 um estudo bastante preciso acerca das decisões prolatadas sobre o right

of privacy. Nele o estudioso procurou evidenciar as regras emanadas de cada caso e os

desenvolvimentos jurídicos daí decorrentes54-55.

Após a análise de substancial amostra do repertório jurisprudencial

disponível, Prosser admitiu a existência de confusão e inconsistências no desenvolvimento

do privacy, mas tentou sistematizar a matéria. Asseverou que não se estava diante de apenas

um tort, mas sim de quatro grupos diversos, vendo em cada um deles a lesão de diferentes

51 RIGAUX, François, op. cit., p. 395. 52 Ibidem, p. 630. 53 DIONISOPOULOS, Allan; DUCAT, Craig R., op. cit., p. 25-26. 54 KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 71. 55 O trabalho de Prosser foi ampliado e atualizado por Keeton, contando com última edição (5. ed.) publicada

em 1984 sob o título Prosser and Keeton on the Law of Torts.

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tipos de interesses protegidos. Nessa linha, destacou que os interesses tutelados pelo privacy

não teriam quase nada em comum, exceto que todos eles representariam uma interferência

no right to be let alone.56

Prosser passa então a classificar o privacy nas seguintes espécies: 1)

invasão em assuntos privados da pessoa (intrusion); 2) publicação de fatos embaraçosos

relativos à vida privada de determinada pessoa (public disclosure); 3) publicação que leve a

opinião pública a uma falsa compreensão (false light), o que se assimila à difamação

(defamation), mas enquanto esta requer que a informação seja falsa, no privacy a informação

geralmente é verdadeira, mas cria uma falsa impressão e; 4) abuso do nome ou da imagem

de outrem para benefício próprio (appropriation),57 conceito que se aproximaria do right of

publicity, no entanto, este direito protege a pessoa contra a exploração comercial não

autorizada (property right), enquanto que o privacy diz respeito à tutela de valores pessoais

da personalidade.58

O estudioso não foi, obviamente, o primeiro a apresentar uma classificação

do right of privacy em diferentes tipos. Na verdade, o que torna seu trabalho relevante, a

ponto de ser considerado por muitos como leitura obrigatória para as discussões sobre

privacy, não é somente o fato de ter desenvolvido uma classificação que impôs ordem e

clareza à matéria, mas também por ter identificado o bem jurídico protegido em cada uma

das hipóteses apresentadas.59

Destarte, ainda que de forma implícita, pode-se deduzir do pensamento de

Prosser que não existe unidade na tutela do privacy, visto que não estaríamos diante de um

valor independente, mas sim de uma composição de interesses que vai abranger a reputação,

a tranquilidade emocional e a propriedade imaterial.60

7. O privacy como tutela da dignidade e da individualidade

Os ensinamentos de Prosser não ficaram isentos a críticas, como a

apresentada pelo professor Harry Kalven, no artigo intitulado “Privacy in Tort Law – Were

Warren and Brandeis Wrong?”, publicado em 1966. Nele o estudioso questiona a proteção

56 PROSSER, William Lloyd, op. cit., p. 804. 57 KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 72. 58 FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 179. 59 KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 72. 60 BLOUSTEIN, Edward J. Privacy as an aspect of human dignity: an answer to dean Prosser. New York

University Law Review, v. 39, p. 962-1007, 1964, p. 962.

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do privacy por meio da legislação de torts, concluindo que, com exceção dos casos de

apropriação, a tentativa de proteger o privacy no âmbito da responsabilidade civil é um

erro.61

Edward Bloustein, em trabalho publicado em 1964, assevera que a análise

em grupo de casos, apresentada por Prosser, contrariou o que Warren e Brandeis defendiam,

uma vez que acabava indicando a incapacidade dos tribunais de continuarem o

desenvolvimento do privacy sem que fosse necessário o apoio em figuras jurídicas

tradicionais, como a propriedade e a honra.62

Nessa linha, Bloustein destaca a existência de uma considerável confusão

no que toca à natureza do bem jurídico protegido pelo privacy, entendendo que Prosser

remete esse direito novamente às antigas instituições jurídicas, o que estaria em contradição

com o pensamento de Warren e Brandeis, na medida em que viam no privacy uma figura

jurídica nova e unitária.63

Partindo desses problemas, Bloustein propõe em seu artigo uma teoria

geral do privacy, levando em conta, para tanto, o bem jurídico protegido em todos os casos.

Considera então que a dignidade humana seria esse bem jurídico, que ligaria o right of

privacy do direito privado ao direito público, vínculo este totalmente ignorado por Prosser.

Acrescenta ainda que o privacy não é limitado à common law, abrangendo o direito como

um todo, inclusive as disposições de direito processual penal.64

Outrossim, Bloustein lembra da existência de muitas leis mais recentes,

que regulam o uso de sistemas eletrônicos de vigilância ou que proíbem a interceptação

telefônica de conversas, exemplos que seriam suficientes para comprovar a proteção do right

of privacy de forma independente, não somente como uma proteção civil contra atos

ilícitos.65

Além disso, outra questão que se colocava era a respeito dos

desenvolvimentos futuros do privacy. De acordo com o estudioso, a influência do trabalho

de Prosser era patente, já que nos anos que se seguiram à sua publicação quase toda decisão

sobre privacy mencionava sua concepção, bem como também refletiu na elaboração do

Restatement of Torts. Assim sendo, nas palavras de Bloustein, se seu posicionamento não

61 FREEDMAN, Warren, op. cit., p. 8. 62 KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 73. 63 Ibidem, p. 74. 64 Ibidem, p. 74. 65 Ibidem, p. 74.

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estivesse correto, então seria importante demonstrar suas falhas e apresentar uma teoria

alternativa.66

Desse modo, em suma, sugere Bloustein que o raciocínio de Prosser não

estava correto, pois o privacy envolveria o mesmo interesse na preservação da dignidade e

da individualidade do ser humano, falando-se então em apenas um tort, que garantiria uma

proteção abrangente e sem lacunas.67

Alguns autores americanos concordaram com Bloustein, especialmente

diante dos fortes argumentos lançados contra Prosser no sentido de que sua visão se limitava

à common law, bem como que a classificação por ele proposta não era exaustiva e ainda

apresentava distinções insuficientemente esclarecidas.68

Contudo, boa parte dos estudiosos acabou seguindo o posicionamento de

Prosser, sendo certo que alguns deles, como é o caso de Wade, até avançaram em suas

ideias.69 De qualquer forma, é interessante notar que as ideias de Bloustein em muito se

assemelham à concepção em vigor no direito continental, especialmente pela menção à tutela

da dignidade humana.

Por conseguinte, o fato é que as ideias de Prosser acabaram saindo

vitoriosas e sua sistemática passou a exercer uma influência tão grande que foi seguida de

forma quase unânime pela doutrina e pela jurisprudência, ecoando ainda no Second

Restatement of Torts, de 1977, bem como na constituição, nas leis e na common law de vários

estados.70 E o resultado não poderia ser diverso, uma vez que independentemente da

denominação utilizada, o fato é que o conceito de privacy procura realmente dar uma visão

unitária a um grande número de situações ou de relações que são heterogêneas,71 isso sem

falar na ampla e já tradicional aceitação pela jurisprudência da inclusão desse instituto entre

os torts.72

66 BLOUSTEIN, Edward J., op. cit., p. 964. 67 Ibidem, p. 1005. 68 RIGAUX, François, op. cit., p. 633. 69 KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 75. 70 GÖTTING, Horst-Peter, op. cit., p. 185-186. 71 RIGAUX, François, op. cit., p. 632. 72 FREEDMAN, Warren, op. cit., p. 8-9.

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8. A formulação do privacy constitucional

Paralelamente ao debate doutrinário, viu-se que ao longo do tempo o right

of privacy, desenvolvido como um conceito da common law, passou a aparecer em casos

envolvendo a Constituição dos Estados Unidos. Todavia, apesar do início dos debates ter

ocorrido ainda na primeira metade do século XX, o reconhecimento do right of privacy na

Constituição somente veio com o caso Griswold v. Connecticut, decido em 1965 pela

Suprema Corte dos Estados Unidos.73

Na demanda foi debatida uma lei de Connecticut, que tornou ilegal o uso

ou a distribuição de anticoncepcionais, o que configuraria ingerência do Estado no privacy.

A lei deu causa à condenação de um médico, que examinou uma mulher casada e prescreveu

métodos contraceptivos, bem como do senhor Griswold, diretor da clínica onde o referido

médico trabalhava.74

Na Suprema Corte dos Estados Unidos o juiz Douglas, que tinha assumido

a cadeira de Brandeis, redigiu o voto do caso Griswold v. Connecticut, que se tornou célebre.

Nele o magistrado declarou a inconstitucionalidade da lei e reconheceu a existência de um

direito geral de privacy, que decorreria das seguintes emendas à Constituição dos Estados

Unidos: primeira (liberdade de expressão), terceira (restrição ao aquartelamento de soldados

em casas particulares), quarta (busca e apreensões ilícitas), quinta (autoincriminação) e nona

(declara que os direitos não especificados na Declaração de Direito são também protegidos

por ela).75

A decisão ainda destaca o caráter sacro da união conjugal e o respeito que

merece a intimidade do casal, considerando, por conseguinte, inadmissível que a polícia

pudesse estender suas investigações ao quarto do casal (“the sacred precincts of marital

bedrooms”).76

Dessa forma, somente a partir do caso Griswold v. Connecticut que vai ser

reconhecido constitucionalmente, pela primeira vez, o right of privacy, que apesar de não

ser expressamente mencionado pela Constituição, estaria localizado, conforme o voto do

73 RIGAUX, François, op. cit., p. 167. 74 MCWHIRTER, Darien Auburn; BIBLE, Jon D., op. cit., p. 93. 75 Ibidem, op. cit., p. 97. 76 RIGAUX, François, op. cit., p. 167.

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juiz Douglas, no interior das penumbras ou zonas de liberdade criadas por uma interpretação

mais abrangente da declaração de direitos.77

9. A consolidação do entendimento do caso Griswold

Em 1967 a Suprema Corte dos Estados Unidos vai finalmente superar a

doutrina Olmstead, analisando o caso Katz v. United States, no qual policiais, sem

autorização judicial, interceptaram conversações telefônicas realizadas de uma cabine

telefônica.

O voto vencedor foi proferido pelo juiz Stewart, que mencionou o

posicionamento do tribunal no caso Griswold e reconheceu a violação do privacy decorrente

de injustificada medida de busca e apreensão, na hipótese envolvendo bem imaterial. O

magistrado ainda acrescentou em sua decisão que Katz tinha uma razoável expectativa de

privacy quando entrou na cabine telefônica e fechou a porta, estando assim resguardado pela

Quarta Emenda, que protege pessoas e não lugares (the Fourth Amendment protects people,

not places).78

Em seguida, em 1969, no caso Stanley v. Georgia, novamente foi colocada

em prova a solução dada ao caso Griswold. A demanda envolveu a realização de busca e

apreensão na casa de Stanley, estando a polícia munida do respectivo mandado, deferido

para que fossem encontradas provas da atividade de agenciamento de apostas. Todavia,

durante o procedimento, foram encontrados vídeos obscenos no quarto de Stanley, que foi

acusado de violação da legislação da Georgia.79

Pois bem, na Suprema Corte dos Estados Unidos todos os juízes estavam

de acordo com a absolvição de Stanley, mas houve divergência quanto aos fundamentos.

Nesse particular, vale destacar o voto do juiz Marshall, que citou tanto a manifestação

proferida pelo juiz Brandeis no caso Olmstead quanto o entendimento acolhido pelo tribunal

no caso Griswold, argumentando ainda que a Constituição protege os cidadãos contra

invasões não esperadas em seu direito de privacy.80

Por derradeiro, as decisões posteriores ao caso Griswold permitiram então

a construção e consolidação do privacy constitucional, que foi ainda dividido em duas

77 SOLOVE, Daniel J.; ROTENBERG, Marc; SCHWARTZ, Paul M., op. cit., p. 28-29. 78 KAMLAH, Ruprecht, op. cit., p. 71. 79 MCWHIRTER, Darien Auburn; BIBLE, Jon D., op. cit., p. 99. 80 Ibidem, p. 99.

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espécies: a primeira com fundamento na Quarta Emenda e nas “penumbras” de outras

emendas (primeira, terceira, quarta, quinta e nona), enquanto que a segunda está voltada para

o devido processo substantivo.81

10. A relação entre o right of privacy e os direitos da personalidade

No Direito dos Estados Unidos, como foi exposto, não é comum a menção

a bens da personalidade, mesmo porque não existe a figura dos direitos da personalidade,

como é conhecida nos países de tradição continental. Para a solução de eventuais demandas

relacionadas com os bens da personalidade, os norte-americanos desenvolveram então o

right of privacy, que constitui uma categoria de direitos que não é equivalente aos direitos

da personalidade.82

De fato, o right of privacy apresenta inúmeros pontos de divergência,

abarcando, por um lado, aspectos que não se incluem no âmbito dos direitos da

personalidade, bem como deixando de tutelar temas que são evidentemente abrangidos pelos

direitos da personalidade.

Em linhas gerais, apresentamos a evolução do right of privacy naquele

país, cuja origem doutrinária foi lentamente sendo consagrada na jurisprudência, na

legislação de um grande número de estados e, finalmente, foi elevado ao nível constitucional

pela Suprema Corte.

Nesse contexo, pode-se notar que há um paralelo entre o desenvolvimento

do privacy e dos direitos da personalidade. É que para problemas muito semelhantes,

surgidos no decorrer do século XX e início do século XXI, foram apresentadas pelos dois

sistemas soluções muitas vezes bastante parecidas, não obstante a diversidade da

fundamentação.

Todavia, é certo que os norte-americanos levam o individualismo ao

extremo, bem como possuem uma mentalidade pouco solidária, o que, somado ao raciocínio

da common law sustentado pela técnica de solução de casos pelos precedentes,83 acaba por

deixar claro que é bastante complicada qualquer aproximação teórica entre o right of privacy

e os direitos da personalidade. A isso deve ser acrescido o fato de que há uma grande

81 Ibidem, p. 100. 82 FESTAS, David de Oliveira, op. cit., p. 166. 83 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil: Teoria Geral. Vol. 1. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 60.

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dificuldade de se estabelecer uma definição adequada entorno do privacy, havendo

diferentes formas de se ver o instituto.84

Realmente, esses institutos apresentam origem, natureza jurídica,

abrangência, fundamentação e limites bastante diversos. Todavia, considerando a similude

dos problemas enfrentados pelos países da civil law e da common law, não nos parece

despropositada a constante análise do direito dos Estados Unidos, que sempre poderá

contribuir com soluções criativas para a inovação da civil law.

Por fim, no que toca especificamente ao direito à imagem, vale lembrar

que o sistema jurídico dos Estados Unidos é bastante particular, uma vez que reconhece dois

direitos distintos para a sua proteção, conforme o atentado diga respeito a um aspecto da

vida privada ou à utilização comercial da imagem. Assim, tal solução apresenta o

inconveniente da dificuldade de delimitação do conceito e das fronteiras entre o privacy e o

publicity, o que, a nosso ver, não aconselha sua adoção no direito pátrio.

11. Considerações finais

Reputamos ser sempre interessante o conhecimento de outros sistemas

jurídicos, tanto que nos propusemos a estudar o privacy, no entanto, a mera transposição de

institutos da common law para a seara dos direitos da personalidade, sem um aprofundado

exame da matéria, em especial no que toca à tutela da imagem, não parece apresentar grandes

vantagens. Ao contrário, tal tentativa pode representar uma ameaça aos direitos da

personalidade, cuja proteção já conta com legislação, doutrina e jurisprudência bastante

sólidas nos países de tradição romano-germânica.

Portanto, consideramos ser sempre necessária muita cautela ao se tentar

uma aproxição do privacy aos direitos da personalidade, pelo que vemos com certa restrição

a conduta daqueles estudiosos, entusiastas do Direito dos Estados Unidos, que procuram,

sem maiores cuidados, a transposição para o direito continental de institutos da common law.

Recebido em 23/01/2015

1º parecer em 24/02/2015

2º parecer em 24/02/2015

84 SOMA, John T., op. cit., p. 16.

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USUCAPIÃO FAMILIAR: QUEM NOS SALVA DA BONDADE DOS BONS?

Family’s Adverse Possession: who save us from good’s goodness?

Ricardo Lucas Calderon Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal do Paraná-UFPR.

Pós-graduado em Teoria Geral do Direito e em Direito Processual Civil.

Professor dos cursos de pós-graduação da Fundação Getúlio Vargas – FGV/ISAE e da

Universidade Positivo.

Coordenador da especialização em Direito das Famílias e Sucessões da Academia

Brasileira de Direito Constitucional. Professor dos cursos de Graduação da UNIBRASIL. Pesquisador do

grupo de estudos e pesquisas de Direito Civil “Virada de Copérnico”, vinculado ao PPGD-UFPR. Membro

do Instituto Brasileiro de Direito Civil. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família-IBDFam.

Membro do Instituto dos Advogados do Paraná. Membro da Comissão de Educação Jurídica da OAB/PR.

Advogado em Curitiba.

Michele Mayumi Iwasaki Mestre em Direito Civil pela Universidade Federal do Paraná-UFPR.

Pós-graduada em Sociologia Política-UFPR. Pesquisadora do grupo de estudos e

pesquisas de Direito Civil “Virada de Copérnico”, vinculado ao PPGD-UFPR. Advogada em Curitiba.

Resumo: Em 2011 foi introduzida no Brasil a denominada usucapião familiar (art. 1.240-A

do Código Civil). O texto legal dispõe que o ex-cônjuge ou ex-companheiro poderá adquirir

a propriedade total do imóvel objeto do lar conjugal, desde que demonstrada posse superior

a dois anos ininterruptos, agregada ao abandono do lar pelo outro consorte. Nesse trabalho,

parte-se da premissa que esse instituto pretende, em última ratio, tutelar a família e o direito

à moradia, o que lhe garantiria guarida constitucional. A partir disso, procura contribuir na

apuração do seu significado hodierno, que deve resultar de uma interpretação sistemática

que leve a sua escorreita tradução. Nesse mister, importa imprimir uma hermenêutica crítico-

construtiva que permita extrair um sentido do instituto que reverbere, muito mais do que

apenas a sua estrutura, a sua função naquelas dadas situações fáticas.

Palavras-chave: Usucapião familiar; Família; Propriedade; Abandono; Moradia.

Abstract: In 2011 a new form of acquisition of property was introduced in Brazilian law:

the family adverse possession (Civil Code’s article 1.240-A). The legal text determines that

the ex-spouse or ex-partner may acquire the total property to the real estate of the conjugal

home as long as he/she proves possession of more than two years without interruption and

the abandonment of the home by the other consort. In this paper we part from the premise

that this institute seeks, ratio ultima, to support the family and the fundamental right to

housing, which guarantees a certain level of constitutional protection. Aside from this, it

seeks to contribute to the comprehension of its hodiernal meaning, which should result a

systematic interpretation that leads to its more perfect translation. In this manner it is

important to make use of critical-constructive hermeneutics, which allow for the extraction

of the institute that resounds much further than the structure, to its function in those factual

situations.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 29

Keywords: Family adverse possession; Family; Property; Abandonment; Housing.

Sumário: Introdução – 1. Constitucionalidade do dispositivo – 2. Requisitos legais e

questões controversas da usucapião familiar – 3. O sentido funcionalizado da expressão

abandono do lar – 4. Considerações Finais.

Introdução

A celeridade das mutações fáticas do líquido cenário contemporâneo acaba

por apresentar novas questões ao Direito, não raro com complexos e intricados fatores

envolvidos.1 O afã de procurar respostas imediatas para alguns destes intrigantes litígios do

presente acaba, muitas vezes, por levar a uma precipitação que nem sempre é recomendável

aos juristas.

É o que se percebe na introdução no direito brasileiro da denominada

usucapião familiar,2 novel modalidade aquisitiva da propriedade que decorre do abandono

do lar por um dos cônjuges ou companheiros, agregado a outros requisitos descritos na regra

que o instaurou. Tal usucapião extraordinária urbana foi regulada pela incorporação do art.

1.240-A no Código Civil,3 criando um instituto sem qualquer prévia discussão doutrinária

ou jurisprudencial a respeito.

Em um primeiro momento, pode-se vislumbrar uma provável boa intenção

do legislador ao procurar tutelar um problema social muitas vezes reiterado: o imbróglio

resultante de um fim conflituoso de uma relação de conjugalidade4 sem a resolução das

1 “Num mundo em que as coisas deliberadamente instáveis são a matéria-prima das identidades, que são

necessariamente instáveis, é preciso estar constantemente em alerta; mas acima de tudo é preciso manter a

própria flexibilidade e velocidade de reajuste em relação aos padrões cambiantes do mundo ‘lá fora’.”

(BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 100). 2 Também denominada usucapião conjugal, usucapião por abandono afetivo, ou, ainda, usucapião

extraordinária por abandono do lar. Parece que a definição mais adequada é efetivamente usucapião familiar. 3 “Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com

exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade

divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua

família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou

rural. (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011). § 1o O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo

possuidor mais de uma vez.§ 2o (VETADO).” (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011, que alterou a Lei 11

977/2009 – reguladora do programa federal Minha Casa, Minha Vida). 4 Utiliza-se neste trabalho da expressão conjugalidade como significante que engloba tanto as relações

consagradas pelo matrimônio como as relações mantidas sob a forma de união estável.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 30

questões patrimoniais relativas ao imóvel que serve de moradia para os integrantes daquele

núcleo familiar. Isso porque, com a separação de fato, usualmente um dos membros do casal

permanece no lar conjugal (muitas vezes a mulher com filhos) enquanto o outro dali se retira

(nestes casos, o homem). E o posterior pleito de partilha do bem pelo cônjuge ou convivente

que se afastou pode, em muitos casos, trazer dificuldades de moradia e subsistência para

aqueles que restaram no imóvel, implicando em problemas de diversas ordens.

É possível que o legislador tenha tentado tutelar situações fáticas como

essas, amparando o consorte abandonado que permaneceu no imóvel (a mulher com a prole,

na imagem que foi retratada como corriqueira nos debates legislativos sobre o tema) e que

então necessitaria do bem para sua moradia.5 Observa-se, assim, primeiramente, uma certa

preocupação em tutelar a família abandonada e garantir o seu direito de moradia, o que pode

parecer justificável.

Contudo, em que pese uma provável boa intenção na origem da inclusão

desta nova modalidade da usucapião familiar, calha aqui o célebre questionamento de

Agostinho Ramalho Marques Neto: quem nos salva da bondade dos bons?6 Isso porque, a

regulação posta com o referido dispositivo legal não é muito clara nas expressões que elegeu

para retratá-lo. Diversas inconsistências técnicas são observadas e, quiçá, não proteja nem

mesmo o bem jurídico que pretendeu (proteção da família e do direito à moradia), de modo

que a norma resultante da leitura desse dispositivo pode levar a algumas situações não

previstas e certamente não desejadas nem mesmo por quem a aprovou. A precipitação e a

generalização praticada com a imposição da usucapião familiar exige um esforço

hermenêutico dos civilistas, com o objetivo de evitar um inadmissível retrocesso e permitir

uma significação jurídica alinhada ao estágio atual da nossa literatura jurídica e da nossa

jurisprudência.7

5 Ao comentar o trâmite do projeto de lei nas casas legislativas do Congresso, Ricardo Aronne assevera:

“Dentro das comissões, no debate das propostas ao Minha Casa Vida, um dos pontos em que os iluminados

legisladores do planalto se detiveram, foi que não raro os casais constituintes das famílias simples da planície,

para os quais o programa se dirige, tinham sua união dissolvida. Que em razão disso, a mulher, normalmente,

era abandonada e ficava vulnerável; enquanto o homem depois, ao divórcio, separação ou dissolução, viria a

postular a sua meação. E mais, que esse era mais um problema que atribulava o Judiciário, sendo desejável um

mecanismo que lograsse aliviar-lhe tal peso.” ARONNE, Ricardo. A usucapião por abandono familiar e o

cinismo: ligeiro ensaio cínico de longo título sobre o que não é, mesmo que digam ser o que jamais será. p. 4.

Artigo atualmente no prelo. 6 MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. O Poder Judiciário na Perspectiva da Sociedade Democrática: O

Juiz Cidadão. In: Revista ANAMATRA. São Paulo, n. 21, p. 30-50, 1994: “Uma vez perguntei: quem nos

protege da bondade dos bons? Do ponto de vista do cidadão comum, nada nos garante, ‘a priori’, que nas mãos

do Juiz estamos em boas mãos, mesmo que essas mãos sejam boas. (...)”. 7 Como se perceberá a seguir, não são poucos os questionamentos apresentados a referida usucapião, muitos

deles contundentes. Ademais, a literatura jurídica e o conjunto de decisões dos nossos tribunais consolidaram

conquistas que não podem ser renunciadas pelos civilistas.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 31

O intuito do presente artigo é contribuir com a apuração do sentido civil-

constitucional desse dispositivo, adequado a este momento do direito privado, averiguando

qual sua função no nosso ordenamento jurídico, sempre com especial atenção para os

princípios constitucionais incidentes na hipótese, com observância da funcionalização do

direito das coisas e sem descurar da estatura do pulsante direito de família brasileiro

hodierno.

Anteriormente à análise dos aspectos jurídicos envolvidos na temática,

importa anotar ao menos uma percepção prévia que salta aos olhos ao apreciar o texto legal

da usucapião familiar: os sociólogos afirmam que, dentre as principais características dos

relacionamentos afetivos atuais, estão a flexibilidade e a efemeridade, as quais levaram

Zygmunt Bauman a denominar o período como a era do amor líquido.8 Para Gilles

Lipovestky “tão flexíveis são as características da família pós-moralista hodierna, que já é

possível fazer a montagem ou desmontagem da mesma segundo a preferência de cada um”.9

Não deixa de ser sintomático que, justamente no momento de maior

liberdade e permissividade para dissoluções e recombinações dos relacionamentos afetivos,

entre em voga uma reiterada busca jurídica por uma ‘tutela do abandono’. Prova disso é que

um dos temas mais discutidos no direito de família atualmente é o abandono afetivo.10

Paralelamente, segue o abandono elencado no Código Civil como uma das hipóteses de

impossibilidade da comunhão de vida conjugal11 e, agora, com repercussão também no

direito das coisas, de forma até mesmo surpreendente, nota-se que um aspecto relevante da

locução que instituiu a usucapião familiar está na expressão abandono do lar.12 Essa

8 “Pode-se supor (mas será uma suposição fundamentada) que em nossa época cresce rapidamente o número

de pessoas que tendem a chamar de amor mais de uma de suas experiências de vida, que não garantiriam que

o amor que atualmente vivenciam é o último, que têm expectativa de viver outras experiências como essa no

futuro. Não devemos nos surpreender se essa suposição se mostrar correta. Afinal, a definição romântica do

amor como ‘até que a morte nos separe’ está decididamente fora de moda, tendo deixado para trás seu tempo

de vida útil em função da radical alteração das estruturas de parentesco às quais costumavam servir e de onde

extraía seu vigor e sua valorização.” (BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços

Humanos. Op. cit., p. 19). 9 LIPOVETSKY, Gilles. A Sociedade Pós-Moralista: o crepúsculo do dever e a ética indolor dos novos tempos

democráticos. Trad. Armando Braio Ara. Barueri: Manole, 2005. p. 139. 10 CALDERON, Ricardo Lucas. Abandono Afetivo: reflexões a partir do entendimento do Superior Tribunal

de Justiça. IN: RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. et all (orgs.) A ressignificação da função dos institutos

fundamentais do Direito Civil contemporâneo e suas consequências. Florianópolis: Conceito Editorial, 2014.

(p. 545-564) 11 O Código Civil de 2002 também refere ao abandono nos relacionamentos familiares no seu art. 1.573, IV:

“Art. 1.573. Podem caracterizar a impossibilidade da comunhão de vida a ocorrência de algum dos seguintes

motivos: (.;..) IV - abandono voluntário do lar conjugal, durante um ano contínuo.” 12 Cujo sentido não é descrito pela regra, o que pode levar (e já tem levado) a questionamentos quanto ao seu

significado atual.

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centralidade que pretende ser conferida às consequências jurídicas das situações fáticas

decorrentes do abandono é merecedora de percepção e reflexão.

Para além disso, o histórico do direito brasileiro exige que o significante

abandono do lar mereça especial atenção dos juristas na extração do seu significado atual,

visto não ser indicado, neste momento, retomar o sentido que a denominação já teve

outrora.13 A partir desta percepção, um dos pontos centrais da análise ora proposta se

debruçará na tradução atual para o termo abandono do lar previsto na regra da usucapião

conjugal, pois esse parece ser um dos pontos nevrálgicos do tema em comento. Outro aspecto

que será tratado diz respeito à necessária imbricação que o direito à moradia deverá ter no

momento da concretização do referido instituto.

Para melhor clareza do que se propõe, dividiu-se a análise em quatro

pontos: o primeiro discorrerá sobre a constitucionalidade do dispositivo; o segundo sobre os

aspectos centrais desta modalidade aquisitiva; o terceiro sustentará o sentido que deve ser

conferido a expressão abandono do lar com a necessária tutela da família; e, por derradeiro,

considerações finais são apresentadas com destaque no perfil funcional que deve ser

conferido à usucapião familiar.

1. Constitucionalidade do dispositivo

O processo legislativo de aprovação da Lei 12.424 de 2011 (que introduziu

o art. 1.240-A no Código Civil) está repleto de peculiaridades que, para alguns autores,

maculariam o dispositivo de insanável inconstitucionalidade, a qual sustentam ser também

13 Isto porque, durante grande parte do século passado o abandono do lar como descumprimento dos deveres

do casamento acabou por servir de embasamento para situações de repressão e até mesmo dominação da

mulher, com um viés totalmente equivocado, incompatível com a igualdade de gêneros garantida pela atual

Constituição: “No regime originário do Código Civil de 1916 o desquite litigioso deveria caber em uma das

causas especificadas no art. 317: ‘ adultério, tentativa de morte, sevícias ou injúria grave, abandono

voluntário do lar por mais de dois anos’. A jurisprudência do passado procurou alargar esse aparente numerus

clausus, entendendo que o abandono do lar por menos de dois anos poderia constituir injúria grave,

expandindo o conceito de injúria.” VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil – Direito de Família. 14 ed. v.6.

São Paulo: Atlas, 2014. p. 197. Quem aponta a direção a ser seguida neste particular é Ana Carla Harmatiuk

Matos: “Desta maneira, objetivamos não reproduzir uma dogmática ultrapassada, comprometida com ideais

dominantes de uma classe social, artificial, excludente, discriminatória à condição feminina, a qual não

abrange as diferentes espécies de relações familiares. Tal modelo foi erigido em um determinado momento

histórico, entretanto, os valores atuais estão a exigir novas estruturas jurídicas de respostas.” MATOS, Ana

Carla Harmatiuk. As famílias não fundadas no casamento e a condição feminina. Rio de Janeiro: Renovar,

2000. p.164.

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de ordem material, por tratar equivocadamente como usucapião uma situação que afronta

aspectos basilares desta modalidade aquisitiva.14

No âmbito formal, a referida lei teve como ponto de partida uma Medida

Provisória que atualizava as regras do programa do governo federal Minha Casa Minha

Vida,15 que originariamente nada falava sobre a nova modalidade de usucapião. No decorrer

do debate desta Medida Provisória nas comissões do Congresso Nacional, foi suscitada a

possibilidade de introdução desta usucapião familiar, o que acabou prevalecendo no projeto

final que foi aprovado. Entretanto, não houve discussão no plenário sobre tal novel

usucapião, que não constou nem mesmo da exposição de motivos do referido projeto de lei.

Por tudo isso, há quem alegue “que o próprio processo legislativo resta contaminado”.16

Essas inconsistências formais do atabalhoado processo de aprovação da lei

que implantou o art. 1.240-A no Código Civil podem, efetivamente, maculá-lo por completo,

visto que são relevantes os questionamentos apresentados (o que não se ignora). Apesar

disso, até este momento nenhuma medida que o retire do ordenamento (ou suspenda sua

eficácia) foi proferida, de modo que segue em vigência e, ainda, vem sendo aplicado

reiteradamente pelos nossos tribunais. Apesar da possibilidade até mesmo de uma declaração

incidental de inconstitucionalidade no julgamento dos casos concretos, fato é que até este

momento a majoritária corrente doutrinária e jurisprudencial aponta no sentido de sua

validade e constitucionalidade, o que tem feito avançar o debate relativo ao seu conteúdo

material e a forma da sua concretização.

A partir da premissa de que a Constituição é a bússola que deve orientar a

interpretação do Código Civil (e não o contrário) entende-se possível extrair um sentido da

usucapião familiar que seja adequado ao texto constitucional.17 Diante disso, com esta

observação prévia, sem deixar de anotar a pertinência de muitas das objeções formais que

14 Por todos, as contundentes observações de: ARONNE, Ricardo. A usucapião por abandono familiar e o

cinismo: ligeiro ensaio cínico de longo título sobre o que não é, mesmo que digam ser o que jamais será. p. 4.

Artigo atualmente no prelo. 15 Medida Provisória 514 de 2010. 16 Ob. Cit. p. 5. 17 “É verdade que a boa hermenêutica deve impedir retrocessos, na medida em que a Constituição Federal é

que deve conformar a disciplina do Código Civil. Nunca o contrário. Não é menos verdade, todavia, que em

um campo no qual o político e o jurídico encontram-se tão próximos, o texto do Novo Código referencia um

posicionamento teórico diverso daquele conquistado a partir da paulatina construção doutrinária e

jurisprudencial consolidada.” LEONARDO, Rodrigo Xavier. A função social da propriedade: em busca de

uma contextualização entre a Constituição Federal e o Novo Código Civil. IN: Revista da Faculdade de Direito

de São Bernardo do Campo. A. 8. N. 10. São Paulo, 2004. (p. 271-287). p. 285-286.

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lhe são postas, passa-se a análise das questões materiais do dispositivo, pois é este o objetivo

central do presente trabalho.

Ao lado do aspecto formal, como antes mencionado, alguns autores

questionam também uma suposta inconstitucionalidade material da usucapião familiar,

entendendo haver afronta injustificada a segurança jurídica e o direito de propriedade, por

não demonstrar uma função social compatível com a expropriação pretendida e, ainda, não

atentar para as atuais diretrizes constitucionais sobre direito de família.18

Nesse particular, não parecem se sustentar os argumentos dos defensores

da inconstitucionalidade material, pois é possível encontrar guarida constitucional para uma

adequada interpretação desse instituto, sem embargo dos diversos equívocos terminológicos

que ele apresenta. Em outras palavras, pode-se identificar uma leitura do dispositivo

adequada aos princípios e valores constitucionais incidentes na hipótese, o que faria reluzir

sua constitucionalidade.

O princípio basilar da nossa Constituição é o da dignidade da pessoa

humana,19 que aponta no sentido de proteção desta esfera dos particulares com a maior

efetividade possível. A escorreita atenção ao princípio não abarca apenas a proteção contra

tratamentos degradantes ou desumanos, mas se circunscreve em um invólucro que pode

assumir inclusive relevos patrimoniais.20 Uma especial proteção da dignidade daqueles

integrantes do núcleo familiar que restaram desamparados e necessitam do uso do imóvel

para sua subsistência pode dar suporte a constitucionalidade da modalidade aquisitiva ora

apreciada.21

18 “Nessa linha, não se descarta a inconstitucionalidade do novel artigo 1240-A.” DONIZETTI, Elpídio.

Usucapião do lar serve de consolo para o abandonado. Artigo publicado na Revista Consultor Jurídico de 20

de setembro de 2011. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2011-set-20/consolo-abandonado-

usucapiao-lar-desfeito>. Acesso em 02 de agosto de 2014. 19 Art. 1º da CF/88. Sobre o tema: MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de dignidade humana:

substrato axiológico e conteúdo normativo. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos

Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 116 20 “[...] o princípio constitucional visa a garantir o respeito e a proteção da dignidade humana não apenas no

sentido de assegurar um tratamento humano e não degradante, e tampouco conduz ao mero oferecimento de

integridades físicas ao ser humano. [...] Neste ambiente, de um renovado humanismo, a vulnerabilidade

humana será tutelada, prioritariamente, onde quer que ela se manifeste. De modo que terão precedência os

direitos e as prerrogativas de determinados grupos considerados, de uma maneira ou de outra, frágeis e que

estão a exigir, por conseguinte, a especial proteção da lei.” (MORAES, Maria Celina Bodin de. O conceito de

dignidade humana: substrato axiológico e conteúdo normativo. Op. cit., p. 116) 21 “A proteção jurídica à dignidade da pessoa humana, valor fundamental do ordenamento brasileiro, abrange,

como se sabe, a tutela dos múltiplos aspectos existenciais da pessoa: nome, imagem, privacidade etc. Inclui

também a garantia dos meios materiais razoavelmente necessários – em não apenas mínimos – para o pleno

desenvolvimento da personalidade humana. Tal garantia decorre logicamente da própria tutela da dignidade

humana, que se converteria em fórmula vazia não fosse dever do Estado, das instituições e da sociedade civil

assegurar os meios necessários ao pleno exercício desta dignidade.” SCHREIBER, Anderson. Direito à

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 35

Outro princípio que assume densidade na análise da constitucionalidade

da usucapião familiar é o da solidariedade,22 também previsto expressamente pela

Constituição de 1988.23 A diretriz que impele a um tratamento solidário assume especial

destaque quando do trato de conflitos entre cônjuges ou conviventes, podendo inclusive

resultar em obrigações específicas decorrentes de tais relações de conjugalidade, com

extensão até mesmo para após o término do relacionamento (como o exemplo da obrigação

alimentar). Assim, a destinação da propriedade do imóvel apenas a apenas um dos

integrantes da respectiva relação pode se justificar em um espectro de prevalência do

princípio da solidariedade, no sentido concreto de que o patrimônio de um dos consortes

acolha, naquele momento, o outro.

O direito à moradia24 também pode contribuir para uma densificação

constitucional da usucapião familiar, desde que sua materialização vise tutelar essa premente

questão habitacional. Na perspectiva do direito italiano Pietro Perlingieri assevera que:

A inegável relevância jurídica do interesse à moradia permitiu à Corte

Constitucional argumentar a existência de um ‘direito à moradia’, a ser

elencado ‘entre os requisitos essenciais que caracterizam a socialidade a

que se conforma o Estado democrático descrito na Constituição’ e a ser

qualificado como ‘fundamental direito social voltado para contribuir para

que a vida de cada pessoa reflita a cada dia e sob qualquer aspecto, a

imagem universal da dignidade humana’.25

A Constituição Federal brasileira possui expresso dispositivo que aponta

na proteção do direito à moradia, art. 6º, devidamente incluído no rol dos direitos sociais,

com aplicação direta e imediata, de modo que “fazem-se necessários novos instrumentos

moradia como fundamento para impenhorabilidade do imóvel residencial do devedor solteiro. IN: RAMOS,

Carmem Lucia Silveira. et. al. (org.) Diálogos sobre direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 84. 22 Art. 3º da CF/88. 23 LÔBO, Paulo Luiz Netto. O princípio constitucional da solidariedade nas relações de família. In:

CONRADO, Marcelo (Org.). Direito Privado e Constituição: ensaios para uma recomposição valorativa da

pessoa e do patrimônio. Curitiba: Juruá, 2009. p. 327. 24 Art. 6º da CF/88. Sobre o tema: “A moradia como direito, formalizado em texto normativo, somente aparece

em 2000, com a inclusão realizada via Emenda Constitucional 26, no art. 6º. O que significa dizer desde logo

que, assim como o direito não acompanhou a idéia da questão social e da política pública, a moradia também

não figurou no rol das ‘novas’ regulações fundamentais e sociais estabelecidas inicialmente no período da

redemocratização.” PONTES, Daniele Regina. Direito à Moradia: entre o tempo e o espaço das apropriações.

Curitiba: Juruá, 2014. p. 129-130 25 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de

Janeiro: Renovar, 2008. p. 888. Em nota de rodapé.

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jurídicos destinados a garantir a efetiva tutela do direito à moradia”.26 Nesse contexto, é

possível vislumbrar uma áurea de constitucionalidade desta nova modalidade de usucapião

caso sua interpretação priorize a consagração do constitucional direito à moradia.27

Os questionamentos quanto a eventual desrespeito ao direito de

propriedade e à segurança jurídica podem ser respondidos com a observância da sua

funcionalização, que também é reverenciada constitucionalmente. Norberto Bobbio

preconiza que o direito deve atentar para além da estrutura dos institutos jurídicos, dedicando

especial relevo para a sua função.28 O movimento de repersonalização do direito civil

também conferiu uma nova coloração a muitos destes conceitos.29

A função social é elemento estrutural da propriedade, obriga o proprietário

e deve restar atendida no caso concreto, sob pena até mesmo de fulminar a titularidade desse

direito na sua esfera jurídica.30 Conforme afirma Eroulths Cortiano Junior, a adequada

função social da propriedade aponta na melhor utilização do bem no específico caso concreto

26 SCHREIBER, Anderson. Direito à moradia como fundamento para impenhorabilidade do imóvel residencial

do devedor solteiro. IN: RAMOS, Carmem Lucia Silveira. et. al. (org.) Diálogos sobre direito civil. Rio de

Janeiro: Renovar, 2002. p.85. 27 Nessa perspectiva a posição de Nelson Nery Junior, para quem o sentido finalístico da usucapião familiar

deve estar atrelado ao direito à moradia: “É mecanismo de incentivo à aquisição de imóveis urbanos para

famílias com pequena renda mensal, bem como visa proteger aquele que rompeu união estável ou sociedade

conjugal, mais que ainda reside no imóvel, dividindo-o com o ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou

o lar. (...) O elemento finalísitico da utilização do imóvel como sua moradia própria, individual, ou de sua

família, deve estar presente para que possa ser declarado proprietário pela usucapião.” NERY JUNIOR,

Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 10 ed. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 2013. p. 1162. 28 “Sem fazer concessões a rótulos, sempre perigosos por mais úteis que sejam, acredito ser possível afirmar

com certa tranqüilidade que, no seu desenvolvimento posterior à guinada kelseniana, a teoria do direito tenha

obedecido muito mais a sugestões estruturalistas do que funcionalistas. Em poucas palavras, aqueles que se

dedicaram à teoria do direito se preocuparam muito mais em saber ‘como o direito é feito’ do que ‘para que o

direito serve’. A conseqüência disso foi que a análise estrutural foi levada muito mais a fundo do que a análise

funcional.” (BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole,

2007. p. 53-54. 29 “Neste sentido se julga oportuna a «repersonalização» do direito civil – seja qual for o invólucro em que esse

direito se contenha –, isto é, a acentuação da sua raiz antropocêntrica, da sua ligação visceral com a pessoa e

os seus direitos.” (CARVALHO, Orlando de. A Teoria Geral da Relação Jurídica. 2. ed. Coimbra: Centelha,

1982. p. 90) 30 “Diante de tais reflexões críticas, construiu-se o entendimento de que a função social da propriedade consiste

em elemento interno do direito de propriedade, aspecto funcional que integra o conteúdo do direito, ao lado do

aspecto estrutural. A partir daí, transforma-se a concepção segundo a qual o proprietário deteria amplos

poderes, limitados apenas externa e negativamente, na medida em que o legislador imponha confins para o

regular exercício dos direitos. Diversamente, os poderes concedidos ao proprietário adquirem legitimidade na

medida em que o exercício concreto da propriedade adquire legitimidade na medida em que o exercício

concreto da propriedade desempenhe função merecedora de tutela, tendo em conta os centros de interesse extra-

proprietários alcançados pelo exercício do domínio, a serem preservados e promovidos na relação jurídica da

propriedade, como expressão de sua função social.” TEPEDINO, Gustavo. A Função Social da Propriedade e

o Meio Ambiente. IN: Temas de Direito Civil. v. III. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 187.

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Na apreciação da função social da propriedade, o operador do Direito tem

de atentar para a concretude da situação proprietária, levando em conta a

posição ocupada pelo sujeito proprietário – na sua vida de relações e na sua

relação com o bem apropriado -, as características do bem sobre o qual

incide a propriedade e a forma do exercício dos poderes proprietários. A

função social da propriedade remete, sempre, a uma visão concreta das

relações em que incide o fenômeno proprietário, cujo balizamento será

feito a partir da normativa, mas cujo objetivo é garantir a melhor utilização

social da propriedade. Aqui se dá a ruptura do modelo proprietário.31

Nesta perspectiva, mostra-se viável sustentar a constitucionalidade da

usucapião familiar como instrumento que vise proteger a mais adequada utilização concreta

do imóvel, o que retrataria o atendimento escorreito da sua função social, apontando,

inequivocamente, para a prevalência do direito à moradia como acesso ao direito de

propriedade32.

No campo das titularidades é inequívoco que nossa Constituição Federal

assegura o direito a um mínimo existencial,33 o que pode vir a justificar a aquisição da

propriedade na forma do art. 1.240-A do Código Civil.34 Exemplificativamente: na hipótese

de um dos consortes necessitar do imóvel para sua moradia, como condição vital para sua

mantença e de seus familiares, viável a sua proteção também em observância do direito ao

mínimo existencial.

Ainda sob a ótica constitucional, percebe-se uma especial tutela da família,

ao ser descrita como base da sociedade e merecedora de especial proteção do Estado (art.

226), de maneira que latente a constitucionalidade dos institutos que pretendam efetivar essa

proteção.35 Na esteira disso, uma leitura da usucapião familiar que objetive proteger a esfera

31 CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O Discurso Jurídico da Propriedade e suas rupturas. Rio de Janeiro:

Renovar, 2002. p. 146-147. 32 “O direito à moradia, como direito ao acesso à propriedade da moradia, é um dos instrumentos, mas não o

único, para realizar a fruição e a utilização da coisa.” PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade

constitucional. Op. Cit. p. 888. 33 “Há um direito às condições mínimas de existência humana digna que não pode ser objeto de intervenção do

Estado e que ainda exige prestações estatais positivas”. TORRES, Ricardo Lobo. O direito ao mínimo

existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p.8. 34 “A guarida a essa esfera patrimonial básica acentua a consideração de valores que denotam interesses sociais

incidentes sobre as titularidades. Tais valores recaem, ainda que de modo diverso, sobre a posse a propriedade.”

FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 2 ed. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.

285. 35 “Em verdade a grande reviravolta surgida no Direito de Família com o advento da Constituição Federal foi

a defesa intransigente dos componentes que formulam a inata estrutura humana, passando a prevalecer o

respeito à personalização do homem e de sua família, preocupado o Estado Democrático de Direito com a

defesa de cada um dos cidadãos. E a família passou a servir como espaço e instrumento de proteção à dignidade

da pessoa, de tal sorte que todas as esparsas disposições pertinentes ao Direito de Família devem ser focadas

sob a luz do Direito Constitucional.” MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 4. ed., rev. atual. amp.

Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 42.

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patrimonial da família se afigura claramente constitucional, visto que também no direito

brasileiro “o direito à moradia é da pessoa e da família; isso tem consequências notáveis no

plano das relações civilísticas”.36 Há sólida corrente doutrinária nesse sentido. Luiz Edson

Fachin é um dos defensores da constitucionalidade do art. 1.240-A do Código Civil

Apreende-se que o novo dispositivo legal encartado ao Código Civil é

adequado aos vetores que esteiam o ordenamento jurídico brasileiro, sendo

possível o acolhimento sistemático ao art. 1240-A em leitura orientada

pelas determinantes principiológico-constitucionais.37

A partir das considerações acima, afigura-se possível sustentar a

constitucionalidade de uma leitura da usucapião familiar ao afiná-la com tais pressupostos

constitucionais, que devem, inexoravelmente, reverberar na definição das balizas de

aplicação de referido instituto.

2. Requisitos legais e questões controversas da usucapião familiar

Inegável que faltou ao legislador uma precisão terminológica para a

definição do instituto da usucapião familiar, o que já vem sendo observado por parte da

doutrina e alguns precedentes nos tribunais.38

Nesse contexto, na apuração do sentido do instituto não se pode perder de

vista a essência da necessária hermenêutica com a superação da simples subsunção conforme

apregoa Gustavo Tepedino

[...] se o ordenamento é unitário, moldado na tensão dialética da argamassa

única dos fatos e das normas, cada regra deve ser interpretada e aplicada a

um só tempo, refletindo o conjunto das normas em vigor. A norma do caso

concreto é definida pelas circunstâncias fáticas na qual incide, sendo

36 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de

Janeiro: Renovar, 2008. p. 888. 37 FACHIN, Luiz Edson. A constitucionalidade da usucapião familiar do art. 1.240-A do Código Civil. In:

Revista Carta Forense, de 2 de outubro de 2011. Disponível em:

<http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/a-constitucionalidade-da-usucapiao-familiar-do-artigo-

1240-a-do-codigo-civil-brasileiro/7733>. Acesso em: 02 de agosto de 2014. 38 No caso da usucapião familiar há dificuldade ainda maior devido ao curto lapso temporal entre a aprovação

da norma e a de vigência da lei que a criou. Além disso, há dificuldade de acesso a amostragem mais ampla de

julgados em vários de tribunais devido a tramitação em segredo de justiça nos processos de famílias (art. 155,

II, CPC). Essa pesquisa tem por base a pesquisa de jurisprudência no Supremo Tribunal Federal, Superior

Tribunal de Justiça e Tribunais de Justiça das unidades da federação de Alagoas, Rondônia, Mato Grosso do

Sul, Distrito Federal e Territórios, Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 39

extraída do conjunto normativo em que se constitui o ordenamento como

um todo.39

Com a vigência da Lei Federal 12.424 de 16.06.2011 foi incluído no

Código Civil o denominado instituto da “usucapião familiar” (art. 1.240-A, CC), pelo qual

se passa a admitir a exceção de hipótese de prescrição aquisitiva da posse entre ex-cônjuges

ou ex-companheiros (art. 197, I, CC).

Da letra fria da lei extrai-se tratar de instituto aplicável a imóvel urbano

com até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados), objeto de partilha de bens em que

uma das partes abandona o lar em detrimento do exercício da posse pela outra, que utiliza o

bem para sua moradia ou de sua família, sem que esta seja proprietário de outro imóvel,

urbano ou rural:

Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e

sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até

250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida

com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para

sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que

não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

A primeira controvérsia em torno do tema parece estar praticamente

superada e diz respeito ao marco temporal inicial da contagem do prazo da prescrição

aquisitiva pela incidência do instituto em razão da sua eficácia no tempo. Para delimitar a

prazo inicial da usucapião familiar prevalece o entendimento da sua ocorrência a partir da

vigência da Lei 12.424/2011, que visa assegurar a segurança jurídica das relações jurídicas

previamente estabelecidas.

Esse é o entendimento firmado por muitos tribunais e que vêm sendo

acompanhado em uma razoável quantidade de precedentes,40 assim como foi deliberado na

39 TEPEDINO, Gustavo. O ocaso da subsunção. Disponível em: <http://www.tepedino.adv.br/wp/wp-

content/uploads/2012/09/RTDC.Editorial.v.034.pdf>. Acesso em 28.07.2014. 40 EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - USUCAPIÃO FAMILIAR - LEI 12.424/11 - VIGÊNCIA - PRINCÍPIO

DA SEGURANÇA JURÍDICA. O prazo de 02 anos da prescrição aquisitiva, exigido pela Lei nº 12.424/11,

deve ser contado a partir da sua vigência, por questões de segurança jurídica, vez que antes da edição da nova

forma de aquisição da propriedade não existia esta espécie de usucapião. (Apelação Cível 1.0177.11.001434-

3/001, Relator(a): Des.(a) Antônio de Pádua , 14ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 07/03/2013, publicação

da súmula em 19/03/2013). No mesmo sentido: TJ/MG Apelação Cível 1.0702.12.035148-2/001, Apelação

Cível 1.0702.11.079218-2/001, Apelação Cível 1.0598.11.002678-1/001; TJ/SP Apelação 0012360-

17.2013.8.26.0032, Apelação 0707317-31.2012.8.26.0020, Apelação 0001253-55.2013.8.26.0426, Apelação

0040665-69.2011.8.26.0100, Apelação 0052438-14.2011.8.26.0100, Apelação 0023846-23.2012.8.26.0100;

TJ/RS Apelação Cível Nº 70050616598; TJ/PR Apelação Cível 3201-90.2011.8.16.0002, Apelação Cível

0007120-30.2011.8.16.0021).

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V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal:41 “Enunciado 498 - A fluência

do prazo de 2 (dois) anos previsto pelo art. 1.240-A para a nova modalidade de usucapião

nele contemplada tem início com a entrada em vigor da Lei n. 12.424/2011”.

Assim, independentemente do exercício prévio da posse de forma

exclusiva por um dos cônjuges ou companheiro (a), segundo a decisão reiterada dos

tribunais, a data inicial a qual se aplica a usucapião familiar é 16.06.2011, quando passou a

vigorar o dispositivo em tela no Código Civil.

Outra questão que em princípio se evidenciava mais tortuosa na

caracterização do começo do prazo da prescrição aquisitiva está na definição da data

separação do casal, o que não implica, necessariamente, na existência de separação judicial,

medida cautelar de separação de corpos ou até mesmo do divórcio.

O texto legal faz referência a condição subjetiva de ser “ex-cônjuge ou

companheiro” e a ocorrência de “abandono do lar”. Na medida em que a coabitação

prescindível à constituição da entidade familiar, a data da separação fática do casal será o

marco para a contagem do período aquisitivo, sendo irrelevante o seu prévio reconhecimento

formal (seja pela via judicial ou por escritura pública).

Nessa linha é a interpretação dada pelo Enunciado 501 da V Jornada de

Direito Civil: “As expressões “ex-cônjuge” e “ex-companheiro”, contidas no art. 1.240-A

do Código Civil, correspondem à situação fática da separação, independentemente de

divórcio”42;43.

Nota-se a necessária adequação dos termos empregados na redação do art.

1.240-A, CC pela interpretação sistemática da concepção de ex-cônjuge ou companheiro,

tendo em vista a dignidade constitucional para a pluralidade de entidades familiares. Vide o

Enunciado 500 da V Jornada de Direito Civil: “A modalidade de usucapião prevista no art.

41 Jornadas de direito civil I, III, IV e V: enunciados aprovados / coordenador científico Ministro Ruy Rosado

de Aguiar Júnior. – Brasília: Conselho da Justiça Federal, Centro de Estudos Judiciários, 2012. In:

<http://www.cjf.jus.br/cjf/CEJ-Coedi/jornadas-cej/enunciados-aprovados-da-i-iii-iv-e-v-jornada-de-direito-

civil/compilacaoenunciadosaprovados1-3-4jornadadircivilnum.pdf>. Acesso em: 28.07.2014. 42 Jornadas de direito civil I, III, IV e V. Op. cit. 43 No mesmo sentido julgou o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: Ementa: APELAÇÃO CÍVEL

Usucapião familiar, com fundamento no artigo 1.240-A do Código Civil Ação de extinção do feito, sem

resolução do mérito, afastada. O evento a quo para o início da contagem do prazo prescricional é a

separação de fato do casal, com o abandono do lar por um dos cônjuges. Ação em condições de ser julgada

(art. 515, § 5º, do CPC). Lapso temporal não verificado. Pedido improcedente. (Apelação 0023846-

23.2012.8.26.0100, Relator(a): Des.(a) José Carlos Ferreira Alves, 2ª Câmara de Direito Privado, julgamento

em 03.12.2013) (grifo nosso)

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1.240-A do Código Civil pressupõe a propriedade comum do casal e compreende todas as

formas de família ou entidades familiares, inclusive homoafetivas”.44

Outro requisito legal da usucapião familiar que merece atenção é da “posse

direta” sobre o bem, que não se confunde com aquela definida no art. 1.197 do Código Civil:

“Enunciado 502 - O conceito de posse direta referido no art. 1.240-A do Código Civil não

coincide com a acepção empregada no art. 1.197 do mesmo Código”.45

Conforme leciona Pontes de Miranda, o conceito e natureza jurídica da

posse, por essência é suporte fático da relação inter-humana de poder exercido entre o

possuidor e o alter, ou seja, a comunidade. Não se trata de poder ou o seu exercício relativo

ao domínio ou à propriedade (usus, fructus, abusos). 46 Assim, a posse pertence ao mundo

dos fatos e pode ingressar no plano jurídico em razão de ato, negócio, ato-fato ou fato

jurídico puro. O exercício da posse, ainda que acrescida de algum direito, é do plano fático

e o que importa ao titular.47 Fundada na sua natureza fática, a teoria clássica da posse admite

distintas gradações e uma consequente pluralidade de sujeitos que variam do possuidor

imediato (posse direta) ao mediato (posse indireta), adotada pelo Código.

Assim, dispõe o texto legal que a usucapião familiar poderá ser concedida

àquele que exercer a posse direta por 02 (dois) anos ininterruptos, sem oposição e com

exclusividade. Nesse contexto, é preciso registrar que a finalidade do instituto não pode

restringir o direito a aquisição originária da propriedade àquele que permanece na posse

efetiva do lar conjugal, devendo ser contextualizada com as múltiplas vicissitudes que

motivam a saída de uma das partes.

Darcy Bessone há muito já sustentava a necessidade de uma releitura

contemporânea do instituto e do Direito das Coisas

Não estamos a refletir apenas a figura complexa da posse. Queremos saltar

para fora de um círculo tão estrito para vermos todo o descompasso entre

o Direito e a vida, especialmente no campo do Direito privado. Tem faltado

imaginação e criatividade aos cientistas do Direito. Não conseguem

vincular-se à evolução resultante das novas descobertas e inventos. De

ordinário, viram-se para trás, em lugar de volverem-se para frente.48

44 Jornadas de direito civil I, III, IV e V. Op. cit. 45 Jornadas de direito civil I, III, IV e V. Op. cit. 46 MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Parte Especial, Tomo 10, Direito das Coisas: Posse.

Atualizado por Vilson Rodrigues Alves. 2ª ed. Campinas: Bookseller, 2001. p. 31. 47 MIRANDA. Ibid. p. 32-33. 48 BESSONE, Darcy. Da Posse. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 7.

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Por estar diretamente atrelada à proteção da família e à concretização da

dignidade da pessoa humana, há que se garantir uma “interpretação tecnicamente mais

branda do termo posse direta”49 para evitar situações concretas de injustiça. Por isso, em

alguns casos é possível a concessão da usucapião familiar até mesmo para o consorte que

não está na posse efetiva do bem.50

Uma sociedade desigual na qual persistem condições de desigualdade de

gênero e de altos índices de violência doméstica, não se pode limitar a conferir apenas a

aplicação do instituto àquele cônjuge ou companheiro que permaneceu fisicamente no

imóvel.

É necessária uma reinterpretação dos institutos do direito das coisas em

sintonia com o Direito de Família hodierno. Exemplo da insuficiência das teorias

possessórias clássicas51 para a correta aplicação da usucapião familiar pode ser verificada na

situação abaixo

DIREITO CIVIL. UNIÃO ESTÁVEL. IMÓVEL ADQUIRIDO

DURANTE PERÍODO DE CONVIVÊNCIA. PERDA DA MEAÇÃO

PELO COMPANHEIRO. ART. 1.240-A. APLICAÇÃO ANALÓGICA.

COMPANHEIRA VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E

FAMILIAR. INAPLICABILIDADE. PARTILHA NECESSÁRIA.

Segundo dispõe o art. 1.725 do Código Civil, reconhecida a união estável,

aplica-se o regime da comunhão parcial de bens. Não comprovado, na

hipótese, os requisitos para usucapião nos termos do art. 1.240-A, em

especial o abandono do lar e a posse sem oposição, inviável aplicação

analógica deste dispositivo à companheira anteriormente vítima de

violência doméstica e familiar a partir da interpretação dos justos objetivos

da Lei Maria da Penha, ainda mais quando já reparada financeiramente por

tal ocorrência (Acórdão n.690599, 20120310272384APC, Relator:

CARMELITA BRASIL, Revisor: WALDIR LEÔNCIO LOPES JÚNIOR,

2ª Turma Cível, Data de Julgamento: 03/07/2013, Publicado no DJE:

10/07/2013. Pág.: 122).

Não raro as vítimas de violência doméstica não representam seus

agressores por temer o agravamento do conflito familiar, e, com o intuito de proteger a si e

49 FACHIN, Luiz Edson; GONÇALVES, Marcos Alberto Rocha. 10 anos do Código Civil: o ser e o ter no

direito de família a partir da aquisição pela permanência na morada familiar. In: Direito civil constitucional e

outros estudos em homenagem ao Prof. Zeno Veloso. Coordenação Pastora do Socorro Teixeira Leal. Rio de

Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. p. 646. 50 SIMÃO, José Fernando; TARTUCE, Flávio. Direito Civil. v. 4 . Direito das Coisas. São Paulo: Método,

2013. p. 172. 51 Em que pese a velocidade das enormes transformações sociais ocorridas no século passado e início deste, as

teorias objetiva e subjetiva de Ihering e Savigny, respectivamente, que datam do século XIX, permanecem

bastante fortes na codificação vigente.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 43

eventual prole, saem do lar conjugal. Assim, a interpretação acerca do requisito da posse

direta deve ser orientada para a finalidade de tutelar a entidade familiar e o conjunto de

direitos que compõe a sua esfera existencial mínima, não para coagi-la a permanecer onde

sequer a sua integridade física e moral é respeitada.52

Outro ponto controvertido sobre o tema diz respeito ao foro competente

para julgar as ações relativas à usucapião familiar. Como pertine tanto ao Direito das Coisas

como ao Direito de Família, atualmente discute-se qual o foro competente para o julgamento

dessas demandas: se o foro cível comum ou as varas especializadas de família.

Nessa questão vislumbra-se uma tendência dos tribunais a decidir pela

competência cível:

AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE DIVÓRCIO -

RECONVENÇÃO - USUCAPIÃO FAMILIAR - ART. 1240-A DO

CC/02 - COMPETÊNCIA PARA JULGAMENTO - DIREITO REAL -

COMPETÊNCIA DA VARA CÍVEL - DECISÃO MANTIDA. Na

usucapião familiar, prevista art. 1240-A do CC/02, a existência de

instituição familiar, seja o casamento ou a união estável, é apenas um dos

requisitos necessários para a sua constituição. A questão de fundo nela

contida refere-se a constituição de domínio sobre imóvel, constituindo-se,

portanto, ação de cunho patrimonial. Tendo em vista que a usucapião

familiar não se refere a estado de pessoas, mas sim a aquisição originária

de propriedade imobiliária, cujos efeitos poderão atingir terceiros, a

competência para seu julgamento é dos Juízes da Vara Cível, e não da Vara

de Família. (TJMG, Agravo de Instrumento Cv 1.0024.13.206443-7/001,

Relator(a): Des.(a) Afrânio Vilela, 2ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em

11/03/2014, publicação da súmula em 21/03/2014)53

Sendo a aquisição da propriedade uma consequência do abandono

familiar, questão que diz muito mais com o direito de família, a competência para o

processamento do pedido deve ser atribuída às varas de família.54

52 Nessa linha, José Fernando Simão e Flávio Tartuce sustentam que o abandono do lar não tem vinculação

necessária com a posse direta do imóvel: “Desse modo, o requisito do abandono do lar merece uma

interpretação objetiva e cautelosa. (...) Como incidência concreta desse enunciado doutrinário, não se pode

admitir a aplicação da nova usucapião nos casos de atos de violência praticados por cônjuge ou companheiro

para retirar o outro do lar conjugal. Em suma, a expulsão do cônjuge ou companheiro não pode ser comparada

ao abandono.” In: SIMÃO, José Fernando; TARTUCE, Flávio. DIREITO CIVIL. v. 4 . Direito das Coisas.

São Paulo: Método, 2013. p. 172. 53 No mesmo sentido TJ/SP Conflito de competência nº 0180277-60.2013.8.26.0000 e TJ/PR AGRAVO DE

INSTRUMENTO n.º 966031-5. 54 LIMA, Susana Borges Viegas de Lima. Usucapião familiar. In: Direito das famílias por juristas brasileiras.

Organizadoras Joyceane Bezerra de Menezes e Ana Carla Harmatiuk Matos. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 805-

821.

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Conforme se verá adiante, a usucapião familiar tem caráter principalmente

existencial, pois visa tutelar a família e o seu direito à moradia, de modo que sua análise é

matéria que deve restar sob a incumbência dos juízos de família.

3. O sentido funcionalizado da expressão abandono do lar

O dispositivo legal que introduziu a usucapião familiar traz como um dos

seus requisitos o ‘abandono do lar’, expressão consignada no texto do art. 1240-A do Código

Civil. Infeliz a escolha deste significante pelo legislador, como já exposto, pois a figura do

abandono do lar desempenhou outro papel no direito brasileiro recente, atualmente já

totalmente superado.

Como o instituto visa tutelar um aspecto patrimonial de uma relação

familiar, deve, necessariamente, corresponder ao momento atual do direito de família

brasileiro, sob pena de incorrer em inadmissível retrocesso. As alterações neste ramo do

direito foram tantas que alguns autores até preferem referir a um direito das famílias,55 no

plural, para bem demarcar esse multifacetado sentido contemporâneo.

Quem descreve com clareza a alteração que se processou é Maria Celina

Bodin de Moraes

Esse processo foi acompanhado de perto pela legislação e pela

jurisprudência brasileiras que tiveram nas duas últimas décadas,

inegavelmente, um papel promocional na construção do novo modelo

familiar. Tal modelo vem sendo chamado, por alguns especialistas em

sociologia, de ‘democrático’, correspondente, em termos históricos, a uma

significativa novidade, em decorrência da inserção, no ambiente familiar,

de princípios como igualdade e liberdade.56

A partir dessas diretrizes constitucionais o trato atual das relações

familiares fez emergir, dentre outros, os princípios da responsabilidade57 e da afetividade58,

que conferem outra coloração às diversas categorias do direito de família. Para proteção

55 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 4. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2007. 56 MORAES, Maria Celina Bodin de. A Família Democrática. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Anais

do V Congresso Brasileiro do Direito de Família. São Paulo: IOB Thomson, 2006. p. 615. 57 SANCHES, Fernanda Karam de Chueiri. A Responsabilidade no Direito de Família Brasileiro

Contemporâneo: Do Jurídico à Ética. Dissertação. (Mestrado em Direito) - Programa de Pós-Graduação em

Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2013. p. 157. 58 CALDERON, Ricardo Lucas. Princípio da Afetividade no Direito de Família. Rio de Janeiro: Renovar,

2013. p. 320.

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dessa família democrática hodierna, inviável a utilização de figuras jurídicas que

incompatibilizem com o momento alcançado.59

Importa destacar que uma adequada tutela das relações jurídicas familiares

existenciais não se compatibiliza com meras técnicas subsuntivas, exigindo muito mais do

intérprete.60 Essa especialidade das situações familiares já era sustentada por José Lamartine

de Oliveira e Francisco Muniz

Poderíamos dizer, pois, que os direitos de família, por razões éticas e pelo

caráter eminentemente pessoal da relação, exigem formas próprias de

tutela, inteiramente distintas das que caracterizam a defesa dos direitos de

crédito, dos direitos reais e dos próprios direitos da personalidade.61

Diante disso, ao significante abandono do lar deve ser conferido um

significado adequado com a tutela da relação familiar subjacente. Ou seja, compatível com

um retrato civil-constitucional contemporâneo da família brasileira, de modo que sua

significação se circunscreva aos contornos constitucionais e às categorias vigentes do nosso

atual direito privado.

Consequentemente, se mostra inconcebível qualquer interpretação da

expressão abandono do lar que busque retomar a averiguação da culpa na dissolução do

vínculo conjugal, visto ser esta uma questão já superada no direito de família brasileiro,

máxime após a Emenda Constitucional 66/2010. Do mesmo modo, não se pode vislumbrar

na figura do abandono do lar uma mera sanção a um dos cônjuges ou conviventes. Calha,

aqui, a alteração de enfoque que se percebe na própria responsabilidade civil: muito mais do

que se sancionar um culpado, o que na maioria das vezes não é simples, o foco atual visa a

recomposição da vítima. Embora não se ignore que existam autores que sustentem que a

59 “Não se pode esquecer que a família, nas últimas décadas e neste início de milênio, busca mecanismos

jurídicos diversos de proteção para seus membros, o respeito às diferenças, necessidades e possibilidades.”

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v. 5. 22 ed. atual. Tânia da Silva Pereira. Rio de

Janeiro: Forense, 2014. 60 “Più che mai dunque nel diritto familiare risulta evidente la necessita di rinnovare le tecniche di

interpretazione e di qualificazione con il superamento di qualsiasi operazione argomentativa di tipo

sillogistico che pretenda di fermarsi alla lettera del legislatore e di espungere dall’analisi, che è a fondamento

del convincimento giuridico, il profilo funzionale rappresentato dagli interessi e dai valori.” (PERLINGIERI,

Pietro. La persona e i suoi diritti: problemi del diritto civile. Napoli: Edizione Scientifiche, 2004. p. 378). Em

tradução livre: “Mais do que nunca, portanto, no direito de família resulta evidente a necessidade de renovar

as técnicas de interpretação e de qualificação com a superação de qualquer operação argumentativa de tipo

silogístico que pretenda se deter nas palavras do legislador e afastar da análise, que é o fundamento do

convencimento jurídico, o perfil funcional representado pelos interesses e pelos valores.” 61 OLIVEIRA, José Lamartine de; MUNIZ, Francisco José Ferreira. Curso de Direito de Família. 4 ed.

Curitiba: Juruá, 2008. p. 14.

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perda da propriedade pelo cônjuge que abandona o lar simbolize uma verdadeira sanção pelo

descumprimento dos deveres do casamento ou da união estável (a utilização da expressão

abandono do lar como elemento desta usucapião inicialmente reforça essa visão, pois é a

mesma que é descrita como um dos deveres do casamento).62

Como se pode perceber, é complemente inviável a restauração da figura

do abandono do lar com uma interpretação quase literal, que possa inicialmente induzir a um

retrocesso que busque requentar questões já superadas. A busca de um culpado pelo fim do

relacionamento somente aumenta a litigiosidade, sem nada agregar, de modo que a solução

das controvérsias só tende a agravar dada a infinita quantidade de motivos que ambas as

partes podem trazer em seu favor. Esta leitura é incompatível com o estádio do nosso direito

jusfamiliar.

Por outro lado, também o direito das coisas assumiu uma feição

constitucionalizada. A partir desta percepção não parece adequado atribuir ao abandono do

lar um sentido meramente objetivo de ausência de vínculo efetivo com o imóvel, de ausência

de posse, ausência de relação direta de uso do bem, como é usual nas demais modalidades

de usucapião. Diversos autores estão a sustentar que a expressão abandono do lar para fins

desta usucapião deve ser entendida de modo objetivo, com um sentido que indique apenas

vínculo efetivo com o uso do imóvel.63

Novamente aqui as vicissitudes das relações familiares impedem que se

denote ao abandono do lar um significado que retrate meramente a ausência de vínculo

62 “A nova modalidade de usucapião inserida no Código Civil pela Lei 12.424/2011 consiste em sanção civil

pelo descumprimento dos deveres do casamento e da união estável. Aquele que abandona voluntária e

injuriosamente o domicílio familiar, nas condições descritas neste dispositivo legal, descumpre gravemente os

deveres conjugais e os deveres oriundos da união estável e fica sujeito à perda do direito de propriedade em

favor do consorte que ali permanece durante dois anos e sem oposição. Este é mais um dos artigos do Código

Civil que oferece proteção ao consorte inocente e punição ao culpado pelo descumprimento dos deveres

familiares, reforçando essas normas de conduta após a Emenda Constitucional 66/2010. Recordemos que dever

sem sanção não é norma de conduta, mas sim, mera recomendação ou simples conselho, o que seria

inadmissível, por inconstitucional, ou seja, por violar principalmente o art. 226, caput, da Constituição Federal,

que impõe ao Estado proteção especial à família e, por conseguinte, aos seus membros.” FIUZA, Ricardo;

TAVARES DA SILVA, Regina Beatriz. Código civil comentado. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 1171.

Ainda: “O abandono do lar pelo cônjuge consiste em infração grave para a relação jurídica de casamento. O

art. 1.566, II, do CC estabelece que (...) ‘são deveres de ambos o cônjuges (...) II – vida em comum, no domicílio

conjugal; (...)’. O casamento ou a união estável marcam a opção da vida conjugal, que pode ser consolidada

pelo contrato de casamento ou pela união estável.” MEDINA, José Miguel Garcia; ARAÚJO; Fábio Caldas

de. Código Civil Comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 781. 63 “É mecanismo de incentivo à aquisição de imóveis urbanos para famílias com pequena renda mensal, bem

como visa proteger aquele que rompeu união estável ou sociedade conjugal, mais que ainda reside no imóvel,

dividindo-o com o ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar. (...) O elemento finalístico da utilização

do imóvel como sua moradia própria, individual, ou de sua família, deve estar presente para que possa ser

declarado proprietário pela usucapião.” NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código

Civil Comentado. 10 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. p. 1162.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 47

efetivo com a coisa (de uso concreto do imóvel). Isto porque, em muitos casos, o consorte

que resta no imóvel não é o que necessita dele para a moradia, não é o que está com a prole,

não é o que foi desamparado pelo outro, não é o que está fazendo frente às responsabilidades

parentais; por tudo isso, não é o que será merecedor da titularidade plena do lar conjugal.

Corolário disso, por envolver relações familiares que possuem infinitas

delineações, se mostra totalmente descabida a fixação, a priori, de um critério objetivo e

singelo como este: que identifique a expressão abandono do lar com o mero distanciamento

físico do imóvel.

Um exemplo hipotético concreto pode auxiliar na compreensão do que se

está a sustentar: não raro muitas das mulheres vítimas de violência doméstica simplesmente

saem do lar com seus filhos para parar de sofrer tais sevícias; grande parte delas não ajuíza

as competentes ações judiciais no exíguo prazo de dois anos e sequer registra os competentes

boletins de ocorrência (pois muitas vezes estão mais preocupadas com a segurança e

subsistência - sua e dos seus filhos - naquele difícil momento da vida, ainda mais quando o

pai-agressor está sem emprego e possui ainda vícios de drogas ou álcool). Também não é

incomum que o agressor que restou fisicamente no lar não faça frente as suas

responsabilidades parentais: não pague alimentos, não visite os filhos, não exerça sua

autoridade parental, não permita que a mulher entre em contato e que sequer volte ao lar

pegar os seus pertences e os dos filhos. Este quadro sombrio ocorre com mais frequência em

famílias de baixa renda, desestruturadas e com diversos problemas sociais, mas atualmente

muitas delas são proprietárias de imóvel pelo referido programa federal Minha Casa, Minha

Vida. Sobrevinda uma ação real, imagine-se que tais fatos se comprovem facilmente (até

com confissão de ambas as partes: o pai das agressões e descumprimentos das obrigações

com os filhos; a mãe com seu distanciamento do local por mais de dois anos sem ajuizar

qualquer demanda). Pois bem, seria sustentável no atual direito civil-constitucional

brasileiro afirmar que o consorte-agressor que restou fisicamente no lar por dois anos

seguidos, mas abandonou por completo sua família neste período, descumprindo in totum

sua responsabilidade familiar e parental, venha a receber a propriedade total do imóvel pelo

mero atendimento objetivo dos requisitos formais da usucapião familiar?

Parece que não.

Conceder a aquisição da propriedade a este pai-agressor apenas porque foi

ele quem restou fisicamente no imóvel pelo prazo de dois anos afrontaria justamente os

princípios constitucionais que conferem guarida à usucapião familiar: dignidade,

solidariedade, função social, direito à moradia e direito a um mínimo existencial. Este é um

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 48

dos pontos nodais da presente proposta: exaltar que a significação da usucapião familiar não

pode descurar dos princípios constitucionais que a sustentaram. Ou seja, a caracterização

dos requisitos do instituto não pode olvidar dos comandos que advém dos valores

constitucionais que o fundamentam e, com isso, o integram. Impensável sustentar a

constitucionalidade da usucapião familiar com base na dignidade da pessoa humana,

solidariedade, função social, direito à moradia e, no momento da aplicação concreta dos seus

requisitos, virar as costas para tais questões e se ater apenas aos elementos estruturais-

formais, contrariando os supracitados valores constitucionais.64

Há que se apurar a adequada função contemporânea desta recente

modalidade de usucapião familiar, de acordo com uma análise unitária do ordenamento,

sempre a partir da Constituição Federal e do Código Civil, com o intuito de constatar o papel

que este instituto deve desempenhar naquela dada situação jurídica. Gustavo Tepedino

esclarece a relação entre o aspecto estrutural e funcional dos bens jurídicos

Como se pode observar, a disciplina dos bens jurídicos, delineada de

maneira minuciosamente tipificadora e abstrata no Código Civil, embora

tradicionalmente difundida em seu aspecto estrutural, a desenhar

classificação aparentemente neutra de objetos sujeitos ao tráfego jurídico,

adquire renovada dimensão e importância no direito contemporâneo. Para

tanto, há que se deslocar a análise para perspectiva funcional, de tal modo

que a qualificação do bem jurídico se encontre sempre associada à sua

função, investigando-se, na dinâmica da relação jurídica em que se insere,

a destinação do bem de acordo com os interesses tutelados.65

A percepção da dimensão funcional da usucapião familiar demonstrará,

sem maiores dificuldades, qual o seu efetivo papel na relação jurídica subjacente e

evidenciará mais facilmente qual o bem jurídico que deve ser tutelado. Consequentemente,

nessas condições, impõe-se buscar um sentido compatível de abandono do lar, que exalte

essa função e o permita transitar tanto no direito das coisas como no direito de família,

densificando as normas constitucionais que o fundamentam.

Resta patente que este sentido não pode significar nem a busca por um

culpado pelo término da relação, nem restar adstrito à mera retirada física do imóvel,

64 “Desse modo, o requisito do abandono do lar merece uma interpretação objetiva e cautelosa. (...) Como

incidência concreta desse enunciado doutrinário, não se pode admitir a aplicação da nova usucapião nos casos

de atos de violência praticados por cônjuge ou companheiro para retirar o outro do lar conjugal. Em suma, a

expulsão do cônjuge ou companheiro não pode ser comparada ao abandono.”. SIMÃO, José Fernando;

TARTUCE, Flávio. DIREITO CIVIL. v. 4 . Direito das Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 172. 65 TEPEDINO, Gustavo. Regime Jurídico dos Bens no Código Civil. IN: Silvio de Salvo Venosa; Rafael Villar

Gagliardi e Paulo Magalhães Násser (Org.). Dez anos do Código Civil: desafios e perspectivas. São Paulo:

Atlas, 2012. p. 30.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 49

conforme exposto acima (visões que têm sido difundidas). Nenhuma dessas duas opções

permite a consagração das diretrizes da Constituição que incidem sob a matéria e muito

menos destacam o aspecto funcional da inovadora modalidade aquisitiva.

Diante dessas considerações, o que se mostra indicado é que se traduza a

expressão abandono do lar como um abandono familiar, no sentido de um desamparo da

família por um daqueles que deveria ser seu provedor. Em outras palavras, retrate o não

atendimento das responsabilidades familiares e parentais incidentes no caso concreto, um

desassistir que venha a trazer dificuldades materiais e afetivas para os familiares que

restaram abandonados. Exemplificando: não prestar alimentos, não contribuir para as

despesas do lar, não manter os vínculos afetivos com os demais integrantes da família, dentre

outros.

O foco de análise deve ser a partir da situação jurídica dos entes familiares

que restaram desamparados e podem vir a merecer certa proteção patrimonial. Substitui-se

eventual busca pelo sancionamento de um ofensor pela priorização na recomposição das

vítimas do desamparo.66 Este abandono familiar equivaleria ao sentido contemporâneo de

abandono do lar para fins da usucapião e permitiria a averiguação dos seus demais requisitos

legais.67

Consequentemente, só faria jus à aquisição da propriedade quem cumpriu

com suas responsabilidades familiares, ou seja, quem fez frente a sua obrigação alimentar

(ainda que não fixada judicialmente), exerceu efetivamente sua autoridade parental, visitou

os filhos, não agrediu fisicamente o outro consorte ou demais integrantes da família, dentre

outros critérios a apurar na situação concreta. Com tal sentido de abandono do lar o exemplo

hipotético acima descrito estaria sanado, pois aquele pai-agressor não seria agraciado com a

propriedade.

66 “Essa espécie de usucapião visa à proteção do cônjuge que, abandonado ou, mesmo, privado de assistência

material e do sustento e da moradia, mantém-se no imóvel e se responsabiliza pelos respectivos encargos,

situação que justifica a aquisição da propriedade por usucapião e a alteração do regime de bens quanto ao

respectivo imóvel.” CHALHUB, Melhim Namem. Direitos Reais. 2 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora

Saraiva, 2014. p. 90-91. 67 Alguns autores sustentam nesse sentido, como Priscila Maria Pereira Correa da Fonseca: “O abandono que

rende ensejo às consequências previstas no art. 1.240-A é aquele efetivado de má-fé, aquele claramente levado

a efeito com o intuito de relegar à família repudiada ao signo de desamparo moral e/ou material. Insista-se:

não é apenas a falta de assistência financeira daquele que se desligou do antigo lar que proporcionará o

pedido de aquisição do domínio nos moldes do comando sub examine. Há, por igual, de configurar o abandono

referido pelo art. 1240- A, aquele praticado pelo ex-cônjuge ou ex-companheiro que, não obstante diligencie

satisfatoriamente à mantença dos componentes da família, a eles volta às costas, passando a ignorar o

atendimento assistencial necessário, ainda que não de ordem moral.” FONSECA, Priscila Maria Pereira

Correa da. Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre, Magister/Belo Horizonte,

IBDFAM, v. 23,ago./set. 2011. p. 120.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 50

Uma leitura de abandono do lar próxima ao que se descreveu como um

abandono familiar já foi retratada, de algum modo, no enunciado 499 da V Jornadas de

Direito Civil

499 - A aquisição da propriedade na modalidade de usucapião prevista no

art. 1.240-A do Código Civil só pode ocorrer em virtude de implemento de

seus pressupostos anteriormente ao divórcio. O requisito “abandono do

lar” deve ser interpretado de maneira cautelosa, mediante a verificação de

que o afastamento do lar conjugal representa descumprimento simultâneo

de outros deveres conjugais, tais como assistência material e sustento do

lar, onerando desigualmente aquele que se manteve na residência familiar

e que se responsabiliza unilateralmente pelas despesas oriundas da

manutenção da família e do próprio imóvel, o que justifica a perda da

propriedade e a alteração do regime de bens quanto ao imóvel objeto de

usucapião.

Nas entrelinhas do enunciado é possível perceber as questões materiais

atinentes ao cumprimento das responsabilidades familiares (assistência material, sustento do

lar), em consonância com o que se ora defende.68

Muito mais do que simplesmente vincular o abandono do lar a um requisito

objetivo de uso do imóvel há que se edificar um sentido ético para a expressão, único passível

de bem retratar a sua função. A própria nomenclatura de “usucapião familiar” para designar

este instituto, ao invés de outras nominações, pode contribuir para destacar o aspecto que

ora pretende se jogar luz (a tutela da família).

Referir a um sentido de abandono familiar como pressuposto para a

usucapião familiar permite uma aproximação com todos os princípios e valores

constitucionais que foram justificadores da aplicação do dispositivo e, ainda, atenta para a

sua devida função na respectiva relação jurídica. Já há quem defenda uma leitura arejada e

atualizada de abandono do lar, com vistas a bem retratar a adequada função do instituto

No seio desta perspectiva não se pode aproximar a locução abandono do

lar às matizes de um tempo no qual a dissolução das relações era

exclusivamente pelo desfazimento do casamento, sempre a partir da

conduta culposa de um dos cônjuges. (...) Não parece correto interpretar o

termo abandono, nesta singra, como mera saída temporária do lar ou

mesmo mudança de endereço, mormente pela flexibilidade da estrutura

familiar antes explicitada. O abandono é, efetivamente, o movimento

peremptório e unidirecionalmente manifestado de abdicar por ação ou

omissão aos vínculos afetivos, cindindo-se a conexão com núcleo

intersubjetivo de convergência afetiva. Compreende-se assim como a

68 Uma única observação quanto a redação do enunciado: prefere-se aqui referir a um desatendimento da

responsabilidade familiar pelo abandonador do que descumprimento dos deveres conjugais, como constou na

ementa.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 51

interrupção do projeto de vida constituído pela coletividade de sujeitos

ligados pelo afeto, retirando-se aquele que abandona o lar de todos os

vínculos que o conectavam, seja eles financeiros, afetivos ou mesmo de

íon livre que se desatrela do papel desempenhado naquele conteúdo

coletivo de direitos. Deve-se interpretar a norma, quanto a este tema, em

convergência com sentido mais benéfico aos direitos fundamentais que,

mediatamente, pretende-se tutelar. Não há que se falar em conceito

apriorístico de abandono, demandando-se interpretação casuística

construtiva.69

A presente proposta de leitura do abandono do lar como um verdadeiro

abandono familiar, retratado pelo desatendimento da responsabilidade familiar inerente ao

caso concreto, permite ir ainda mais longe, de modo até mesmo a vislumbrar a possibilidade

de se conceder a propriedade para um dos cônjuges ou conviventes que teve que deixar o

imóvel, mas restou desamparado pelo outro (com a sua prole) por dois anos ou mais, e está

a necessitar do lar conjugal para moradia. Dito de outro modo, eventualmente conceder a

usucapião aquisitiva mesmo para aquele que não está na posse efetiva do bem, mas que tenha

sido abandonado pelo outro e que necessite do bem para sua moradia e sobrevivência (muitas

vezes com os filhos). Acaso presente os demais requisitos, se afigura possível esta hipótese.

Com isso se permitiria o desacoplamento pontual da usucapião da posse efetiva do bem.70

Outra questão a ser observada é que sendo a usucapião um modo de

aquisição originário da propriedade, em regra, adere a esfera jurídica do novo titular sem os

gravames que pendiam anteriormente sobre o bem. Face às peculiaridades desta usucapião,

inclusive pela lei vir com o Programa Minha Casa, Minha Vida parece recomendável se

adotar o entendimento de que para esta modalidade de usucapião permanecem hígidas e

plenas as garantias reais que pendiam anteriormente sobre o bem (até mesmo para se evitar

um incentivo à fraude e preservar o interesse de terceiros).

Estas considerações ressaltam a necessidade de uma hermenêutica crítico-

construtiva na apuração do sentido civil-constitucional da usucapião familiar que seja,

sempre, harmônica com os tempos presentes.

4. Considerações Finais

69 FACHIN, Luiz Edson; GONÇALVES, Marcos Alberto Rocha. “10 Anos do Código Civil: O ser e o ter no

Direito de Família a partir da aquisição pela permanência na moradia familiar” IN: LEAL, Pastora do Socorro

Teixeira (coord.). Direito Civil Constitucional e outros estudos em homenagem ao Prof. Zeno Veloso. Rio de

Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2014. (p.632-648) p. 641. 70 “Nesse contexto, não há necessidade de que o imóvel esteja na posse direita do ex-cônjuge ou ex-

companheiro, podendo ele estar locado a terceiro; sendo viável do mesmo modo a nova usucapião pelo

exercício da posse indireta.” SIMÃO, José Fernando; TARTUCE, Flávio. Direito Civil. v. 4 . Direito das

Coisas. São Paulo: Método, 2013. p. 172.

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O esforço exigido para conceder contornos adequados a esta nova

modalidade aquisitiva da propriedade é prova maior do desacerto do legislador na colocação

do instituto, visto que os equívocos não foram poucos. Ainda assim, parece possível se

extrair um significado constitucional para o dispositivo.

Ciente que uma norma não nasce norma, mas sim se faz norma no dia-a-

dia dos embates jurídicos doutrinários e jurisprudenciais, entende-se possível a edificação

de um sentido funcionalizado da usucapião familiar.

Ainda assim, não sem deixar de anotar as críticas pertinentes. Uma delas,

a descabida escolha da usucapião para proteger os bens jurídicos pretendidos (tutela da

família e do direito à moradia), pois acabou mantenedora do discurso proprietário que impera

no direito brasileiro.71 Isto porque, a forma eleita para tutelar àquelas situações jurídicas foi

a concessão do status proprietário ao consorte abandonado, o que demonstra a prevalência

da outorga da apropriação das coisas ao invés da garantia do seu uso, uma lógica de mercado

que segue presente no nosso imaginário coletivo.72

Para preservação da família e garantia do uso do imóvel muito mais

razoável seria se o legislador tivesse conferido apenas a garantia do direito de moradia, sem

ônus, para o membro da família abandonado; ao invés de o permitir usucapir a totalidade do

bem e lhe entregar a propriedade plena. Bastava que conferisse guarida similar ao ‘direito

real de habitação’ – já de há muito conhecido dos civilistas - que estaria suficientemente

protegido o bem jurídico que se pretendia tutelar. Com tal proceder priorizaria o uso ao invés

da apropriação. Entretanto, a mentalidade proprietária reinante certamente ofuscou tal

alternativa. O equívoco na eleição da usucapião como solução para estes casos concretos

pode acabar por não proteger nem mesmo um dos seus objetos centrais (como a garantia da

moradia), visto que com o regramento atual nada impede que quem tenha adquirido o bem

71 CORTIANO JUNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio de Janeiro:

Renovar, 2002. p. 259. 72 “Proprietà privata e autonomia privata, dunque, sono i due principi cardine attorno ai quali il diritto

moderno organizza i rapporti giuridici individuali, dando ad essi la forma tipica dei rapporti di mercato: il

diritto di appropriarsi in via esclusiva di una quota della ricchezza sociale non può non comportare anche il

diritto di realizzarne il controvalore mediante un libero atto di scambio, istituendo cioè con chi è disposto a

convenirlo un libero rapporto contrattuale.” (BARCELLONA, Pietro. Diritto privato e Società Moderna.

Napoli: Jovene Editore, 1996. p. 320) Em tradução livre: “Propriedade privada e autonomia privada, então, são

os dois princípios cardinais em torno dos quais o direito moderno organiza as relações jurídicas individuais,

dando a elas a forma típica das relações de mercado: o direito de apropriar-se de forma exclusiva de uma parte

da riqueza social deve comportar também o direito de realizar a contrapartida mediante um ato livre de

escambo, estabelecendo, com quem estiver disposto a celebrá-la, uma livre relação contratual.”

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 53

com a usucapião o coloque a venda a seguir, ao invés de permanecer com o mesmo para

moradia da família.

Com estas ressalvas, defende-se a tese que é viável prospectar uma

definição contemporânea adequada para esta usucapião familiar, desde que se perceba a

exata dimensão da influência que as vicissitudes jusfamiliares terão nesta configuração (daí

a recomendação para que o foro adequado seja sempre o do juízo das varas de família). O

tratamento desta relevante questão patrimonial dos litígios familiares não pode, mais do que

nunca, ignorar a necessária prevalência do ser sobre o ter.73

A regra posta pelo legislador é apenas o marco inicial da norma que será

erigida, pois mesmo quando o legislador ordinário permanecer inerte, deve o juiz e o jurista

proceder ao inarredável trabalho de adequação da legislação civil, através de interpretação

dotadas de particular ‘sensibilidade constitucional’, que, em última análise – e sempre –

vivifiquem o teor e o espírito da Constituição.74 Com observância desta orientação o trabalho

construtivo deixado aos civilistas poderá ser exitoso.

As dificuldades que se apresentam na adequada significação da usucapião

familiar comprovam que:

será íngreme e necessária, imprescindível mesmo, a tarefa hermenêutica

para reconhecer, na investigação teórica e na aplicação prática, o Código

Civil que o Século XXI da sociedade brasileira está a demandar, clamando

por justiça e igualdade substancial. Impende, pois, nessa quadra,

subscrever uma hermenêutica construtiva apta a realizar, na doutrina e na

jurisprudência que seguir-se-ão, esse mister.75

As direções apontadas pela bússola da Constituição são as que deverão

orientar a consolidação de um adequado sentido para a usucapião familiar, que observe sua

função no ordenamento e esteja afinado com atual estágio do direito civil-constitucional

brasileiro.

