240
1

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

  • Upload
    dongoc

  • View
    243

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

1

Page 2: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

2

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Page 3: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

3

CAMINHOS DA HISTÓRIARevista do Departamento de História

Centro de Ciências Humanas – UNIMONTES

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS

CAMINHOSDA HISTÓRIA Montes Claros v. 18, n. 1 semestral 2013

ISSN 1517-3771 (impressa)ISSN 2317-0875 (online)

Page 4: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

4

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

COPIRRAITE©: UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MONTES CLAROS – UNIMONTESReitor

João dos Reis CanelaVice-Reitora

Maria Ivete Soares de Almeida

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CCHDiretor

Antônio Wagner RochaChefe do Departamento de História

Donizette Lima do Nascimento

CAMINHOS DA HISTÓRIA

EditoresMarcos Fábio Martins de Oliveira e Regina Célia Lima Caleiro (Unimontes)

Carlos Antonio Aguirre Rojas (Unam-México)Márcia Pereira da Silva (Unesp-Franca)

Comissão Editorial Alysson Luiz Freitas de Jesus (Unimontes), Carlos Antonio Aguirre Rojas (Unam-México), CésarHenrique de Queiroz Porto (Unimontes), Cláudia de Jesus Maia (Unimontes), Filomena Luciene

Cordeiro (Unimontes), Laurindo Mékie Pereira (Unimontes), Márcia Pereira da Silva (Unesp-Franca,SP), Marcos Fábio Martins de Oliveira (Unimontes), Marta Verônica Vasconcelos Leite (Unimontes),

Regina Célia Lima Caleiro (Unimontes), e, Renato da Silva Dias (Unimontes).

Conselho ConsultivoAlzira Lobo de Arruda Campos (aposentada UNESP. Universidade São Marcos), Ana Maria Sayago deWarner (Universidad Nacional de Córdoba/Argentina), Ângelo Carrara (UFJF), Carla M. J. Anastasia

(UFMG), Celso Silva Fonseca (UnB), Eliana Regina de Freitas Dutra (UFMG), Estevão ChavesRezende Martins (UnB), Fábio Faria Mendes (UFV), Helenice Rodrigues da Silva (UFPR), Heloísa M.Starling (UFMG), Ida Lewkowicz (UNESP), Laima Mesgravis (aposentada USP/UNESP. Universidade

São Marcos), Marcelo Badaró Mattos (UFF), Marcos Antônio Lopes (UEL), Tarcísio RodriguesBotelho (PUC-MG), e, Wilson do Nascimento Barbosa (USP).

Revisão OrtográficaDe responsabilidade dos autores

Publicação semestral

EndereçoUNIMONTES, Campus Universitário “Professor Darcy Ribeiro”

Caixa Postal 126 - Cep: 39401-089 - Montes Claros – MGSite:<http://sites.google.com/site/revistacaminhosdahistoria>

e-mail: <[email protected]>

CAMINHOS DA HISTÓRIA (Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES) Montes Claros, MG – Brasil, 1996 –

1996 - 2013v. 18, n. 1SemestralISSN 1517-3771 (impressa)

ISSN 2317-0875 (online)

1. História. 2. História do Brasil. CDD 901 – História981 – História do Brasil

Ar te da capa: Marta Verônica Vasconcelos Leite. Fotografia da Igreja do Rosário -Diamantina/ MG - Autora: Elis Souza

Editoração Gráfica: Maria Rodrigues Mendes

Catalogação: Divisão de Biblioteca Central Prof. Antônio Jorge - Unimontes

Page 5: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

5

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃOFilomena Luciene Cordeiro Reis.................................................................

DOSSIÊ:Histórias e Experiências: as interfaces e os múltiplos olhares históricos

HOMEM, LUGAR & PAISAGEM – TOPOFILIA E TOPOFOBIA: REFLEXÕESSOBRE O PATRIMÔNIO HISTÓRICO, ARQUITETÔNICO E URBANÍSTICODE DIAMANTINA-MGJosé Antônio Souza de Deus; Rahyan de Carvalho Alves; Marly Nogueira......

GESTÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE CULTURA: O PODER LEGISLATIVOE AS LEIS DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL EM MONTESCLAROS, MINAS GERAISFilomena Luciene Cordeiro Reis, Wenceslau Gonçalves Neto.........................

MORTE À ESPREITA: HISTÓRIA DE UM TURISMO MACABRO ASSOCIADOÀ CAÇA DA BALEIA EM LUCENA – PARAÍBA (1970-1990)Francisco Henrique Duarte Filho; José Otávio Aguiar..................................

TRABALHO FORA DOS TRILHOS: IMPACTOS DA PRIVATIZAÇÃO SOBREOS FERROVIÁRIOS NO NORTE DE MINAS GERAISGilmar Ribeiro dos Santos; Ricardo dos Santos Silva; Wagner de Paulo

Santiago....................................................................................................

MOTOTAXISTAS NOS BAIRROS DA REGIÃO SUL NA CIDADE DEMONTES CLAROS/MG: OS RELATOS SOBRE A PROFISSÃORejane Meireles Amaral; Cristiano Barbosa.................................................

HIGIENISMO E SANITARISMO EM MONTES CLAROS ENTRE 1889 E 1926Luciano Pereira da Silva; Regina Célia Lima Caleiro...................................

CAMINHOS DA HISTÓRIA Montes Claros v. 18, n. 1 semestral 2013

7

13

27

51

67

91

107

Page 6: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

6

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

APRENDENDO A SER PROFESSOR(A) ATRAVÉS DA REVISTAPEDAGÓGICA (1890-1896)Sarah Jane Durães....................................................................................

DE TATUS MOQUEADOS E PORCOS FUMADOS: CAÇA E CRIAÇÃO DEMAMÍFEROS NA AMÉRICA PORTUGUESA QUINHENTISTAGisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos;

Fabiano Bracht........................................................................................

AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO DAADMINISTRAÇÃO DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XVIIIPablo Menezes e Oliveira..........................................................................

MOVIMENTOS REATIVOS E LIDERANÇAS CATÓLICAS NO SÉCULO XIXNO BRASILCélia Nonata da Silva.................................................................................

ARTIGOS

O FENÔMENO DA EDUCAÇÃO NA CONSTRUÇÃO DA HISTÓRIAGenaro Alvarenga Fonseca; Vânia de Fátima Martino.................................

“DEU A LOUCA NA CHAPEUZINHO” E HISTÓRIA: UMA ANÁLISE POSSÍVELAlessandro de Almeida; Fábio Antunes Vieira..............................................

UMA REVISÃO HISTÓRICA DA ECONOMIA DO DESENVOLVIMENTO: OSPIONEIROS DA ESCOLA ANGLO-SAXÃIdo Luiz Michels; Caio Luca Costa.............................................................

NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ORIGINAIS ................................

CAMINHOS DA HISTÓRIA Montes Claros v. 18, n. 1 semestral 2013

123

143

155

169

185

201

213

233

Page 7: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

7

DOSSIÊ: Histórias e Experiências: as interfaces e os múltiplos olhareshistóricos

O que descobrimos (em minha opinião) está num termo que falta: “experiên-cia humana”. (...). Os homens e mulheres também retornam como sujeitos,dentro deste termo – não como sujeitos autônomos, “indivíduos livres”,mas como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivasdeterminadas como necessidades e interesses e como antagonismos, e emseguida “tratam” essa experiência em sua consciência e sua cultura (...) dasmais complexas maneiras e em seguida (...) agem, por sua vez, sobre suasituação determinada. (THOMPSON)

As experiências humanas se concretizam no cotidiano a partir das relações que ossujeitos históricos – homens e mulheres – estabelecem na sociedade em que vive.Viver é experimentar o outro e o mundo que nos rodeia. A História se preocupacom estas questões e reflete as possibilidades do seu olhar na interface com ou-tras ciências como a arquitetura, turismo, geografia, economia, sociologia, psicolo-gia e pedagogia, conforme se apresentam os artigos, em especial desse dossiê.As experiências históricas, conforme Thompson (1991, p. 180-2001), constituirãooutras histórias, pensadas na perspectiva da diversidade e da luta de classes. Essedossiê “Histórias e Experiências: as interfaces e os múltiplos olhares históricos”se propôs a escrever a história no plural, trazendo análises distintas einterdisciplinares, revelando silêncios antes ocultos em formatos historiográficosque primavam pela ordem vigente e descritiva. Neste sentido, com múltiplos olha-res históricos iremos fazer a experiência da leitura de vivências concretas desujeitos que, cujas práticas diárias, se mostram por meio de teorias e conceitosconcebidos por pensadores que tentam compreendê-los (des)(re)construindo ahistória.

Dessa forma, os artigos “Homem, lugar & paisagem – topofilia e topofobia: refle-xões sobre o patrimônio histórico, arquitetônico e urbanístico de Diamantina -MG”, “Gestão de políticas públicas de cultura: o poder legislativo e as leis deproteção ao patrimônio cultural em Montes Claros, Minas Gerais” e “Morte àespreita: história de um turismo macabro associado à caça da baleia em Lucena –

APRESENTAÇÃO

Page 8: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

8

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Paraíba (1970-1990)” nos inserem no mundo do patrimônio cultural, turismo emeio ambiente, abordando o sentimento de pertencimento e a identidade que advémdesses bens na consciência humana e na concepção estatal. Ao tratar deDiamantina e Montes Claros, cidades mineiras, e de Lucena localizada na Paraíba– apesar de se situarem em estados diferentes e distantes um do outro, não obstante,no mesmo país: Brasil -, percebemos que há uma lógica capitalista que permeia oentendimento de cultura entrelaçada ao poder com o objetivo de desfigurar umaproposta que não despreza a noção de pertencimento de vidas coletivas.

Os artigos “Trabalho fora dos trilhos: impactos da privatização sobre os ferroviá-rios no norte de Minas Gerais” e “Mototaxistas nos bairros da região sul na cidadede Montes Claros/MG: os relatos sobre a profissão”, utilizando a história oralrevela outras histórias através do estudo de um trabalho informal – mototaxistas –e formal – ferroviários – que se vêem na mão dupla da sobrevivência física emental. “Higienismo e sanitarismo em Montes Claros entre 1889 e 1926” discuteas ações higienistas e sanitaristas em Montes Claros-MG entre os anos de 1889 e1926. Para tanto, as experiências nesta perspectiva na cidade utilizou como fontea imprensa periódica escrita e a produção de memorialistas da região. Estas aná-lise nos mostram uma Montes Claros se (des)organizando para o “desenvolvi-mento” e o “progresso”.

“Aprendendo a ser professor(a) através da Revista Pedagógica (1890-1896)”,analisa como fonte uma revista específica, que ajuda a compreender as atribui-ções do professor na escola primária brasileira, bem como a relação das mulherese suas possibilidades de atuação no magistério. Novas fontes e metodologias pro-porcionam estudos que revelam experiências históricas diversificadas e bastanteinstigantes.

“De tatus moqueados e porcos fumados: caça e criação de mamíferos na Améri-ca Portuguesa Quinhentista”, “As câmaras e os ouvidores na construção da ad-ministração de Minas Gerais no século XVIII” e “Movimentos reativos e lideran-ças católicas no século XIX no Brasil”, apresentam experiências históricas quepensam séculos diferentes, no entanto, os seus sujeitos históricos se mostramdiante de conflitos e tensões próprias das relações humanas inseridos em siste-mas que predispõem a luta de classes.

Esse dossiê na sua diversidade de escrita historiográfica e por meio dainterdisciplinaridade apresenta, de acordo com a lógica histórica, vivências do serhumano que, nos embates, conflitos, tensões e disputas revelam as interfaces e osmúltiplos olhares da História.

Page 9: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

9

Por fim, os artigos livres “O fenômeno da educação na construção da história”,“’Deu a louca na Chapeuzinho’ e história: uma análise possível” e Uma revisãohistórica da economia do desenvolvimento: os pioneiros da Escola Anglo-Saxã”,expõem teorias que permitem pensar o universo da educação, assim como a intro-dução de fontes como a mídia para a reflexão historiográfica e a relação da His-tória da Economia do Desenvolvimento de acordo com a abordagem da escolaAnglo-Saxã.

Filomena Luciene Cordeiro ReisProfessora de História/Unimontes

ApresentaçãoREIS, Filomena Luciene Cordeiro

Page 10: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

10

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Page 11: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

11

DOSSIÊ: HISTÓRIAS E EXPERIÊNCIAS:AS INTERFACES E OS MÚLTIPLOS

OLHARES HISTÓRICOS

Organizadores:

Márcia Pereira da Silva,

Regina Célia Lima Caleiro,

Marcos Fábio Martins de Oliveira

Filomena Luciene Cordeiro Reis

Page 12: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

12

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Page 13: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

13

HOMEM, LUGAR & P AISAGEM – TOPOFILIA E TOPOFOBIA:REFLEXÕES SOBRE O PATRIMÔNIO HISTÓRICO

ARQUITETÔNICO E URBANÍSTICO DE DIAMANTINA-MG

José Antônio Souza de Deus*

Marly Nogueira**

Rahyan de Carvalho Alves***

* Professor Dr. Associado e pesquisador do Instituto de Geociências da Universidade Federal de MinasGerais – IGC/UFMG E-mail: [email protected]

** Professora Dra. Adjunta e pesquisadora do Instituto de Geociências da Universidade Federal de MinasGerais – IGC/UFMG. E-mail: [email protected]

*** Geógrafo, Mestrando em Geografia pelo Instituto de Geociências da Universidade Federal de MinasGerais – IGC/UFMG. E-mail: [email protected]

Resumo: As paisagens representam as formas de existência de uma comunidade,sendo sentidas a sua apresentação social, principalmente nos patrimônios históricosque formam alicerces culturais. E nesta conjuntura de representatividade e elo cul-tural, muitos municípios no Brasil, como Diamantina-MG, se apresentam como cen-tros com materiais-elementos tombados, vinculados aos conjuntos patrimoniaisarquitetônicos (urbanos ou rurais), instituindo um ambiente próspero ao que se refe-re ao laço de topofilia. Todavia, muitos elementos tombados apresentam, nacontemporaneidade, como produtos mercantilizados, uma vez que o poder públicomunicipal e os agentes capitalistas os vislumbram como uma possibilidade delucratividade, através do turismo cultural, que atropela os sentidos de uma vida co-letiva expressa nas paisagens e nas manifestações culturais; realizando, no visível,uma fonte de intenção que induz o consumo das formas, ocorrendo à ativação datrama do comércio pelas atividades da rede hoteleira, gastronômica, do ecoturismo,dentre outros. Assim, este artigo denota-se como relevante, pois tem como objetivodiscutir a mercantilização da paisagem na relação patrimônio/paisagem e cultura-comércio, destacando o município de Diamantina-MG. Para alcançar o objetivoutilizou-se como metodologia leituras bibliográficas e reconhecimento de campo.

Page 14: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

14

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Unitermos: Homem, paisagem, turismo, mercantilização.

Abstract: Landscapes represent the community ways of existence, being its so-cial representation felt mainly on the historic heritages which form culturalfoundations. On this perspective of cultural representation and link, one amongmany municipalities in Brazil, Diamantina-MG, appear as an inscribed element-material centers, linked to the architectonic heritage complex (urban or rural)establishing a prosperous environment when referring to the tie of topophilia.However, most inscribed elements appear, contemporaneously, as mercantilismgoods, once municipal public powers and capitalist agents see them as possiblesource of profit, through cultural tourism which runs over the senses of a collectivelife expressed on the landscape and on cultural manifestations, accomplishing onthe visible a source of intention which induces to the consumption of forms, leadingto hasten the fabric of commerce by hotel activities, gastronomy, ecotourism, amongothers. Thus, this article is relevant, since it aims to discuss landscape mercantilismin the relation patrimony/landscape is culture-commerce, highlighting the municipalityof Diamantina-MG. To achieve its goals as methodology it was used bibliographicreadings is field recognition.

Keywords: Man, landscape, tourism, mercantilism.

Resumen: Los paisajes representan las formas de existencia de una comunida-de, sendo sentidas su presentación social, principalmente en los patrimonios histó-ricos que forman alicerces culturales. Y en esta conjuntucra de representatividady elo cultural, muchas ciudades en Brasil, como Diamantina-MG, se presentancomo centros con materiales-elementos tombados, vinculados a los conjuntospatrimoniales arquitetónicos (urbanos o rurales), instituindo un ambiente prósperoal que se refiere al lazo de topofilia. Sin embargo, muchos elementos tombadospresentan, en la contemporaneidade, como productos mercantilizados, una vezque el poder público municipal y los agentes capitalistas los vislumbran como unaposibilidad de lucratividade, por medio del turismo cultural, que atropella los senti-dos de una vida colectiva expresa em los paisajes y en las manifestaciones culturales;realizando, en el visible, una fuente de intención que induz el consumo de lasformas, ocorriendo la ativación de la trama del comercio por las actividades de larede hotelera, gastronómica, del ecoturismo, dentre outros. Así, este artículo sedenota como relevante, pues tiene como objetivo discutir la mercantilización delpaisaje en la relación patrimonio/paisaje y cultura-comercio, destacando el muni-cípio de Diamantina-MG. Para alcanzar el objetivo se utilizó como metodologíalecturas bibliográficas y reconocimiento de campo.

Palabras-claves: Hombre, paisaje, turismo, mercantilización.

Page 15: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

15

Introdução

As paisagens, inconfundivelmente, constituem as formas de existência de umacomunidade, concretizando-se os seus sentidos e representações sociais a partirda vivência e das experiências do sujeito atrelados ao lugar. E essa existência dohomem, com as inúmeras ações entrelaçadas entre as grafias construídas da pai-sagem, vividas pela relação dos sentimentos e emoções em sua intensidade com olugar, proporciona uma real comunicação de símbolos identificadores do ator como seu espaço.

A fusão da materialidade da paisagem retoma difusas simbologias para o homemna construção de seu universo, pela percepção de se sentir construtor do lugar,tornando a paisagem também um elemento (i) material, fecundado pelas emoçõesvividas com gradientes de densidade, e configurando-se, assim uma formaçãosubjetiva de experiências de vida. Essa relação de paisagem e lugar torna nítida aconstrução da identidade do homem com o meio, em um sentido de topofilia,principalmente quando internaliza a sua participação social pelo(s) patrimônio(s)histórico(s), formando alicerces culturais visíveis, notados pelos sentidos.

E nessa conjunção de paisagem e lugar como elo de pertencimento do sujeito,destaca-se o substrato cultural do município de Diamantina-MG, que ostenta noseu centro urbano um conjunto patrimonial histórico arquitetônico e urbanísticotombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e pela Orga-nização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, instituindo-seaí, consequentemente, um ambiente próspero no que se refere aos laços de topofilia.Todavia, o processo de mercantilização ocorrida no município, em grande medida,é reflexo da ação dos agentes do turismo cultural particularmente, da rede hotelei-ra e gastronômica locais que aliados às ações de promoção de eventos e manifes-tações culturais realizadas pelo poder público municipal, ativam o patrimônioarquitetônico como processo de mercantilização para os visitantes, promovendo,gradativamente, um sentimento de estranhamento dos citadinos locais em relaçãoa esse patrimônio histórico-cultural, uma vez que não se percebe uma educaçãopatrimonial sólida que se direcione para ações de promoção de renda aliada àpromoção de uma estabilidade psicossocial através da memória atribuída as pai-sagens.

Desse modo, esse estudo, ainda preliminar, é resultante de investigação em de-senvolvimento acoplada à elaboração de dissertação de mestrado junto ao pro-grama de pós-graduação em Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais(com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superi-or), tendo como objetivo demonstrar a incontestável importância da pesquisa ba-

Homem, lugar & paisagem – topofilia e topofobiaDEUS, José Antônio Souza de; ALVES, Rahyan de Carvalho; NOGUEIRA, Marly

Page 16: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

16

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

seada na relação Paisagem/(Patrimônio)-Cultura-Comércio no município deDiamantina, propiciando reflexões acerca da relação unitária e sociopolítica dascategorias geográficas “paisagem” e “lugar” na formação de relações topofílicas,neste recorte territorial específico.

O trabalho está estruturado em três vetores, primeiramente destacando a impor-tância da paisagem e do lugar para a promoção do laço topofílico e promovendogeossímbolos que estabiliza o sujeito em seu espaço. No segundo momento, abor-da a proeminência da memória, tal como expressa nos patrimônios, (como umprocesso de reafirmação do homem para a continuidade de suas tarefas sociais);e por fim, aborda o patrimônio histórico arquitetônico e urbanístico de Diamantinacomo processo que ocasiona, ao mesmo tempo, a ação de preservação histórica ea sua mercantilização. Para alcançar o objetivo utilizou-se como metodologia pes-quisa bibliográfica e reconhecimento de campo.

A interação da identidade universal do patrimônio histórico arquitetônico e urba-nístico de Diamantina, a propósito, deve ser cuidadosamente repensada em todasas instâncias de poder, uma realidade apropriada na totalidade de se fazer sentirpelos turistas, promovendo, teoricamente, a busca de sua universalização; e aomesmo tempo, devendo reafirma o pertencimento do lugar pelos sujeitos locais.

Paisagem & lugar: a formação dos geossímbolos na inter-ligaçãodo sujeito com o lugar

As paisagens se mostram como unas e únicas para cada sujeito em seu lugar, masa verdade é que a paisagem, de fato, não se mostra, não tem uma forma pré-estabelecida; ela não é um material concreto de significado definido. É o sujeitoque se apresenta para a paisagem com as suas ideias e lembranças. E com estarelação desenha em sua mente um mundo de múltiplas significações; assim adiversidade da paisagem esta na capacidade de interpretação e de memória afetiva,em uma inclusão histórica que o sujeito faz ao perceber o que ele construiu ou oque a dinâmica social externa realizou, fazendo parte de um grupo na sociedadepelos sentidos de sua percepção, processando diferenciações de qualidades emseu espaço (CARVALHO, 2011).

A paisagem apresenta um imenso universo de significados, pois cada sujeito im-pregna nela a sua história, o seu desenho, a sua lembrança. E essa multiplicidadede interpretações que a paisagem abarca, transporta o homem a um sentidotranscendental, o que leva a relembrar sua vida, sendo uma “lógica da comunica-ção simbólica que explica o desenvolvimento de sentimentos de pertencimento”(CLAVAL, 2007, pp.145-146) ao lugar.

Page 17: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

17

Quem nunca passou em uma rua e ao olhar para o plano da paisagem relembroucenas, frases, risos e ou choros de uma vida partilhada. Quem nunca se flagroucom o peito apertado ao ver uma paisagem que viveu diariamente sendo modela-da e sofrendo uma nova reformulação paisagística. A paisagem faz parte da vida.É a própria vida em sua construção.

Ela, a paisagem, inquestionavelmente, diz muito dos nossos hábitos, da nossa vidacoletiva, chegando a ser um símbolo de significados entrelaçados em lembranças,pois como Corrêa & Rosendahl (2007, p.121) salientam, “as paisagens tomadascomo verdadeiras de nossas vidas cotidianas estão cheias de significados e arecuperação destes significados em nossas paisagens diz muito sobre nós”. Rei-terando a sua importância, faz-se necessário recorrer à fala de Gomes (1999,p.45) onde afirma que a “paisagem é uma autobiografia coletiva inconsciente quereflete gostos, valores, aspirações, medos, que aos poucos acarretam adecodificação dos sentimentos imbuídos pelas sociedades ao espaço”, uma formade voltar ao passado estando no presente.

A semiologia1 que a paisagem fornece, transmite ao cidadão a moldura das açõesrealizadas nas gerações passadas; ela exprime emoções do sujeito, elementos dasociedade onde vive, renova e (re) descobre o seu lugar, sendo construída e tor-nando-se testemunha de uma nova leitura espaço-temporal. Como salientaCosgrove (1998, p.108) as “paisagens possuem significados simbólicos porquesão o produto da apropriação e transformação do meio ambiente pelo homem”,ricas e necessárias como marco de um “desenvolvimento” que muitas vezes, serelaciona com a continuidade da vida social, aliada com sua relação depertencimento ao lugar; e por isso é tão presente em nossas vidas.

A cultura exposta nas paisagens se completa com a intencionalidade do sujeitoque a vê. E o significado depende da sua organização afetiva, rica em uma apre-sentação de resgate que ajuda na perpetuação da vida para os dias que se apre-sentam. Nesse aspecto, Cosgrove (1998, p.42) destaca que a paisagem está den-samente ligada à cultura2 e:

[...] à ideia de que as formas visíveis são representações de discursos epensamentos. Assim, a paisagem aparece como um lugar simbólico. E agoraa maneira de ver, compor e harmonizar o mundo que a torna importante.

1 A semiologia aqui abordada diz respeito á decodificação dos signos, no cosmo de sentimentos através dasmais variadas formas que a paisagem possa ofertar em seus elementos (i) materiais.

2 A cultura é entendida através dos elementos do comportamento, da moral, das relações afetivas, doslaços sociais, cultivados pela “totalidade” da experiência adquirida pelo homem com o outro e com olugar (KEESING, 1961).

Homem, lugar & paisagem – topofilia e topofobiaDEUS, José Antônio Souza de; ALVES, Rahyan de Carvalho; NOGUEIRA, Marly

Page 18: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

18

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Assim, a paisagem se faz através da criação de uma unidade visual onde oseu caráter é determinado pela organização de um sistema de significaçãoque o homem a atribui.

A construção da história de um indivíduo é a própria história de uma paisagem, ecomporta “significados a partir de um conjunto material e imaterial que proporci-one sensibilidade ao homem, reforçando a história coletiva do sujeito e sua identi-ficação com o lugar e, logo com o território, a partir de suas sensações eracionalidades” (CLAVAL, 2002, p.28), sendo relacionada no tempo acumulativoe no poder de renovação constante.

É importante compreendermos que a renovação não implica na relação materialrealizada continuamente, transformada, mas, embarca o significado imaterial3 deuma paisagem que proporcione a experiência de revigorar uma sensação (muitasvezes imaginária) que implica em atitudes diárias, o resgate contínuo de qualquerhistória; até porque a vida é dinâmica e as ações, modelagens espaciais na paisa-gem, as acompanham.

Sentir essa relação material e imaterial da paisagem se torna um exercício auto-mático, mas gradual, pois qualquer estímulo emitido pelos objetos do espaço édenominado sinal (datado de alguma emoção), logo as práticas sociais são fomen-tadas de sentimentos, tendo as paisagens, significados. Mas, para que isso ocorra,o indivíduo necessita estar bem, permitindo a meditar sobre a sua existência etodas as alegorias no seu entorno, tendo com ele uma relação psicológica equili-brada. Ele precisa ser sensível (SCHIER, 2003). Pois, dificilmente sentiremos apaisagem se não compreendermos todos os sentidos emocionais que detemos.

Então, a paisagem se impregna na conjunção do lugar que se constrói em funçãode todos os atores sociais do processo de produção do espaço, e a sua consciên-cia se realiza na experiência. Sendo esse espaço a “base da reprodução da vida epode ser analisado pela tríade habitante-identidade-lugar” (CARLOS, 2001, p.20),repleto de um mundo de significados organizados (TUAN, 1983), tendo, assim,firmado o seu território.

3 O significado imaterial esta atrelado, com ênfase, aos elementos intangíveis da cultura, que numprimeiro momento se relaciona aquilo que não tem substância material, todavia, o sentido imaterial seconsiste no comportamento tanto manifesto, como não manifesto, pois da relação das crenças,danças, saberes e celebrações, quanto as paisagens, o patrimônio, exprimem sentimentos que são ricosem sentidos particulares. Ou seja, do intangíveis como os tangíveis podemos escrever as emoções, quepor serem tal não são concreto em uma visualização física, mas se materializam pelo sentido dado aoelemento ou ação (MARCONI & PRESOTTO, 2009).

Page 19: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

19

Esse mosaico de sensações e experiências compreendidas na formação da paisa-gem no passar da vida do sujeito, torna-se uma ligação de afetividade epertencimento do homem com o lugar, envolvendo um laço topofílico que “é o eloafetivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente” (TUAN, 1980, p.05) dando segu-rança e colaborando para a perpetuação de uma história.

Com essa relação a paisagem envolve a construção diária das relações compar-tilhadas no lugar, e forma geossímbolos presentes na memória de cada sujeito,construindo cenas, pedaços de vida da ação do homem, através dos elementos deresgate e de segurança afetiva oferecidas pelas paisagens. E assim realizandouma forma de se perceber e de se sentir no lugar, promovendo um impulso noslaços de topofilia, dando segurança, estabilidade psicossocial e revigorando asforças para as atividades cotidianas, sendo importante para a construção da iden-tidade do individuo com o mundo, retratando o ato da experimentação do ser noespaço e dele toda gama de sentidos humanos que se pode conquistar (TUAN,1980).

Homem, paisagem e lugar: a memória como reafirmação sociocultural

A memória, como fator de revigoração das lembranças, se constrói na busca dapromoção de uma força de integração do sujeito (que ocasiona a ligação da esta-bilidade emocional) e, também da procura da restauração do sentido de ser nasociedade hipermoderna em que vivemos (propiciando a busca pela sobrevivên-cia). Perceber o exercício dessa relação da memória é urgente e necessário noatual momento que vivenciamos, uma vez que ocorrendo tal movimento, seja pelotombamento de paisagens como em Diamantina-MG, estaremos ofertando à novasociedade cibernética que emerge, uma força motriz que pode impulsionar umavertente de pertencer e fornecendo bases para a construção de uma identidade,principalmente “num mundo em crise de valores e de sentido como é o nosso,onde a questão da identidade deve voltar ao centro das atenções” (HAESBAERT,1999, p.170). Assim, podemos perceber, ainda, que é:

[...] através da recuperação das memórias coletivas que sobraram do passa-do (elas materializadas no espaço ou em documentos) e da preocupaçãoconstante em registrar as memórias coletivas que ainda estão vivas no coti-diano atual da cidade (muitas das quais certamente fadadas ao desapareci-mento) que podemos resgatar muito do passado, eternizar o presente, egarantir às gerações futuras um lastro importante para a sua identidade(ABREU, 2011, p.28-29).

A construção da memória atravessa o sentido da construção coletiva em suaplenitude de propriedade. Pois, o patrimônio histórico arquitetônico e urbanístico,

Homem, lugar & paisagem – topofilia e topofobiaDEUS, José Antônio Souza de; ALVES, Rahyan de Carvalho; NOGUEIRA, Marly

Page 20: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

20

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

como exemplo, é sentido como resgate memorial por se escrever no território –físico e psíquico – sentimentos que remetem a lembranças de tramas diárias e demanifestações sociais, mesmo quando é norteada pela propriedade privada, comograndes casarões e igrejas, de cunho elitista. Mas, entender esta relação de me-mória é compreender a requalificação do que é história. Os fatos que ocorrem nocotidiano, poucos são lembrados e tratados com atenção pelos pesquisadores. Oque culmina na restrição de registros das memórias coletivas, principalmente por-que os grupos que dela guardam lembranças, muitas vezes, não estão mais pre-sentes em nossas vidas ou em novas sociedades.

Desta forma os patrimônios culturais podem ser considerados como excelentesestratégias sociais, pois por eles os sujeitos podem:

[...] narram sua memória e sua identidade, buscando para elas um lugarpúblico de reconhecimento... aparecendo como uma metáfora que sugeresempre unidade no espaço e continuidade no tempo no que se refere àidentidade de um indivíduo ou de um grupo. Os patrimônios então, sãoinstrumentos de constituição de subjetividades individuais e coletivas”(GONÇALVES, 2002, p.122).

E o Brasil, como um país de municípios relativamente novos, tem a maioria dosseus núcleos urbanos erguidos no século passado. Outras cidades datam o perío-do da colonização, porém, poucas cidades detém de um arsenal do passado comvestígios que valorizam a sua história (ABREU, 2011). E só se pode compreenderuma sociedade pelo seu desenvolvimento histórico-político-social, pois um povoque não sabe muito de sua comunidade, pouco sabe dele mesmo. Então, o ato dacontinuidade de uma vida coletiva se baseia na preservação da história do lugar, edaí “nasce a necessidade de se ter objetos tangíveis no quais se possa apoiar osentimento de identidade” (TUAN, 1983, p.217).

A cidade tem o dever de se tornar histórica pelo uso e emprego da memóriacoletiva. E, consequentemente, deve instigar o sujeito a se sentir presente nahistória, seja pelas festas solenes, desfiles, monumentos, livros de história que(en)cantam o retrato de seu lugar, pois estes fatores promovem o respeito quesurge no cidadão em relação ao seu local de origem, uma vez que “confiantes emseu passado, estes podem falar em voz baixa e preocupar-se em colocar suacidade natal em um pedestal” (TUAN, 1983, p.193).

Pensar em se resgatar a memória aparece como sendo a tentativa de materializaro sentimento do sujeito e isso se faz, simplesmente, pela realização do concreto,do visível. Porém, o resgate memorial é o plano de estabilidade social (imaterial)do homem em um apelo para a afirmação em seu lugar. Então, apresentam-se

Page 21: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

21

nessa relação dois contextos básicos da intenção da memória, sendo um, de fatorsocial, e outro, essencialmente, político estratégico, sendo a memória aí realizadapor indução para: i) afirmação do sujeito enquanto forma de propiciar estabilidadeemotiva e, consequentemente, a liberação de estímulos para apropriação emodelações espaciais em uma socialização política; e ii) na tentativa de emergirum sentimento que reviva a sensibilidade de pertencimento a pátria, um patriotis-mo construída através de figuras visíveis e, também, imateriais.

A memória, enquanto cultura, em suas diversas formas de se eternizar, se concre-tiza como o retrato social do homem em seu plano de sonhos e realizações, propi-ciando um processo profícuo de perpetuação dos sentimentos do ser em funçãodo seu território e do seu lugar, sendo relevante a permanente reavaliação de suautilização/emprego para a estabilidade dos laços de topofilia do sujeito.

O patrimônio histórico arquitetônico e urbanístico de Diamantina-MG:da preservação a mercantilização

O patrimônio histórico, como elemento representativo, carrega uma gama de be-nefícios históricos, culturais, econômicos, dentre outros, mas para isso a análisediária de sua preservação deve ser priorizada, ofertando-se, então, qualidade devida aos cidadãos detentores naturais dos elementos desse patrimônio, aliada aoferta de doação do retrato humanitário a todos os sujeitos, visitantes e citadinoslocal. Conseguindo, desse modo, aliar a memória à valorização da vida e não sematerializando no processo uma supervalorização de tempos e de agentes (CAL-DEIRA, 2009). Sendo que esses patrimônios são designados a serem os “guardiõesdas nossas raízes históricas, nomeados a transmitirem aos novos a memória deum passado, consagrado pela vivência de um grupo, de uma sociedade, construídapelas experiências vividas”(MELO, 2009, p.54).

A (re)descoberta da valorização do passado, expresso no patrimônio histórico,surge como o valor embutido na memória do sujeito. E a tradição dahipermodernidade traz uma espacialidade entre o vivido e o presente para a pro-gressão de um futuro, ocorrendo uma democratização do turismo para a vivênciade tempos percorridos. E esta atividade traz uma possibilidade da oferta de desta-car as experiências do homem no seu espaço, no retrato do seu mundo, peculiarentre as marcas de experiências carregadas de conflitos e conquistas (pessoais ecoletivas). Tendo na paisagem, um referencial histórico-cultural, num quadro so-cial que representa a sua história, devendo ser destacada e valorizada.

Mas, esta valorização, muitas vezes pauta um modelo de paisagem cultural comvínculo de mercadoria, pois paralelamente á conservação do histórico podemos

Homem, lugar & paisagem – topofilia e topofobiaDEUS, José Antônio Souza de; ALVES, Rahyan de Carvalho; NOGUEIRA, Marly

Page 22: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

22

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

perceber o surgimento do capitalismo cultural e a mercantilização exacerbada dacultura, por meio do cristal do tempo que se escreve em um legado territorialmultifacetado compondo uma rede de referencias e geossímbolos de diferentesdimensões sociais (LUCHIARI, 2005; HAESBAERT, 2007). Como no caso domunicípio de Diamantina, localizado no Estado de Minas Gerais (MAPA 01), emque se utiliza do turismo cultural uma forma de propagação das atividades mer-cantis, marginalizando, muitas vezes, a sutileza, naturalidade e peculiaridade dacultura no e do lugar.

Mapa 01: Localização do município de Diamantina-MGFonte: GEOMINAS, 1996. Org.: ALVES, R.C., / 2011

Assim, o patrimônio começa a perder, paulatinamente, o seu papel social de indutorde laços de topofilia, do valor afetivo-cognitivo, para transformar-se em um “feti-che” incorporado ao consumo financeiro, como uma “peça da máquina reprodutorado capitalismo pelos elementos culturais” (NIGRO, 2001, p.37), e propiciandouma mudança de sentimento que se modela em um estranhamento das paisagense das emoções pelo sujeito.

Essa forma de perceber o patrimônio cultural, como expressa em suarepresentatividade humana e, consequentemente, histórico-geográfica, manifes-ta-se uma super utilização do retrato e grafias humanas para um controle territorialsobre o local tombado. Isso gera uma dinâmica econômica centralizada nos pode-res financeiros reinantes na esfera da localidade onde os bens se encontram (oque é visível em Diamantina na valorização da estrutura urbana do centro históri-

Page 23: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

23

co colonial, principalmente pelas atividades crescentes da rede gastronômica e dahotelaria, que aliados ao turismo cultural, impulsionam o mercado na área). E issopode propiciar uma perda de autenticidade histórica dos elementos, uma vez queo patrimônio cultural arquitetônico e urbanístico é percebido como um produtopara o turista, massificando o saber e a história nesse processo, levando à fossilizaçãodo pertencimento e do objetivo dos tombos (ALVES & FONSECA, 2011).

Essa análise se fortalece através do gradativo estranhamento que os moradoresdas áreas periféricas do município sentem, uma vez que o poder público potencializaas atividades culturais e mercantis para a área do centro histórico colonial, promo-vendo um olhar centralizado para este local, e os moradores de outras áreas sesentem marginalizados por tal incremento tão focalizado espacialmente. Nessecontexto, o turismo cultural é a fatia de mercado em que mais se potencializanesta matriz de interesses particulares sobre o patrimônio (SWARBROOKE, 2000),o que deve ser revisto. Uma vez que a proposta maior deste é aumentar o vínculodo citadino com o lugar e mostra aos turistas as territorialidades e variáveis cultu-rais de seus conjuntos que tornam esse lugar, assim, peculiar.

O turismo cultural pode e deve, assim, estar a serviço da conservação e valoriza-ção do patrimônio cultural. No entanto, pode acontecer o oposto, o que é maisnítido no Brasil. O patrimônio cultural cria-se em função dos interesses mercantise, com esse objetivo, é explorado. Nesse sentido, as políticas urbanas e culturaisde cidades, como Diamantina, devem ser formuladas e complementadas numaperspectiva de equilíbrio entre o turismo e os patrimônios culturais, procurando-serelacionar a preservação das atividades turísticas à incorporação do patrimôniocomo ferramenta de inclusão sócio espacial, para não ocorrer uma supervalorizaçãode atividades e interesses particulares (LUCHIARI, 2006).

Nesse contexto é que Zukin (1996) percebe o patrimônio cultural assentado natrilogia paisagem, turismo e mercado, como:

[...] uma imagem que é um grande embrulho daquilo que a população podecomprar, um sonho de consumo visual [...] uma lógica de capitalismo indus-trial ou mercantil, e à sua renovação enquanto um espaço de consumo naúltima moda por detrás das paisagens em ferro fundido ou tijolos de barrovermelho do passado (ZUKIN, 1996, p.206).

O valor social da paisagem é apropriado aí como mercadoria, e como Sànchez(1997, p.74) registra: “a historicidade – como atritubo artístico e, portanto, carrega-do de valor – é incorporada como um dos elementos básicos de uma estratégica devalorização, transformando centros históricos em objetos de desejo do capital”. Essarealização da mercadoria é visivel em Diamantina pela ação dos agentes do turismo

Homem, lugar & paisagem – topofilia e topofobiaDEUS, José Antônio Souza de; ALVES, Rahyan de Carvalho; NOGUEIRA, Marly

Page 24: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

24

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

cultural, uma vez que não se percebe esse equilíbro entre a mercantilização dapaisagem do visível para os turistas e a compreensão destas ações para os morado-res, principalmente pelo fato das atenções dos empreendimentos de estruturaçãourbana se concentram na área dos elementos tombados, esquivando-se de ofertarserviços a demais e gerando um, gradativo, sentimento de topofobia (aversão aolugar) dos moradores em relação aos lugares e as paisagens.