73 “O evidente artificialismo da noção clássica faz alargar a distância entre o que a lei civil estabelece como

sendo pessoa e o indivíduo homem, este a merecer proteção não pelo que tem, mas pelo que é. Por certo, não

deve a proteção patrimonial suplantar a proteção dos seres humanos”. (MEIRELLES, Jussara. O ser e o ter na

codificação civil brasileira: do sujeito virtual à clausura patrimonial. In: FACHIN, Luiz Edson (Coord.).

Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 92-

93) 74 MORAES, Maria Celina Bodin de. Na Medida da Pessoa Humana: estudos sobre direito civil. Op. cit., p.

20. 75 FACHIN, Luiz Edson. Comentários ao Código Civil. Direito das Coisas. (art. 1277 a 1368). Antonio

Junqueira de Azevedo (coord.). São Paulo: Saraiva, 2003. p. 374.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 54

Bem no fundo

No fundo, no fundo,

bem lá no fundo,

a gente gostaria

de ver nossos problemas

resolvidos por decreto

a partir desta data,

aquela mágoa sem remédio

é considerada nula

e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,

maldito seja quem olhar pra trás,

lá pra trás não há nada,

e nada mais

mas problemas não se resolvem,

problemas têm família grande,

e aos domingos

saem todos a passear

o problema, sua senhora

e outros pequenos probleminhas.

Paulo Leminski

Recebido em 22/01/2015

1º parecer em 27/02/2015

2º parecer em 27/02/2015

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 55

PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA NO DIREITO CIVIL: EM BUSCA DA

DISTINÇÃO FUNCIONAL1

Lapsing and prescription in civil law: seeking a functional distinction

Thaís Fernanda Tenório Sêco Mestre em direito civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Professora permanente no curso de pós-graduação lato sensu em direito civil da

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e

Advogada.

Resumo: Pela ausência de previsão da distinção entre prescrição e decadência na sistemática

do Código Civil de 1916, e pela previsão flexibilizada no sistema atual, entende-se que a

questão da distinção entre os prazos passou por um processo de “positivação tardia” que

afeta a compreensão doutrinária sobre o tema. Outros institutos há muito passaram do

jusnaturalismo à exegese chegando, por fim, às metodologias contemporâneas, como o

direito civil-constitucional. Quanto à distinção entre prescrição e decadência vigora a

perplexidade de não se saber se o poder do legislador sobre o tema é total ou nenhum. O

trabalho pretende inscrever a temática nas premissas metodológicas do direito civil-

constitucional pela investigação de um possível aspecto funcional da distinção a partir da

revisitação ao legado doutrinário sobre o tema.

Palavras-chave: Prescrição; Decadência; Funcionalização; Fireito civil-constitucional.

Abstract: As there is no distinction between lapsing and prescription on 1916 Brazilian civil

code, and for the flexible distinction there is in the actual system, we sustain that a “late

positivation” happened in what concerns this question with impacts on the way doctrine sees

it. Other institutes came over the jusnaturalism to the exegese, getting on to contemporaneous

methods, as the civil-constitutional approach. About the distinction between lapsing and

prescription, although, prevails some astonishment since we cannot know if the legislator

power on the theme its full or no. The study seeks to attract the problem to the civil-

constitutional assumptions investigating its possible function, trying to comprehend it from

the doctrinal legacy on the subject.

Keywords: Prescription; Lapsing; Functionalization; Civil-constitutional law.

1 Com minha gratidão ao Prof. Gustavo Tepedino que por duas vezes oportunizou enriquecedora discussão

sobre a abordagem ora apresentada do problema, com caras observações, suas e dos colegas, sobre conteúdo e

forma de exposição.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 56

Sumário: Introdução – 1. Efeitos da positivação tardia da distinção entre prescrição e

decadência no direito civil nacional – 2. A inscrição do problema em uma metodología

constitucionalizada (e a insuficiencia do criterio topográfico da distinção) – 3. O legado

civilista com relação à distinção entre os prazos: os criterios empírico e científico de

distinção – 4. Um balanço teórico: os criterios de distinção e sua crítica rumo a uma

compreensão funcional – 5. Conclusão: uma proposta funcional de distinção – 6.

Considerações finais.

Introdução

A consulta imediata ao Código Civil de 1916 daria a impressão de que a

decadência não constava na sistemática civil nacional. Por um conhecido equívoco da

técnica legislativa aplicada pela Comissão de revisão extraparlamentar, os prazos de

decadência previstos pontualmente na Parte Especial do Código Beviláqua foram

inteiramente reunidos na Parte Geral juntamente do dispositivo que tratava da prescrição,

pensando-se obter com isso um implemento da clareza adequada a um projeto de

codificação.

Como se sabe, equipararam-se, assim, os prazos de decadência com os

prazos de prescrição no texto legal. No entanto, a doutrina e a jurisprudência não se

conformaram com a diluição dos institutos, o que consistiria em “um erro manifesto de

classificação”,2 sendo pois mantida com base no entendimento de que à lei não é dado

“contrariar a natureza das coisas”.3

Fato é que diante da carência de previsão legal que distinguisse os prazos,

o ambiente da aplicação do direito quanto a eles se mostrava assistemático.4 Careciam

fundamentos que permitissem estabelecer com segurança a distinção entre os prazos, ainda

que esforços doutrinários não faltassem para favorecer uma solução isonômica do

2 AMORIM FILHO, Agnelo. ‘Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar

as ações imprescritíveis’. Revista dos Tribunais. n.836. jun. 2005. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.

(Originalmente publicado em out. de 1960). 3 THEODORO JR., Humberto. ‘Alguns aspectos relevantes da prescrição e da decadência no novo código

civil’. Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil, n. 23, mai., 2003, p. 3. 4 Assim se expressa REALE, Miguel. ‘Visão geral do projeto de código civil’. Revista dos Tribunais, v. 752,

São Paulo, jun. 1998, p. 23. “Assisti uma vez, perplexo, num mesmo mês, a um Tribunal de São Paulo negar

uma apelação interposta por mim e outros advogados, porque entendia que o nosso direito estava extinto por

força de decadência; e, poucas semanas depois, ganhávamos, numa outra Câmara, por entender-se que o prazo

era de prescrição, que havia sido interrompido! Por isso, o homem (sic) comum olha o Tribunal e fica

perplexo.”

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 57

problema.5 Ainda assim, a distinção permaneceu sendo afirmada e a discussão não dizia

respeito a haver ou não uma distinção, e sim a como identificar a distinção – que obviamente

existiria.

Por tratar-se de um ato de “franca rebeldia à lei”,6 a doutrina buscou seu

embasamento na teoria filosófica disponível para tanto, o jusnaturalismo, aduzindo tratar-se

a distinção de algo necessário, atinente a alguma metafísica dos prazos que não poderia ser

contrariada. Posteriormente, com a positivação da distinção pelo Código Civil de 2002 e sua

flexibilização no direito positivo, o paradigma filosófico antitético do formalismo jurídico,

em confronto com o paradigma metafísico anterior tem provocado perplexidade na

abordagem do tema. Tratando-se de uma distinção por tanto tempo afirmada a despeito da

lei, não se sabe como lidar com as flexibilizações legais atuais, notadamente quando o

argumento metafísico não se faz mais aceito.

O tema tem permanecido, então, aprisionado em uma espécie de “Id”

jurídico; um inconsciente que o afirma e a ele se apega ainda que não se possa conhecer

precisamente porque razões. A doutrina contemporânea do direito civil tem encontrado

dificuldades para vislumbrar o caminho pelo qual a temática poderá ser compreendida

conforme as premissas do método civil-constitucional, buscando compreender em que pode

ser importante à concreção dos interesses humanos.

Neste escopo, a investigação apresentada parte da premissa segundo a qual

a toda distinção estrutural deve corresponder uma distinção funcional, encontrando-se na

função, e não propriamente na estrutura, o que pode melhor explicitar a diferença entre

prescrição e decadência.

Acredita-se que a afirmação relutante da distinção entre os prazos mesmo

quando a lei os equiparava pode ser um ponto de partida importante para formular uma base

funcional de diferenciação. Esta pode ser um passo para o desenvolvimento das temáticas

que dizem respeito aos prazos, tanto para as situações dúbias, ainda carentes de paradigmas

interpretativos, quanto para as inovações ou reformas legislativas relativas à questão, as

quais devem também promover e preservar a coerência no sistema jurídico.

5 Dignos de destaque são os trabalhos de AMORIM FILHO, Agnelo. ‘Critério científico para distinguir a

prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis’. cit.; e CAMARA LEAL, Antônio Luís da

Da prescrição e da decadência: teoria geral do direito civil. 2ª Ed (1ª Ed. Publicada em 1939). Atualizada por

José Aguiar Dias. Forense: Rio de Janeiro, 1959. 6 AMORIM FILHO, Agnelo. ‘Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar

as ações imprescritíveis’. cit.

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1. A positivação tardia da distinção entre prescrição e decadência no direito civil

nacional e seus efeitos doutrinários

Prescrição e decadência são institutos assemelhados em relação aos quais

são apresentadas distinções quanto ao objeto e quanto aos efeitos.

Diz-se que a prescrição é a perda da ação, ou, como se propagou adiante,

da “pretensão”, enquanto a decadência seria a perda do próprio direito. Quanto às diferenças

de tratamento jurídico, já ensinava Santiago Dantas que:

Enquanto a prescrição geralmente consiste no decurso de um prazo, que se

interrompe, que se suspende, que pode, por conseguinte, recomeçar a

contar, muitas vezes e que as partes interessadas processam alegar para que

o juiz dela tome conhecimento, as decadências, são aquelas que, na

linguagem forense, costuma-se chamar de prazos fatais. Nada os

interrompe, nada os suspende e quando decorrem, o juiz pronuncia a

decadência de ofício sem ser necessário que ninguém alegue.7

Além dessas, tem-se ainda que a prescrição pode ser alvo de renúncia de

quem dela se beneficia depois de exaurido o prazo, enquanto a decadência não comporta

essa faculdade.

Como se pode constatar, tais distinções não dizem respeito propriamente

aos efeitos, já que neste ponto é que se observa a maior semelhança entre os prazos: ambos

provocam uma extinção de algum tipo. As diferenças dizem respeito, antes, aos pressupostos

fáticos para que se opere a extinção e, por tudo, se inscrevem em aspectos estruturais dos

institutos.8

Essas clássicas diferenças sempre estiveram na base das distinções

concebidas para os dois prazos. A diferença, por exemplo, em relação à possibilidade de

reconhecimento de ofício é o argumento pelo qual Humberto Theodoro Jr. entende que existe

uma distinção quanto ao objeto dos respectivos prazos. Para ele, se a prescrição extinguisse

o direito não precisaria necessariamente ser arguida em Juízo para o seu reconhecimento.9

7 DANTAS, San Tiago. ‘Prescrição e decadência’. Programa de direito civil: Parte Geral. 4ª Tiragem. Rio de

Janeiro: Editora Rio, 1942, p. 396. 8 Nesse sentido, também Antônio Luís da Câmara Leal entende ser a extinção de um direito ou de uma ação o

efeito da decadência ou da prescrição. Já as típicas diferenças relativas à possibilidade de interrupção,

suspensão ou impedimento e à possibilidade de renúncia e conhecimento de ofício pelo juiz, são classificadas

por Câmara Leal como “diversidades de consequência”. (CÂMARA LEAL, Antônio Luís da. Da prescrição e

da decadência: teoria geral do direito civil. cit. p. 394, 395.) 9 THEODORO JR, Humberto. ‘Alguns aspectos relevantes da prescrição e da decadência no novo código civil’

cit. p. 13: “A simples consumação do prazo prescricional não priva, de imediato e de todo, o interesse do credor

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Não havendo, porém, qualquer distinção entre os prazos na lei, e adotando-

se, ainda assim, a ideia de que a prescrição extingue a ação e a decadência extingue o direito,

observa-se que a construção doutrinária correspondente ao período de vigência do Código

Civil de 1916 adotava implicitamente um pressuposto filosófico jusnaturalista, base para

afirmação de uma distinção metafísica dos prazos.10

Essa visão pode ser percebida na mais importante obra sobre o tema no

Brasil, em que Agnelo Amorim Filho se propôs, em 1960, a estabelecer um critério científico

de distinção, lamentando a equivocada equiparação entre os prazos, do que resultou “ao

invés do planejado melhoramento, um erro manifesto de classificação”.11

Posto em xeque de forma indefensável o pressuposto da racionalidade do

legislador que fundamenta uma afirmação exegética da lei, optou a doutrina por afirmar a

qualquer custo a manutenção da decadência no sistema civil, havendo no jusnaturalismo o

único recurso filosófico para resistir ao desacerto:

Ou se adota essa atitude de franca rebeldia contra o texto legal, ou ter-se-á

que chegar a conclusão ainda mais absurda, isto é, admitir que certos

prazos classificados pelo Código como sendo de prescrição (mas que são,

indiscutivelmente, de decadência), podem ser objeto de suspensão, de

interrupção e de renúncia.12

da tutela jurisdicional. O efeito extintivo não opera ipso iure, pela mera ultrapassagem do termo fixado em lei.

Para que a pretensão do credor seja paralisada é indispensável que o devedor, quando demandado, argúa a

prescrição como meio de defesa (art. 193). O que esta, na verdade, gera é uma exceção que o devedor usará,

ou não, segundo suas conveniências.” A construção é interessante, e atende à visão metodológica que vai “da

estrutura à função”, embora tenha se esvaziado depois da reforma processual de 2006 (Lei 11.280/2006). 10 V. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. São Paulo: Ícone, 2003, p. 15: “a contraposição entre

‘positivo’ e ‘natural’ é feita relativamente à natureza não do direito mas da linguagem: esta traz a si o problema

(que já encontramos nas disputas entre Sócrates e os sofistas) da distinção entre aquilo que é por natureza

(physis) e aquilo que é por convenção ou posto pelos homens (sic) (thésis). O problema que se põe pela

linguagem, isto é, se algo é ‘natural’ ou ‘convencional’, põe-se analogamente também para o direito.” 11 AMORIM FILHO, Agnelo. ‘Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar

as ações imprescritíveis’. cit., p. 734. O mesmo fato também foi lamentado por THEODORO JR., Humberto:

“Sobre essa esdrúxula e confusa unificação não chegou a haver debate, de sorte que o planejado melhoramento

acabou por redundar, para os aplicadores do Código num dificílimo problema, pois o que efetivamente se deu

foi um ‘erro manifesto de classificação’”. (‘Distinção científica entre prescrição e decadência. Um tributo à

obra de Agnelo Amorim’. In Revista dos Tribunais. n.836. jun. 2005. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.

p. 50). 12 AMORIM FILHO, Agnelo. ‘Critério científico para distinguir a prescrição da decadência’, cit. p. 735. No

mesmo sentido, Humberto Theodoro Junior justificou a postura doutrinária contra legem adotada em relação

à distinção entre prescrição e decadência sob a égide do Código de 16: “Como a lei não pode contrariar a

natureza das coisas, doutrina e jurisprudência tiveram de assumir a tarefa de joeirar entre os prazos ditos

prescricionais no texto da lei os que realmente se referiam a prescrição e os que, embora assim rotulados,

representavam, na verdade, casos de decadência”. (‘Alguns aspectos relevantes da prescrição e da decadência

no novo código civil’. cit., p. 3.).

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Por essa argumentação fica claro que a afirmação de uma distinção entre

os prazos de prescrição e decadência exigiu uma tomada de posição filosófica, ainda que

inconsciente, pois afirmações como essa alimentaram uma premissa metafísica na

abordagem da distinção entre os prazos. 13

Resta aí configurada a perplexidade atual no estudo do tema da distinção

entre prescrição e decadência, pois trata-se de um positivismo tardio que desafia as

construções bem assentadas de um jusnaturalismo igualmente tardio.14

Se, por exemplo, a impossibilidade de reconhecimento de ofício da

prescrição é tão determinante para a compreensão da distinção, como retratar

doutrinariamente a reforma processual da Lei 11.280/06 pela qual o §5º, do art. 219, do

Código de Processo Civil passou a prever que: “o juiz pronunciará, de ofício, a prescrição”?

Ter-se-ia por este detalhe alterado toda a natureza da prescrição, que assim passou a referir-

se à extinção de um direito? (Ou não poderia valer a alteração por contrariar a “natureza das

coisas”?)

Em contradição à fala de Amorim, em que mais absurdo do que descumprir

a lei é aplicar a interrupção, impedimento e suspensão a prazos que são sabidamente de

decadência, o próprio Código Civil de 2002 em seu art. 207 diz ser possível aplicá-los à

decadência se disposição legal expressa o determinar. Mas se justamente por inadmitir-se

essa possibilidade a distinção foi afirmada ainda que contrariamente à lei, que distinção se

preserva diante dessa flexibilização legal? (Ou não poderá a lei valer nestes termos?)

13 Cabe realçar, novamente, o mérito da formulação de Camara Leal a respeito da distinção, o qual,

diferentemente de outros autores de seu tempo, não justificou em alguma base metafísica a existência da

decadência apesar de sua exclusão do texto da lei, e, sim, em uma autêntica interpretação sistemática que

chamava a atenção para a existência da decadência com base no pressuposto de coerência do sistema: “Não

houve, porém, a eliminação da decadência de nosso Código, porque há, em contraposição a regras gerais,

preceitos especiais estabelecidos pelo legislador, cuja contradição com essas regras só poderá ser explicada

pela sua atinência a um instituto diverso daquele a que as mesmas dizem respeito. Assim, não obstante a regra

geral que veda a prescrição entre cônjuges, na constância do casamento, a ação do marido contra a mulher para

contestar legitimidade do filho prescreve, diz o Código, em dois meses da data do nascimento do filho, se o

marido estava presente, e em três meses da data de seu regresso, se estava ausente, ou da data da ciência do

nascimento se este lhe foi ocultado. Deixará de haver antinomia entre esse preceito especial e a regra geral, se

o legislador assim preceituou atendendo a que, no caso, não se trata de prescrição, rediga pela regra geral, mas

de decadência, não subordinada àquela regra.” (CAMARA LEAL, Antonio Luiz da. Da prescrição e da

decadência. cit. p. 396.) 14 Conforme ensina Norberto Bobbio, o termo “positivismo” é dual, podendo referir-se tanto ao movimento

filosófico-metodológico que buscava conferir cientificidade às Ciências Humanas e Sociais nos idos do século

XX, quanto pode referir-se ao registro escrito da lei tradicional por uma autoridade considerada legítima para

tanto. Em ambos os casos, a palavra comunica a ideia muito comum e aproximada de que a lei deve ser seguida

a qualquer custo, identificando com a norma jurídica o próprio direito. É assim que, havendo dois sentidos para

o termo positivismo, os dois sentidos exprimem uma mesma ideia de cumprimento da lei positivada – escrita

– tomada como fonte privilegiada do direito, senão como única fonte. (V. BOBBIO, Norberto. O positivismo

jurídico. cit., p. 15).

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O jusnaturalismo, como se sabe, está na base da formação dos conteúdos

típicos do direito privado. Entendeu-se, por muito tempo, que a positivação do direito

privado – no momento da codificação – consistia estritamente em recepcionar os conteúdos

prévios contidos na “natureza das coisas”, e não de criá-los ou de formulá-los com vistas a

atingir propósitos externos ao direito.15 Diante da positivação tardia da distinção entre os

prazos de prescrição e decadência, tratou a doutrina, portanto, de afirmar a distinção a

despeito do direito positivo, dando entender que a questão remonta a valores fundamentais

que não podem ser contrariados.

Passando-se por uma distinta mentalidade sobre o direito, uma visão

positivista estrita afirmaria, pelo contrário, que não haveria qualquer distinção entre

prescrição e decadência na sistemática do Código Civil de 1916, a qual seria resgatada com

o Código Civil de 2002. Mas o positivismo jurídico é uma abordagem que opta

conscientemente por ignorar alguns aspectos do direito (que para os positivistas não são

propriamente jurídicos).16

Por opção metodológica, uma abordagem positivista toma como

irrelevante o fato de que o resgate da positivação da prescrição e da decadência como prazos

distintos no Código Civil de 2002 se deu justamente por causa de sua afirmação insistente

na jurisprudência e na doutrina a despeito de sua negação na lei.17 Neste ponto, tem-se um

15 V. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. cit., p. 29: “Todas estas relações sociais [do estado de

natureza] eram reguladas por normas jurídicas (tinha-se, assim, os direitos reais, o direito das obrigações, o

direito de família e aquele das sucessões). Segundo os jusnaturalistas a intervenção do Estado limita-se a tornar

estáveis tais relações jurídicas. Por exemplo, segundo Kant, o direito privado já existe no estado de natureza e

a constituição do Estado determina apenas o surgimento do direito público; contrapõe o modo de ser do direito

privado no estado de natureza àquele característico do mesmo direito na sociedade política, afirmando que no

primeiro momento tem-se um ‘direito provisório’ (isto é, precário) e no segundo momento um ‘direito

peremptório’ (isto é, definitivamente afirmado graças ao poder do Estado).” 16 Há nas teorias juspositivistas um corte epistemológico que estabelece a partir de que ponto ou de que plano

se estabelece uma análise propriamente jurídica, e não de outros fatores ideológicos, políticos, etc. Na teoria

de Hans Kelsen, o corte é dado pela enigmática Norma Fundamental, mas não só nela. Vê-se, a teor de suas

considerações sobre a teoria da interpretação, que foram conscientemente eliminados outros dados que

sabidamente interferem na aplicação da norma atribuindo-se somente um poder de preenchimento da “norma-

quadro” conforme entendimentos até certo ponto discricionários, na medida em que as razões que podem

fundamentar a escolha do juiz pela interpretação em um ou outro sentido não podem ser apreendidas pela

Ciência Jurídica e seriam estranhas ao seu objeto. (V. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 1ª edição

publicada em 1934. São Paulo: Martins Fontes, 2009). Seria quase como afirmar que a hermenêutica não

compõe a Ciência Jurídica. 17 Importa lembrar o papel da doutrina e da jurisprudência, senão como fonte de direito – a depender do sistema

jurídico –, de base para a institucionalização de normas jurídicas. Vale dizer que o papel da doutrina não é

somente o de inspirar a jurisprudência, mas também o de, conjuntamente a ela, inspirar a legislatura. A

abordagem funcional da distinção parece relevante não só para a compreensão sistemática do ordenamento

civil, como também para orientar o legislador a respeito da natureza das escolhas feitas no momento da

proposição das leis. Sobre a temática da institucionalização das normas jurídicas a partir de sua cognição e

propagação cultural, veja-se o ensaio esclarecedor de PEREIRA, Flávio Henrique Silva. ‘Ordem normativa e

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paralelo com a visão jurídica do momento imediatamente posterior à codificação no século

XIX que reproduziu substancialmente o direito afirmado ao longo da Idade Média, em um

esforço de enunciação de quais são as regras que regem a vida privada pelo registro estático

e codificado dos entendimentos há muito aplicados e jurisprudencialmente construídos.18

A percepção da positivação tardia da distinção entre os prazos, atrelada a

um jusnaturalismo igualmente tardio induziria o intérprete, hoje, a retratar o tema da

prescrição e da decadência em suas bases estritamente legais, ou legalistas, despertando

dúvidas somente no que diz respeito ao convincente legado civilista que, no entanto,

abordava o problema em bases jusnaturalistas. Por tudo, a temática tem sido ainda mantida

imune a recursos metodológicos recentes de compreensão do direito civil, como a

consideração do aspecto dinâmico das situações subjetivas, a superação do dualismo entre

norma e fato, e o delineamento do perfil funcional dos institutos jurídicos.19

Haveria uma questão complicada em torno da indagação sobre estar a lei

contrariando alguma “natureza das coisas” quando, no entanto, já não se adota um paradigma

filosófico pelo qual exista uma “natureza das coisas” a ser respeitada ou contrariada.20 Por

isso, há ímpetos de afirmação de alguma ilegitimidade da reforma processual procedida pela

Lei 11.280/2006, por exemplo, querendo identificar nela uma inconstitucionalidade que não

institucionalização’. In: LACERDA, Bruno Amaro; FERREIRA, Flávio Henrique; FERES, Marcos Vinício

Chein (org.). Instituições de direito. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2011. 18 V. VAN CAENEGAN, R. C. Uma introdução histórica ao direito privado. São Paulo: Martins Fontes, 2000,

p. 8: “As fontes imediatas usadas pelos autores do Code civil de 1804 foram o direito comum francês tradicional

do século XVIII, que era um amálgama dos direitos eruditos e consuetudinário, parte do qual era bem antiga;

e, em segundo lugar, as inovações feitas durante a Revolução. Essa mistura do velho e do novo adequava-se

ao clima político da nação e, depois da queda do ancien régime, mostrou-se também bastante adequada à

sociedade pequeno-burguesa do século XIX.” 19 Sobre os referidos recursos metodológicos, ver, por todos, PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na

legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008; BODIN DE MORAES, Maria Celina. ‘A caminho

de um direito civil-constitucional’. In: Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional.

Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 3 – 20 (originalmente publicado em Direito, Estado e Sociedade, n. 1. Rio

de Janeiro, 1991); TEPEDINO, Gustavo. ‘Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito

civil’. In: Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 1 – 22 (aula inaugural do ano acadêmico de

1992, proferida no salão nobre da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro). 20 Ver, por exemplo, a visão da distinção entre prescrição e decadência contida em NEVES, Gustavo Kloh

Müller. Prescrição e decadência no direito civil. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008: “hoje, diante do

avanço da ciência jurídica e da sofisticação da atividade legislativa, acrescidos do fato de que o CC/2002

diferencia expressamente a prescrição da decadência, cabe ao legislador, em especial, determinar se um prazo

é de prescrição ou de decadência. Em se tratando de um diploma legislativo de elaboração antiga, no qual não

haja diferenciação precisa entre prescrição e decadência, podemos nos valer desses critérios [propostos por

Agnelo Amorim]; se um diploma, todavia, distingue os institutos, não consideramos possível a interpretação

que um prazo de prescrição, assim denominado no texto da lei, seja de decadência, e vice-versa.” Embora o

autor tenha construído uma base principiológica para a abordagem do tema da prescrição, fundando-o no

princípio da segurança jurídica, que, por sua vez, atrai a legalidade, trata-se, no que diz respeito à temática da

distinção, do brocardo in claris non fit interpretatio, já que o critério científico de Agnelo Amorim seria usado

somente de forma supletiva às lacunas deixadas pela lei. Do ponto de vista filosófico, tem-se claramente

reconhecida a mudança de paradigma, pela qual anteriormente valeria uma abordagem jusnaturalista do tema,

a qual deveria ser dispensada no momento subsequente à positivação.

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tem, ou uma contrariedade a princípios e valores jurídicos tais que não contraria em

momento algum, ou acabando por afirmar escatologicamente, no outro extremo, que já não

existe mais distinção entre prescrição e decadência.

2. A inscrição do problema em uma metodologia constitucionalizada (e a insuficiência

do critério topográfico de distinção)

Atrair a temática da distinção entre os prazos de prescrição e decadência

ao método civil-constitucional significa inscrevê-lo na legalidade constitucional. Não se trata

de afirmar, como há muito tem sido feito, que o tema não está à disposição do legislador,

mas ao mesmo tempo em que a legalidade não é reduzida a legalismo.

Deve a legalidade ser entendida de forma conectada à igualdade e ao

sentido aristotélico de justiça que, na formulação de Claus Wihelm Canaris, está na base do

pensamento sistemático aplicado à Ciência do Direito.

A ordem interior e a unidade do Direito (...) pertencem (...) às mais

fundamentais exigências jurídicas e radicam na própria ideia de Direito.

Assim, a exigência de ‘ordem’ resulta diretamente do reconhecido

postulado de justiça, de tratar o igual de modo igual e o diferente de modo

diferente, de acordo com a medida da sua diferença. (...) A regra da

‘adequação valorativa’, retirada do princípio da igualdade, constitui a

primeira indicação decisiva para a aplicação do pensamento sistemático na

Ciência do Direito.21

Segundo Canaris, a sua referência com relação aos critérios de ordem e

adequação valorativa se reporta a um sentido interno de sistema jurídico e não em um sentido

externo que “se reporta aos conceitos de ordem da lei; pois este não visa, ou não visa em

primeira linha, descobrir a unidade de sentido interior do Direito, antes se destinando, na sua

estrutura, a um agrupamento da matéria e à sua apresentação tão clara e abrangente quanto

possível”.22

Dessas premissas teóricas, parte, em primeiro lugar, a consideração básica

para uma distinção funcional no sentido de que, inscrevendo-se a temática nas noções de

ordem e adequação valorativa, parte-se do princípio de que à distinção estrutural deve

corresponder uma distinção funcional.

21 CANARIS, Claus-Wihelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na Ciência do Direito. 3ª ed.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 18. 22 CANARIS, Claus-Wihelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. cit. p. 26.

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Vislumbra-se, assim, a insuficiência do primeiro critério de distinção entre

prescrição e decadência, e que diz respeito ao aspecto “topográfico”, ou seja, à sua

localização no código. Este foi apontado por Miguel Reale como apto a eliminar as dúvidas

e perplexidades que pendem sobre o assunto:

Quem é que no Direito Civil brasileiro ou estrangeiro, até hoje, soube fazer

uma distinção nítida e fora de dúvida entre prescrição e decadência? Há as

teorias mais cerebrinas e bizantinas para se distinguir uma coisa da outra.

(...) Ora, quisemos por um termo a essa perplexidade, de maneira prática,

porque o simples é o sinal da verdade, e não o bizantino e o complicado.

Preferimos, por tais motivos, reunir as normas prescricionais, todas elas,

enumerando-as na Parte Geral do Código. Não haverá dúvida nenhuma: ou

figura no artigo que rege as prescrições ou então se trata de decadência.23

A proposta, em verdade, não é inovadora. Esse tipo de organização era já

o pretendido no projeto do código de Beviláqua. Era também o tipo de organização constante

em códigos predecessores, como o Code Napoleon que regulamenta em um mesmo

dispositivo a prescrição e a usucapião (chamada prescrição aquisitiva) e nada aduz, em

termos gerais, sobre a decadência. Mas o fato de não ser uma estratégia nova não chega a

ser uma crítica. Convém, de fato, que o sistema externo do direito facilite a assimilação do

sistema interno, de forma que a divisão consiste ao menos em aplicação de boa técnica

legislativa. Entretanto, o problema hermenêutico da distinção entre os prazos não se resolve.

Não é, pois, que se trate de um critério equivocado, mas insuficiente.

A insuficiência do critério repercute na prática por não explicitar, por

exemplo, quais são as situações subjetivas que não se sujeitam a prazo algum, sendo

imprescritíveis, e quais são as situações que se sujeitam ao prazo decenal do art. 205, ou

porque também não esclarece qual a natureza dos prazos previstos em outros diplomas que

não o Código Civil, como o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Criança e do

Adolescente. Por fim, o critério não pode ser tomado como definitivo sequer para a

classificação dos prazos previstos no próprio Código Civil. Dentro de uma abordagem

sistemático-valorativa do direito não é a localização do prazo que permite dizer se o prazo é

de prescrição ou de decadência, mas o fato de dever ser de prescrição ou de decadência,

23 REALE, Miguel. ‘Visão Geral do Projeto do Código Civil’. In Revista dos Tribunais, v. 752, São Paulo, jun.

1998, p. 23. Na verdade, o critério topográfico não diz respeito, propriamente, à localização do prazo na Parte

Geral ou na Parte Especial, pois há prazos na Parte Geral. O prazo para anulação do negócio jurídico, por

exemplo, embora esteja na Parte Geral, é de decadência. A ideia do critério topográfico é de distinguir os prazos

que são previstos juntamente das situações que visam extinguir, dos prazos que são previstos em geral, nas

disposições dos art. 205 e 206 do Código.

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conforme o distinto perfil funcional em cada caso, é que deverá servir a identificar qual é ou

qual deveria ser sua melhor localização no código.

3. O legado civilista com relação à distinção entre os prazos: os critérios empírico e

científico de distinção

A partir da distinção prévia quanto ao objeto, os civilistas brasileiros

tributários do Direito Romano ou influenciados pelo direito alemão, herdeiro direto da

Pandectística, adotaram a visão da prescrição como perda da ação. É esse o caso de Antônio

Luís da Camara Leal, responsável pela formulação do chamado critério empírico.24

A questão se reporta à polêmica entre Windcheid e Müther sobre a função

que a ação (actio nata) cumpria no Direito Romano. Como naquele sistema não existisse a

figura do direito subjetivo, discutia-se se a actio nata cumpria esse papel.25 O

desenvolvimento dessas discussões gerou no direito processual uma teoria da ação que

repercutiu no direito material para transformar a teoria sobre a prescrição. Anteriormente,

vigorava a chamada teoria imanentista da ação, propugnada por Savigny, sendo, depois,

substituída pela teoria autonomista da ação.

Na teoria imanentista, não há direito sem ação nem ação sem direito.26

Pensavam os partidários da prescrição como perda da ação que fazia sentido estabelecer que

o que se extingue é a ação, consequência do direito, e não o próprio direito, asseverando que

o direto só é atingido de forma indireta.

Para outros autores, porém, esses ligados à tradição ítalo-francesa, a

ligação entre ação e direito seria tão próxima que não faria sentido falar-se da manutenção

do segundo diante da extinção do primeiro. Para Caio Mário da Silva Pereira, por exemplo,

a distinção não estaria no objeto, mas no fundamento:

24 CÂMARA LEAL, Antônio Luís da. Da Prescrição e da Decadência. cit. p. 23. Foi Agnelo Amorim Filho

quem denominou empírico esse critério já em vias de criticá-lo. 25 Em Roma, um cidadão que buscasse a tutela do Estado precisava, antes, por meio da editio, requerer a

fórmula da ação (actio nata). Essa fórmula designava qual regime jurídico deveria ser aplicado ao caso a ser

pleiteado. Junto dessa designação nomeava-se também um juiz para avaliar o caso que se apresentava a partir

da fórmula que se concedia. Foi da nomeação desse juiz que se passou a conceber a prescrição. No termo

praescriptio está contida, justamente, a ideia do “pré-escrito” que seria uma fórmula prévia dada ao caso

segundo a qual o interessado deve promover o processo em certo tempo, sujeitando-se, caso contrário, a perder

o direito de ver sua demanda apreciada. CARREIRA ALVIM, J. E. Teoria Geral do Processo. – 11ª Ed. – Rio

de Janeiro: Forense, 2007, passim. 26 V. CARREIRA ALVIM, J. E.. Teoria Geral do Processo. cit. p. 116. Essa teoria foi assumidamente adotada

pelo Código de 16 que dizia em seu art. 75 que “a todo direito corresponde uma ação, que o assegura.”

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O fundamento da prescrição encontra-se (...) em um interesse de ordem

pública em que se não perturbem situações contrárias, constituídas através

do tempo. O fundamento da decadência é não se ter o sujeito utilizado de

um poder de ação dentro dos limites temporais estabelecidos à sua

utilização.27

Com a prevalência da teoria autonomista da ação na Teoria Geral do

Processo, ao invés de perder importância a distinção entre os prazos quanto ao objeto, foi

apenas criada uma modalidade intermediária de situação subjetiva, a pretensão, para explicar

que é essa que se extingue com o exaurimento do prazo de prescrição, e não propriamente a

ação.

Essa é a claramente a visão adotada no texto do código de 2002, como

explicitado por Moreira Alves, responsável direto pela redação da Parte Geral:

Adotou-se [para a prescrição], à falta de uma nomenclatura melhor,

a figura da pretensão, que vem do Direito germânico. Violado o

direito, nasce para o titular a pretensão que se extingue pela

prescrição dos prazos. Pelo sistema do Projeto, há direitos e poderes

que dão margem à violação, em decorrência da qual – foi a posição

doutrinária que se adotou – surge esse instituto da pretensão.28

Muito embora a adoção do critério de Camara Leal tanto quanto a adoção

do critério de Agnelo Amorim não estejam vinculadas a uma posição quanto à perda do

direito ou à perda da ação ou pretensão, a partir da distinção ou não quanto ao objeto podem

ser despertadas reflexões distintas.

Assim se deu quanto ao critério empírico de Camara Leal, segundo o qual

os prazos são distinguidos casuisticamente, identificando-se se o seu “nascimento” se dá

juntamente com um direito ou com a violação de um direito – ou, seja, com a ação (ou

pretensão) voltada a sua tutela. Nessa proposta, o direito que decai nasce já tendo em seu

próprio conteúdo um prazo de exercício. O prazo, porém, que surge de forma sucessiva a

uma violação (e nasce posteriormente ao surgimento do próprio direito) é de prescrição.29

27 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Intituições de Direito Civil, Vol. I. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002,

p. 435. Assim, também GOMES, Orlando. Introdução do Direito Civil. 17ª ed. Atualizações e notas de

Humberto Theodoro Júnior. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 496. 28 MOREIRA ALVES, José Carlos. ‘A parte geral do projeto do Código Civil’. Revista CEJ, v. 3, n. 9, p. 5-

11, set./dez., 1999. 29 CÂMARA LEAL, Antônio Luís da. Da Prescrição e da Decadência. cit., p. 37: “Há [entre a decadência e a

prescrição] uma substancial diversidade de objetos, recaindo a decadência sobre o próprio direito, que já nasce

condicionado, e recaindo a prescrição sobre a ação, que supõe um direito atual e certo. A prescrição tem como

uma de suas condições a que ação tenha nascido, isto é, se tenha tornado exercitável; ao passo que a decadência,

extinguindo o direito antes que ele se fizesse efetivo, impede o nascimento da ação. Tendo por objetivo proteger

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Para explicitar com mais clareza o critério, o autor apontou duas regras que seriam capazes

de solucionar “todas as dificuldades apontadas pelos escritores nacionais e estrangeiros”:

1.ª – Focalizar a atenção sobre estas duas circunstâncias:

se o direito e a ação nascem, concomitantemente, do mesmo fato;

se a ação representa o meio de que dispõe o titular, para tornar efetivo o

exercício de seu direito.

2.ª – Se essas duas circunstâncias se verificarem, o prazo estabelecido pela

lei para o exercício da ação é um prazo de decadência, e não de prescrição,

porque é prefixado, aparentemente, ao exercício da ação, mas, na realidade,

ao exercício do direito representado pela ação.30

Agnelo Amorim Filho rejeitou o critério proposto por Câmara Leal. Para

atingir seu anseio de estabelecer um critério científico de distinção, utilizou em sua

abordagem as teorias que buscaram a sistematização e a categorização dos direitos como

marco teórico e estabeleceu um fundamento racional com pretensões científicas para a

distinção. Valeu-se da classificação de direitos pensadas por Chiovenda. A partir delas,

defendeu que a prescrição se refere a direitos subjetivos que têm por finalidade um bem da

vida a ser obtido por meio de uma prestação; enquanto que a decadência diria respeito aos

chamados direitos potestativos ou poderes formativos. Segundo tal classificação, ao direito

subjetivo corresponderia, para sua tutela, uma sentença condenatória, e a extinção da ação

pelo prazo de prescrição; ao direito potestativo, por sua vez, corresponderia uma sentença

constitutiva, e sua subordinação ao prazo de decadência; por fim, ações imprescritíveis

seriam aquelas que buscam sentença declaratória.

O critério proposto por Amorim segue hegemônico na doutrina brasileira,

não se tendo apresentado razão ou argumentação doutrinária que merecesse superá-lo,31

tendo sido claramente o orientador da positivação subsequente da distinção no Código Civil

de 2002, como se infere da leitura de Moreira Alves:

e garantir o direito, a ação tem uma individualidade própria, distinta do direito, em benefício do qual exerce a

sua atividade, e, por isso, diferentes são as suas origens. É assim que o direito nasce do fato que o gera, jus

oritur ex facto; e ação, da violação por ele sofrida. Enquanto nenhuma perturbação sofre o direito, nenhuma

ação existe que possa ser posta em atividade pelo seu titular.” Sobre a decadência: “Todo direito nasce de um

fato a que a lei atribui eficácia para gerá-lo. Esse fato ou é um acontecimento natural, alheio à vontade humana,

ou é um ato, dependente dessa vontade (...). Em ambos esses casos, a lei ou o agente pode subordinar o direito,

para se tornar efetivo, à condição de ser exercido dentro de um certo período de tempo, sob pena de caducidade.

Se o titular do direito assim condicionado deixa de exercitá-lo dentro do prazo estabelecido, opera-se a

decadência, e o direito se extingue, não mais sendo lícito ao titular pô-lo em atividade.” (p. 119) 30 Ibid. p. 397. 31 THEODORO JR., Humberto. ‘Distinção científica entre prescrição e decadência. Um tributo à obra de

Agnelo Amorim’. cit.

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Não há pretensão justamente porque são direitos não susceptíveis de

violação, mas pode haver a necessidade de prazo para o exercício deles, e

mais, de prazo para o seu exercício por via judicial, a fim de que se

demonstre neles não a sua violação, mas a sua existência para o efeito de

seu exercício, como é o caso, por exemplo, da anulação de casamento e,

em face do Projeto, da anulação de negócio jurídico. Nesses casos, o que

ocorre é a decadência.32

Segundo essa visão, se o objeto da prescrição, que é a pretensão, surge da

violação de um direito, esse direito só pode ser daquele tipo que possui em sua correlação

na relação jurídica um dever de prestação, o que está ao encontro das construções de

Amorim. Os direitos sujeitos à decadência, por outro lado, seriam insusceptíveis de violação.

4. Um balanço teórico: os critérios de distinção e sua crítica rumo a uma compreensão

funcional

Sendo inegável a clareza da técnica metodológica usada por Amorim, e

ainda que suas bases teóricas tenham sido recepcionadas na sistemática do Código de 2002,

não é certo, ainda assim, que a caracterização da situação jurídica como direito subjetivo ou

potestativo interfira realmente sobre a caracterização do prazo para o seu exercício.

Tome-se, por exemplo, o inc. II, do art. 1.814 do Código Civil, que prevê

a possibilidade de exclusão da sucessão em face da calúnia praticada pelo herdeiro contra o

autor da herança. Essa prerrogativa pode realmente ser entendida como direito potestativo,

mas não há razões para se dispensar automaticamente a possibilidade de ser vista como uma

pretensão nascida da violação de um direito outro, no caso o direito à honra.

Se a exclusão da herança é insusceptível de violação – o que, como se verá

à frente, não é propriamente verdadeiro –, isso não interfere no fato de que a honra é

susceptível de violação e de que a partir de uma violação ao direito à honra nasce a faculdade

de se promover a exclusão da herança. Neste caso, dever-se-ia inferir que o prazo do art.

1.815 do Código Civil é de prescrição ou de decadência?

A situação subjetiva está sujeita a compreensões variáveis, conforme o

realce ao seu perfil dinâmico, funcional, etc. e pode, inclusive, assumir conotações especiais

em face do caso concreto. A classificação da situação subjetiva como direito subjetivo ou

potestativo e a classificação de um prazo como de prescrição ou de decadência se reportam

32 MOREIRA ALVES, José Carlos. ‘A parte geral do projeto do Código Civil’. Revista CEJ, v. 3, n. 9, p. 5-

11, set./dez., 1999.

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a reflexões de tipo diverso – possivelmente (mas não necessariamente) conectado. Por tudo,

o que se mostraria especialmente equivocado seria cristalizar o entendimento sobre a

exclusão da herança, aduzindo tratar-se notoriamente de direito potestativo, ante o fato de

que se sujeita a prazo de decadência.33

Em uma abordagem dinâmica e funcional das situações jurídicas

subjetivas, e tendo em vista o tipo de valoração que subjaz à juridicidade dos fatos, é tênue

a variação pela qual se diz que um prazo nasce juntamente do direito, ou posteriormente a

um direito, com sua violação, uma vez que a função cumprida em ambas as hipóteses

permaneceria a mesma. Pode-se dizer que a faculdade de excluir da herança nasce com a

calúnia, tanto quanto se pode dizer que nasce pela violação à honra. Não se trata

necessariamente, neste caso, do resultado de uma profunda reflexão sobre estrutura e função

da exclusão da herança. Trata-se, antes, de uma escolha quanto à organização das palavras

que condiz mais com uma variação de significantes do que de significados.

Não parece, então, funcionalmente adequado estabelecer uma alteração do

tipo de prazo com base apenas em uma alteração das palavras selecionadas para tratar da

situação subjetiva que por ele se extinguiria. Neste sentido, é o entendimento de Pietro

Perlingieri, que a respeito do paralelismo entre a classificação da situação subjetiva e a

classificação dos prazos aduziu:

Por vezes, procurou-se individuar uma distinção nítida entre o direito

subjetivo e o direito potestativo no fato que somente este último poderia se

extinguir por decadência. Uma das distinções que a doutrina apresenta

entre o instituto da decadência e o instituto da prescrição extintiva

consistiria justamente no objeto dos dois institutos: enquanto a prescrição

(não exercício de um direito por um determinado período de tempo)

extinguiria os direitos subjetivos, a decadência seria o modo de extinção

típico dos poderes formativos. Prescindindo da distinção entre prescrição

e decadência, é necessário esclarecer que não é o objeto – direito subjetivo

de um lado, direito potestativo do outro – o elemento diferenciador entre

os dois institutos. Nem mesmo sob este perfil é útil uma construção unitária

do direito potestativo, o qual às vezes se extingue porque a situação mais

complexa se extingue por prescrição ou por decadência, às vezes se

33 Veja-se que, nos termos da proposta do critério científico, se estabelece uma relação lógica do tipo “se e

somente e se”. Quer dizer, embora Amorim faça parecer que a relação é do tipo “Se direito subjetivo, então

prescrição”, e “Se direito potestativo, então decadência”, a ordem inversa do enunciado é também autorizada

por suas análises, de forma que “Se prescrição, então direito subjetivo” e “Se decadência, então direito

potestativo”. A questão está em que, como diz o art. 189 do Código: “Violado o direito, nasce para o titular a

pretensão.” E casos há em que se pode discutir se o direito potestativo em questão não é, na verdade, uma

pretensão, nos moldes do que define o próprio artigo. Ou mesmo se a pretensão não é, por si só, um direito

potestativo.

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extingue autonomamente porque ele mesmo se submete à prescrição ou à

decadência.34

Observe-se, ademais, que, em que pese a visão comum da exclusão da

herança como direito potestativo, essa pode perfeitamente ser vista como pretensão. Aliás, a

pretensão, por si, não deixa de ser um direito potestativo, conforme a visão do próprio

Chiovenda:

A ação é, pois, no meu entender, um direito potestativo e até se pode dizer

um direito potestativo por excelência. Até aqui, a categoria de direitos

potestativos foi agrupada em torno da característica comum, isto é, da

tendência de produzir um estado jurídico novo perante um adversário.35

Sendo possível substituir ação por pretensão também neste caso, estará

agravada a dificuldade teórica de se distinguir um prazo como sendo de prescrição ou

decadência conforme a caracterização da situação subjetiva por ele extinta, seja ela o direito

potestativo, seja a pretensão. Assim é que, aduz o autor: “O direito potestativo não tem

nenhuma relação especial com a prescrição; inclusive comumente o que se prescreve é um

direito potestativo – a ação.”36

Mediante a classificação de Chiovenda, também a regra sobre a

imprescritibilidade não se sustenta. Ao explicar porque entende ser a ação um direito

potestativo, Chiovenda cita como exemplo outro direito que ele classifica também como

potestativo, qual seja, o direito de impugnar a legitimidade do filho. Embora esse direito se

sujeite a prazo, no entendimento de Chiovenda, a sentença que resulta do pedido de

impugnação não é constitutiva, mas declaratória.37

Aduz-se, portanto, que os critérios de Amorim e de Camara Leal não

saturam o problema da distinção e, levados ao extremo, não deixam de apresentar falhas

comuns – sendo notável, aliás, uma semelhança tal entre eles, que é possível inferir que se

reportam a uma mesma compreensão da distinção, embora sob perspectivas diversas.

É certo, todavia, que tanto a proposta de Camara Leal quanto a proposta

de Agnelo Amorim foram representativas para o sistema civil. A verdade é que sendo o

34 Assim, PERLINGERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. cit. p. 689, 690. 35 CHIOVENDA, Giuseppe. A ação no sistema dos direitos, cit, p. 31. 36 Ibid. p. 33. 37 “Quando entre os direitos potestativos estiver compreendido o direito de impugnar a legitimidade do filho,

já se abrem as portas dessa categoria para a ação. O direito de impugnar a legitimidade não é mais do que pura

ação, e, exatamente, uma ação de declaração de certeza, que é direito subjetivo por si própria, mas não exercício

de algum outro direito subjetivo” (Ibid, p. 32)

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critério de Camara Leal anterior ao de Amorim, este, ao estabelecer a sua distinção científica,

não deixou de reproduzir a distinção que já era aplicada no ordenamento jurídico e que, por

sua vez, operava segundo a proposta empírica.38

Como é possível compreender atualmente (através de um paradigma

científico pós-moderno)39 enunciados de investigação jurídica não são descritivos, mas

propositivos e, embora Amorim pretendesse sinceramente a cientificidade de seu estudo, não

poderia se dar conta do seu papel de participante, e não de observador, na ordem jurídica.

Assim, ambas as teorias, embora assumissem implicitamente uma postura metodológica de

cientista-observador e embora buscassem proceder com uma descrição do sistema ou de uma

abordagem do “ser” dos prazos, proferiram, na verdade, uma proposição e uma abordagem

do “dever ser” característica da postura de participante – colaborador na construção dos

entendimentos sobre o direito.40

Por trás da questão da “metafísica dos prazos”, está claro que o esforço

essencial de Amorim foi de identificação e articulação de algo que já se encontrava presente

entre os juristas. Tal como Camara Leal, tudo que ele fez foi dar uma das articulações

possíveis para a questão, argumentando, não obstante, que era a única articulação correta.

Uma articulação interessante, na medida em que se baseava em critérios que faziam sentido,

mas ainda assim, uma articulação de certo modo contingente que, somente por sua própria

intervenção como jurista que, pensando revelar o “ser” estabelece um “dever ser”, se

transformaria de contingente em necessária no sistema do ordenamento nacional.

38 CAHALI, Yussef Said. Prescrição e Decadência – 2ª Ed. – São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 31:

“A pretendida distinção científica entre os dois institutos não passa, na essência, de um desdobramento

dinâmico da distinção segundo a origem da ação, a que completaria: nos direitos potestativos, o poder

outorgado ao respectivo titular origina-se com o próprio direito; se estabelecido prazo para o seu exercício,

será de decadência; nos direitos subjetivos, a pretensão condenatória nasce posteriormente, com a lesão

representada pelo descumprimento da prestação; assim será de prescrição o prazo para a respectiva ação.” 39 A respeito de um paradigma científico pós-moderno e sua relevância para a Ciência do Direito, v. SANTOS,

Boaventura de Sousa. ‘Um discurso sobre as ciências na transição para uma ciência pós-moderna’. Estudos

avançados. 1988, vol.2, n.2, pp. 46-71. 40 Conforme os ensinamentos de Boaventura de Souza Santos, pode-se perceber que a postura de participante

é mais do que uma opção metodológica que se reporta à superação do positivismo. Ela é um fato tão verdadeiro

com relação à Ciência do Direito, quanto com relação até mesmo a Ciências Naturais ditas “exatas” como a

Física. A superação do paradigma newtoniano na Física diz respeito a uma limitação de que da nem mesmo

Newton poderia se dar conta, já que aprisionado às suas experiências pessoais acerca da natureza. Na

Modernidade, a incerteza é uma preocupação metodológica das Ciências Sociais que, assim, tentam se valer

ao máximo dos métodos precisos das Ciências Naturais. Simbólico da alteração dessa dinâmica é a

comprovação do princípio da incerteza de Heisenberg. Ficou então demonstrado que nem mesmo na Física,

Ciência Natural cujo desenvolvimento teórico é digno de destaque, é possível eliminar a incerteza em uma

experimentação. Lidar com a incerteza é um desafio para a metodologia da ciência, mas a incerteza sempre

esteve lá. A diferença do paradigma pós-moderno é que se trata de um paradigma consciente da incerteza, e

que procura lidar com ela. (SANTOS, Boaventura de Sousa. ‘Um discurso sobre as ciências na transição para

uma ciência pós-moderna’. cit.).

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Camara Leal e Agnelo Amorim, então, não elucidaram a distinção que não

era pré-existente. Eles propuseram uma maneira de enxergar a distinção, a qual, tendo sido

aceita, passou a ser aplicada e tornou-se efetivamente a distinção existente. De tal forma que,

como dito, a proposta de Amorim foi acatada por Moreira Alves na redação da Parte Geral

do Código Civil de 2002.

Por tudo, a manutenção dos critérios hoje não significa o reconhecimento

de sua validade, mas a assunção de uma postura segundo a qual neles está prevista uma

maneira adequada e conveniente de retratar a questão.41 Já não parece, entretanto, ser o caso

de manter-se esse mesmo entendimento, havendo a necessidade de inscrever-se a abordagem

do tema no método civil-constitucional.

5. Conclusão: uma proposta funcional de distinção

Na linha do que foi acima exposto, vale destacar que uma distinção

funcional a ser proposta a respeito dos prazos de prescrição e decadência não pode se afastar

sobremaneira da distinção científica, tal qual a distinção científica também não se afastava

da empírica. Isso se dá, em primeiro lugar, porque, de fato, para se chegar a uma distinção

funcional foi revisitado o legado civilista sobre a questão, sendo o trabalho de Agnelo

Amorim a mais importante referência sobre o assunto no direito civil nacional. Além disso,

afastar-se o critério completamente da proposta de Amorim seria descaracterizar os próprios

institutos no direito nacional, já que veem sendo entendidos e aplicados de acordo com a

construção pregressa sobre o tema. A diferença em relação à distinção funcional que se

constrói e a distinção científica de Amorim, portanto, estará, ao menos, com relação ao

enfoque dado para a questão (mas não só aí, como em breve será exposto).

Realçar o perfil funcional de um instituto jurídico no ordenamento atual,

em que a dignidade humana é o valor unificador do sistema, é revelar a maneira pela qual o

instituto se presta à realização de propósitos humanos e à proteção da pessoa. Descarta-se,

desde já, a visão pela qual seria a prescrição ou a decadência uma sanção aplicada a quem

tenha se quedado inerte no exercício de um direito, simplesmente porque, neste caso, não

41 A esse respeito, é inspiradora a passagem conclusiva da obra de DWORKIN, Ronald. O império do direito.

São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 492: “A atitude do direito é construtiva: sua finalidade, no espírito

interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor,

mantendo a boa-fé com relação ao passado. É, por último, uma atitude fraterna, uma expressão de como somos

unidos pela comunidade apesar de divididos por nossos projetos, interesses e convicções. Isto é, de qualquer

forma, o que o direito representa para nós: para as pessoas que queremos ser e para a comunidade que

pretendemos ter.”

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haveria sujeito de direito a ser protegido por meio dessa sanção, nem mesmo algum interesse

público estaria sendo preservado.

A função da prescrição e da decadência deve ser buscada em seu aspecto

positivo, em relação ao indivíduo que se beneficia desses institutos. São, pois, mecanismos

de proteção do interesse daquele que ocupa o polo (predominantemente) passivo de uma

relação jurídica e que, assim, se liberta de uma situação de incerteza. Para Chiovenda, por

exemplo, o direito de impugnar o contrato por um vício de vontade “está sujeito, ainda que

seja um direito potestativo, à prescrição ou à decadência, ou como se queira dizer, porque o

estado jurídico indeciso deve cessar o mais rápido”.42

A passagem do tempo somada à inércia do titular constitui um fato

juridicamente valorado de uma forma específica. Onde se pensava haver um interesse

jurídico, a inércia do titular indica haver razões para crer que não há interesse de fato,

deixando de ter sentido o interesse que se atribuía àquela pessoa. Diante dos fatos, ficam

caracterizadas as razões para se retratar os prazos como um mecanismo de assimilação dos

fatos da vida pelo direito.

Bem mais adequada, portanto, é outra perspectiva que trata desses dois

institutos como mecanismo de se promover a segurança e a estabilidade das relações. Fraçois

Ost retrata a prescrição, mais do que isso, como uma manifestação do perdão na ordem

jurídica:

Como para o desuso, a prescrição extintiva surge, assim, como um

mecanismo de adaptação do direito ao fato: na falta de ter podido se

realizar conforme a sua prescrição, o direito (aqui entendido como direito

subjetivo) alinha-se na situação de fato contrária que se consolidou no

intervalo. De novo, ou se pode lamentar o revés do direito que, por

preocupação com efetividade e realismo, acaba por consagrar uma

injustiça, ou, ao contrário, admirar as capacidades de autoadaptação de

uma regulamentação jurídica que consegue finalmente inscrever qualquer

fato ou ato à série ininterrupta do tempo, e consagra, assim, uma outra ideia

de justiça que quer que se esqueça o que durou demais sem chegar a se

realizar.43

Mas para compreender, propriamente, em que consiste a distinção

funcional que se propõe haver entre prescrição e decadência, vale visualizar o esquema

abstrato da relação jurídica, pelo qual existe um polo (predominantemente) ativo

correspondente a um polo (predominantemente) passivo.

42 CHIOVENDA, Giuseppe. A ação no sistema dos direitos, cit, p. 33 (sem grifos no original). 43 OST, François. ‘Perdão. Desligar o Passado’. In O Tempo do Direito. Tradução de Élcio Fernandes. Bauru:

Edusc, 2005.

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No esquema de compreensão da função dos prazos de prescrição e

decadência, ao polo ativo é conferido um poder tal que sujeita o polo passivo, seja para

constranger-lhe ao cumprimento de uma prestação, seja para submeter-lhe, de qualquer

forma, às consequências de uma decisão que incumbe predominantemente à vontade do polo

ativo e independe da vontade do polo passivo. Fica então o polo passivo acoplado a uma

definição que incumbe ao polo ativo, restando aprisionado em um estado de incerteza e

descontrole de sua própria sorte.

Se não houvesse um prazo para o exercício desse poder ou faculdade

atinente ao polo ativo, o estado de incerteza seria absoluto e no mínimo angustiante, pois

somente em seu desfavor poderia ter desfecho, podendo este se passar em qualquer momento

até a eternidade.44 Por isso mesmo, é comum que a lei preveja um prazo para o exercício

dessa faculdade “definidora” a ser exercida pelo polo ativo.

Assim, o estado de incerteza pode cessar (i) pelo exercício da faculdade

que incumbe ao polo ativo, se o fizer, ou, se não o fizer, (ii) pelo decurso do tempo, conforme

a previsão de um prazo legal. O prazo em questão é variável, tanto no aspecto quantitativo

(pelo tempo fixado) quanto no aspecto qualitativo (pelo tipo de prazo previsto, ou pelas

regras fixadas para sua contagem). De qualquer modo, a variedade de formas pelas quais são

previstos os prazos corresponde a uma distinta valoração do estado de incerteza a que põe

termo.

Há casos, porém – talvez a maioria deles – em que existirá ainda uma

terceira forma de cessar o estado de incerteza, a qual poderá se dar (iii) pela prática de um

ato jurídico específico que compete ao próprio polo passivo da relação. Trata-se do

adimplemento ou de outros atos que o equivalham. Neste caso, a condição de incerteza do

polo passivo é qualitativamente distinta da sua condição no caso em que não se lhe faculta a

prática de qualquer ato hábil a liberar-lhe dessa condição.

O que distingue funcionalmente a prescrição da decadência, conforme a

proposta ora apresenta, é a condição para a liberação do polo passivo nesses dois casos. No

primeiro caso, em que ao polo passivo não é atribuída a legitimidade para praticar qualquer

44 Fala-se, neste caso, em “angústia” e não se entende haver aí uma falha metodológica, mas, pelo contrário,

uma observância estrita ao sentido de uma abordagem funcional. A funcionalização das situações jurídicas

subjetivas se reporta, em último grau, à dignidade da pessoa humana, enquanto a consciência da necessidade

de tornar concreta essa funcionalização exige também a consideração de um parâmetro de alteridade que leve

em conta um ser humano concreto, e não um padrão abstracionista de pessoa. Toma-se sempre por referência

a crítica de Costas-Douzinas que aduziu: “O sujeito jurídico, o conceito-chave sem o qual os direitos não podem

existir, é, por definição, altamente abstrato, uma estrutura ou esqueleto que será preenchido com a carne fraca

dos deveres e o sangue desbotado dos direitos. A metafísica jurídica não tem tempo para dor das pessoas reais.”

(DOUZINAS, Costa. O fim dos direitos humanos. 1ª Ed. São Leopoldo: Unisinos, 2009, p. 165).

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ato hábil a provocar sua liberação o prazo é de decadência. No segundo caso, em que ao polo

passivo é dado praticar um ato correspondente à satisfação do interesse do polo ativo na

relação jurídica o prazo é de prescrição.

A incerteza neste último caso é, aliás, compartilhada entre os polos ativo e

passivo da relação. Enquanto o polo passivo pode desconhecer a intenção do polo passivo

de constranger-lhe ou não à prática do ato que lhe caberia praticar, o polo ativo, por sua vez,

pode desconhecer a intenção do polo passivo de fazê-lo espontaneamente ou não. Isso

justifica, por exemplo, as hipóteses em que a prescrição se interrompe por um ato tal do polo

ativo que demonstre inequivocamente a intenção de constranger o polo passivo à prática do

ato em questão, ou pela afirmação inequívoca, por parte deste, seja da existência da relação

jurídica, seja de sua intenção de adimpli-la. A interrupção do prazo não deixa de

corresponder a uma renovação das expectativas quanto ao adimplemento ou à intenção de

exigi-lo, seguindo o impedimento e a suspensão a mesma lógica.

O mesmo não se passa com as circunstâncias em que o prazo previsto é o

de decadência. Como neste não é dado ao polo passivo a prática de qualquer ato, nem ato

algum dele se espera, não faz sentido pensar-se em interrupção, suspensão ou impedimento

do prazo, tanto quanto não faz sentido pensar-se em renúncia. A renovação do prazo no caso

da prescrição faz sentido porque significa a reafirmação da relação jurídica e da expectativa

de que o ato a ser praticado pelo polo passivo efetivamente o será. Se nenhum ato se espera

do polo passivo, por outro lado, nem a ele é atribuído qualquer outro papel senão o de se

sujeitar ao que ficar decidido pelo polo ativo, não faz sentido estabelecer uma renovação do

prazo que, assim, toma seu curso linear.

A renúncia, nos casos de prescrição faz sentido, porque importa uma

manifestação da intenção do polo passivo de fazer extinguir a sua condição de devedor, não

pelo decurso do prazo, mas pela prática do ato de adimplemento que lhe incumbe praticar.

No caso da decadência, porém, nenhum ato incumbia ao polo passivo, nem qualquer poder

lhe foi conferido com relação a sua condição de polo passivo na relação, de maneira que

também exaurido o prazo – que era o único meio de resolver-se o estado de incerteza em seu

benefício – este não condiz com alguma renúncia.

Adota-se, pois, uma visão aproximada à de Moreira Alves que por sua vez

inspirou-se em Agnelo Amorim, mas de forma desprendida dos modelos do direito subjetivo

ou do direito potestativo; atendo-se ao perfil dinâmico das situações subjetivas (embora não

tenha se expressado nesses termos) que se distinguem pelo fato de serem ou não passíveis

de violação.

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É de se observar, então, que essa divisão poderia corresponder em linhas

gerais à mesma distinção que se faz entre direito subjetivo e potestativo, nos moldes em que

se baseou Agnelo Amorim.45 Via de regra, será mesmo possível observar-se um paralelo, já

que o objeto prestacional do direito subjetivo é o que se põe em destaque para afirmar que

se conecta a prescrição. No entanto, o paralelismo, neste caso, não é necessário, mas

contingente.

No caso do divórcio, por exemplo, tem-se um direito potestativo que não

se sujeita a prazo. Deveras, entre pessoas casadas, o estado de incerteza é uma constante que

não pode ser suprimida por qualquer regra legal. Em contrariedade à proposta de Agnelo

Amorim (se bem que esta fosse anterior à legalização do divórcio) ainda que seja este um

direito potestativo, não se submete a qualquer prazo.

Não apenas isso, direitos potestativos podem, sim, estar ligados a um prazo

de prescrição. Pense-se o caso em que um vendedor, ou adquirente inviabiliza, por qualquer

expediente, o exercício de um direito de preferência. Trazendo-se a incidência dos deveres

anexos de boa-fé, tem-se que ao polo passivo, titular da situação jurídica de sujeição

(correlata à situação de direito potestativo), não é dado obstaculizar o exercício do poder

atribuído pelo ordenamento ao polo ativo.46 Se o faz, viola o livre exercício do direito

potestativo. “Violado o direito, nasce para o titular a pretensão”, no caso, talvez, uma

responsabilização civil, a qual se submeterá a prazo de prescrição.

Valendo lembrar que a pretensão por si é também um direito potestativo,

o que, sem dúvida pode provocar confusões, vale também lembrar que se extingue por

prescrição, e não por decadência. De fato, embora seja a pretensão um direito potestativo,

pode perfeitamente ser extinta com base em um ato que o polo passivo é legítimo a praticar.

No caso da violação de um direito, por exemplo, como um acidente de trânsito que tenha

sido causado pelo polo passivo, pode esse se dispor a arcar com todos os custos de reparos

45 Vale observar, ainda mais uma vez, que não se trata, neste ponto, de uma proposta “inaugural” de distinção,

nem poderia valer uma proposta deste tipo. A linha adotada, aliás, se assemelha bastante à abordagem de

Moreira Alves sobre o tema, mais do que qualquer outra, mas somente por um comprometimento com o

propósito de identificar uma distinção funcional foi possível formar um entendimento sobre a adequação dessa

construção. (V. MOREIRA ALVES, José Carlos. ‘A parte geral do projeto do Código Civil’. Revista CEJ.

cit.). 46 V. PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. cit., p. 687: “Se for verdade, porém,

que o titular da sujeição não pode impedir a produção dos efeitos na própria esfera, é também verdade que ele

é titular de um dever específico (obbligo) ou, se se preferir, de um dever genérico de não impedir ao titular do

poder não somente de realizar o ato, mas também de alcançar o resultado. O titular da situação de sujeição

deve também cooperar para que o titular do poder formativo possa exercê-lo utilmente. Não se trata de simples

sujeição: é, ao revés, presente um dever de cooperação. A sujeição é a situação de um momento: o efetivo

exercício por parte do titular do direito potestativo.”

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 77

daí advindos. Com o acidente, nasceu a pretensão, a qual pode ser extinta pelo adimplemento

espontâneo e pelo acordo entre as partes, podendo também ser exercida pelo ajuizamento da

respectiva ação de reparação de danos se necessário e podendo, por fim, se extinguir pela

prescrição.

Retomando-se a citação a François Ost, é possível vislumbrar ainda mais

uma distinção funcional entre os institutos. Ao titular de um direito possivelmente violado

atribui-se um interesse jurídico que este não se mostrou realmente interessado em exercer.

O interesse atribuído não se mostra real ou, se for real, adiou-se por um tempo tal que já se

mostraria excessivamente prejudicial ao polo passivo o seu exercício. A prescrição se volta

a consolidar uma situação de fato oposta ao que se pensava corresponder à efetivação de um

direito. Trata-se de um processo de assimilação jurídica dos fatos sociais.47

A decadência, porém, não se enquadra neste papel, mas diz respeito,

precisamente, a um dos aspectos regulamentares que compõem a própria situação jurídica

subjetiva que visa extinguir.

Essa noção está em sintonia com o próprio critério topográfico, em que a

decadência é prevista juntamente da fattispecie que por ela se extingue, possivelmente na

Parte Especial, devendo ser entendida como parte componente dessa mesma fattispecie.

Assim, não só existe um direito de pedir a anulação do negócio jurídico, como esse direito

existe precisamente quatro anos (art. 178, Código Civil) e nada mais, o que seria uma das

pretendidas distinções entre negócio nulo e anulável – ultrapassado um termo temporal, a

anulabilidade se convalida.

Essa noção está em sintonia também com critério empírico em que a

decadência nasce juntamente ao direito que com ela se extinguiria. O nascer juntamente ao

direito é compor intrinsecamente o direito e integrar sua própria estrutura. Seria parte

imanente do direito de arrependimento previsto no Código de Defesa do Consumidor (art.

49) que ele seja exercido no prazo de sete dias. O prazo compõe completamente o conteúdo

do direito de arrependimento no caso e não condiz com uma expressão externa limitadora

47 Tais considerações são hábeis a fortalecer a tese da imprescritibilidade do dano moral, ou ao menos de sua

flexibilização, tendo em vista que tais presunções não se fazem igualmente lógicas na hipótese de danos à

pessoa humana. A prescrição, via de regra, diz respeito à situações precisas. Um inadimplemento, por exemplo,

advém de uma obrigação que deveria ter sido paga em certo tempo e não o foi. Fica clara a natureza da violação

tanto quanto as circunstâncias jurídicas que dela surgem. O dano moral, como decorrente da cláusula geral de

tutela da pessoa humana, se sujeita a formas variáveis e mesmo subjetivas de assimilação. Sua configuração

perante o direito depende de argumentação e ponderação. Sua configuração perante a pessoa depende de um

processo muitas vezes lento de racionalização do trauma. A previsão de prazo – ainda por cima tão exíguo –

para o dano moral é possivelmente contrário ao imperativo de tutela da pessoa humana, provocando um

obstáculo disfuncional.

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do seu exercício. Simplesmente, não poderia haver direito de arrependimento se este não

contivesse um prazo para o seu exercício, sendo adequado que seja um prazo curto.

A decadência, dessa forma, embora possua, por si, uma função que diz

respeito a excluir um estado gravoso de incerteza, é extremamente afetada pela função da

situação jurídica que integra, estando aí o mais relevante aspecto de sua adequação

valorativa. Esse aspecto explica, por exemplo, a inexistência de prazo para o exercício do

divórcio, já que um prazo seria incompatível com a própria função do direito.

Analisada em concreto, vê-se que, diferentemente da prescrição que é um

instituto jurídico, funcionalizado à instituição de uma modalidade de perdão, a decadência

não se atribui uma função própria, senão residual. É elemento componente e integrante da

situação jurídica que extingue, e revela mais sobre o aspecto funcional desta situação

subjetiva do que de si mesma, como detalhe isolado e reduzido da situação que se investiga.

Por outro lado, o que a decadência revelará da respectiva situação é, justamente, que ela

provoca um estado de incerteza a outrem, o qual, salvo exceções, não deve durar

eternamente.

6. Considerações finais

Por fim, vale destacar que prescrição e decadência não são modalidades

estanques de prazos, os modelos não reduzem as possibilidades pensáveis de fixação de um

termo temporal. São modelos e, como tais, são referências úteis às quais pode ser válido

recorrer em circunstâncias diversas, tendo em vista que sobre eles já se produziu um legado.

Mas o ordenamento jurídico é um sistema móvel e aberto e se não há qualquer metafísica

dos prazos também não há porque restringir os prazos a esses modelos.

Pode-se, por exemplo, prever um prazo tal que, diante de determinado fato

jurídico, reduz-se à metade ou prolonga-se ao dobro se assim se mostrar conveniente para a

regulamentação de alguma situação jurídica. Não se terá, por isso, qualquer falha de técnica

legislativa. Será possível dizer deste prazo que é de prescrição ou de decadência, como será

possível dizer que é sui generis. A discussão será, não sobre a compreensão do sistema

jurídico, mas sobre o significado das palavras.

Prescrição e decadência são, sobretudo, palavras. Palavras que expressam

algum sentido que aqui se procurou investigar, mas que não limitam os sentidos todos que

são possíveis e que não foram captados por algum outro significante. E, ainda assim, como

palavras que são, estão também sujeitas à transformação de seus sentidos, conforme os

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sentidos variados que assumem ao longo do tempo. Sendo palavras que expressam normas,

estão sujeitas à variações de sua compreensão, seja como palavras, seja como normas.

Tem-se nelas, hoje, distinções estruturais bem conhecidas e ministradas,

mas que não se ofendem diante de alguma flexibilização, como a prevista no art. 207 do

Código Civil.

É possível dizer que com a possibilidade de impedimento, deixa-se de ser

decadência para ser prescrição, mas isso não é certo. O prazo de quatro anos para impugnar

o reconhecimento de paternidade do filho menor se conta a partir de sua maioridade do filho,

sendo exemplo de impedimento aplicado a um prazo de decadência. Será possível dizer que

não se trata propriamente de um impedimento com fins de manter-se cristalizado o sentido

da decadência, mas isso será uma escolha sobre palavras e não sobre normas, pois o

regramento da questão será o mesmo.

É possível dizer que, com a possibilidade de impedimento, o prazo não é

de decadência, mas de prescrição. Isso, porém, à custa da melhor compreensão sobre as

normas jurídicas, pois o direito de impugnar o reconhecimento de paternidade não sofre

nenhum dos outros fenômenos atinentes à prescrição, como a suspensão, a interrupção e o

impedimento em todas as demais hipóteses, além da impossibilidade de renúncia.

Com a reforma processual de 2006 (Lei 11.268/2006) alterou-se

substancialmente o regime da prescrição, que passou a poder ser conhecida de ofício. Isso,

sem dúvida diminui a distinção entre prescrição e decadência, mas tantas mútuas

particularidades se mantêm que não há razões para pensar-se ter havido uma diluição entre

os institutos. Apenas, por essa mudança das estruturas, vislumbram-se escolhas distintas a

respeito das funções a serem ou não promovidas.

Vale dizer que para novas funções ou para funções distintas devem ser

concebidas novas estruturas, ou devem ser adaptadas as estruturas pré-concebidas. Os prazos

para o exercício de situações jurídicas estão à disposição da legalidade, para fazer tratar

igualmente aos iguais, e desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualem –

sendo essa “medida” avaliada pelo legislador conforme o juízo que se faça de cada caso.

Nisso consiste a superação de uma visão jusnaturalista sobre o tema sem decair, por isso, em

um formalismo jurídico.

Recebido em 17/09/2014

1º parecer em 07/01/2015

2º parecer em 02/03/2015

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PARECER

CONTRATO DE SEGURO DE VIDA E O AGRAVAMENTO DO RISCO

Life insurance contract and risk management

Luiz Edson Fachin Professor Titular de Direito Civil na Faculdade de Direito da Universidade Federal do

Paraná. Pós Doutor. Pesquisador convidado do Instituto Max Planck, de Hamburg (DE). Professor Visitante

do King’s College, London. Advogado.

Resumo: O cerne deste parecer cinge-se às reflexões teóricas acerca do contrato de seguro

de vida e de circunstâncias que autorizem às seguradoras ao não pagamento do capital

contratado em sede de seguro de vida. Debruçar-se-á sobre a análise do agravamento do

risco e a necessidade de sua intencionalidade quanto à percepção do capital contratado, em

especial diante das disposições do art. 768 do Código Civil pátrio, bem como sobre o sentido

que se deve atribuir a essa intencionalidade. Analisar-se-á a natureza da prova necessária à

eventual desconstituição do direito dos beneficiários à percepção da prestação da seguradora,

bem como a quem caberia o onus probandi pertinente à intencionalidade no agravamento do

risco objetivo do contrato. Ponderar-se-á, por fim, sobre a existência ou não, nos documentos

submetidos à presente análise, de prova dessa estirpe no presente caso que tenha condão de

afastar o pagamento do seguro contratado, fornecendo, então, respostas aos quesitos.

Palavras-chave: contratos; seguro de vida; agravamento do risco.

Abstract: The core of this legal opinion is the theoretical reflections on the life insurance

contract and the circunstamces that permit insurers to non-payment of capital engaged in life

insurance range. We will look into the analysis of risk management and the need for its

intentions regarding the perception of capital employed, particularly on the provisions of art.

768 of the Civil Code, and about the meaning to be attributed to this intention. It will be

examined the nature of the evidence necessary for eventual deconstitution of the right of

beneficiaries to the perception of the compensation, as well as who would take the onus

probandi about the intentionality on increasing risks of the contract. It will be considered,

finally, the documents submitted to this analysis, leading to the answer that the evidence of

this type in this case has power to ward off the payment of the compensation.

Keywords: contracts; life ensurance; risk management.

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Sumário: 1. Da consulta – 2. Dos quesitos – 3. Do objeto do Parecer – 4. Breve escorço

fático – 5. Reflexões teóricas preambulares: do contrato de seguro de vida – 6. Inteligência

e aplicabilidade do art. 768 do Código Civil: da necessária vinculação da intencionalidade

de agravamento do risco – 7. Da prova e do ônus probatório da intencionalidade de

agravamento do risco – 8. Das circunstâncias concretas: ausência de prova que corrobore a

intencionalidade de agravamento do risco – 9. Resposta aos quesitos apresentados

1. Da consulta

Consultam-nos acerca da repercussão jurídica de questões pertinentes ao

pagamento de capital decorrente de contratos de seguro de vida em face de passamento.

Apresenta-se cópia de documentos, em especial daqueles oficiais atinentes

à investigação da morte e as respostas negativas de cobertura (e consequente pagamento do

valor do capital contratado) de diversas seguradoras com as quais o de cujus mantinha

relação contratual.

2. Dos quesitos

Diante de interesses legítimos decorrentes de contratos de seguro de vida

firmados pelo falecido Sr. X, vêm de nos consultar seus beneficiários, solicitando análise e

a apresentação de parecer a respeito do seguinte:

(i) À luz dos fatos, como deve ser a aplicação do artigo 768 do Código

Civil ao presente caso?

(ii) O que configura o “agravamento do risco” elencado no artigo 768 do

Código Civil?

(iii) A quem cabe o ônus probatório da intencionalidade do segurado

dirigida ao agravamento do risco e que prova é apta para atender a esse

ônus?

(iv) No presente caso, pode-se dizer que há prova que sustente a alegação

do agravamento do risco por parte do Sr. X, consoante narram as respostas

negativas de pagamento das seguradoras?

3. Do objeto do Parecer

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Em decorrência dos questionamentos erigidos, o cerne deste parecer cinge-

se às reflexões teóricas, em cotejo com a matéria fática desenhada in casu, acerca do contrato

de seguro de vida e de circunstâncias que autorizem às seguradoras ao não pagamento do

capital contratado em sede de seguro de vida.

Preambularmente, far-se-ão breves considerações teóricas acerca dos

contratos de seguro de vida. Na sequência, ainda em sede de delineamentos teóricos,

debruçar-se-á sobre a análise do agravamento do risco e a necessidade de sua

intencionalidade quanto à percepção do capital contratado, em especial diante das

disposições do art. 768 do Código Civil pátrio, bem como sobre o sentido que se deve atribuir

a essa intencionalidade.

Em um segundo momento, à luz das normas atinentes à distribuição do

ônus da prova e ao sistema de proteção ao consumidor, analisar-se-á a natureza da prova

necessária à eventual desconstituição do direito dos beneficiários à percepção da prestação

da seguradora, bem como a quem caberia o onus probandi pertinente à intencionalidade no

agravamento do risco objetivo do contrato.

Por final, já aportando nas linhas conclusivas deste parecer, ponderar-se-á

sobre a existência ou não, nos documentos submetidos à presente análise, de prova dessa

estirpe no presente caso que tenha condão de afastar o pagamento do seguro contratado,

fornecendo, então, respostas aos quesitos.

4. Breve escorço fático

Narra-se que X faleceu aos 38 (trinta e oito) anos de idade, em vinte e

quatro de maio no hotel Y, na cidade de W.

Conforme se depreende da documentação apresentada, mormente

inquérito policial, de acordo com depoimento prestado à polícia local pelo Sr. Z, amigo do

de cujus que o acompanhava, o Sr. X chegou naquela localidade no dia vinte e três daquele

mês, motivado por questões de trabalho. Ambos hospedaram-se naquela localidade no hotel

KK.

Verifica-se do inquérito policial a informação de que o Sr. X foi

encontrado morto pela Sr.ª GG, que o conheceu em W. A morte foi declarada no quarto de

hotel da referida senhora, no estabelecimento Y, por volta das seis horas da manhã, do dia

vinte e quatro.

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De acordo com o laudo policial oficial das autoridades de W a causa mortis

foi o “envenenamento acidental por exposição a narcóticos e psicodisléticos”.

Dos documentos recebidos, dentre os quais se destacam declarações

pessoais de saúde complementar feitas de próprio punho pelo de cujus quando da contratação

do seguro, depreende-se que o Sr. X não era usuário de quaisquer substâncias químicas que

causem dependência.

O Sr. X era titular de alguns seguros de vida no Brasil.

De modo sistemático, as seguradoras, diante da requisição de pagamento

feita pela viúva beneficiária, em face do contido em seu atestado de óbito, negaram-se ao

pagamento haja vista que a conduta do de cujus supostamente teria agravado o risco,

elevando-o a patamares que fogem à cobertura contratada.

Da documentação entregue infere-se que companhias de seguros

consideraram indevido o pagamento, nos termos do artigo 768 do Código Civil, alegando

suposto agravamento do risco provocado pela conduta do Sr. X.

Eis a base fática narrada, que se depreende da documentação apresentada,

e que informa a análise a ser efetuada no presente parecer.

A partir desses pressupostos de fato, à luz dos quesitos formulados, passo

a examinar as questões jurídicas que vêm à tona como instrumentais à adequada

compreensão da matéria. Principie-se, nessa toada, com um necessário conjunto de reflexões

preliminares acerca do contrato de seguro de vida, de modo a aferir quais as consequências

jurídicas que dele podem derivar diante das circunstâncias de fato objeto da Consulta.

5. Reflexões teóricas preambulares: do contrato de seguro de vida

A compreensão da matéria a que se refere este parecer pressupõe reflexões

preliminares que situem o tema à luz da espécie de relação obrigacional de que se está a

tratar.

Cabe versar a respeito do conceito e dos caracteres fundamentais do

contrato de seguro, de modo a construir os subsídios necessários para a investigação das

repercussões jurídicas que advêm dos fatos narrados na Consulta.

O contrato de seguro, como se sabe, é modalidade contratual típica no

contexto do direito obrigacional pátrio.

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Mister advertir que em que pese o objeto das reflexões no presente parecer

seja especificamente o seguro de vida, a especificação do objeto não o faz diferir da

disciplina geral da regulação dos contratos securitários no direito brasileiro.1

Não há consenso ao redor de definição una para os contratos de seguro,

todavia, de modo geral, poder-se-ia apontar, como um delineamento a título de definição

precária, os elementos que conformam esta modalidade contratual, quais sejam: o interesse

segurável, a prestação do segurador, o prêmio e o risco.

Conforme explica Pontes de Miranda:

Contrato de seguro, segunda a definição corrente, é o contrato pelo qual o

segurador se vincula, mediante pagamento de prêmio, a ressarcir ao

segurado, dentro do limite que se convencionou, os danos produzidos por

sinistro, ou a prestar capital ou renda quando ocorra determinado fato,

concernente à vida humana, ou ao patrimônio. Aí a falta de unidade na

definição resulta de se ter em vista a distinção entre os seguros.2

Nessa moldura especial destaque tem o risco. A aleatoriedade é elemento

essencial das relações securitárias e consiste na superveniência de episódio futuro, incerto,

involuntário, todavia, possível – ou, no caso do seguro de vida acontecimento certo (morte)

de data incerta.

Acerca desse elemento preponderante nos contratos de seguro, a doutrina

clássica colhe o que ensina Ascarelli asseverar que “o risco é imanente”3 vez que, ocorrido

o sinistro, nenhum prejuízo advirá ao contratado.

Ademais, o contrato de seguro é essencialmente aleatório vez que não há

equivalência entre as prestações e sua execução, em face da dependência de evento futuro e

incerto. Por meio desta relação contratual entabulada há o translado do risco do segurado à

seguradora em virtude do pagamento de um prêmio.

A matéria geral das relações contratuais de seguro é regida

legislativamente de modo dual: de um lado, apóia-se nas previsões previstas nos artigos 757,

1 O Código Civil anterior trazia no seu artigo 1.471 definição específica sobre o seguro de vida, a saber: “O

seguro de vida tem por objeto garantir, mediante o prêmio anual que se ajustar, o pagamento de certa soma a

determinada ou determinadas pessoas, por morte do segurado, podendo estipular-se igualmente o pagamento

dessa soma ao próprio segurado, ou terceiro, se aquele sobreviver ao prazo de seu contrato”. O código vigente

trata de maneira genérica o contrato de seguro. 2 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Vol. XLV. 2ª. Ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1964. 3 ASCARELLI, Túlio. Panorama do Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 1947. p. 173.

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e seguintes do Código Civil, por outro, está albergada dentro do sistema de proteção ao

consumidor, com especial atenção ao Código de Defesa do Consumidor.4

As previsões do Código Civil têm o condão de fixar as linhas gerais do

instituto, definindo-o e contextualizando-o dentro de acordo com os pilares que inspiram o

codex.

Nessa toada, eis o artigo 757 do CC que fixa: “pelo contrato de seguro, o

segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do

segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados”.

Em que pese a manutenção dos padrões estruturais do Direito Civil

herdado da tradição moderna, o r. diploma legal aponta a necessidade, já presente no Código

de Bevilacqua, da observância dos princípios gerais informativos da ordem contratual, a

exemplo da boa-fé, consoante preceitua o art. 765: “O segurado e o segurador são obrigados

a guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto

a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes”.

Pondere-se que o esteio civilístico é apenas parcela do que suporta a

temática.

Consoante já ressaltado, ao lado da previsão do Código Civil, deve o

direito securitário ser mirado, concomitante e harmonicamente, também sob as lentes do

sistema nacional de proteção legal ao consumidor.

Tal baldrame bipartido deve-se às características das relações de seguro,

em especial no que tange à possível diferenciação de posicionamento entre as partes

contratantes, e pelas relações econômicas e sociais que encerram. Por tais razões os contratos

de seguro devem possuir ordenação especial.

No contexto consumeirista, o contrato de seguro encontra-se imerso em

paradigma distinto daquele presente na codificação civil hodierna que, em que pese alguns

avanços – a exemplo do artigo 765 supra transcrito – em grande medida, prestou-se a repetir

o modelo codificado anterior, fixando-se no dogma da autonomia da vontade e do pacta sunt

servanda.

A esse respeito, Fernando Noronha anota que:

A teoria jurídica construída pela ideologia liberal assentava em alguns

dogmas, que hoje estão em crise: a irredutível oposição entre indivíduo e

sociedade (o Estado seria um mal necessário cujas atividades era

4 É complexa a legislação específica que se espraia, para além dos diplomas indicados, em decretos-leis, leis,

portarias e medidas provisórias.

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necessário restringir ao mínimo; o princípio moral da autonomia da

vontade (a vontade humana seria o elemento essencial na organização do

Estado, na assunção de obrigações, etc.); o princípio da liberdade

econômica (laissez faire, laissez passer) e, finalmente, a concepção

formalista, meramente teórica, da igualdade e da liberdade política

(afirmava-se que os homens eram livres e iguais em direitos, sem se curar

de saber se a todos eles seriam proporcionadas as condições concretas para

exercitarem tais liberdades).5

Neste paradigma contratual renovado, o Código de Defesa do Consumidor

dispõe expressamente sobre as relações securitárias dentre aquelas por ele abarcadas. Nessa

senda, o § 2° do artigo 3º Código de Defesa do Consumidor fixa que:

Art. 3° Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada,

nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que

desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção,

transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização

de produtos ou prestação de serviços.

§ 1° Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial.

§ 2° Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo,

mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de

crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter

trabalhista.

Nota-se a expressa referência às atividades de seguro como forma de

ressaltar a natureza híbrida – civil e consumidor – de seu alcance legal. Acerca do referido

dispositivo, Rizzatto Nunes aponta que “o legislador foi precavido, em especial, no caso

preocupado com que os bancos, financeiras e empresas de seguro conseguissem, de alguma

forma, escapar do âmbito de aplicação do CDC”6.

Pelo exposto não restam dúvidas que no segmento de seguros podem-se

entabular relações jurídicas de natureza tipicamente de consumo. Complementa Claudia

Lima Marques ressaltando o caráter consumerista das relações securitárias:

Resumindo, em todos estes contratos de seguro podemos identificar o

fornecedor exigido pelo art. 3º do CDC, e o consumidor. Note-se que o

destinatário do prêmio pode ser o contratante com a empresa seguradora

(estipulante) ou terceira pessoa, que participará como beneficiária do

seguro. Nos dois casos, há um destinatário final do serviço prestado pela

5 NORONHA, Fernando. O Direito dos Contratos e seus Princípios Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1994.

p. 94. 6 NUNES, Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor. 4ª Edição. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 95.

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empresa seguradora. Como vimos, mesmo no caso do seguro-saúde, em

que o serviço é prestado por especialistas contratados pela empresa

(auxiliar na execução do serviço ou preposto), há a presença do

‘consumidor’ ou alguém a ele equiparado, como dispõe o art. 2º e seu

parágrafo único.7

É certa, portanto, da localização do contrato de seguro como modalidade

típica que se assenta, respectiva e concomitantemente, na codificação civil pátria e no

microssistema de defesa do consumidor, que tempera a herança oitocentista do Direito Civil

com sua lógica diferenciada e princípios protetivos.

A vinculação dos contratos de seguro à tutela especial de defesa do

consumidor, busca suavizar, por meio da vertente material do princípio da isonomia

constitucional,8 o desequilíbrio entre as partes pertencentes a um contrato não paritário.

Destarte, a hermenêutica da compreensão do contrato de seguro deve

guardar proximidade teleológica com a ótica protetiva inerente ao Código de Defesa do

Consumidor, destinado este ao abrigo da parte mais vulnerável no contexto de determinada

relação contratual que, pelo desequilíbrio econômico e financeiro, não se coloca em pé de

igualdade em face do outro fornecedor contratante.

Esta proteção diferenciada deriva também da natureza de contrato por

adesão da qual o seguro é legítima espécie. Esta modalidade contratual caracteriza-se por

apresentar conteúdo preestabelecido por uma das partes apenas. Resta a outra parte

contratante a “faculdade” diminuta de concordar e aceitar as cláusulas já formuladas, sem

possibilidade de discussão sobre situação contratual previamente definida.

O consentimento dado pelo segurado contratante é manifestação de sua

adesão ao conteúdo contratual, restando-lhe somente à opção de acatar o contrato nas

condições que lhe é ofertado pelo fornecedor.

Nesse passo, concernente aos contratos por adesão, lança Maria Helena

Diniz:

Os contratos por adesão constituem uma oposição à idéia de contrato

paritário, por inexistir a liberdade de convenção, visto que excluem a

7 MARQUES, Claudia Lima. Contratos do Código de Defesa do Consumidor. 4ª edição. São Paulo: Editora

Revista dos Tribunais, 2002. p. 141. 8 Nesse trajeto de sistemas interdependentes, impende registrar o sentido dessa travessia: “el cambio más

significativo del tránsito Del Estado de derecho al Estado social de derecho lo constituye la superación de

uma concepción formal por uma concepción material de la igualdad. La realización de la igualdad ya no

queda librada así únicamente a las fuerzas del mercado, sino que depende de la contínua y deliberada

intervención de las autoridades públicas para promover personas, grupos, y sectores desfavorecidos”.

ARANGO, Rodolfo. La jurisdicción social de la tutela. In: BETANCUR, Carlos M. Molina. Corte

Constitucional. Bogotá: Centro Editorial de la Universidad del Rosario, 2003. p. 108.

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possibilidade de qualquer debate e transigência entre as partes, uma vez

que um dos contratantes se limita a aceitar as cláusulas e condições

previamente redigidas e impressas pelo outro, aderindo a uma situação

contratual já definida em todos os seus termos. Esses contratos ficam,

portanto, ao arbítrio exclusivo de uma das partes – o policitante –, pois o

oblato não pode discutir ou modificar o teor do contrato ou as suas

cláusulas. É o que ocorre com: os contratos de seguro; os de venda das

grandes sociedades; os de transporte; os de fornecimento de gás,

eletricidade, água; os de diversões públicas; os de consórcio; os de

financiamento bancário. Eis por que preferimos denominar o contrato de

adesão de contrato por adesão, verificando que se constitui pela adesão da

vontade de um oblato indeterminado à oferta permanente do proponente

ostensivo.9

Categoricamente afirma a referida ilustre autora que a modalidade

contratual securitária “é um contrato por adesão, formando-se com a aceitação pelo

segurado, sem qualquer discussão, das cláusulas impostas ou previamente estabelecidas pelo

segurador na apólice impressa”10.