Considerações finais

A relação da paisagem como patrimônio cultural, bem como a memória do lugar ea interligação dos geossímbolos com os sujeitos, na perspectiva analisada no tra-balho, pode ser visualizada na ótica econômica (é até “economicista”), principal-mente pela potencialidade do turismo cultural nos locais que ativam a perspectivamercantil sobre a paisagem, contrapondo-se à relação da experiência afetivavivenciada pelos sujeitos do lugar.

Uma vez que em nosso estudo de caso (Diamantina-MG), o patrimônio erguidoculturalmente, metamorfoseia-se do local para o universal através da suasignificância sócio-histórico-cultural, se percebido exclusivamente ouprioritariamente com foco comercial prejudica/compromete a relação topofílicados diamantinenses com a sua própria cidade, visando unicamente, atender a de-manda do mercado na perspectiva dos “outsiders”, o que remete a necessidadede uma educação patrimonial atuante, conciliando as variáveis; geração de rendae laço de pertencimento dos citadinos diamantinenses ao lugar.

Referências

ABREU, Maurício. Sobre a memória das cidades. In.: CARLOS, Ana FaniAlessandri; SOUZA, Marcelo Lopes de & SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão(Orgs.). A produção do espaço urbano: agentes e processos, escalas e desafios.São Paulo: Contexto, 2011. p.19-39.

ALVES, Rahyan de Carvalho & FONSECA, Gildette Souza da. A Paisagemcultural como elemento comercial: uma análise do patrimônio histórico deDiamantina-MG. In.: VIII Encontro de estudantes de história e I encontro de pós-graduandos em história. Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros[Anais...], 2011. p.01-17.

CALDEIRA, Altino Barbosa. As cidades e o patrimônio cultural. Cadernos dearquitetura e urbanismo. Belo Horizonte: EdPUC Minas. v.16, n.18+19, p.31-45. 2009.

Page 25: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

25

CARLOS, Ana Fani Alessandri. A cidade. São Paulo: Contexto, 2001.

CARVALHO, Luiz Eugênio Pereira. Trabalho de campo em Geografia e apercepção ambiental. In.: CARDOSO, Antônio & SOUZA, Mário Ângelo deMeneses (Orgs.). Indicações geográficas e temas em foco. Teresina: EdUFPI,2011. p.101-113.

CLAVAL, Paul. A revolução pós-funcionalista e as concepções atuais da Geografia.In.: MENDONÇA, Francisco & KOZEL, Salete (Orgs.). Elementos de epistemologiada Geografia contemporânea. Curitiba: EdUFPR, 2002. p.14-28.

______. A contribuição francesa ao desenvolvimento da abordagem cultural naGeografia. In.: CÔRREA, Roberto Lobato & ROSENDAHL, Zeny (Orgs.).Introdução á Geografia cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. p.147-166.

CÔRREA, Roberto Lobato & ROSENDAHL, Zeny (Orgs.). Introdução áGeografia cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007.

COSGROVE, Denis. A geografia está em toda parte: cultura e simbolismo naspaisagens humanas. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998.

GEOMINAS. Banco de dados geográficos. 1996. Disponível em: <<http://www.geominas.mg.gov.br>>. Acesso em: 11 jul. 2011.

GOMES, Elias. Paisagem e registros de conceitos a partir a Geografia Alemã.In.: VASCONCELOS, Silva (Org.). Novos estudos de Geografia urbanabrasileira. Salvador: EdUFA, 1999. p.44-62.

GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Monumentalidade e cotidiano: os patrimôniosculturais como gênero de discurso. In.: OLIVEIRA, Lúcia Lippi (Org.). Cidade:história e desafios. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 2002. p.108-123.

HAESBAERT, Rogério. Identidades territoriais. In.: ROSENDAHL, Zeny &CORRÊA, Roberto Lobato. Manifestações da cultura no espaço. Rio de Janeiro:EdUERJ, 1999. p.169-190.

______. Concepções de território para entender a desterritorialização. In.:SANTOS, Milton & BECKER, Bertha (Orgs.). Territórios, territórios: Ensaiosobre o ordenamento territorial. 3ª edição. Rio de Janeiro: DP&A, 2007. p.43-68.

Homem, lugar & paisagem – topofilia e topofobiaDEUS, José Antônio Souza de; ALVES, Rahyan de Carvalho; NOGUEIRA, Marly

Page 26: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

26

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

KEESING, Felix Maxwell. Antropologia cultural: a ciência dos costumes. Riode Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.

LUCHIARI, Maria Tereza Duarte Paes. Centros históricos – mercantilização eterritorialidades do patrimônio cultural urbano. In.: Encontro de Geógrafos daAmérica Latina. Universidade de São Paulo, São Paulo. [Anais...], 2005. pp.8175-8190.

______. Patrimônio cultural: uso público e privatização do espaço urbano. In.:Geografia, Rio Claro, v.31, n.1, pp.47-60, jan./abr. 2006.

MARCONI, Marina de Andrade & PRESOTTO, Zelia Maria Neves.Antropologia: uma introdução. São Paulo: Atlas, 2009.

MELO, Laura Ludovico de. Ouro Fino: Um arraial... uma Igreja... um Largo... euma vaga lembrança na paisagem. 221f. Dissertação (Mestrado) – Instituto Goianode Pré História e Antropologia. Universidade Católica de Goiás, 2009

NIGRO, Cíntia. Territórios do patrimônio. Tombamentos e participação socialna cidade de São Paulo. 202f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de FilosofiaLetras e Ciências Humanas (FFLCH), Universidade de São Paulo, 2001.

SÀNCHEZ, Fernanda. Cidade espetáculo: Política, planejamento e city marketing.Curitiba: Palavra, 1997.

SCHIER, Raul Alfredo. As concepções da paisagem no código florestal. 203f.Dissertação (Mestrado) – Setor de ciências da Terra, Universidade Federal doParaná, Curitiba, 2003.

SWARBROOKE, John. Turismo sustentável: turismo cultural, ecoturismo e ética.São Paulo: Aleph, 2000.

TUAN, Yi-fu. Topofilia: Um estudo da percepção, atitudes e valores do meioambiente. Tradução de Lívia de Oliveira. Rio de Janeiro: Difel, 1980.

______. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Tradução de Lívia deOliveira. Rio de Janeiro: Difel, 1983.

ZUKIN, Sharon. Paisagens urbanas pós-modernas: mapeando cultura e poder.Revista do patrimônio histórico e artístico nacional (IPHAN), v.23, n. 24, p.204-218. 1996.

Page 27: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

27

Resumo: Este artigo apresenta reflexões relativas ao poder constituído às Câ-maras Municipais, especificamente a de Montes Claros, no sentido de pensar aproteção dos bens culturais, especialmente documentais, por meio da elaboraçãode legislações. Nesse sentido, os bens documentais custodiados pelo ArquivoPúblico Vereador - Ivan José Lopes revelam sua importância para se pensar ourepensar a história da cidade, originando outras memórias sob o olhar do historia-dor atento as fontes e ao seu problema de pesquisa.

Palavras chaves: Poder Legislativo; Patrimônio Cultural; Arquivo Municipal;Montes Claros.

Abstract: This article presents reflections on the power of the Councils, specificallyof Montes Claros, to think of the protection of cultural property, especiallydocumentaries, via legislation. In this sense, the documentary goods guarded by

GESTÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE CUL TURA: O PODERLEGISLA TIV O E AS LEIS DE PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO

CULTURAL EM MONTES CLAROS, MINAS GERAIS

Filomena Luciene Cordeiro Reis*

Wenceslau Gonçalves Neto**

* Doutora pela Universidade Federal de Uberlândia e Mestre em História pela Universidade SeverinoSombra . Professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Montes Claros. Apoio:Fundação de Amparo á Pesquisa do Estado de Minas Gerais.

** Mestrado em História pela Universidade Estadual de Campinas (1983), doutorado em História pelaUniversidade de São Paulo (1991) e estágio pós-doutoral em História da Educação na Universidade deLisboa (2005-2006). Professor da Universidade de Uberaba (UNIUBE). Professor Titular aposentadodo Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). É professor dos programas depós-graduação (Mestrado e Doutorado) em História e em Educação da UFU e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNIUBE. É bolsista produtividade em pesquisa do CNPq e do ProgramaPesquisador Mineiro, da FAPEMIG.

Page 28: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

28

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Public File Alderman-Ivan Jose Lopes reveal its importance to thinking or rethinkingthe history of the city, causing other memoirs under the gaze of the historian tunedfonts and to your research problem.

Keyword: Legislative Branch; Cultural Heritage; Municipal File; Montes Claros.

Resumen: Este artículo presenta reflexiones sobre el poder de los consejos,específicamente de Montes Claros, pensar en la protección de bienes culturales,sobre todo documentales, mediante legislación. En este sentido, las mercancíasdocumentales custodiadas por archivo público concejal-Ivan Jose Lopes revelansu importancia para pensar o repensar la historia de la ciudad, provocando otrasmemorias bajo la mirada de las fuentes del historiador afinado y a su problema deinvestigación.

Palabras-claves: Poder legislativo; Patrimonio cultural; Archivo municipal; MontesClaros.

A Câmara Municipal de Montes Claros é um órgão de representação política pormeio dos seus vereadores, cujas atribuições estão estabelecidas na Lei Orgânicado Município e se caracterizam em funções eminentemente legislativas. A Câma-ra Municipal é independente do Poder Executivo1 , pois cada um tem suasespecificidades. Muitos moradores de Montes Claros confundem esses poderes– Executivo e Legislativo - e/ou acreditam que constituem como um só. Esse fatose justifica ou por falta de conhecimento sobre o assunto, mas também, porque oprédio que abriga tanto a Câmara como a Prefeitura Municipal é o mesmo, loca-lizado entre a Avenida Cula Mangabeira e a Avenida João Luiz de Almeida naárea central de Montes Claros2 . Em entrevista com Marlene Pereira sobre essaquestão, ela relata que,

Acreditava que vereadores e prefeitura era uma coisa só, pois eles tão todosjuntos. Pra mim é tudo político... tem que governar pro povo ... fazer asfalto,colocar água nas casas... esgoto... hoje o povo precisa mais é de asfalto eemprego também, né? (...) O que o vereador faz e o que o prefeito faz, não seinão, tem diferença, né? ... mas devia saber, né? Voto sempre... num deixo devotar. Então, porque prefeito e vereador fica tudo junto na Cula Mangabeira?(PEREIRA, 21 maio 2012).

1 Ver sobre esse assunto em detalhe em: MONTESQUIEU, Charles de Secondat, baron de. Do espírito dasleis. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1962. 2 v. p.148-149. (Clássicos Garnier ) “; FREITAS,Danielle Pereira Gonçalves de. Representação política: análise do perfil dos parlamentares da CâmaraMunicipal de Montes Claros (1982-2004). 2010. 84 f. (Monografia) Universidade Estadual de MontesClaros, Centro de Ciências Sociais, Montes Claros, 2010.

2 Ver sobre a história das sedes da Câmara Municipal de Montes Claros em: CORDEIRO, Filomena Lucieneet all. (Org.). Manual de técnico de redação de documentos. Montes Claros, Unimontes, 2008.

Page 29: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

29

No sentido de compreendermos o poder constituído pelas Câmaras Municipais,especificamente a de Montes Claros, e no intuito de pensar a proteção dos bensculturais, especialmente documentais, por meio da elaboração de legislações, apre-sentamos sua história, visando mostrar sua legitimação diante da sociedade. EssaInstituição é responsável pela elaboração de leis que garantam a proteção dopatrimônio cultural e possui um órgão de documentação, o Arquivo Público Vere-ador - Ivan José Lopes, que guarda documentos produzidos e/ou recebidos nodecorrer do exercício de suas atividades que, nas mãos de historiadores podemrevelar “outras histórias e memórias” da cidade. Apresentar a história da CâmaraMunicipal de Montes Claros valida sua trajetória, bem como o interesse ou ausên-cia de políticas públicas na preservação de bens culturais.

Em 13 de outubro de 1831, o Imperador D. Pedro II sancionou uma resolução pormeio da Assembleia Legislativa do Brasil que criava Vilas na província de MinasGerais, dentre elas, a de Montes Claros. Dessa forma, a Câmara Municipal deMontes Claros, que tem sua história vinculada ao Povoado de Formigas3 , porinfluência dos dirigentes locais tornou-se uma Vila, conforme relata o documento:

A Regência em nome do Imperador o Senhor Dom Pedro Segundo, há porbem sancionar e mandar que se execute a seguinte Resolução da AssembleiaGeral Legislativa, tomada sobre outra do Concelho Geral da Província deMinas Gerais. Artigo primeiro. Ficão criadas vilas na Província de MinasGerais as seguintes povoações. Primeira. (...). Nona. A Povoação de Formi-gas na Comarca do Serro Frio, comprehendendo no seu Termo a Capela domesmo nome, a do Bonfim, e Contendas, e a Freguesia da Barra do Rio dasVelhas, e Morrinhos. Artigo Segundo. Em cada uma das villas do artigoantecedente, fica criada uma Câmara Municipal com a mesma authoridade eAtribuicções dado termo a que faz parte, dous Juizes Ordinários um dosórphãos quando ainda não o tenhão. Os Julgados que fazem parte das Villascriadas continuarão a ter mesmas authoridades (...). Palácio do Rio de Janei-ro em treze de outubro de mil oitocentos e trinta e um, Décimo da Indepen-dência e do Império. Francisco de Lima e Silva = José da Costa Carvalho =João Barulio Nunes = José Lino Coutinho. Está conforme o secretário daCamara Municipal.Jozé Bento de Andrade. (Grifos nossos) (CÂMARA MUNICPAL DE MON-TES CLAROS. Resolução da Assembleia Geral Legislativa do Brasil de 13 deoutubro de 1831. Rio de Janeiro, 13 out. 1831).

3 Ver em: CORDEIRO, Filomena Luciene et all. (Org.). Gestão de documentos: plano de classificação etabela de temporalidade. Montes Claros, Unimontes, 2008; PORTO, César Henrique de Queiroz.Paternalismo, poder privado e violência: o campo político Norte-Mineiro durante a primeiraRepública.Belo Horizonte, fevereiro 2002. (Dissertação de Mestrado); PEREIRA, Laurindo Mékie. Acidade do favor: Montes Claros em meados do século XX. Montes Claros: Unimontes, 2002.

Gestão de políticas públicas de culturaREIS, Filomena Luciene Cordeiro; GONÇALVES NETO, Wenceslau

Page 30: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

30

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Dessa forma, conforme Urbino de Souza Vianna (2007), a Câmara Municipal deMontes Claros foi instalada a partir da criação das Assembleias Legislativas Pro-vinciais da Província de Minas Gerais, em substituição aos antigos ConselhosGerais4 . Todavia, segundo Vianna, a primeira Câmara Municipal do Arraial dasFormigas, foi autorizada pela resolução da Assembleia Geral Legislativa de 13 deoutubro de 1831. Mas, só em outubro do ano seguinte, 16 de outubro de 1832, coma autorização do Conselho Geral da Província, passou à condição de Vila, perten-cente à Comarca do Serro Frio, que imediatamente constituiu a primeira câma-ra.5 De acordo com a Constituição de 1824, as cidades seriam administradaspelas Câmaras de Vereadores e, nesse sentido, foram realizadas as primeiraseleições para vereadores de Montes Claros no dia 23 de julho de 1832. Sendoassim, a primeira Câmara Municipal da Vila de Montes Claros de Formigas foiinstalada, contando com os seguintes vereadores: José Pinheiro Neves (presiden-te), Antonio Xavier de Mendonça (vice presidente), Lourenço Vieira de AzevedoCoutinho, Luiz de Araújo Abreu, Francisco Vaz de Mourão e Joaquim José Mar-ques, sendo este último substituto de José Fernandes Pereira Correia, que nãotomou posse por ser cunhado de Antonio Xavier de Mendonça6 . José PinheiroNeves foi o primeiro Presidente da Câmara Municipal e também o seu primeiroAgente Executivo, cargo este equivalente ao de Prefeito Municipal (VIANNA,2007, p. 58).

De 1832 a 1889, o processo eleitoral, sobretudo em Montes Claros, se dava pormeio da participação dos homens ricos, conforme aborda a Cartilha do LegislativoMunicipal:

O processo eleitoral durante o período de 1832 a 1889 deu-se da seguinteforma: votavam apenas as pessoas de grande poder econômico. Com a

4 D. Pedro I, após a independência política do Brasil em 25 de março de 1824 assina a primeiraConstituição Brasileira, onde declara seu governo monárquico hereditário, constitucional e represen-tativo, estabelecendo quatro poderes: legislativo, executivo, Judiciário e moderador, esse último exer-cido pelo Imperador. As capitanias passam, então, a serem denominadas Províncias. Cada provínciatinha um Conselho Geral e as cidades seriam administradas por Câmaras de Vereadores. Ver em:FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fundação parao Desenvolvimento da Educação, 2001. Ver também em: Machado, Helena Correa; CAMARGO, AnaMaria de Almeida. Como implantar arquivos públicos municipais. São Paulo: Imprensa Oficial, 1999.p. 15.

5 Ver em: VIANNA, Urbino de Souza. Montes Claros: breves apontamentos históricos geographicos edescritivos. Montes Claros: Unimontes, 2007. P. 58. (Coleção Sesquicentenária) ; CÂMARAMUNICPAL DE MONTES CLAROS. Cartilha legislativo municipal. Montes Claros: Imprensa Uni-versitária, 2008 (Cartilha)

6 A ata de instalação da primeira Câmara Municipal de Montes Claros não se encontra no acervo doArquivo Público – Vereador Ivan José Lopes, nem na Prefeitura Municipal. Todas as informaçõessobre esse assunto encontramos em livros de memorialistas que descrevem, alguns deles, com riquezasde detalhes como ocorreu esse episódio. Dente eles, podemos citamos VIANA, Nelson. Efeméridesmontesclarenses. Montes Claros: Unimontes, 2007 (Coleção Sesquicentenária)

Page 31: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

31

Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, as leis mudaram, e,até 1930, as pessoas “comuns” podiam votar, exceto as mulheres e os anal-fabetos [os praças e religiosos também estão incluídos]. Mesmo sendoproibido por lei o voto dos analfabetos, os coronéis (abusando do poderque detinham) obrigavam os seus empregados a aprenderem a desenhar onome do candidato de seu interesse político (CÂMARA MUNICIPAL DEMONTES CLAROS, In: Cartilha do Legislativo Municipal. 2008, p. 3).

Ressalta-se que, em 1890, após a proclamação da república, as câmaras foramsuspensas, funcionando a administração municipal por meio das intendências, no-meadas pelo governo do estado. Após as eleições em 1891, voltaram a funcionarnormalmente a partir de 1892.

No governo de Getúlio Vargas, as Câmaras Municipais foram fechadas por meiodo Decreto 19.398, de 11 de novembro de 1930, instituindo o Governo Provisóriocom o apoio das Forças Armadas:

Art. 1º O Governo Provisório exercerá discricionariamente, em toda sua ple-nitude, as funções e atribuições, não só do Poder Executivo, como tambémdo Poder Legislativo, até que, eleita a Assembléia Constituinte, estabeleçaesta a reorganização constitucional do país;Parágrafo único. Todas as nomeações e demissões de funcionários ou dequaisquer cargos públicos, quer sejam efetivos, interinos ou em comissão,competem exclusivamente ao Chefe do Governo Provisório.Art. 2º É confirmada, para todos os efeitos, a dissolução do CongressoNacional das atuais Assembléias Legislativas dos Estados (quaisquer quesejam as suas denominações), Câmaras ou assembléias municipais e quais-quer outros órgãos legislativos ou deliberativas, existentes nos Estados,nos municípios, no Distrito Federal ou Território do Acre, e dissolvidos osque ainda o não tenham sido de fato (Grifos nossos) (BRASIL. Decreto n.19.398, de 11 de novembro de 1930).

Getúlio Vargas criou a figura do interventor Municipal, um Prefeito nomeado, quedispunha de poder para legislar e administrar o Município. Dessa forma, o “PoderLegislativo antes forte foi relegado a segundo plano e as Câmaras Municipaisfechadas conforme os termos do artigo acima citado” (Disponível em: <http://www.cmmoc.mg.gov.br/>. Acesso em: 1 abr. 2012). O artigo 11 do Decreto n.19.398 aborda essa questão:

Art. 11. O Governo Provisório nomeará um interventor federal para cadaEstado, salvo para aqueles já organizados; em os quais ficarão os respecti-vos presidentes investidos dos Poderes aqui mencionados.§ 1º O interventor terá, em cada Estado, os proventos, vantagens e prerro-gativas, que a legislação anterior do mesmo Estado confira ao seu presiden-te ou governador, cabendo-lhe exercer, em toda plenitude, não só o Poder

Gestão de políticas públicas de culturaREIS, Filomena Luciene Cordeiro; GONÇALVES NETO, Wenceslau

Page 32: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

32

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Executivo como também o Poder Legislativo. (...)§ 4º O interventor nomeará um prefeito para cada município, que exerceráaí todas as funções executivas e legislativas, podendo o interventor exonerá-lo quando entenda conveniente, revogar ou modificar qualquer dos seusatos ou resoluções e dar-lhe instruções para o bom desempenho dos cargosrespectivos e regularização e eficiência dos serviços municipais. (...) (Grifosnossos) (BRASIL. Decreto n. 19.398, de 11 de novembro de 1930).

O primeiro Prefeito de Montes Claros, neste formato, conforme César HenriqueQueiroz Porto (2002) e Donizette Lima do Nascimento (2006), foi Orlando FerreiraPinto, que tomou posse em 07 de janeiro de 1931, e era formado em EngenhariaCivil pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG em Belo Horizonte.

Durante o governo de Getúlio Vargas7 , período bastante perturbado no âmbitopolítico, Montes Claros se adéqua a nova realidade e,

Com base na Constituição de 1934 e conforme Atas pesquisadas na CâmaraMunicipal de Montes Claros, em 07 de junho de 1936 ocorreram novaseleições municipais. A Câmara Municipal retoma suas atividades, sendo oseu Presidente o Doutor Antonio Teixeira de Carvalho, passando tambémpelo cargo o Doutor Alpheu Gonçalves de Quadros e o Doutor CrispimFelicíssimo. “Em 1937”, um ano antes de expirar seu mandato, Getúlio Vargasimplanta o Estado Novo, por meio de novo Golpe, ampliando mais seu po-der, promovendo toda sorte de destruição de arquivos de documentos e sím-bolos municipais que lembrassem os períodos anteriores. Foi uma lavagemcerebral na memória pública, que durou até, quando nova constituiçãoencerrou a ditadura Vargas e restabeleceu a democracia e a coexistência depluripartidarismo. (Grifos nossos) (Disponível em: <http://www.cmmoc.mg.gov.br/index.php/breve-historico-da-camara>. Acesso em:1 abr. 2012).

Em 1946, novas eleições são convocadas e a Assembleia Mineira volta a se reunirem 19478 , em caráter constituinte e promulgando em 14 de julho nova constitui-ção, retornando as eleições para vereadores e prefeitos no Estado de Minas Ge-rais. Montes Claros, assim terá sua nova Câmara de Vereadores:

Em 16 de dezembro de 1947, após o período ditatorial (1930 – 1945), reinstala-se a Câmara Municipal de Montes Claros, com os seguintes vereadoreseleitos: Alvino Pereira de Souza (PR), Antonio Augusto Veloso (PR), Anto-

7 Ver em: FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Universidade de São Paulo: Fundação para oDesenvolvimento da Educação, 2001.

8 CÂMARA MUNICIPAL DE MONTES CLAROS. Ata de reinstalação da Câmara Municipal. MontesClaros, 16 dez. 1947.

Page 33: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

33

nio de Oliveira Fraga (PR), Carlos Gomes da Mota (PR), Domingos Lopes daSilva (PR), Gorgônio Mendes Cardoso (PR), Hildeberto Alves de Freitas(PR), João F. Pimenta (PSD), João Lopes Martins (PR) [presidente], JoãoSoares de Carvalho (PSD), José Dias da Silva (PSD), José Joaquim PereiraDé (PR), Mauro de Araújo Moreira (PR), Filomeno Ribeiro dos Santos (PSD),Pedro Santos (UDN), sendo prefeito o médico Dr. Alpheu Gonçalves deQuadros (PR) e o vice Atos Braga (PR). Mantendo os mesmos rigores tradi-cionais de sua representatividade, formada na sua maioria por pessoas ilus-tres da nossa sociedade (médicos, engenheiros, advogados), e apesar darepresentatividade oligárquica, os vereadores eleitos marcaram uma épocade retidão de intenções e firmeza de propósitos. Nas primeiras reuniões daCâmara, os problemas levantados foram: o combate à malária, estradasesburacadas, energia elétrica deficitária e falta de extensão de rede de águatratada nos bairros periféricos, o que era também preocupação do prefeito emédico Dr. Alpheu Gonçalves de Quadros (CÂMARA MUNICIPAL DEMONTES CLAROS, In: Cartilha Legislativo Municipal. 2008, p. 3).

Os vereadores de Montes Claros, na sua maioria, até então eram médicos, enge-nheiros, ruralistas e advogados, conforme salienta citação acima e o Manual Téc-nico de Redação de Documentos da Câmara Municipal, o que reforça uma ca-racterística do poder legislativo local, porém, verificamos nesse percurso históricoda Câmara Municipal de Montes Claros mudanças em relação à composição deseus membros vereadores:

Os primeiros vereadores da Câmara Municipal de Montes Claros [desde1832, quando temos a instalação da primeira Câmara Municipal] eram médi-cos, engenheiros e advogados, ou seja, faziam parte da elite intelectual,social e econômica de Montes Claros. A partir de 19839 , o quadro de verea-dores é composto por pessoas das mais diversas profissões, como sapatei-ro, fotógrafo, comerciante, funcionário público, produtor rural, entre outras,não deixando que engenheiros, médicos, advogados e empresários fossemmaioria. Essa verificação demonstra que, se essa configuração política an-tes era privilégio das classes abastadas da Cidade, a partir de então torna-sedireito de todo cidadão, como luta para o pleno exercício da democracia e dobem comum (CORDEIRO, 2008, p. 10).

César Henrique de Queiroz Porto (2002) estudando o “Paternalismo, poderprivado e violência: o campo político Norte-Mineiro durante a primeira

9 Encontramos referências de vereadores de outras profissões e de bairros periféricos como é o caso deManoel Messias Machado, que era morador do bairro Santos Reis e fazia parte do quadro de “gentecomum” do lugar. Mas, na sua maioria, os vereadores de Montes Claros até a década de 1960 constitu-íam uma elite econômica, social e intelectual da cidade. Esse foi um levantamento realizado durante aorganização do Fundo “Administração Pública de Montes Claros”, acervo sob custódia da Divisão dePesquisa e Documentação Regional da Unimontes composto por documentos da Câmara e PrefeituraMunicipal.

Gestão de políticas públicas de culturaREIS, Filomena Luciene Cordeiro; GONÇALVES NETO, Wenceslau

Page 34: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

34

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

República” na sua dissertação de mestrado também afirma acerca dessa eliteocupar por tanto tempo o poder em Montes Claros no âmbito político. Os cargospolíticos em Montes Claros, tendo como referência, sobretudo de 1832 a 1931,estavam nas mãos de poucos ou de um determinado grupo e, muitas vezes, essespoucos revessam no poder, ou davam continuidade por meio de filhos, netos, en-fim, as gerações futuras. Essa permanência e alternância no poder é ressaltadatambém na revista Montes Claros em Foco, revelando a continuidade, nesse casoespecífico para exemplificar, de três famílias - Rebello, Santos e Lopes -, confor-me podemos verificar:

Os jovens políticos de Montes Claros é que não gostam deste rodízio queRebello, Santos e Lopes vêm realizando há 18 anos, como se fossem osúnicos donos do município. O vereador Aristóteles Ruas é um dos que maiscriticam esta constante rotatividade entre os três, (...). O vereador arenista,inclusive, acha que a presença dos “velhos coronéis” frustra o surgimentode novas lideranças, pois quem começa na política já sabe que não podepretender mais do que o simples cargo de vereador” (MONTES CLAROSEM FOCO, junho 1979. Ano XII, n°35. p. 20-21).

A permanência dessas famílias de prestígio no poder dentro da sociedade montes-clarense demonstra que a “(...) relação à parentela, deve-se salientar que os indi-víduos estão ligados não só por laços de parentesco carnal ou matrimonial, mastambém por fortes laços de compadrio” (PORTO, 2002, p. 31). Constatamos10

uma elite no poder político em Montes Claros e, podemos confirmar que, entreeles, havia o coronel (grande fazendeiro), padre, cônego, médico, advogado, te-nente, alferes, capitão, major, professor, engenheiro civil e dentista. Há uma diver-sidade de profissões, mas quanto ao pertencimento de classe social esse levanta-mento nos aponta um grupo determinado da sociedade, ou seja, aquele que tempoder econômico, social e intelectual na cidade. Da mesma forma, verificamos noPoder Legislativo, que os presidentes da Câmara Municipal de Montes Clarosreferentes ao período de 1947, quando as câmaras são reabertas, a 2012, constamuma diversidade enorme de profissionais, sobretudo a partir da década de 1980,quando observamos a presença de representantes de moradores da periferia.Almerindo Cordeiro e Manoel Messias Machado em entrevista relatam que,

Em 60 [1960] vamos ter representantes de bairros, lugares mais simples,como foi o caso do Santos Reis. Eu fui o primeiro vereador que não perten-cia a uma classe social importante... rica. Eu era da Maiada [Malhada] dossantos Reis, bairro pobre de Montes Claros (MACHADO, 22 set. 2012).

10 Informações contempladas nos documentos do Fundo “Administração Pública de Montes Claros” sobcustódia da Divisão de Pesquisa e Documentação Regional da Universidade Estadual de Montes Claros.

Page 35: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

35

Messias [Manoel Messias Machado] foi vereador representano o SantosReis... Isso em 60 [1960]... pobre não conseguia ser vereador e ele foi indica-do pelo povo do bairro. Aqui [bairro Santos Reis] era largado... não tinhanada, nem água encanada... luz... asfalto... pena ele não ter ficado todo omandato (CORDEIRO, 20 maio, 20112).

A Câmara Municipal de Montes Claros11, nesse contexto de disputa de poder poruma elite local, e que consiste no poder legislativo, como toda instituição públicaou privada, no decorrer do exercício de suas atividades gera e recebe documentoscom o objetivo de resolver suas demandas e necessidades diárias. Esses docu-mentos constituem uma variedade enorme enquanto espécie documental12, natu-reza13, tipos documentais14 e suporte15, podendo ser citados, dentre eles, corres-pondências recebidas e expedidas, pareceres, atas, plantas, projetos arquitetônicos,

11 Ver mais sobre a história do poder legislativo de Montes Claros em: CORDEIRO, Filomena Luciene etall. (Org.). Manual de técnico de redação de documentos. Montes Claros, Unimontes, 2008; CÂMA-RA MUNCIPAL DE MONTES CLAROS. Cartilha Legislativo Municipal: Câmara Municipal de Mon-tes Claros. Montes Claros: Imprensa Universitária, 2008. (Cartilha); CÂMARA MUNCIPAL DEMONTES CLAROS. Projeto criança cidadã. Montes Claros, s.d.

12 Ressaltar o conceito desses termos em Arquivologia é importante, pois remetem a significados especí-ficos da área: “Divisão de gênero documental que reúne tipos documentais por suas característicascomuns de estruturação da informação, como ata, carta, decreto, fotografia, memorando, ofício,planta, relatório” (BRASIL. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS.Subsídios para implantação de uma política municipal de arquivos: o arquivo municipal a serviço docidadão. Rio de Janeiro: Senado Federal, 2000. p. 36). Ver mais sobre o assunto em: CASTILHO,Ataliba Teixeira de (Org.). A sistematização de arquivos públicos. Campinas, SP: Unicamp, 1991.p.124-125; BELLOTO, Heloisa Liberalli. Como fazer diplomática e análise tipológica de documentode arquivo. São Paulo: Arquivo do Estado e Imprensa Oficial do Estado, 2002.

13 “Sentindo que as noções dominantes de arquivo se confundiam ora com a forma física dos documentos,ora com a sua finalidade, a comissão especial constituída durante o 1º Congresso Brasileiro deArquivologia, realizado no Rio de Janeiro, em 1972, com a finalidade de propor o currículo mínimo doCurso Superior de Arquivo, houve por bem estabelecer e incluir no programa do curso dois novosconceitos de arquivo, que refletem características peculiares à natureza dos documentos. São eles:arquivo especial e arquivo especializado. Chama-se arquivo especial aquele que tem sob sua guardadocumentos de formas físicas diversas – fotografias, discos, fitas, clichês, microformas, slides – e que,por esta razão, merece tratamento especial não apenas no que se refere ao seu armazenamento, comotambém ao registro, acondicionamento, controle, conservação etc. Arquivo especializado é o que temsob sua custódia os documentos resultantes da experiência humana num grupo específico, independen-temente da forma física que apresentem, como, por exemplo, os arquivos médicos ou hospitalares, osarquivos de imprensa, os arquivos de engenharia e assim por diante. Esses arquivos são tambémchamados, impropriamente, de arquivos técnicos” (PAES, Marilena Leite. Arquivo: teoria & prática.Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1986. p. 6). Ver também em: SHELLENBERG, T. R.Arquivos modernos: princípios e técnica. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1973. p. 43-45.

14 “Configuração que assume uma espécie documental, de acordo com a atividade que a gerou” (CASTILHO,Ataliba Teixeira de (Org.). A sistematização de arquivos públicos. Campinas, SP: Unicamp, 1991.p.135). Ver também em: BELLOTTO, Heloisa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento docu-mental. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. Veja também em: LOPES, André Porto Ancona. Tipologiadocumental de partidos e associações políticas brasileiras. São Paulo: Loyola, 1999.

15 “Material sobre o qual as informações são registradas” (BRASIL. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. CON-SELHO NACIONAL DE ARQUIVOS. Subsídios para implantação de uma política municipal dearquivos: o arquivo municipal a serviço do cidadão. Rio de Janeiro: Senado Federal, 2000. p. 37).

Gestão de políticas públicas de culturaREIS, Filomena Luciene Cordeiro; GONÇALVES NETO, Wenceslau

Page 36: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

36

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

vídeos das reuniões dos vereadores, gravações de entrevistas e das reuniões devereadores, projetos de leis, leis, relatórios, estatuto, regulamento, portarias, proje-tos, resoluções, instruções normativas, editais, pastas funcionais, formulários di-versos, contratos, termos de convênios, folhas de pagamento, balanços, balancetese outros (CORDEIRO et all., 2008). Esses documentos que, em um primeiromomento são elaborados e/ou recebidos, contêm informações que servirão paratomadas de decisões nessa instituição, posteriormente, no decorrer do tempo, cons-tituirão um acervo que permitirá ao pesquisador, especialmente ao historiador, eao cidadão comum conhecer a história da referida Câmara, assim como os seusdireitos e deveres. Com esse acervo riquíssimo, fonte de pesquisa, mas tambémdocumentos de caráter administrativo, fiscal, legal e probatório, a Câmara Muni-cipal de Montes Claros possui um Arquivo, local onde são guardadas essas infor-mações. Dessa forma, o Poder Legislativo de Montes Claros garante ao cidadãoo acesso à informação, dando-lhe o direito de conhecer o que seus representan-tes, os vereadores, executam no exercício da sua função por meio da documenta-ção sob custódia do Arquivo Institucional.

A Câmara Municipal de Montes Claros toma decisões e elabora leis que deverãoser cumpridas por aqueles que residem na cidade. Muitas vezes, deixamos passardespercebido o papel dos vereadores - legisladores - e desse estabelecimento polí-tico. Os projetos de leis elaborados, analisados, julgados e aprovados pela CâmaraMunicipal tornam-se leis, por isso, geram normas de caráter obrigatório que deve-rão ser cumpridas pelos moradores da cidade. Marlene Pereira no seu depoimentoretrata a falta de conhecimento sobre o papel da Câmara Municipal e se revelasurpresa com a importância desse representante político para a sociedade.

Nunca havia pensado nisso... Que coisa séria!!! Então, os vereador faz leis quetemos que cumprir morando aqui? A gente não pára pra pensar nas coisa... Émesmo... não posso mais criar galinha solta, porco... cavalo a gente vê solto poraí. O preço da lotação é os vereador que determina. Agora mesmo tá uma brigadanada se vai pagar estacionamento no Shopping16. Escutei no rádio esses diamesmo sobre isso... os vereador brigano, falano que não podia cobrar, porqueninguém vai mais no Shopping (PEREIRA, 21 maio 2012).

Ao pensar sobre esse assunto verificamos a seriedade e compromisso que essaInstituição por meio dos vereadores e servidores deve ter para com os moradores

16 Projeto de Lei nº 35/2012 - Vereador Alfredo Ramos - Dispõe sobre a Cobrança de Taxa de Estaciona-mentos por Shopping Centers, Hipermercados, Supermercados, Comércios em Geral e Similares queDisponibilizem Estacionamentos Pagos para seus Clientes. Esse projeto de lei constou na pauta dareunião do dia 5 de junho de 2012, porém alguns vereadores pediram vista do projeto para próximareunião (CÂMARA MUNICIPAL DE MONTES CLAROS. Projeto de lei nº 35/2012. Montes Claros,05 jun. 2012).

Page 37: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

37

desse Município que se faz representar. Apesar das limitações em relação à ela-boração das leis17, pois, existe a Constituição Federal e Estadual que precisamser obedecidas e, dessa forma, qualquer outra legislação tem que se basear nelas,o poder dos vereadores tem uma conotação significativa para a sociedade. Nessesentido, vamos analisar legislações de proteção ao patrimônio cultural do Municí-pio de Montes Claros e conhecer políticas públicas para a preservação de bensdocumentais. Essas fontes nos possibilitam compreender o significado do ArquivoPúblico – Vereador Ivan José Lopes, que tem a custódia desses documentosconstituidores de vestígios do passado, mas, principalmente uma garantia do re-gistro dos direitos e deveres dos moradores da cidade enquanto cidadãos e dapreservação da sua memória.

Nessa mesma perspectiva, a Câmara Municipal de Montes Claros elabora, apre-cia, avalia, aprova e promulga leis apresentadas pelos vereadores ou poder exe-cutivo. Refletir sobre essas legislações que dizem ou provocam novos comporta-mentos dos moradores de Montes Claros é importante para comprovarmos opapel e poder dessa Instituição na nossa sociedade, no entanto, averiguar a suaatuação em relação à proteção e preservação do patrimônio cultural é relevantenessa pesquisa porque constitui nosso objeto de estudo. Ao apresentar essas leisque se referem em âmbito geral ao patrimônio cultural, a ideia é privilegiar areflexão em relação ao patrimônio documental, bens materiais que são conserva-dos e preservados nos arquivos.

Constatamos a existência de várias legislações promulgadas pelo Poder Legislativode Montes Claros propostas ou pelos vereadores ou pelo Poder Executivo sobguarda do Arquivo Público – Vereador José Ivan Lopes, que abordam acerca daproteção dos bens culturais e naturais. Vamos analisá-las no contexto da cidadede Montes Claros sem esquecer que as articulações nacionais e estaduais sobre

17 Ver mais sobre Poder Legislativo em: CASTRO, Carlos Roberto de; VASCONCELOS, Heron Domingosde; SANTANA, Luciana; BARROS, Milton de Souza; DUARTE, Walter Gotschalg. Tramitação deproposições no sistema Bicameral Brasileiro. Monografia. 78 f. (Especialização em poder Legislativo)- IEC/ Escola do Legislativo da ALEMG, Instituto de Educação Continuada/PUC Minas, 2003.SALDANHA, Nelson. O que é poder legislativo. São Paulo: Brasiliense, 1982. (Coleção PrimeirosPassos, nº 56); FREITAS, Danielle Pereira Gonçalves de. Representação política: análise do perfil dosparlamentares da Câmara Municipal de Montes Claros (1982-2004). 2010. 84 f. (Monografia) Uni-versidade Estadual de Montes Claros, Centro de Ciências Sociais, Montes Claros, 2010.

Gestão de políticas públicas de culturaREIS, Filomena Luciene Cordeiro; GONÇALVES NETO, Wenceslau

Page 38: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

38

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

patrimônio cultural ganham expressão, sobretudo na década de 1930, sendo refor-çada no âmbito municipal na década de 198018.

Em 26 de março de 1985, o Poder Executivo apresenta o Projeto de Lei nº 16/1985, que “Estabelece a proteção do patrimônio histórico, artístico e cultural deMontes Claros e autoriza a criação do Conselho Consultivo de Patrimônio Histó-rico de Montes Claros”. O Projeto de Lei foi encaminhado na mesma data para aComissão de Legislação e Justiça – CLJ para manifestar-se em relação aos as-pectos legal e constitucional, bem como na forma técnica da redação do docu-mento, sendo aprovada. Todavia, na assembleia dos vereadores, momento para aapreciação do documento, que relatava a importância de se proteger os bensculturais e naturais e a criação do Conselho Consultivo de Patrimônio Histórico deMontes Claros, o vereador Sérgio Rocha Souza pediu “vistas” e sugeriu as emen-das aprovadas em 9 de abril de 1985:

Art. 3º - A Prefeitura terá um Livro de Tombo19 para a inscrição dos bens aque se refere o Art. 1º [bens culturais e naturais tombados], cujo tombamen-

18 “Em 1937, por iniciativa do então Ministro da Educação, Gustavo Capanema, foi promulgado oDecreto n º 25//37, redigido por Rodrigo Mello Franco de Andrade, a partir de anteprojeto de Mário deAndrade. O decreto regulamenta o mecanismo do tombamento, assim como dá início à organização doServiço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), hoje transformado em Instituto doPatrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). A partir de sua criação, o SPHAN teve comoprioridade definir as restrições decorrentes do tombamento e consolidá-las em lei. Além disso, deuinício ao inventário sistemático dos bens culturais brasileiros e procurou salvaguardar aqueles que seencontravam ameaçados de desaparecimento. Durante mais de duas décadas, o SPHAN permaneceucomo único órgão de preservação no país. Como conseqüência, sua atuação regional era limitada. Essasituação começou a mudar a partir do final da década de 60 [1960], quando começam a surgir órgãosestaduais. O Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico doEstado de São Paulo (CONDEPHAAT) foi criado em 1968, contando com a estrutura de um presidentee um colegiado de conselheiros. Nos municípios, a iniciativa de instituição de conselhos locais depreservação do patrimônio ocorreu ainda mais tardiamente, a partir dos anos 80, como é o caso doConselho de Defesa do Patrimônio Cultural de Campinas (CONDEPACC), criado em 1987” (PRE-FEITURA MUNCIPAL DE CAMPINAS. Patrimônio cultural: entenda e preserve. Campinas, out.2007. cartilha). Ver mais em: PINHEIRO, Maria Lucia Bressan. Origens da Noção de Preservação doPatrimônio Cultural no Brasil. In: Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo. Programa dePós-Graduação do Departamento de Arquitetura e Urbanismo, EESC-USP, 2006, p. 1-11. CHOAY,Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade; UNESP, 2006.

19 “A origem da palavra tombamento está relacionada à história portuguesa e significa inventariar,arrolar ou inscrever nos arquivos do TOMBO, designação dada a uma das torres da muralha que cercavaLisboa na Idade Média, tendo esta torre a função de guardar documentos. O rito do tombamento repetea ideia do significado da palavra inscrever bens inestimáveis de natureza cultural e de caráter exemplarem livros do tombo dando a eles uma condição social especial. São quatro os livros de tombo: 1. NoLivro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico são inscritas as coisas pertencentes àscategorias de arte arqueológica etnográfica, ameríndia e popular, os monumentos naturais, e os sítiospaisagísticos; 2. No Livro do Tombo Histórico são inscritas as obras de arte histórica; 3. No Livro doTombo das Belas Artes, são inscritas as coisas de arte erudita nacional ou estrangeira; 4. No Livro deTombo das Artes aplicadas, são inscritas as obras que se incluírem na categoria das artes plásticas,nacionais e estrangeiras” (MIRANDA, Marcos Paulo de Souza; ARAÚJO, Guilherme Maciel; ASKAR,Jorge Abdo. Mestres e conselheiros: manual de atuação dos agentes do patrimônio cultural. BeloHorizonte: IEDS, 2009. p. 52-53).

Page 39: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

39

to será homologado por decreto, após proposta do Conselho Consultivo,aprovada pela Câmara Municipal e ouvido o Instituto Estadual de PatrimônioHistórico e Artístico – IEPHA –MG. (...)Parágrafo único: o tombamento em esfera municipal, dos bens compreendi-dos no artigo somente poderá ser cancelado com audiência prévia da Câma-ra Municipal e do Instituto estadual de Patrimônio Histórico e Artístico -IEPHA/MG mediante proposta do Conselho ao Chefe do Executivo Munici-pal, para expedição do respectivo decreto. (...) (Grifos nossos) (PREFEITU-RA MUNICPAL DE MONTES CLAROS. Projeto de lei nº 16/85, 9 abr. 1985).

O Projeto de Lei foi aprovado em terceira discussão no dia 16 de abril de 1985,assim como foi sancionada como lei e arquivada. Como é possível verificar, oProjeto de Lei constitui, de acordo com pesquisa executada no Arquivo Público –Vereador José Ivan Lopes, o primeiro documento que pensa o patrimônio culturale natural da cidade. Essa iniciativa proporcionará outras atitudes nesse sentidoposteriormente, como veremos a seguir. É importante perceber o papel dos vere-adores na Câmara Municipal que tem o poder de apreciar e aprovar o referidoprojeto, que se torna lei20, por isso, os grifos na citação. Ressaltando o poder doLegislativo Municipal e a preocupação do Poder Executivo com a proteção do

20 “Lei – (Lat. lege.) S.f. Norma, regra, princípio constante, prescrição legal; domínio, poder, mando;regra de Direito ditada pela autoridade estatal e tornada obrigatória para manter, numacomunidade, a ordem e o desenvolvimento; norma pela qual o agente usa os meios necessários,reagindo e repelindo agressão a direito seu ou de terceiro; “Lei é uma ordenação da razão para obem comum, promulgada por aquele que tem o cuidado da comunidade” (São Tomás deAquino); “preceito justo, comum e estável, suficientemente promulgado” (Suárez); “Relação necessá-ria entre fenômenos, entre momentos de um processo ou entre estados de um ser, e que lhes expressaa natureza ou a essência” (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio daLíngua Portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999); SegundoVampré: “É o preceitoescrito, geralmente obrigatório, promulgado e publicado em forma solene, pelo órgãocompetente do Estado”; Cunha Gonçalves diz que “lei é uma norma ou um conjunto de normaselaboradas e votadas pelo órgão Legislativo do Estado, órgão que pode ser, ora a AssembléiaNacional, ora o governo com a autorização dessa Assembléia ou no exercício normal da função depublicar decretos-leis, ou de um poder ditatorial ou revolucionário”; segundo Temístocles Cavalcanti,“ a lei, em sua expressão mais geral, é uma forma de que se revestem os atos do PoderLegislativo, manifestação da vontade popular, por meio de órgãos próprios, determinados aditar as normas gerais por que se devem reger e disciplinar as relações entre os indivíduos e o Estado”;segundo Clóvis Beviláqua, “é a ordem, ou a regra geral obrigatória que, emanando de uma autoridadecompetente e reconhecida, é imposta coativamente à obediência de todos”. Comentário: “As leis sãofeitas para organizar a vida em sociedade; para regular a ação das pessoas; para dirimir osconflitos de interesses, os dissídios que surgem na vida prática: destinam-se, pois, a man-ter a paz, a harmonia entre os homens (...). Para que elas atinjam a sua finalidade, têm que seraplicadas e é necessário que essa aplicação seja assegurada (...). Tal missão compete à justiça, represen-tada pelos juízes e tribunais, que constituem o poder judiciário” (LIMA, J. Franzen de. Curso de direitocivil brasileiro, § VII: interpretação das leis. Rio de Janeiro: Forense, v. 1, p. 109). Notas: O filósofoiluminista Montesquieu (Lois, I, 1) definia Lei como a relação necessária que decorre da natureza dascoisas. Segundo Cunha Gonçalves, as leis dividem-se em: imperativas, proibitivas, facultativas oupermissivas, supletivas e interpretativas. “O caráter fundamental da filosofia positiva é encarar todosos fenômenos como sujeitos a leis naturais invariáveis” (A.Comte). Quanto à amplitude de sua esferade ação, pode receber os mais diversos nomes” (Grifos nossos) (SANTOS, Washington. Dicionáriojurídico brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 144-145).

Gestão de políticas públicas de culturaREIS, Filomena Luciene Cordeiro; GONÇALVES NETO, Wenceslau

Page 40: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

40

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

patrimônio cultural, citamos o ofício da Secretaria do Governo – Of. Nº - SG -012/85 – encaminhado em 25 de março de 1985 pelo prefeito Luiz Tadeu Leite aopresidente da Câmara Municipal, Manoel Soares Lopes:

Temos a satisfação de encaminhar a alta apreciação dessa Egrégia Câmarao incluso Projeto de Lei que estabelece a proteção do Patrimônio Histórico,Artístico e Cultural, entidade destinada à preservação de bens móveis eimóveis dotados de reconhecido valor e que justifiquem o interesse públicode nossa gente.Cidade de grandes tradições históricas, de reconhecida importância sócio-econômica e cultural não se justifica a ausência de uma instituição desteporte, a qual uma vez implantada, ficará sanada uma lacuna imperdoáveldado que os nossos valores nem sempre são do conhecimento geral vistoque inúmeras obras de arte, compêndios do mais alto valor intelectualestiolaram-se na indiferença, a riqueza natural desaparecendo vítima daignorância e do vandalismo, cumprindo a nós dirigentes propugnar pelasua conservação, deixando ao povo seus testemunhos vivos, colocando aoseu alcance o riquíssimo acervo cultural, mas sobretudo ensinando-lhe apreservar a sua memória (Grifos nossos) (PREFEITURA MUNICIPAL DEMONTES CLAROS. Secretaria do Governo. Projeto de lei e mensagem. Of.Nº - SG - 012/85, de LEITE, Luiz Tadeu a LOPES, Manoel Soares - CâmaraMunicipal de Montes Claros. Montes Claros, 25 mar. 1985)

A correspondência demonstra que em 1985, o Município de Montes Claros aindanão possuía um Conselho de Patrimônio Histórico21, cuja articulação no âmbitonacional está sendo realizada justamente nessa década. Montes Claros, então, seenvolve com os assuntos referentes ao patrimônio cultural na época em que ou-tros municípios estão fazendo o mesmo e, a primeira iniciativa constitui na implan-tação do Conselho, de onde virão as demandas de proteção no âmbito oficial.Esse grupo - Conselheiros de Patrimônio Cultural – formulou e, ainda continuafazendo isso, um projeto de cidade a partir da concepção de bens culturais enaturais que possuem e apresentam para tombamento. Outro ponto relevante é oprefeito, nesse ofício, ressaltar “(...) a alta apreciação dessa Egrégia Câmara”(PREFEITURA MUNICIPAL DE MONTES CLAROS. Secretaria do Gover-no. Projeto de lei e mensagem. Of. Nº - SG - 012/85, de LEITE, Luiz Tadeu aLOPES, Manoel Soares - Câmara Municipal de Montes Claros. Montes Claros,25 mar. 1985), confirmando o poder do Legislativo para fazer tal avaliação e, que

21 Ver em: PREFEITURA MUNCIPAL DE CAMPINAS. Patrimônio cultural: entenda e preserve. Cam-pinas, out. 2007. (cartilha). PINHEIRO, Maria Lucia Bressan. Origens da Noção de Preservação doPatrimônio Cultural no Brasil. In: Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo. Programa dePós-Graduação do Departamento de Arquitetura e Urbanismo, EESC-USP, 2006, p. 1-11. CHOAY,Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade; UNESP, 2006. MIRANDA,Marcos Paulo de Souza; ARAÚJO, Guilherme Maciel; ASKAR, Jorge Abdo. Mestres e conselheiros:manual de atuação dos agentes do patrimônio cultural. Belo Horizonte: IEDS, 2009.

Page 41: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

41

sem essa “apreciação e aprovação” não teria como concretizar a Implantação doreferido Conselho. Do mesmo modo, podemos constatar a força e o poder dodocumento22 , pois é a partir da análise das informações que o Projeto de Leicontempla que um ato se realizará. A justificativa do prefeito Luiz Tadeu Leite emimplantar esse órgão de proteção ao patrimônio cultural consiste em Montes Cla-ros ser uma “Cidade de grandes tradições históricas, além de possuir inúmerasobras de arte, compêndios (...)” que estão sendo dilapidados por “ignorância ouvandalismo”. Sendo assim, os dirigentes devem atuar no sentido de conservar”testemunhos vivos” e “riquíssimo acervo cultural”, preservando a memória dosmontes-clarenses (PREFEITURA MUNICPAL DE MONTES CLAROS. Se-cretaria do Governo. Projeto de lei e mensagem. Of. Nº - SG - 012/85, de LEI-TE, Luiz Tadeu a LOPES, Manoel Soares - Câmara Municipal de Montes Claros.Montes Claros, 25 mar. 1985).

Com a sanção da Lei nº 1. 529, de 22 de abril de 1985, resultado do Projeto de Leinº 16/85, o Conselho Consultivo Municipal de Patrimônio Histórico, Artístico eCultural de Montes Claros foi criado e, em 2 de outubro de 1987, um novo Projetode Lei sob o nº 23/1987 foi encaminhado a Câmara Municipal pelo Poder Execu-tivo23 com o objetivo de tombar os bens culturais e naturais de Montes Claros.Dentre esses bens, citamos imóveis urbanos e rurais, objetos, peças, obras dearte, bens arqueológicos e espeleológicos e documentos. O ofício nº 2.808, data-do de 28 de agosto de 1987, expedido da Secretaria do Governo e encaminhadoao presidente da Câmara Municipal, José Paulo Ferreira Gomes, expõe a impor-tância de se tombar bens culturais e naturais de Montes Claros:

A preservação do Patrimônio Histórico, Ar tístico, cultural, arquitetônico enatural de Montes Claros se torna tão necessária e premente, quão bené-fica e conservadora. Com efeito, em nossa cidade, existem imóveis que setornaram verdadeiros relicários da cultura e da história do nosso povo. Achamada “Cidade Velha”, berço do “Arraial da Formigas” conserva os maissignificativos e profundos momentos iniciais dos fundadores da nossa ci-dade. Ali, se respiram nossa tradição, a sua cultura e a sua história. Por istomesmo, aquele “sitio” deve ser preservado, deve ser conservado, para que,além de nós, nossos filhos conheçam seu passado e dele se orgulhem. Aproteção e a preservação implicam em tombamento. Dessa forma, apresen-tamos a V. Exa. e aos digníssimos senhores vereadores relação de bensimóveis [refere-se a bens culturais e naturais no geral e não apenas imó-

22 FUGUERAS, Ramón Alberch; MUNDET, José Ramón Cruz. Archívese! Los documentos Del poder. Elpoder de los documentos. Madrid: Comunicación. Alianza Editorial, 1999.

23 Salienta-se que o prefeito na época era Luiz Tadeu Leite (PREFEITURA MUNICIPAL DE MONTESCLAROS. Projeto de lei nº 23/87. Dispõe sobre o tombamento de patrimônio histórico, artístico,cultural, arquitetônico e natural de Montes Claros. Montes Claros, 28 ag. 1987).

Gestão de políticas públicas de culturaREIS, Filomena Luciene Cordeiro; GONÇALVES NETO, Wenceslau

Page 42: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

42

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

veis], os quais deverão ser protegidos e tombados. Fê-se estudo minuciosoe profundo, buscando, nas origens, o significado da medida pretendida(Grifos nossos) (PREFEITURA MUNICPAL DE MONTES CLAROS. Secre-taria do Governo. Mensagem. Of. Nº - SG - 2808/87, de LEITE, Luiz Tadeu aGOMES, José Paulo Ferreira - Câmara Municipal de Montes Claros. MontesClaros, 28 ag. 1987).

O ofício contém mais informações, inclusive relata como está dividido o estudodos bens para tombamento, assim como reforça a relevância do tombamento,sobretudo dos bens imóveis da “Cidade Velha”. Fiquemos nesse trecho acima ereflitamos sobre quantos bens estão sendo listados para tombamento, cuja neces-sidade de preservação é urgente: patrimônio histórico, artístico, cultural, arquitetônicoe natural. O tombamento desses bens proporcionará benefícios aos moradores dacidade, pois apresenta a sua cultura, tradição e história, tendo como referência aorigem do Arraial de Formigas e seus fundadores. E por fim, o texto relata afunção dos vereadores que tornarão esse Projeto de Lei em Lei, ou seja, a Lei nº1.652, de 2 de outubro de 1987. Tanto esse Projeto de Lei que se transformouposteriormente em Lei é significativo para compreendermos, conforme pondera-mos anteriormente, a concepção de patrimônio cultural e de cidade. Nossasinquietudes se delineiam na falta de percepção dos membros do Conselho Consul-tivo não sugerirem nenhum bem cultural, sobretudo arquitetônico – os quaisenfatizam mais no texto – na periferia, com exceção da Capela São Geraldo. ALei nº 1.652, de 2 de outubro de 1987, oferece bens espeleológicos e arqueológi-cos que se encontram localizados fora do domínio central de Montes Claros, massem vínculo com a comunidade onde se situa, assim como bens imóveis ruraispertencentes a famílias tradicionais. Porém, essa legislação abre novos horizontespara se refletir sobre o patrimônio cultural, já que na relação de tombamentosconstam os documentos do Arquivo Paroquial da Matriz e o Arquivo da CâmaraMunicipal de Montes Claros. Esse tombamento proposto pelo Projeto de Lei nº27/87 e concretizado pela Lei nº 1.652, de 2 de outubro de 1987 é expressivo parapensar nosso objeto de estudo, uma vez que inclui os documentos que constituemhoje parte do acervo do Arquivo Público - Vereador José Ivan Lopes. Tombam-se igualmente os documentos da Igreja Matriz. A descrição do acervo do ArquivoParoquial da Matriz de Nossa Senhora e São José na referida Lei relata:

26: ARQUIVO PAROQUIAL/RUA GONÇALVES FIGUEIRA, n° 201: Os do-cumentos deste arquivo encontram-se dispostos em estantes de madeiracom vedação do mesmo tipo nas dependências da Casa Paroquial, consti-tui-se de 115 livros de batizados e 48 livros de casamentos bem encaderna-dos e em bom estado de conservação, datados do século XIX e XX. Estãoorganizados por documentos e ordem cronológica, todos concernentes àcidade de Montes Claros e distritos, não havendo restrições quanto á con-sulta por parte do clero responsável (Grifos nossos) (PREFEITURA MUNI-CIPAL DE MONTES CLAROS. Projeto de lei nº 23/87. Dispõe sobre o

Page 43: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

43

tombamento de patrimônio histórico, artístico, cultural, arquitetônico e na-tural de Montes Claros. Montes Claros, 28 ag. 1987).

Ao expor sobre os documentos que compõem esse acervo, o Projeto de Lei narracomo se encontram armazenados, ou seja, “em estantes de madeira”, móvel im-próprio para a guarda dos mesmos, já que a madeira atrai cupins e outros sinistroslevando a sua degradação24. Ao quantificar os livros e dizer sobre qual o assuntodescrito - “115 livros de batizados e 48 livros de casamentos” -, a ideia é ressaltaro volume, pois constitui um número razoável de documentos cujos temas sãointeressantes para pesquisas e consultas ao público em geral, porque neles cons-tam certidões de casamento e batizados dos montes-clarenses. Organizados emordem cronológica e por tipo documental mostra que há certo cuidado com oacervo, porque existe uma forma de localizar e acessar o documento. O acesso élivre, porque “não há restrições quanto á consulta por parte do clero responsável”,no entanto, há várias ocorrências de proibições para estudo desses documen-tos25 . O tombamento desse acervo nos revela a preocupação das “autoridadescompetentes” atentadas com a preservação do patrimônio documental, fato inusi-tado ao observamos que os bens arquitetônicos são sempre aqueles privilegiadosnessas ações26 .

Na relação dos bens do Projeto de Lei, o número 27 incide sobre os documentosda Câmara Municipal de Montes Claros:

27. ARQUIVO DA CÂMARA MUNICPAL DE MONTES CLAROS/RUAGOVERNADOR VALADARES, Nº 223 – 1º ANDAR:O arquivo está situado em “um pequeno cômodo”, sem janelas, nas depen-dências da Câmara Municipal com documentos empacotados por gênero eordem cronológica a partir da segunda metade do século XX, existindoalguns livros de atas avulsas. Os documentos encontram-se em precáriascondições, empilhadas em estantes de madeira sem uma organização for-mal, não existindo restrições a consulta. Constitui-se de projetos de lei,

24 Ver sobre essa questão em: BECK, Ingrid. Manual de documentos. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,1991. (Publicações técnicas, 46); GOMES, Sônia de Conti. Técnicas alternativas de conservação: ummanual de procedimentos para manutenção, reparos e reconstituição de livros, revistas, folhetos emapas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1992; JUSTE, Marília. A arte de recuperar o passado: restauro econservação resgatam trabalho de artistas antigos. Revista Galileu. São Paulo: Globo, n.148, nov.2003; SPINELLI JÚNIOR, Jayme. A conservação de acervos bibliográficos e documentais. Rio deJaneiro: Fundação Biblioteca Nacional, 1997; LUCCAS, L; SERIPIERRI, D. Conservar para nãorestaurar. Brasília: Thesaurus, 1995; MESSIAS, Roseli Aparecida Damaso e CORDEIRO, FilomenaLuciene. Curso Conservação de acervos bibliográficos e documentais. Montes Claros, 1999.

25 Juliano Gonçalves Aquino, Wanderson Carvalho, Maria de Fátima Gomes Lima do Nascimento eFilomena Cordeiro não puderam acessar esse acervo para pesquisa monográficas no período de 2002a 2009.

26 MEIRA, Ana Lúcia Goeler. O passado no futuro da cidade: políticas públicas e participação popularna preservação do patrimônio cultural de Porto Alegre. Porto Alegre: UFRGS, 2004.

Gestão de políticas públicas de culturaREIS, Filomena Luciene Cordeiro; GONÇALVES NETO, Wenceslau

Page 44: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

44

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

correspondências recebidas e expedidas, documentos de despesas e gas-tos, leis e decretos sob despesas e créditos adicionais e memórias, balancetes,cidadanias e honrarias, projetos de convênios, atas das reuniões a partir de1947 e indicações de requerimentos formulados por vereadores. Devido ascondições em que se encontram faz necessário um novo local para a insta-lação desse arquivo, seguido de uma organização mais elaborada evitando adeterioração e facilitando a consulta. (Grifos nossos) (PREFEITURA MU-NICIPAL DE MONTES CLAROS. Projeto de lei nº 23/87. Dispõe sobre otombamento de patrimônio histórico, artístico, cultural, arquitetônico e na-tural de Montes Claros. Montes Claros, 28 ag. 1987).

O Projeto de Lei ao descrever sobre o acervo da Câmara Municipal de Montesrevela que o local onde se encontra armazenado não é adequado: “situado em umpequeno cômodo, sem janelas.” O espaço reservado para a guarda dos documen-tos é imprópria pelo tamanho e falta de ventilação. Importante percebermos queos documentos estão nas dependências da Câmara Municipal, nos remetendo queo Poder Legislativo não abandonou seu acervo – apesar do estado em que seencontra – ou entregou a outras instituições ou em mãos de particulares comoocorreu com a maioria do acervo documental da Prefeitura Municipal de MontesClaros27. Há uma mínima organização do acervo: “empacotados por gênero [tipo]e ordem cronológica”, necessitando de “uma organização mais elaborada” e, as-sim, “evitando a deterioração”. O Projeto de Lei é elaborado por uma equipe28

que consegue constatar a urgência em tomar iniciativas para que não se degradecom o tempo, assim como possibilitar condições adequadas como “um novo localpara a instalação do arquivo”. Os documentos do Arquivo da Câmara Municipalcomo da Igreja Matriz também constam como acessíveis à consulta.

Ressaltar outras legislações se faz pertinente no sentido de constatarmos o papeldo Poder Legislativo em se pronunciar sobre tantos assuntos, incluindo o patrimôniocultural, como os Projetos de Leis arquivados no Arquivo da Câmara Municipal

27 Em 1992, a Prefeitura Municipal de Montes Claros fez uma doação de grande parte de seu acervo a atualUniversidade Estadual de Montes Claros, assim como em 2008 entregou alguns livros de atas aoArquivo da Câmara Municipal – vereador Ivan José Lopes.

28 Consta como equipe técnica constituindo de membros do IEPHA, demonstrando um caráterinterdisciplinar: Coordenação: Olavo Pereira da Silva Filho (Arquiteto e Superintendente de Pesquisae Tombamento); Ruth Villamarim Soares (Historiadora e Chefe do Setor de Pesquisa e Tombamento);Breno Decina Filho, Reinaldo Guedes Machado e Viderval de Oliveira Filho (Arquitetos); FabianoLopes de Paula, Maria Elisa Castellanos Solá e Suzana Maria Roma Bulcão (Arqueólogos); CarlosHenrique Rangel (Historiador); Leila Augusta Lovaglio Rossi (Desenhista); Luís Beethoven Piló(Espeleologia); Fotografias de: Breno Decina Filho (Arquitetura, Arqueologia e Espeleologia), MariaElisa Castellanos Solá (Arqueologia e Espeleologia) e Maria Leonor Almeida Cunha (Arqueologia eEspeleologia); Maria Raimunda Coelho (Datilografia); Andréa Souto Xavier e Márcia Fonseca da Silva(Apoio) (PREFEITURA MUNICIPAL DE MONTES CLAROS. Projeto de lei nº 23/87. Dispõe sobreo tombamento de patrimônio histórico, artístico, cultural, arquitetônico e natural de Montes Claros.Montes Claros, 28 ag. 1987).

Page 45: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

45

como o de n° 9/1999, que institui o Fundo Municipal de Desenvolvimento do Turis-mo – FUNDETUR; o nº 24/1999, que dispõe sobre a política cultural do Municípiode Montes Claros; nº 309/2007, dispõe sobre a criação do Sistema Municipal deIncentivo à Cultura, do Conselho Municipal de Cultura e do Fundo Municipal deIncentivo à Cultura; nº 240, de 13 de outubro de 2008, que cria o Arquivo PúblicoMunicipal Vereador - Ivan José Lopes; nº 166/2009, que cria o Fundo Municipalde Preservação do Patrimônio Cultural de Montes Claros; dentre outros. Pensaro acervo documental é abrir possibilidades para trazer a tona outros bens culturaisdiferentes dos arquitetônicos e verificar a atuação do poder público municipal deMontes Claros – executivo e legislativo – articulando políticas públicas de preser-vação de documentos. Ressaltar a presença de leis em Montes Claros que discor-rem sobre esses bens culturais, especificamente o Arquivo da Câmara Municipalé de grande relevância para compreendermos o seu significado para as constru-ções, desconstruções e reconstruções das histórias e memórias da cidade.

Fontes

1) Correspondências:

PREFEITURA MUNICIPAL DE MONTES CLAROS. Secretaria do Governo.Projeto de lei e mensagem. Of. Nº - SG - 012/85, de LEITE, Luiz Tadeu aLOPES, Manoel Soares - Câmara Municipal de Montes Claros. Montes Claros,25 mar. 1985.

PREFEITURA MUNICPAL DE MONTES CLAROS. Secretaria do Governo.Mensagem. Of. Nº - SG - 2808/87, de LEITE, Luiz Tadeu a GOMES, José PauloFerreira - Câmara Municipal de Montes Claros. Montes Claros, 28 ag. 1987.

2) Documentos diversos:

CÂMARA MUNICPAL DE MONTES CLAROS. Cartilha legislativo muni-cipal. Montes Claros: Imprensa Universitária, 2008 (Cartilha)

CÂMARA MUNICIPAL DE MONTES CLAROS. Ata de reinstalação daCâmara Municipal. Montes Claros, 16 dez. 1947.

CÂMARA MUNCIPAL DE MONTES CLAROS. Projeto criança cidadã.Montes Claros, s.d.

Gestão de políticas públicas de culturaREIS, Filomena Luciene Cordeiro; GONÇALVES NETO, Wenceslau

Page 46: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

46

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

3) Entrevistas

CORDEIRO, Almerindo. Entrevista concedida em Montes Claros no dia 20 demaio de 2012 a Filomena Luciene Cordeiro Reis.

MACHADO, Manoel Messias. Entrevista concedida a Filomena Luciene Cor-deiro Reis. Montes Claros, 22 set. 2012.

PEREIRA, Marlene. Entrevista concedida a Filomena Luciene Cordeiro Reis.Montes Claros, 21 maio 2012.

4) Legislações

BRASIL. Decreto n. 19.398, de 11 de novembro de 1930.

CÂMARA MUNICPAL DE MONTES CLAROS. Resolução da AssembleiaGeral Legislativa do Brasil de 13 de outubro de 1831. Rio de Janeiro, 13 out. 1831.

PREFEITURA MUNICIPAL DE MONTES CLAROS. Projeto de lei nº 23/87. Dispõe sobre o tombamento de patrimônio histórico, artístico, cultural,arquitetônico e natural de Montes Claros. Montes Claros, 28 ag. 1987.

PREFEITURA MUNICPAL DE MONTES CLAROS. Projeto de lei nº 16/85, 9abr. 1985.

5) Revista

MONTES CLAROS EM FOCO, junho 1979. Ano XII, n°35. p. 20-21.

6) Sites:

Disponível em: <http://www.cmmoc.mg.gov.br/index.php/breve-historico-da-camara>. Acesso em: 1 abr. 2012.

Referências

BECK, Ingrid. Manual de documentos. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1991.(Publicações técnicas, 46)

BELLOTTO, Heloisa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental.Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

Page 47: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

47

BRASIL. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. CONSELHO NACIONAL DE AR-QUIVOS. Subsídios para implantação de uma política municipal de arqui-vos: o arquivo municipal a serviço do cidadão. Rio de Janeiro: Senado Federal,2000.

CASTILHO, Ataliba Teixeira de (Org.). A sistematização de arquivos públi-cos. Campinas, SP: Unicamp, 1991. p.124-125).

CASTRO, Carlos Roberto de; VASCONCELOS, Heron Domingos de;SANTANA, Luciana; BARROS, Milton de Souza; DUARTE, Walter Gotschalg.Tramitação de proposições no sistema Bicameral Brasileiro. Monografia. 78f. (Especialização em poder Legislativo) - IEC/ Escola do Legislativo da ALEMG,Instituto de Educação Continuada/PUC Minas, 2003.

CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade;UNESP, 2006.

CORDEIRO, Filomena Luciene et all. (Org.). Manual de técnico de redaçãode documentos. Montes Claros, Unimontes, 2008.

______. (Org.). Gestão de documentos: plano de classificação e tabela detemporalidade. Montes Claros, Unimontes, 2008.

FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de SãoPaulo: Fundação para o Desenvolvimento da Educação, 2001.

FREITAS, Danielle Pereira Gonçalves de. Representação política: análise doperfil dos parlamentares da Câmara Municipal de Montes Claros (1982-2004).2010. 84 f. (Monografia) Universidade Estadual de Montes Claros, Centro deCiências Sociais, Montes Claros, 2010.

FUGUERAS, Ramón Alberch; MUNDET, José Ramón Cruz. Archívese! Losdocumentos Del poder. El poder de los documentos. Madrid: Comunicación. AlianzaEditorial, 1999.

GOMES, Sônia de Conti. Técnicas alternativas de conservação: um manualde procedimentos para manutenção, reparos e reconstituição de livros, re-vistas, folhetos e mapas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1992.

JUSTE, Marília. A arte de recuperar o passado: restauro e conservação resgatamtrabalho de artistas antigos. Revista Galileu. São Paulo: Globo, n.148, nov. 2003.

Gestão de políticas públicas de culturaREIS, Filomena Luciene Cordeiro; GONÇALVES NETO, Wenceslau

Page 48: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

48

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

LIMA, J. Franzen de. Curso de direito civil brasileiro, § VII: interpretação dasleis. Rio de Janeiro: Forense, v. 1, p. 109). Notas: O filósofo iluminista Montesquieu(Lois, I, 1)

LOPES, André Porto Ancona. Tipologia documental de partidos e associa-ções políticas brasileiras. São Paulo: Loyola, 1999.

LUCCAS, L; SERIPIERRI, D. Conservar para não restaurar. Brasília:Thesaurus, 1995.

MACHADO, Helena Correa; CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Como im-plantar arquivos públicos municipais. São Paulo: Imprensa Oficial, 1999.

MEIRA, Ana Lúcia Goeler. O passado no futuro da cidade: políticas públicas eparticipação popular na preservação do patrimônio cultural de Porto Alegre. Por-to Alegre: UFRGS, 2004.

MESSIAS, Roseli Aparecida Damaso e CORDEIRO, Filomena Luciene. CursoConservação de acervos bibliográficos e documentais. Montes Claros, 1999.

MIRANDA, Marcos Paulo de Souza; ARAÚJO, Guilherme Maciel; ASKAR,Jorge Abdo. Mestres e conselheiros: manual de atuação dos agentes do patrimôniocultural. Belo Horizonte: IEDS, 2009.

MONTESQUIEU, Charles de Secondat, baron de. Do espírito das leis. SãoPaulo: Difusão Européia do Livro, 1962. 2 v. p.148-149. (Clássicos Garnier )

PAES, Marilena Leite. Arquivo: teoria & prática. Rio de Janeiro: Editora Funda-ção Getúlio Vargas, 1986.

PEREIRA, Laurindo Mékie. A cidade do favor: Montes Claros em meados doséculo XX. Montes Claros: Unimontes, 2002.

PINHEIRO, Maria Lucia Bressan. Origens da Noção de Preservação doPatrimônio Cultural no Brasil. In: Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urba-nismo. Programa de Pós-Graduação do Departamento de Arquitetura e Urbanis-mo, EESC-USP, 2006, p. 1-11.

PREFEITURA MUNCIPAL DE CAMPINAS. Patrimônio cultural: entenda epreserve. Campinas, out. 2007. (cartilha)

Page 49: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

49

PORTO, César Henrique de Queiroz. Paternalismo, poder privado e violên-cia: o campo político Norte-Mineiro durante a primeira República.Belo Ho-rizonte, fevereiro 2002. (Dissertação de Mestrado)

SALDANHA, Nelson. O que é poder legislativo. São Paulo: Brasiliense, 1982.(Coleção Primeiros Passos, nº 56).

SANTOS, Washington. Dicionário jurídico brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey,2001.

SHELLENBERG, T. R. Arquivos modernos: princípios e técnica. Rio de Janei-ro: Fundação Getúlio Vargas, 1973.

SPINELLI JÚNIOR, Jayme. A conservação de acervos bibliográficos e do-cumentais. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 1997.

VIANNA, Urbino de Souza. Montes Claros: breves apontamentos históricosgeographicos e descritivos. Montes Claros: Unimontes, 2007. P. 58. (ColeçãoSesquicentenária)

VIANA, Nelson. Efemérides montesclarenses. Montes Claros: Unimontes, 2007(Coleção Sesquicentenária)

Gestão de políticas públicas de culturaREIS, Filomena Luciene Cordeiro; GONÇALVES NETO, Wenceslau

Page 50: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

50

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Page 51: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

51

Resumo: Até o final da década de 1980, um tipo de turismo singular que seapresenta hoje inaceitável para muitas pessoas, foi explorado no litoral norte daParaíba: tratava-se do esquartejamento dos cetáceos na então chamada “pescada baleia”, realizada na praia de Costinha, município de Lucena, distante aproxi-madamente 50 km da capital João Pessoa. O espetáculo da morte e doesquartejamento dos enormes mamíferos marinhos que durou até a proibição daatividade pela Lei Federal 7.643 de 18 de dezembro de 1987, era realizado pelostrabalhadores da Companhia de Pesca Norte do Brasil (COPESBRA) e realizadoem plena praia, atraindo curiosos da região, grupos de turistas e até personalida-des políticas ao local do abate e do processamento dos cetáceos. Alguns hotéis deJoão Pessoa, a exemplo do Hotel Tambaú, chegaram a incluir no seu roteiro turís-tico visitações à praia de Costinha, onde estava instalada a estação baleeira, paraque seus hóspedes pudessem ter a oportunidade de presenciar o espetáculo pro-movido pela empresa nipo-brasileira que monopolizava a atividade baleeira. Ma-térias de jornais da época fornecem indícios para se retomar e rediscutir a ativida-de baleeira no Brasil, particularmente na costa da Paraíba, considerando aspectosrelacionados às questões éticas, culturais e históricas das práticas humanas comrelação aos maus tratos com animais. Os derivados baleeiros, principalmente a

MORTE À ESPREITA: HISTÓRIA DE UM TURISMO MACABROASSOCIADO À CAÇA DA BALEIA EM LUCENA – PARAÍBA

(1970-1990)

Francisco Henrique Duarte Filho*

José Otávio Aguiar**

* Doutor em Recursos Naturais (UFCG). Professor de História do Instituto Federal de Educação, Ciênciae Tecnologia da Paraíba e-mail: [email protected]

** Doutor em História e Culturas Políticas/ UFMG. Pós-Doutor em História, Relações de Poder e MeioAmbiente/ UFPE. Professor da Universidade Federal de Campina Grande/UFCG. E-mail:[email protected]

Page 52: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

52

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

carne e o óleo, explorados na costa paraibana serviram para o enriquecimento deum setor empresarial ligado ao capital japonês. Já a morte e o esquartejamentodos animais capturados, eram explorados como espetáculo circense, sendoprestigiado por turistas de várias cidades brasileiras e incentivados por setores dasociedade local e empresarial. O presente artigo discute aspectos históricos dessaatividade que por décadas fomentou o desenvolvimento econômico de Lucena.

Palavras-chave: História, Meio Ambiente, Baleia, Espetáculo.

Abstract: Until the late 1980s, a type of tourism that presents unique unacceptableto many people today, was explored on the north coast of Paraíba: it was thedismemberment of cetaceans in the so-called “ whaling “, held at the Beach Costinha,municipality of Lucena, distant about 50 km from the capital João Pessoa . Thespectacle of death and dismemberment of the huge marine mammals that lasteduntil the prohibition of the activity by Federal Law 7,643 of December 18, 1987,was conducted by employees of the Company Fishing Northern Brazil(COPESBRA) and performed in full beach, attracting curious region, tourist groupsand even political personalities to the place of slaughter and processing of cetaceans.Some hotels in Joao Pessoa, like the Hotel Tambaú even included in your touritinerary Costinha visitations to the beach, where the whaling station was installedso that your guests may have the opportunity to witness the spectacle promotedby Japanese-Brazilian Company which monopolized whaling. Newspaper reportsof the time provide clues to revisit and resume whaling in Brazil, particularly onthe coast of Paraíba, considering aspects related to the ethical, cultural and historicalhuman practices regarding the mistreatment of animals. Derivatives whalers, mainlymeat and oil, explored the coast of Paraiba served to enrich a business sector onthe Japanese capital. Already the death and dismemberment of captured animalswere exploited as circus show is attended by tourists from several Brazilian citiesand encouraged by sectors of local society and business. This article discussesthe historical aspects of this activity for decades promoted the economicdevelopment of Lucena.

Keywords: History, Environmental, Whale, Entertainment.