O consentimento indiscutido conferido pelo segurado, marca dos contratos

por adesão, é elemento que consolida o desequilíbrio contratual e a posição de

hipossuficiência que o segurado assume diante da seguradora uma vez que não há

possibilidade ordinária de se alterar o estabelecido.

Pode-se dizer que nos contratos por adesão, ainda que exista a liberdade

“de contratar”, ou seja, de escolha entre celebrar ou não o contrato, carece uma das partes da

efetiva liberdade “contratual”, que consiste na definição dos termos do contrato.

Enquanto a parte que formula o contrato exerce plenamente sua autonomia

privada, ao aderente resta sujeitar-se ao disposto previamente na proposta, sem efetiva

possibilidade de modificação das cláusulas que lhe são submetidas.

Há, portanto, claro desequilíbrio entre as partes contratuais nesses casos,

ainda que ambos sejam entes privados. Diante da questão concernente ao desequilíbrio

contratual presente nos contratos de adesão, parece possível – e, no mais das vezes,

necessário – regular nos casos concretos, de acordo com os parâmetros legais

constitucionais, o conteúdo e a interpretação das cláusulas contratuais. Isto porque a

existência da liberdade negocial não afasta a atuação estatal protetiva da ordem

constitucional e, em consequência, de um conjunto de direitos fundamentais.

No mesmo sentido a paradigmática jurisprudência do Supremo Tribunal

Federal aponta que:

9 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 3° volume. 23. Ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 89. 10 Ibidem, p. 520.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 89

As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das

relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas

entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos

fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não

apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos

particulares em face dos poderes privados.11

Eis, portanto, em breves linhas, alguns dos alicerces constitutivos da

disciplina jurídica dos contratos de seguro da qual o presente parecer parte.

6. Inteligência e Aplicabilidade do art. 768 do Código Civil: da necessária vinculação

da intencionalidade de agravamento do risco

Consoante o acima exposto, a problemática que abrolha das relações

securitárias deverá ser mirada sempre no cotejo civilístico-consumeirista para conformação

de hermenêutica que melhor atenda aos anseios jurídicos contemporâneos.

É nesse influxo que o artigo 768 do Código Civil deve ser analisado. O r.

dispositivo consigna que: “o segurado perderá o direito à garantia se agravar

intencionalmente o risco objeto do contrato”.

Sublinhe-se que, consoante acima destacado, o risco é a essência do

contrato de seguro de vida, sendo ônus de o segurador assumi-lo, diante do pagamento do

prêmio como acontecimento futuro e incerto, tanto no que se refere à concreta realização,

quanto ao momento em que ocorrerá.

Para uma melhor interpretação do artigo ora em foco, mister sublinhar que,

nos termos legais do artigo 757 também do Código Civil, pela análise do risco apresentado

na proposta de seguro (“riscos predeterminados”), o segurador calcula e cobra o prêmio que

considera devido, proporcionalmente.

Em Silvio Rodrigues se explana de forma concisa a maneira de análise do

referido cálculo de proporcionalidades entre o prêmio e os riscos apresentados:

O cálculo das probabilidades é o elemento a que recorre o segurador para

fixar, de antemão, o prêmio que será pago pelo segurado. Pelo exame das

estatísticas, observando por vários anos e incidência dos sinistros num

determinado risco, verifica o analista, com extraordinário grau de precisão,

qual será a referida incidência no ano em estudo. É a aplicação da lei dos

grandes números. Um exemplo. Ainda que elementar, servirá para

esclarecer a hipótese: examinando os casos de homicídios culposos

resultantes de atropelamentos automobilísticos, durante alguns anos, e

11 STF, Segunda Turma, RE nº 201.819/RJ, Relator p/ acórdão Ministro Gilmar Mendes, DJ 27.10.2006.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 90

tendo em vista, digamos, dez mil segurados, verifica-se que sua incidência

é de determinada razão percentual. Daí deduz o calculista que todas as

coisas remanescendo as mesmas, tal razão deve perdurar no ano seguinte.

Com base nessa lei estatística, fixa o segurador a taxa de seguro, taxa que

será suficiente não só para pagar todas as indenizações, como também para

proporcionar um lucro razoável àquele.12

Isto posto, a fixação do valor a ser pago pelo prêmio leva em sua base

constitutiva a equação risco/valor e deve ser estipulada com base em juízos de probabilidade.

A importância paga leva em consideração o risco médio previsto para

aquele conjunto de variáveis não podendo ser revisto consoante flutuações para mais ou para

menos conforme o desenrolar da vida humana, salvo em hipóteses quantitativamente

expressivas nos termos do artigo 769 do Código Civil. Episódios singulares, portanto, não

devem ser considerados para este fim.

O segurador, em face do prêmio recebido, assume os riscos inerentes à

pessoa ou bens do segurado e, por sua vez, calcula o valor de sua remuneração em função

dos riscos assumidos.

Segundo Silvio Rodrigues, “o risco é elemento medular do seguro, pois

constitui o seu próprio objeto. (...) No seguro de vida o risco consiste no fato de a pessoa vir

a morrer mais cedo ou mais tarde”.13

Conclui-se, portanto, o dever de suportar o risco assumido pelo segurador

em razão do acordado entre as partes contratantes. Neste sentido, poder-se-ia sustentar que

“na interpretação do pacto securitário, é o alcance do risco que, pelo seguro, o contratante

transfere à seguradora, e não as circunstâncias de sua ocorrência”.14

Orlando Gomes confirma tal pensamento e alude:

A noção de seguro pressupõe a de risco, isto é, o fato de estar o indivíduo

exposto à eventualidade de um dano à sua pessoa, ou ao seu patrimônio,

motivado pelo acaso. Verifica-se quando o dano potencial se converte em

dano efetivo. Quando o evento que produz o dano potencial é infeliz,

chama-se sinistro. Assim, o incêndio. Tal evento é aleatório, mas o perigo

de que se verifique sempre existe. Por isso se diz, com toda procedência,

que o contrato de seguro implica transferência de risco, valendo, portanto,

ainda que o sinistro não se verifique, como se dá, alias, as mais das vezes.15

12 RODRIGUES, Silvio. Direito Civil. Volume 3. 28. Ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 331 e 332. 13 Ibidem, p. 336. 14 TJ-PR, 9ª Câmara Cível, AC nº 0485604-0, Relator Des. Sérgio Luiz Patitucci, DJ 11.01.2010. 15 GOMES, Orlando. Contratos. Atualizadores Antônio Junqueira de Azevedo e Francisco Marino. São Paulo:

Forense, 2008. p. 505.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 91

A fixação do prêmio e a análise dos riscos devem observar o dever de boa-

fé e veracidade que as partes contratantes guardam entre si. A esse respeito, ensina Caio

Mário:

O segurado e o segurador são obrigados a observar, tanto na fase das

tratativas, quanto na conclusão e execução do contrato, a mais estrita boa-

fé e veracidade. A boa-fé objetiva é elemento essencial deste tipo de

contrato, em razão de a fixação do prêmio depender de informações

prestadas pelo segurado, e em razão de sua aleatoriedade, tendo em vista

sempre haver a possibilidade de agravamento da álea do contrato durante

a sua execução, por fato que possa ou não ser imputado ao segurado.16

É com esteio no dever de boa-fé que o agravamento do risco pode ser

excludente do dever de pagamento da garantia, em circunstâncias que estejam preordenadas

à obtenção, em favor do beneficiário, do capital a que se obrigou a seguradora. Isto porque

o agravamento intencional do risco, após a celebração do contrato, acaba por acarretar

prejuízos financeiros para com o segurador.

Todavia, impende esclarecer, em primeiro lugar, que consoante a proteção

do consumidor nos contratos de seguro, cabe à seguradora contratada, com base nas

probabilidades, sopesar os riscos e a eles atribuir valor respectivo do prêmio. Em segundo

lugar, importa ressaltar que, com base na equação risco/valor, o cálculo do prêmio é feito

com base em risco médio previsto, sem levar em conta circunstâncias pontuais para além

deste padrão. Haja vista a natureza de adesão dessa forma contratual, não há, via de regra,

possibilidade de discussão material por parte do contratado.

O dever de boa-fé exposto no artigo 765 do Código Civil impõe que se

leve em consideração, na interpretação do contrato, a situação díspar existente entre as

partes, pois, tratando-se de contrato por adesão, a liberdade contratual é evidentemente

reduzida ou, quiçá, eliminada no que tange ao aderente. Com efeito, a presença de liberdade

“de contratar”, como liberdade de optar pela celebração ou não do contrato, ainda que esteja

presente, não é suficiente para permitir a afirmação da presença da liberdade “contratual”,

ou seja, a liberdade de definir o conteúdo do contrato.

Daí porque a boa-fé objetiva, em sua função integrativa, impõe em

contratos dessa natureza especial dever de proteção ao aderente imposto ao contratante que

formula as cláusulas.

16 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. 11. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 457

e 458.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 92

Demais disso, não se pode olvidar que no âmbito dos contratos por adesão,

mormente tratando-se de relação de consumo, nem sempre é atendido em sua plenitude o

dever de informação e clareza imposto às seguradoras.

À luz dessas premissas é que se deve analisar a expressão “agravar

intencionalmente o risco” incrustada na disposição supramencionada.

Não é qualquer majoração a que se refere este artigo. Note-se que o próprio

artigo 768 afirma que o agravamento em questão não é de qualquer risco, mas sim daquele

“risco objeto do contrato”. Ou seja, colhe-se da mens legis o liame entre majoração do risco

e o contrato de seguro.

Pelo exposto resta claro que o próprio legislador vinculou o risco agravado

em tela ao contrato de seguro.

Portanto, a elevação da alea apta a afastar o pagamento do valor previsto

na apólice é aquela relacionada a obtenção desta mesma garantia – ou seja, obtenção do

pagamento relativo ao contrato de seguro.

Destarte, deve haver, para a finalidade prática de aplicação do artigo 768,

um nexo causal17 que oriente o agravamento do risco ou, genericamente, a conduta do

segurado, à percepção do pagamento atinente ao contrato de seguro pactuado.

Para que a seguradora exonere-se do pagamento, nos termos do r. artigo,

há de haver conduta que importe no voluntário e consciente agravamento do risco por parte

do segurado para receber a quantia indenizatória acordada.

No vocabulário jurídico a intencionalidade a que faz referência o artigo

deve ser compreendida como “vontade voltada para um fim colimado ou desejado. É o que

se quer de modo consciente, de modo voluntário, sem nenhuma pressão ou coerção de

qualquer força externa”.18

Isso significa que não basta que a conduta tenha sido praticada

voluntariamente pelo segurado, ainda que com culpa grave: mister é que haja a intenção

preordenada de obtenção do capital (objeto do dever da seguradora) em favor do

beneficiário, e que essa conduta tenha, nessa medida, ensejado incremento do risco segurado.

Não é qualquer conduta culposa que enseja aumento do risco, e, do mesmo

modo, não é qualquer elevação do risco por conduta, ainda que voluntária, que permite à

17 Acerca da necessidade da comprovação do “nexo de causalidade” da intenção do segurado com o sinistro

eis, a título exemplificativo, a jurisprudência do TJ/PR nas apelações cíveis nº 0461452-4; 0403914-9 e

0293542-6. 18 DELGADO, José Augusto. Comentários ao Novo Código Civil. Volume IX. Tomo I. Coordenador Sálvio

de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 247.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 93

seguradora eximir-se do pagamento da indenização ou do capital constantes da apólice. É o

direcionamento do elemento subjetivo da conduta do segurado à obtenção da indenização ou

do capital, para si ou para outrem, que qualifica a hipótese de afastamento do dever de

prestação da seguradora.

Esta interpretação que exige tal liame – agravamento do risco/percepção

da indenização – mostra-se mais adequada porque, em primeiro plano, deriva da própria

literalidade de sentido colacionada no r. dispositivo legal que menciona “agravar

intencionalmente o risco objeto do contrato”19. Em segundo plano, a senda hermenêutica

aqui esposada é mais apropriada à observância constitucional. Supor que todas as atitudes

praticadas em vida interviriam no contrato de seguro geraria intromissão indevida à esfera

da liberdade individual.

Isto porque a liberdade de agir dos sujeitos, em todas as searas de sua

existência, restaria condicionada pelo pacto econômico securitário celebrado, configurando,

destarte, violação injustificada a direitos fundamentais.

Há ocorrências da vida humana que naturalmente geram insegurança – tais

como viajar de avião, trafegar de automóvel, utilizar-se de transporte rodoviário, submeter-

se a serviços médicos e de odontologia, entre outros – nem por isso podem ser consideradas

como agravadoras de risco para fins de seguro. Não se pode, a conta de suposto agravamento

do risco, tolher indivíduo contratante de seguro da prática de tais atividades, ainda mais se

não se configuram como habitualidade.

Nesse sentido, “não se há de exigir do segurado que esteja

angustiosamente atento a todo perigo, para evitá-lo. Ele contrata, em regra, o seguro para

mais tranqüilo enfrentar o perigo”.20

É correto concluir, dessarte, que “o risco agravado pelo segurado é o risco

causado por vontade própria, isto é, com intenção de se beneficiar do valor da garantia”.21

Segundo entendimento jurisprudencial, “para que a seguradora se exima do pagamento do

seguro, é necessário que comprove que houve voluntário e consciente agravamento do risco

por parte do segurado e, mais ainda, que esta conduta foi a causa determinante do sinistro”.22

19 “O legislador deu ênfase à intencionalidade do agravamento do risco, de onde se depreende que, na falta

desse elemento de vontade, sobrevive o espírito do artigo 1.453 do Código Civil”. In: CASES, José Maria

Trepat. Comentários ao Código Civil. Vol. VIII. Coord. Álvaro Vilaça de Azevedo. São Paulo: Atlas, 2003. p.

240. 20 BEVILACQUA, Clóvis. Código Civil Comentado. Volume V, p. 215. 21 DELGADO, José Augusto, op. cit., p. 247. 22 TJ/PR, 9ª Câmara Cível, AC nº 651148-6, Relator Des. Francisco Luiz Macedo Junior, julgado em

29.04.2010.

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O risco apto a sustentar extinção do dever de prestação do capital por parte

da seguradora é aquele gerado de forma preordenada pelo segurado para o fim de

desencadear o pagamento da prestação devida. Não se caracterizando a intencionalidade, a

partir desse baldrame interpretativo pautado no nexo causal entre conduta de agravamento

de risco e obtenção do pagamento do capital contratado, o dever da seguradora se mantém

hígido e íntegro.

Deve, consequentemente, ser restritiva a interpretação deste artigo que

apenas pode ser levado a efeitos práticos quando da existência de prova cabal que demonstre

vontade preordenada do segurado em dolosamente obter o pagamento da seguradora.

Eis o sentido que se pode atribuir à culpa grave ou ao dolo do segurado:

não se trata de culpa grave ou de dolo direcionados à conduta em si, mas ao resultado dessa

conduta frente ao contrato celebrado. Vale dizer: não se afere culpa ou dolo do segurado

com base na vinculação do seu elemento subjetivo ao resultado material do ato por ele

praticado, como fato da vida, mas, sim, no liame entre esse resultado e eventual intenção de

impor à seguradora o pagamento do capital contratado.

O liame entre conduta e resultado, na apreciação da existência ou não de

dolo ou culpa grave, está pautado no resultado jurídico, qual seja, o desencadeamento do

dever de prestação da seguradora. Se na prática da conduta pelo segurado, seja ela voluntária

ou acidental, não há a intenção dirigida ao resultado jurídico pertinente à obtenção, para si

ou para outrem, da indenização ou do capital a ser pago, não se apresenta hipótese apta a

desobrigar a seguradora do seu dever contratual.

A jurisprudência majoritária aponta a necessidade dessa ligação entre o

agravamento do risco, intencionalmente, e voltado à percepção do valor pago pela

seguradora. Eis o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, naquilo que é relevante para

o caso em tela:

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO. OFENSA AO ART. 535 DO

CPC. INEXISTÊNCIA. SEGURO. MORTE. SUICÍDIO NÃO

PREMEDITADO. ACIDENTE PESSOAL. SÚMULA 83/STJ.

INCIDÊNCIA. PRECEDENTES. I. Os embargos declaratórios, ainda que

opostos com a intenção de prequestionamento, devem ater-se às hipóteses

de cabimento do art. 535 do CPC. II. Esta Corte Superior firmou seu

entendimento no sentido de que o suicídio não premeditado encontra-se

abrangido pelo conceito de acidente pessoal, sendo nula, porque abusiva

cláusula excludente da responsabilidade da seguradora, à qual cabe,

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 95

ademais, o ônus de provar eventual premeditação. III. Agravo

desprovido.23

DIREITO CIVIL. CONTRATO DE SEGURO. ACIDENTE PESSOAL.

ESTADO DE EMBRIAGUEZ. FALECIMENTO DO SEGURADO.

RESPONSABILIDADE DA SEGURADORA. IMPOSSIBILIDADE DE

ELISÃO. AGRAVAMENTO DO RISCO NÃO-COMPROVADO.

PROVA DO TEOR ALCÓOLICO E SINISTRO. AUSÊNCIA DE NEXO

DE CAUSALIDADE. CLÁUSULA LIBERATÓRIA DA OBRIGAÇÃO

DE INDENIZAR. ARTS. 1.454 E 1.456 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916.

1. A simples relação entre o estado de embriaguez e a queda fatal, como

única forma razoável de explicar o evento, não se mostra, por si só,

suficiente para elidir a responsabilidade da seguradora, com a consequente

exoneração de pagamento da indenização prevista no contrato. 2. A

legitimidade de recusa ao pagamento do seguro requer a comprovação de

que houve voluntário e consciente agravamento do risco por parte do

segurado, revestindo-se seu ato condição determinante na configuração do

sinistro, para efeito de dar ensejo à perda da cobertura securitária,

porquanto não basta a presença de ajuste contratual prevendo que a

embriaguez exclui a cobertura do seguro. 3. Destinando-se o seguro a

cobrir os danos advindos de possíveis acidentes, geralmente oriundos de

atos dos próprios segurados, nos seus normais e corriqueiros afazeres do

dia-a-dia, a prova do teor alcoólico na concentração de sangue não se

mostra suficiente para se situar como nexo de causalidade com o dano

sofrido, notadamente por não exercer influência o álcool com idêntico grau

de intensidade nos indivíduos. 4. A culpa do segurado, para efeito de

caracterizar desrespeito ao contrato, com prevalecimento da cláusula

liberatória da obrigação de indenizar prevista na apólice, exige a plena

demonstração de intencional conduta do segurado para agravar o risco

objeto do contrato, devendo o juiz, na aplicação do art. 1.454 do Código

Civil de 1916, observar critérios de eqüidade, atentando-se para as reais

circunstâncias que envolvem o caso (art. 1.456 do mesmo diploma). 5.

Recurso especial provido.24

O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Paraná já se pronunciou a

respeito deste assunto no sentido de que:

APELAÇÃO CÍVEL - SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS -

PREVISÃO DE INDENIZAÇÃO POR MORTE ACIDENTAL -

HIPÓTESE DE COBERTURA CONFIGURADA - EMBRIAGUEZ E

PORTE DE ARMA DE FOGO - NEXO DE CAUSALIDADE NÃO

COMPROVADO - INCUMBÊNCIA DO RÉU - AGRAVAMENTO DO

RISCO - ATO INTENCIONAL - NÃO COMPROVAÇÃO - DISPARO

ACIDENTAL - INABILIDADE DO SEGURADO - DEVER DE

INDENIZAR RECONHECIDO. 2. CLÁUSULA EXCLUDENTE DO

RISCO - PRÁTICA DE ATO ILÍCITO - NULIDADE RECONHECIDA -

MATÉRIA ABRANGIDA PELO EFEITO DEVOLUTIVO. APELAÇÃO

DESPROVIDA. 1a. A nominação do contrato como sendo de seguro por

acidentes pessoais não afasta o dever de indenizar diante da expressa

23 STJ, Quarta Turma, AgRg no Ag 647568/SC, Relator Ministro Aldir Passarinho Junior, DJ 26.06.2006. 24 STJ, Quarta Turma, REsp 780757/SP, Relator Ministro João Otávio de Noronha, DJ 14.12.2009.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 96

previsão de cobertura de morte acidental. 1b. Constitui ônus da seguradora

a comprovação da existência de nexo de causalidade entre o evento e os

fatores que seriam determinantes para a sua ocorrência. 1c. O estado de

embriaguez e o disparo de arma de fogo, ainda que o porte fosse ilegal, não

configuram hipótese de agravamento intencional do risco, especialmente

quando o disparo decorre de mera inabilidade do segurado no manuseio do

revolver. 2. É nula a cláusula contratual que prevê como excludente de

responsabilidade da seguradora, de forma genérica, a prática de ato ilícito,

pois coloca o consumidor em posição de desvantagem exagerada,

deixando-o ao alvedrio do fornecedor.25

No entendimento sumular do STF, súmula nº 105, a ausência de

premeditação, até mesmo em casos de suposto suicídio, não exclui o dever de pagamento.

Não é outro o entendimento do STJ que pacificou jurisprudência na súmula nº 61 que o

seguro de vida cobre o suicídio não premeditado que deve ser interpretado como morte

acidental26.

A lógica em que se pauta o dever da seguradora em caso de suicídio é a

mesma em que deve se compreender qualquer outra conduta que enseje risco de morte. Com

efeito, se a produção do evento morte pelo próprio segurado, como fato objeto do seguro,

não afasta o dever de prestação do capital contratado se não for preordenado ao percebimento

desse capital, com maior razão deve-se entender que se mantém hígido o dever da seguradora

em outras hipóteses que não a prática voluntária de suicídio.

Mister destacar caso análogo ao narrado na Consulta, relacionado à

intoxicação exógena do segurado, em que a Corte de Justiça do Estado do Paraná fixou este

entendimento sumulado, a saber:

AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO DE SEGURO. MORTE DO

SEGURADO. INTOXICAÇÃO EXÓGENA AGUDA POR COCAÍNA

(OVERDOSE). EQUIPARAÇÃO A SUICÍDIO INVOLUNTÁRIO E

NÃO PREMEDITADO QUE, PARA FINS DE SEGURO, É

ABRANGIDO PELO CONCEITO DE ACIDENTE. MÁ-FÉ DO

SEGURADO. NÃO COMPROVAÇÃO. 1. A morte por overdose de

cocaína equipara-se a suicídio involuntário, ou seja, a vítima não

premeditou sua morte, não desejou o resultado e não tinha intenção

consciente e racional de matar-se. 2. A jurisprudência é pacífica ao

considerar, para fins de seguro, o suicídio involuntário e não premeditado

como acidente. (Súmulas n° 105 do STF e n° 61 do STJ) 3. A má-fé do

segurado traduz-se na omissão de informações que estava obrigado a

prestar. Não tendo sido questionado acerca do uso de drogas, não se pode

25 TJPR, 8ª Câmara Cível, AC 0396020-9, Relator: Juiz Subst. Gil Francisco de Paula Xavier F Guerra, DJ

15.05.2008. 26 Precedentes do STJ nesse sentido: Ag. Inst. nº 1150431/RS; AgRg no RESP nº 1047594/RS; AgReg no Ag

nº 632735/RS; RESP nº 472236/RS et ali.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 97

concluir que agiu de má-fé. RECURSO CONHECIDO E

DESPROVIDO.27

Por todo exposto, diante da melhor interpretação, não há que se falar na

hipótese de agravamento de risco ligada à conduta involuntária e não planejada – e, portanto,

de boa-fé – do segurado, visto que a essência do contrato de seguros é a aleatoriedade.

É a intenção de fraudar o seguro que afasta a responsabilidade da

seguradora. Consoante já demonstrado, as Cortes Jurisdicionais têm unissonante, em prol da

equidade das partes e da defesa do consumidor, sustentado que “para a configuração de

hipótese de exclusão da cobertura securitária, exige-se que o segurado tenha agido

propositada e diretamente de forma a aumentar o risco contratual (colocando-se

deliberadamente frente à morte ou ao risco concreto de morte)”.28

A possibilidade de um risco futuro e incerto para com o segurado,

resultando na morte não voluntária nem premeditada deste, autoprovocada ou não, é o cerne

do contrato de seguro transferido à seguradora mediante o pagamento do prêmio. Exonerá-

la do pagamento, nestas hipóteses, gera descumprimento contratual e desequilíbrio da

relação entabulada.

Ainda, cumpre registrar que eventual cláusula de exclusão da cobertura

contida no contrato de seguro per se não possuí o condão de afastar o dever de pagamento

da seguradora haja vista que seus contornos estão juridicamente vinculados pelo modelo de

adesão na contratação e pela assimetria marcante em sua formação e execução.

Neste influxo, impende registrar o enunciado nº 370, aprovado na 4ª

Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal,29 que afirma que os riscos

avençados, nos contratos de seguro por adesão, devem ser interpretados de acordo com o

princípio da dignidade humana, a função social dos contratos, a boa-fé objetiva e, em

especial consonância, com o artigo 424 do Código Civil que afiança que “nos contratos de

adesão, são nulas as cláusulas que estipulem a renúncia antecipada do aderente a direito

resultante da natureza do negócio”.

É legítimo concluir, à luz do paradigma traçado, que apenas se admite o

não pagamento da indenização, independente da literalidade contratual, nos casos em que

27 TA/PR, 4ª Câmara Cível, Ap. Civ. 0155998-2, Rel. Juiz Fernando Wolf Bodziak, Julg. 11.12.2002. 28 TA-PR, 10ª Câmara Cível, AC 0214875-0, Relator Des. Lauri Caetano da Silva, D.J. 12.09.2003. No mesmo

sentido os precedentes: AC 0426882-0; 0281770-9; 0393482-7; 0311081-8 et ali. 29 A literalidade do enunciado afiança: “Nos contratos de seguro por adesão, os riscos predeterminados

indicados no artigo 757, parte final, devem ser interpretados de acordo com os artigos 421, 422, 424, 759 e 799

do Código Civil e 1º, inc. III da Constituição Federal”.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 98

for constatada claramente a premeditação juntamente com a má-fé do segurado. Tais

situações nem sempre são fáceis de serem provadas e trazem a lume importante questão

atinente ao ônus probatório nas relações de consumo, consoante considerações que seguem.

7. Da prova e do ônus probatório da intencionalidade de agravamento do risco

Examinada a questão atinente ao sentido da intencionalidade do

agravamento do risco, impende analisar o tema pertinente à prova do que se pode denominar

de agravamento intencional, de modo a aferir se no caso concreto há ou não demonstração

de fato hábil a eximir as seguradoras do pagamento do capital contratado.

Cabe, porém, preliminarmente, examinar com a devida atenção em que

consiste o thema probandum derivado da distribuição do ônus probatório entre as partes.

Com efeito, antes de se analisar a prova a respeito da intencionalidade do

agravamento do risco, impende aferir a quem cabe a produção dessa prova.

Trata-se de investigação que vai além da qualificação desse tema como

objeto de prova, mas, sobretudo, a quem caberia produzir prova sobre a existência ou

inexistência do fato apontado pela seguradora como supostamente apto a eximi-la do dever

de pagamento do valor da apólice.

A matéria atinente à prova do fato jurídico transita entre o direito material

e o direito processual, uma vez que diz respeito ao emprego dos meios legal e moralmente

admissíveis para o convencimento do magistrado sobre afirmações de fatos formuladas pela

parte, as quais, a seu turno, dizem respeito aos fatos que servem de suporte à formação da

relação jurídica.

É do convencimento ou não do magistrado sobre as afirmações de fato

formuladas pela parte que pode defluir a conclusão sobre a quem assistem ou não direitos

ou atribuem-se deveres – dependendo, por evidente, da eficácia da norma que incide sobre

os fatos.

A inserção da questão da prova na seara processual a vincula

inexoravelmente às alegações formuladas pelas partes como causas de pedir ou defesas

pautadas no direito material. Trata-se, aqui, menos de prova do fato propriamente dito, mas,

sim, prova sobre alegações de fato, como sustentam Luiz Guilherme Marinoni e Sergio

Arenhart, sendo que são essas alegações que definem qual será o thema decidendum.30

30 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sergio. Curso de Processo Civil: Processo de Conhecimento.

vol. 2. São Paulo: RT, 2008, p. 265.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 99

Tema relevante que emerge da questão atinente da prova é aquele

pertinente à distribuição, no âmbito do processo, do ônus de sua produção.

Aquele que a quem cabe formular a afirmação de fato como causa de pedir

ou como defesa é aquele que, em regra, tem o ônus de provar a veracidade da afirmação.

Ônus, como se sabe, não se confunde com obrigação: quem tem o ônus de

provar um fato e não o cumpre não viola dever, mas arca com as conseqüências negativas

do descumprimento: no caso, a impossibilidade de se tomar por verdadeira uma afirmação

de fato realizada pela parte que não se desincumbiu de seu ônus probatório.

A lógica da distribuição desse ônus é, portanto, a mesma que define aquilo

que é matéria de alegação quando da dedução da pretensão e aquilo que integra a defesa a

ser formulada pelo réu.

Tem-se, nessa toada, a incidência do artigo 333 do Código de Processo

Civil, que dispõe:

Art. 333 - O ônus da prova incumbe:

I - ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito;

II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo

do direito do autor.

Emerge da norma em comento que cabe ao autor fazer prova do fato

constitutivo do seu direito, e ao réu fazer prova de fato modificativo ou extintivo desse

mesmo direito. Ou, na lógica antes explicitada, cabe ao autor provar suas afirmações acerca

dos fatos constitutivos do seu direito, e ao réu, as afirmações sobre fatos modificativos ou

desconstitutivos.

Coloca-se em pauta, a partir dessa premissa, a questão concreta pertinente

à Consulta formulada, em que ocorreu o fato morte do segurado com negativa de pagamento

do capital contratado por parte da seguradora, sob a alegação de agravamento do risco

segurado.

Trata-se de investigar se a exceção oposta extrajudicialmente pela

seguradora para negar-se ao pagamento do valor contratado seria ou não bastante para impor

à parte autora em eventual demanda (vale dizer, a quem ocupar a posição de beneficiário do

seguro de vida) um recrudescimento do seu ônus probatório, por meio da imposição ao pólo

ativo do ônus de provar a ausência de agravamento intencional do risco.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 100

A resposta a essa questão é, à luz da adequada distribuição do onus

probandi, necessariamente negativa. Ou seja: não cabe ao beneficiário de seguro de vida

provar que o segurado não agravou intencionalmente o risco.

A alegação de agravamento intencional é matéria integrante do jus

defensionis atribuído à seguradora, e que pode ser apresentado como exceção de direito

material no âmbito do processo em que se venha a exigir o pagamento do capital contratado.

É o que explicam Marinoni e Arenhart:

Não há racionalidade em exigir que alguém que afirma um direito deva ser

obrigado a se referir a fatos que impedem o seu reconhecimento pelo juiz.

Isso deve ser feito por aquele que pretende que o direito não seja

reconhecido, isto é, pelo réu.31

O fato de a alegação ter sido levada a efeito como fundamento da negativa

de pagamento do seguro, em âmbito extrajudicial, não a desnatura como exceção a ser

apresentada e provada na seara processual. Em outras palavras: a alegação, por parte da

seguradora, de agravamento intencional do risco por parte do segurado, não impõe ao

beneficiário do seguro de vida o ônus de provar o fato negativo da não ocorrência desse

agravamento intencional do risco.

O ônus probatório que se impõe à parte autora de uma demanda que vise

ao recebimento do seguro de vida se restringe à demonstração (a) da existência do contrato

de seguro de vida; (b) da ocorrência do evento segurado; (c) da condição de beneficiário do

seguro de vida.

A articulação lógico-temporal do nascimento do direito e do exercício da

pretensão dele derivada é útil à compreensão do tema probandum integrante do ônus

atribuído à parte autora, a saber:

- Ocorrido o evento segurado (morte) nasce o direito subjetivo de o

beneficiário obter o pagamento do valor contratualmente previsto;

- Requerido o pagamento desse capital contratado, caso venha a ocorrer a

negativa por parte da seguradora, restará caracterizada a violação do direito subjetivo, com

a caracterização da pretensão a ser deduzida em juízo;

- Deduzida em juízo a pretensão, cabe à parte autora fazer prova do fato

constitutivo do seu direito, que consiste no evento segurado mediante contrato, bem como

sua condição de beneficiário;

31 Ibidem, p. 266.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 101

- Caso a seguradora entenda que o valor contratado não é devido, deve

fazer prova de fato extintivo do direito afirmado e provado pela parte autora, valendo-se da

defesa que entender cabível – e que pode consistir na exceção oposta extrajudicialmente

como justificativa para o não pagamento da indenização.

Tem-se, aqui, conclusão que deflui da correta aplicação do inciso II do

artigo 333 do CPC, a prova da ausência de agravamento intencional do risco não integra o

fato constitutivo do direito do beneficiário do seguro, mas, ao contrário, a prova da eventual

existência do agravamento intencional é precisamente o que se subsume à dicção da norma

processual quando se refere a fato extintivo do direito do autor.

Trata-se de entendimento respaldado pela jurisprudência:

SEGURO DE VIDA. MORTE ACIDENTAL. CARACTERIZAÇÃO.

AUSÊNCIA DE AGRAVAMENTO DO RISCO PELO SEGURADO.

EMBARGOS DESACOLHIDOS NESSE PONTO. APELAÇÃO NÃO

PROVIDA. É da companhia seguradora o ônus de provar o agravamento

do risco pelo segurado, por se constituir o comportamento incorreto do co-

contratante fato extintivo do direito à indenização ou ao capital segurado.

Apelação não provida.32

APELAÇÃO CÍVEL - EMBARGOS À EXECUÇÃO DE TÍTULO

EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL - SEGURO DE VIDA EM GRUPO -

ADICIONAL POR MORTE ACIDENTAL - MORTE DO SEGURADO -

ACIDENTE DE TRÂNSITO - ALEGAÇÃO DE AGRAVAMENTO DO

RISCO, DEVIDO À EMBRIAGUEZ DO SEGURADO -

CIRCUNSTÂNCIA QUE, POR SI SÓ, NÃO ENSEJA EXCLUSÃO DA

RESPONSABILIDADE DA SEGURADORA, PREVISTA NO

CONTRATO - PRECEDENTES DO STJ E DESSA CORTE - NEXO DE

CAUSALIDADE ENTRE A EMBRIAGUEZ DO SEGURADO E O

ACIDENTE NÃO COMPROVADO - ÔNUS DA PROVA QUE

INCUMBIA À SEGURADORA - REFORMA DA SENTENÇA QUE SE

IMPÕE RECURSO PROVIDO.33

Reforça esse entendimento a relação entre boa-fé subjetiva e boa-fé

objetiva que se pode identificar no âmbito dos contratos de seguro.

A boa-fé subjetiva deverá presumir-se nos contratos de seguro de vida, até

que consiga se provar o oposto.

Vale dizer: não se presume má-fé do segurado, cabendo à seguradora, se

entender que esta estaria presente, dela fazer a prova cabível.

32 TJPR, 10ª Câmara Cível, AC 0612049-0, Rel. Juiz Albino Jacomel Guerios, DJ 11.03.2010. 33 TJPR, 9ª Câmara Cível, AC 0590916-0, Rel. Des. José Augusto Gomes Aniceto, DJ 10.12.2009.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 102

Para além da boa-fé subjetiva (pertinente ao estado de boa-fé), há, como

se sabe, a boa-fé dever, ou boa-fé princípio, que se impõe a ambos os contratantes tanto no

momento de celebração do contrato, quanto no momento em que ocorrer – se vier a acontecer

– o sinistro. À luz do art. 765, do código civil vigente, temos o exposto que: “o segurado e o

segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita

boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele

concernentes”.

Há, aqui, o encontro entre o proceder conforme a boa-fé objetiva e o estado

de boa-fé subjetiva: do dever de agir conforme a boa-fé emergem tanto a presunção de boa-

fé (subjetiva) do segurado como a exigibilidade frente à seguradora de condutas que atendam

aos deveres laterais decorrentes do princípio.

A repercussão da presunção de boa-fé para a matéria em comento é

evidente: o ônus de provar eventual ausência de boa-fé cabe a quem afirma a má-fé.

Se para eximir do dever de indenizar a seguradora tem de demonstrar má-

fé por parte do segurado na realização do risco segurado, é evidente que a ela cabe o ônus

probatório respectivo.

Releva atentar para o fato de que, se fosse necessária para fazer prova dos

fatos constitutivos do direito do autor, seria viável a inversão do ônus da prova, haja vista

tratar-se de relação de consumo.

Demonstrada a verossimilhança das alegações ou, alternativamente, a

hipossuficiência do consumidor, cabível é a inversão do onus probandi¸ de modo a tomarem-

se como presumidos os fatos que constituem o direito do autor (com base na afirmação de

fato por ele formulada), impondo-se ao réu (fornecedor) o ônus de desconstituir a presunção

de veracidade dessa afirmação de fato.

Respaldando esse entendimento, Rizzatto Nunes explana a respeito desta

inversão do ônus da prova em face do fornecedor:

A possibilidade de inversão do ônus da prova está prevista no inciso VIII

do art. 6º do CDC. Ela é norma adjetiva que se espalha por todas as

situações em que, eventualmente, o consumidor tenha que produzir alguma

prova. Logo, respondendo à questão: é ao consumidor a quem incumbe a

realização da prova do dano, do nexo de causalidade entre o dano e o

serviço, com a indicação do responsável pela prestação do serviço.

Contudo, o ônus de produzir essa prova pode ser invertido nas hipóteses

do inciso VIII do art. 6º. Concluída pelo consumidor essa fase da prova do

dano, do nexo de causalidade entre o dano sofrido e o serviço prestado,

com a indicação do responsável pela prestação de serviço, deve este último

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 103

pura e simplesmente pagar o valor da indenização que for apurada, sem

praticamente possibilidade de defesa.34

Conforme já se demonstrou, todavia, a correta aplicação da distribuição do

onus probandi levada a efeito pelo Código de Processo Civil já seria bastante, por si só, para

atribuir à seguradora o ônus de provar aquilo que reputa fato desconstitutivo do direito dos

beneficiários do seguro.

Mediante o exame da doutrina e de entendimento jurisprudencial, é,

portanto, evidenciado que em casos de alegação de agravamento de risco, para afastar o

dever de prestação do capital contratado, é ônus da seguradora provar a má-fé e

desvinculação dos princípios basilares norteadores do contrato de seguro de vida. Cabe a

quem tiver interesse provar o contrário, de modo a destruir tal presunção. Trata-se, conforme

exposto, de decorrência direta da distribuição do ônus da prova advindo do inciso II do artigo

333 do Código de Processo Civil.

Cabe, assim, identificar os critérios nos quais deve se pautar operador do

direito, mormente o magistrado, no intuito de aferir o atendimento ou não desse ônus

probatório por parte do segurado.

A chave para a compreensão do tema reside na constatação de que a recusa

do pagamento da indenização ou do capital importa na frustração do programa obrigacional

derivado do contrato de seguro. Ou seja, o não pagamento da indenização mesmo diante da

ocorrência do sinistro importa a não realização do telos contratual.

Embora não se afaste a matéria da regra geral atinente à admissibilidade

de qualquer meio de prova moral e legalmente admitido, não se pode olvidar que, a par da

questão atinente à admissibilidade está o tema da apreciação da prova.

Em outras palavras: a prova pode ser admissível, por não ser proibida (ou

por não haver previsão legal de prova específica sobre certo fato ou dada alegação de fato),

mas pode não ser idônea à sua primordial finalidade, que é o convencimento do magistrado

a quem se dirige – matéria que diz respeito, portanto, à apreciação da prova.

A apreciação da prova, em hipótese de afirmação de fato apto a gerar a

frustração do programa obrigacional, não pode conduzir a uma prevalência prima facie do

não atendimento do telos obrigacional. Isso significa que a prova apta a demonstrar a

eventual ausência do direito à indenização ou do capital securitário deve ser robusta, cabal,

não bastando a mera presença de dados indiciários.

34 NUNES, Rizzatto, op cit., p. 314.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 104

A formação do convencimento, não se pode olvidar, pressupõe a prova

prévia a respeito da ocorrência do sinistro e da condição de beneficiário do seguro, da qual

decorre, em princípio, o direito ao capital contratado. Para afastar esse direito, necessário se

faz que se prove cabalmente o agravamento preordenado e de má-fé do risco contratado.

Não basta, nessa toada, que o risco tenha sido elevado por conta de conduta

do segurado: é necessário provar que essa conduta estava dirigida à obtenção do pagamento

do capital pactuado. Não se trata essa intenção de algo que se possa presumir ipso facto de

uma conduta que realize o risco segurado, mesmo que ela seja voluntária (como já se

demonstrou mais acima ao se examinar a questão atinente ao dever das seguradoras mesmo

em hipóteses de suicídio, o que não é o caso presente).

A exigência de prova cabal é reconhecida pela jurisprudência, como se

colhe do pronunciamento abaixo transcrito:

AÇÃO DE COBRANÇA - SEGURO DE ACIDENTES PESSOAIS -

AMPUTAÇÃO DO DEDO POLEGAR ESQUERDO - COBERTURA

CONTRATUAL - INDENIZAÇÃO DEVIDA - APELAÇÃO 01 -

RELAÇÃO TÍPICA DE CONSUMO - INVERSÃO DO ÔNUS DA

PROVA - ALEGAÇÃO DE FRAUDE E AGRAVAMENTO DE RISCO

POR PARTE DO AUTOR - AUSÊNCIA DE PROVA CABAL -

RECURSO DESPROVIDO - APELAÇÃO 2 - PREVISÃO

CONTRATUAL DE INDENIZAÇÃO PELA PERDA 'TOTAL' DO USO

DE UMA DAS MÃOS - PRETENSÃO DE COBERTURA

PROPORCIONAL AO GRAU DE GRAVIDADE - IMPOSSIBILIDADE

- PEDIDO ALTERNATIVO - REALIZAÇÃO DE PERÍCIA -

PRECLUSÃO - RECURSO DESPROVIDO - APELAÇÃO 3 -

COMPENSAÇÃO DE HONORÁRIOS - POSSIBILIDADE - SÚMULA

304, DO STJ E ART. 21, DO CPC - SENTENÇA MANTIDA -

RECURSOS A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. "A seguradora só

pode negar o pagamento da cobertura do seguro com prova inequívoca de

que tenha o segurado agido com culpa grave, dolo ou má-fé" (TJPR - Nona

Câmara Cível- AC nº 358749-5, Rel. Juiz Sergio Luiz Patitucci, j.

16/11/2006). 2. Não há que se falar em cobertura proporcional ao grau de

gravidade, como pretendido, vez que o contrato prevê apenas indenização

pela perda 'total' do uso de uma das mãos. 3. "É defeso à parte discutir no

curso do processo, as questões já decididas, a cujo respeito se operou a

preclusão" (Art. 473 do Código de Processo Civil). 4. Possível a

compensação de honorários de sucumbência, a teor da Súmula 304, do

STJ, e do art. 21, do CPC.35

Assim, a prova da natureza do elemento subjetivo da conduta do segurado

(ou seja, se havia ou não a intenção de realizar o risco segurado para fins de obtenção do

35 TJPR. 8ª C.Cível, AC 0392154-4, Rel. Des. Carvilio da Silveira Filho, DJ 13.11.2008.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 105

pagamento do seguro), e de seu nexo causal frente ao resultado consumado (realização do

risco) integram o thema probandum que pertinente ao ônus atribuído à seguradora.

Em suma: qualquer alegação das seguradoras pertinente à conduta do

segurado que tenha por escopo eximi-las do dever de pagamento do seguro impõe a elas,

inexoravelmente, o ônus de comprovar que a conduta do segurado estava preordenada à

realização do risco segurado, com o manifesto intuito de obtenção do capital contratado em

favor dos beneficiários. Assim, indispensável a comprovação de que a conduta, seja ela

eivada ou não de culpa, foi realizada de má-fé, com a intenção de desencadear o surgimento

do dever por parte da seguradora.

Assentadas essas premissas, cabe, por derradeiro, examinar o material

probatório disponível até o momento em que é exarado este parecer, de modo a aferir se as

afirmações de fato formuladas extrajudicialmente pelas seguradoras para se negarem ao

pagamento do capital contratado encontram ou não respaldo probatório.

8. Das circunstâncias concretas: ausência de prova que corrobore a intencionalidade

de agravamento do risco

Após a análise pertinente à repercussão do direito probatório sobre o

exame da matéria em comento, cabe investigar se, diante da documentação apresentada com

a Consulta, seria ou não sustentável a negativa das seguradoras em pagar o capital contratado

com base em argumento centrado na conduta do segurado.

À luz desse escopo, e considerando que a eventual demonstração das

afirmações das seguradoras se qualifica como prova de fato desconstitutivo do direito ao

capital contratado, principio pelo exame da prova dos fatos constitutivos do direito dos

beneficiários dos seguros.

Com efeito, o que existe até o momento é requerimento formulado junto a

seguradoras visando ao pagamento do capital contratado pelo segurado, com respostas

negativas da seguradora que, sem embargo, em momento algum negam a condição da

beneficiária nem, por evidente, o fato (morte, comprovada por laudo de necropsia e certidão

de óbito) que desencadeia o dever de prestar. Tampouco há controvérsia sobre o pagamento

do prêmio, do que decorre da apreciação da documentação a nós submetida.

O que se observa é que não há controvérsias acerca dos fatos que, abstraída

a exceção formulada extrajudicialmente pelas seguradoras, ensejariam o direito da

beneficiária ao recebimento do capital.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 106

Há, entretanto, como exposto, múltiplas negativas por parte das

seguradoras quanto ao pagamento da prestação contratada, todas elas centradas na

qualificação da conduta do segurado como ilícita e apta a gerar agravamento do risco.

Ocorre que, como exaustivamente exposto, não basta para eximir a

seguradora de seu dever de prestação, a qualificação da conduta como culposa, ou mesmo

ilícita, nem, tampouco, a demonstração de sua aptidão para gerar incremento nos riscos. É

indispensável a prova cabal do elemento subjetivo da conduta do agente, direcionada à

produção do evento que gera o dever de pagamento do capital contratado.

Antecedeu esse exame daquilo que integra o ônus probatório da

seguradora a constatação, já afirmada em passagens anteriores deste parecer, de que a

conduta do segurado somente pode ser apta a afastar o dever de prestar da seguradora se for

intencionalmente dirigida à produção do evento que enseja o pagamento do seguro. Se não

houver esse liame causal como marca inafastável da intencionalidade, pouco importa a

qualificação que se dê à conduta, se foi culposa ou não, lícita ou ilícita, apta ou não a agravar

os riscos.