Resumen: Hasta finales de 1980, un tipo de turismo que presenta inaceptablepara muchas personas hoy en día único, fue descubierta en la costa norte deParaíba : era el desmembramiento de los cetáceos en la llamada “ caza de ballenas“ , que se celebró en la playa Costinha , municipio de Lucena, distante unos 50 kmde la capital João Pessoa. El espectáculo de la muerte y desmembramiento de losgrandes mamíferos marinos que duró hasta la prohibición de la actividad por laLey Federal 7643 de 18 de diciembre de 1987, se llevó a cabo por los empleadosde la Compañía Pesquera Norte de Brasil ( COPESBRA ) y realizado en plena

Page 53: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

53

playa , atrayendo región curioso , los grupos de turistas e incluso personalidadespolíticas en el lugar de la masacre y el procesamiento de los cetáceos. Algunoshoteles en Joao Pessoa, como el Hotel Tambaú incluso incluido en su itinerario delviaje Costinha las visitas a la playa , donde se instaló la estación ballenera paraque sus clientes pueden tener la oportunidad de presenciar el espectáculo promo-vido por la compañía japonesa - brasileña que monopolizaban la caza de ballenas. Informes periódicos de la época dan pistas para revisitar y reanudar la caza deballenas en Brasil , sobre todo en la costa de Paraíba , teniendo en cuenta losaspectos relacionados con las prácticas humanas éticas , culturales e históricossobre el maltrato a los animales . Derivados balleneros, principalmente carne yaceite, exploraron las costas de Paraiba servido para enriquecer a un sector deactividad en la capital japonesa . Ya la muerte y descuartizamiento de los animalescapturados fueron explotados como espectáculo circense con la asistencia deturistas de diversas ciudades de Brasil y alentado por los sectores de la sociedadlocal y los negocios. Este artículo aborda los aspectos históricos de esta actividaddurante décadas promovió el desarrollo económico de Lucena.

Palabras clave: Historia, medio ambiente, ballenas, entretenimiento.

1 A “Pesca da baleia”1 no Brasil: breves considerações

Até meados da década de 1980, a caça aos cetáceos era parte constituinte daeconomia, da cultura e da paisagem do município de Lucena, litoral norte daParaíba. A chamada “pesca da baleia” permaneceu como parte do cotidiano dacomunidade local sem grandes questionamentos éticos ou relacionados ao direitodos animais por pelo menos sete décadas (1912-1987). Aliás, a morte das baleiase seu retalhamento na praia passaram a se constituir em um atrativo a mais paraquem desejasse visitar àquela porção do litoral paraibano.

O extrativismo animal praticado em Lucena chegou a ser explorado, em algunsmomentos de sua trajetória, como uma das principais atrações turísticas da re-gião. A cada período de caça na praia de Costinha, as pessoas, se sentindo atraí-das em assistir ao “espetáculo” promovido sob coordenação da Companhia dePesca Norte do Brasil (COPESBRA), se acotovelavam nas areias e nas arqui-bancadas improvisadas, montadas em época de caça para essa finalidade. Gru-pos de turistas se dirigiam a Costinha, praia de Lucena onde estava sediada aempresa japonesa, para presenciar o desembarque dos enormes animais que, de-

1 Para os atuais domínios do discurso zoológico, não é adequado designar “pesca da baleia” a caça aoscetáceos. Isso porque, as baleias não são peixes, mas mamíferos marinhos. Por esta razão, quando seutilizar o termo pesca da baleia neste trabalho, o uso de aspas será feito como forma de reforçar osentido zoologicamente correto do termo.

Morte à espreitaDUARTE FILHO, Francisco Henrique; AGUIAR, José Otávio

Page 54: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

54

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

pois de abatidos na costa, eram arrastados à estação baleeira onde então eramsangrados, retalhados e preparados para a comercialização.

A caça e o retalhamento dos animais usados em certos momentos como atraçãoturística, momento de divertimento e lazer para a comunidade local e regional,como ocorreu no estado da Paraíba durante quase todo o século XX, podem serinterpretados como resquícios de uma tradição herdada ainda dos moradores doBrasil colônia. Relatos históricos de viajantes estrangeiros, como Frei Vicente doSalvador (1564-1635), Louse-François de Tollenare (1780-1853) e José Bonifáciode Andrada e Silva (1763-1838) fazem referência ao espetáculo “fascinante” quea caça à baleia no litoral do Brasil colônia oferecia aos seus moradores, quando oabate dos maiores mamíferos do planeta havia se iniciado na então Capitania daBahia de Todos os Santos no século XVII, servindo ao mesmo tempo como espe-táculo (com traços de exotismo e requinte de crueldade) para as comunidadesque habitavam as áreas litorâneas da América Portuguesa.

É de conhecimento dos estudiosos da temática sobre a economia baleeira um trechoda narrativa de Louse-François de Tollenare, produzida entre 1816 e 1818 sobreesta prática na Bahia, quando se referindo a caça à baleia na Ilha de Itaparica, oviajante francês descreveu com certa riqueza de detalhes o alvoroço causado pelapopulação de Salvador que, em terra firme, se posicionava nos lugares mais propíci-os, na praia ou nas janelas de casa, para melhor observar a luta travada no mar entreos baleeiros e os grandes animais marinhos. Além da caça em si, a retirada dosmamíferos mortos e sua chegada à plataforma também eram apreciadas por curio-sos que se aglomeravam em terra firme com o objetivo de assistir o arrasto e oretalhamento artesanal dos enormes animais que eram abatidos no mar:

Um dos espetáculos mais interessantes que oferece a residência na Bahia éo da pesca de baleias. Esta pesca se faz no próprio ancoradouro e até nomeio dos navios fundeados diante da cidade. Pode-se apreciá-las das jane-las de casa; mas, para melhor observá-la cumpre transportar-se à praia quesepara a cidade do cabo de Santo Antônio (...). O arpoador, sempre de pé naproa, indica ao patrão todos estes movimentos e este governa de acordo; aluta perigosa entre o poderoso monstro e a frágil embarcação dura de trintaminutos até três a quatro horas, e apresenta um espetáculo aterrador. Oarpoador repete os seus golpes, a baleia avermelha as águas com o seusangue, dá pancadas com a sua formidável cauda, arrasta a chalupa atéduas e três léguas mar em fora, e morre sem ter podido desembaraçar-se dosterríveis ferros que a prendem2.

2 TOLLENARE, Louse-François de. Notas Dominicais tomadas durante uma viagem em Portu-gal e no Brasil em 1816, 1817 e 1818. Bahia, Livraria Progresso Editora, 1956.

Page 55: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

55

A caça à baleia no período colonial chamava a atenção pela violência e crueldadecom que era praticada, e pelo “espetáculo” que produzia para os mais curiosos,numa intensa campanha entre grupos de homens, com suas estratégias e seusaparatos técnicos, contra a força dos enormes mamíferos marinhos que precisa-vam ser capturados para o atendimento, inicialmente, de uma demanda local: uti-lização do óleo para iluminação pública e dos engenhos de cana-de-açúcar,calafetagem de barcos e navios e ainda para a confecção de argamassa para aconstrução civil (ELLIS, 1969, p. 25).

No final do século XVIII, um dos pensadores que discorreu sobre a caça à baleiafoi José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838). Em suas memórias, JoséBonifácio denunciou o caráter retrógrado, irracional e por isso, improdutivo doemprego das técnicas de captura, morte e exploração das baleias no litoral doBrasil. A forma predatória como os animais eram abatidos na costa brasileira, foiobjeto de críticas contundentes desse pensador que discutia, já naquela época, anecessidade de se racionalizar o uso dos recursos naturais. Acreditava JoséBonifácio que os recursos naturais encontrados no Brasil deveriam ser explora-dos sem que fosse comprometida à reprodução de seus estoques. O desenvolvi-mento e o progresso de um povo, de uma nação, passavam pela conservação,pelo uso adequado dos seus recursos naturais.

O “Patriarca da Independência”, em sua vertente naturalista, compreendia que osrecursos naturais, principalmente no Brasil, continham grandes potencialidadeseconômicas para o Estado português, mas precisavam ser mais bem explorados.A exploração baleeira deveria ser feita racionalmente para que a escassez nãopusesse fim, como mais tarde veio a ocorrer com a drástica redução dos esto-ques, à lucratividade do empreendimento. Aliás, sobre a crise da economia baleei-ra, é bastante conhecido um trecho de “Memória sobre a pesca das baleias...”quando, fazendo referencia à crise já latente da atividade baleeira na Bahia e noRio de Janeiro em fins do século XVIII, Bonifácio prenuncia seu fim em virtudeda forma pouco racional de caça aos grandes mamíferos na costa do Brasil:

Deve certo merece também grande contemplação a perniciosa prática dematarem os baleotes de mama, para assim arpoarem as mães com maiorfacilidade. Têm estas tanto amor aos seus filhinhos, que quase sempre ostrazem entre as barbatanas para lhes darem leite; e se porventura lhos ma-tam, não desamparam o lugar sem deixar igualmente a vida na ponta dosarpões: é seu amor tamanho, que podendo demorar-se no fundo da água pormais de meia hora sem vir respirar acima, e escapar assim ao perigo que asameaça, folgam antes expor a vida para salvarem a dos filhinhos, que nãopodem estar sem respirar por tanto tempo. Esta ternura das mães facilita semdúvida a pesca: e o método de matar primeiro os baleotes pequenos parasegurar as mães, que enraivecidas muitas vezes viram as lanchas, parece

Morte à espreitaDUARTE FILHO, Francisco Henrique; AGUIAR, José Otávio

Page 56: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

56

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

visto a vulto excelente, mas olhando de perto é mau, e trará consigo, a nãose prover nisso, a ruína total desta tão importante pescaria. (CALDEIRA,2002, p. 54 apud BONIFÁCIO, 1790.)

Para Pádua (2004), um das características da obra de José Bonifácio, e de outroscontemporâneos desse autor onde também se pode perceber certa preocupaçãocom os recursos naturais, é trazer em seu bojo traços de ideias e concepções quepodem ser consideradas precursoras do conservacionismo, corrente doambientalismo que tomará corpo na segunda metade do século XX, mais precisa-mente nos anos de 1960 e 1970.

Entre outros aspectos abordados por José Bonifácio quanto à atividade baleeira, éimportante citar a concorrência existente entre países como Inglaterra, Holanda eos Estados Unidos da América. Citando números que demonstravam a eficiênciaeconômica dessas nações, principalmente os holandeses que haviam ampliadoseu raio de ação, excluindo outros países dos enormes lucros obtidos dos deriva-dos de baleias, Bonifácio escreveu nota3 onde se destaca o seguinte comentário:

Os vasconços foram os primeiros que partido de França iam pescar as balei-as ao Mar Glacial, e ao longo das Costas de Groelândia e Islândia: e nos finsdo XVI século, e no começo do XVII se apossaram os ingleses desta pescanas costas de Spitzberg, que por muitos anos forcejaram por excluir asoutras nações. Os holandeses porém pela sua economia, e grande destrezana arte de pescar, vieram quase de todo a excluí-los; e de presente são osque fazem a maior e mais lucrosa pesca... (BONIFÁCIO 1798 apud CALDEI-RA 2002, p. 53)

O negócio altamente lucrativo que representava a caça à baleia chegava a mobi-lizar uma quantidade enorme de recursos humanos e técnicos, principalmente nofinal do século XIX, quando inovações tecnológicas passaram a alterar significa-tivamente a indústria baleeira através da introdução do canhão-arpão e dos naviosalimentados com motor a combustão, agora munidos de plataforma para trata-mento dos derivados baleeiros já em alto-mar. Essa modernização possibilitouampliar a área geográfica de atuação dos baleeiros, aumentando a produtividadee reduzindo o desperdício, antes provocado quando se rebocava os animais paraas estações de tratamento.

3 Esta nota pode ser encontrada no texto original de Bonifácio intitulado “Memória sobre a pesca dasbaleias...” onde ele fez alusão ao estágio mais avançado de desenvolvimento da indústria baleeira dealguns países da Europa, principalmente da Holanda, em contraposição ao atraso das técnicas eestratégias dessa atividade feita na costa do Brasil.

Page 57: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

57

Evidentemente que não se pode deixar de mencionar que os problemas ambientais- hoje agravados pela expansão do consumo e pela explosão demográfica e oconsequente avanço da sociedade urbano-industrial sobre os recursos naturais -não estavam na ordem do dia quando José Bonifácio de Andrada e Silva e algunsdos seus contemporâneos escreveram suas memórias em fins do século XVII einício do século XIX. Mas é preciso, por outro lado, compreender que já eraperceptível (e passível de crítica) a tendência da exploração de recursos naturaisde maneira predatória, irracional e sem qualquer tipo de preocupação com possí-veis problemas que pudessem por em risco a biodiversidade que singulariza al-guns dos mais importantes ecossistemas em todo o mundo, mas especialmente noBrasil, país privilegiado pelas riquezas naturais que caracterizam profundamenteo seu espaço geográfico.

É possível dizer, ainda, que as sugestões e as observações de Bonifácio, mesmoconsiderando sua importância política em momentos diversos da história do país,não se traduziram efetivamente em ações governamentais que limitaram ou raci-onalizaram a exploração dos recursos naturais no Brasil. A questão ambientalainda não havia sido colocada, a preservação antológica só viria a ser posta histo-ricamente quase dois séculos mais tarde quando o mundo começou a passar porgrandes transformações sociais, econômicas e culturais que caracterizariam asegunda metade do século XX.

Mesmo depois da crise que atingiu a economia baleeira, principalmente com adescoberta do petróleo e de seus derivados no século XX, as atividades de caçado cetáceo permaneceram ativas por décadas no Brasil e em outras partes domundo, embora menos intensa, mas ainda com fortes indícios de comprometimen-to da perpetuação das espécies. Somente em fins do século XX, em virtude dacrise provocada pela possibilidade real de extinção de algumas espécies, da pres-são de grupos norte-americanos ligados ao ramo petroleiro, da organização domovimento ambientalista e do crescimento da consciência ecológica, a situaçãotendeu a mudar. O ápice da crise da indústria baleeira moderna veio em meadosda década de 1980. Sob forte pressão da opinião pública mundial, a ComissãoBaleeira Internacional decretou uma moratória suspendendo a caça comercial.Mas esta não tem sido cumprida por todos os países, gerando controvérsias quan-to à possibilidade de se voltar à caça predatória, como ocorreu há décadas levan-do à morte, segundo estimativas do Greenpeace, mais de dois milhões de baleiasem todo o mundo.

Assim como fora feito com produtos como o pau-brasil, a cana-de-açúcar e oouro, que foram explorados ao limite, o extrativismo animal tendo a caça àbaleia como atividade econômica representou para os comerciantes da época epara a Metrópole portuguesa um ramo de exportação lucrativo, cuja conseqü-

Morte à espreitaDUARTE FILHO, Francisco Henrique; AGUIAR, José Otávio

Page 58: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

58

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

ência em médio prazo foi à exaustão dos estoques de determinadas espécies debaleias que migravam anualmente das águas frias da Antártica para seacasalarem nas águas quentes da costa brasileira quando então eram persegui-das, arpoadas e mortas.

2 Espetáculos com animais: divertimento e lazer para humanos

Espetáculos para divertimento público envolvendo homens e feras não se consti-tuem fenômeno recente na relação sociedade e natureza. Combates sangrentosentre homens e animais oferecidos como forma de entretenimento (e que leva-vam quase sempre os últimos à morte) remontam à antiguidade, quando gladiadorese feras selvagens, principalmente tigres e leões trazidos das colônias africanas,lutavam nas suntuosas arenas construídas durante o apogeu do Império Romanoem feriados e dias festivos, para diversão e delírio da plebe e da nobreza:

Os combates com animais selvagens prosseguiram durante a era cristã e,aparentemente, diminuíram gradualmente de número apenas porque a rique-za e a extensão decrescente do Império (romano) tornaram cada vez maisdifíceis a obtenção de animais selvagens. Na verdade, é ainda possívelassistir a combates desse gênero, sob a forma moderna de touradas naEspanha e na América Latina. (SINGER, 2004, p. 147).

Ainda nos dias atuais, em que pese o nível de organização e de resistência dosmovimentos de proteção e defesa dos direitos dos animais em todo o mundo - e daexistência em muitos países de leis de proteção ambiental que impedem certaspráticas de molestamento com bichos -, se verifica em certos países da Europa eem algumas nações da América Latina, “espetáculos” com touros em arenas ousoltos nas ruas, mobilizando centenas de pessoas que, como se estivessem emestado de êxtase, se divertem sem considerar o sofrimento dos animais e as impli-cações éticas que essas práticas cruéis suscitam, principalmente em situações emque o desfecho final, como no caso das touradas, se dá com a morte do animaldepois de horas de tortura, sofrimento e dor.

No Brasil, mesmo nos dias de hoje, embora praticada ilegalmente, um caso queilustra bem a prática cruel com animais para divertimento e lazer, mas que paraalguns é considerada parte das tradições da região trazida pelos açorianos há pelomenos dois séculos, é a farra do boi, como ficou conhecido no estado de SantaCatarina um ritual de molestamento e morte de bovinos que em determinadasépocas do ano são sacrificados com requintes de crueldade em cidadescatarinenses, principalmente em Florianópolis.

Na tradicional farra do boi, os maus tratos com os animais são evidentes. Oritual começa com o confinamento do animal, que fica sem alimento disponível

Page 59: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

59

por vários dias para deixá-lo enfurecido. Para aumentar o desespero do animal,comida e água são colocados num local onde o boi pode ver, mas não tem comoalcançar o alimento. O ritual prossegue quando o animal é solto e perseguido nasprincipais ruas da cidade por homens, mulheres e crianças que, carregando peda-ços de pau, facas, lanças de bambu, cordas, chicotes e pedras, perseguem o ani-mal por horas, até levá-lo a completa exaustão. O bovino, cujo desespero chegaao extremo, tenta fugir, se livrar de seus algozes correndo em direção ao mar.Sem saída, a perseguição e os maus tratos findam quase sempre com o afoga-mento do animal4.

Quando ainda não havia sido proibido, todos os anos centenas de bois eram tortu-rados e mortos em vários municípios daquele estado. A farra do boi ocorria (emesmo proibida ainda ocorre) com mais freqüência na época da Páscoa, culmi-nando na Sexta-feira Santa. Contudo, sabe-se que algumas comunidades ao cele-brarem casamentos, aniversários, jogos de futebol e em várias outras ocasiõesconsideradas especiais, também praticava esse ritual com animais. A festa tidacomo uma das mais tradicionais de Santa Catarina, que tem a tortura e a mortecomo espetáculo, foi objeto de muitos questionamentos por setores da imprensanacional e organismos de proteção e defesa dos animais, entre eles a World Societyfor Protection of Animais – WSPA/Brasil.

Com o apoio da mídia, principalmente da televisão, a WSPA/Brasil se mobilizou parapressionar as autoridades brasileiras para acabar com a farra do boi em Santa Catarina.No dia 03 de junho de 1997 a tradição foi proibida naquele estado brasileiro por forçade acórdão do Supremo Tribunal Federal (Recurso Extraordinário número 153.531-8/SC; RT 753/101), depois da Ação Civil Pública de nº 023.89.030082-0. Na decisãotomada pelo STF, a denominada farra do boi foi considerada cruel, passando a serenquadrada em crime punível com até um ano de prisão para quem pratica, colabora,ou no caso das autoridades, omite-se de impedí-la.

Embora a prática tenha sido proibida pela justiça, casos isolados ainda ocorrem noestado de Santa Catarina. As autoridades, responsáveis por fazer cumprir a lei,fazem vista grossa ao ritual e os animais continuam sendo mau tratados em nomede uma tradição que se estende há quase dois séculos.

Evidentemente que, na comparação entre espetáculos com bois e baleias, se develevar em consideração o fato de se tratar de culturas, momentos históricos einteresses distintos, mas que têm em comum a imposição de maus-tratos aosanimais, levando-os quase sempre à morte como forma de entretenimento para

4 http://www.farradoboi.info/noticias.shtml. Acesso em 20 de mar. 2011.

Morte à espreitaDUARTE FILHO, Francisco Henrique; AGUIAR, José Otávio

Page 60: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

60

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

homens, mulheres e crianças. Práticas que têm suscitado, na maioria dos paísescivilizados, um debate importante sobre atos cruéis praticados contra animais in-defesos, geralmente em eventos e rituais considerados como parte da tradiçãoherdada por comunidades tradicionais de uma cidade ou região.

Os japoneses de Costinha, por sua vez, responsáveis pelo controle de todas asetapas da operação na estação baleeira do litoral norte paraibano, percebendo ointeresse de curiosos pela morte e retalhamento dos animais, chegaram a isolaruma área da praia para improvisar arquibancadas e explorar, como uma espéciede atração turística, a caça aos cetáceos. Inclusive, informações dão conta que oempreendimento contava com uma infraestrutura de transporte de turistas e acobrança de ingressos para ocupação dos melhores lugares. Na temporada decaça, estruturas de madeira para acolher o público, semelhantes às arquibanca-das de um circo, eram montadas na praia em frente à estação baleeira, próximo auma rampa de concreto por onde os animais eram arrastados para o interior dafábrica quase sempre sob o olhar de inúmeros curiosos que no período de julho adezembro de cada ano se dirigiam à COPESBRA para assistir ao que seconvencionou chamar de “a pesca da baleia”5.

No auge da atividade baleeira em Lucena, nas décadas de 1970 e 1980, houvequem comparasse o sacrifício das baleias com a exibição da morte dos touros nasarenas espanholas. Em artigo publicado em jornal pessoense, datado de 26 deoutubro de 1984, o escritor e ambientalista Fernando Mendonça estabeleceu, combastante sensibilidade e dramaticidade, semelhanças entre as duas situações:

O sacrifício das baleias suscita nuances de tragédia humana, tão requintado emcrueldade é o processo de sua matança, encontrando, apenas, similitude no espe-táculo degradante nas touradas da Espanha, onde um bípede dotado de inteligên-cia desempenha o mister de desesperar ao máximo um indefeso quadrúpede atélhe mergulhar ao lombo a lâmina afiada, fazendo-o tombar, exangue, na praça dostouros, para gáudio de uma multidão primitiva e paranóica6.

Curiosos mais sensíveis, ao presenciar o abate de animais tão grandes, como porexemplo, da quase extinta baleia azul (balaenoptera músculos) que pode chegara 30 metros de comprimento e pesar 170 toneladas, geralmente têm reações di-versas. Diante da cena estarrecedora de agonia, sofrimento e da grande quanti-

5 Tecnicamente, chamar de pesca da baleia a caça aos cetáceos não é apropriado. As baleias não são peixes.A arqueologia e os estudos de história natural dão conta que os ancestrais desses mamíferos migraram docontinente para o ambiente marinho há pelo menos 5 milhões de anos. Contudo, há séculos, desde a IdadeMédia, quando ainda não havia estudos para melhor classificar esses animais e, provavelmente porviverem no mar, passaram a denominar o ato de caçar, equivocadamente, de pescar baleias.

6 MENDONÇA, Fernando. O Massacre das baleias. O Norte, João Pessoa, 26 de outubro de 1984, p.2.

Page 61: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

61

dade de sangue que jorra do animal abatido, conforme relatado por Tollenare, quemencionou a caça artesanal na Bahia do século XVII, um misto de sensações quereúnem medo, espanto e deslumbramento geralmente toma contar do espectador.

Entidades que lutam em defesa dos animais7 relatam que na caça moderna, quandoo enorme cetáceo é atingido pelo arpão, cuja ponta carrega uma granada que explo-de quando o alvo é atingido, escutam-se urros de dor do animal que se propagam porquilômetros. As águas do mar, que refletem a cor azul num raio relativamente gran-de, mas ainda próximo a embarcação, são totalmente tingidas de vermelho pelosangue do animal que se espalha rapidamente. O cetáceo ferido se bate impulsiva-mente por um longo tempo, tentando se desvencilhar do enorme instrumento que lhedilacera as entranhas. Dependendo de algumas circunstâncias, principalmente daimprecisão da arpoada e do tamanho da baleia, o sofrimento pode levar horas atéque a morte chegue finalmente para selar o destino do animal.

Segundo Madruga (1980), a caça à baleia em Costinha era feita sob rigorosocontrole técnico de uma tripulação treinada para matar e ocorria relativamentepróxima à praia. O navio Cabo Branco fazia manobras de acordo com os movi-mentos da baleia ferida até sua completa exaustão e morte. Depois de abatido, ocetáceo era arrastado para a plataforma onde passava a ser retalhado com fa-cões e moto-serra (Figura 1.) pelos trabalhadores a serviço da Companhia dePesca Norte do Brasil (COPESBRA).

Figura 1 - Operário japonês da COPESBRA retalhando uma baleia da espécie minke

Fonte: Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional (NDHIR-UFPB)

7 No site do Greenpeace www.greenpeace.org.br/quemsomos/h_baleias.php, acesso em 10 de abril de2012, relatos de ativistas que lutam contra a caça à baleia, ainda praticada pelo Japão na Antártica,chamam a atenção para a forma brutal como esses animais ainda são mortos.

Morte à espreitaDUARTE FILHO, Francisco Henrique; AGUIAR, José Otávio

Page 62: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

62

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

A caça à baleia, explorada também como atividade ligada ao turismo no litoralnorte da Paraíba, não passou despercebida dos meios de comunicação da época.O jornal Folha de São Paulo, cuja publicação data de 19 de agosto de 1985, publi-cou matéria digna de atenção em que expõe a questão da caça à baleia no muni-cípio de Lucena como atração turística predatória da região:

Durante a estação de caça, que se iniciou há duas semanas e vai até dezem-bro, grupos de turistas, levados em barcos fretados no ancoradouro deCabedelo, a 18 quilômetros de João Pessoa, vão até a praia de Lucena, ondeos mamíferos apreendidos pela Copesbra – Companhia de Pesca Norte doBrasil – são depositados na areia sob o olhar curioso dos visitantes. É umespetáculo que fica na mente, reforçado pelo artesanato de Cabedelo, feitocom dentes, ossos e barbatanas dos grandes mamíferos marinhos (...). Oestranho nisso tudo é que a cidade não precisa desse tipo de apelo turísticopredatório, pois a beleza de suas praias e a riqueza de seu acervo históricogarantem tranquilamente o fluxo de visitantes que começaram a descobri-locomo novo pólo de atração no Nordeste (FOLHA DE SÃO PAULO, 1985, p.2).

Realmente, conforme divulgado pelo jornal paulista, as sete praias que estão loca-lizadas no extremo norte do litoral do estado da Paraíba – Costinha, Fagundes,Gameleira, Ponta de Lucena, Lucena, Camaçari e Bonsucesso - com seus enor-mes coqueirais, areias brancas e mar calmo durante a maior parte do tempo, sãode uma beleza natural deslumbrante, que encanta aos visitantes amantes da natu-reza que visitam a região. Em certas épocas do ano, mas especialmente nos finaisde semana e nos feriados, milhares de turistas chegam a esta parte do litoralparaibano para desfrutar principalmente das belezas naturais, da história e datranquilidade do lugar. No entanto, algumas dessas praias, principalmente Lucena,a tranquilidade de outrora vem sendo interrompida nos últimos anos durante operíodo de carnaval. Momento em que milhares de pessoas se dirigem para osfestejos de momo, passando então a cidade a ter alterado seu cotidiano pacato etranquilo que caracteriza a maioria dos municípios do interior do Nordeste doBrasil.

Flávio Paiva, um estudante do município de Independente – CE que esteve noLitoral Norte da Paraíba na década de 1980, descreveu e publicou recentementeno Diário do Nordeste, jornal online de Fortaleza, alguns detalhes de sua visita àEstação Baleeira de Costinha como integrante de uma excursão promovida porsua escola para assistir o espetáculo da “pesca da baleia” no município de Lucena:

As mantas de carne e de toucinho eram arrastadas por puxadores mecâni-cos, enquanto ficávamos vendo o “espetáculo” em umas arquibancadaspróprias para turistas. O mar estava agitado. Luzes amarelas refletiam bri-

Page 63: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

63

lhantes no claro e escuro do pavimento. Ofereceram-nos carne de baleia.Comemos. Quem comprou partes das barbatanas, que flexionadas pareciamcocares indígenas, achou bonito, mas se arrependeu depois, quando a peçacartilaginosa começou a exalar mau cheiro. E isso aconteceu ainda no ôni-bus, quando retornávamos da capital paraibana para Independência, nointerior do Ceará, uma viagem de aproximadamente 800 quilômetros (PAIVA,2010, CADERNO 3).

Além de operários ligados diretamente à COPESBRA e ao artesanato local, aeconomia baleeira em Lucena mobilizava trabalhadores com certo grau de espe-cialização também no transporte de passageiros, especialmente de turistas quechegavam diariamente para presenciar o abate, o retalhamento e a industrializa-ção dos derivados dos cetáceos capturados pelo navio baleeiro. Em temporada decaça, centenas de curiosos chegavam à Costinha por meio de transporte fluvial eterrestre para presenciar a chegada dos animais à estação baleeira daCOPESBRA. A travessia de balsa, com ponto de partida na cidade de Cabedelo,de onde se atravessava em aproximadamente vinte minutos o Rio Paraíba emdireção à Praia de Costinha (ainda hoje se faz este tipo de percurso), era o meiode transporte mais utilizado na época da caça à baleia. O deslocamento para olitoral norte da Paraíba também era feito por transporte terrestre através da rodo-via BR 101/PB-025 que liga João Pessoa ao município de Lucena.

Era relativamente comum encontrar em hotéis de João Pessoa a inclusão, em seuroteiro turístico, uma visita de seus hóspedes a praia de Costinha. Em depoimentopara a presente pesquisa, a ativista Paula Frassinete8, que militou no movimento deluta pelo fim da atividade baleeira na Paraíba até sua proibição em 1987, confirmouque o maior hotel de João Pessoa, o Hotel Tambaú, chegou a fazer propagandaentre seus hóspedes sobre a caça à baleia realizada no Litoral Norte da Paraíba. Oobjetivo do hotel era aumentar o número de hóspedes, utilizando a temporada decaça em Lucena como atração turística para essa finalidade. A visita à praia deCostinha, onde a Copesbra operava, chegou a constar no roteiro do hotel, comoparte de um pacote oferecido aos turistas que visitavam a capital paraibana.

A presença de autoridades em visitação à estação baleeira de Costinha tambémfoi registrada por jornais da capital paraibana da época. No dia 25 de setembro de1981, a COPESBRA recebeu Tarcísio de Miranda Burity, então governador daParaíba, em seu primeiro mandato, entre os anos de 1979 e 1982. Acompanhado

8 Em entrevista concedida para o presente trabalho, dia 19 de abril de 2011, a ex-presidenta daAssociação Paraibana dos Amigos da Natureza (APAN), Paula Frassinete, confirmou a informação, jáprestada por moradores antigos de Lucena, de que se organizou no Hotel Tambaú, principalmente nadécada de 1980, toda uma logística para levar e trazer turistas hospedados no hotel ao “espetáculo” dacaça à baleia em Lucena.

Morte à espreitaDUARTE FILHO, Francisco Henrique; AGUIAR, José Otávio

Page 64: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

64

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

de membros da família e de amigos estrangeiros europeus, o chefe do executivoparaibano assistiu a chegada de alguns exemplares da espécie minke (Balaenopterabonaerensisi) à plataforma da estação baleeira de Costinha. Em seguida, sempreacompanhado dos familiares, amigos e funcionários da empresa, percorreu asdependências da Copesbra tendo sido recebido com prerrogativas de chefe degoverno. O jornal O Norte registrou com entusiasmo, dois dias depois do ocorrido,a presença do governador às dependências da fábrica. O jornal enfatizou que,segundo alguns funcionários da Copesbra, o dia da visita do governador foi tidopara eles, do ponto de vista da caça aos cetáceos, como um dos melhores diasda temporada:

De 22 baleias avistadas, treze, medindo em média cerca de 8 metros decomprimento e pesando cerca de nove toneladas cada uma, foram captura-das anteontem, dia de visita que o governador Tarcísio Burity fez à Costinha,junto à sua família e amigos seus da Suiça em visita à Paraíba. Segundofuncionários da Copesbra, empresa que explora a pesca do cetáceo, esse foium dos melhores dias da temporada que se encerra em dezembro próximo (ONORTE, 1981, p. 12).

Na continuidade da matéria, o jornal da capital paraibana fez questão de pontuaros diversos momentos da presença do governador e seus convidados à estaçãobaleeira de Costinha, sempre acompanhados do Sr. Guilherme Rabay, assessorjurídico da empresa, que inclusive proferiu palestra para os visitantes sobre asvárias etapas da atividade desenvolvida pela empresa que tinha os derivados ba-leeiros como mercadoria de exportação. Finalmente, o jornal destacou no final damatéria, quando do encerramento da referida visita, a participação do governadorem um churrasco de carne e linguiça de baleia. Uma degustação oferecida pelosanfitriões de duas das iguarias preparadas a partir da carne desses animais:

No setor de corte e processamento da baleia, na Copesbra, em Costinha, ogovernador, sua esposa, D. Glauce, filhos e amigos, assistiram à chegada denove minke – espécie capturada na costa paraibana – pois quatro delas játinham sido levadas ao posto de tratamento pela manhã (...). Após a visita àárea de corte e ao galpão de beneficiamento, o governador e os convidadosprovaram churrasco de carne e lingüiça de baleia (O NORTE, 1981, p. 12).

Quem teve oportunidade de visitar a COPESBRA no período de caça, principal-mente nos últimos dez anos da atividade (1976-1985), quando se abateram emmédia quatro baleias por dia (cerca de setecentas e vinte por temporada de caça),testemunha a magnitude de suas instalações e a grandeza do capital envolvido noempreendimento. Em período de caça, a empresa ampliava seu número de em-pregados, além de japoneses vindos da Ásia, contratavam também trabalhadoresde outros estados brasileiros, como Rio Grande do Norte, Ceará e Bahia.

Page 65: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

65

Inúmeros trabalhadores desempenhavam, portanto, dentro e fora da empresa, asmais diversificadas atividades, sempre voltadas à preparação dos derivados des-tinados ao mercado regional e, principalmente, à exportação para o mercado japo-nês. Somente a bordo do navio Cabo Branco, embarcação responsável pela cap-tura dos cetáceos, a tripulação era composta de vinte e seis pessoas: o comandan-te, o assistente de comandante, o maquinista, o artilheiro, nove pescadores e dozemarujos para os serviços complementares como recolhimento dos mamíferos,retirada dos animais do navio e outras atividades que a rotina exigia. (CAVAL-CANTE FILHO & RABAY, 2010, p. 80).

Outros trabalhadores especializados também se movimentavam pelos vários se-tores da empresa, desempenhando tarefas voltadas principalmente aobeneficiamento da carne, gordura, ossos e barbatanas dos animais capturados:

As carnes destinavam-se ao setor especializado, que as separava para trêsseções: frigorífico (principalmente as peças destinadas à exportação),charqueada (charque e carne de sol) e carne verde. O papo (parte ventralbranca estriada) era encaminhado também à seção de frigorífico para conge-lamento. O toucinho e a gordura eram enviados ao setor do óleo, compostodas caldeiras, autoclave e tanques. Lá, eram submetidos às autoclaves,durante doze horas de fogo, a uma temperatura de 140º C. Após o processode separação por centrifugação, o óleo era bombeado para os tanquesarmazenadores. Os ossos eram conduzidos ao setor de farinha. Lá, eramsubmetidos às autoclaves e, posteriormente, moídos. Em seguida, a farinhaera ensacada e conduzida aos armazéns. Os restos de carnes e vísceras eramencaminhados ao setor de farinha, sendo também submetidos às autoclavese moinhos. (RABAY & CAVALCANTE, 2010, p.82)

Considerando os investimentos realizados na aquisição de equipamentos ao longode décadas, na formação da mão-de-obra com certo grau de especialização e osinteresses econômicos envolvidos no empreendimento, que tinha o mercado es-trangeiro como finalidade maior, é possível se deduzir a importância para a NipponReizo Kabushiki Kaisha, grupo de empresários japoneses que monopolizava aatividade, de lutar pela manutenção da caça à baleia no Brasil.

Os conflitos, debates e acusações expostos pelos principais jornais da capitalparaibana nas décadas de 1980 e 1990, que foram polarizados de um lado porgrupos políticos e empresariais que defendiam a permanência da caça à baleia,por questões econômicas e sociais, e do outro, por ambientalistas e simpatizantesda causa ecológica, que enxergavam na morte sistemática dos animais a possibi-lidade de extinção de uma espécie, marca um dos períodos mais interessantes darecente história da exploração dos recursos naturais no estado da Paraíba. Toda-via, novas pesquisas podem ajudar a elucidar aspectos dessa história, consideran-

Morte à espreitaDUARTE FILHO, Francisco Henrique; AGUIAR, José Otávio

Page 66: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

66

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

do a importância que essa atividade outrora teve para a economia do estado daParaíba.

Referências

ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de, 1763-1838. José Bonifácio deAndrada e Silva. (Org). Jorge Caldeira, São Paulo, Editora 34, 2002.

BRASIL. Lei 7.643 de 18 de dezembro de 1987. Proíbe a pesca de cetáceonas águas jurisdicionais brasileiras, e dá outras providências.

CAVALCANTE FILHO, Antônio e RABAY, Guilherme Campelo. Baleias: fatose mitos. João Pessoa, Ideia, 2010.

ELLIS, Myriam. A baleia no Brasil Colonial. São Paulo: Edusp/Melhoramen-tos, 1969.

FOLHA DE SÃO PAULO. Caça às baleias. São Paulo, 19 de agosto de 1985,p. 02

GOVERNADOR visita pesca da baleia. O Norte, João Pessoa, 27 de setembrode 1981, p.12.

MADRUGA, A. M. A questão da baleia: da luta ecológica à exploração huma-na. In: Cadernos de Estudos Regionais. O Porto de Cabedelo e a pesca da baleia– Série Monografia 2. João Pessoa, UFPB/NDIHR-CNPQ. 1980, Ano 3, nº 3.

MENDONÇA, Fernando. O Massacre das baleias. O Norte, João Pessoa, 26de outubro de 1984, p.2.

O Norte. GOVERNADOR visita pesca da baleia. João Pessoa, 27 de setembrode 1981, p.12.

PÁDUA, José Augusto. Um sopro de destruição: pensamento político e críticaambiental no Brasil escravista, 1786-1888. 2ª ed. Rio de Janeiro, Zahar, 2004.

PAIVA, Flávio. Desventuras de Moby Dick. Diário do Nordeste, 02 de agostode 2010, Caderno 3. Disponível em: <http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=808230>. Acesso em: 10 abr. 2011.

SINGER, Peter. Libertação Animal. Porto Alegre, Lugano, 2004.

Page 67: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

67

Resumo: Este artigo descreve e analisa parte da história ferroviária na regiãoNorte de Minas, ressaltando a importância socioeconômica da ferrovia, as rela-ções de trabalho, especialmente entre os anos 1970 e a privatização da RFFSA,em 1996, e alguns impactos sofridos pelos ferroviários durante esse processo. Apartir de entrevistas com ferroviários da ativa durante o processo de privatização,constatou-se perda significativa das referências de sociabilidade desse grupo nodecorrer do período. Percebeu-se um sentimento de melancolia diante da possibi-lidade do fim da “identidade ferroviária” do grupo.

Palavras-chave: Norte de Minas Gerais, ferrovia, privatização, ferroviários

Abstract: This article describes and analyzes the railway history in the North ofMinas Gerais, emphasizing the socioeconomic importance of the railway, laborrelations, especially between the 1970s and the privatization of RFFSA, in 1996,and some impacts suffered by the railway men during the process. From interviewswith the railway men in activity during the privatization process, it was found a

TRABALHO FORA DOS TRILHOS: IMP ACTOS DAPRIVATIZAÇÃO SOBRE OS FERROVIÁRIOS

NO NORTE DE MINAS GERAIS

Gilmar Ribeiro dos Santos*

Ricardo dos Santos Silva**

Wagner de Paulo Santiago***

* Doutor em Educação – PUC-SP. Professor Adjunto da Universidade Estadual de Montes Claros -UNIMONTES. Agradece à FAPEMIG pelo apoio financeiro na modalidade de Bolsa de Incentivo àPesquisa e ao Desenvolvimento Tecnológico – BIPDT. E-mail: [email protected]

** Doutorando em Sociologia – USP. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico eTecnológico - CNPq. E-mail: [email protected]

*** Doutorando em Administração – UFMG. Professor Adjunto da Universidade Estadual de MontesClaros – UNIMONTES. E-mail: [email protected]

Page 68: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

68

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

relevant loss of sociable references inside of the group along the period. It wasobserved a condition of melancholia considering the possibility of the end of the“railway identity” group.