O que é determinante para a exclusão do dever de pagar o capital é a

intenção preordenada e de má-fé de encetar a realização do evento que desencadeia o dever

por parte da seguradora. Se essa intenção preordenada não estiver provada, o capital deverá

ser pago aos beneficiários.

Assim, passando ao exame da prova dos fatos extintivos do direito dos

beneficiários, tem-se óbice preliminar: as alegações das seguradoras se restringem ao

agravamento do risco, sem, todavia, qualificá-lo como agravamento intencional, ao menos

nos termos aqui explicitados. Vale dizer, todas as negativas se limitam a afirmar que a morte

decorreu do uso de substância ilícita o que teria agravado o risco de morte.

Não há nas negativas, porém, sequer a afirmação de que teria havido a

intenção de gerar a morte para o fim de obter o pagamento do capital contratado ou, mesmo,

o intuito consciente de agravar esse risco de morte.

Vale dizer: eventual prova sobre o que se alega nas negativas de

pagamento, nos termos estritos ali explicitados, não tem o condão de afastar o dever de

indenizar, pela ausência de prova cabal da intenção maliciosa, da preordenação da conduta

do segurado que se tem por necessária ao afastamento do dever da seguradora.

Para atender ao escopo deste parecer, todavia, é necessário investigar se

haveria na documentação apresentada, mormente o inquérito policial, algum meio de prova

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 107

a respeito de preordenação ou de má-fé por parte do segurado que pudesse qualificar a

intencionalidade nos termos aqui expostos.

O que se observa dos depoimentos tomados pelas autoridades de W, e que

constam do inquérito policial, inexiste qualquer espécie de indício de que o consumo da

substância cujos efeitos adversos conduziram à morte tenha se dado com o fim de produzir

a morte nem, tampouco, para a obtenção de pagamento do capital contratado.

As narrativas convergem para a utilização episódica da substância que

conduziu à morte, sem estar caracterizado histórico de abuso de drogas – conforme deflui

do laudo de necropsia. Não houve, portanto, violação de dever de informação por parte do

segurado a respeito desse tema.

Ausentes, pois, até mesmo indícios de intencionalidade dirigida seja à

morte seja à obtenção do pagamento do seguro à beneficiária. À luz do inquérito policial,

por conseguinte, não há elementos aptos a sustentar a recusa no pagamento do capital

contratado.

Cabe enfatizar, por oportuno, que tampouco a pluralidade de contratos de

seguro teria qualquer aptidão para, sequer, qualificar-se como indício de intencionalidade.

A existência de múltiplos seguros no caso concreto não tem o condão de per se comprovar

intencionalidade ou preordenação de agravamento do risco para percepção da garantia.

A esse respeito apregoa Orlando Gomes: “a vida do segurado pode ser

objeto de seguro quantas vezes aprouver”.36 Assim, também quanto a esse aspecto não há

qualquer demonstração, nem mesmo indiciária, de intencionalidade dirigida à obtenção do

capital em favor dos beneficiários.

De tudo o que se pôde examinar, tem-se que o dever de pagamento do

capital contratado não é elidido pelo material fático-probatório submetido a este parecer.

9. Resposta aos quesitos apresentados

(i) À luz dos fatos, como deve ser a aplicação do artigo 768 do Código Civil ao presente

caso?

Resposta: A adequada aplicação do dispositivo legal em comento importa afirmar que não é

qualquer majoração do risco que enseja a exclusão do dever de pagamento pela seguradora,

mas apenas aquela voltada à percepção da prestação do capital contratado. Ainda, apenas

36 GOMES, Orlando, op. cit., p. 512.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 108

pode ser levado a efeitos práticos o presente dispositivo quando existir prova cabal que

demonstre vontade preordenada do segurado em dolosamente obter o pagamento da

seguradora.

(ii) O que configura o “agravamento do risco” elencado no artigo 768 do Código Civil?

Resposta: A fim de configurar o agravamento do risco previsto no artigo 768 do Código

Civil é necessário que o ato de majoração praticado pelo segurado seja fruto de sua vontade

consciente, sem nenhuma coerção exógena, predeterminada à obtenção da finalidade do

pagamento pela seguradora. Imperativo ressaltar que deve de haver liame que oriente o

intencional agravamento do risco à percepção do pagamento atinente ao contrato de seguro

pactuado.

(iii) A quem cabe o ônus probatório da intencionalidade do segurado dirigida ao

agravamento do risco e que prova é apta para atender a esse ônus?

Resposta: À luz da distribuição do ônus probatório à luz do artigo 333 do Código de Processo

Civil, corroborado pelas regras a respeito do direito probatório nas relações de consumo, à

seguradora cabe produzir essa prova. A prova apta a comprovar agravamento de risco seria

a prova cabal a respeito de conduta do segurado dirigida especificamente a esse

agravamento, não bastando, para tanto, meros indícios ou circunstâncias indicativas.

(iv) No presente caso, pode-se dizer que há prova que sustente a alegação do

agravamento do risco por parte do Sr. X, consoante narram as respostas negativas de

pagamento das seguradoras?

Resposta: Do rol documental apresentado a este subscritor, composto pelo inquérito policial

pertinente às investigações sobre a morte de X e pelas negativas de pagamento do capital

pelas seguradoras contratadas, depreende-se não haver meio de prova hábil a sustentar a

posição das seguradoras em negar-se ao pagamento do valor contratado, haja vista inexistir

prova cabal de agravamento intencional nem, tampouco, indícios de que tal intencionalidade

estaria presente, nos termos expostos neste parecer.

É o Parecer.

Professor Doutor Luiz Edson Fachin, Titular da Faculdade de Direito da UFPR.

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O CONTRATO EPC E O PRINCÍPIO DO EQUILÍBRIO ECONÔMICO

Título em inglês? The EPC contract and the Economical Balance Principle

Luiz Gastão Paes de Barros Leães Professor Titular de Direito Comercial da Universidade de São Paulo; Visiting Scholar

in residence na Columbia University Law School New York, (1973-1974).

PARECER

I. OS FATOS

1/1. A Consulente - E (“E”) - é uma empresa brasileira, cujas sócias fazem

parte do grupo E, com atuação em diversos países, nas áreas de energia, engenharia,

transporte, logística e serviços. Por sua vez, A (“A”) - a outra protagonista da controvérsia

objeto do presente parecer - é uma sociedade de propósito específico (SPE), criada com a

finalidade de construir e explorar uma usina termoelétrica em Camaçari, Bahia, contando

inicialmente, com os seguintes acionistas: “C S/A”, com 50% das ações; “P S/A”P, com

30%; e “G Ltda.”, com 20%.

1/2. Em abril de 2011, a Agência Nacional de Energia Elétrica

(“ANEEL”) expediu Portaria, autorizando a A a estabelecer-se como produtora

independente de energia elétrica, prevendo um cronograma de implantação que permitiria

que as obras da usina se iniciassem, no máximo, “até 7 de janeiro de 2012”, e que esta

pudesse entrar em operação comercial “em janeiro de 2013”.

1/3. Antes dessa Portaria, já em janeiro de 2011, as empresas C e P se

movimentaram, dando início ao processo de “chamada de propostas” para a cotação de

preços, incluindo o fornecimento de moto-geradores e transformadores de potência, com

vista à construção, não de uma, mas de duas usinas termoelétricas, tomando por base o

detalhamento técnico preparado pela empresa XY Projetos. Naquela oportunidade, o termo

de referência previa que os motores seriam fornecidos pelas empresas M&M Diesel ou

W&T, razão pela qual tais empresas assumiram a iniciativa das negociações, alinhando-se

com a TT Engenharia S/A (“TT”) e com a E para atenderem ao restante dos serviços.

1/4. Depois de meses de negociação, E e W&T apresentaram uma proposta

conjunta, que seria a seguir alterada, em julho de 2011, com o fim de rever os prazos de

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 110

entrega dos motores, incluindo a tancagem de combustível. Nessa ocasião, E foi informada

de que a proposta da TT teria triunfado. Tal informação seria, porém, logo no mês seguinte,

retificada, quando a E foi instada pela P a apresentar nova proposta, desta feita com motores

H, que seriam adquiridos diretamente pela A da H Co. Ltd. Convite idêntico foi estendido à

TT.

1/5. Também nesse caso a proposta apresentada pela TT, com a inclusão

dos motogeradores HH e transformadores de potência DEU, estava a indicar que, de novo,

se sagraria vencedora do certame, visto que o preço ofertado para a construção da referida

usina, excluído o fornecimento dos motores, girava em torno de R$ 73 milhões, abaixo da

cifra proposta pela E (R$ 75 milhões). Nessa altura, a TT começou a apresentar sinais de

debilidade financeira que a levaria, posteriormente, a requerer recuperação judicial. Diante

desse quadro, C e P convocaram E, quando lhe transmitiram o interesse em consagrá-la

vencedora do certame licitatório, desde que procurasse se avizinhar do patamar estabelecido

na proposta da TT.

1/6. Na realidade, E já fora anteriormente contratada para implantar duas

outras usinas na região nordeste, e, agora, a P se mostrava categórica em sua convocação

para a assunção das obras de Camaçari, sinalizando que eventual recusa por parte da E em

assumir os serviços, em termos aproximados aos da proposta da TT, poderia ser interpretada

como falta de cooperação em momento delicado, eis que a construção de Camaçari, segundo

a portaria da ANEEL, deveria iniciar-se em 7 de janeiro de 2012. Ademais, considerando o

peso da P em termos de Brasil, a reticência poderia colocar em risco a continuidade dos

serviços que a E vinha prestando, e almejava continuar a prestar, àquela empresa.

1/7. Nesse cenário, a convocação da P consubstanciava “fato necessário”

que compelia a E à aceitação do negócio, tanto mais que entre elas tinha havido,

paralelamente, consenso no sentido de que – dada a premência do tempo para reformulação

do orçamento – ambas as partes se dispunham a implementar os ajustes que se revelassem

indispensáveis para a execução do contratado. Nesse contexto, os entendimentos travados

com a P foram reduzidos a um documento escrito intitulado “termo de compromisso”,

quando, além da exigência de que fossem observados os mesmos prazos e condições

pactuados anteriormente com a TT, foi previsto um limite de preço da obra superior ao

oferecido por esta empresa, no valor de R$ 75.000.000,00.

1/8. Em 2 de outubro de 2011, a A “formalizou” a licitação privada e

promoveu a publicação de edital de chamada de propostas para construção da Usina

Termoelétrica, cerca de pouco mais de dois meses antes da data prevista para o início das

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 111

obras, em 7 de janeiro de 2012. Em observância às condições do termo de compromisso, E

apresentou a sua proposta formal, que inicialmente não incluía serviços de terraplanagem,

mas que, ao depois, em nova redação, os incluiria, com acréscimo do valor do preço

combinado (de R$ 75 milhões para R$ 80.000.000,00). No final de outubro, as partes deram

início às tratativas finais para a contratação, que se prolongaram até o segundo mês de 2012

(quatro meses, portanto). Nessa altura, dado o exíguo prazo para a entrega da obra, a A se

antecipou, iniciando em dezembro de 2011 a disponibilização de recursos financeiros (cerca

de 20% do valor do Contrato, em duas parcelas, segundo consta da cláusula 6.2(1) do

Contrato) para que a E pudesse de imediato se condicionar para dar início às obras, antes

mesmo da assinatura do instrumento contratual.

1/9. Somente em 15 de fevereiro de 2012, foi celebrado o “Contrato de

Engenharia, Suprimentos e Construção”, tendo por objeto a execução, em regime de

empreitada total por preço global (“turn key”), no valor de R$ 80.000.000,00, de todos os

serviços que se fizessem necessários para que a A recebesse a usina na data aprazada, ou

seja, em 30 de novembro de 2012, devidamente testada, comissionada e apta a iniciar a sua

operação comercial (“Contrato”).

1/10. Mal firmado o Contrato, logo a E se deu conta de que havia sido

induzida em erro sobre as reais circunstâncias que constituiriam a “base do negócio” a que

se vinculara, pois, por injunção da A, viu-se envolvida com a introdução de alteração no

arranjo geral conceitual do empreendimento, para acolher a adequação do lay-out às

estruturas que comporiam a futura usina, como postulado pela A. Não bastasse isso, esta

ainda determinou a modificação das condições do acesso principal de caminhões e a

construção de ligação do pólo-plástico ao site da futura usina, com acréscimo de serviços de

terraplenagem, drenagem e pavimentação. Ora, como é curial, a alteração no lay-out da

usina, com tais ampliações, implicava modificação substancial de todo o empreendimento,

comprometendo, por consequência, a base sobre a qual fora o negócio pactuado. Com efeito,

a alteração no design da planta resultou em diferentes platôs, com declives acentuados,

impactando tanto o tempo para a execução das obras de formação dos taludes, quanto os

custos das mesmas, majorados com o significativo acréscimo de serviços e materiais.

1/11. A esses fatos, somou-se o atraso por mais de um mês por parte da A

na obtenção das licenças ambientais, municipais e estaduais, necessárias aos serviços de

terraplenagem, pois, para que as obras se iniciassem em 7 de janeiro de 2012, fazia-se mister

que tais licenças fossem obtidas até essa data. Foi necessário, ainda, implementar soluções

técnicas para contenção de deslizamentos e erosões dos taludes, sem falar que se mostrou

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 112

imperiosa a aquisição de terra mais consistente para essas obras, proveniente de regiões

afastadas.

1/12. Definidas tais alterações no arranjo geral conceitual, a E foi ainda

surpreendida, no período de março a julho de 2012, com chuvas torrenciais imprevisíveis,

provocando grande incidência de deslizamentos durante a movimentação de terra. Nessa

altura, as partes decidiram contratar a SSSS Gerenciamento (“SS”) para acompanhar a

evolução da obra, realizando essa empresa a revisão de todos os trabalhos efetuados e

implantando nova forma de medição dos serviços; alteração esta que, além de retardar

também a obra, não foi formalizada em Aditivo. Isso não bastasse, verificou-se, nesse

período, aumento abrupto e imprevisível nos preços dos insumos (aço, concreto, cobre),

comprometendo profundamente o “equilíbrio econômico-financeiro do Contrato”. Tal

desequilíbrio tornou o cumprimento das obrigações “excessivamente oneroso” para a E.

Acresce ainda o fato de que a Hyundai igualmente atrasou na entrega dos equipamentos,

afetando o curso das obras.

1/13. A vista disso, a E, em 27 de agosto de 2012, cinco meses da

assinatura do Contrato, encaminhou à A a Proposta Técnica nº 000.001, com o objetivo de

promover a adequação do preço contratual, em valores calculados até aquele mês de

referência. Após a apresentação de mais duas versões da referida proposta, a A sinalizou que

concordaria em parte com os aspectos financeiros, os quais deveriam ser ajustados. Em

função disso e à luz do agravamento das circunstâncias, E formulou a a Proposta Técnica nº

000.003, em 3 de outubro de 2012, a qual não apenas reiterou os termos da proposta anterior,

mas também ressaltou as medidas necessárias para se buscar a recuperação dos atrasos

naquela altura.

1/14. Em reunião realizada em 9 de outubro de 2012, A acatou apenas

parcialmente o pleito financeiro de E, o que ficou registrado em ata que passou a ser

denominada “aditivo contratual”, através do qual pactuou um acréscimo no preço do

Contrato da ordem de R$ 25.000,000,00, majorando o valor contratado de R$ 80.000.000,00

para R$ 105.000.000,00 (“Aditivo”). O ajuste foi definido em reunião da qual participou

apenas um representante da E e, na ocasião, fez-se constar que dependeria da aprovação de

E até 13 de outubro de 2012. Esse fato importava, inegavelmente, por si só, no

reconhecimento cabal por parte da A de que erros e motivos imprevisíveis haviam tornado

a obra “excessivamente onerosa” para a E, justificando-se, por conseguinte, a sua

“correção”, que, infelizmente, não restou de todo materializada com essa majoração, como

logo se verificaria.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 113

1/15. Advirta-se que, no segundo semestre de 2012, quadra em que esses

eventos se desenrolavam, o aumento dos insumos persistia em níveis ainda mais

desnorteantes, em razão da crise econômica que assolava a economia mundial. Em meio a

essa conjuntura, eis que A solicitou a alteração da capacidade dos tanques de combustível

de 900m3 para 1.100m3, o que atrasaria ainda mais a construção da usina, demandando

acréscimo de mão-de-obra para cumprimento do prazo do Contrato a fim de atender a essa

nova modificação de escopo. Durante essa etapa, entre outubro e novembro de 2012, a E se

viu também na contingência de enfrentar movimentos grevistas, que, se não constituem, em

si, fatos imprevisíveis numa construção, assumiram, na ocasião, magnitude que fugia da

normalidade. Todos esses eventos foram acompanhados pela A através da presença do

“engenheiro do proprietário”.

1/16. Em dezembro de 2012, A e E acordaram que, não obstante os

percalços, o empreendimento teria condições de ser concluído, no cenário mais pessimista,

até março de 2013, já que mais de 80% das obras estava concluído, sendo necessário, no

entanto, reunir mais recursos adicionais para fazer frente à contratação de pessoal para

recuperar os atrasos - a que, de resto, a E, como apontado, não dera causa. Eis que, nesse

momento, foi a E surpreendida com a mudança de comportamento da A, a qual manifestou

a decisão de abandonar a idéia do novo cronograma e iniciar tratativas no sentido de realizar

um distrato amigável, visando a assumir, ela própria, a responsabilidade pela conclusão da

obra por sua conta e risco. Em reunião de 12 de dezembro de 2012, ficou acertado que a

partir dessa data a A assumiria os serviços, cabendo à E colaborar no período de transição.

1/17. Não obstante esse acerto, combinado em 15 de dezembro de 2012,

em meio a uma reunião em que se discutia dita transição, a A enviou notificação à E,

comunicando que considerava “resolvido” o Contrato, por conta de alegado inadimplemento

(atrasos) por parte da empreiteira de suas obrigações contratuais, ao mesmo tempo em que

notificava os diversos fornecedores indicados pela E, informando que havia rescindido o

Contrato e que estava assumindo a obra. Ao mesmo tempo em que participava a muitos

fornecedores que não tinha interesse em continuar contando com a prestação de seus

serviços. Numa conduta contraditória em relação às tratativas que vinha desenvolvendo,

desconsiderava o fato de que, em dezembro de 2012, a E já havia executado por volta de

80% da totalidade do Contrato, como o confirmariam as planilhas de medição da SS,

contratada por ambas as partes. Ademais, em vistoria realizada no local da obra, a pouco

mais de um mês dessa notificação, em 30 de janeiro de 2013, a ANEEL consignaria que a A

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lhe asseverara que “o empreendimento encontrava-se com avanço de aproximadamente

86%”.

1/18. Oito meses depois, em 14 setembro de 2013, a A, em lugar de quitar

os débitos ainda pendentes, enviou notificação à E, reclamando (i) multa diária por atrasos

nos marcos parciais e (ii) multa por atraso na entrada da operação da usina, e (iii) devolução

de valores que teriam sido pagos em excesso e pagamento de custos que defluiriam da

retomada da obra, incorridos até agosto de 2013. Nesse sentido, fez cobrança no valor de R$

98.642.242,95, sendo que R$ 80.643.568,99 a título de custos despendidos com a obra

remanescente realizada após a retirada da E - cifra que excedia o preço original pactuado

para a obra inteira, e só por si, evidenciaria que o Contrato, todo ele, estaria econômica e

financeiramente desequilibrado. Em 24 de setembro de 2013, a E respondeu, apresentando

contra-notificação.

1/19. Diante desse quadro, E resolveu submeter a controvérsia à

arbitragem, para que fosse declarada a improcedência das pretensões da A, arguindo que a

resilição do Contrato não decorreria de qualquer conduta a ela imputável, como alegado,

mas sim de decisão unilateral da A, que, sobre encontrar-se inadimplente em suas obrigações

contratuais, enriqueceu-se indevidamente com o desequilíbrio econômico-financeiro do

referido Contrato. Nesse sentido, fazia-se necessária a revisão do mesmo, restabelecendo

esse equilíbrio, comprometido pela ocorrência de fatos imprevisíveis e de força maior,

reconhecidos pela A e dos quais resultaria um crédito a favor da E.

1/20. Nesse sentido, requereu a E que o tribunal arbitral (i) declarasse a

ilicitude da resolução unilateral do Contrato por parte da A, à míngua de inadimplemento a

ela imputável, assim como das aplicações das penalidades por atrasos de marcos contratuais

suscitadas pela A, em manifesta contrariedade a comportamento anterior; (ii) condenasse a

A ao pagamento de reparação por danos morais no valor mínimo de R$ 1 milhão, em virtude

do aviltamento de sua imagem perante subcontratados e fornecedores; (iii) condenasse a A

ao pagamento de indenização por danos materiais, decorrentes da desmobilização antecipada

da obra, quando já se avizinhava a sua conclusão; (iv) condenasse a A ao pagamento de R$

10.477.189,00, relativos a serviços prestados e ainda não quitados à E, gerando

enriquecimento sem causa em favor da primeira ; (v) recompusesse o equilíbrio econômico-

financeiro do Contrato, condenando a A a reparar a E prejuízos por esta sofridos em

montante não inferior a R$ 21.386.071,35, que derivaria da diferença entre os custos orçados

e os valores realmente despendidos na execução do Contrato; e (vi) condenasse a A a

ressarcir custas, despesas processuais e honorários incorridos processo arbitral.

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1/21. Em sua resposta, a A salientou que a discussão do procedimento

prescindiria da qualificação dos argumentos fáticos e jurídicos aduzidos pela E, na medida

em que o cerne da controvérsia se concentraria, fundamentalmente, na natureza do Contrato

EPC, de sorte que o exame das razões deduzidas para justificar o aumento de preço e o atraso

da usina seria até dispensável. De qualquer forma, aduzia que tais razões não procederiam,

visto que as alegadas alterações no objeto original do Contrato foram expressamente aceitas

pela E por meio do Aditivo, sem que tivesse havido qualquer mudança no que toca ao prazo

de entrega da usina, livremente pactuado.

1/22. Abordando, no entanto, as questões fáticas e jurídicas alinhadas pela

E para esclarecer as circunstâncias em que se deu a celebração do Contrato e explicar os

atrasos ocorridos na conclusão da obra, a A arguiu, inicialmente, que a contratação da E para

a realização da obra da usina não se deu em substituição à da TT, como alega a E, visto que

não teria havido qualquer prévia contratação dessa empresa, mas meras tratativas comerciais

ocorridas anteriormente ao certame em que a E se sagrou vencedora. Por outro lado, o termo

de compromisso que E enviou por e-mail à A, e no qual não haveria a aposição das

assinaturas dos diretores desta última, é de 15.8.2011, data anterior, portanto, e não posterior,

ao processo de concorrência, no qual a E se sagraria vencedora, visto que este só teria sido

formalizado pela diretoria da A em reunião de 24.10.2011, e, dessa forma, não desfrutaria

de qualquer caráter vinculante.

1/23. Rejeita, a seguir, a alegação da E de que teria sido induzida em erro

pela A a respeito das condições básicas do negócio, já que não só foram promovidos

sucessivos encontros prévios entre todos os proponentes do certame e a H, fornecedora dos

equipamentos, como também as necessidades para a implantação da usina teriam sido

desenhadas em conjunto pela fornecedora e pela empreiteira, cabendo sempre aos

proponentes, supostos experts no assunto, detalhar o escopo do empreendimento, motivo

pelo qual não lhes assistiria o direito de suscitar tais questões. De resto, eventuais alterações

no projeto básico são normais, visto que, no referido plano, apenas se estabelecem as linhas

cardeais do empreendimento. Mas mesmo que assim não fosse, as alterações do lay-out

foram previstas no Aditivo e acordadas pelas partes contratantes, (a) com robusta majoração

do preço, e (b) sem que se admitisse outra data para a entrega da usina.

1/24. Ademais, não concorda a A com a alegação de que os serviços de

terraplenagem da nova área de tanques, objeto da negociação dos termos do Aditivo, tenham

comprometido o prazo pactuado para a entrega da usina, ou que tenha havido demora na

obtenção das licenças ambientais, até porque a obtenção dessas licenças era, pelo Contrato,

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da responsabilidade da empreiteira. Também não concorda com a invocação da ocorrência

de chuvas a índices pluviométricos extraordinários e do aumento abrupto nos preços de

insumos, encarados como casos de força maior que justificariam atrasos e alterações no

preço, pois que ainda que tivessem ocorrido tais eventos, houve expressa exclusão dos

mesmos em disposições contratuais na caracterização do fortuito (cláusula 6.4), sendo certo

que a A teria admitido a inclusão desses fatores na alteração de preço operada no Aditivo de

9 de outubro de 2012 por “mera liberalidade”, mantendo-se, porém, inalterado o prazo de

conclusão da obra.

1/25. Não aceita, também, a alegação de que o atraso na entrega de

equipamentos pela H e a alteração na capacidade dos tanques de combustíveis tenham

provocado prejuízos à E, já que, de um lado, a entrega de tais equipamentos teve de ser

postergada em razão de atrasos imputáveis à própria E que não providenciara, a tempo e

hora, espaço onde depositá-los, e, de outro, a alteração da capacidade dos tanques de

combustível fora contemplada no Aditivo, mantendo-se sempre nesse instrumento, repita-

se, inalterado o prazo de entrega da usina. Quanto aos movimentos grevistas, seria sabido

que não consubstanciam fatos imprevisíveis.

1/26. Conclui, por fim, asseverando que, em momento algum, acordou

com qualquer novo cronograma em que se tenha previsto a entrega da usina até março de

2013, registrando apenas, nas reuniões realizadas em dezembro de 2012, que, com base no

que se via nos canteiros, constatara que não seria possível à E entregar a usina no tempo

estipulado, não concebendo outra solução senão a rescisão do Contrato, avocando para si a

responsabilidade pelo término da obra. Rejeita também a alegação de que, quando da

rescisão do Contrato, as obras encontravam-se 86% concluídas, asseverando que o relatório

da SS, invocada pela E para chegar a esse percentual, apresenta graves inconsistências,

sendo que o estágio dos avanços nos marcos contratuais, por ela apontado, não guarda sequer

proporcionalidade com a tabela do mesmo relatório, nem levam em consideração critérios

de pesos adequados.

1/27. Nesse sentido, a A impugna todas as afirmações, pedidos e valores

que compõem as pretensões deduzidas pela E na notificação de instituição de arbitragem,

acima reproduzidas (item 1/20, supra), assim como aduz, em reconvenção, os seguintes

pleitos contrapostos: (i) requer a devolução dos valores pagos à E em razão de não ter sido

concluída a usina conforme obrigada, nas datas pactuadas, tendo esta, no entanto, recebido

a totalidade do valor global originalmente pactuado; (ii) o ressarcimento do quanto foi

necessário empregar para a conclusão dos trabalhos, por força do inadimplemento da E, por

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rescisão por justa causa do Contrato; (iii) a declaração do limite máximo de aplicação da

penalidade por atraso correspondente ao percentual de 20% sobre o valor global do Contrato,

correspondendo ao valor original, mais aditivo; (iv) condenação da E na indenização pelos

danos morais e materiais suportados pela A; (v) condenação da E nos ônus da sucumbência.

1/28. Levando em conta todos os fatos acima sumariados, que nos foram

apresentados pela Consulente e que defluem também de documentação que nos foram

presentes, fomos honrados com uma longa série de indagações que serão respondidas à

medida que forem sendo aqui reproduzidas.

II. OS PRINCÍPIOS

2/1. O cerne da controvérsia reside, segundo a A, na natureza do Contrato

firmado entre E e A. Trata-se de um ajuste complexo do tipo contratual conhecido pelo

acrônimo, em inglês, de EPC (“Engineering, Procurement and Construction Contract”),

consubstanciando um contrato de empreitada global, a preço certo e com data determinada

de conclusão de uma usina térmica, chave-na-mão (“turn-key”), ou seja, entregue em

condições de operar (Contrato, artigo 2).1 Como toda empreitada, trata-se de um contrato

comutativo, quer dizer, um contrato em que as prestações das partes são de antemão

conhecidas e guardam entre si uma relativa equivalência de valores. Nele não se exige

igualdade rigorosa entre as prestações recíprocas, mas é imperioso que aproximadamente se

correspondam. Por outro lado, como ambas as partes, desde o início, sabem a tarefa que será

desenvolvida por uma e quanto a outra irá receber por ela, estabelece a lei que, “salvo

estipulação em contrário”, o empreiteiro, que se incumbir de executar uma obra, segundo

plano aceito por quem a encomendou, “não” terá direito a exigir “acréscimo do preço”

(CC/2002, art. 619). Em princípio, portanto, a empreitada em questão era sem reajustamento.

2/2. Isso não quer dizer que na empreitada, seja qual for o tipo, não haja

sempre uma margem de risco para os contratantes. Projetando os seus efeitos para o futuro,

todas as relações contratuais duradouras ou sucessivas contêm uma “álea”, de impossível

determinação in abstracto, pois todo contrato comporta sempre riscos para as partes, muitos

deles exclusivos da operação concretamente considerada. Como acentua Mário Bessone, “Il

1 José Emílio Nunes Pinto, “O Contrato de EPC para construção de grandes obras de engenharia e o novo

Código Civil”, Revista Jus Vigilantibus, acesso segunda feira, 30 de dezembro de 2002; cf. modelo de Contrato

EPC proposto pela FIDIC (International Federation of Consulting Engineers), http://www.fidic.com.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 118

contratto stesso è um rischio”, posto que o risco é elemento inerente à atividade econômica.2

Mas como é corrente na doutrina italiana, a “álea normal do contrato” - conceito

introduzido pelo art. 1467 [2] do CC/italiano - é prioritariamente determinada pelo contrato

in concreto, fornecendo o tipo negocial apenas elementos circunstanciais para efeito de sua

configuração.3

2/3. Nos contratos de empreitada, mormente naqueles contratos a preço

global e fixo, em que há a aceitação de um plano prévio por parte do dono da obra, o risco

contratual se acentua e se reflete no preço contratual, que, regra geral, é pactuado sem

possibilidade de revisão (CC/2002, art. 619). A formação de um contrato de EPC deve,

portanto, procurar antever tanto os custos quantos os riscos a que empreitada, normalmente,

está sujeita e, consequentemente, otimizar a alocação de ambos no processo de definição

consensual do preço. Mas é curial que essa regra comporta exceções, relativos aos riscos que

extravasam a álea contratual normal, que ocorrem quando dizem respeito a eventos (i) que

sejam comprovadamente alheios à vontade do empreiteiro, de acordo com os princípios de

força maior e caso fortuito (CC/2002, artigos 625, I, c/c artigo 393, § único), ou (ii) que se

enquadrem nas hipóteses de imprevisibilidade e onerosidade excessiva, elevadas a categorias

legais pelos artigos 317 e 478 do CC/2002, inclusive na sua versão aplicada à empreitada

(CC/2002, artigo 625, II).

2/4. Em escólio ao artigo 625, II, do CC/2002, que admite que o

empreiteiro, em empreitada a preço fixo, “suspenda a obra”, quando, no decorrer dos

serviços, se manifestem dificuldades imprevisíveis na execução, Fátima Nancy Andrighi,

Sidnei Beneti e Vera Andrighi observam que essa regra é expressão do princípio do

equilíbrio econômico que deve prevalecer na maior parte dos contratos.4 E Ruy Rosado de

Aguiar Júnior acrescenta em comentário ao mesmo artigo que o dispositivo em referência

permite que o empreiteiro, nas aludidas circunstâncias, suste a obra e possa ir a juízo pleitear

a resolução do contrato, na via autorizada pelo artigo 478 do CC/2002. Ou a revisão das

cláusulas contratuais, já que quem pode o mais, pode o menos.5

2/5. Em suma, seja qual for o tipo de empreitada, com ou sem

reajustamento, é pressuposto que, no curso da execução da obra, deverá ser mantido o

equilibro econômico entre as prestações recíprocas, sem o qual o contrato, de matriz

2 Mario Bessone, Adempimento e rischio contrattuale, Milão, Giuffrè, 1975, p. 4. 3 Agostino Gambino, “Eccessiva onerosità della prestazione e superamento dell’alea normale del contratto”in

Rivista del diritto commerciale, n. 58, p. 448, 1960. 4 Fátima Nancy Andrighi e outros, Comentários ao novo Código Civil, Forense, 2008, v. IX, p. 347. 5 Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Comentários ao novo Código Civil, Forense, 2011, v. VI, p. 324.

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comutativa, se desfigura, convertendo-se em negócio aleatório, com incerteza em relação à

verdadeira extensão das prestações. Pois é no contrato aleatório que a contraprestação tem a

chance de ser desproporcional ao valor da prestação, seja em relação às duas partes, seja

apenas a uma delas (CC/2002, artigo 458 usque 461). Assim, na empreitada sem

reajustamento, vedada a exigência de “acréscimo no preço”, caberia ao empreiteiro uma

álea ilimitada, não fosse sua submissão ao princípio geral do equilíbrio econômico do

contrato, que constitui um dos dogmas nucleares do direito contratual atual.

2/6. Na doutrina clássica, o contrato sempre seria “justo”, na medida em

que, sendo querido pelas partes, resultaria de uma livre apreciação dos respectivos interesses

pelos próprios contratantes, de onde lícito seria presumir o equilíbrio das prestações. Sendo

justo o contrato e presumido o equilíbrio, seguia-se que aos contratantes deveria ser

reconhecida ampla autonomia de vontade, limitada tão-somente por considerações de ordem

pública e pelos bons costumes.

2/7. Em torno dessa “autonomia de vontade”, fixaram-se, então, os três

princípios informativos do direito contratual: (i) o princípio da “liberdade de contratar”,

entendendo-se como tal a aptidão dos contratantes de auto-regulamentar os seus interesses,

estipulando o que lhes aprouver, dentro dos limites da lei: (ii) o princípio da “intangibilidade

do conteúdo”, pelos quais o contrato, uma vez firmado, adquire força de lei entre as partes,

só podendo ser alterado em sua substância por novo encontro de vontades: e (iii) o princípio

da “relatividade do contrato”, segundo o qual os efeitos do mesmo se produzem

exclusivamente entre as partes, não aproveitando, nem prejudicando terceiros.

2/8. A esses três princípios tradicionais, que gravitam em torno do conceito

de autonomia de vontade, foram acrescentados três outros, que, sem os eliminarem, vieram

amoldá-los às novas demandas. Operou-se uma mudança de paradigmas, fazendo emergir

(i) o princípio da “função social” do contrato, (ii) o princípio da “boa-fé objetiva” e (iii) o

princípio do “equilibro econômico” do contrato. O Código Civil de 2002 deu guarida,

explícita ou implicitamente, a esses novos princípios. Explicitamente, no caso da função

social do contrato, através do artigo 421, e da boa-fé objetiva, através do artigo 422,

combinado com os artigos 113 e 187. No que tange ao princípio do equilíbrio econômico do

contrato, embora não tenha sido exteriorizado em um dispositivo individualizado,

manifestou-se como elemento informativo dos institutos do “estado de perigo” (art. 156), da

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“lesão” (art. 157), da “onerosidade excessiva” (art. 478 usq. 480) e do “enriquecimento sem

causa” (art. 884 usq. 886).6

2/9. A autonomia de vontade já tinha, na teoria contratual clássica, como

pressuposto lógico, a “paridade dos contratantes”, visto que só haveria falar em liberdade

de contratar e imprimir força obrigatória ao ajuste quando uma das partes não se visse na

contingência de simplesmente se submeter à vontade exclusiva da outra, pois, caso contrário,

a sua autonomia de vontade seria apenas formal. Para que o contrato fosse livremente

concluído e executado, força seria que o mesmo resultasse de um encontro de vontades, de

partes que se mantivessem dentro de certo nível de paridade, ou seja, providas de iguais

poderes negociais. E é aqui que entra o “princípio do equilíbrio econômico do contrato”.

Esse princípio visa a impedir que as prestações contratuais expressem, seja na sua conclusão

seja na sua execução, um desequilíbrio real e injustificável entre as vantagens obtidas por

um e por outro dos contraentes. Ou, em outras palavras, que se desconsidere o “sinalagma

contratual”, encarado em seu perfil funcional.

2/10. Ora, como se depreende dos fatos narrados, é evidentemente que não

se observou, seja na celebração do Contrato, seja na sua execução, esse equilíbrio funcional

entre A e E, a que se alude. Primeiramente, cumpre recordar que a celebração do Contrato

entre a A e E foi precedida pela tentativa de contratação de outra empresa, a TT, sendo certo

que o processo de substituição “real” da mesma, pela E, consumiu meses, atropelado ainda

pela mudança dos fornecedores dos motores e transformadores da usina. Reduzido, por fim,

o “compromisso” entre as partes a um documento escrito, objeto da correspondência da E

de 15 de agosto de 2011, somente em 2 de outubro de 2011 a A formalizaria a licitação

privada, prevendo o início da obra para 7 de janeiro de 2012. Por seu turno, o Contrato da A

com a E, vencedora do certame, só seria firmado em 15 de fevereiro de 2012, com data

aprazada para a entrega da usina em 30 de novembro de 2012.

2/11. Sendo o prazo de entrega da usina, portanto, extremamente exíguo,

e prevendo a licitação um cronograma com início das obras no máximo em 7 de janeiro de

2012, a A se dispôs a disponibilizar substancial recursos financeiros (20% do preço original)

para que a E desse início imediato às obras, vale dizer, em 15 de dezembro de 2011, mesmo

antes de firmado o Contrato, o que somente ocorreria em 15 de fevereiro de 2012. Ao

acelerar o início das obras antes da formalização do Contrato, a fim de cumprir o

cronograma, adiantando os recursos à empreiteira, lícito é inferir que se firmou entre as

6 Cf. Antônio Junqueira de Azevedo, “Princípios do novo Direito Contratual e Desregulamento do Mercado”,

in Revista dos Tribunais 750/115.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 121

partes um consenso tácito no sentido de que – dada a premência do tempo para a formulação

do orçamento e para a realocação dos riscos de acordo com o prazo exíguo – ambas se

dispunham a implementar todos os ajustes que se fizessem necessários para a execução em

tempo das obras contratadas.

2/12. Tanto é verdade que, logo que apareceram os primeiros sinais de que

a falta de reexame da avença afetaria a execução das obras, as partes se movimentaram no

sentido de lograr uma composição, atestando a A, ao firmar com a E o Aditivo que majorava

com um acréscimo de quase 1/3 (um terço) do preço original do Contrato, que a E agira

sempre de boa-fé, mesmo diante dos infortúnios com os quais se deparava. Ao mesmo tempo

em que reconhecia, implicitamente, o desequilíbrio econômico intrínseco da avença,

passando o valor contratado, originalmente “fixo e global” de R$ 80.000.000,00, para R$

105.000.000,00.

2/13. Esse desequilíbrio econômico do Contrato ainda mais se acentuaria

com a superveniência de fatos e dificuldades imprevisíveis no curso de sua execução, que

subverteram as bases do negócio originalmente pactuadas. A própria A, aliás, corroboraria

esse entendimento ao cobrar, em sede de reconvenção, a vultosa quantia de R$

116.798.223,65 (inicialmente estimada em R$ 57.602.549,28) a título de supostos custos

adicionais que teria incorrido quando, rescindido o Contrato e já à testa da empreitada, dera

remate ao restante da obra (14% a 20%) – cifra esta que corresponde ao dobro do valor total

do Contrato original.

2/14. Ao empolgar a gestão das obras de construção da usina e tolher o

epcista de cumprir as suas obrigações para a entrega da obra, quando esta já se avizinhava

da sua finalização, negando-se a responder pelo aumento dos custos decorrente de fatos

extraordinários e de dificuldades imprevisíveis, resta evidente que a A abusou do seu poder

negocial. Com isso provocou uma mutação na natureza do Contrato, pois confinou todo o

risco do negócio, nele incidente, como de exclusiva responsabilidade da empreiteira,

emprestando, assim, caráter aleatório a um ajuste que se requer seja essencialmente

comutativo.7

2/15. À vista dessas observações, vejamos os quesitos formulados pela

Consulente, respondendo-os à medida que forem sendo reproduzidos.

7 Na vigência do CC/1916 houve quem sustentasse que a empreitada seria, acessoriamente, um contrato

aleatório (como E.V. de Miranda Carvalho, Contrato de Empreitadas, Rio, Freitas Bastos, 1953, p. 8), no que

era por outros contestado (Almeida Paiva, Aspectos do Contrato de Empreitada, Rio, Forense, 1955, p. 21).

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III. QUESITOS

1º) O contrato de engenharia, suprimento e construção em questão

(“Contrato”) pressupõe ser uma avença comutativa. Essa

comutatividade foi afetada pelo fato de a negociação do instrumento

contratual e sua assinatura ter ocorrido cerca de 4 (quatro) meses

após o fim da concorrência privada, durante as quais as partes

alteraram o projeto, mas não modificaram o preço e nem o

cronograma para a conclusão da obra?

3/1. Nos contratos comutativos, a relação entre vantagem e sacrifício entre

as partes é subjetivamente equivalente, havendo sempre certeza quanto às prestações. Quer

dizer, ambas são certas e se compensam (CC/2002, art. 441 e seguintes.). Na ideia de

comutatividade está implícita, portanto, a de equivalência das prestações, de antemão

conhecidas das partes, cada parte só consentindo num sacrifício se aquilo que obtém em

troca for do mesmo porte. Quer dizer, as partes comutam vantagens, guardando entre si um

nível razoável de igualdade de valores. E nessa composição de sacrifícios e vantagens

mútuas, a equivalência das prestações é determinada em função do volume relativo das

prestações recíprocas e do prazo para executá-las.8

3/2. No caso em exame, o prazo para a entrega da obra de Camaçari era

extremamente exíguo, em se considerando que se cogitava da construção e da entrega de

uma usina termoelétrica em condições de operar em 9 (nove) meses, a contar da data da

assinatura do Contrato. Esse instrumento foi firmado em 15 de fevereiro de 2012 e a data

para a entrega da usina em condições de operar findava em 30 de novembro de 2012. É

verdade que as primeiras tratativas entre as partes remontam aos primeiros meses de 2011 e

tiveram alinhamento final em 15 de agosto de 2011, depois de várias etapas, já narradas,

quando o resultado final foi reduzido a escrito em um compromisso informal. Em 2 de

outubro de 2011, a A formalizou a licitação privada, sagrando-se a E vencedora Contratos

do certame. Somente 4 (quatro) meses depois, ou seja, em 15 de fevereiro de 2012 é que

seria, por fim, celebrado o Contrato.

3/3. Ao longo desse intervalo que permeia a abertura dos resultados da

licitação e a assinatura do Contrato, foram introduzidas significativas alterações no projeto,

8 Domenico Rubino, L’Appalto, 2ª edição, Turim, 1951, PP. 129/132; Orlando Gomes, Contratos, Forense, 4ª

edição, 1973. P. 333.

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sem que essas alterações tenham se refletido em majoração do preço e em mudança do

cronograma de forma compatível com a realidade dos fatos, comprometendo, assim, a

comutatividade originalmente buscada pelo Contrato.

3/4. Advirta-se que as modificações introduzidas não pararam aí: uma vez

assinado o Contrato, a A decidiu promover uma mudança no projeto básico do

empreendimento, com a finalidade de operar a adequação da obra ao novo lay-out, de forma

a propiciar melhores condições de acesso à usina para os caminhões. Ao lado disso, obras

complementares foram adicionadas para permitir maior estocagem de combustível. Não

obstante preveja o Contrato a introdução de alterações desse naipe por parte da A (cláusula

9), é intuitivo que o “equilíbrio do negócio”, entendido como a equivalência entre prestações

e contraprestações das partes, foi severamente afetado, agravando-se a posição da E.

3/5. Por outro lado, o fato de a E ter concordado com a introdução de tais

alterações quando da assinatura do Contrato não elimina a existência de desequilíbrio

econômico na avença, tanto que, meses depois, as partes celebrariam Aditivo, majorando o

preço “fixo e global”, originalmente pactuado, em cerca de um terço do valor contratado,

passando de R$ 80.000.000,00 para R$ 105.000.000,00, embora sem alteração da data

prevista para a conclusão da obra. A comutatividade fora, portanto, abalada e é indiscutível

que através desse Aditivo se procurava simplesmente restaurá-la.

2º) A realização de serviços preliminares antes da assinatura do

Contrato, inclusive com o pagamento de adiantamentos pela

Contratante, implica que o cronograma deve ter efeitos retroativos

a outubro de 2011, inclusive para responsabilizar a parte

Contratante pelo não cumprimento de marcos contratuais? As

modificações de projeto solicitadas pela Contratante entre outubro

de 2011 e março de 2013 impõem que esta assuma o ônus desse

atraso?

3/6. Uma vez firmado, todo e qualquer contrato passa a produzir efeitos

obrigacionais a contar do momento do consentimento (ex nunc), podendo, porém, por

vontade das partes, retrotrair, abrangendo relações passadas, concernentes a um período

pretérito (ex tunc).9 O Contrato, celebrado entre a E e a A, se filia à primeira categoria,

9 Darcy Bessone de Oliveira Andrade, Do Contrato, Forense, 1960, p. 220; Adolfo de Majo Giaquinto,

L’esecuzione del contratto, Giuffrè, 1967, p. 242 ss.

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inscrevendo-se na modalidade dos contratos de duração, cuja execução diferida e continuada

tinha o seu termo inicial com a assinatura do instrumento contratual em 15 de fevereiro de

2012 e termo final com a entrega da obra, em 30 de novembro de 2012, em conformidade

com cronograma de trabalho anexo ao contrato (Anexo C). Gerava, portanto, efeitos para o

futuro.

3/7. É verdade que no próprio corpo do Contrato, embora firmado em 15

de fevereiro de 2012, a empreiteira reconheceu, em cláusula expressa (cláusula 6.2, item

“i”), haver recebido, em 15 de dezembro de 2011 e 15 de janeiro de 2012, respectivamente

5% (cinco por cento) e 15% (quinze por cento) do preço contratual. Não obstante esses

pagamentos antecipados, não há nenhuma cláusula dando efeito retroativo às obrigações

decorrentes do Contrato, de sorte que as mesmas só passaram a ser vinculantes e coercíveis

após a sua celebração, sempre dentro do cronograma anexo ao instrumento contratual.