Keywords: North of Minas Gerais, railway, privatization, railway men.

Resumen: Este artículo describe y analiza la historia del ferrocarril en el Nortede Minas, destacando la importancia socioeconómica de la vía férrea, las relacio-nes laborales, especialmente entre los años 1970 y la privatización de RFFSA, en1996, y algunos impactos sufridos por los trabajadores del ferrocarril durante esteproceso. A partir de entrevistas con trabajadores activos durante el proceso deprivatización se encontró una pérdida significativa de referencias de sociabilidadde este grupo durante el período. Fue percibido un sentido de melancolía ante laperspectiva del fin de la “identidad ferrocarril” del grupo.

Palabras clave: Norte de Minas Gerais, ferrocarril, privatización, trabajadoresde ferrocarriles

Introdução

Passadas quase duas décadas da privatização da RFFSA (Rede Ferroviária Fe-deral Sociedade Anônima) percebemos de forma mais clara os impactos desseprocesso na sociabilidade dos ferroviários do Norte de Minas. Este artigo preten-de descrever e analisar parte da história ferroviária na região, ressaltando suaimportância socioeconômica, as relações de trabalho, especialmente, entre os anos1970 até a privatização da RFFSA, e alguns impactos sofridos pelos ferroviáriosdurante o processo. Alguns questionamentos nortearam o processo de investiga-ção, a saber: qual a importância da ferrovia para a região? Como foi construída aidentidade ferroviária no Norte de Minas? Como se davam as relações de traba-lho no período da ditadura militar na empresa? Como a privatização, ocorrida em1996, impactou os trabalhadores?

Após a privatização da RFFSA poucos documentos foram arquivados pela gestãoatual. Vários documentos estão desorganizados ou em estado de deterioração emdepósitos improvisados. Essa limitação tornou a memória ferroviária fonte im-prescindível de informação.

Verificou-se algumas as formas de integração social que marcaram a sociabilida-de ferroviária ao longo dos anos, especialmente do final da década de 1970 até o

Page 69: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

69

início do século XXI. Esse período marca o surgimento do sindicado dos ferrovi-ários na região, permite compreender como foram estruturadas as relações detrabalho segundo os ferroviários da antiga RFFSA e, além disso, as transforma-ções vividas por eles durante o processo de privatização. No entanto, especial-mente na primeira parte, o texto situa elementos históricos fundamentais para acompreensão da estrutura econômica e social da região, caracterizando o seuisolamento e a importância da ferrovia para a alteração desse quadro, ou seja,como fonte de “progresso”. Esses aspectos possibilitam, também, compreender asimbologia (inclusive a partir das representações da população norte-mineira) queenvolve a ferrovia e a categoria ferroviária no Norte de Minas Gerais.

O norte de Minas Gerais e a ferrovia

As características socioeconômicas, políticas e culturais verificadas no processohistórico de formação do Norte de Minas Gerais possibilitam compreender osimpactos da chegada da Estrada de Ferro Central do Brasil em uma região histo-ricamente isolada, fornecendo também subsídios para a compreensão das rela-ções sociais, inclusive, das formas de luta/resistência ou resignação dos trabalha-dores norte-mineiros. Essas características condicionaram a visão de mundo dostrabalhadores, influenciaram (e ainda influenciam) as relações de trabalho e aconstrução da identidade ferroviária.

Conforme Mata-Machado (1991) e Botelho (1994), o Norte de Minas Gerais foisecularmente “isolado” política e economicamente das demais regiões do estadode Minas Gerais, especialmente, da região central e do sul do estado. O isolamen-to da região do Vale do São Francisco se deve aos seguintes fatores: a distânciados mercados exportadores, a proibição do comércio, o estabelecimento de con-tagens (para a cobrança de impostos sobre mercadorias que seguiam para a zonamineradora) e a concorrência com outras regiões. Além disso, havia a cobrançado imposto da capitação, a repressão advinda da Coroa e o confisco dos bens doslíderes da Sedição1. Esses fatores contribuíram para que o processo de acumula-ção de capital na região fosse fragilizado.

As relações sociais estabelecidas entre os norte-mineiros, ou sertanejos, forammarcadas pelo compadrio, pelo coronelismo e pelo sistema de barracão. A rela-

1 A Sedição de 1736, revolta de maior repercussão histórica da região Norte de Minas Gerais, foi geradapelo avanço da ordem pública no sertão, ou seja, fazendeiros (potentados), vaqueiros, camaradas eagregados (camadas sociais diferentes) lutavam contra a ampliação do poder público da Coroa portu-guesa. O movimento previa a dominação de todo o Norte de Minas e posteriormente de Sabará e de VilaRica. A revolta apresentou tanto conotações econômicas quanto políticas, pois combatia a capitação,que causaria uma diminuição do excedente realizado e apropriado pelos grandes fazendeiros do sertãodo São Francisco e representava um confronto entre o poder público e a ordem privada.

Trabalho fora dos trilhosSANTOS, Gilmar Ribeiro dos; SILVA, Ricardo dos Santos; SANTIAGO, Wagner de Paulo

Page 70: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

70

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

ção de compadrio se fundamentava (e ainda se fundamenta, embora atualizada)no apadrinhamento de filhos das camadas sociais mais baixas (vaqueiros e agre-gados) pelos fazendeiros da região. Estes passavam a tratar os pais dos seusafilhados como compadres. O conflito de classe era suavizado pela instituição docompadrio. De acordo com Rêgo (19452, apud MATA-MACHADO, 1991), “ficaestabelecida uma ligação mais íntima, que autoriza certas liberdades e asseguraproteção mais decidida, sem que por isso seja destruída a distinção de classes”.Nos termos de Costa (1997), o fazendeiro, e principalmente o “coronel”, submetiaos camponeses – posseiros, meeiros, arrendatários, pequenos proprietários – aoseu poder por meio das relações de compadrio.

Outra forma de relação social característica da região era o sistema de barracão.Baseava-se em uma dívida contraída pelo empregado junto ao patrão (fazendei-ro) que, devido às relações de trabalho estabelecidas, dificilmente poderia sersaldada. De acordo com a fala da Sra. Gení, residente no município de CapitãoEnéas-MG, percebe-se que essa relação ocorria no local na década de 1940.Enéas Mineiro de Souza, empreendedor e fazendeiro à época, que empresta nomeà cidade, trazia trabalhadores de outras localidades do Norte de Minas Geraispara produzirem dormentes, posteriormente vendidos para a Central do Brasil.Esses trabalhadores, por sua vez, supriam suas necessidades de alimentação com-prando mantimentos no armazém de Enéas Mineiro, na maioria das vezes nãotinham dinheiro e para se alimentarem contraíam dívidas com o fazendeiro. Se-gundo a Sra. Geni, quem não tinha dinheiro “ficava com o vale (a dívida), só saíadaqui depois que pagasse, se saísse sem pagar, era fugido3”.

Pereira (2002), analisou o coronelismo no Norte de Minas Gerais, especificamen-te, em Montes Claros, na primeira metade do século XX4. O coronel era conside-rado um indivíduo acima do restante da população, tanto por seu poder econômicoe influência, quanto por dotes especiais de nascimento ou provenientes de suaformação acadêmica. Porém, essa sacralização da figura do coronel não o eximiuda manutenção de relações de favores. O favor era um instrumento fundamentalpara o coronelismo. O “favor e a troca permeavam todas as relações5 – eleitor-

2 RÊGO, Luís Flores de Morais. O vale do São Francisco; Ensaio de monografia geográfica. São Paulo,Renascença, 1945.

3 Lessa (1993, p.169) versa sobre o resultado dessas relações, “ele [o sertanejo] era preso à terra, àscondições de apadrinhamento, ao jaguncismo, à pastagem e à lavoura. A situação criada pelo sistemade barracão levava o trabalhador a uma condição próxima à escravidão”.

4 A concepção de poder utilizada por Pereira (2002) para compreender o coronelismo considera que opoder tanto produz as relações sociais quanto é produzido por elas. Nesse sentido, entende a “relaçãocoronel-população de forma dinâmica, a visão da dependência como relativa e limitada pelas estraté-gias populares de participação política” (PEREIRA, 2002, p.105).

5 O favor era algo extremamente normal no cotidiano da época, incluindo os períodos eleitorais – adistribuição de roupa, sapatos e alimentos era feita publicamente.

Page 71: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

71

coronel, coronel-coronel e coronel-poder público” (PEREIRA, 2002, p.129). Essaabordagem matiza a concepção de que o poder do coronel era unilateral, pois asua hegemonia era mantida, também, pela sua capacidade de prestar favores àpopulação. A relação não ocorria entre iguais, pois os recursos disponíveis erammuito desiguais.

De forma geral, essas relações, caracterizadas pela dominação e impingidas depessoalidade, retratam a matriz cultural do país como indicam abordagensculturalistas brasileiras. Constituiu-se na região uma ligação mais íntima entre osnorte-mineiros, escamoteando a distinção de classe, difundindo uma forma dedominação baseada na dependência e no poder, ou seja, os coronéis eram a “lei”e o poder repressor local.

O isolamento marcou grande parte da história regional, pois, como observou Mata-Machado (1991), o Norte de Minas do séc. XVIII até o início do séc. XX apre-sentava características pouco modificadas ao longo dos séculos. Até 1930, e mes-mo depois, a região conservou praticamente os mesmos traços, ou seja, “econo-mia agropastoril, sociedade estratificada com predomínio do ‘compadrio’, organi-zação política baseada na ordem privada6. Atravessou séculos isolada das regiõesmais desenvolvidas do país e manteve um ritmo de crescimento lento e retardatá-rio” (MATA-MACHADO, 1991, p.27).

Esse quadro de isolamento socioeconômico começou a ser alterado a partir dachegada da Estrada de Ferro Central do Brasil, Cardoso (1996) e Silva (2011). Aarticulação entre as ferrovias e o modus operandi do capitalismo, analisada emdiferentes contextos socioeconômicos, é importante para a compreensão desseprocesso. De forma geral, durante a revolução industrial o sistema de transportese comunicações sofreu uma progressiva adaptação, possibilitando atender às ne-cessidades da produção em escala industrial. Dessa forma, a introdução de navi-os a vapor, dos transatlânticos, dos telégrafos e das estradas de ferro foram fun-damentais para o prosseguimento da revolução na indústria moderna, servindo debase, especialmente, para a abertura de novos mercados capazes de consumir,agora de forma ampliada, a produção industrial. A burguesia criou forças produti-vas não imaginadas em épocas anteriores, como as máquinas, o emprego da quí-mica na indústria e na agricultura, o telégrafo, a exploração de continentes e asestradas de ferro (MARX; ENGELS, 1985).

6 Anastasia (1983) a partir de uma análise enfocando o confronto entre o poder público e o poderprivado, verificou o predomínio da ordem privada na região, onde os potentados ditavam as ordens. “Aexclusão do norte-mineiro da dinâmica intrínseca à ordem colonial, por se constituir centro deprodução e intermediação de mercadorias, restrito ao abastecimento interno da Colônia, possibilitouaos grandes proprietários de terra da região a absoluta predominância das formas autoritárias dedominação interna e a consolidação de um reduto da ordem privada” (ANASTASIA, 1983, p.73).

Trabalho fora dos trilhosSANTOS, Gilmar Ribeiro dos; SILVA, Ricardo dos Santos; SANTIAGO, Wagner de Paulo

Page 72: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

72

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

A conquista de novos mercados para absorver e sustentar o desenvolvimento dasforças produtivas impeliu o capital ao desenvolvimento das ferrovias. Hobsbawn(1977) verificou a articulação entre as construções ferroviárias na Inglaterra e odesenvolvimento da indústria de base7. Não existe somente uma competição en-tre capital e trabalho, também, existe a competição entre capitalistas que impulsi-ona a revolução das forças produtivas. Uma das formas de incrementar a extra-ção de mais-valia é aumentar a parte constante do capital, ou seja, introduzirformas relativas de extração da mais-valia com incrementos tecnológicos. Istoimplica uma maior produção de mercadorias em um menor espaço de tempo,possibilitando a redução do valor de troca das mercadorias.

A importância das ferrovias para o desenvolvimento do capitalismo pode ser com-preendida a partir da sua participação no processo de circulação do capital. Afórmula D-M...P...M’-D’ expressa o ciclo do capital em termos de um circuitoindividual. Percebe-se que o processo cíclico do capital é composto por três eta-pas. A primeira etapa D-M é a da compra de mercadorias pelo capitalista, ou seja,a compra dos meios de produção e da força de trabalho, conversão do capitaldinheiro (D) em capital mercadoria (M). A segunda etapa P é o consumo pro-dutivo das mercadorias compradas pelo capitalista. Este funciona como produtorcapitalista de mercadorias. O resultado é a produção de mercadorias que apre-sentam valor superior aos elementos que concorreram para sua produção. Porfim, a terceira etapa M’-D’ consiste na volta do capitalista ao mercado não maiscomo comprador, mas como vendedor de mercadorias. Busca a conversão de suamercadoria (M’) em capital dinheiro (D’) (MARX, 2000).

Cada uma das formas que o capital assume corresponde a uma função diversa eespecífica no processo, ou seja, o capital dinheiro (D) é adiantado na comprados meios de produção e força de trabalho (M = MP + F)8. Estes são consumi-dos no processo produtivo9 (P) e transformados em mercadorias (M’) acresci-das da mais-valia, que para serem realizadas devem ser vendidas, retornando à

7 As construções ferroviárias demandam enormes quantidades de ferro, aço, maquinaria, madeira (espe-cialmente no caso brasileiro) e mão-de-obra, contribuindo para a realização do capital. Hobsbawm(1977) apresenta o surgimento das ferrovias modernas e sua importância econômica, ao relacioná-lascom os investimentos e a realização destes investimentos na indústria de base. O surgimento dasferrovias modernas se deu na Grã-Bretanha, para compreendê-lo, com base no autor supracitado, énecessário verificar sua articulação com a estrutura econômica do país.

8 Na fórmula geral do ciclo do capital D-M...P...M’-D’, M se refere aos meios de produção (MP) e à forçade trabalho (F) comprados pelo capitalista no mercado.

9 Cabe salientar que a modificação do valor somente ocorre nesta fase P. “A modificação do valor éfunção exclusiva da metamorfose P, do processo de produção, que configura assim a metamorfose realdo capital, em contraste com as metamorfoses puramente formais [mas, não menos importantes] dacirculação” (MARX, 2000, p.62).

Page 73: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

73

forma inicial capital dinheiro (D’) acrescido da mais-valia. Após a realização docapital, ou seja, a venda da mercadoria no mercado, o circuito do capital pode seriniciado novamente (MARX, 2000).

O transporte ferroviário participa diretamente da primeira e da terceira etapa dociclo do capital. Reduziu sensivelmente o preço do transporte de mercadorias emcomparação com o transporte realizado por meio de mulas no Norte de Minas.Silva (1985) verificou que os custos do transporte ferroviário eram seis vezesinferiores aos das tropas de mulas. No ano de 1968 a economia com o transporteferroviário era de mais de 10% do valor total das exportações brasileiras de café.Há uma necessidade histórica de o capitalista reduzir não somente os custos deprodução das mercadorias, mas também os custos com o transporte. Isto podeser percebido no caso do surgimento das ferrovias e, posteriormente, com seudeclínio devido à introdução do transporte rodoviário.

As ferrovias possibilitam a compra dos meios de produção e matéria-prima namedida em que os transportam para as unidades produtivas, mesmo as mais dis-tantes. Além disso, contribuem para a formação do mercado de trabalho em de-terminadas cidades por meio do transporte de passageiros. A abordagem de Silva(1985) denota a contribuição da ferrovia para a redução do custo da força detrabalho em São Paulo, pois a “chegada de trabalhadores de Minas e sobretudo daBahia permitiu aos fazendeiros baixar os salários nas plantações” (SILVA, 1985,p.53).

A expansão ferroviária, especificamente, no Norte de Minas Gerais foi iniciadano século XX. O mapa a seguir permite visualizar melhor a malha ferroviária doNorte de Minas Gerais, ou seja, o Ramal de Pirapora e a Linha do Centro quepassa por Montes Claros fazendo ligação da Estrada de Ferro Central do Brasilcom a Viação Férrea Federal Leste Brasileiro.

Trabalho fora dos trilhosSANTOS, Gilmar Ribeiro dos; SILVA, Ricardo dos Santos; SANTIAGO, Wagner de Paulo

Page 74: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

74

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Mapa 01 – Norte de Minas: ferrovia, paradas e estações ferroviárias

Fonte: PEREIRA, 2010.

A construção da Estrada de Ferro Central do Brasil cortando a região Norte deMinas Gerais em direção ao Sul da Bahia perdurou por mais de quarenta anos,entre os anos de 1908 e 1951. Alguns fatores como a falta de recursos e a própriatecnologia utilizada nas construções ferroviárias à época explicam a demora naconstrução dos trechos da Central do Brasil no Norte de Minas. A tabela a seguirapresenta a cronologia da expansão ferroviária no Norte de Minas a partir da datade inauguração de algumas estações:

Page 75: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

75

TABELA 1Cronologia da expansão ferroviária/estações no Norte de Minas Gerais (1908 - 1951)

Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do Guia Geral das Estradas de Ferro e Empresas deTransporte com Elas Articuladas – G1, 1960.* A Estação Ferroviária da cidade de Espinosa pertencia à Viação Férrea Federal Leste Brasileiro. Amalha ferroviária que corta as demais cidades mencionadas pertencia à Estrada de Ferro Central doBrasil.

Segundo Lessa (1993) a construção do ramal entre Bocaiúva e Montes Claros,iniciada na década de 1910, foi marcada por inúmeros percalços. “Construir umaferrovia atravessando os desertos do interior do país era uma aventura idealizadapelos entusiastas do cosmopolitismo, que na maioria das vezes se mostrou umdesastre sem precedentes neste país” (LESSA, 1993, p.158-9). A construção doreferido ramal passou por problemas semelhantes aos de outras estradas de ferrobrasileiras que transpuseram selvas e sertões. Assim, a comparação com a cons-trução da ferrovia Madeira-Mamoré é inevitável, pois péssimas condições de tra-balho foram frequentes – alternância de sol forte e chuvas intensas, insetos trans-missores de doenças, animais peçonhentos, dentre outros problemas.

Em outubro de 1918 a região, assim como todo o país, sofreu com a pandemia degripe espanhola. Logo após chuvas abundantes desorganizaram os trabalhos deconstrução. Estas chuvas ocasionaram febres palustres endêmicas na região oque prejudicou os trabalhos durante os anos de 1919 e 1920. “A malária e a febreamarela ceifavam as vidas dos trabalhadores e colocavam em evidência as péssi-mas condições sanitárias daquela região” (LESSA, 1993, p. 159-160). A constru-ção do ramal entre Montes Claros e Capitão Enéas, entre as décadas de 1930 e1940, apresentou os mesmos problemas. Segundo o entrevistado Sr. Pedro Ceará,na construção desse ramal, mesmo com o hospital construído pela ferrovia nalocalidade, “todos os dias morria alguém de malaria”.

Trabalho fora dos trilhosSANTOS, Gilmar Ribeiro dos; SILVA, Ricardo dos Santos; SANTIAGO, Wagner de Paulo

Page 76: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

76

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Segundo Cardoso (1996), a Estrada de Ferro Central do Brasil impactou o pro-cesso de reorientação econômica do Norte de Minas, pois começou a rompercom o secular isolamento ao qual a região foi submetida – desde a revolta daSedição de 1736. A ferrovia “representou muito mais que uma possibilidade deincremento das relações comerciais da Região: ela foi, na realidade, a via pelaqual o Norte de Minas começa a integrar a dinâmica econômica do Centro-Sul doPaís” (CARDOSO, 1996, p.42).

A expansão ferroviária na região não se deveu somente aos fatores econômicos,mas também à conjuntura política10. A “guerra” coronelista, os jagunços, os can-gaceiros e a Coluna Prestes “determinaram a importância geopolítica do Sertão eo caráter de urgência para a dominação logística dessa terra alheia ao controlecentral do Estado, onde a guerrilha se misturava às guerras entre coronéis” (LESSA,1993, p.104). A ferrovia se apresentou politicamente importante para a defesanacional.

A ferrovia fez emergirem cidades em regiões anteriormente desertas. Contribuiupara consolidar núcleos urbanos anteriores às ferrovias. A fala do Sr. Pedro Cea-rá, residente na cidade de Capitão Enéas desde o ano de 1942, dois anos antes dainauguração da estação ferroviária na localidade em 1944, relata a importância daferrovia para o incremento das atividades econômicas locais. Antes da ferrovia“aqui não tinha nada, só tinha tabuleiro, só tinha o sapé (pequeno povoado queficava a aproximadamente dois quilômetros da estação ferroviária), aqui só tinhatabuleiro, cagaita, tingui “ (entrevista realizada em 23 de outubro de 2010). Com achegada da ferrovia aconteceu a dinamização de pequenos capitais, assim houvea implantação dos primeiros pontos comerciais. Ainda segundo o Sr Pedro Ceará,“o povo, esses pequenos fazendeiros, pequenos sitiantes, começaram a plantaralgodão, mamona, milho e vinha vender aqui. Aqui embarcava de trem e ia pratodo canto”.

Várias cidades norte-mineiras tiveram suas histórias marcadas pela ferrovia. Odesenvolvimento do comercio e da produção local denotam isso. Algumas en-trevistas realizadas com ferroviários aposentados e moradores de pequenas ci-

10 Mata-Machado (1991) relata a intenção da província de São Francisco e do sul de Minas Gerais setornarem independente. Os estudos de Mata-Machado (1991), Lessa (1993) e Cardoso (1996) afir-mam que a transferência da capital mineira de Ouro Preto para Curral Del Rei (atual Belo Horizonte)teve como objetivo integrar política e economicamente o estado. Haja vista sua localização queprivilegia a comunicação com as demais regiões do estado. “Localizado no Vale do Rio das Velhas, vianatural de ligação entre o Centro e o Norte, o pequeno Curral del-Rei traçava uma linha divisória quedistinguia a região mineradora da zona agropastoril. Construir ali a nova capital traduzia o objetivo depolarizar o Norte de Minas, integrando-o econômica e politicamente ao resto do Estado. A Estrada deFerro Dom Pedro II [posteriormente denominada Estrada de Ferro Central do Brasil] funcionariacomo mecanismo de atração (MATA-MACHADO, 1991, p.116)”.

Page 77: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

77

dades ressaltam aspectos inexplorados pela literatura especializada. A fala doSr. Rosendo, Agente de Estação que ingressou na ferrovia em 1951, ressalta aimportância do seu cargo em um período em que os ferroviários “eram nomea-dos pelo presidente da República”. Os Agentes de Estação eram importantesportadores de informações devido à precariedade dos meios de comunicaçãona região entre as décadas de 1910 e 1960. Eram os portadores das notícias, asprimeiras pessoas procuradas na busca de informações. Os ferroviários pareci-am ser a personificação do cosmopolitismo que acenava para a região com achegada da ferrovia.

Segundo a Sra. Geni, moradora da cidade de Capitão Enéas/MG, existia umarmazém nessa localidade nas décadas de 1950 e 1960 e quando ele “fracassa-va”, o que não era raro, os ferroviários eram uma solução imediata, pois “aferrovia fez um armazém, era só quem comprava eram os trabalhadores. Com-pravam e cedia algumas coisas pra gente”. Recursos básicos “fornecidos” pelaferrovia contribuíram para que a população apresentasse uma visão positivadela e dos ferroviários. Havia, também, a escassez de água em algumas locali-dades e determinados ferroviários ajudavam a população que passava por situ-ações limite. “A máquina vinha com água quente, quando o pipa não vinha, agente pedia o maquinista Sr. João. Eita como o Sr. João era bom, dava umaaguinha pra tomar”.

O imaginário de parte da população sertaneja foi fortemente marcado pelo incre-mento das relações econômicas com a chegada da Estrada de Ferro Central doBrasil. A região se integrou ao mercado nacional com este meio de transporte quefoi, também, o emissário do progresso em muitas regiões do Brasil. A categoriaprofissional dos ferroviários também influenciou de forma significativa as rela-ções sociais nestes rincões de Minas Gerais. Com o passar do tempo surgiu umasimbologia envolvendo a categoria ferroviária, ancorada em especial na sua posi-ção social singular baseada nos fatores acima mencionados e, a partir de 1957,com a criação da RFFSA, no salário diferenciado e no paternalismo da empresaque os diferenciava, ainda mais, dos demais trabalhadores da região. O mercadode trabalho norte-mineiro historicamente foi caracterizado pela existência de pos-tos de trabalho “precários” mesmo após as ações da Sudene a partir da década de1970, ver Braga (1985), Santos; Silva (2011).

O trabalho na RFFSA

Em 1957 foi criada a RFFSA (Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima),

Trabalho fora dos trilhosSANTOS, Gilmar Ribeiro dos; SILVA, Ricardo dos Santos; SANTIAGO, Wagner de Paulo

Page 78: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

78

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

responsável pela administração, exploração, conservação, expansão e aperfei-çoamento do tráfego das estradas de ferro da União a ela incorporadas. Visava-se reduzir o déficit, padronizar os procedimentos, modernizar a operação, reduziras despesas (como de praxe, reduzindo o pessoal) e aumentar a produção dasferrovias brasileiras (LOPES, 2000). Desde o início, a RFFSA buscou a reduçãodo seu quadro de empregados. A tabela 2 apresenta o número de funcionários daRFFSA em três datas específicas que compreendem um período de quase quatrodécadas, evidenciando a redução.

TABELA 2Número de Funcionários da RFFSA

Fonte: CAVALCANTI, 2002 (elaboração própria).

Em 1975 a empresa impôs aos funcionários a escolha entre o regime de contrataçãopela CLT, ou a continuidade como estatutários. Segundo um dirigente do Sindicatodos Trabalhadores em Empresas Ferroviárias de Belo Horizonte – STEFBH (daregional de Montes Claros/MG), os estatutários teriam direito ao Fundo de Garan-tia se optassem pelo regime de contratação da CLT e esse era um motivador damudança. Porém, os que preferiram permanecer como estatutários poderiam serencaminhados para qualquer localidade do país e sair definitivamente da região.Essa era uma forma de pressão da direção.

As entrevistas com ferroviários contratados pela empresa no final dos anos de1970 e início dos anos de 1980, os quais vivenciaram o período de privatização daempresa, concretizado em 1996, evidenciaram como as relações de trabalho naRFFSA foram marcadas antes da privatização, por um lado, pela disciplina rígidae, por outro, pelos “bons” salários e “benefícios” que caracterizavam a categoria.Os salários eram equivalentes aos salários dos funcionários do Banco do Brasil esuperiores aos de outros trabalhadores do estado de Minas Gerais como os daCEMIG, da Policia Militar ou trabalhadores da indústria e do comércio regionais.

A disciplina rígida, no período da ditadura militar, era sustentada na RFFSA poruma hierarquia “militar”. Os Superintendentes Regionais eram Coronéis do Exér-cito Brasileiro, quando eles visitavam as estações – isso não era rotina – “todosficavam preocupados, pois a disciplina era muito rígida” (agente de estação). Os

Page 79: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

79

supervisores de cada uma das áreas da estação realizavam o controle imediatosobre as chefias locais e estas, por sua, vez sobre os demais funcionários. Segun-do um maquinista aposentado, os supervisores11 conferiam desde a realização dotrabalho até as condições do uniforme, “um supervisor já teve a audácia de levan-tar a perna da minha calça pra ver se eu tava de meia preta. Isso era uma fisca-lização infeliz” (entrevista realizada em 25-07-2012).

Durante o período do regime militar as relações de trabalho na RFFSA eramreguladas pelo RGO (Regulamento Geral de Operações), que perdurou até o anode 1996. O Regulamento previa a forma de execução do trabalho, a estruturahierárquica da empresa além de normas de comportamento. Enfim, definia “todasas suas atribuições e deveres” (maquinista aposentado, entrevista realizada em25-07-2012). As regulamentações foram constatadas em outras ferrovias no país.Segnini (1982, p.34), verificou que as relações de trabalho na Companhia Paulista,no final do século XIX até o ano de 1928, foram marcadas pela dominação legal.

A dominação exercida sobre os funcionários passava a ser legal, em virtudede regulamento. Através dele a diretoria, detentora do saber, determinava osníveis hierárquicos dentro da ferrovia, os limites da autoridade de cadanível, as competências de cada cargo. Tudo isso através de normas escritas.Ao ferroviário somente era atribuído o “direito” de obedecer.

O RGO, seguindo a abordagem foucaultiana de Maroni (1982), pressupõe as san-ções normatizadoras12. Os funcionários que não seguissem as regulamentaçõesoperatórias sofriam punições como o afastamento sem remuneração por um oumais dias. Os agentes de estação, manobradores, maquinistas e mecânicos esta-vam sob a vigilância, o olhar hierárquico dos supervisores. “Os quadros hierár-

11 Segundo Abramo (1999) “o poder vigilante e punitivo da chefia frequentemente exorbitava as própriasnecessidades de produtividade e da racionalização do trabalho consideradas em si mesmas. Ganhavauma dinâmica própria, onde a questão central passava a ser a manutenção do poder e a atemorizaçãodo trabalhador, para além de qualquer necessidade técnica de produção”. Na RFFSA a situação erasemelhante. Segundo um maquinista da antiga RFFSA, o funcionário se tornava supervisor “não peloconhecimento que o cara tinha, mas pra manter a disciplina rígida da Rede”. “Atormentavam” ossubordinados, mas não tinham competência [técnica] para o cargo. Um funcionário assumia o postode supervisor devido às relações que estabelecia, ou seja, “aquele que era o mais chegado, que mostravaos dentes para o supervisor e para os superiores” (entrevista realizada em 18 de agosto de 2012).Existiam também supervisores que atuavam de forma “paternalista” e/ou que apresentam conheci-mento técnico sobre o trabalho na ferrovia alguns formavam para o trabalho os quadros de funcioná-rios.

12 Cabe salientar que as sanções normatizadoras, segundo Maroni (1982), torna o operário objeto depenalidades, mas, também, de promoções. Os funcionários que conseguissem atingir as metas deprodutividade da RFFSA recebiam promoções, também, previstas. “Sujeito a tal malha do poderdisciplinar, o operário é constantemente individualizado – produto e objeto de promoções ou penali-dades – e, como tal, inscreve em si mesmo as relações de poder, interioriza a meritocracia e introjetaa competição, quebrando a solidariedade operária. O poder do capital exerce, a partir do própriooperário individualizado, as condições de sua eficácia política” (MARONI, 1982, p.39).

Trabalho fora dos trilhosSANTOS, Gilmar Ribeiro dos; SILVA, Ricardo dos Santos; SANTIAGO, Wagner de Paulo

Page 80: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

80

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

quicos esquadrinham, controlam, examinam cotidianamente a performance dooperário no processo produtivo” (MARONI, 1982, p.30).

As punições em caso de indisciplina e erros eram variadas. Como a demissão emuma empresa federal não era um recurso recorrente, a estratégia dos supervisoresera, principalmente, “atormentar” psicologicamente o trabalhador tornando insu-portável a sua permanência na empresa. Nos termos de um maquinista aposenta-do “pirraçar o cara pra ele desistir de continuar na empresa”. Utilizava-se o expe-diente de enviar um trabalhador lotado no distrito de produção de Montes Clarosa Monte Azul para uma estação de outro distrito. “Sabe o que fizeram? Manda-ram o cara para Matinha, próxima a Campos Altos, um lugar desgraçado. É só aestação, não tem cidade, não tem nada” (maquinista aposentado, entrevista reali-zada em 12-08-2012). Essa era uma forma de punição aos trabalhadores que nãoqueriam sair do distrito de produção no qual estavam lotados. Alguns agentes deestação preferiam uma transferência provisória para ganharem diárias fazendoescalas em outras estações, não viam a transferência como prejudicial, mas comouma forma de incrementar a sua renda.

Em caso de erros, falha operacional, a empresa afastava o trabalhador, normal-mente, por cinco a dez dias, mas ocorreram casos de vinte dias de afastamento.Como dissemos acima, demissões raramente ocorriam. Houve, por exemplo, umafalha gravíssima por excesso de velocidade, que resultou na destruição de umalocomotiva e dois vagões na Estação de Tocandira, próxima a Montes Claros-MG. O responsável foi afastado por vinte dias, “em qualquer outra empresa eleseria demitido” (maquinista aposentado, entrevista realizada em 12-08-2012).

Por que a existência da estabilidade não serviu de base para maiores revindicaçõese mobilizações da categoria ferroviária? Diferente do que ocorria no ABC paulistano final da década de 1970 e início dos anos de 1980, por que os ferroviários nãose mobilizaram contra a disciplina da empresa nesse mesmo período? Uma possí-vel resposta deve abarcar vários aspectos como: a trajetória anterior dos ferrovi-ários marcada por piores condições de trabalho; uma matriz cultural caracteriza-da pela dominação dos coronéis; a referência ao “medo” sempre presente nasfalas que se referiam ao período militar, sendo a disciplina interiorizada e se tor-nando, por isso, mais eficaz e menos sentida (algumas falas ressaltam a “norma-lidade” do período); somam-se a isso, as políticas paternalistas da empresa comoa Plansfer, a cooperativa, moradia, os descontos de 70% nas viagens de familia-res dos ferroviários, dentre outras. O paternalismo não é novidade nas relaçõesde trabalho das ferrovias brasileiras, Segnini (1982, p.62) verificou que a Compa-nhia Paulista apresentava como prática “ceder privilégios aos trabalhadores [...]para continuar a explorá-los”.

Page 81: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

81

A privatização da RFFSA e o ferroviário

As mudanças no campo econômico, político e social, não refletem um processocom um direcionamento único, existem adaptações nos diferentes países, ver, porexemplo, Silva (2004), Antunes (2006), Cruz (2007). A desregulamentação dotrabalho13 no novo regime de acumulação, as mudanças na estrutura produtiva,nos processos de trabalho, a diminuição do salário real e a erosão do poder sindi-cal são algumas das características desse novo regime no Brasil.

Do ponto de vista do Governo Federal a privatização dos serviços da RFFSA foiconsiderada exitosa14. Foi gerada para o governo uma receita de 1,519 bilhões.Além disso, “para o Governo, mais importante que a geração de recursos é aeficiência operacional que a malha ferroviária deverá ganhar nas mãos da inicia-tiva privada” (LOPES, 2000, p.73). Porém, segundo a ótica dos ferroviários, osimpactos sobre o trabalho foram negativos. A questão dos passivos trabalhistas,por exemplo, é uma fonte de crítica à privatização. Segundo um dirigente doSTEFBH em Montes Claros:

Fez uma privatização à toque de caixa. Essas empresas que assumiram ocontrole acionário da Rede Ferroviária a grande maioria nunca depositouum cruzeiro nos cofres do governo. Tanto é que nós temos um processocontra a Rede Ferroviária de julho de 1992, ele fez vinte anos agora e nósnunca recebemos. Já foi transitado e julgado e eles não têm mais recurso,sabe que tem que pagar, mas o governo não recebeu dinheiro nenhum dasempresas que assumiram a ferrovia, que era pra pagar os passivos e nãopagou nada (dirigente sindical, 03/07/2012).

Houve, também, um conjunto de planos de demissão incentivada. As demissõesexecutadas nos anos que antecederam as privatizações reduziram o quadro depessoal da RFFSA de 160 mil quando de sua criação em 1957, para cerca de37.500 em 1995, às vésperas de sua privatização. Essa medida foi muito utilizadacomo fase preparatória de outras privatizações no país. Seriam necessárias maisdispensas em 1996, pois, segundo Lopes (2000, p.71), “a RFFSA possuía um qua-

13 Cardoso Junior (2001) destaca que na década de 1990 os processos de “desregulamentação” e“desestruturação” do mercado de trabalho começaram a caminhar na mesma direção, compondo oquadro de “desregulação” do trabalho no Brasil. O autor citado verificou algumas consequências dadesregulação do trabalho: oferta excedente de mão de obra; crescimento intenso do setor terciário;crescimento da informalidade nas relações de trabalho; aumento da desocupação e do desemprego;precarização ou piora na qualidade dos postos de trabalho; estagnação relativa dos rendimentos médiosdo trabalho; diminuição na participação do Estado nas negociações entre empregados e empresas;entre outras.

14 Para uma melhor compreensão do processo de privatização, dos seus condicionantes e resultadoseconômicos e sociais, ver Lopes (2000) e Maia (2009).

Trabalho fora dos trilhosSANTOS, Gilmar Ribeiro dos; SILVA, Ricardo dos Santos; SANTIAGO, Wagner de Paulo

Page 82: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

82

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

dro de pessoal superdimensionado e sua privatização certamente exigiria umaredução brutal desse contingente, o que poderia causar grande tumulto ao proces-so, a exemplo de países de privatizaram suas empresas”.

O PID - Plano de Incentivo ao Desligamento, como parte da preparação para aprivatização da RFFSA, consistia no desligamento do funcionário que receberiatodas as verbas rescisórias garantidas por lei mais um prêmio de um salário men-sal para cada dois anos trabalhados. Por exemplo, um funcionário que tivessetrabalhado por 30 anos na RFFSA receberia todas as verbas rescisórias mais oequivalente a 15 salários mensais. Os que não optaram pelo desligamento e foramdemitidos receberam todas as verbas rescisórias e 80% do prêmio do PID. Deacordo com um dirigente sindical “o cara não quis pedir o desligamento, então aempresa mandou embora”. No dia 09 de setembro de 1996 o sindicato homologou133 recisões e no decorrer de três meses houve a demissão de mais de 300ferroviários somente no corredor de Montes Claros/MG. “Os mais velhos tinhama ilusão de que não seriam demitidos” (Supervisor auxiliar da oficina mecânica naRFFSA). Não existem dados seguros sobre o número de demissões, estima-seque 60% a 70% do contingente da RFFSA, lotado na SR-2, tenha sido demitido15.

A FCA (Ferrovia Centro Atlântica), que começou a operar em setembro de 1996,eliminou a categorias de supervisor de manobra e manobrador sendo as suasatribuições repassadas aos agentes de estação. Segundo um maquinista, “quandoa FCA assumiu ela extinguiu várias categorias”.

A comunicação relativa ao tráfego (o licenciamento de trens) era realizada a partirdas estações, ou seja, cada informação era passada à estação subsequente. A FCAimplantou a comunicação via satélite, realizada a partir de um centro de comandoem Belo Horizonte, diretamente para as locomotivas. Essa tecnologia tornou supér-flua a existência da maioria das estações16. Atualmente os controladores de circula-ção na cidade de Belo Horizonte realizam o licenciamento dos trens, transmitem asordens de serviço através do sistema Autotrac e os maquinistas repassam as infor-

15 O aspecto mais nefasto do processo é a demissão massiva de trabalhadores, segundo Cena (2008,p.157), que analisou a privatização ferroviária na Argentina, ocorreu “la racionalización a través de ladesocupación”. Em 1993, no Ferrocarril ocorreram 84.000 dispensas – existiam 87.000 postos detrabalho no sistema de transporte ferroviário argentino.

16 Existiam 21 estações ferroviárias em funcionamento no Norte de Minas na primeira metade da décadade 1990: Lassance; Várzea da Palma; Pirapora; Engenheiro Dolabela; Engenheiro Navarro; Bocaiuva;Engenheiro Pires Albuquerque; Glaucilândia; Montes Claros; Canaci; Engenheiro Zander; Orion; Enge-nheiro Messias Lopes; Quem-quem; Janaúba; Tocandira; Pai Pedro; Catuti; Monte Azul; Mamonas eEspinosa. Havia, como mostrado no mapa acima, os locais chamados de “Pé de estribo” (apenas paraembarque e desembarque de passageiros), como Porto Faria, Uratinga, Suassu, entre outras. Imediata-mente após a privatização apenas as estações de Montes Claros, Janaúba e Espinosa continuaram ematividade. Atualmente somente a estação de Montes Claros está em funcionamento.