3/8. Quer dizer, embora possa ter havido a prestação de serviços anteriores

(o que, em parte, explicaria os referidos pagamentos adiantados), o marco inicial da

empreitada era indubitavelmente a data da assinatura que selou o negócio, gerando

obrigações de parte a parte, a serem futuramente cumpridas. Vale aqui o significado

semântico (ex-sequor) da expressão, podendo dizer-se que a “execução” do contrato sempre

se traduz numa projeção futura dos seus efeitos, ou seja, “qualcosa che segue, che vien

dopo”, como diz Giaquinto.10

3/9. Assim, a eventual realização de serviços preliminares por parte da E,

antes da assinatura do Contrato, inclusive com o pagamento de adiantamentos do preço

desses serviços pela A, não implica que o cronograma para a construção da usina deva ter

efeitos retroativos. Mormente quando esses efeitos tenham por objetivo responsabilizar a

empreiteira pelo não cumprimento de marcos contratuais ajustados para mensurar o avanço

físico da obra ao longo do processo de execução do Contrato, que inicia com o

consentimento.

3/10. Por outro lado, se entre outubro de 2011, antes da assinatura do

Contrato, e, dezembro de 2012, quando, já assinado o Contrato, as partes negociavam o

segundo aditivo, até com mudança do cronograma, impunha-se que A assumisse o ônus dos

atrasos decorrentes das alterações por ela propugnadas. Assim, podemos responder à

segunda parte do presente quesito, dizendo que os encargos ligados às alterações

introduzidas no projeto original por determinação da comitente, entre outubro de 2011

10 Obra citada, p. 3.

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(quando a E se sagrou vencedora do certame licitatório), e 15 de dezembro de 2012 (quando

a A assumiu a obra), devem correr exclusivamente por conta da dona da obra. Até porque,

em sendo a esta imputáveis os atrasos provocados pelas modificações no plano original,

haveria, à época, justa causa para a empreiteira “suspender” a execução dos serviços (arts.

476 e 625, I, do CC/2002).

3º) A assunção de obrigação pela Contratante perante a autoridade

governamental de iniciar a operação comercial da Usina em

determinado prazo impede que o Contrato sofra alterações que

importem na modificação da data para a entrega da Usina após a

data prevista perante o órgão regulador para início da operação

comercial? A recusa da Contratante em estender o Prazo nesse

contexto constitui abuso de sua posição contratual?

3/11. Em 18 de abril de 2011, a Agência Nacional de Energia Elétrica

(“ANEEL”) expediu a Portaria 63, autorizando a A a estabelecer-se como produtora

independente de energia elétrica, prevendo um cronograma de implantação de uma usina

termoelétrica em Camaçari, Bahia, iniciando as obras “até 7 de janeiro de 2012”, e devendo

a mesma entrar em operação comercial “em janeiro de 2013”. Em 15 de fevereiro de 2012,

a A celebrou com a E o Contrato EPC, assumindo a empreiteira a obrigação de executar os

trabalhos de construção da usina, de forma a entregá-la concluída, pronta para operar, “até

a data assegurada de conclusão” - ou seja, “até 30/11/2012” (cláusulas 1,verbetes, 3.1 e

5.1).

3/12. Tendo em vista a extrema exiguidade dos prazos estabelecidos pela

ANEEL para a empresa autorizada tanto para dar início às obras da construção da usina,

como para a sua conclusão e entrada em operação, compreende-se porque as partes acederam

em celebrar o Contrato em 15 de fevereiro de 2012, antecipando o pagamento ao empreiteiro

de 20% do futuro preço contratual, em duas parcelas, em 15 de dezembro de 2011 e em 15

de janeiro de 2012. Compreende-se também porque, logo depois, passariam elas a negociar

a introdução de alteração do projeto básico do empreendimento, para adequação do lay-out

às estruturas que comporiam a futura usina. Com essas medidas, imprimia-se velocidade às

obras.

3/13. Daí porque, à vista desses acontecimentos, a E encaminhou à A, em

agosto e setembro de 2012, propostas técnicas, objetivando promover a adequação do preço

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 126

contratual, a qual só viria a ser materializada em 9 de outubro de 2012, com a celebração de

um aditivo contratual que contemplava um acréscimo superlativo, da ordem de 1/3 (um

terço) do preço, sem que se promovesse, porém, a alteração do prazo para a conclusão da

obra . Ocorre, porém, que já em novembro de 2012 as partes passariam a discutir a redação

de um segundo aditivo, com novas modificações no projeto, dando prioridade à alteração do

cronograma original. Nessa altura, mais de 80% da obra já estava concluído - ocasião em

que a A manifestou interesse em assumi-la, promovendo a rescisão do Contrato.

3/14. Dentro desse contexto é formulada a pergunta acima reproduzida: a

assunção pela A perante a autoridade reguladora da obrigação de dar início à operação

comercial da usina em determinada data impediria (indaga-se) que o Contrato, por ela

firmado com a E, sofresse modificações que importassem em alteração da data de conclusão

da obra, postergando-a para data posterior ao termo acertado junto ao órgão governamental

para a entrada em operação comercial da usina? Ora, embora a construção e a operação da

usina dependam de autorização da ANEEL, essa autorização não consubstancia nem

pressuposto, nem elemento constitutivo do Contrato, formando-lhe a estrutura e fornecendo-

lhe a substância.11

3/15. Com efeito, a ANEEL é pessoa estranha ao Contrato EPC, tendo em

vista o princípio da relatividade das convenções, segundo o qual os efeitos dos contratos se

produzem exclusivamente entre as partes, não aproveitando nem prejudicando a terceiros.

Para a ANEEL, o contrato de construção da usina é res inter alios acta, visto que, como ato

de autonomia privada, ele não pode atingir senão as esferas jurídicas das partes contratantes,

comitente e empreiteira. Por conseqüência, a recusa da A em estender o prazo contratual sob

o pretexto de que estaria presa a prazo mais rígido determinado pela autoridade reguladora

constituiria, na verdade, abuso do seu poder negocial, pois a determinação administrativa

não poderia interferir na execução do ajuste entre a empreiteira e a empresa autorizada a

fornecer energia elétrica. Não se cogita aqui de fato do príncipe.

4º) A modificação do método de aferição do cumprimento dos

marcos contratuais, sem a celebração de aditamento contratual,

mas acordada entre as partes mediante a contratação de Terceiro

para tal tarefa, deve ser considerada válida, eficaz e irrevogável,

nos termos do artigo 614, § 1º, do Código Civil, uma vez que a

Contratante conferiu as medições por meio de engenheiro do

proprietário e efetuou os pagamentos respectivos?

11 Darcy Bessone de Oliveira Andrade, Do Contrato, ob. Citada, p. __.

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5º) À luz do que determina o artigo 614, § 2º, do Código Civil, a

Contratante tem direito ao ressarcimento por eventuais vícios na

obra reclamados no prazo de 30 (trinta) dias, a contar das

respectivas medições? Em caso afirmativo, a quem incumbe o ônus

da prova das falhas na realização das atividades? O fato de

eventuais vícios terem sido suscitados apenas após a conclusão da

obra constitui violação à boa-fé pela Contratante?

3/16. Versa o artigo 614 do Código Civil a hipótese de empreitada em que

a fixação do preço atende ao fracionamento da obra, considerando-se as partes em que ela

se divide, ou são mensuradas. Essa hipótese não é incompatível com a empreitada em que a

retribuição é estipulada para a obra inteira, nem deixa de ser fixo e global o preço face ao

fato de ter sido ajustado o seu pagamento de forma escalonada, desde que este seja

determinado em função da obra encarada como um todo. O Contrato entre E e A é um

contrato de empreitada por preço fixo e global, a ser pago, de maneira parcelada, em 11

(onze) prestações sucessivas, sendo 1 (uma ) de 20% e 10 (dez) outras de 8% (oito por cento)

do preço cada uma, correspondendo essas parcelas do preço aos marcos contratuais previstos

no cronograma de trabalho (cláusula 6.2).

3/17. Com efeito, na cláusula 6.2, in fine, do Contrato, acima citada, ficou

estabelecido que o dono da obra verificaria (cláusula 8) e certificaria por escrito (cláusula

10) se os eventos previstos no cronograma teriam ou não sido cumpridos pela empreiteira

dentro da data de pagamento de cada uma das parcelas, reservando-se o direito de

“suspender” os pagamentos até que fossem atingidos os marcos contratuais representativos

dos avanços da obra. Assim, embora se trate de uma empreitada por preço fixo, o pagamento

deste é parcelado, em função da medição do trabalho executado (“obra por medida”). Daí a

pertinência da incidência no caso do artigo 614 da lei civil.12

3/18. Lembre-se que, no curso da execução do Contrato, a A promoveu a

contratação da SS Gerenciamento e Empreendimento (“SS”), com o escopo de acompanhar,

na qualidade de “engenheiro do proprietário”, a evolução da obra, realizando a revisão de

todos os trabalhos efetuados e a implantação de uma nova forma de pagamento atrelado não

mais a marcos contratuais, mas sim à medição do avanço físico dos serviços. Assim, a

modificação do método de aferição do cumprimento dos marcos contratuais, introduzida por

iniciativa da SS, ainda que não tenha sido objeto de aditamento formal entre as partes, foi

entre elas acordada mediante a contratação de uma empresa exatamente com o objetivo de

12 Gustavo Tepedino et alii, Código Civil Interpretado, Renovar, Rio, 2006, vol. II, p. 350 ss.

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exercer tal tarefa, motivo pelo qual a introdução de novo método de aferição é, para todos

os efeitos, válido, eficaz e irrevogável.

3/19. Por outro lado, nos termos do disposto no §§ 1º e 2º do artigo 614 do

CC/2002, se a empreitada for “de natureza das que se determinam por medida” (como

ocorre no presente caso), prevalece a regra (i) de que, em todos os pagamentos efetuados

pelo dono da obra, se presume que os resultados da empreitada foram adrede verificados, e

(ii) de que, em todas as medições, igualmente por ele efetuadas, se presume que os marcos

contratuais foram conferidos, exceto se, em trinta dias, a contar da medição, o dono da obra,

ou quem estiver incumbido da sua fiscalização, vier a denunciar a existência de algum vício

ou defeito na obra executada.

3/20. Nas duas hipóteses a presunção legal é relativa (iuris tantum) e se

dá em prejuízo do comitente e em benefício do empreiteiro, podendo, na primeira hipótese,

ser elidida pelo dono da obra mediante a prova de que, a despeito do pagamento, via de regra

a título de adiantamento, não foi feita a verificação do andamento da execução dos serviços;

e, na segunda hipótese, se, realizada a medição, houve a denúncia por parte do comitente, no

referido prazo de trinta dias a contar da medição, da ocorrência de vícios na obra executada.

Quer dizer, no primeiro caso, o pagamento implicaria a aceitação da obra pelo comitente,

que se presumiria satisfeito; no segundo caso, a medição, por si só, não geraria essa

presunção, entendendo-se, porém, que, transcorrido o prazo de trinta dias sem impugnação

do dono da obra, seria de presumir essa aceitação. Em ambos os casos, isso significa dizer

que, por força do pagamento ou da medição, o dono entendeu estar a obra a seu contento.

3/21. Advirta-se que o prazo de trinta dias a contar da medição, para efeito

da impugnação da obra, é de natureza decadencial, motivo pelo qual, uma vez transcorrido

o lapso de tempo referido, caduca o direito do dono da obra de postular o ressarcimento por

eventuais vícios ou defeitos verificados na obra executada.13 Ademais, cabe a ele, na

impugnação, o ônus da prova das falhas de execução da obra cometidas pelo empreiteiro.

Nessas condições, caso o dono da obra se mantenha inerte em relação ao defeito ou vício

identificado, deixando de requerer, de forma tempestiva, a correção ao empreiteiro e se

reservando para suscitá-lo somente na conclusão da obra, não só decai desse direito, como

viola o princípio de boa-fé contratual a que está obrigado a guardar, seja na conclusão do

contrato, como em sua execução (CC/2002, art. 422).

13 Gustavo Tepedino et alii, Código Civil Interpretado, Renovar, vol. II, 2006, p.353.

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6º) A celebração de aditamento contratual que acresceu serviços

adicionais e majorou o preço dos serviços originais, em outubro de

2012, atesta que essas hipóteses constituem força maior para fins da

cláusula 18 do Contrato? A referida revisão contratual de preço

impede que a Contratada pleiteie posteriormente a extensão do

prazo, caso os planos de recuperação acordados com a engenharia

do proprietário não surtam efeito?

3/22. Conceitua o Código Civil o caso fortuito ou a força maior como “fato

necessário”, cujos efeitos não haveria como evitar ou impedir, motivo pelo qual o devedor

não responde pelos prejuízos dele resultantes, a menos que tenha por eles expressamente se

responsabilizado (CC/2002, art. 393). Para sua prova, que deve ser feita por quem a alega,

exigem-se dois elementos: um objetivo - a inevitabilidade do evento – e o outro subjetivo –

a ausência de culpa. Inevitabilidade traduzida na impossibilidade absoluta de superar o

acontecimento, à luz das circunstâncias em que o obrigado se encontra envolvido; e ausência

de culpa, porque, não podendo a dificuldade no cumprimento da obrigação ser evitada, não

se caracterizaria a culpa do contratante.14

3/23. É dentro desse contexto que deve ser encarada a definição de força

maior constante da cláusula 18.1 do Contrato de 15 de fevereiro de 2012. Para os efeitos do

Contrato, foi pactuado nessa cláusula que as partes estarão liberadas da responsabilidade

pela inexecução de suas obrigações contratuais quando o descumprimento deflua de um

evento de força maior, cuja ocorrência “tenha afetado a capacidade da parte em questão de

cumprir tais obrigações”. Ou seja, quando a impossibilidade de superar o fato irresistível

que impede o cumprimento da obrigação seja apreciada em concreto, levando em

consideração as condições pessoais da parte devedora para adimpli-la.

3/24. Assim, a celebração do “aditivo contratual” em 9 de outubro de

2012, que acresceu serviços adicionais e majorou significativamente o preço dos serviços

pactuado no Contrato de 15 de fevereiro de 2012, comprova que tais aditamentos, se não

fossem acertados como o foram, constituiriam fatos irresistíveis que liberariam a empreiteira

do cumprimento de suas obrigações contratuais, na sua versão original, pois estas,

“comprovadamente”, superavam a capacidade da empreiteira de adimpli-las. Por outro lado,

como o escopo desse aditamento era declaradamente restaurar o “equilíbrio econômico-

14 Arnoldo Medeiros da Fonseca, Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão, 3ª edição, Rio de Janeiro, Forense,

1958.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 130

financeiro do Contrato”, a referida revisão consensual do preço não impediria que a

empreiteira viesse a pleitear posteriormente a extensão do prazo para a entrega da obra, como

de fato o faria ao postular um segundo aditivo, tendo em vista que os planos de recuperação

acordados com a engenharia do proprietário não surtiram os efeitos almejados.

7º) A proibição de alteração do Preço contida nas cláusulas 6.3(b),

6.3(c) e 6.4 do Contrato deve ser conciliada com a possibilidade de

alteração do Preço por Força Maior prevista na cláusula 18 da

referida avença? No caso de incompatibilidade de tais cláusulas, a

vedação ao enriquecimento sem causa faz com que prevaleça a

cláusula 18 em detrimento das cláusulas 6.3(b), 6.3(c) e 6.4?

3/25. Tendo em vista que o Contrato diz respeito a uma empreitada por

preço fixo e global (“turn-key”), as partes contratantes “reconheceram” nas cláusulas 6.3 e

6.4 que o preço estipulado para os serviços abrangeria “todos os custos e despesas” em que

a empreiteira viesse a incorrer no curso da execução dos serviços (6.3, item “a”), suportando

inclusive os custos e despesas “que porventura ultrapassassem” a cifra fixa estabelecida

(6.3, item “b”). Nesse sentido, ficou certo e convencionado que não haveria “nenhuma

alteração no preço do contrato ou nos prazos previstos” (6.3, item “c”), seja por força do

aumento no custo de equipamentos e mão de obra, seja em virtude do aumento nos custos

diretos e indiretos incorridos pela empreiteira para honrar as suas obrigações, seja ainda, por

decorrência de condições climáticas que viessem interferir nos serviços prestados (6.4).

3/26. É claro que a natureza fixa e global do preço do contrato e a

consequente proibição de alteração do preço contratual, contida nas cláusulas 6.3(a),(b) e (c)

e 6.4, acima citadas, devem ser entendidas em combinação com a possibilidade de ocorrer

modificação desse mesmo preço em decorrência de evento de força maior, tal como essa

expressão é conceituada na cláusula 18 do Contrato. Em havendo conflito entre tais

dispositivos contratuais, a vedação ao enriquecimento sem causa, que na lei civil figura

como princípio geral ao lado dos negócios jurídicos (CC/2002, art. 884), fará com que a

cláusula de força maior se sobreponha às cláusulas contratuais citadas que tolheriam as

alterações no preço da empreitada, a fim de que se preserve o equilíbrio econômico-

financeiro da avença.15 O contrato deve ser encarado como um todo orgânico, cujo conteúdo,

15 Cf. Giovanni Ettore Nanni, Enriquecimento sem Causa, São Paulo, Saraiva, 2004.

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posto que integrado por várias peças, configura-se como uma unidade, e as cláusulas devem

ser ligadas umas às outras, numa interpretação sistemática.

3/27. Na realidade, ao longo do CC/2002, o princípio do equilíbrio

contratual é consagrado seja através de normas gerais que maculam com anulabilidade os

negócios jurídicos atingidos por lesão (art. 157), resolvendo ou reajustando os contratos em

que se evidencia onerosidade excessiva (arts. 317 e 478 usq. 480), seja através também de

normas específicas relativas à revisão do preço na empreitada (arts. 619, 620 625, I e II).

8º) A exigência contida na cláusula 9.7.2 do Contrato de que a

Contratada permanecerá responsável pela execução dos trabalhos

enquanto as partes não cheguem a um acordo sobre eventual Pedido

de Alteração e seus impactos no Cronograma de Trabalho e no

Preço torna abusiva a rescisão da avença por iniciativa da

Contratante enquanto ainda não estava encerrada a negociação

sobre o pedido de alteração?

9º) A proposta de reprogramação do Cronograma contratual

apresentada pela Contratada e negociada de boa-fé com a

Contratante impede que esta última se valha da faculdade prevista

na cláusula 17.1(vii) do Contrato para assumir a obra dez dias após

o prazo fixado originalmente para entrega da Usina?

10º) O fato de a Contratante ter despendido o equivalente a 200%

do preço original para concluir a Usina após a rescisão da avença

e ter demorado mais dezessete meses para executar o restante dos

Trabalhos aponta que a condução da obra após a rescisão não se

pautou pelo parâmetro de eficiência estabelecido na avença em

questão? A Contratada deve suportar os custos adicionais que

tenham sido influenciados por tal ineficiência?

3/28. Dispõe a cláusula 9.7 que, caso a E conclua que a ocorrência de

determinado evento, com características de força maior, poderá comprometer o

prosseguimento do projeto, poderá ela formular um pedido de alteração do instrumento

contratual, com o objetivo de modificar o preço e a data de conclusão das obras. Para atingir

esses objetivos, deverá descrever detalhadamente o fato, fazendo uma estimativa dos

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impactos do mesmo no preço contratual e na data de entrega da obra. Nesse sentido,

estabelece a cláusula 9.7.1 que, ao receber o pedido, caberá à A entrar em tratativas com a

empreiteira, formalizando um termo aditivo. Acrescenta a cláusula 9.7.2 que, caso as partes

não cheguem a um acordo no prazo em tela, deverá a empreiteira permanecer à testa dos

trabalhos, responsável pela obra.

3/29. À vista desses dispositivos contratuais, lícito é concluir que deverá

ser considerada abusiva a rescisão unilateral da avença por iniciativa da comitente enquanto

as partes não deem por encerrada a negociação a respeito da matéria. A simples leitura da

cláusula contratual conduz a essa interpretação. Em síntese, não cabe rompimento unilateral

sem que haja motivo relevante, decorrendo tal afirmação da bilateralidade e da

comutatividade, características do contrato de empreitada que implicam obrigações

recíprocas e sinalagmáticas, sendo a prestação de um contratante a causa da prestação do

outro.

3/30. Por via de consequência, cumpre concluir que a proposta de

reprogramação do cronograma contratual, apresentada pela E e negociada de boa-fé com a

A, impediria que esta última se valesse da faculdade que lhe era outorgada pela cláusula

17.1.(vii) do Contrato, rescindindo-o e assumindo a obra. Na realidade, esse permissivo dizia

que a A poderia rescindir o Contrato, caso a E descumprisse qualquer “obrigação

substancial” nele prevista, e caso esse descumprimento não fosse sanado no prazo de 15

(quinze) dias contados da data de notificação a ser enviada pela A, ou dentro de qualquer

outro prazo negociado pelas partes de boa-fé. Na hipótese, esse descumprimento não

ocorreu.

3/31. Por fim, dispõe a cláusula 17.5.5 do Contrato que em caso de rescisão

por inadimplemento por parte da empreiteira, a A “terá o direito de concluir (ou fazer que

sejam concluídos) os Trabalhos”, ficando ainda “com o direito de receber da Contratada

os custos efetivamente incorridos pela Contratante na conclusão dos Trabalhos”. Se o

total dos custos incorridos pela Contratante na conclusão dos trabalhos superar o saldo do

preço contratual em aberto, a Contratada será obrigada a pagar à Contratante a diferença

entre o saldo a receber e o total dos custos incorridos. In casu, levando em conta que a

Contratante (A) alega ter despendido o equivalente a 200% do preço original para concluir

a usina após a rescisão da avença, consumindo mais de dezessete meses para executar o

remanescente da obra, tudo aponta no sentido de que a condução da obra, por ela feita após

a rescisão, não se pautou propriamente pelo parâmetro de eficiência estabelecido na avença.

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É óbvio que a E não deve suportar os custos adicionais que tenham sido introduzidos por tão

grande ineficiência.

11º) A expressão “desde que tais custos sejam atribuíveis

diretamente à rescisão por evento de inadimplemento da

Contratada”, incluída na cláusula 17.5.5 da avença, exclui a

responsabilidade da Contratada por eventuais custos adicionais

incorridos pela Contratante em condições daquelas estabelecidas

no Contrato?

3/32. A cláusula 17.1 do Contrato estabelecia, como se observou, que a A,

dona da obra, poderia rescindir a avença em várias circunstâncias, dentre as quais na hipótese

de a E, como empreiteira da obra, descumprir “obrigações substanciais” do Contrato, nem

sanar o inadimplemento em prazo oportuno negociado entre as partes (item “vii”). Nesse

caso, ficou ajustado que a A poderia concluir a obra, reservando o direito de receber da E os

“custos adicionais efetivamente incorridos” – e “desde que tais custos sejam relacionados

“diretamente” com a rescisão provocada por inadimplemento da empreiteira.

3/33. É o que expressamente está previsto na cláusula 17.5.5 do Contrato,

fazendo referência à “rescisão por Evento de Inadimplemento da Contratada”, entendendo

como “Evento de Inadimplemento da Contratada”, consoante dispõe a cláusula 17.1(vii),

“qualquer outra obrigação substancial do presente Contratada não sanada”. O que

equivale a dizer que a cláusula em pauta exonera a E por “custos adicionais” incorridos pela

A em decorrência de condições distintas daquelas constantes do Contrato.

12º) A cláusula 16.5 do Contrato pode ser considerada uma cláusula

válida de não-indenizar danos indiretos e lucros cessantes? Em caso

afirmativo, essa limitação de responsabilidade seria aplicável à

rescisão por evento de inadimplemento da Contratada definida na

cláusula 17.5.5 da referida avença?

3/34. Pela cláusula 16 do Contrato, ficou estabelecido que à empreiteira

(E) compete “indenizar e manter indene” a dona da obra (A), e que esta, vice-versa, deverá

indenizar e manter indene a empreiteira, com relação a danos que, na execução da

empreitada, uma venha a provocar na outra. Ficou, porém, ressalvado, no item 16.5, que “as

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partes não serão responsáveis, uma com relação outra, por quaisquer danos indiretos ou

lucros cessantes, que venham a sofrer”.

3/35. Cláusulas desse naipe - destinadas a afastar a responsabilidade das

partes contratantes com relação à inexecução de obrigações contratualmente assumidas - são

válidas em nosso Direito,16 desde que o seu campo de incidência se restrinja ao chamado

ilícito contratual e desde que não se caracterize no ato danoso dolo ou culpa grave. No caso

do Contrato entre E e A, essa exoneração convencional da obrigação de indenizar diz

respeito, portanto, aos lucros cessantes e aos danos indiretos, entendidos aqueles como

ganhos frustrados, e estes, como prejuízos sofridos como conseqüência remota.

3/36. Na cláusula 17.5.5, ficou ajustado que, em caso de rescisão do

Contrato por inadimplemento por parte da E, a A teria o direito de assumir a gestão das

obras, recebendo da empresa inadimplente os custos adicionais efetivamente incorridos pela

dona da obra na conclusão dos trabalhos, desde que tais custos se refiram “diretamente” à

rescisão por inadimplência da empreiteira. Tais custos adicionais, provocados em ricochete,

configuram danos materiais reflexos, ou seja, indiretos, e estão também cobertos pela

exoneração da responsabilidade convencionada na cláusula 16.5, in fine. Ou seja, são danos

que não decorrem senão remotamente da conduta empreiteira, não havendo um nexo de

causalidade direta e imediata que, de acordo com a lei (CC art. 403), determinaria a

responsabilidade contratual da E.

S.M.J.

São Paulo, 29 de agosto de 2014

Luiz Gastão Paes de Barros Leães

16 José de Aguiar Dias, Cláusula de não indenizar, 4ª edição, Rio de Janeiro, Forense; Sérgio Cavalieri Filho,

Programa de Responsabilidade Civil, São Paulo, Atlas, 7ª edição, p. 497 ss.

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ATUALIDADES

A QUESTÃO DA CONFIGURAÇÃO DE FRAUDE NAS ALIENAÇÕES

ENVOLVENDO BEM DE FAMÍLIA E SUAS CONSEQUÊNCIAS: ANÁLISE DA

JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA A PARTIR DO

RECURSO ESPECIAL Nº 1.227.366

Fraud identification on disposing of homestead property and its consequences: study

of precedents issued by the Brazilian Superior Court of Justice (Superior Tribunal de

Justiça) inspired by Special Appeal 1,227,366.

Vivianne da Silveira Abílio Mestre em Direito Civil pela UERJ. Advogada.

Resumo: O artigo analisa a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça a respeito da

possibilidade de configuração de fraude em alienações envolvendo bens alcançados pela

proteção consagrada na Lei n.º 8.009/1990 e as possíveis consequências de seu eventual

reconhecimento a partir do Recurso Especial nº. 1.227.366. Para tanto, enfrenta a função

exercida pela impenhorabilidade do bem de família no direito brasileiro e seu consequente

tratamento nos Tribunais.

Palavras-chave: Direito Civil; Bem de família; Boa-fé; Direito à moradia; Fraude

Abstract: The paper analyses the Superior Tribunal de Justiça’s decisions regarding the

possibility of recognizing fraud in the disposing of assets that are protected by the homestead

right law (Lei n.º 8.009/1990) and the consequences of this recognition from the perspective

settled in one precedent of the Court (Recurso Especial n.º 1.227.366). To accomplish this

purpose, the paper studies the role of the homestead right in the Brazilian law and its

approach on the Brazilian courts.

Keywords: Private Law; Homestead Right; Good Faith; Right to housing; Fraud

Sumário: 1. A hipótese apreciada no Recurso Especial nº. 1.227.366 – 2. A proteção ao bem

de família como expressão do direito constitucional à moradia e seu reflexo na jurisprudência

do Superior Tribunal de Justiça – 3. A questão da configuração de fraude na alienação do

bem de família e seus efeitos sobre a impenhorabilidade em julgados do Superior Tribunal

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 136

de Justiça – 4. À guisa de conclusão: em busca do equilíbrio entre a proteção à moradia e a

tutela da boa-fé

1. A hipótese apreciada no Recurso Especial nº. 1.227.366

Sylvio Carlos Sobrosa da Rocha e sua esposa compraram, em 31.5.1995,

imóvel residencial que passaram a habitar com seus filhos. Alguns anos após a aquisição,

entre junho e agosto de 1997, Sylvio tornou-se réu em ações judiciais indenizatórias em que,

ao final, restou condenado.

Enquanto estavam em curso as aludidas demandas, Sylvio e sua esposa

separaram-se, celebrando acordo (verbal) em relação aos bens do casal, do qual resultou a

doação (efetivada mediante escritura pública) à filha do casal do bem adquirido em 1995, no

qual ex-mulher os filhos permaneceram residindo após a dissolução da sociedade conjugal.

Sobrevieram em 2000 e 2001 as execuções das condenações sofridas por

Sylvio. Em decorrência de não encontrarem os Exequentes bens a penhorar, pleitearam a

declaração de fraude à execução e consequente ineficácia da mencionada doação,

requerendo a penhora do imóvel.

Acolhidos os pedidos em ambas as execuções,1 opuseram mãe e filha

embargos de terceiro para obstar a ultimação da venda do imóvel, que foi julgado (i) extinto

sem julgamento do mérito em relação à primeira, por não possuir legitimidade, já que

procedera à alienação de sua meação e (ii) parcialmente procedente quanto à segunda,

salvaguardando 50% do imóvel da constrição, parcela decorrente da doação feita por sua

mãe, considerada lídima.

A questão foi, então, levada à 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça

para que se avaliasse (i) a inocorrência de fraude à execução, tratando-se de bem de família

antes mesmo da alienação e da própria condenação; e (ii) a impossibilidade de cindir o bem

de família, a impedir sua alienação forçada, já que o Tribunal de origem reconheceu a

exclusão de metade do imóvel.

1 O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul considerou haver diversos processos contra Sylvio em razão de

ter supostamente repassado menos do que deveria aos seus clientes com a venda de ações da CRT e de ter o

casal sonegado outros imóveis nos autos da separação judicial. Compreendeu haver alienação fraudulenta e,

por isso, impossibilidade de premiar com a impenhorabilidade o devedor que obrou de má-fé, além de que o

valor do imóvel permitiria o pagamento das dívidas sem prejuízo da aquisição de outro bem para a residência

familiar com o restante do valor obtido com a alienação.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 137

Consoante se procurará detalhar no item 3, infra, ao julgar o caso no

âmbito do Recurso Especial nº. 1.227.366, o Ministro Relator Luis Felipe Salomão deu

provimento ao apelo extraordinário para, seja por reconhecer incidir à hipótese o benefício

da impenhorabilidade previsto no art. 1º da Lei nº. 8.009/1990 à totalidade do imóvel, seja

por compreender incindível o bem de família, reformar o acórdão recorrido, levantando a

penhora que recaía sobre o imóvel.

Cuida-se de relevante precedente que, ao evocar a necessária ponderação

na análise da possibilidade de configuração de fraude na alienação de bem de família,

permite avaliar o cenário jurisprudencial relativo à funçao da proteção do bem de família,

bem como as consequências de eventual conduta fraudulenta sobre a impenhorabilidade.2

2. A proteção ao bem de família como expressão do direito constitucional à moradia e

seu reflexo na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça

O advento da Lei nº 8.009/1990 representou relevante inovação na

proteção das entidades familiares: embora houvesse previsão no Código Civil de 1916 do

instituto do bem de família convencional (ou voluntário) – por meio do qual o proprietário

poderia estabelecer que o imóvel de residência familiar ficaria “isento de execução por

dívidas” (Código Civil de 1916, art. 70), mediante registro no ofício de imóveis competente3

–, o bem de família legal, por se tratar de proteção automática que independe de qualquer

ato do proprietário, implicou evidente ampliação das hipóteses em que se blinda o imóvel

residencial de expropriação por dívidas.4

Estabelece o aludido diploma a regra da impenhorabilidade do bem de

família que, portanto, “não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal,

previdenciária ou de outra natureza” (art. 1º), proteção que se estende também aos bens

2 Trata-se de questão polêmica, como se consignou no próprio acórdão: “No ponto, aliás, a configuração do

próprio instituto da fraude à execução relacionado a bem de família não é matéria unívoca na jurisprudência

desta Casa.” 3 O instituto permanece positivado no Código Civil de 2002, com disciplina mais ampla, nos artigos 1.711 a

1.722, dos quais se extraem os requisitos para sua instituição, como se tratar de imóvel destinado à habitação

da família e que “não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição” (VELOSO,

Zeno. Código Civil Comentado. Vol. XVII. São Paulo: Atlas, 2003, p. 79). 4 “Como resta evidente, nesse conceito, o instituidor é o próprio Estado, que impõe o bem de família, por norma

de ordem pública, em defesa da célula familial. Nessa lei emergencial, não fica a família à mercê de proteção,

por seus integrantes, mas é defendida pelo próprio Estado, de que é fundamento” (AZEVEDO, Álvaro Villaça.

Bem de família (Penhora em fiança locatícia e direito de moradia). NERY, Rosa Maria de Andrade; e

DONNINI, Rogério (orgs.). Responsabilidade Civil: estudos em homenagem ao professor Rui Geraldo

Camargo Viana. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 70).

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móveis que “guarnecem a casa” (art. 1º, parágrafo único), desde que observadas as exceções

previstas no artigo 2º. Cuida-se de mecanismo que assume papel essencial na concretização

dos objetivos traçados pela Constituição da República – que alçou a pessoa humana a

fundamento do ordenamento (art. 1º, III) –, vez que possui como vocação garantir condições

materiais mínimas à entidade familiar,5 relacionando-se de forma íntima com a promoção

do direito (fundamental) à moradia.6

O reconhecimento do exercício de tais funções ao instituto resultou em

interpretação tendente a ampliar e reforçar a proteção ao bem de família,7 seja por meio da

defesa da aplicação direta das normas constitucionais às relações privadas, seja pela

interpretação ampliativa do conceito de entidade familiar.8 Nessa direção, estabeleceu-se que

a impenhorabilidade do bem de família deve ser aplicada a entidade familiar constituída

apenas por irmãos,9 e, como amplamente difundido, alcança o devedor que habita sozinho o

5 “À guisa de definição da expressão, reúne-se uma série de conceitos que, aglutinados, formam aquilo que se

logrou entender como um complexo absolutamente indispensável à estrutura de segurança material e moral do

sujeito de direito. É o bem que impede ao credor o acesso às coisas indispensáveis à vida do devedor. Assim,

pode-se considerar o bem de família como o bem empregado para assegurar a sobrevivência digna dos

integrantes da família, no mínimo existencial, já que a família é a célula menor e fundamental da sociedade”

(GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Penhorabilidade do bem de família ‘luxuoso’ na perspectiva civil-

constitucional. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. 77, p. 282, jul 2014).

Tal função pode também ser evidenciada na análise do art. 4º, §2º da Lei n.º 8.009/1990, em que se observa

que, tratando-se de pequena propriedade rural, o legislador procurou resguardar não apenas o imóvel

residencial propriamente dito, mas também o suficiente para o desenvolvimento da agricultura de subsistência.

Veja-se o teor do dispositivo: “Quando a residência familiar constituir-se em imóvel rural, a impenhorabilidade

restringir-se-á à sede de moradia, com os respectivos bens móveis, e, nos casos do art. 5º, inciso XXVI, da

Constituição, à área limitada como pequena propriedade rural”. 6 “A proteção legal conferida ao bem de família pela Lei n. 8.009/1990, consectária da guarida constitucional

e internacional do direito à moradia, não tem como destinatária apenas a pessoa do devedor. Protege-se também

sua família, quanto ao fundamental direito à vida digna” (STJ, REsp 1.433.636, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe

Salomão, julg. 2.10.2014). 7 É o que se observa em significativo excerto da ementa do REsp 1.134.427, 2ª T., Rel. Min. Humberto Martins,

julg. 22.6.2010, publ. 1.7.2010: “deve ser dada maior amplitude possível à proteção consignada na Lei n.

8.009/90, que decorre do direito constitucional à moradia estabelecido no caput do art. 6º da Constituição

Federal de 1988”. 8 “Para além da discussão teórica quanto à aplicação direta ou indireta da norma constitucional, a Corte

Especial, com base na Lei nº 8.009 de 1990, definiu como prioritária a proteção do direito à moradia e da

dignidade do devedor, expandindo o conceito de bem de família, de modo a alcançar, em praticamente todas

as hipóteses, o imóvel residencial, agora impenhorável para pagamento de dívida” (TEPEDINO, Gustavo. Bem

de família e direito à moradia no Superior Tribunal de Justiça. Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 36, p.

iii, out/dez 2010). 9 “Execução. Embargos de terceiro. Lei 8009/90. Impenhorabilidade. Moradia da família. Irmãos solteiros. Os

irmãos solteiros que residem no imóvel comum constituem uma entidade familiar e por isso o apartamento

onde moram goza da proteção de impenhorabilidade, prevista na Lei 8009/90, não podendo ser penhorado na

execução de divida assumida por um deles. Recurso conhecido e provido” (REsp 159.851/SP, 4ª T., Rel. Min.

Ruy Rosado de Aguiar, julg. 19.3.1998, publ. 22.6.1998). O fundamento empregado pela Corte constitui-se na

configuração de entidade familiar: “Estes filhos (...) constituem eles mesmos uma entidade familiar, pois para

eles não encontro outra designação mais adequada no nosso ordenamento jurídico. Se os três irmãos são

proprietários de um apartamento e ali residem, esse bem está protegido pela impenhorabilidade pois a alienação

forçada dele significará a perda da moradia familiar.” Igual base foi empregada no âmbito do REsp 57.606, 4ª

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 139

imóvel – entendimento que restou consubstanciado no Enunciado n. 364 da Súmula de

Jurisprudência Dominante do Superior Tribunal de Justiça.10

A amplitude da interpretação do instituto não se limita, contudo, apenas às

pessoas que podem desfrutar da impenhorabilidade, mas também do próprio objeto em

relação ao qual recai a proteção: guiado pela finalidade de garantir condições de vida

mínimas para a família que permeia o instituto previsto na Lei nº. 8.009/1990, o Superior

Tribunal de Justiça compreendeu que a impossibilidade de execução forçada ali prevista

estendia-se também à poupança cuja destinação estivesse afetada à aquisição do bem de

família. Asseverou-se, na ocasião, que “o dinheiro aplicado em poupança estava vinculado

à aquisição do bem de família”, na medida em que “a autorização para a penhora esvaziaria

a possibilidade de quitação do saldo devedor”, a justificar a “extensão do benefício da

impenhorabilidade”.11 Do mesmo modo, garante-se a impenhorabilidade de bem que,

embora não seja diretamente habitado pela entidade familiar, destina-se, ainda que

indiretamente, a garantir o acesso à moradia, como ocorre na hipótese de bem cujos frutos

T., Rel. Min. Fontes de Alencar, julg. 11.4.1995, publ.DJ 15.5.1995). O entendimento vai ao encontro do

defendido em doutrina: “A impenhorabilidade alcança o imóvel em que vivem irmãos ou pessoas que

configurem desenho jurídico familiar, numa concepção aberta e plural da família” (FACHIN, Luiz Edson.

Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 146). 10 Em doutrina, a aplicação ao devedor que habitava sozinho seu imóvel era defendida, antes da edição da

Súmula, por Anderson Schreiber: “A proteção ao imóvel residencial, à moradia da pessoa humana, deve ser

garantida mesmo nos casos de devedores solteiros, em que não há qualquer entidade familiar a ser tutelada.

Habitar é fundamental para a dignidade de qualquer indivíduo, esteja ele integrado a uma família ou não.”

(SCHREIBER, Anderson. Direito à moradia como fundamento para a impenhorabilidade do imóvel residencial

do devedor solteiro. In: RAMOS, Carmem Lucia Silveira et. al. (orgs.). Diálogos sobre Direito Civil:

construindo uma racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 87).

A título exemplificativo, veja-se expressivo precedente do STJ, em que a questão foi amplamente debatida,

assim ementado: “Processual. Execução. Impenhorabilidade. Imóvel. Residência. Devedor solteiro e solitário.

Lei 8.009/90. A interpretação teleológica do Art. 1º, da Lei 8.009/90, revela que a norma não se limita ao

resguardo da família. Seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa humana: o direito

à moradia. Se assim ocorre, não faz sentido proteger quem vive em grupo e abandonar o indivíduo que sofre o

mais doloroso dos sentimentos: a solidão. É impenhorável, por efeito do preceito contido no Art. 1º da Lei

8.009/90, o imóvel em que reside, sozinho, o devedor celibatário”. (STJ, EREsp 182.223, Corte Especial, Rel.

Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Rel. p/ acórdão Min. Humberto Gomes de Barros, julg. 6.2.2002). 11 Trata-se do STJ, REsp 707.623, 2ª T., Rel. Min. Herman Benjamin, julg. 16.4.2009, em cuja ementa se lê:

“Processual Civil e Tributário. Execução Fiscal. Penhora. Poupança vinculada diretamente à aquisição do bem

de família. Impenhorabilidade. 1. O Tribunal de origem indeferiu a penhora de dinheiro aplicado em poupança,

por verificar a sua vinculação ao financiamento para aquisição de imóvel caracterizado como bem de família.

2. Embora o dinheiro aplicado em poupança não seja considerado bem absolutamente impenhorável –

ressalvada a hipótese do art. 649, X, do CPC –, a circunstância apurada no caso concreto recomenda a extensão

do benefício da impenhorabilidade, uma vez que a constrição do recurso financeiro implicará quebra do

contrato, autorizando, na forma do Decreto-Lei 70/1966, a retomada da única moradia familiar. 3. Recurso

Especial não provido”.

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são empregados para alugar o bem em que moram, entendimento que restou consagrado no

Enunciado n. 486 da Súmula da Jurisprudência Dominante do Superior Tribunal de Justiça.12

A elogiável construção jurisprudencial, como se observa, encontra-se

permeada pela função exercida pelo bem tutelado no caso concreto,13 identificando a

proteção conferida pela lei com a tutela da pessoa humana.14 Aludida orientação também

orienta a interpretação dos bens móveis abrangidos pela impenhorabilidade, a definir em que

circunstância contribuem para a proteção mínima da família e da pessoa ou se tratariam de

bens suntuosos (abarcados, portanto, pela exceção consagrada no art. 2º).15 Já se demonstrou

em doutrina a evolução da jurisprudência da Corte Superior que, após debate entre correntes

restritivas e ampliativas da impenhorabilidade dos bens móveis que guarnecem o bem de

família, se consolidou no sentido de que abrange o que normalmente se encontra em uma

residência, tais como computador, televisão e eletrodomésticos em geral,16 asseverando-se,

mais recentemente, que “abrange utilitários da vida moderna atual”.17 Também em relação

12 “É impenhorável o único imóvel residencial do devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda

obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua família”. 13 Justamente por isso a própria Corte exclui a proteção em hipóteses nas quais o bem não se mostra essencial

para a moradia e sustento da família, como ocorre quando se trata de imóvel desocupado (AgRg no REsp

1.232.070, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julb. 9.10.2012); que não se reverta sob nenhum aspecto para a

renda familiar (REsp 1.035.248, 4ª T., Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julg. 16.4.2009); ou, ainda, há

indícios de que se busca apenas salvaguardar patrimônio, sem atender aos pressupostos da lei (v., nesse sentido,

STJ, REsp 1.417.629, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 10.12.2013). 14 STJ, REsp 1400342, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 8.10.2013: “Civil e processo civil. Recurso

especial. Indicação do dispositivo legal violado. Ausência. Súmula 284⁄STF. Bem de família. Imóvel

desocupado, mas afetado à subsistência dos devedores. Impenhorabilidade. (...) 4. A regra inserta no art. 5º da

Lei 8.009⁄1990, por se tratar de garantia do patrimônio mínimo para uma vida digna, deve alcançar toda e

qualquer situação em que o imóvel, ocupado ou não, esteja concretamente afetado à subsistência da pessoa ou

da entidade familiar”. 15 Tal lógica parece inspirar o entendimento de que os móveis em duplicidade não são abarcados pela

impenhorabilidade. É ver-se: “Agravo Regimental no Agravo de Instrumento. Execução. Penhora. Móveis que

guarnecem a casa em duplicidade. Bem de família não configurado. Revisão. Impossibilidade. Súmula 7/STJ.

Agravo regimental improvido. I. A aferição da essencialidade do bem, para que seja considerado impenhorável,

exigiria o reexame do conjunto fático exposto nos autos, o que é defeso ao Superior Tribunal de Justiça, nos

termos da Súmula 07/STJ. II. Os bens encontrados em duplicidade na residência são penhoráveis de acordo

com a jurisprudência do STJ. Agravo Regimental improvido” (STJ, AgRg no Ag 821.452, 3ª T., Rel. Min.

Sidnei Beneti, julg. 18.11.2008, publ. 12.12.2008). Em seu inteiro teor, ao reiterar os termos do julgamento do

Agravo, asseverou-se que a ausência de proteção de tais bens se justificaria “por não serem absolutamente

necessários à manutenção básica da unidade familiar”. No mesmo sentido: “Bem de família. Equipamentos

que guarnecem o bem de família. Precedentes da Corte. 1. Não está sob a cobertura da Lei n° 8.009/90, nos

termos de precedentes da Corte, um segundo equipamento, seja aparelho de televisão, seja videocassete. 2.

Recurso especial conhecido e provido, em parte” (STJ, REsp 326991, 3ª T., Rel. MIn. Carlos Alberto Menezes

Direito, julg. 18.12.2001). 16 COSTA, Pedro Oliveira. O ‘bem de família’ na jurisprudência do STJ. Revista Trimestral de Direito Civil,

vol. 3, p. 172-175, jul/set 2000. 17 STJ, REsp 875.687, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julg. 9.8.2011. No mesmo sentido: “Reclamação.