Page 83: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

83

mações, através do sistema, diretamente da locomotiva. Castells (1999, p.261) afir-ma que o impacto do paradigma informacional depende “de uma opção econômicae política feita por governos e empresas escolhendo a ‘via baixa’ no processo detransição para a nova economia informacional, principalmente com a utilização dosaumentos de produtividade para lucratividade a curto prazo”. Enfim, a mesmatecnologia pode afetar de forma diferente o trabalho17.

A mudança resultante do “movimento mais flexível do capital acentua o novo, ofugidio, o efêmero, o fugaz e o contingente da vida moderna, em vez dos valoresmais sólidos implantados na vigência do fordismo” (HARVEY, 1992, p.161). Osimpactos dessa nova configuração foram analisados por Sennett (1999), dois ca-sos emblemáticos foram utilizados, o de Rico e o de Enrico. Algumas caracterís-ticas que marcaram a identidade social de Enrico são percebidas nas falas dosferroviários da antiga RFFSA, como a estabilidade, a narrativa linear da vida, ocontrole sobre sua vida e o planejamento da vida dos seus familiares. Uma rotinaque caracterizou o trabalho e a vida dos ferroviários. As transformações advindasda privatização trouxeram as demissões18, a incerteza para os que permaneceramna empresa, com consequências para a sociabilidade ferroviária forjada durantedécadas na região e uma desmoralização individual.

Além da angústia, além da supressão de alguns trens, além da supressão dealgumas classes ferroviárias, como a via permanente, manobradores, alve-naria, trouxe um desgaste social que eu não sei nem te explicar, nós tivemoscompanheiros que chegaram à beira do suicídio. Cara que não tinha proble-ma entrou no vício do álcool e tá na sarjeta até hoje. (maquinista aposenta-do, entrevista realizada em 25-07-2012).

Gorz (2004), nessa direção, falou sobre o fim da sociedade do trabalho, ou seja, dofim do emprego estável, construtor de identidade social e pessoal, o qual orientavaa construção de um percurso para a vida do indivíduo19. “A sociedade na qual

17 Percebe-se que a abordagem de Castells (1999) é bastante otimista (mesmo defensora) em relação àsvirtualidades das novas tecnologias da informação. Pode-se questionar a neutralidade da tecnologia, ouseja, a existência de uma nova tecnologia de produção já pressupõe um fim estabelecido na suaconcepção – esse fim seria o lucro. Ela poderia ser utilizada para outra finalidade? E, caso o fosse,sobreviveria à concorrência? Marx (1980) advertiu, quando da primeira Revolução Industrial, que aimplementação de novas tecnologias não tem como objetivo amenizar o sofrimento humano notrabalho, mas sim produzir mais mais-valia. Nesse sentido, outra lógica subjacente à produção de novastecnologias poderia ser capaz de tornar a sua implementação realmente diferente, em termos de suafunção essencial e impacto sobre a força de trabalho em geral. Outra possibilidade seria uma correlaçãode forças mais equilibrada entre o capital e o trabalho em geral que orientaria a utilização da tecnologiae seu impacto sobre a força de trabalho.

18 A perda do emprego significou também, a perda dos “benefícios” que a empresa possibilitava foramduramente sentidos. Quanto “se precisou do Plano [de Saúde] ele não estava mais disponível. Vocêpensa numa família com oito pessoas sem plano, não é fácil não” (supervisor auxiliar da oficinamecânica).

Trabalho fora dos trilhosSANTOS, Gilmar Ribeiro dos; SILVA, Ricardo dos Santos; SANTIAGO, Wagner de Paulo

Page 84: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

84

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

cada um espera encontrar um lugar, um futuro balizado, uma segurança, umautilidade; esta sociedade – ‘a sociedade do trabalho’ – está morta” (GORZ, 2004,p.69). A identidade do trabalhador sofre com os impactos da instabilidade queresulta na perda das principais referências do trabalhador, Sennett (1999).

A especialização do trabalhador ferroviário foi contraposta a um contexto de va-lorização de competências e polivalência. “Ferroviário é ferroviário não tem nadaa ver com o mercado de trabalho aqui fora” (maquinista aposentado, entrevistarealizada em 25-07-2012). A quebra da rotina, da estabilidade, do planejamentoque marcaram a sociabilidade ferroviária impactou dramaticamente o trabalha-dor, especialmente, os trabalhadores na faixa etária de 45 a 50 anos e sem quali-ficação para o exercício de outras funções no mercado de trabalho local. “O caraentra em desespero” (Supervisor auxiliar da oficina mecânica na RFFSA).

A partir das entrevistas, percebemos que a nova realidade do trabalho na FCA,transformou a identidade ferroviária, daquela categoria profissional antes porta-dora de grande status no mercado de trabalho regional. Isso ficou claro quandoum maquinista aposentado indagou espantado: “vai fazer um trabalho sobre umacategoria que está acabando?”. Essa fala parece remeter ao fim de uma “identi-dade ferroviária” e de sua importância.

Segundo Silva (2008, p.31), o trabalho está perdendo “sua hegemonia como prin-cipal meio de integração social”. Perda expressa, por exemplo, na ausência de“auto-realização” para quem o pratica. Há uma grande insatisfação com a novarealidade do trabalho na FCA, expressa em falas que ressaltam o constrangimen-to com as novas relações de trabalho, “tomei raiva da empresa” (mecânico apo-sentado, entrevista realizada em 05-08-2012). Além disso, os ferroviários nãoquererem que os seus filhos “deem continuidade20” ao trabalho na empresa – umanseio dos “antigos” na época de RFFSA.

19 “O trabalho foi deslocado objetivamente de seu status de uma realidade de vida central e evidente porsi própria; como consequência desse desenvolvimento objetivo, mas inteiramente contrário aos valo-res oficiais e aos padrões de legitimação dessa sociedade, ‘o trabalho está perdendo também seupapel subjetivo de força estimulante central na atividade dos trabalhadores’” (OFFE, 1994,p.194, grifos nossos).

20 Beuad e Pialoux (2009) analisaram as transformações do trabalho operário na Peugeot, em Sochaux naFrança, verificando a “desestabilização coletiva” e a “desmoralização individual” (especialmente nointerior da família) que os antigos operários enfrentavam. Nesse contexto “em muitas famílias operá-rias, os filhos não ‘dão continuidade’ aos pais”. Resultando em uma “forma de sofrimento social –sofrimento calado, reprimido, mas incessantemente remoído – que é produzida pela perda de umaherança que seria legada aos filhos, e o distanciamento sociocultural destes últimos” (BEAUD EPIALOUX, 2009, p.14). Porém, esse sofrimento no caso dos ferroviários é amenizado à medida queos filhos assumem posições socialmente valorizadas em outras empresas, especialmente, públicas – oque possibilita aos ferroviários “relembrar” aspectos do seu passado estável em uma empresa pública.Cabe salientar que o sentimento de orgulho relacionado ao pertencimento à classe operária não sãoiguais na comparação entre o Brasil (considerando inclusive a diversidade interna do país) e a França.

Page 85: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

85

O novo contexto a acumulação flexível e de privatizações afetou sobremaneira aação sindical21. Cabe salientar, de acordo com um dirigente sindical, que “a gentenão era contra a privatização, a gente queria uma privatização criteriosa, o quenão aconteceu” (entrevista realizada em 03-07-2012). Não houve mobilização noNorte de Minas Gerais, os trabalhadores pareciam não acreditar que a privatizaçãoresultasse em tamanhas perdas sociais, notadamente, no desemprego.

O STEFBH que apresentou um breve momento de atuação, reconhecido por boaparte dos trabalhadores entrevistados, após o período militar e anterior à privatização,em 1996 foi duramente afetado22. De acordo com um agente de estação aposen-tado após o processo de privatização “a greve existia somente na época da RFFSAo sindicato tinha mais força naquela época, hoje a empresa ameaça o funcionáriode demissão e inibe a greve”. Isso aponta para um poder maior do capital diantedo trabalho. A nova estrutura econômica de fato aumentou o poder do capital emdetrimento do trabalho. O medo da demissão e falta de ação do sindicato contraela está presente no caso dos ferroviários no Norte de Minas Gerais. Antes, “osindicato conseguia reverter um demissão hoje isso não é possível” (dirigentesindical, entrevista realizada em 03-07-2012).

21 Somente após o fim do governo militar o Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Ferroviárias deBelo Horizonte (STEFBH), criado no início da década de 1980, começou a atuar de fato na região.Porém, por um curto período. Com a privatização o sindicato perdeu força, pois os funcionários,especialmente os maquinistas, não se mobilizam para reivindicações devido ao medo da demissão.Nesse quadro, a esfera jurídica do sindicato ganhou relevo. “Tudo o que é estabelecido no acordocoletivo de trabalho e não é cumprido por parte da empresa se transforma em objeto de ação judicialrealizada pelo sindicato” (dirigente sindical, entrevista realizada em 22-08-2012). Não se percebe aexistência de uma solidariedade entre os ferroviários em geral que sirva de sustentáculo para mobiliza-ções, mas sim uma racionalização das ações sindicais atuando, principalmente, no campo jurídico, comdestaque para as ações judiciais por danos morais. Cabe salientar que existem críticas à atuação doSTEFBH. Essas críticas estão baseadas em dois fatores: na divisão interna da categoria ferroviária e nacomparação entre a ação do sindicato local e a ação de outros sindicatos da categoria. Devido aoslimites deste estudo não abordaremos de forma mais aprofundada questões sobre a estrutura e funcio-namento do STEFBH.

22 Rodrigues (1999), embora analise o caso dos países centrais, e seja demasiado pessimista em relação aofuturo dos sindicatos, coloca questões importantes para se pensar as privatizações e seus efeitos narelação institucionalizada entre o capital e o trabalho no Brasil. As mudanças no campo da economiaprejudicaram os sindicatos e favoreceram as empresas privadas. Essas transformaram-se no centroprincipal de desenvolvimento na própria medida em que o Estado reduzia seu papel estimulador eregulamentador da economia. Cada privatização aumenta o poder empresarial privado e reduz o poderda tecnocracia estatal e do poder sindical que tende a estar a ela associado. Os empresários, e especial-mente as grandes empresas multinacionais, antes do Estado e da classe política, tornaram-se o atorcentral no processo de desenvolvimento, recuperaram a iniciativa, a legitimidade e a autoridade quetinham perdido progressivamente no após-guerra e que de modo geral vinham perdendo à medida quese expandia a massificação do processo político e se fortaleciam os partidos que se apoiavam sobre ascamadas populares (RODRIGUES, 1999, p.194-5).

Trabalho fora dos trilhosSANTOS, Gilmar Ribeiro dos; SILVA, Ricardo dos Santos; SANTIAGO, Wagner de Paulo

Page 86: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

86

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Considerações finais

Ressaltou-se o “trabalho fora dos trilhos” em alusão a um sentido que, emborapercebido como uma exceção em um país com tamanhas desigualdades como oBrasil, onde não se realizou a “condição salarial”, para utilizar os termos de Castel(2005), orientou a vida de milhares de ferroviários, condicionando os seus projetosde futuro, as relações no interior de suas famílias, em resumo, as suas vidas. Aprivatização da RFFSA em 1996 transformou drasticamente a sociabilidade dogrupo social de trabalhadores ferroviários.

No Norte de Minas Gerais, no caso dos ferroviários “mais velhos”, os parâmetrosque delineiam as percepções das mudanças provenientes da privatização e dareestruturação da empresa estão baseados em um passado marcado porambiguidades (por exemplo, disciplina rígida e paternalismo), mas ao mesmo tem-po representado de forma positiva. Percebe-se isso claramente na comparaçãorealizada pelos mesmos entre o trabalho na RFFSA e o trabalho na FCA. Elesvalorizam a estabilidade de um período frente à instabilidade ou risco e às novasformas de gestão presente nas relações de trabalho atuais. Em suma, as narrati-vas valorizam a possibilidade de uma vida profissional e familiar estável.

Seguindo a perspectiva de Lima (2010), as transformações no trabalho nos últi-mos anos não anunciam o fim da cultura do assalariamento expressa nos direitossociais. Esse tipo de trabalho está no horizonte dos trabalhadores e marca profun-damente a cultura do trabalho, especialmente, no Norte de Minas Gerais. Histori-camente a informalidade fez parte das relações de trabalho na região. Emboraalgumas cidades, como Montes Claros, experimentem um aumento expressivodos contratos formais, o percentual de pessoas formalmente ocupadas se apre-senta inferior aos níveis nacionais, Santos (2009).

A região ainda passa por um processo de desenvolvimento econômico, deassalariamento. Pequenas cidades como Capitão Enéas-MG estão recebendo aimplantação de indústrias de diversas áreas em virtude de incentivos fiscais efinanceiros do Estado. Isto aumenta o desejo dos trabalhadores por um empregocom carteira assinada, pois a maioria teve sua trajetória e/ou mesmo perspectivasmais imediatas marcadas pela informalidade.

Nesse contexto, os trabalhadores mais jovens entendem que “tudo está muitobem na FCA” (maquinista aposentado, entrevista realizada em 25-07-2012). Issoporque suas percepções do trabalho na empresa se pautam pela comparação coma “precariedade” e o desemprego que ainda afeta grande parte dos trabalhadoresnorte-mineiros. A precariedade do trabalho é uma nova questão social, consequência

Page 87: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

87

da desestruturação da “condição salarial”, a qual nem mesmo se consolidou noBrasil, especialmente, nas regiões menos desenvolvidas como o Norte de MinasGerais.

Referências

ABRAMO, Laís. O Resgate da Dignidade. São Paulo: Imprensa Oficial/Edito-ra Unicamp, 1999.

ANASTASIA, Carla Maria Junho. A Sedição de 1736: estudo comparativo entrea zona dinâmica da mineração e a zona marginal do sertão agro-pastoril do SãoFrancisco. Dissertação de Mestrado em Ciência Política. Departamento de Ciên-cia Política. Universidade Federal de Minas Gerais, Minas Gerais, 1983.

ANTUNES, Ricardo. Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo:Boitempo, 2006.

BEAUD, Stéphane; PIALOUX, Michel. Retorno à condição operária: investi-gação em fábricas da Peugeot na França. Tradução de Mariana Echalar. SãoPaulo: Boitempo, 2009.

BOTELHO, Tarcisio Rodrigues. Famílias e escravarias: demografia e família es-crava no Norte de Minas Gerais no séc. XIX. Dissertação de Mestrado em His-tória Social. Universidade de São Paulo, 1994.

BRAGA, Maria Ângela Figueiredo. Industrialização da Área Mineira da SUDENE:um estudo de caso. Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. Departamentode Ciências Sociais. Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Março de1985.

CARDOSO, José Maria Alves. A Região Norte de Minas Gerais: um estudo dadinâmica de suas transformações espaciais. Dissertação de Mestrado. Departa-mento de Economia, Centro de Ciências Sociais aplicadas da Universidade Fede-ral de Pernambuco, Recife, 1996.

CARDOSO JÚNIOR, José Celso. Crise e desregulação do trabalho no Brasil.Tempo Social: Revista de Sociologia da Universidade de São Paulo, SãoPaulo, v. 13. n.º 2, p. 31-59, novembro de 2001.

CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário.5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.

Trabalho fora dos trilhosSANTOS, Gilmar Ribeiro dos; SILVA, Ricardo dos Santos; SANTIAGO, Wagner de Paulo

Page 88: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

88

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

CASTELLS, Manuel. A Sociedade em Rede. Vol. I. São Paulo: Paz e Terra,1999.

CAVALCANTI, Bianor Scelza. Reformas e políticas regulatórias na área detransportes. VII Congreso Internacional del CLAD sobre la Reforma del Estadoy de la Administración Pública, Lisboa, Portugal, 8-11 Oct. 2002.

CENA, Juan Carlos. El Ferrocidio. – 2ª ed. – Buenos Aires: La Rosa Blindada,2008.

CONTADORIA GERAL DE TRANSPORTES. Guia geral das estradas de fer-ro e empresas de transportes com elas articuladas – G1. Rio de Janeiro/ SãoPaulo, 1960.

COSTA, João Batista de Almeida. Cultura sertaneja: a conjugação de lógicasdiferenciadas. In: SANTOS, Gilmar Ribeiro dos. Trabalho, cultura e sociedadeno Norte de Minas Gerais: considerações a partir das Ciências Sociais. MontesClaros: Best Comunicação e Marketing, 1997.

CRUZ, Sebastião Carlos Velasco e. Trajetórias: capitalismo neoliberal e re-formas econômicas nos países da periferia. São Paulo: Editora UNESP, 2007.

GORZ, André. Misérias do Presente, Riqueza do Possível. São Paulo:Annablume, 2004.

HARVEY, David. A condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1992.

HOBSBAWM, Eric J. A era das revoluções: Europa 1789-1848. Tradução daMaria Tereza Lopes Teixeira e Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1977.

LESSA, Simone Narciso. Trem de ferro: do cosmopolitismo ao sertão. 1993. 244f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Hu-manas, Universidade de Campinas, Campinas, 1993.

LIMA, Jacob Carlos. Participação, empreendedorismo e autogestão: uma novacultura do trabalho?. Sociologias. Porto Alegre, ano 12, nº 25, set/dez. 2010.

LOPES, Vânia Silva Vilas Boas. Impactos da privatização na gestão de pessoas:um estudo de caso em empresa do setor de transporte ferroviário de carga deMontes Claros – MG. 2000. 160 f. Dissertação (Mestrado em Administração) –

Page 89: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

89

Departamento de Ciências Administrativas, Universidade Federal de Minas Ge-rais, Belo Horizonte, 2000.

MAIA, Andréa Casa Nova. Memória(s) e Identidade(s) nos trilhos: História deFerroviários brasileiros em tempos de neoliberalismo. In: Locus: revista de histó-ria, Juiz de Fora, v. 15, n. 1. p. 143-152, 2009.

MARONI, Amnéris. A estratégia da Recusa. São Paulo: Brasiliense, 1982.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. Rio deJaneiro: Livraria Editora Cátedra, 1985.

______. O capital: critica da economia política. 6ª ed. Rio de Janeiro: Civilizaçãobrasileira, 1980. Livro 1. V.1.

MATA-MACHADO, Bernardo Novais da. História do sertão noroeste de Mi-nas Gerais. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1991.

______. O capital: crítica da economia política. Tradução de ReginaldoSanta’Anna. 8ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. Livro II.

MELLO E SILVA, Leonardo Gomes. Trabalho em grupo e sociabilidade pri-vada. São Paulo: USP, Curso de Pós-Graduação em Sociologia: Ed. 34, 2004.

OFFE, Claus. Trabalho, a categoria sociológica chave?. In OFFE, Claus. Capita-lismo Desorganizado. São Paulo: Brasiliense, 1994.

RODRIGUES, Leôncio Martins. Destino do Sindicalismo. São Paulo: Edusp,1999.

PEREIRA, Laurindo Mékie. A cidade do favor: Montes Claros em meados doséculo XX. Montes Claros: Ed. Unimontes, 2002.

PEREIRA, Luiz Andrei Gonçalves. Planejamento e desenvolvimento: logística detransportes e exportações na mesorregião norte de Minas Gerais. Dissertação(Mestrado em Desenvolvimento Social), Programa de Pós-Graduação em De-senvolvimento Social. Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros,2010.

SANTOS, Gilmar Ribeiro dos; SILVA, Ricardo dos Santos. Desenvolvimento,elites regionais e desigualdades sociais no Norte de Minas Gerais. Argumentos,

Trabalho fora dos trilhosSANTOS, Gilmar Ribeiro dos; SILVA, Ricardo dos Santos; SANTIAGO, Wagner de Paulo

Page 90: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

90

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Montes Claros: Editora Unimontes, nº 4. Vol. 1, 2011.

SANTOS, Gilson Cássio de Oliveira. O mercado de trabalho formal em montesclaros – 1985-2006. Dissertação de Mestrado em Desenvolvimento Social.Universidade Estadual de Montes Claros, Montes Claros, 2009.

SEGNINI, Liliana R. Petrilli. Ferrovia e Ferroviários: uma contribuição para aanálise do pode disciplinar na empresa. São Paulo: Autores Associados; Cortez,1982.

SENNETT, Richard. A Corrosão do Caráter. São Paulo: Record, 1999.

SILVA, Josué Pereira da. Trabalho, Cidadania e Reconhecimento. São Paulo:Annablume, 2008.

SILVA, Ricardo dos Santos. Nos trilhos do capital: a ferrovia no processo deintegração do Norte de Minas Gerais às relações capitalistas de produção. Dis-sertação de Mestrado em Desenvolvimento Social. Universidade Estadual deMontes Claros, Montes Claros/MG, 2011.

SILVA, Sergio. Expansão Cafeeira e Origens da Indústria no Brasil. 6ª ed.São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1985.

Page 91: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

91

Resumo: atualmente tem-se percebido o aumento da informalidade e flexibilizaçãono mercado de trabalho e reafirmação de formas alternativas de subsistência.Nesse aspecto, o presente artigo buscou estudar o serviço de mototáxi na cidadede Montes Claros/MG através de relatos dos profissionais da área. Pautando naperspectiva de abordagem da lógica histórica foram realizadas entrevistas com osprofissionais que atuam em um dos quatro pontos de atendimento nos bairrosMelo, São Luiz e Funcionários. As hipóteses adotadas e o resultado final apontampara o fato de a atividade ter surgido em decorrência do desemprego involuntário;ser informal, na qual atuam profissionais com baixo grau de qualificação, além denão gerar renda elevada.

Palavras-chave: mototaxista; Montes Claros/MG; transporte alternativo; traba-lho informal.

Resume: Presently it’s been notably the growing of informality and flexibility onthe working market and the reafirmation of alternative subsistence formulas. Atthis aspect, this article tried to study the ‘’mototaxi’’ service on Montes Claros/MG by the reports from the professionals of this area. Basing on the historyperspective, it was perfomed interviews with the professionals that work on oneof the four attendant spots at Melo, São Luiz and Funcionários. The assumptionadopted and the outcome points out the fact that the activity was realease due to

MOT OTAXISTAS NOS BAIRROS DA REGIÃO SUL NA CIDADEDE MONTES CLAROS/MG: OS RELA TOS SOBRE A PROFISSÃO

RODRIGUES, Rejane Meireles Amaral*

BARBOSA, Cristiano**

* Doutora em História pela Universidade de Uberlândia. Professora no programa de Pós-Graduação StrituSensu em História da Universidade Estadual de Montes Claros/MG

** Professor de Economia Brasileira e Regional das Faculdades Santo Agostinho, Economista e Advogado,Especialista Geografia e Meio Ambiente

Page 92: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

92

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

the involuntary unemployment be informal, in which acts professionals with lowqualification grade and do not make any currency.

Keywords: ‘’mototaxista’’; Montes Claros/MG; alternative transport; informalwork

Resumén: Actualmente se tiene percibido el aumento de la informalidad yflexibilización en el mercado de trabajo y reafirmación de formas alternativas desubsistencia. En este aspecto, el presente artículo buscó estudiar el servicio demototaxi en la ciudad de Montes Claros/mg a través de relatos de los profesionalesdel área. Pautando en la perspectiva de abordaje lógica histórica fueron realiza-das encuestas con los profesionales que actúan en uno de los cuatro puntos deatendimiento en los barrios Melo, San Luis y Funcionarios. Las hipótesis adoptadasy el resultado final apuntan para el hecho de la actividad tener surgido enrecurrenciadel paro involuntario; ser informal, en el cual actúan profesionales conbajo grado de cualificación, además de no generar renta elevada.

Palabras clabe: “mototaxista”; Montes Claros/MG; transporte alternativo; trabajoinformal.

Introdução

A partir da percepção empírica é possível dizer que o mercado de trabalho temsofrido alterações, que conduzem a uma acentuação da informalidade, realizadaem parte com o aval do Estado. A gênese dessas alterações pode ser percebidacomo reflexos do processo de evolução histórica do sistema capitalista de produ-ção, em seu embate de forças no que tange aos interesses da classe proletáriaexpropriada e à dominação dos moldes empresariais capitalistas poupadores demão de obra.

Paralelamente, estudos relativos ao futuro do mercado de trabalho apontam paraa acentuação da flexibilização com redução da obrigação das empresas e doEstado em face das relações de trabalhistas atuais e do aumento da informalidade,segundo Offe (1994).

Tal cenário não se difere muito no Brasil visto que, nos últimos anos, tem ocorridoaumento dos ocupados em atividade informal, em especial na prestação de servi-ços segundo relata Kon (2004). Esse modo de obter o sustento nem sempre re-presenta maior segurança ou, melhor renda ao trabalhador.

No contexto brasileiro, os estudos indicam que a transformação do mercado detrabalho decorreu não apenas de aspectos históricos, mas também, pelo fato de

Page 93: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

93

parcela da população não conseguir meios de subsistência através do empregoformal devido ao baixo grau de instrução e qualificação, segundo se entende emTheodoro (2004) e Kon (2004).

Por outro lado, torna-se possível dizer que o futuro do mercado de trabalho tendea se tornar cada vez mais flexível, informal e incerto conforme Offe (1994), Ca-pela; Huertas Neto; Marques (2010).

Em face do contexto sinteticamente apresentado houve a opção de estudar osurgimento da profissão e como se configura a atividade de prestação de serviçode mototáxi nos bairros Melo, São Luiz e Funcionários a partir dos relatos dosprofissionais da área.

Aspectos metodológicos

Inicialmente se buscou levantar um arcabouço teórico geral, relacionado ao mer-cado de trabalho a fim de estabelecer a base conceitual que dialogaria com asevidências empíricas. Também houve a busca de informações sobre o surgimentoda profissão de mototaxista no Brasil e a regulação da atividade, com vista aestabelecer um parâmetro de avaliação no que tange a profissão em MontesClaros/MG.

A opção pela investigação nos pontos de atendimento denominados por questõesde sigilo de A, B, C e D, localizados entre os bairros Melo, São Luiz e Funcioná-rios, deu-se em função da facilidade de contato com os profissionais que atuam naárea indicada.

Inicialmente foi mantido um diálogo informal com os entrevistados durante a utili-zação do serviço pelo pesquisador visando obter informações iniciais sobre a ati-vidade. Essa abordagem foi realizada por acessibilidade no mês de novembro edezembro/2012. Nesse contato inicial foi estabelecida a hipótese de que a profis-são e os pontos de atendimento surgiram como decorrência do desempregoinvoluntário.

Numa segunda fase houve a realização de uma entrevista conjunta com osmototaxistas nos respectivos locais onde eles atuavam para confirmar as infor-mações anteriormente obtidas. Essa segunda fase foi realizada entre os dias 02 a20.01.2013.

No instante da realização da entrevista conjunta com os profissionais foi lançadoum questionamento geral sobre o surgimento da profissão. A partir da pergunta

Mototaxistas nos bairros da região sul na cidade de Montes Claros/MGAMARAL, Rejane Meireles; BARBOSA, Cristiano

Page 94: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

94

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

geral, e de modo gradativo, o diálogo era conduzido a outros questionamentosrelacionados a vivências e percepções dos trabalhadores sobre a atividade.

A descrição histórica, como da identificação das características econômicas daatividade foi realizada mediante síntese das respostas consideradas mais repre-sentativas. No que tange aos econômicos foi utilizada uma média de valores, cujoresultado era externado verbalmente aos entrevistados, a fim de ter a confirma-ção do raciocínio.

O mercado de trabalho: a informalidade

Estudar o mercado de trabalho e suas transformações requerem a retomada deposições teóricas relacionadas, direta ou indiretamente, com a existência de clas-ses no mundo do trabalho, geradas pelo modo de produção capitalista.

Nesse aspecto, a partir da interpretação da exposição de Hobsbawn (1987), éidentificado que a classe dos trabalhadores pode ser percebida como o grupo depessoas reunidas sob a existência de relações similares com os meios de produ-ção, assim como, pelo fato de haver uma separação entre explorados e explora-dores. De outro lado, há a percepção de classe enquanto consciência. Essa ideiaremete à compreensão de que o trabalhador passa a fazer parte da classe quandointerage e partilham do mesmo sentimento, ideia, ideais, dentre outros. Isso permi-te o posicionamento dos trabalhadores frente a uma determinada situação de vidacompreendendo-a de modo mais amplo.

Ao ser considerada a abordagem histórica relativa à consciência de classe feitaem Hobsbawn (1987, p.43), é criada a possibilidade de considerar que a contradi-ção entre produção e apropriação privada da mesma sempre existiu e, nos diasatuais, continua existindo através do “capitalismo das grandes corporaçõesentrelaçadas com grandes Estados”.

Corrobora nesse sentido Vasconcelos (2009), ao defender seu pensamento sobresurgimento do mercado de trabalho informal. O autor aponta como causas para oaparecimento desse mercado as transformações nas economias, os processos deglobalização e flexibilização, o que não deixa de envolver os aspectos de produçãoe a apropriação privada da mesma.

Ao avaliar a percepção contida em Capelas; Huertas Neto; Marques (2010) ficaclaro que o Estado tem se posicionado no sentido de permitir a maior flexibilizaçãodas relações trabalhistas o que, indiretamente, contribui para reforçar o embatede força entre as classes aliado à contradição apresentada por Hobsbawn (1987).

Page 95: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

95

É nesse contexto que se insere a consciência de classe de alguns grupos de traba-lhadores visto que, em face das transformações econômicas e financeiras (crisesmundiais) eles buscam manter as conquistas sindicais e trabalhistas anteriores àstransformações. Quando essa busca não é convertida em resultados efetivos, oque se percebe é a elevação do nível de desemprego, conforme apresentado porVasconcelos (2009).

Importante mencionar, segundo Hobsbawn (1987), que a consciência da classeoperária implica na organização formal possuidora de ideologia comum. Do con-trário, o que se percebe é apenas um conjunto de práticas e hábitos informais.

Em complementação Offe (1994) aponta para distúrbios funcionais no mercadodo trabalho, revelando que a tendência é deixar o trabalhador submetido à própriasorte. O resultado é o fortalecimento do trabalho informal. Para ele há o cresci-mento das possibilidades objetivas e subjetivas das pessoas se engajarem nessaforma alternativa de obtenção de renda como meio de subsistência.

Esse modo de labor, segundo Offe (1994), emerge da oferta de emprego que àsvezes é pressionada por motivos políticos e por um interesse na realização denovas formas alternativas de vida, reforçada pelo abandono de estratégias esta-tais de pleno emprego.

A partir da visão de Antunes (2002), pode ser identificado a existência e atuação,no mercado de trabalho informal, dos chamados de classe que vive do trabalho, oque amplia a noção do que hoje é tido como trabalhadores.

Em complemento, Kon (2004) ao tratar dos aspectos do trabalho informal salientaque o conceito dessa forma de trabalho evoluiu historicamente e apresenta carac-terística ligada á facilidade de entrada em mercados não regulados, competitivose de baixa renda.

Paralelamente, em Theodoro (2004), são identificados como trabalhadores infor-mais os não assalariados, autônomos, aqueles que atuam em atividades de peque-na escala, e os não declarados. Em outros termos, os que não possuem carteira detrabalho assinada não recolhem INSS entre outros encargos sociais.

No que tange ao mercado de trabalho informal brasileiro, ele teve sua gênese nasatividades econômicas existentes na época da agroexportação, e na falta de opor-tunidade para parcela da população, conforme entendimento que se constrói par-tir da leitura de Furtado (1980), associada a Delgado (2004) e Theodoro (2004).

Mototaxistas nos bairros da região sul na cidade de Montes Claros/MGAMARAL, Rejane Meireles; BARBOSA, Cristiano

Page 96: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

96

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Os reflexos oriundos dessa fase econômica para o mercado de trabalho atual,somado às transformações nos moldes capitalistas, nas crises financeiras e eco-nômicas mundiais traduzem-se atualmente na elevação do nível de desempregoinvoluntário.

Importante lembrar que, a partir do empiricismo, parte dos trabalhadores ocupa-dos formalmente, na tentativa de mudança de vida e de não se submeter à explo-ração excessiva e a subproletarização, tem optado pela informalidade. Nesse sen-tido, há possibilidade da ocorrência do desemprego voluntário mencionado porSouza (2010).

Nesse contexto, inserem-se os mototaxistas, que segundo Vasconcelos (2009)surgiu como uma vertente de atuação no mercado de trabalho informal no Brasilem meados de 1997-1998, em decorrência do desemprego involuntário.

Vasconcelos (2009) indica que no início a atividade era pouco divulgada. Os quenela atuavam já possuíam moto. Eles começaram a ofertar o serviço para pesso-as conhecidas e, na medida em que ocorreu a aceitabilidade pela população, espe-cialmente a de baixa renda, houve a ampliação da atividade, culminando na cria-ção de cooperativas e pontos de atendimento.

O mototáxi além de ser um transporte alternativo, tornou-se um meio de sobrevi-vência, assim como, uma forma de manter a dignidade do trabalhador que seencontra desempregado. Transformou-se em um meio de se fazer útil no merca-do de trabalho contemporâneo, conforme Vasconcelos (2009).

O mototáxi em Montes Claros/MG

Ao ser realizado o relato sobre o surgimento do mototáxi, pelos profissionais queatuam nos bairros Melo, São Luiz e Funcionários, foi identificado que o estabelecimen-to da atividade no ponto de atendimento “A”, no bairro Melo, ocorreu aproximada-mente há 11 anos. Já no ponto de atendimento “B” no bairro São Luiz, e nos pontos “Ce “D” no bairro Funcionários ocorreu, respectivamente, há cerca de 7, 5 e 15 anos.

Segundo os dados levantados, a profissão surgiu em Montes Claros entre os anosde 1993-1994. De acordo com os relatos, algumas pessoas começaram a atuarcomo mototaxista por terem ficado desempregadas e por já possuírem moto. Noinício, a maior parcela dos usuários do serviço era a população de baixa renda dosbairros periféricos da cidade e que conheciam os mototaxistas. Posteriormente, oserviço passou a ser ofertado em pontos de atendimento em várias localidadesdentro da cidade.

Page 97: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

97

De acordo com os dados obtidos duas novas hipóteses foram estabelecidas: a 1ª)-que a atividade surgiu como forma de complementação de renda e 2ª)- que algu-mas pessoas optaram por atuar no serviço de mototaxi em função do desempregovoluntário.

A opção por deixar o emprego de carteira assinada envolve aspectos do desem-prego friccional mencionado por Souza (2009), que ocorre no momento em que otrabalhador desempregado passa a avaliar as alternativas de trabalho para decidirpor aquela que, na opinião dele, é a melhor.

Os entrevistados foram unânimes ao afirmar que a atividade, em Montes Claros,surgiu sem nenhuma regulação de lei, ou controle de algum sindicado de classe. Atentativa de regulação ocorreu na gestão do prefeito Jairo Athayde. Porém, nãohouve efetividade das ações e o sindicado criado não se mostrou, nem se mostraatuante.

Relativo à Legislação Municipal sobre a atividade, resumidamente, ela se refereaos aspectos relacionados à padronização das motos em termos de cor,emplacamento, registro do profissional na prefeitura, pagamentos de taxas, faltasgraves na atividade, formação de cooperativas, dentre outros.

Em relação ao surgimento dos pontos nos bairros Melo, São Luiz e Funcionárioshouve a indicação de que o estabelecimento mais antigo na região (ponto D)surgiu em decorrência do desemprego involuntário do proprietário. Entretanto, ostrês outros pontos de atendimento (A, B e C ) foram criados após desentendimen-to entre os próprios profissionais da área.

Diante dos relatos, foi possível hipotetisar que o estabelecimento e ampliação doserviço representam secundariamente (após o surgimento da atividade na cida-de), um modo de resposta ao poder de comando dos proprietários dos pontos deatendimento anteriores.

Por outro lado, esse aspecto também permite entender que há na atividade apresença de elementos residuais, conforme definição de Williams (1979). O ele-mento visto como residual está associado às regras para que o trabalhador atuena atividade, o que ocorre de forma semelhante ao emprego formal.

Considerando o embate de forças entre as classes de trabalhadores e capitalistas,verifica-se, analogicamente, que as regras na atividade eram determinadas poroutrem que se colocava na posição de dominação (dono do ponto). Ele exercia eainda exerce a limitação relativa da liberdade de atuação, daquele que vivia do

Mototaxistas nos bairros da região sul na cidade de Montes Claros/MGAMARAL, Rejane Meireles; BARBOSA, Cristiano

Page 98: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

98

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

trabalho (mototaxista), ou seja, dos que se posicionavam na condição de(semi)dominados.

Reforçam a percepção sobre o aspecto residual mencionado, o paralelo estabele-cido entre os relatos que os entrevistados fizeram sobre os empregos com cartei-ra assinada, e a forma como eles percebiam a atividade de mototáxi. Nos empre-gos anteriores, segundo o que foi relatado, havia pressão e controle por parte dosempregadores, que possuíam poder de comando e decisão.

Paralelamente na atividade de mototáxi, não há relação de trabalho formal. Opoder de comando e controle da atividade não se realiza de modo totalmentedireto pelo trabalhador, o que relativiza a liberdade de atuação e decisão, asseme-lhando-se um pouco ao que alguns deles vivenciaram nos antigos empregos for-mais.

De modo análogo, abre à possibilidade de considerar a presença do elementodeterminação no sentido apresentado por Williams (1979), que deixa a entenderque ela é percebida como sendo a prática de limitação e pressão sobre o trabalha-dor. Na vivência como mototaxista, a fixação de limites e a pressão eram realiza-das pelo proprietário do ponto, configurando também o aspecto dominante dasatividades empresariais capitalistas (controle).

Os depoimentos também revelaram que a resposta dos trabalhadores às determi-nações do proprietário do ponto, apresentava-se como uma espécie de resistênciaatravés da saída do mototaxista do ponto e a abertura de outro local para atendi-mento.

Em outros termos, ele saía da condição de mototaxista para continuar atuando naatividade assumindo e, às vezes, acumulando a condição de proprietário de outroestabelecimento. Por sua vez, ao abrir novo ponto de atendimento ele passava adeterminar o valor da diária e a tabela de preço das corridas, tornando-secontrolador da atividade.

Esse aspecto mostra a partir de Williams (1979), o elemento dominante represen-tado pela manutenção de aspectos empresariais de controle, na tentativa de obterlucratividade (aspecto presente no capitalismo empresarial).

Sob outra hipótese, o aspecto residual na relação de trabalho como mototaxista,apresentava e ainda se mantêm na relativização da liberdade do trabalhador, quedeixa de estabelecer o preço da corrida que ele próprio realiza e se vê obrigado aopagamento da diária.

Page 99: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

99

Nesse aspecto, procurando identificar o preço da diária, quando a atividade surgiufoi obtida a informação de que ela variava um pouco de ponto para ponto. Masnão foi determinado o valor cobrado na época.

Em face da não confirmação do valor da diária na época do surgimento da ativi-dade, foi lançada a pergunta sobre qual o valor atual da mesma. A resposta foi deque ela, na média, aproxima dos R$100,00/mês por mototaxista.

A partir dessa informação foi efetuado um cálculo para identificar a renda aproxi-mada do proprietário por ponto de atendimento. Conforme a projeção ela gira emtorno de R$1.300,00 bruto/mês e uma renda líquida de aproximadamente R$700,00/mês. Essa renda se torna maior se consideramos que 3 dos 4 proprietários depontos de atendimento, também efetuam corridas.

A partir dos valores estimados surge a hipótese de que o embate de forças entreo proprietário do ponto e os profissionais que ali atuam, envolve o valor da diária.O mototaxista acredita ser elevado o valor e o proprietário entende que ela ébaixa.

Um elemento emergente na atividade ocorre também quando é considerada arelação de trabalho. Ela se configura ora como sendo realizada no contexto deparceria, ora como autônomas, em que se paga somente a diária ao proprietáriodo estabelecimento para poder atuar na atividade. Essas características, segundorelato, não mudaram desde que a atividade surgiu em Montes Claros.

Quanto ao preço do serviço, inicialmente o valor era único de R$1,00 para qual-quer ponto na cidade, independente do destino do passageiro. Contudo, na medidaem que houve aumento no preço da gasolina o valor da corrida foi modificando ehoje cobra-se o valor médio de R$3,00, podendo variar para mais, conforme odestino do usuário.

Questionados sobre a média de renda de cada mototaxista, 72% informaram queé possível conseguir uma retirada de aproximada líquida de R$700,00 a R$800,00/mês. O que determina o nível de renda é o número de corridas e as horas traba-lhadas no dia.

Sobre a jornada de trabalho, 14 motoqueiros (46,6%) disseram trabalhar de dia,semelhante ao horário comercial. 40% dos entrevistados (12 motoqueiros) men-cionaram que atua na atividade apenas à noite, por terem outro emprego duranteo dia. Os que trabalham nos moldes indicados disseram que têm uma renda livre,na atividade, um pouco maior que um salário mínimo.

Mototaxistas nos bairros da região sul na cidade de Montes Claros/MGAMARAL, Rejane Meireles; BARBOSA, Cristiano

Page 100: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

100

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Outros 2 profissionais (6,6%), respectivamente, informaram trabalhar uma médiade 17 e 20 horas/dia incluindo finais de semana e feriados. Dos relatos, ficouentendido que o elemento preponderante para a maior jornada de trabalho é anecessidade financeira do mototaxista. Esse fato conduziu ao levantamento dahipótese de que os profissionais com jornada estendida conseguiam uma rendasuperior ao que os 72% informaram (R$700,00 a R$800,00/mês).

Como não foi informada a renda dos que têm uma jornada estendida e, na tenta-tiva de estimar o valor médio, foi realizado o questionamento sobre quantas corri-das cada mototaxista conseguia realizar por dia.

A resposta foi de que nos dias de maior movimento (que se enquadram especial-mente no período dos semestres letivos de faculdades e escolas de ensino médioe fundamental e de grandes eventos na cidade) é possível realizar uma média de20 a 30 corridas/dia conforme as horas trabalhadas. Os que ficam mais tempo nomototaxi conseguem realizar um número de atendimentos maior, podendo chegarao total de 40 a 50 corridas/dia, o que, segundo dados repassados pelos entrevis-tados, poderiam gerar uma renda média bruta de R$1.800,00/mês e líquida deR$1.400,00.

Os entrevistados que informaram trabalhar numa jornada estendida mencionou ocansaço como fator negativo. Nesse aspecto, cabe destacar que o elemento resi-dual existente nas relações de trabalho formal contemporânea, ligadas à amplia-ção da jornada laboral, acaba por se fazer presente na atividade de mototaxista.

Esse fato gera uma incoerência aparente, pois, o trabalhador reclama quando éobrigado a se dedicar mais ao trabalho numa relação formal de emprego. Porém,ele por decisão própria, dispõe-se a laborar mais horas como mototaxista. A expli-cação para essa postura está no fato de que o resultado do trabalho é totalmenterevertido ao trabalhador, o que não ocorre nos empregos formais, onde se deixade pagar as horas extras realizadas.

Na tentativa de identificar o perfil dos profissionais que atuam na atividade, osdados levantados indicaram que 6,66% dos entrevistados (2 profissionais) possu-em curso superior em andamento, enquanto o restante (93,33% dos 30 profissio-nais entrevistados) possui apenas ensino médio. Esse fato revela uma baixa qua-lificação profissional.

Em relação à faixa etária e estado civil, a maioria possui idade entre 25 a 30 anos(60% dos entrevistados). 20% possuem idade entre 19 a 24 anos e os outros 20%possuem idade acima de 35 anos. Os casados equivalem a 70% dos entrevista-

Page 101: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

101

dos. Os solteiros equivalem a 20% sendo que, 10% informaram manter uniãoestável. Além disso, todos são do sexo masculino.

Sobre o fato de haver ou não consciência de classe entre os profissionais da área,as respostas dadas nas entrevistas não foram contundentes no sentido positivo.Houve menção sobre a formação de um sindicado, que não é atuante. Tambémhá inúmeras pessoas prestando o serviço de modo irregular, sem estarem ligadasa algum ponto de atendimento. Soma-se a isso o fato de que, nem o sindicado,nem os próprios mototaxistas se mobilizam para proteção dos interesses do grupo.

No último elemento de abordagem foi perguntado como os mototaxistas percebi-am a atividade e o que eles podiam apontar como aspectos que se destacaram navivência deles, durante o trabalho na área. Os relatos revelaram que existe umuniverso de situações que podem ser complementares e contraditórias ao mesmotempo.

Os aspectos considerados como emergentes, residuais e dominantes podem serpercebidos nos relatos dos profissionais da área ao ser mencionado que algunsdeles trabalham mais de 8 horas diárias, existência de um controle, ainda queindireto, da atividade por parte do proprietário do ponto de atendimento, não dife-rindo de um emprego formal.

Foram mencionados aspectos que revelaram embate de poder entre proprietáriodo estabelecimento e o profissional que atua no local, seja na condição de parcei-ro, seja na condição de autônomo que paga a diária para ali trabalhar.

Além do transporte de passageiro, as declarações demonstram que os mototaxistastêm buscado formas alternativas, dentro da própria profissão, para gerarem maisrenda como é o caso de entrega de encomendas e realização de frete com acarretinha acoplada à moto.

Sobre o trabalho da mulher na atividade, ele é considerado inexistente, caracteri-zando a atividade como tipicamente masculina. Também foi relatado que a ativi-dade tem-se mostrado perigosa, pois alguns usuários utilizam o serviço do mototaxi,sem que o motoqueiro saiba ou perceba, para efetuar transações (entrega deprodutos, e outras.) consideradas ilegais.

Relativo à profissionalização da atividade, os órgãos governamentais têm buscadoa regulação sem obter sucesso em face da ineficiência de fiscalização e devido aum movimento silencioso dos profissionais, que optaram pela não regularidade,evitando maiores despesas. Além disso, o sindicado da classe é inoperante.

Mototaxistas nos bairros da região sul na cidade de Montes Claros/MGAMARAL, Rejane Meireles; BARBOSA, Cristiano

Page 102: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

102

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Todos esses aspectos contribuem para a manutenção da informalidade do serviçoe da profissão, especialmente se é considerado que a formalidade, segundo visãoteórica estaria vinculada ao recolhimento de encargos e registro na carteira detrabalho.

Considerações finais

A atividade de mototaxi em Montes Claros, e nos pontos de atendimentopesquisados, surgiu como um meio alternativo de sobrevivência, em função dodesemprego involuntário para a maioria dos profissionais. Entretanto, atualmente,muitas pessoas passaram a atuar na área devido ao desemprego voluntário, e atémesmo friccional.

Alguns pontos de atendimento (A, B e C) surgiram devido à insatisfação e diver-gência de interesses de motoqueiros em relação ao que queira os proprietários depontos de atendimento e o que os mototaxistas entendiam como adequado. Oponto D foi criado em decorrência do desemprego involuntário do proprietário.

A forma de resposta, no sentido de preferir abrir outro local de atendimento, épercebida como uma espécie de embate de forças, de modo análogo ao que ocor-re nas atividades formais (capitalistas versus trabalhadores). Nesse aspecto, es-taria configurada uma nova forma de disputa de interesses dentro da própria ati-vidade, o que revela aspectos residuais e emergentes na profissão.

O fato dos mototaxistas não quererem, ou não se mobilizarem para adequar àsregras voltadas para a formalização da profissão nos parâmetros estabelecidospelo Estado, poderia ser compreendido como um modo de (semi)resistência àformalização, implicando na permanência da informalidade dos profissionais e daatividade.

Elementos residuais se mostraram presentes na atividade, a exemplo da visãocapitalista da busca pelo lucro e da postura empresarial de controlar, ainda que demodo velado, o serviço prestado. A determinação se faz presente na medida emque, aquilo que é residual, ao mesmo tempo se mostrou como limitação ao poderde atuação e forma de pressão sobre os mototaxistas, não proprietários de pontosde atendimento.

A consciência de classe no sentido de união para busca de melhores condições detrabalho, reivindicações, e a forma de organização da atividade caracterizou ainexistência de uma consciência de grupo.

Page 103: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

103

A atividade é informal pelo fato de que a legislação municipal sobre o assunto életra morta, assim como pela ausência de fiscalização, irregularidade na atividade,apatia dos mototaxistas em promover a regularização da atividade e atuação naárea.

Merece destaque o fato de que poucos profissionais são considerados trabalhado-res formais visto que há uma reduzida parcela recolhe INSS. A informalidade daatividade também é decorrente da ausência de registro dos pontos de atendimentona Secretaria da Receita Federal e Prefeitura Municipal.

Os atuantes na atividade podem ser percebidos como uma classe que vive dotrabalho. Proprietários de pontos de atendimento e mototaxistas se posicionam nacategoria de autônomos, que não recolhem contribuição previdenciária.

Em termos de perfil, na atividade atuam profissionais com idades variadas indodos que possuem 19 anos até os de idade acima de 35 anos. A maioria é constitu-ída por pessoas casadas que possuem baixo grau de qualificação profissional etodos são do sexo masculino.

Também é importante ressaltar que a atividade não gera renda elevada se compa-rada com o salário base da economia (salário mínimo de R$678,00). O fato dosentrevistados dizerem que possuem mais liberdade se tornou relativizada quandose considera a jornada de trabalho praticada.

Outro aspecto de destaque é que a atividade apresenta inúmeros riscos para oprofissional. Tais riscos vão além dos relativos à atuação no trânsito. Eles envol-vem, também, a possibilidade do profissional transportar, sem saber, alguma pes-soa ou encomendas que podem portar ou conter produtos considerados ilegais.

Ante ao exposto chega-se à conclusão de que a atividade de prestação de serviçode mototaxista mostra-se como uma espécie de busca alternativa de sobrevivên-cia, seja pelo fato de haver aumento do desemprego gerando transformaçõeseconômicas, seja mais recentemente, pela opção do próprio trabalhador que nãoquer se submeter às explorações da classe capitalista dominante.

Referências

ANTUNES, Ricardo. A classe-que-vive-do-trabalho: a forma de ser da classetrabalhadora hoje. IN: Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação enegação do trabalho. 6.ed. São Paulo: Boitempo, 2002, p.101-117

Mototaxistas nos bairros da região sul na cidade de Montes Claros/MGAMARAL, Rejane Meireles; BARBOSA, Cristiano

Page 104: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

104

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

______. Apêndices à primeira edição: crise do movimento operário e a centralidadedo trabalho hoje. IN: Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e nega-ção do trabalho. 6.ed. São Paulo: Boitempo, 2002, p.185-223

CAPELAS, Estela; HUERTAS NETO; MARQUES, Rosa Maria. Relações detrabalho e flexibilização. IN: MAREQUES, Rosa Maria; FERREIRA, MarianaRibeiro Jansen [org.]. O Brasil sob nova ordem: a economia brasileira contem-porânea: uma análise dos governos Collor a Lula. São Paulo: Saraiva, 2010. P.217-244

DELGADO, Guilherme. O setor de subsistência na economia e na sociedadebrasileira: gênese histórica, reprodução e configuração contemporânea. INRAMALHO, Jether Pereira; ARROCHELLAS, Maria Helena [org.]. Desen-volvimento, subsistência e trabalho informal no Brasil. São Paulo: Cortez,2004, p.45-76

FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 17. Ed. São Paulo: Ed.Nacional, 1980.

HOBSBAWN, E. O mundo do trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987,p.33-53

KON, Anita. Economia de serviços: teoria e evolução no Brasil. Rio de Janeiro:Elsevier, 2004, p.145-176

MONTES CLAROS. Lei nº 2779 de 16 de novembro de 1999. Montes Claros,11 nov. 1999, p.3

______. Lei nº 2900 de 24 de maio de 2001. Montes Claros, 11 nov. 1999, p.3

OFFE, Claus. O futuro do mercado de trabalho. IN: O capitalismo desorganiza-do: transformações contemporâneas do: transformações contemporâneas do tra-balho e da política. São Paulo, Brasiliense, 1994, p.71-105.

______. Três perspectivas para o problema do desemprego. IN: O capitalismodesorganizado: transformações contemporâneas do: transformaçõescontemporâneas do trabalho e da política. São Paulo, Brasiliense, 1994, p.105-130.

SOUZA, Jobson Monteiro de. Economia brasileira. São Paulo: Pearson, 2009,p.68-80.

Page 105: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

105

THEODORO, Mário. As características do mercado de trabalho e as origens dainformalidade no Brasil. IN RAMALHO, Jether Pereira; ARROCHELLAS, MariaHelena [org.]. Desenvolvimento, subsistência e trabalho informal no Brasil.São Paulo: Cortez, 2004, p.77-112.

THOMPSON. E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma críti-ca ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981, p.46-65, 180-201.

VASCONCELOS, Carlos Raimundo Assis. Transporte alternativo perfil domoto taxi do município de Eunápolis. 2009, 56 f. Monografia (EspecializaçãoLATO SENSU) - Instituto a Vez do Mestre, Eunápolis, 2009

WILLIANS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p.75-142.

Mototaxistas nos bairros da região sul na cidade de Montes Claros/MGAMARAL, Rejane Meireles; BARBOSA, Cristiano

Page 106: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

106

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Page 107: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

107

Resumo: A transição do século XIX para o século XX configura-se como umaépoca assinalada por grandes transformações sociais. Era o advento damodernidade, fruto de revoluções, como as Burguesas e a Industrial, e da adoçãode uma nova perspectiva social. O homem devia ser preparado para viver estanova realidade, o que envolvia a difusão de modos cotidianos de vida mais afeitosao mundo que se queria erigir. Este trabalho discute as ações higienistas e sanita-ristas em Montes Claros-MG entre os anos de 1889 e 1926. Nessa tarefa, aprincipal fonte utilizada na pesquisa é a imprensa periódica escrita. Como fonte deapoio, considerou-se a produção de memorialistas da região.

Unitermos: modernidade, cidade, imprensa, higienismo.

Abstract: The transition from the 19th century to the 20th century is characterizedas an era marked by great social transformations. Combined, revolutions such asthe bourgeois revolution and the industrial revolution and the adoption of a newsocial vision resulted in the advent of modernity. Men had to be ready for a newreality by adopting lifestyles and setting up daily routines that would better fit a

HIGIENISMO E SANIT ARISMOEM MONTES CLAROS ENTRE 1889 E 19261

Luciano Pereira da Silva*

Regina Célia Lima Caleiro**

1 Este trabalho contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do estado de Minas Gerais –FAPEMIG.

* Doutor em Educação pela UFMG; docente do curso de graduação em Educação Física e do Programa dePós-graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer da UFMG.

** Doutora em História pela UFMG; docente do curso de graduação em História e do Programa de Pós-graduação em História da Unimontes.

Page 108: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

108

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

new world planned to be built soon. This journal article has as its object of studythe implementation of action plans on improved hygiene and sanitation services inthe most important city in northern Minas Gerais, Montes Claros (city of MontesClaros, State of Minas Gerais, southeast Brazil) between the years 1889 and1926. The main source used in this study was the periodical press. As an additionalsource of information, publications from local memorialists were also used.

Keywords: modernity, city, the press. hygiene services.

Resumen: La transición del siglo XIX al siglo XX se caracteriza por ser unaépoca marcada por grandes transformaciones sociales. Fue el advenimiento de lamodernidad, el resultado de las revoluciones, como la burguesa e industrial, y laadopción de una nueva visión social.. El hombre debe estar preparado para viviresta nueva realidad, que incluyó la distribución de los modos de vida cotidiana másacostumbrados al mundo que quería construir. Este documento analiza las accioneshigienistas y técnicos de saneamiento en Montes Claros-MG entre los años 1889y 1926. En esta tarea, la principal fuente utilizada en la investigación es la escritu-ra prensa periódica. Como una fuente de apoyo, se consideró la producción dememorias de la región.

Palabras-claves: la modernidad, ciudad, prensa, higienismo.

Introdução

As primeiras décadas do período republicano brasileiro foram marcadas por trans-formações no modo de vida das cidades. Ideais de modernidade aportaram commais força nas cidades e foram propagados por discursos que anunciavam a ne-cessidade de adequar as estruturas sociais à nova realidade.

Tal processo possuiu como um de seus fundamentos o discurso científico. Estetipo de conhecimento passava a ser entendido como imprescindível para a buscado progresso e a superação do atraso cultural. De uma maneira geral, era parteda elite econômica que assumia a responsabilidade de ditar os novos rumos soci-ais. Como também possuía o poder político, este grupo implementou diversas açõesnas cidades que cresciam. No campo da saúde, estas ações configuraram-secomo práticas higienistas e sanitaristas, idealizadas e executadas muitas vezespor médicos que exerciam o poder político formal nas cidades.

Mesmo que estes ideais e práticas tivessem como berço as grandes cidades elestambém estiveram presentes em localidades distantes dos grandes centros. Neste

Page 109: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

109

estudo, é destacada a cidade de Montes Claros, localizada do sertão de MinasGerais. Como recorte temporal, o estudo destaca o período compreendido entreos anos de 1889 e 1926. Tal recorte, justifica-se por questões nacionais e locais.Explica-se: o ano de 1889 marca o início da República brasileira e a intensificaçãodo discurso da necessidade de adequar a sociedade aos princípios da vida moder-na. Nos jornais consultados da época, evidenciam-se um recorrente clamor paraque a cidade se insira na lógica das mudanças que ocorriam nos centros urbanosmaiores. Mesmo antes da chegada à cidade de um importante agente do progres-so, a ferrovia, a elite local já anunciava a necessidade irrefutável da adoção doscaminhos da modernização.

Já o ano de 1926 assinala o início de transformações intensas no município emestudo devido à chegada da ferrovia. Conquista aguardada por muitos anos, achegada da grande máquina moderna, que fazia a cidade tornar-se “ponta dostrilhos”, foi um sonho de tamanha magnitude que provocou inclusive a união degrupos políticos locais cindidos historicamente. Sobre a chegada dos trilhos a MontesClaros, comenta Lessa (1993, p. 145):

A ferrovia era, desde o final do século passado, a maior reivindicação daelite do Norte de Minas ao governo da União. Ela se apresentava entãocomo símbolo/metáfora de progresso. O trem de ferro era em si o progresso– a máquina de grande porte, a tecnologia, a velocidade, o tempo linear eabstrato do relógio. O que a tornava a própria presença do progresso, per-sonificando-o.

A chegada da ferrovia significava, pelo menos na imaginação da população, oinício de uma nova era. Intensificava-se a circulação de pessoas e ideias, as mu-danças eram rápidas em contraste com as transformações mais lentas da eraanterior.

Neste contexto, este artigo objetivou discutir como as ações higienistas e sanita-ristas que estiveram presentes em Montes Claros mediante a ação de membrosda elite local, notadamente médicos que haviam se formado na capital federal daépoca, a cidade do Rio de Janeiro. Para atingir o objetivo proposto, foram mobili-zados textos publicados em jornais da época e obras de memorialistas.

A elite montesclarense constituiu-se como um grupo possuidor do poder de deci-são político e econômico na sociedade local. Este grupo acumulava, muitas vezes,mais anos de escolaridade que o restante da população; muitos de seus membros,principalmente os mais novos, realizaram estudos nos grandes centros urbanos,geralmente nas cidades do Rio de Janeiro e Salvador. Após regressarem a Mon-tes Claros, passaram a ocupar posição de destaque na sociedade, tanto no que diz

Higienismo e sanitarismo em Montes Claros entre 1889 e 1926SILVA, Luciano Pereira da; CALEIRO, Regina Célia Lima

Page 110: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

110

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

respeito à ocupação profissional (medicina e advocacia, por exemplo), como nodomínio de ferramentas de grande influência social (como a imprensa escrita).Além disso, esta elite ocupava praticamente a totalidade dos cargos políticos mu-nicipais de maior destaque: vereador, agente executivo e juiz de paz.

A formação da elite da cidade esteve relacionada à consolidação dos grandesproprietários de terra que exerciam forte influência sobre os demais produtoresrurais. Alves, Prates, Versiani, Costa, dos Anjos, Maurício, Veloso, Ribeiro e San-tos são alguns dos sobrenomes das famílias que se destacaram política e econo-micamente. O fato de esse grupo ter sido reduzido pode ser percebido, por exem-plo, pela ocupação do principal cargo político da cidade à época (Agente Execu-tivo). Entre os anos de 1889 e 1926, apenas sete famílias estiveram à frente dopoder municipal, apesar de o município já contar com uma expressiva população2.A ocupação das outras cadeiras da vereança também seguiu a mesma dinâmica.

Mesmo que a elite fosse composta, como geralmente acontece na maioria dasregiões brasileiras, por poucas famílias, suas concepções sociais partilhadas par-cialmente pela população tornavam-na propagadora de como a sociedade deveriacomportar-se. Essa partilha pode ser justificada pelo fato de que a elite dispunhade importantes meios de convencimento, como a imprensa escrita e o poder polí-tico e econômico. O que era anunciado pela elite contribuía para a construção deuma ordem moral, na qual percepções sociais estavam presentes. O compartilhardos valores modernos da elite também se dava porque era em parte medianteesse grupo que o restante da população tinha notícia do que acontecia no mundoexterno ao que conheciam. Nesse processo, ocorria a difusão de hábitos vistosmuitas vezes como ideais, metas para a população em geral (a roupa que aindanão tenho, a escola que não estou, a prática de diversão que não vivencio, odiploma que quero conquistar). Enfim, o discurso da elite contribuía para o quepoderia ser entendido como “educação da população”.

Ações higienistas e sanitaristas em Montes Claros

Os processos de urbanização nos centros urbanos europeus, no início do séculoXIX, acirraram as discussões sobre a salubridade das cidades e provocaram apreocupação do Estado no intuito de se construir uma nova disciplina para o meio.Nessa ação, o Estado esteve aliado aos médicos higienistas que determinavamformas corretas de ocupação e comportamento nos espaços públicos e privados.Segundo Rosen (1979, p. 138), “o conceito de medicina social apareceu como

2 Em 1900, por exemplo, o terceiro censo populacional do período republicano, informa que MontesClaros contava com expressivos 54.356 habitantes (VIANNA, U., 2007).

Page 111: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

111

resposta aos problemas de doença criados pela industrialização”. É interessantesalientar como a história da medicina social aparece intimamente ligada à históriada ação social em relação aos problemas de saúde e do comportamento diário daspessoas. Faz-se necessário ressaltar, portanto, a intrínseca relação entre os pro-blemas sociais, a ação médica e a educação no período.

Para Jurandir Freire Costa (1983), uma estratégia importante para contornar adesordem social e urbana no século XIX foi a intervenção dos médicos higienistasno cotidiano da população. Para o autor, o movimento higienista no Brasil nasceda associação entre o médico e o Estado, visando o enfraquecimento do poder do“pai colonial” e o fortalecimento do Estado burguês em formação. O autor ressal-ta ainda que o médico, neste contexto, além de prescrever condutas higiênicas, étambém um educador.

A associação entre o médico e o Estado vai ocorrer, entre outros, pela ocupaçãode membros dessa classe profissional de importantes cargos administrativos nasesferas federal, estadual e municipal. No caso de Montes Claros, os cargos dePresidente da Câmara Municipal e de Agente Executivo representam bem estefenômeno.

Mesmo que o movimento higienista tenha ganhado força no século XIX nas gran-des cidades que viviam processos intensos de urbanização e industrialização, issonão quer dizer que ele não tenha exercido impacto sobre outras regiões que tive-ram seus processos mais intensos de urbanização e industrialização em outrosmarcos cronológicos. Além do entendimento de que as medidas sanitárias eramvistas como necessárias mesmo em cidades menores, se comparadas às grandescapitais, é preciso ressaltar que muitos dos administradores dessas cidades meno-res realizavam parte de sua formação nos grandes centros. Desta forma, eramimpregnados pelas ideias higienistas e, ao retornarem às suas cidades de origem,implementavam diversas ações.

No caso da cidade de Montes Claros, destacaram-se os Presidentes da CâmaraMunicipal e os Agentes Executivos. É preciso lembrar que no Estado de MinasGerais, durante a República Velha (1891 a 1930), não existia o cargo de PrefeitoMunicipal, mas o de Agente Executivo. Em Montes Claros, esse cargo era nor-malmente ocupado pelo vereador que fosse eleito Presidente da Câmara.

Higienismo e sanitarismo em Montes Claros entre 1889 e 1926SILVA, Luciano Pereira da; CALEIRO, Regina Célia Lima

Page 112: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

112

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

QUADRO 1Relação dos Presidentes da Câmara Municipal de Montes Claros entre o período de 1890 a 1926

Fonte: VIANNA, 1964.

O levantamento apresentado acima aponta os Presidentes da Câmara Municipalque foram eleitos na primeira configuração de cada mandato ou que exerceram ocargo por período considerável (pelo menos um ano). Isto porque era comum quepor motivos diversos o Presidente da Câmara eleito se ausentasse de suas fun-ções por poucos meses, sendo substituído por outro vereador, geralmente o vice-presidente. Tais casos não foram considerados no levantamento apresentado.

O QUADRO 1 demonstra que durante o período estudado, 1889 a 1926, o muni-cípio de Montes Claros possuiu doze mandatos para Presidentes de Câmara. Alémda constatação de que o referido cargo foi ocupado diversas vezes pela mesmapessoa, e pela mesma família, destaca-se o fato de que em sete vezes o Presiden-te da Câmara possuía a profissão de médico.

Porto (2002), sobre o campo político norte-mineiro na primeira República, afirmaque, nesse período, houve o claro predomínio político na cidade de um grupo res-trito de famílias, geralmente ligadas ao setor oligárquico. Os proprietários de ter-

3 Foi sócio da firma Costa, Dias, Spyer & Cia., construtora de trechos de estrada de ferro e das firmasCosta & Cia. e Iberio e Costa, indústrias de tecidos (VIANNA, N., 2007).

Page 113: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

113

ras, associados aos profissionais liberais, médicos, bacharéis em direito e outros,dominaram os cargos políticos da época.

Todos os médicos que ocuparam o cargo de Presidente da Câmara Municipalformaram-se na então capital do Brasil, Rio de Janeiro. Com isso, vivenciaram asteorias do saber médico que propunham projetos para a saúde pública do país. Aspráticas higienistas e sanitaristas a partir da segunda metade do século XIX foramamplamente difundidas entre a classe médica, até porque, à época, a cidade doRio de Janeiro sofreu com seguidas epidemias que elevaram significativamente oíndice de mortalidade do município.

Carlos Versiani formou-se pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em1845 e, após concluir o curso, retornou à sua cidade natal. Em 1852, ingressou napolítica, foi chefe do Partido Conservador, vereador e presidente da Câmara. Em1887, foi eleito Deputado Geral. Criou a Casa de Caridade através da Lei Provin-cial n° 1776 de 21 de setembro de 1871, hoje Hospital Santa Casa, tornando-seprovedor deste. Além disso, recebeu o título de Delegado da Higiene, responsabi-lizando-se pela questão do saneamento e salubridade do município (VIANNA,1964). Mais tarde outros dois profissionais da medicina, Dr. Honorato Alves e Dr.João Alves fixaram residência em Montes Claros e assumiram cargos políticos eprojetos sanitaristas e higienistas.

Dr. Honorato Alves concluiu o curso de Medicina em 1890 na Faculdade de Me-dicina do Rio de Janeiro. Posteriormente com apoio do Dr. Carlos Versiani ingres-sou na política filiando-se ao Partido Conservador; foi eleito vereador, presidenteda Câmara e Agente Executivo, obtendo reeleições. Sua gestão foi assinalada porvários investimentos na cidade: criou a imprensa oficial do município, combateuuma violenta epidemia de influenza em 1896 e projetou e deu início à construçãodo mercado municipal. Foi ainda Deputado Estadual e Federal (VIANNA, 1964).

Acerca do sanitarismo e do higienismo no Brasil de fins do século XIX, afirmaSchwarcz (2001, p. 206)

Caberia aos médicos sanitaristas a implementação de grandes planos deatuação nos espaços públicos e privados da nação, enquanto os higienis-tas seriam os responsáveis pelas pesquisas e pela atuação cotidiana nocombate às epidemias e às doenças que mais afligiam as populações. Noentanto, essa divisão entre sanitaristas - responsáveis pelos grandes proje-tos públicos - e hygienistas - vinculados diretamente às pesquisas e à atu-ação médica mais individualizada - funcionou, muitas vezes, de maneiraapenas teórica. Na prática, as duas formas de atuação apareceram de modoindiscriminado.

Higienismo e sanitarismo em Montes Claros entre 1889 e 1926SILVA, Luciano Pereira da; CALEIRO, Regina Célia Lima

Page 114: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

114

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

O sanitarismo tem sua expressão máxima no Brasil no médico Oswaldo Cruz,nomeado responsável pelo saneamento da cidade do Rio de Janeiro durante ogoverno do presidente Rodrigues Alves. Formado em 1892, Oswaldo Cruz convi-veu e foi amigo do médico Honorato Alves, de acordo com afirmações deste.Apesar de Honorato Alves ter-se formado em 1980, dois anos antes de OswaldoCruz, ambos ingressaram juntos na faculdade.

Em carta enviada no ano de 1946 ao memorialista Hermes de Paula (1957, p.298), afirma Honorato Alves:

O grande realizador do saneamento do Brasil, com referência a idêntico mal,Oswaldo Cruz, que foi como já ficou dito meu condiscípulo e amigo, teve afortuna de poder ir logo depois de formado, para a Europa, onde fez longose completos cursos de bacteriologia. Pôde, por esta forma, prestar a nossaterra um serviço inestimável e tornar glorioso o seu nome. Quanto a mim,pessoalmente, não lastimo que em vez de Paris e Berlim, tenha me encami-nhado para a cidade pequenina que era então Montes Claros, perdida nocentro remoto do sertão de Minas.

Os irmãos médicos Honorato Alves e João José Alves destacaram-se pelaimplementação de políticas sanitaristas na cidade. Honorato Alves, inclusive, afirmouque aceitou ocupar cargo público justamente porque seu ingresso na política “poderiafacilitar os meios de cuidar do saneamento da cidade” (PAULA, 1957, p. 301).

Na carta referida anteriormente, Honorato Alves informa que, à frente do podermunicipal, procurou dinamizar os serviços públicos e sanear a cidade.

Em muitos quintais havia chiqueiros de porcos de engorda e criava-se tam-bém a solta pela cidade cabritos, porcos, vacas e cavalos. Era uma verdadei-ra fazenda de criação e havia mesmo perigo em, se sair a noite porque nãohavia nenhuma iluminação por este motivo aceitei o lugar de presidente daCâmara e Agente Executivo, o que me colocou em situação de promoveralguns melhoramentos, sobretudo no sentido da saúde pública. A 1ª leidecretada foi a proibição absoluta da criação de animais soltos pela cidadee a extinção dos chiqueiros nos quintais. A luta foi áspera, pois os habitan-tes criadores negavam-se ao cumprimento das posturas (ALVES. In: PAULA,1957, p. 302).

Honorato Alves ressalta um dos principais problemas relacionados à implementaçãode políticas sanitaristas: a resistência da população. Assim, a necessidade de fis-calização sobre a população era constante. Por exemplo, os jornais registravam“a ação enérgica desenvolvida pelos senhores fiscais em relação ao inveteradoabuso de andarem pela cidade animais soltos” (GAZETA DO NORTE, 08 feve-reiro de 1919, ano I, n. 32, p. 1).

Page 115: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

115

O não cumprimento das Posturas Municipais e as grandes revoltas populares(como as revoltas de Canudos, Contestado, Vacina e Quebra-Quilos) retratam aresistência da população às ações modernizadoras. Para Carvalho (1998, p. 116),apesar de a Revolta da Vacina ter acontecido no Rio de Janeiro, estes movimen-tos eram reações que ocorriam, sobretudo, no mundo rural, pois “este era o Brasilsertanejo que se agitava e revelava seus valores antagônicos aos das elitesmodernizantes urbanas”.

Para Montes Claros, ao mesmo tempo em que resistia às políticas higienistas, apopulação as defendia e solicitava a intervenção do poder público municipal. Nosjornais da época, por exemplo, muitas vezes são encontradas notas com apelos demoradores sobre a necessidade do fiscal do município atuar de maneira maisrígida no combate ao desrespeito à proibição do abate de animais em ruas públi-cas.

Pela segunda vez pede se a attenção do Sr. fiscal da camara para o abuso dematarem rezes nas ruas publicas e logares proximos de casas de familiasnesta cidade. Pelo amor de Deus, Sr. fiscal! Tenha dó dos pobres paes defamilia, que já não podem, nem suas familias, com o fetido insupportavel dosrestos das rezes mortas, a ponto de, nalguns logares, juntarem os urubus!Sr. presidente da camara, pede-se providencias! (CORREIO DO NORTE, 19janeiro de 1890, ano VI, n. 285, p. 4).

A defesa dos preceitos higiênicos elaborados em um discurso científico e expres-sos nas posturas municipais, não significa que se tratava de uma posição relativaà classe social diferente daqueles habitantes que infringiam as normas (no caso, oabate de animais em via pública). A diversidade de posicionamento sobre a ques-tão representa, na verdade, a tensão existente entre a prescrição higiênica e aprática costumeira da população.

Afirmando ter os mesmos propósitos do irmão, João José Alves assumiu a presi-dência da Câmara e o cargo de Agente Executivo pela primeira vez em 1908. Omédico João Alves, assim como Honorato Alves, fez carreira política. A sua atu-ação em Montes Claros contribuiu para que adquirisse entre a população prestígiocomo “médico da pobreza” (SANTOS, 2008).

João José Alves diplomou-se na Escola de Medicina do Rio de Janeiro em 1900 e,logo após, retornou a Montes Claros e trabalhou na Santa Casa onde, durantemuito tempo, foi o único médico. Foi Delegado de Higiene, Inspetor Sanitário eComissário do Governo no combate a várias epidemias, com destaque para apandemia de influenza em 1918. Também foi Deputado Nacional Constituinte noano de 1933 (VIANNA, 1964).

Higienismo e sanitarismo em Montes Claros entre 1889 e 1926SILVA, Luciano Pereira da; CALEIRO, Regina Célia Lima

Page 116: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

116

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Durante as primeiras décadas da República brasileira diversas foram as doençasque tiveram de ser enfrentadas pelo poder público. Muitas vezes na forma deepidemia, estas enfermidades eram vistas como manifestações do atraso da soci-edade, causadas tanto pela falta de infraestrutura básica como pela ocorrência decomportamentos inadequados que expunham o homem à doença.

As chuvas torrenciaes deste prolongado inverno fizeram transbordar os rios,inundaram os campos e transformaram em paues as baixadas, determinandoneste municipio e nos vizinhos o apparecimento do impaludismo [...]. A malariaencontrou terreno propicio e estendendo seu raio de acção grassou com todaa virulencia, ceifando centenas de vidas e inutilizando pela existencia todatantas outras creaturas [...]. A epidemia encontrou-nos inteiramentedesapparelhados de meios de resistencia contra a sua acção invasora. Semserviço organizado de hygiene publica, ao qual tocasse a missão de dirigirscientificamente a campanha de defesa, adoptando as medidas necessariasde prophylaxia, estavamos de todo desarmados para enfrental-a com exito. Aextrema pobreza com que se debate grande parte de nosso povo, a carencia deinstrucção, que sugere e aconselha os cuidados preventivos, fez que morres-sem quasi á mingua doentes a quem faltava tudo, desde o remedio até oalimento [...] (MONTES CLAROS, 1º. de junho de 1916, ano I, n. 4, p. 1).

O homem sertanejo, mestiço, com pouca instrução, era castigado pelas doençasque não sabia evitar e enfrentar. Dessa forma, só lhe restava contar com o auxíliodo governo e daquele que era dotado de conhecimento científico. Tais moléstias“só cedem a uma prophylaxia systematica e rigorosa; e esta só pode ser posta empratica com o auxilio dos governos e intervenção efficaz dos homens de scienciae representação popular” (MONTES CLAROS, 18 de janeiro de 1917, ano I, n.36, p. 1). Em Montes Claros, ninguém desempenhou melhor este papel do que oDr. João Alves. Acerca do combate ao impaludismo no ano de 1916, noticiou oJornal Montes Claros:

O Governo do Estado pediu [...] informações ao dr. João Alves, Delegado dehygiene neste municipio, e ministradas estas, encarregou-o de fornecermedicamentos aos doentes pobres. Com a boa vontade que todos lhe reco-nhecem e com o desprendimento que tão bem o caracteriza, o humanitarioclinico, sem indagar da maneira por que seriam remunerados os seus servi-ços, desenvolveu grande actividade e entregou-se á fatigante tarefa dereceitar para centenas e centenas de doentes pobres, que recebiam a demaisos remedios por conta do estado [...] (MONTES CLAROS, 1º. de junho de1916, ano I, n. 4, p. 1).

De todas as doenças noticiadas pelos jornais da época, nenhuma causou tantoestrago quanto a influenza. Denominada em sua forma mais grave de “influenzahespanhola”, atacou a população no ano de 1918 e fez cerca de cem vítimasfatais.

Page 117: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

117

[...] Montes Claros dissemos paga o seu tributo a terrivel peste que sechama “influenza hespanhola”. Raro é o lar em que ella ainda não entrou e sibem que até agora não sejam numerosos os casos fataes elles vão-se repro-duzindo e não sabemos afinal, quantas vidas estão designadas para seremceifadas. [...] As notas fornecidas dão como atacadas do mal epidemico, sóna cidade, mais de 1.000 pessoas, afóra dos suburbios, o que não é paraadmirar pois as duas fabricas de tecidos, daqui e do Cedro fecharam porfalta de pessoal [...] (GAZETA DO NORTE, 23 de novembro de 1918, ano I, n.21, p. 1).

Durante a grave crise de 1918, destacou-se a atuação do médico João Alves queteve ação decisiva para minimizar os efeitos e o alastramento ainda maior dadoença. Com o fim da epidemia, o clínico recebeu diversas homenagens na cida-de, até de seus adversários políticos.

Inclusive antes da epidemia de 1918, era defendido pela elite da cidade que asenfermidades conquistavam terreno com muita facilidade na região pela ignorân-cia da população que, além de não ser adepta dos hábitos higiênicos ainda tratavaqualquer sinal de debilidade com práticas medicinais caseiras. “Ninguém deve sedescuidar do primeiro insulto da molestia [...] os primeiros symptomas devem serlogo combatidos [...] não pelos processos caseiros e antiquados que só servempara acelerar a sua marcha ou complicar a situação do doente” (MONTES CLA-ROS, 06 de julho de 1916, ano I, n. 9, p. 3).

Os periódicos de Montes Claros atestam o fato de que a saúde da população erauma questão central no início do século XX. Sempre presente nos editoriais dasfolhas periódicas, tal tema preocupava a elite interessada nos rumos que a cidadetomava. Entretanto, pelo menos nas primeiras décadas do século XX, os desdo-bramentos desta preocupação direcionaram-se, principalmente ao combate àsepidemias. Ações preventivas e uma atuação permanente fora dos períodos epi-dêmicos eram limitadas. Para Telarolli Júnior (1996), nas administrações munici-pais, em geral, inexistia um projeto de ação permanente e, na sua ausência, busca-va-se, mediante o enfrentamento de doenças que se alastravam rapidamente, orestabelecimento da situação anterior à epidemia, inclusive pela separação entreo doente e a cidade pela adoção de quarentena.

Em carta enviada ao memorialista Hermes de Paula, o médico Honorato Alves,acerca do combate a uma epidemia de varíola que atacou Montes Claros, confir-ma tal dinâmica de enfrentamento das doenças à época:

[...] Não havia a menor dúvida, era a varíola. Soube que bem perto de minhacasa havia uma doente passando mal. Fui vê-la e era o mesmo caso grave devaríola confluente de forma hemorrágica. Tomei todas as providências e

Higienismo e sanitarismo em Montes Claros entre 1889 e 1926SILVA, Luciano Pereira da; CALEIRO, Regina Célia Lima

Page 118: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

118

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

consegui obter um sítio a cerca de uma légua da cidade, onde mandei cons-truir alguns barracões de sapê, e com pouco ficou improvisado um hospitalde isolamento com as necessárias dependências. Todos os doentes foramremovidos para lá e também os que iam adoecendo [...] (ALVES. In: PAULA,1957, p. 303).