Divergência entre acórdão prolatado por turma recursal estadual e a jurisprudência do STJ. Embargos à

execução. Televisor e máquina de lavar. Impenhorabilidade. I. É assente na jurisprudência das Turmas que

compõem a Segunda Seção desta Corte o entendimento segundo o qual a proteção contida na Lei nº 8.009/90

alcança não apenas o imóvel da família, mas também os bens móveis que o guarnecem, à exceção apenas os

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à definição da suntuosidade do bem móvel parece ser central avaliação funcional18 – única

forma capaz de definir, à luz das peculiaridades do caso concreto, a relevância do objeto para

a garantia de moradia digna. Compreende-se, assim, a diversa qualificação do mesmo objeto,

ora compreendido como abarcado pela impenhorabilidade, ora passível de execução.19

3. A questão da configuração de fraude na alienação do bem de família e seus efeitos

sobre a impenhorabilidade em julgados do Superior Tribunal de Justiça

Como consequência das restrições à execução forçada dos bens albergados

pela proteção garantida pela Lei nº. 8.009/1990, afigura-se possível que determinado crédito

reste insatisfeito, muito embora o devedor seja proprietário de determinados bens, por vezes

valiosos.20 Com o intuito de evitar que o credor ficasse à mercê de posturas abusivas do

veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos. II. São impenhoráveis, portanto, o televisor e a

máquina de lavar roupas, bens que usualmente são encontrados em uma residência e que não possuem natureza

suntuosa. Reclamação provida” (STJ, Rcl 4.374, 2ª S., Rel. Min. Sidnei Beneti, julg. 23.2.2011). 18 A respeito da avaliação funcional dos bens jurídicos, confira-se: “a noção de bens jurídicos, embora se situe

na estrutura da relação jurídica, só poderá ser compreendida de acordo com a função desempenhada pela

situação jurídica que serve de objeto. (...) O significado do bem jurídico depende essencialmente do interesse

que o qualifica e, portanto, sua classificação há de ser apreendida na esteira da função que o bem desempenha

na relação jurídica” (TEPEDINO, Gustavo. Regime jurídico dos bens no Código Civil. In: VENOSA, Sílvio

de Salvo et. al. (coords.). 10 Anos do Código Civil: desafios e perspectivas. São Paulo: Atlas, 2012, p. 50). 19 Sobre o tema, seja consentido relembrar precedentes do Superior Tribunal de Justiça que, ao avaliar a

possiblidade de penhora de piano em distintas situações, concluíram de forma diametralmente diversa.

Enquanto, por um lado, considerou-se abrangido pela proteção legal o instrumento musical por se tratar de bem

essencial para o estudo e a possibilidade de seu emprego no futuro para sustento das filhas da devedora, por

outro, na ausência de circunstâncias capazes de caracterizar a essencialidade desse mesmo bem para a entidade

familiar, entendeu-se não abarcado o móvel pela proteção legal. Veja-se os respectivos precedentes:

“Processual civil. Embargos à execução. Penhora. TV. Piano. Bem de família. Lei 8.009/90. Art. 649, VI, CPC.

A Lei 8.009/90 fez impenhoráveis, além do imóvel residencial próprio da entidade familiar, os equipamentos

e móveis que o guarneçam, excluindo veículos de transporte, objetos de arte e adornos suntuosos. O favor

compreende o que usualmente se mantém em uma residência e não apenas o indispensável para fazê-la

habitável, devendo, pois, em regra, ser reputado insuscetível de penhora aparelho de televisão. II. In casu, não

se verifica exorbitância ou suntuosidade do instrumento musical (piano), sendo indispensável ao estudo e futuro

trabalho das filhas da Embargante” (STJ, REsp 207.762, 3ª T., Rel. Min. Waldemar Zveiter, julg. 27.3.2000);

“Processual civil. Embargos à execução. Impenhorabilidade dos bens móveis e utensílios que guarnecem a

residência, incluindo computador e impressora. Precedentes. Piano considerado, in casu, adorno suntuoso (art.

2º, da Lei 8.009/90). (...) Quanto ao piano, não há nos autos qualquer elemento a indicar que o instrumento

musical seja utilizado pelo Recorrente como meio de aprendizagem, como atividade profissional ou que seja

ele bem de valor sentimental, devendo ser considerado, portanto, adorno suntuoso. Incidência do disposto no

artigo 2º da Lei 8.009/90” (STJ, REsp 198370, 3ª T., Rel. Min. Waldemar Zveiter, julg. 16.11.2000). 20 Conquanto controvertida (v., por todos, REDONDO, Bruno Garcia. Impenhorabilidade no Projeto de Novo

Código de Processo Civil: relativização restrita e sugestão normativa para generalização da mitigação. Revista

de Processo, vol. 201, p. 221 e ss., nov. 2011), verificam-se decisões que consideram desimportante o valor do

imóvel que se caracteriza como bem de família, rejeitando-se pedidos para alienação forçada em que se

garantiria ao devedor montante suficiente para a aquisição de novo imóvel: “A Lei nº 8.009/90 não estabelece

qualquer restrição à garantia do imóvel como bem de família no que toca a seu valor nem prevê regimes

jurídicos diversos em relação à impenhorabilidade, descabendo ao intérprete fazer distinção onde a lei não o

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devedor, previu o legislador hipótese específica de desconsideração da proteção, nos casos

em que, esse, “sabendo-se insolvente, adquire de má-fé imóvel mais valioso para transferir

a residência familiar, desfazendo-se ou não da moradia antiga”. O dispositivo – que,

principalmente por tratar de casos em que nem sempre haverá prejuízo aos credores, mas

também em decorrência da solução apresentada em seu parágrafo primeiro, sujeita-se a

críticas21 – denota a preocupação com o desvirtuamento da tutela do bem de família.

Trata-se, todavia, de hipótese específica, a suscitar dúvidas a respeito da

possibilidade de intervenção para superar a impenhorabilidade em outros casos nos quais se

configure comportamento abusivo ou fraudulento do devedor. Sobre o assunto, identificam-

se duas orientações tendencialmente divergentes no âmbito da jurisprudência do Superior

Tribunal de Justiça.

Por um lado, verificam-se precedentes que determinam a superação da

proteção conferida ao bem de família em casos de fraude. É o caso do Recurso Especial

1.299.580,22 em que se avaliou a possibilidade de penhorar residência do devedor que, ao

longo da execução (inicialmente movida em face de empresa da qual era sócio, à qual passou

a responder após a desconsideração da personalidade jurídica), alienou seu patrimônio de

modo a manter apenas o bem de família em sua propriedade.23 A execução originou-se do

descumprimento de obrigação da entrega de imóvel, adquirido na planta pelo Exequente e

jamais construído pela empresa do Executado, referindo-se à devolução dos valores pagos,

tendo observado a Ministra Relatora Nancy Andrighi, que, após quinze anos, nenhum valor

houvera sido reavido e o adquirente, que buscava adquirir novo imóvel, enfrentava

fez” (STJ, REsp 1.397.552, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julg. 20.11.2014). V. tb.: STJ, REsp

1.320.370, 2ª T., Rel. Min. Castro Meira, julg. 16.6.2012. 21 “Todavia, a solução do legislador, neste caso, é complicadíssima, pois não há necessidade de anular a

alienação do primitivo bem de família, se o novo é mais valioso do que o antigo. Basta, isto sim, permitir a

execução do novo imóvel, no valor que ultrapassar o do antigo, restando esse valor antigo impenhorável, ainda

que contido no imóvel mais valioso. Em caso de execução do imóvel mais valioso ou de ser objeto de concurso

de credores, pelo aludido saldo, o incômodo de ter, com esse valor restante, de comprar novo imóvel, no mesmo

valor do antigo, é do mencionado adquirente de má-fé. Tudo, para que se evite anular a alienação anterior,

realizada a terceiro de boa-fé, no mais das vezes. Nem se diga que este terceiro estaria sujeito à mesma

anulação; pois, sendo comprador ou permutante, dinheiro ou bem seu, substituiu, no patrimônio do alienante,

o valor do imóvel por esse terceiro adquirido. Aliás, como visto, nos casos analisados, existe acréscimo no

patrimônio do alienante o que não se coaduna com a ideia de fraude” (AZEVEDO, Álvaro Villaça. Direito de

Família. São Paulo: Editora Atlas, 2013, p. 377). 22 STJ, REsp 1.299.580, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 20.3.2012. 23 “Cinge-se a lide a estabelecer se é possível ao Tribunal afastar a proteção conferida a bem de família com

fundamento em que o devedor alienou, no curso da execução, outros bens imóveis de que era proprietário,

remanescendo apenas com o de sua residência”.

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dificuldades financeiras.24 Ao apreciar o caso, asseverou a 3ª Turma que a conduta do

devedor violava os padrões impostos pela boa-fé objetiva e a própria finalidade da proteção

legislativa.25

O entendimento foi mais uma vez expressado em precedente da 4ª Turma

do Superior Tribunal de Justiça, em que se consignou a ausência de violação ao artigo 1º da

Lei nº. 8.009/1990 por se ter determinado a penhora de imóvel adquirido com proventos

decorrentes de doação efetuada pelos sócios da executada (pessoa jurídica) após o regular

conhecimento da execução.26 Consignou a Ministra Relatora Isabel Gallotti que “o

entendimento da Corte de origem não destoa do entendimento deste Tribunal, no sentido de

que é afastada a proteção conferida pela Lei 8.009/90, quando está caracterizada a fraude à

execução”.27 Invocou o julgado orientação consagrada na Corte a partir de entendimento

adotado ainda sob a égide do Código Civil de 1916,28 segundo a qual não há que se

24 “Na hipótese dos autos, pelo que se depreende da análise das peças processuais, o recorrido, de boa-fé,

procurou adquirir do recorrente, na planta, um imóvel para sua residência. Esse imóvel não foi construído,

motivando a propositura da ação judicial. Mais de quinze anos depois, o credor não logrou êxito em receber o

valor que investiu na compra de sua casa. Há notícia no processo, inclusive, de que ele se casou e tentou,

novamente, adquirir um imóvel para residir com sua nova família, tendo atravessado dificuldades e se tornado

inadimplente, sob o risco de perder esse novo imóvel (fl. 55, e-STJ), não obstante mantenha, perante o réu, o

crédito aqui discutido em aberto. Há, portanto, o interesse de duas famílias em conflito, não sendo razoável

que se proteja a do devedor que vem obrando contra o direito, de má-fé, segundo apurou o TJ/RJ, em detrimento

da do credor que, até onde se pode constatar, vem atuando nos termos da Lei”. 25 “Não há, em nosso sistema jurídico, norma que possa ser interpretada de modo apartado aos cânones da boa-

fé. Todas as disposições jurídicas, notadamente as que confiram excepcionais proteções, como ocorre com a

Lei 8.009/90, só têm sentido se efetivamente protegerem as pessoas que se encontram na condição prevista

pelo legislador. Permitir que uma clara fraude seja perpetrada sob a sombra de uma disposição legal protetiva

implica, ao mesmo tempo, promover uma injustiça na situação concreta e enfraquecer, de maneira global, todo

o sistema de especial de proteção objetivado pelo legislador. (...) Ao alienar todos os seus bens, menos um,

durante o curso de processo que poderia levá-lo à insolvência, o devedor não obrou apenas em fraude à

execução: atuou também com fraude aos dispositivos da Lei 8.009/90. Todo o direito tem como limite o seu

regular exercício, de boa-fé. O abuso do direito deve ser reprimido”. 26 Veja-se trecho do acórdão do Tribunal de origem: “Em termos mais específicos e, a fim de corroborar o

posicionamento adotado pelo Juízo, é de se dizer que seu entendimento se mostrou plenamente adequado ao

conjunto encartado aos autos, uma vez que, como bem definido por força da r. sentença, a alienação do bem

discutido nos autos se deu em evidente fraude à execução, uma vez que, conforme resultou demonstrado por

meio do todo processado, notadamente pelo que diz a Matricula do Imóvel carreada ao feito (fls.20/21), o bem

foi adquirido pelas embargantes em 22/05/2003, ou seja, após a propositura da executiva embargada

(25/04/2002), bem como da promoção da regular citação dos devedores (31/03/2003), esta que se deu na pessoa

dos sócios da executada (fls. 132, dos autos da executiva), sendo importante salientar, ademais, que a aquisição

do bem constrito se deu com recursos provenientes de doação promovida pelos pais das adquirentes da coisa

e, ora embargantes, enquanto sócios da executada (...)” (TJSP, Ap. Cív. 9081478-33.2007.8.26.0000, 16ª

Câmara de Direito Privado, julg. 28.2.2012). 27 STJ, AgRg no AREsp 334.975, 4ª T., Rel. Min. Isabel Gallotti, julg. 7.11.2013. 28 “Processual Civil. Lei 8.009/1990. Superveniência. Penhora levada a efeito antes de sua vigência.

Desconstituição. Direito transitório. Bem que retornou ao patrimônio dos devedores por força de ação pauliana.

Irrelevância. Recurso não conhecido. I. A Lei 8.009/1990, de aplicação imediata, incide no curso da execução

se ainda não efetuada a alienação forçada, tendo o condão de levantar a constituição sobre os bens afetados

pela impenhorabilidade. II. Tendo o bem penhorado retornado ao patrimônio do devedor após o acolhimento

de ação pauliana, é de se excluir a aplicação da Lei 8.009/1990, porque seria prestigiar a má-fé do devedor. III.

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considerar impenhorável bem de família que retorna ao patrimônio do devedor em

decorrência do reconhecimento de fraude em sua alienação.29

Também com o objetivo de “impedir a deturpação do benefício legal,

vindo a ser utilizado como artifício para viabilizar a aquisição, melhoramento, uso, gozo e⁄ou

disposição do bem de família sem nenhuma contrapartida, propiciando o enriquecimento

ilícito do proprietário do imóvel”,30 o Superior Tribunal de Justiça determinou ser

penhorável imóvel no caso de execução decorrente da ausência de devolução de sinal

entregue em promessa de compra e venda relativa ao próprio imóvel, na hipótese de

inexistirem outros bens capazes de satisfazer o credor. Nada obstante se fundamentar a

orientação na exceção prevista no art. 3º, inciso II da Lei nº. 8.009/1990, verifica-se a

intenção de coibir comportamentos incompatíveis com o princípio da boa-fé objetiva.31

Em outra hipótese na qual entendeu o STJ que teria ocorrido fraude à

execução capaz de determinar a penhora de bem em que residia entidade familiar, afirmou-

se que “o devedor que aliena, gratuita ou onerosamente, o único imóvel, onde reside com a

Segundo a conhecida lição de Clóvis, ‘não é ao lado do que anda de má-fé que se deve colocar o direito; sua

função é proteger a atividade humana orientada pela moral ou, pelo menos, a ela não oposta’” (STJ, REsp

119.208, 4ª T., Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, julg. 18.11.1997). No mesmo sentido: STJ, REsp

337.222, 4ª T., Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, julg. 18.9.2007; REsp 170.140, 4ª T., Rel. Min. Cesar Asfor

Rocha, julg. 7.4.1999; REsp 123.495, 4ª T., Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, julg. 23.9.1998. 29 Ao avaliar também hipótese semelhante ao REsp 1.227.366, descrito no item 1, isto é de doação de bem de

família a filho dos executados (mas sem enfrentar se haveria configuração de fraude à execução em razão da

verificação de preclusão sobre a matéria), asseverou a 6ª Turma do STJ: “O bem que retorna ao patrimônio do

devedor, por força de reconhecimento de fraude à execução, não goza da proteção da impenhorabilidade

disposta na Lei nº 8.009/1990, sob pena de prestigiar-se a má-fé do executado” (STJ, AgRg no REsp 1.085.381,

6ª T., Rel. Min. Paulo Gallotti, julg. 10.3.2009). 30 STJ, REsp 1440786, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 27.5.2014. Em precedente que enfrentou hipótese

semelhante, asseverou o Ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior: “Se a proprietária resolve se desfazer do bem

(...) é porque dele não necessita, ou porque pretende aplicar o produto da venda na aquisição de outra moradia.

Recebendo a integralidade do preço e ficando com o imóvel que prometera vender, estará se locupletando, pois

com os recursos auferidos não adquire outro bem, não paga a dívida resultante da resolução do negócio, nem

oferece dinheiro para a penhora, mantendo íntegro o seu patrimônio graças à lei de impenhorabilidade do bem

de família. Fica prejudicado o promissário comprador, cumpridor do contrato. Nestas circunstâncias, a

impenhorabilidade não pode prevalecer, porquanto a sua proprietária foi a primeira a incluí-lo entre os bens

alienáveis. Recebido o preço previsto no contrato, é irrecusável o direito do promissário comprador buscar o

que desembolsou, pois ele poderia – reunidos os pressupostos – exigir a própria adjudicação compulsória e

obter do juiz a transferência da propriedade do imóvel que adquiriu, ou pelo menos a cessão da posição

contratual da promitente junto ao instituto de previdência que construiu o prédio. Além disso, é preciso garantir

a prevalência do princípio da responsabilidade pelo ilícito contratual que teve por objeto o próprio imóvel,

além da necessidade de o Direito proteger a boa fé nos negócios” (REsp 51.480, 4ª T., Rel. Min. Ruy Rosado

de Aguiar Júnior, julg. 20.6.1995). 31 Veja-se trecho do inteiro teor: “a devedora claramente se aproveitou da proteção conferida pela Lei nº

8.009/90 para compromissar a venda do próprio bem de família, sabedora de que o negócio seria desfeito e na

predisposição de reter indevidamente o sinal adiantado pelo comprador, ora recorrente. Não cabe dúvida de

que a proteção legal foi desvirtuada, propiciando o enriquecimento ilícito do proprietário do imóvel em

detrimento de terceiro de boa-fé”.

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família, está, ao mesmo tempo, dispondo daquela proteção legal”.32 Cuida-se de precedente

nos qual se avaliou doação efetuada pelos genitores – que já sabiam responder por execução

– a seu herdeiro, por meio de terceira pessoa, com quem celebraram contrato de promessa

de compra e venda não registrada.33 Afirmou-se no acórdão que, a despeito do bem já abrigar

a residência familiar antes da doação (e que, portanto, não seria penhorável antes da

operação), estaria configurada conduta maliciosa pelos executados, de modo a mitigar sua

impenhorabilidade. Indicou-se, em sua conclusão, que (i) o ordenamento não poderia tolerar

atos do devedor tendentes a “frustrar a satisfação executiva do credor”; (ii) a tentativa de se

valer da proteção legal após a alienação – gratuita ou onerosa – do bem de família e depois

alegar sua proteção configuraria comportamento contraditório; e (iii) sendo evidente o

propósito do devedor de blindar seu patrimônio – como no caso, já que a doação foi feita

dias após a intimação para pagamento e por intermédio de “contrato de gaveta” – há de se

reconhecer a fraude à execução e rejeitar a conduta maliciosa, determinando-se a penhora.

Por outro lado, em sentido oposto aos precedentes acima descritos,

verifica-se posicionamento de acordo com o qual, diante da proteção conferida ao bem de

família, não haveria que se cogitar de fraude à execução e a consequente constrição do

imóvel. Nessa esteira, a 1ª Turma do STJ, ao enfrentar hipótese na qual se verificou alienação

após a citação do devedor em execução fiscal e que implicou a ausência de outros bens para

a satisfação do crédito, asseverou que “o imóvel familiar é revestido de impenhorabilidade

absoluta, consoante a Lei 8.009/1990, tendo em vista a proteção à moradia conferida pela

CF, e de que não há fraude à execução na alienação de bem impenhorável, tendo em vista

que o bem de família jamais será expropriado para satisfazer a execução, não tendo o

exequente qualquer interesse jurídico em ter a venda considerada ineficaz”.34

32 STJ, REsp 1.364.509, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 10.6.2014. 33 Em sentido semelhante, a 4ª Turma manteve orientação fixada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, embora

não tenha apreciado a questão em decorrência do Enunciado n. 7 de sua Súmula de Jurisprudência Dominante:

“Execução. Bem de família. Impenhorabilidade. Aplicação da Lei n. 8009, de 29.03.90, afastada em virtude da

má-fé com que se houveram os executados. Requisito do art. 5º do citado diploma legal não demonstrado.

Matéria de fato. Má-fé dos executados proclamada pela decisão recorrida em razão de peculiaridades da causa,

dentre elas a circunstância de que, por decisão judicial, se declarou ineficaz a doação pelos mesmos feita aos

filhos. Matéria que se insere no plano dos fatos. Precedentes da Quarta Turma no sentido de que não se deve

prestigiar a má-fé do devedor. Requisitos exigidos pela Lei nº 8.009/90 que estão a depender, por igual, do

reexame de matéria fática (súmula nº 07-STJ). Recurso especial não conhecido” (STJ, REsp 187.802, 4ª T.,

Rel. Min. Barros Monteiro, julg. 7.12.1999). 34 STJ, AgRg no AREsp 255.799, 1ª T., Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, julg. 17.9.2013, grifou-se. Em

seu inteiro teor, o acórdão reproduz trecho da decisão proferida pelo Tribunal de origem (TJRS) em que a

impenhorabilidade absoluta é justificada da seguinte forma: “a proteção do bem de família pela

impenhorabilidade tem como pauta a dignidade da pessoa humana, fundamento da República (art. 1º, III da

Constituição Federal) e valor primordial do ordenamento jurídico pátrio, do qual deriva diretamente o direito

fundamental à moradia (art. 6º da Carta)”.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 146

Orientação semelhante foi traçada no REsp 976.566, em que, entre outros

argumentos, se afirmou inexistir qualquer interesse do credor no desfazimento de negócios

jurídicos de alienação envolvendo bens de família, na medida em que se caracterizam pela

impenhorabilidade e, logo, jamais poderão ser excutidos para o pagamento da dívida. Em

seus termos: “não há fraude à execução na alienação de bem impenhorável nos termos da

Lei n.º 8.009/90, tendo em vista que o bem de família jamais será expropriado para satisfazer

a execução, não tendo o exequente nenhum interesse jurídico em ter a venda considerada

ineficaz”.35

A inexistência de prejuízo para o credor também permeou acórdão

proferido pela 2ª Turma da Corte Superior, em que se avaliou a legalidade de alienação de

bem de família enquanto em curso execução fiscal. Na esteira dos precedentes anteriores,

destacou-se que “o Fisco não teve prejuízo com o afastamento da fraude à execução em razão

de o bem objeto da execução ser impenhorável por força de lei”.36 Segundo argumentou o

Ministro Relator Castro Meira, “ainda que não tivesse sido alienado a terceiro, a

consequência para a anulação seria seu retorno ao patrimônio do devedor”, com a

impenhorabilidade que lhe caracterizaria – não tendo o julgado enfrentado as ressalvas

estabelecidas nos precedentes relativos à penhorabilidade do bem de família que retorna ao

patrimônio do devedor por anulação decorrente de ação pauliana (v. nota 28).

A hipótese de doação pelos genitores a seu herdeiro do bem de família que

habitavam foi novamente enfrentada no REsp 1.227.366, consoante descrito no item 1,

supra. Ao contrário do decidido no âmbito do REsp 1.364.509 – o que foi explicado no

acórdão como consequência das peculiaridades daquela hipótese, em que a alienação se

operara por meio de “contrato de gaveta” –, entendeu a 4ª Turma do STJ que a operação não

poderia ser considerada fraudulenta, vez que inexistentes os requisitos necessários para

tanto, notadamente o prejuízo para os credores, na medida em que o imóvel já

consubstanciava bem de família anteriormente à operação. Consoante expôs o Ministro

Relator Luis Felipe Salomão:

É que o parâmetro crucial para discernir se há ou não fraude à execução é

verificar a ocorrência de alteração na destinação primitiva do imóvel – qual

seja, a moradia da família – ou de desvio do proveito econômico da

alienação (se existente) em prejuízo do credor.

35 STJ, REsp 976.566, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julg. 20.4.2010. 36 STJ, REsp 846.897, 2ª T., Rel. Min. Castro Meira, julg. 15.3.2007.

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Além de tal fundamento – como visto, também empregado pelos

precedentes da 4ª e da 1ª Turma –, procurou demonstrar o julgado que à luz da finalidade

atribuída pelo ordenamento à proteção do bem de família – “instrumento de tutela do direito

fundamental à moradia da entidade familiar e, portanto, indispensável à composição de um

mínimo existencial para uma vida digna” –, que representa orientação legislativa no sentido

de que a impenhorabilidade se afigura mais relevante que a satisfação do credor, o

reconhecimento de fraude envolvendo os imóveis que atraem a proteção legal deve ser

verificada com prudência pelo intérprete, se caracterizando apenas em hipóteses

excepcionais, já previstas na própria Lei n. 8.009/1990, de modo a excepcionar a

impenhorabilidade do bem de família apenas quando configuradas as circunstâncias

previstas nos artigos 3º e 4º.37

4. À guisa de conclusão: em busca do equilíbrio entre a proteção à moradia e a tutela

da boa-fé objetiva

Diante do destacado papel das funções atribuídas à impenhorabilidade do

bem de família no ordenamento brasileiro, impõe-se ao intérprete cautela na avaliação da

possibilidade de superação da proteção com base em conduta fraudulenta do devedor.

Consoante se procurou demonstrar no item 2, supra, cuida-se de

importante instrumento para a proteção da pessoa humana, a espancar interpretações

açodadas que representem a superação imotivada da tutela legal. Nada obstante, não se pode

ignorar as diversas hipóteses em que o devedor se vale de forma reprovável do benefício.

Nesse cenário, parece ser recomendável evitar o recurso a fórmulas

genéricas na determinação da possibilidade de superação da impenhorabilidade do bem de

família em casos de fraude. Cabe ao intérprete avaliar todas as circunstâncias relacionadas

ao caso concreto e identificar, à luz dos diversos interesses envolvidos, a solução que melhor

atenda aos objetivos constitucionais,38 não se podendo olvidar que, se por um lado a proteção

37 No caso concreto, indicou-se, ainda, outro fundamento para a manutenção da impenhorabilidade, relativo à

indivisibilidade do bem. Assim, na medida em que a proteção visa a salvaguardar a moradia da família, não já

o patrimônio do devedor, o reconhecimento, no Tribunal de origem, que 50% do imóvel não seria penhorado

por não estar envolvido na fraude deveria levar à impenhorabilidade total do bem, na esteira de remansosa

jurisprudência do STJ, que determina a impossibilidade de penhora parcial no caso de descaracterização do

imóvel (v., por exemplo STJ, REsp 1405191, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. 3.6.2014). Nos termos da

decisão: “ainda que, em última instância, fosse caracterizada a doação fraudulenta, o benefício da

impenhorabilidade estender-se-ia à totalidade do bem, mormente ante a sua incontroversa destinação”. 38 PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 201.

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 148

ao bem de família traduz concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, há que

se prestigiar também o princípio da boa-fé objetiva, expressão, por sua vez, da solidariedade

constitucional39 (e, assim, do próprio conceito de dignidade)40 – igualmente identificada pela

Constituição como objetivo fundamental da República (art. 3º, I da CRFB).

Portanto, conquanto não haja dúvidas que, na esteira do estabelecido no

REsp 1.227.366, a ocorrência de fraude à execução apenas se mostra possível quando a

alienação importar efetivo prejuízo aos credores,41 de modo que a mera alienação de bem de

família não implica, por si só, alteração no panorama patrimonial do devedor – seja por

possuir o devedor outros bens para arcar com a obrigação, seja pelo bem envolvido já estar

albergado pela impenhorabilidade antes da alienação (o que, ao fim e ao cabo, não implica

prejuízos aos credores que já não poderiam se valer daquele imóvel), há de se reconhecer

hipóteses excepcionais em que, ainda assim, o benefício deve ser suplantado em virtude de

comportamento do devedor capaz de incutir no credor legítima expectativa de executá-lo.42

39 “Como se sabe, a boa-fé objetiva constitui-se em um dos princípios fundamentais do regime contratual

contemporâneo, consagrada nos arts. 113 e 422 do CC/2002, como expressão do princípio constitucional da

solidariedade social” (TEPEDINO, Gustavo. Caução de créditos no direito brasileiro: possibilidades do penhor

sobre direitos creditórios. In: Soluções Práticas de Direito. Vol. III, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012,

p. 451, grifou-se). 40 “A pessoa é inseparável da solidariedade: ter cuidado com o outro faz parte do conceito de pessoa”

(PERLINGIERI, Pietro, cit., p. 461). Para Maria Celina Bodin de Moraes a solidariedade social representa um

dos aspectos da dignidade da pessoa humana (O princípio da dignidade humana. In: BODIN DE MORAES,

Maria Celina (org.). Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 1 - 61). 41 “Especificamente no que concerne à hipótese prevista no inc. II (...) exigem-se, cumulativamente, três

requisitos fundamentais para a deflagração da fraude à execução, quais sejam: (a) o prévio ajuizamento de ação

capaz de reduzir o devedor à situação de insuficiência patrimonial, instaurada pela sua citação valida; (b) o

dano, isto é, efetiva situação de insuficiência patrimonial oriunda ou agravada direta e necessariamente do ato

de alienação; e (c) o conhecimento do processo por parte do adquirente, a fim de tutelar a situação jurídica de

terceiros de boa-fé” (TEPEDINO, Gustavo. Desconsideração inversa da personalidade jurídica no direito

brasileiro. In Soluções Práticas de Direito, vol. III, cit., p. 134). Cuida-se de requisito também reconhecido na

fraude contra credores: “O êxito da pauliana, em qualquer hipótese, depende da configuração do prejuízo

sofrido pelo credor que a propõe. Além, pois, da prova de seu credito, haverá de demonstrar a insolvência do

devedor, criada ou agravada pelo ato impugnado. Esse déficit patrimonial é que afeta a garantia de

exequibilidade do credito do promovente, gerando a impossibilidade de realizá-lo, no todo ou em parte (...)

Para configurar o eventus damni é, outrossim, necessário que o ato de disposição praticado pelo devedor tenha

como objeto bem penhorável, pois somente assim terá comprometido a garantia genérica de seus credores

quirografários. Se se alienou bem legalmente impenhorável, como a casa de moradia (Lei n. 8009, de

29/3/1990), ou o instrumento necessário ao trabalho ou profissão (CPC, art. 649, VI), nenhum decréscimo

sofreu o patrimônio excutível do devedor. Logo, prejuízo algum adveio do ato de disposição para os credores

do alienante. E, sem prejuízo, não cabe falar em fraude contra credores” (THEODORO JÚNIOR, Humberto.

Fraude contra credores: A natureza da sentença pauliana, 2ª ed., Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2001, p.

141) 42 Há que se valorar, em tal apuração, se o comportamento do devedor era capaz de legitimamente fazer surgir

no credor tal expectativa. Consoante se esclarece em doutrina: “não são todas as expectativas, mas somente

aquelas que, à luz das circunstancias do caso, estejam devidamente fundadas em atos concretos (e não somente

indícios) praticados pela outra parte, os quais, conhecidos pelo contratante, o fizeram confiar na manutenção

da situação assim gerada. Mais que isso, o comportamento contraditório só será alcançado pela boa-fé objetiva

quando não for justificável e, ainda, quando a reversão de expectativas assim ocorrida gere efetivos prejuízos

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 149

Identifica-se na própria jurisprudência do STJ casos nos quais se apontou

justamente a necessidade de reconhecer a inaplicabilidade da proteção ao bem de família em

decorrência da conduta do devedor. A título exemplificativo, ao analisar o comportamento

de casal que oferecera voluntariamente em garantia para adesão a REFIS imóvel que se

caracterizava como bem de família, entendeu a 2ª Turma por não aplicar o benefício da

impenhorabilidade em função da reprovabilidade da conduta dos executados.43 Conforme

descrito no acórdão, os proprietários, em operação anterior à adesão ao REFIS, já haviam

hipotecado o imóvel e, quando executados, alegado se tratar de bem de família

impenhorável, argumentação da qual intentavam, uma vez mais, se valer, dessa vez para não

arcarem com os valores do benefício tributário. Entendeu-se, nesse cenário, na medida em

que a indicação de bem em garantia era condição para usufruir de benefício legal44 e que a

impenhorabilidade implicaria novo “cheque em branco” para futuros inadimplementos

planejados, pela execução do bem.45 Em outra hipótese, avaliando-se estar diante de fraude

realizada por devedores que, ademais, expressamente abdicaram do benefício da

impenhorabilidade, compreendeu a 3ª Turma ser imperioso determinar a penhora do

imóvel.46

à outra parte cuja confiança tenha sido traída” (NEGREIROS, Teresa. O princípio da boa-fé contratual. In:

BODIN DE MORAES, Maria Celina. Princípios do Direito Civil Contemporâneo, cit., pp. 239-240).

Ressalte-se que já se defendeu que a proteção do bem de família seria sempre prevalente em relação à boa-fé:

“o argumento de torpeza, baseado na boa-fé subjetiva e, por isso, essencialmente privado, não pode prevalecer

sobre a proteção do Bem de Família Legal, que envolve ordem pública. (...). (...) a prevalência do direito à

moradia sobre a boa-fé serve para afastar o argumento de aplicação da vedação do comportamento contraditório

(venire contra factum proprium). A partir da idéia de ponderação ou pesagem deve entender que o primeiro

direito tem prioriedade e prevalência sobre a boa-fé objetiva. (TARTUCE, Flávio. A polêmica do bem de

família ofertado. Revista da Emerj, v. 11, nº 43, p. 242-243, 2008, grifos no original). 43 STJ, REsp 1.200.112, 2ª T., Rel. Min. Castro Meira, julg. 7.8.2012. 44 “No caso de que ora se cuida, o proprietário do bem agiu de maneira deliberada, consciente de que a garantia

ofertada era iníqua, mas suficiente para permitir-lhe desfrutar de benefício fiscal sabidamente indevido. Não

se pode tolerar que da utilização abusiva do direito, com violação inequívoca ao princípio da boa-fé objetiva,

possa advir benefício para o seu titular que exerceu o direito em desconformidade com o ordenamento jurídico.

Segundo consta do acórdão recorrido, não foi a primeira vez que Ricardo Pereira Marques e Flávia Pereira

Marques ofertaram o bem em garantia para a obtenção de benefício legal e, quando executada a garantia,

simplesmente alegaram a impenhorabilidade do bem. Dito de outra forma, disse o acórdão recorrido que os

proprietários tem atuado de maneira reiteradamente fraudulenta, valendo-se do bem de maneira abusiva, com

consciência e vontade, para a obtenção de benefício sabidamente indevido”. 45 Confira-se eloquente trecho do acórdão: “Um dos princípios fundamentais do ordenamento jurídico

brasileiro é o da boa-fé objetiva que deve reger todas as relações jurídicas, de modo que nenhum ato, contrato

ou direito pode ser exercido sem observância deste princípio. É nesse contexto que deve ser examinada a regra

de impenhorabilidade do art. 1º da Lei 8.009/90, que, antes de ser absoluta, comporta temperamentos ditados

pelo princípio da boa-fé objetiva. Quando o patrimônio do devedor é alienado de maneira fraudulenta no curso

da execução, por exemplo, é difícil admitir que possa ele se escudar na regra protetiva de impenhorabilidade

do bem de família”. 46 SJT, REsp 554.622, 3ª T., Rel. Min. Ari Pargendler, julg. 17.11.2005. Veja-se expressiva passagem do voto

do Min. Carlos Alberto Menezes Direito: “o bem de família que foi retirado por um ato que configurou uma

enganação, um rompimento da boa-fé objetiva, não está alcançado por aquele precedente que, de forma geral,

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 150

Em síntese, embora não se questione que a Lei nº. 8.009/1990 possui sólida

inspiração em objetivos centrais à Constituição e, como argutamente observado no REsp

1.227.366, representar limite ao “exercício de interesses particulares”, deve-se evitar

conclusões generalizantes a respeito da impossibilidade de superar a proteção ao bem de

família em decorrência da conduta do devedor que, excepcionalmente, pode justificar a

exclusão do benefício.47

Cuida-se, enfim, de entender, como se concluiu no acórdão comentado,

que “o reconhecimento da ocorrência de fraude à execução e sua influência na disciplina do

bem de família deve ser aferida casuisticamente, de modo a evitar a perpetração de injustiças

– deixando famílias ao desabrigo – ou a chancelar a conduta ardilosa do executado em

desfavor do legítimo direito do credor”.

entendeu que, na verdade, não pode haver a renúncia do bem de família, mas isso, é claro, admitindo-se a

hipótese da normalidade. Quando se enfrenta uma peculiaridade dessa natureza, que está configurada nos autos,

ou seja, três famílias pobres e, portanto, sem cultura, sem saber específico, que habitam em uma mesma casa

pequena e são procuradas por uma empresa de engenharia, que lhes oferece uma permuta de bem, pega o

terreno para construção e lhes oferece dois apartamentos nesse mesmo prédio, não vindo a cumprir a obrigação,

e já tendo sido retirado o bem de família dessas pessoas, que hoje são as credoras, evidentemente não se pode

aplicar a solução técnica adotada em um caso no qual não havia tal peculiaridade”. 47 Embora dissertando sobre a proteção do bem de família do fiador, Álvaro Villaça Azevedo emprega

raciocínio semelhante: “Também seria procedimento de alta má-fé que o proprietário de um bem o conferisse

em garantia de uma relação jurídica, para não cumprir o avençado ou já sabendo da impossibilidade de fazê-

lo. O direito não pode suportar procedimento de má-fé, ou de quem alegue nulidade a que tenha dado causa.

Quem viola a norma não pode invocá-lo em seu benefício (nemo auditur turpitudinem suam allegans)”

(AZEVEDO, Álvaro Villaça, cit., p. 72).

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 151

RESENHAS

RESENHA A ARNOLDO WALD (ORGANIZADOR), DOUTRINAS ESSENCIAIS

– MEDIAÇÃO E ARBITRAGEM, SÃO PAULO, EDITORA REVISTA DOS

TRIBUNAIS, 2014.

Gustavo Tepedino Professor Titular de Direito Civil e ex-Diretor da Faculdade de Direito da Universidade

do Estado do Rio de Janeiro – UERJ

A coleção Doutrinas Essenciais – Mediação e Arbitragem, publicada

pelos elegantes tipos da Editora Revista dos Tribunais, congrega em sete volumes e alguns

milhares de páginas duas verdadeiras instituições do direito brasileiro. De um lado, os 100

anos de tradição doutrinária da Revista dos Tribunais, com extraordinário acervo

representativo do que de melhor já se publicou no cenário jurídico no último século. De outra

parte, o seu organizador, Prof. Arnoldo Wald, esse notável jurista e intelectual, professor

catedrático da Faculdade de Direito da UERJ, cuja arguta sensibilidade permitiu, mediante

criteriosa seleção, reunir os mais refinados textos em matéria de mediação e arbitragem,

constituindo assim antologia única no panorama editorial brasileiro.

Em divisão didática e eficiente, o primeiro volume é dedicado à

principiologia, bem como à consolidação normativa, jurisprudencial e doutrinária da

arbitragem. O segundo volume volta-se para a convenção de arbitragem, a cláusula

compromissória e o compromisso arbitral: sua dogmática, elementos e efeitos essenciais. O

terceiro volume incorpora toda a matéria procedimental, incluindo as diversas fases do

processo, a produção probatória e a eficácia da sentença. O quarto volume orienta-se para os

domínios específicos em que a arbitragem se espraia: do direito empresarial – contendo

problemas atinentes aos litígios de construção civil, societário, contratual e falimentar – ao

direito econômico; direito administrativo e tributário; direito do trabalho; do consumidor,

direito desportivo e o ambiental. O quinto volume congrega textos relacionados à arbitragem

internacional, homologação e eficácia da sentença, arbitragem estatal e de investimentos

estrangeiros. O sexto volume, finalmente, passa em revista os modos alternativos de solução

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 152

de conflitos, no Brasil e no exterior, enfrentando as técnicas de mediação, conciliação e

processos híbridos – a cláusula med-arb, dispute board e assim por diante. O sétimo volume

reúne cuidadosos índices; por texto e capítulo, por autores, onomástico e alfabético-

remissivo.

Os sete volumes da coleção buscam oferecer ao leitor o que de melhor já

se produziu na literatura jurídica brasileira sobre o tema, permitindo traçar interessante

histórico do desenvolvimento da arbitragem, identificar os problemas atuais e propor

perspectivas para seu fortalecimento nos próximos anos. A obra contém contribuições de

ilustres autores de todas as especialidades e domínios do conhecimento jurídico, de Rui

Barbosa a Miguel Reale a, no cenário internacional, Tullio Ascarelli, René David e Mauro

Cappelletti – cujas saudosas memórias se tornam, assim, de alguma forma, resgatadas em

suas lições inexcedíveis –, unindo também, na doutrina contemporânea, as diversas gerações

de estudiosos que integram a coleção.

O procedimento arbitral tem sido crescentemente utilizado no Brasil,

sobretudo em áreas de elevado nível de especialização, destacando-se questões relacionadas

à energia, petróleo, infraestrutura, construção civil, entre outras. Tais litígios normalmente

abrangem valores vultosos e temas complexos que, por conta do dever de confidencialidade,

acabam por não se tornar de conhecimento público, inexistindo jurisprudência arbitral

brasileira que pudesse ser fonte de consulta. Daí a importância dessas contribuições

doutrinárias essenciais, que franqueiam aos leitores não somente informações dogmáticas

mas, ao mesmo tempo, o retrato da evolução da arbitragem e de suas controvérsias na

experiência brasileira.

Na atualidade, a arbitragem tem contribuído para desafogar o sistema

judiciário nacional, que conta com cerca de 100 milhões de processos em andamento, e cujos

julgamentos são precedidos, em regra, por excessivamente longos períodos de tempo,

notadamente nas matérias de elevada complexidade técnica. A eclosão da arbitragem no

Brasil mostra-se ainda recente, já que a afirmação pelo STF da constitucionalidade da Lei

9.307/1996 ocorreria apenas ao final de 2001. De todo modo, o fortalecimento progressivo

do procedimento arbitral tem sido incentivado pela dedicada atuação de respeitadas Câmaras

de Arbitragem e de talentosos árbitros, bem como pela intervenção positiva da magistratura,

que reconhece, reiteradamente, a força vinculante e definitiva das decisões arbitrais, nas

hipóteses em que se procura invalidar o laudo arbitral perante o Poder Judiciário.

A Arnoldo Wald a cultura jurídica brasileira deve muitíssimo, seja por sua

pujante produção acadêmica dos últimos 60 anos, seja por sua formidável liderança

Revista Brasileira de Direito Civil | ISSN 2358-6974 | Volume 3 – Jan / Mar 2015 153

científica e comprometimento institucional, ocupando numerosos e operosos postos de

destaque no florescimento da arbitragem no Brasil, tais como Membro da Corte

Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional; Vice-Presidente do

Comitê Brasileiro da Câmara de Comércio Internacional; Presidente da Comissão de

Arbitragem do Comitê Brasileiro da Câmara de Comércio Internacional, além de idealizador

e coordenador da festejada Revista de Arbitragem e Mediação.

Por tudo isso, tais doutrinas essenciais configuram obra fundamental na

biblioteca jurídica, ponte entre a memória do direito nacional e o alvissareiro futuro da

arbitragem no Brasil.

Petrópolis, fevereiro de 2015

Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | ISSN 2358-6974 | Volume 6 – Out / Dez 2015 154

SUBMISSÃO DE ARTIGOS

Os trabalhos a serem submetidos à Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil

para publicação devem observar às seguintes normas:

1. Os trabalhos deverão ser inéditos e exclusivos, isto é, sua publicação não deve

estar pendente em outro local.

2. Os trabalhos deverão ser enviados via e-mail para o endereço

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permitido, contudo, utilizar qualquer processador de texto, desde que os artigos sejam

gravados no formato .rtf (RichTextFormat), formato de leitura comum a todos os

processadores de texto.

3. Os arquivos do artigo e folha de rosto deverão ser separados e nominados de

acordo com o título do trabalho. O artigo não deverá ser identificado.

4. Os trabalhos para a seção de Doutrina deverão ter preferencialmente entre 15

e 35 laudas.

5. Os parágrafos devem ser alinhados a 3 cm da margem esquerda escrita. Não

devem ser usados recuos, deslocamentos, nem espaçamentos antes ou depois. Não se deve

utilizar o tabulador "TAB" para determinar os parágrafos: o próprio "ENTER" já

determina este, automaticamente. A fonte utilizada deve ser Times New Roman, corpo

12. Os parágrafos devem ter entrelinha 1,5; as margens são de 3cm no lado esquerdo,

2,5cm no lado direito e 2,5cm nas margens superior e inferior. O tamanho do papel deve

ser A4.

6. Os trabalhos deverão ser precedidos por uma folha de rosto com o título do

trabalho (em inglês e português), nome do autor (ou autores), endereço, telefone, fax, e-

mail, situação acadêmica, títulos, instituições a que pertença e a principal atividade

exercida.

7. As referências bibliográficas deverão ser feitas de acordo com a NBR 6023/89

(Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT). A referência bibliográfica básica

deverá conter: sobrenome do autor em letras maiúsculas; vírgula; nome do autor em letras

minúsculas; ponto; título da obra em itálico; ponto; número da edição; ponto; palavra

edição abreviada; ponto; local; dois pontos; editora (suprimindo-se os elementos que

Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil | ISSN 2358-6974 | Volume 6 – Out / Dez 2015 155

designam a natureza comercial da mesma); vírgula; ano da publicação; ponto. Exemplo:

DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. 2. ed. São Paulo: Martins

Fontes, 1993.

8. As referências deverão ser feitas em notas de fim, isto é, ao final do artigo,

com a indicação “Notas”.

9. Os trabalhos deverão ser precedidos por um resumo analítico bilíngüe que não

ultrapasse 10 linhas, pela indicação de palavras-chaves em inglês e português e por um

Sumário, numerado, com as divisões do texto, separada cada divisão da outra por um

travessão.

Exemplo: SUMÁRIO: 1. Realidade social e ordenamento jurídico – 2. Regras

jurídicas e regras sociais – 3. O jurista e as escolhas legislativas. – 4. O Código Civil – 5.

A Constituição – 6. A chamada descodificação.

10. Qualquer destaque que se queira dar ao texto, sempre com parcimônia, deve

ser feito com o uso do itálico. Não deve ser usado o negrito ou o sublinhado.

11. O Conselho Assessor da Revista reserva-se o direito de propor modificações

ou devolver os trabalhos que não seguirem essas normas. Todos os trabalhos recebidos

serão submetidos ao Conselho Assessor da Revista, ao qual cabe a decisão final sobre a

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Direitos Autorais de Colaboração Autoral Inédita, e Termo de Responsabilidade, que

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