Uma indicação do esvaziamento do discurso preventivo na imprensamontesclarense pode ser percebida no fracasso da coluna “Consultório da Gaze-ta”. Em 03 de agosto de 1918, o periódico anunciava que um médico da cidaderesponderia qualquer dúvida da população sobre doenças mediante envio de cor-respondência constando apenas as iniciais do interessado. Nos números seguin-tes do jornal, porém, não houve a publicação de nenhum esclarecimento sobre otema.

Já as doenças que se manifestavam como epidemias em Montes Claros e emtodo o norte de Minas Gerais eram semanalmente tratadas pela imprensa. Impa-ludismo, influenza espanhola, ancilostomíase, uncinariose, entre outras, eram en-fermidades discutidas publicamente, quase sempre no sentido de denúncia do des-caso do governo estadual para com o norte de Minas. A partir da ocorrência desurtos das moléstias, a imprensa difundia um discurso de clamor por socorro dasautoridades. “O sertão possue endemias que prejudicam enormemente parte deseus habitantes; precisa, portanto, do auxilio do governo, do braço forte dos ho-mens de representação [...]” (MONTES CLAROS, 14 de dezembro de 1916,ano I, n. 32, p. 1).

As epidemias, a escassez de profissionais da área da saúde e todo o contexto devalorização do higienismo fizeram com que, no final do século XIX e início doséculo XX, os profissionais médicos tomassem papel central na sociedade, a exem-plo daqueles que ocuparam o prestigiado cargo de presidente da Câmara e Agen-te Executivo. Mesmo os médicos que não estiveram à frente do município e seenvolveram menos com política, tinham papel ativo das decisões sobre os rumosque o município seguia.

Além dos já citados Carlos Versiani, Honorato Alves e João Alves, no período emestudo, Montes Claros contou com outros médicos. Antonio Teixeira de Carvalhoformou-se no Rio de Janeiro em 1915. Em 1918, fundou em Montes Claros umaliga contra o álcool, o analfabetismo e as grandes endemias. Para propagar suasideias, editou o jornal A Liga. Nos anos 1930, fundou o Sanatório Santa Teresinhae, posteriormente, ocupou os cargos de vereador e prefeito municipal. JoaquimOnofre Pereira da Silva e Pedro Augusto Catta Preta Versiani formaram-se aindano século XIX na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Ambos tiveram suaatuação na cidade limitada em virtude de terem falecidos ainda jovens e de, no

Page 119: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

119

caso de Joaquim Onofre, ter se dedicado por alguns anos à prática profissionalfora de Montes Claros. Outro médico, Antônio Rodrigues Teixeira, dedicou-seinicialmente à política no Estado da Bahia. A convite de Honorato Alves, mudou-se para Montes Claros onde exerceu a medicina por 12 anos. Também foi promo-tor de Justiça e membro da Liga Operária Beneficente4. Os irmãos Geovani Vecchioe Antônio Vecchio formaram-se em medicina em Nápoles (Itália), respectiva-mente em 1907 e 1911 e, em conjunto, montaram consultório na cidade visto naépoca como muito moderno5. Marciano Alves Maurício formou-se na Faculdadede Medicina do Rio de Janeiro, retornando à cidade em 1913. Sobrinho de JoãoAlves foi vereador por vários mandatos e vice-presidente da Câmara. Colaborouem jornais locais, participando da fundação de duas folhas, A Liga e o MontesClaros (PAULA, 1957).

Entre os médicos atuantes na cidade, a maioria realizava sua formação na Facul-dade de Medicina do Rio de Janeiro. A partir de consulta à biblioteca da institui-ção, é possível perceber áreas de interesse dos médicos, expressa no tema abor-dado na tese de conclusão do curso. Pode-se destacar, entre os temas tratados, apresença de estudos sobre doenças que se alastravam no norte de Minas Gerais,assim como em outras regiões brasileiras, assumindo, com frequência, o caráterepidêmico.

4 A história da Liga Operária Beneficente é um fato da órbita das disputas políticas bipolarizadas domunicípio. Foi criada em 1906, em oposição à União Operária que existia desde 1894. Esta, criada porEusébio Sarmento, teve como principais ações a criação de uma escola noturna e o estabelecimento deuma cota beneficente para os sócios que necessitassem de amparo (e para as viúvas daqueles quemorressem na penúria). Já a Liga Operária Beneficente, formada, sobretudo por dissidentes da UniãoOperária, teve como primeiro presidente Antônio Martins de Santana Primo. Foi dissolvida por açãodo governo do estado em 1909, que enviou um delegado de polícia para o cumprimento da ação. Noepisódio, morreu com um tiro João Pacífico, um dos membros da associação (VIANNA, U., 2007;PAULA, 2007).

5 Sobre o consultório dos irmãos Vecchio, escreveu Urbino Vianna em 1916: “Dos consultorios da cidadeé o melhor montado, expondo um arsenal completo de instrumentos cirurgicos, apparelhos de clinicae microscopia, raios X, gabinete sobre prescripção de asepcia, etc.” (VIANNA, U., 2007, p. 305).

Higienismo e sanitarismo em Montes Claros entre 1889 e 1926SILVA, Luciano Pereira da; CALEIRO, Regina Célia Lima

Page 120: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

120

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

QUADRO 2Teses médicas defendidas por médicos de Montes Claros na Faculdade de Medicina do Rio de

Janeiro

Fonte: Biblioteca da UFRJ (http://www.minerva.ufrj.br)

Lepra, tuberculose e infecções paratipóides eram temas caros à medicina da tran-sição do século XIX para o XX que discutia o cenário sanitário brasileiro, incenti-vada pelos recentes avanços da bacteriologia. Montesclarenses de origem ounão, os médicos que atuaram na cidade apontados anteriormente puderam rece-ber a formação científica necessária para o enfrentamento dos graves males quedificultavam o avanço da região.

Impregnados pelo movimento higienista das grandes cidades, onde viveram poralguns anos, os médicos de Montes Claros do período em estudo assumiam amissão de dirigir a sociedade. Nesse processo, estes indivíduos desempenhavamsimultaneamente o papel de médico, de administrador público e, por que não dizer,de educador.

6 Nos documentos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, Carlos José Versiani, por motivosdesconhecidos, aparece com o nome de Carlos José Virciani. Tendo formado algumas décadas antes deseus aliados políticos, Honorato Alves e José Alves, vivenciou durante sua formação um período emque o conhecimento médico se dava em intensa interação com os saberes atribuídos aos terapeutaspopulares, sobretudo os curandeiros. Tal interação cultural reflete no título de sua tese de conclusão decurso. Sobre este assunto ver: ALMEIDA, Diádiney Helena de. Hegemonia e contra-hegemonianas artes de curar oitocentistas brasileiras. Dissertação (Mestrado em História das Ciências eda Saúde) – Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Rio de Janeiro, 2010. 210p.

Page 121: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

121

Considerações finais

Entre os anos de 1889 e 1926, a cidade norte mineira de Montes Claros, mesmodistante geograficamente dos grandes centros, recebeu com grande intensidadeos ideais higienistas e sanitaristas que ditavam adequações que os municípiosdeveriam sofrer para modernizarem-se. Propagadores do discurso científico,médicos que formaram-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro foram osprincipais agentes deste processo. Muitos deles detentores do poder político,tendo ocupado o cargo de Agente Executivo Municipal, estes atores puderamimprimir significativas mudanças na esfera social.

Neste contexto, o que era publicado na imprensa periódica local retratava umuniverso cultural em que estava em tensão práticas tradicionais da população enovos comportamentos justificados pelo emergente conhecimento científico. Alémdisso, é importante ressaltar que os jornais também visavam educar a população.Assumindo seu lado mais cultural do que noticioso, os periódicos buscavam tam-bém exercer a missão de esclarecer uma população que ainda se apegava aoconhecimento popular e que, assim, estava suscetível a doenças e males diversos,todos eles entendidos como entraves para o progresso.

Fontes

JORNAL CORREIO DO NORTE, 19 janeiro de 1890, ano VI, n. 285.

JORNAL GAZETA DO NORTE, 23 de novembro de 1918, ano I, n. 2.

JORNAL GAZETA DO NORTE, 08 fevereiro de 1919, ano I, n. 32.

JORNAL MONTES CLAROS, 1º. de junho de 1916, ano I, n. 4.

JORNAL MONTES CLAROS, 06 de julho de 1916, ano I, n. 9.

JORNAL MONTES CLAROS, 14 de dezembro de 1916, ano I, n. 32.

JORNAL MONTES CLAROS, 18 de janeiro de 1917, ano I, n. 36.

ALVES, Honorato. Carta. In: PAULA, Hermes Augusto de. Montes Claros suahistória sua gente seus costumes. Rio de Janeiro: [IBGE], 1957.

PAULA, Hermes Augusto de. Montes Claros sua história sua gente seus cos-tumes. Rio de Janeiro: [IBGE], 1957.

Higienismo e sanitarismo em Montes Claros entre 1889 e 1926SILVA, Luciano Pereira da; CALEIRO, Regina Célia Lima

Page 122: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

122

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

VIANNA, Nelson. Efemérides montesclarense. Montes Claros: Rio de Janeiro:Pongetti, 1964.

VIANNA, Nelson. Serões Montesclarensse. Montes Claros: Ed. Unimontes,2007.

VIANNA, Urbino. Monographia do município de Montes Claros: breves apon-tamentos históricos, geographicos e descriptivos. Montes Claros: Ed. Unimontes,2007.

Referências

CARVALHO, José Murilo de. Pontos e bordados: escritos de história e política.Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.

COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Edi-ções Graal, 1983.

LESSA, Simone Narciso. Trem-de-ferro: do cosmopolitismo ao sertão. 1993. 252f. Dissertação (Mestrado em História) - Departamento de História do Institutode Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. 1993.

PORTO, César Henrique de Queiroz. Paternalismo, poder privado e violên-cia: o campo político nortemineiro durante a primeira República. 2002. 176f. Dis-sertação (Mestrado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais. 2002.

ROSEN, George. Da Polícia Médica à Medicina Social: ensaios sobre a histó-ria da assistência médica no Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.

SANTOS, Cássia Vanessa. Os reflexos e impactos das medidas higienistas esanitaristas em Montes Claros. 2008. (Graduação em História) – UniversidadeEstadual de Montes Claros, 2008.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições equestão racial no Brasil 1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

TELAROLLI JUNIOR, Rodolpho. Poder e saúde: as epidemias e a formaçãodos serviços de saúde em São Paulo. São Paulo: Unesp, 1996.

Page 123: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

123

Resumo: Este artigo é parte do resultado de uma pesquisa financiada pelaFAPEMIG e CNPq, sobre textos e manuais de Pedagogia, desenvolvidas no pe-ríodo de 2008-2010. Ele analisa aspectos do processo de produção, de circulaçãoe do conteúdo de alguns fascículos da Revista Pedagógica, publicada peloPedagogium, Museu Escolar do Rio de Janeiro, durante o período de 1890 e1896. A análise aqui apresentada revela, sobretudo, a influência de teorias peda-gógicas européias na (re)definição das atribuições do professor para atuar naescola primária brasileira e, principalmente, a polêmica com relação à educaçãodas mulheres e suas possibilidades de atuação no magistério.

Palavras-chave: Revista Pedagógica, formação docente, escola normal, Peda-gogia

Abstract: This article is part of a research aided by FAPEMIG and CNPq, abouttexts and textbooks of Pedagogy, during the period of 2008-2010. Its analysis aspectsof process of production, circulation and subjects of fascicles of Revista Pedagógi-ca, published by Pedagogium, Museu Escolar of Rio de Janeiro, during the period of1890 and 1896. The analysis shows the influence of European pedagogical theories

APRENDENDO A SER PROFESSOR(A) ATRAVÉSDA REVISTA PEDAGÓGICA (1890-1896)

Sarah Jane Duraes*

* Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professora da UniversidadeEstadual de Montes Claros.

Page 124: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

124

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

in the changing of teacher’s tasks to brazilian primary school and, principally, thepolemic of the women’s education and their possibilities to become a female teacher.

Key-words: Revista Pedagógica, teacher training, normal school, Pedagogy

Resumen: Este articulo es parte del resultado de una investigación financiada porla FAPEMIG y CNPq, sobre textos y manuales Pedagogía, durante el periodo de2008-2010. El analiza aspectos del proceso de producción, de circulación y decontenido de algunos de los fascículos de la Revista Pedagógica, publicada por elPedagogium, Museu Escolar do Rio de Janeiro, durante el período de 1890 y1896. La análisis aquí presentada revela, sobre todo, la influencia de las teoríaspedagógicas europeas en la (re)definición de las atribuciones del profesor para actuaren las escuelas primarias brasileñas y, principalmente, la polémica sobre la relaciónentre la educación de las mujeres y sus posibilidades de actuación en el magisterio.

Palabras-claves: Revista Pedagógica, formación docente, escuela normal,Pedagogía

No Brasil, o uso dos impressos - revistas, livros de texto e manuais - nas escolasnormais no final do século oitocentista tornou-se um mecanismo de circulação demodelos de ensino concebidos por diferentes teorias pedagógicas1. Ao encontrodessa linha de investigação, este texto tem em vista abordar alguns modelos do-centes expressos na Revista Pedagógica, publicada pelo Pedagogium, duranteo período de 1890 e 1896. Esses modelos faziam parte de um processo de produ-ção, circulação e apropriação de representações2 do trabalho docente a partir deteorias pedagógicas que passaram a vigora no final do século XIX.

1 Sobre as principais teorias pedagógicas que circularam na segunda metade do século XIX e na primeirametade do século XX, destacam-se aquelas realizadas por Pestalozzi, Froebel e Herbart.

2 Ainda que a própria História Cultural apresente uma diversidade teórica acerca do que é representação, ena mesma medida polêmicas em torno dela, neste artigo fazemos uso do que foi proposto por Chartier(1990, 1991). Inicialmente, o autor evidencia que o objetivo da História Cultural é” identificar o modocomo em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída, pensada, dada aler” (CHARTIER, 1990, p.17). Assim sendo, ele articula as representações com as práticas e com asformas de apropriação. Além disso, afirma que esse ramo da História consiste na “compreensão dasrepresentações do mundo social, que o descrevem como pensam que ele é ou como gostariam que fosse”(CHARTIER, 1990, p.19). Assim como o autor em pauta, neste artigo, tem-se que as representações demundo são construídas a partir de grupos que a forjam, valendo-se, neste sentido, do reconhecimento deexercício de poder ou luta de representações e da diferença entre o que representa e o que é representado.

Page 125: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

125

Assim sendo, o presente artigo está dividido em quatro partes. A primeira versasobre a utilização dos impressos como objeto e fonte de investigação, sobretudo,sobre a sua importância para o conhecimento da história da formação docente. Asegunda apresenta um histórico sobre a Revista Pedagógica e as suas condições decirculação no Brasil. A terceira evidencia algumas representações docentes queforam recorrentes nos textos da Revista Pedagógica. Para finalizar, na quarta parte,ressalta-se a tendência à época de as teorias pedagógicas reforçarem certas quali-dades femininas e, consequentemente, que a mulher seria a mais apropriada pararealizar o trabalho docente primário.

Textos e manuais para a formação docente: objeto e fonte deinvestigação

A análise de textos e manuais destinados à formação docente pautou-se,prioritariamente, por conceitos que permeiam as linhas de investigação que têmcomo objeto os textos e manuais escolares. Segundo Puelles Benítez (2000), nãoexiste consenso na academia sobre o que vem a ser a linha de investigação dosmanuais escolares. Essa linha tem agregado a análise de manuais escolares,livros escolares, livros de texto, livros de consulta e de leitura. Portanto, foi possí-vel encontrar diferentes concepções para essas expressões entre os diferentesautores consultados (DELGADO CRIADO, 1983; GÉRARD, ROEGIERS, 1998;PUELLES BENÍTEZ, 2000; MARIN ECED, 2001).

Algumas vezes elas são apresentadas de maneira geral e, outras vezes, tratadascomo sinônimos. Posto isso, antes de apresentar alguns conceitos de manualescolar, é necessário enfatizar que eles têm sofrido alterações desde a segundametade do século XIX até nossos dias. Inicialmente, suas principais funções eram,sem dúvida, a transmissão de conhecimento, veiculação de algumas teorias peda-gógicas e de valores sociais e culturais. Embora essas funções continuem aindavigentes nos dias de hoje, a elas se acrescentam objetivos como: propor exercíci-os, desenvolver hábitos de trabalho, integrar conhecimentos do dia a dia... Dessemodo, o manual escolar passou a exercer, sobretudo no século XX, o papel desuporte de aprendizagem mais difundido.

Diante do exposto, é necessário considerar que o manual pode exercer diferentesfunções, ter diferentes modos de edição e de apresentação do conteúdo, confor-me o utilizador - professor/a e/ou aluno/a -, a disciplina e o contexto social em quefoi elaborado. Também pode ser aberto - pode ser completado com conteúdo e/oumétodo -, ou fechado - como um todo completo e autosuficiente. Os manuaispodem assumir os nomes de guias pedagógicos, livros do/a professor/a e do/a

Aprendendo a ser professor(a) através da Revista Pedagógica (1890-1896)DURÃES, Sarah Jane

Page 126: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

126

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

aluno/a. De maneira geral, “[...] um manual escolar pode ser definido como ins-trumento impresso, intencionalmente estruturado para se inscrever num processode aprendizagem.” (GERÁRD, ROEGIERS, 1998, p. 19).

Mas, de qualquer forma, os manuais e similares têm sido usados por investigado-res e investigadoras como fontes de informação sobre determinados aspectos davida social (e/ou de ensino), ou como objeto de estudo. Sobre isso, um dos primei-ros trabalhos espanhóis sobre o uso dos livros de texto, como objeto para a Histó-ria da Educação, foi escrito por Delgado Criado (1983). O autor, embasado naargumentação de G. H. Harper, apresenta três razões para o uso dos livros detexto:

1º permiten conocer las opiniones e ideas de sus autores, de los profesoresy de los alumnos.2º Ayudan a conocer los canales de comunicación de las ideas en la sociedady la resistencia que hallan en determinados grupos sociales, así como eldesgaste del modelo en un período de años.3º Permiten ver la simplificación y distorsión a que son sometidas las ideasal ser transmitidas y el tiempo transcurrido entre el lanzamiento de unaopinión, su recepción y el cambio en la estructura social.(HAPER3 apud DELGADO CRIADO, 1983, p.353)

Além dessas considerações, é necessário identificar quais e em que condições osmanuais foram aprovados e/ou reconhecidos como estâncias propagadoras dosideais do poder público. Nesse sentido, Apple e Cristian-Smith (1991) nos adver-tem que o manual escolar deve ser reconhecido como um exercício de poder,quer dizer, tanto no processo de elaboração como na estância de aprovação domanual, ainda que seja implicitamente, transmite e legitima as relações de desi-gualdade entre classe, gênero, raça ou geração.

Certo é que, considerados ou não como manuais escolares, livros escolares, oulivros de texto, eles têm despertado o interesse acadêmico como fonte e, sobretudo,como objeto de investigação da História da Educação. Assim, na Espanha4, Portu-gal e América Latina os pesquisadores/as têm usado esses impressos educativos

3 HARPER, G. Textbooks: an under-used source. History of Education. Society Bulletin, 25, Oxford,1908. p.30-40.

4 Na Espanha, através do projeto Manuais Escolares (MANES), historiadores e historiadoras da Educaçãotêm consolidado as investigações sobre o uso de manuais nas escolas normais. Inclusive em Manes, apartir da necessidade de desenvolvimento da linha de investigação, um de seus objetivos é estabeleceruma comparação entre os manuais utilizados por diferentes países, uma vez que estes “[...] nos llevaríaposiblemente a identificar la existencia y ‘circulación’ de modelos [...]”, como argumentam Guereña,Ossenback y Del Pozo (2005, p.41).

Page 127: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

127

para o estudo da história do currículo das disciplinas, da prática e da organização nasescolas. No Brasil, especialmente nos últimos dez anos, pode-se ressaltar que odebate em torno dos textos e manuais escolares tem sido progressivamente intensi-ficado nos programas de pós-graduação em educação e através de diferentes even-tos como, por exemplo, o Congresso de Leitura5 e o Congresso Brasileiro de Histó-ria da Educação6. Em linhas gerais, as investigações se referem, predominantemen-te, à análise da organização escolar nos séculos XIX e XX, período em que diferen-tes governos passaram a usar os textos e manuais escolares como mecanismo deconsolidação dos sistemas educativos nacionais (VEGA GIL, 1985; CARVALHO,1997; PUELLES BENÍTEZ, 2000; RABAZAS ROMERO, 2001a e b).

Acerca dos estudos em torno da formação docente, os textos e manuais constitu-em fontes privilegiadas para a reconstrução das transformações que se sucede-ram no campo do ensino e da pedagogia. Especialmente na pedagogia, os manu-ais foram usados como estratégias para obtenção de estatuto científico dessaárea de conhecimento e como veículos oficiais de modelos de professores/asprimários/as, durante o processo de formação das escolas normais no século XIX.A origem da denominação de escola normal, aquela que dar a norma docente,explica bem a função de formação docente.

Além dessas argumentações, cabe acrescentar que a investigação em torno detextos e manuais de Pedagogia indicam “[…] también la cantidad de ciencia quefue capaz de envasar su autor para el consumo escolar, el nivel de los conocimientoscientíficos del propio profesor y la cantidad de pedagogía y habilidad didáctica quesu autor es capaz de poner en juego para uso de sus lectores.” (DELGADOCRIADO, 1983, p.354).

O Pedagogium e a Revista Pedagógica

No Brasil, nas duas últimas décadas do século XIX houve grande incentivo àpublicação de impressos destinados à educação e, especialmente, à formaçãodocente.7 Entre as instituições responsáveis pela publicação desses tipos de im-

5 Esse evento tem sido promovido pela Associação de Leitura do Brasil e pela Universidade Estadual deCampinas.

6 Este congresso tem sido promovido pela Sociedade Brasileira de História da Educação, bianualmente,desde o ano de 2000 e específicamente o eixo temático Impressos, Intelectuais e História da Educaçãotem permitido a discussão e divulgação de pesquisas sobre manuais escolares.

7 Entre os primeiros impressos destinados à formação docente, publicados nesse período, destaca-se omanual Primeiras lições das coisas. Seu título original era Primary Object Lessons, de Norman AllinsonCalkins, e foi publicado no Brasil em 1886 numa versão realizada por Ruy Barbosa. Ele visava orientaros professores e foi amplamente difundido nas escolas normais e primárias no final do século XIX einício do século XX (SOUZA, 1998, p.161). Entre os conteúdos divulgados por esse manual, encontra-va-se a orientação do método intuitivo no país.

Aprendendo a ser professor(a) através da Revista Pedagógica (1890-1896)DURÃES, Sarah Jane

Page 128: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

128

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

presso, destaca-se a criação do Museu Escolar do Rio de Janeiro ouPedagogium, a partir do Decreto nº. 980 do ano 1890, através de BenjaminConstant quando ocupou o Ministério da Instrução Pública, Correios e Telégra-fos. Inspirado em modelos criados em diferentes países, sobretudo europeus, en-tre eles os de Paris (1879), Lisboa (1882) e o de Madri (1884), os doze capítulosdo seu regimento previam uma reorganização de todos os níveis de ensino no país,inclusive a criação de uma rede de instrução pública (AZEVEDO, 1996;GONDRA, 1997a e b; BASTOS, 2002). O Pedagogium, desde o inicio do seufuncionamento até o ano de 1897, esteve sob a presidência do professor JoaquimJosé de Menezes Vieira8 (BASTOS, 2002).

O governo brasileiro serviu desse museu para levar, através da Revista Pedagó-gica, o conhecimento (e aplicação) dos métodos de ensino mais aperfeiçoados,dentro e fora do país, aos professores e professoras da escola primária. Comolembra Gondra (1997a e b), essa revista serviu como instrumento para disseminaro novo ideário de trabalho docente proposto pelas teorias pedagógicas e desejadopelo nascente governo. Na verdade, ela foi criada com o objetivo de fazer comque os professores e professoras adquirissem uma nova idéia do que deveria sera escola e a Pedagogia. Melhor dizendo: esse impresso pretendia divulgar o mo-delo de professor/a ideal e normatizar, nacionalmente, o sistema de instrução pú-blica.

Vale lembrar que o primeiro número da Revista Pedagógica foi publicado em 15de novembro de 1890, exatamente um ano depois da implantação da República noBrasil. Posteriormente, a publicação da revista se deu conforme indicado no qua-dro a seguir.

Quadro 1Periodicidade e anos de circulação da Revista Pedagógica no Brasil

Fonte: Gondra (1997a)

8 Menezes Vieira (1848-1897) durante sua vida esteve empenhado em diferentes atividades relacionadasà educação brasileira. Foi sócio fundador de diferentes instituições beneficentes e de ensino e participoude eventos, no Brasil e no exterior, relacionados à educação. Ademais, esteve em diferentes países daEuropa com o intuito de conhecer o processo de ensino e de organização de diferentes escolas, o que lhepermitiu fundar no Rio de Janeiro o colégio Menezes Vieira, em 1875, e instalar ali o primeiro jardimde infância do Brasil. Para tanto, era conhecedor de diferentes teorias pedagógicas e, em especial, dateoria pedagógica desenvolvida por Froebel (BASTOS, 2002, p.42-5).

Page 129: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

129

Os fascículos da Revista Pedagógica foram organizados em nove tomos. Base-ando-se nas datas disponíveis no Acervo da Biblioteca Nacional, Gondra (1997a,b) sugere que o último fascículo da revista foi o número 48, datado de 15 de junhode 1896.9 Mas recopilando os dados no Arquivo Público Mineiro foram localiza-dos os números 49 e 50, relativos ao ano VI, tomo IX, datados de 15 de setembroe 15 de dezembro de 1896, respectivamente. Por outro lado, o periódico Educa-ção e Revista menciona que o último número foi publicado em janeiro de 1897.Com essa constatação, cabe perguntar: o número de dezembro é, de fato, o últimonúmero? Não se referia o mencionado periódico ao número 50, como último nú-mero publicado? É possível que se houvesse publicado outro número posterior ao50?

Com referência aos artigos da Revista Pedagógica, havia, por exemplo, aquelesque abordavam os objetivos e características da Pedagogia - considerada ciênciae arte; outros que mencionavam algumas reuniões e congressos pedagógicos re-alizados em outros países. Dessa forma, na visão dos seus autores, conseguiriamtirar os professores/as de sua ignorância pedagógica (GONDRA, 1997a e b;DURÃES, 2002).

Ademais, a Revista Pedagógica estava dividida em diferentes seções (segundo semostra no quadro abaixo). Algumas delas estavam presentes em todos os númerospublicados, enquanto o comparecimento de outras variava segundo o fascículo.

A propósito, eis as seções da Revista Pedagógica:

9 Segundo Gondra (1997a, p.375), a “Revista Pedagógica teve uma duração de seis anos, tendo iniciadosua circulação em 15/11/1890, uma data que sugere ser comemorativa do primeiro aniversário do novoregime republicano brasileiro.” O último número, segundo consta no acervo da Biblioteca Nacional, foipublicado em 15/06/1896, ainda que no periódico Educação e Revista, que se apresenta como sucessorda Revista Pedagógica, exista a informação de que o último número tenha sido publicado em janeiro de1897.

Aprendendo a ser professor(a) através da Revista Pedagógica (1890-1896)DURÃES, Sarah Jane

Page 130: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

130

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Quadro 2Seções e tomos da Revista Pedagógica

Fonte: Gondra (1997a)*Foram mantidas a grafía e a língua de seus títulos originais

Conforme o quadro acima, quatro seções estavam sempre presentes na revista:Parte Oficial, Pedagogia, Crônica do Exterior e Crônica do Interior. Essas seçõesforam constantes ao longo do período de publicação da Revista Pedagógica. Comrelação à seção denominada Parte Oficial, as intenções eram apresentar umarquivo de todos os atos oficiais referentes ao ensino primário da instrução, desdea criação do Ministério da Instrução Pública até uma sinopse dos atos do Conse-lho Diretor da Instrução. Avisos, circulares, decretos, regulamentos, programas,tudo isso era fielmente publicado.

Observa-se, claramente, na Parte Pedagógica, a quem a revista se destinava: osprofessores e professoras das escolas primárias. Assim, tendo por objetivo a for-mação deles e delas, o governo brasileiro dizia:

Se a revista não tem ainda discutido questões transcendentais de utilidadeproblemática nestes tempos nenhuma responsabilidade cabe ao seu diretorque tem pedido e solicitado acolher os trabalhos dos que se julgam compe-tentes nessas questões. Tem, entretanto, oferecido aos seus leitores artigosmuito mais proveitosos ao professorado das escolas primárias. (REVISTAPEDAGÓGICA, 1891, no. 33, p.187).

As outras partes também constantes - Crônica do Interior e Crónica do Exte-rior - mostram os diferentes interesses do governo. A existência da seção Crôni-cas do Exterior foi justificada da seguinte maneira: “[...] em todos os fascículos

Page 131: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

131

a revista tem apresentado informações interessantes sobre as questões de ensinoem diferentes países, insistindo no que se refere ao sul-americano e nos métodosadotados para o ensino daquelas disciplinas que ainda são pouco conhecidas entrenós.” (Revista Pedagógica, 1891, no. 33, p.187).

Com essas duas seções, o governo brasileiro tentava mostrar os diferentes tiposde ensino, tanto dentro como fora do país. Essa apresentação proporcionaria aogoverno a identificação de distintos níveis das condições de ensino entre os dife-rentes lugares, dentro e fora do país, ainda que os padrões ideais de ensino vies-sem principalmente da França. Essa identificação permitia ao governo, por umlado, conhecer onde e que estratégias seriam necessárias para melhorar as condi-ções de ensino. Por outro lado, ele buscava nutrir-se de informações através dasexperiências que a sociedade julgava positivas. Em suma, as duas seções forampensadas como instâncias de controle e circulação de modelos educativos.

Com referência à circulação de modelos, e segundo a própria Revista Pedagógi-ca, seus fascículos proporcionavam ao Ministério da Instrução Pública, aos pro-fessores/as públicos primários de primeiro e segundo grau, escolas normais, esco-las municipais, inspetores e diretores das diferentes províncias, obterem informa-ções sobre os diferentes periódicos nacionais e estrangeiros, e sobre as bibliote-cas dos museus pedagógicos existentes na Europa, Estados Unidos e Ásia (RE-VISTA PEDAGÓGICA, 1895, no. 43, 1895). Nos números 37, 38 e 39 do tomoVII, por exemplo, a revista menciona que, até setembro de 1894, já haviam sidoremetidos 8.717 fascículos para o interior do país e 1.428 para o estrangeiro.

Quanto aos autores dessa revista, geralmente eram do sexo masculino, professo-res e/ou representantes do governo, que atuavam na instrução. Contudo, foi pos-sível identificar a presença de algumas autoras e professoras. Tanto as autorascomo os autores dispunham de certo prestígio econômico e tinham uma valiosaexperiência educativa dentro e fora do Brasil. Inclusive alguns deles/as haviamsido especificamente enviados/as ao estrangeiro em busca de informações sobreas práticas educativas mais aperfeiçoadas.

Algumas representações docentes veiculadas pela Revista Pedagógica

Ao longo do século XIX, o Governo brasileiro impôs novos princípios para a regu-lamentação do ensino primário e para os mestres e mestras que pertenciam aoquadro docente público. O processo de elevação dos mestres à condição de fun-cionários públicos e seu reconhecimento como profissionais10 tem sido analisado

10 Enquanto nas sociedades ocidentais, a profissionalização docente começou em torno do século XVI, noBrasil isso não ocorreu até a chegada dos mestres régios portugueses nos séculos XVIII e XIX (VILLELA,2000).

Aprendendo a ser professor(a) através da Revista Pedagógica (1890-1896)DURÃES, Sarah Jane

Page 132: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

132

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

no Brasil por Arroyo (1985), Catani (2000) e Villela (2000), entre outros. Deacordo com uma das primeiras mudanças, o mestre deveria assumir, além daresponsabilidade da instrução, a de educação dos meninos e meninas.

Com efeito, através dos textos e manuais destinados à formação docente, o Go-verno tentava fazer com que a Pedagogia proporcionasse ao professor as ferra-mentas necessárias para reconhecer a sua prática como um ato de fé na ciênciada educação. Nesse sentido, a Pedagogia constituiria a ferramenta indispensá-vel que lhe permitiria o conhecimento.

Quantas às funções do professor, elas foram largamente discutidas na RevistaPedagógica. Sobre esse tema, diferentes fascículos apresentaram as característi-cas que deveriam possuir o/a mestre/a. Assim, na escola primária, o mestre deviaservir de exemplo, dado ao fato de que

[...] só a muita ignorância e a mais absoluta miopia intelectual podem desco-nhecer a importância do professor primário. Ele é o preparador da futuranação. É ele que tem em suas mãos o gérmen da nacionalidade por vir. É elequem a educa, quem a prepara, quem primeiro lhe implanta no coração osgrandes sentimentos, a nobreza do caráter, e quem lhe ensina uma coisa quese chama - o Dever. [...] Ele tem a seu cargo não só a educação intelectual dacriança, o que não é pouco, como a educação moral, que é tudo. Nãoduvidemos a influencia escolar sobre a criança, sobre o homem do futuro e,portanto, sobre a nacionalidade, que não é mais que o conjunto dos indiví-duos enobrecidos ou humilhados, conforme a primeira educação recebida(REVISTA PEDAGÓGICA, 1895, no. 38, p.100)

Essa passagem ilustra algumas ideias que passaram a ser hegemônicas no Brasil,sobretudo, com o advento da República no ano de 1889. A sociedade brasileirapassou a depositar, nas mãos do mestre/a, não somente a instrução como tambéma educação da infância e a construção do país (CATANI, 2000; FARIA FILHO,2000). Com a República no Brasil, especialmente na última década, prevaleceu aideia de que o mestre deveria instruir e educar os meninos e meninas para vive-rem em sociedade. Com esse objetivo, a escola deveria seguir os princípios peda-gógicos propagados pelo grupo vanguarda do momento. Sobre isso, em certa pas-sagem, um artigo dizia:

A tarefa especial do professor é, pois, desenvolver, ou antes empregar aquelesmeios que incitem a criança a desenvolver a sua atividade moral e racional.No desempenho de esta função o próprio caráter do professor é um elemen-to de importância maior do que a sua instrução, conquanto com instruçãodeficiente nenhum professor pode ser bem-sucedido. Nas ocupações mecâ-nicas é possível separar o trabalhador de sua obra, nas profissões espiritu-ais isso é impossível. E em nenhum há maior ou mais perfeita intimidade e

Page 133: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

133

contato entre o agente e o objeto sobre que atua, do que no caso do mestre-escola. Ele ensina não somente com o que diz e faz, como também pelainfluência tácita e involuntária de toda a sua individualidade. Quer queira,quer não, no fim de certo tempo o seu caráter há de moldar o caráter de seusdiscípulos (REVISTA PEDAGÓGICA, 1896, no.48, p.270-1).

As novas representações de mestre/a como imagem ideal coincidiram com omomento no qual algumas virtudes como a moral, a obediência, o carinho, oamor e a vocação passaram a integrar, como qualidades necessárias, o trabalhodocente. Por outro lado, a proximidade entre o ato educativo e o ato da catequese,entre a figura do missionário e a de mestre/a, levou a sociedade do final do séculoXIX a não definir as fronteiras de tais atividades e de seus profissionais. Tanto umcomo outro receberam da sociedade a nobre missão de educar, iluminar as men-tes com a luz da verdade e moldar as vontades com amor e virtude.

Além desse aspecto, a tendência foi o rechaço das práticas que não considera-vam os diferentes processos de aprendizagem das crianças. Através da identifi-cação dos estágios e das características próprias do desenvolvimento infantil seconstatou a necessidade de que os mestres e mestras tivessem formação pedagó-gica específica nas escolas normais. Elas foram fundamentais para propagar asnormas da (nova) conduta pedagógica, ou seja, atender às diferentes etapas dodesenvolvimento humano. Aliás, como menciona Hamilton (1989), o conhecimen-to das etapas de desenvolvimento humano permitiu o processo de organizaçãoescolar por classes, inclusive com a utilização do método simultâneo11.

Tendo em conta esses aspectos, a escola deveria considerar tanto a gradação dosconhecimentos em seu currículo, como a utilização de métodos diferenciados ade-quados à idade, sexo e capacidade individual de aprendizagem. Acerca disso, eiso que diz este trecho:

A preocupação da escola hodierna não deve ser esse dogmatismo vetustoe gasto, atrofiador das inteligências juvenis; mas o desempenho da melhoradaptação de meios adequados ao desenvolvimento gradual e harmônicoda criança, debaixo do tríplice ponto de vista físico, intelectual e moral (RE-VISTA PEDAGÓGICA, 1896, no. 47, p.50)

Semelhante argumento encontra-se em outro fascículo, quando outro autor men-ciona a necessidade de utilização de métodos de ensino que considerassem asdiferenças entre os alunos e alunas. Com efeito, alguns autores buscavam, com

11 Segundo Faria Filho (2000, p.142), a introdução do método simultâneo ocorreu no Brasil na últimadécada do século XIX. Ele permitia uma maior homogeneização da classe, racionalização do tempo eorganização do conteúdo, por exemplo. Através da utilização de um método de ensino destinado a umnúmero maior de meninos e meninas, a presença de um mestre/a se tornou imprescindível.

Aprendendo a ser professor(a) através da Revista Pedagógica (1890-1896)DURÃES, Sarah Jane

Page 134: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

134

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

argumentos a favor da validade dos métodos de ensino então utilizados na Europa,defender os usos deles no Brasil, como se vê nesta passagem:

Esses preceitos pedagógicos, quer na sua generalidade, quer na sua pecu-liaridade a casos particulares, têm porem os limites que lhes impõe a relativi-dade da própria prática da educação. E ainda aqui a pedagogia assemelha-se a medicina, que para agir com proveito precisa considerar o temperamen-to, as idiosincrasias especiais de cada doente. O mesmo na tarefa da educa-ção. Os preceitos mais bem assentes da Pedagogia não podem ter igualaplicação a todos os alunos de uma classe. Há diferenças de idade, de raça,a que o mestre cumpre atender, quer quando propriamente ensina e instrui,quer quando, elevando a sua missão e o seu papel, visa também educar(REVISTA PEDAGÓGICA, 1896, no. 48, p. 205).

Ademais, na Revista Pedagógica havia seções e/ou capítulos que mencionavam aimportância do conhecimento de teorias pedagógicas e faziam frequente mençãoa autores franceses, ingleses, alemães ou suíços. Entre eles, os mais citados eramHerbert Spencer, Augusto Comte, Dinter, Froebel e Pestalozzi. O parágrafo abai-xo, do artigo intitulado Pedagogia, mostra a influência que essas teorias e ospedagogos exerciam na Europa e a necessidade de os mestres brasileiros reco-nhecerem a importância desses ensinamentos.

Assim pensaram todos os grandes reformadores: - Pombal, quando melho-rava o ensino de Portugal; Maria Thereza, que declarou a escola – umaquestão de estado; Pestallozzi, o imortal pedagogista, que fazia consistirtodo o seu sistema de aperfeiçoamento da alma pela brandura, pela moral epelo exemplo, e Froebel, meigo e carinhoso Froebel, o eminente discípulo domesmo Pestallozzi, o fundador dos Jardins de Infância, apostolo do bem edo amor, o grande educador que tinha no olhar a expressão suave e melan-cólica que devera ter o Nazareno quando um dia chamou a si os pequeninos,tão amorável e tão cheio de seduções para as crianças, os – pequenoshomens – que, como um enxame, o cercam, o aplaudem e o amam através detodas as idades (REVISTA PEDAGÓGICA, 1896, no. 48, p.102)

Especificamente com relação ao Brasil da segunda metade do século XIX, KulmannJunior (2000, p. 475-6, grifos do autor) diz que foram as instituições de ensino eaquelas que realizavam atividades semelhantes, como creches e jardins de infân-cia, que cumpriram “[...] um papel de moralização da cultura infantil, na pers-pectiva de educar para o controle da vida social [...]”. Com a instauração daRepública, deram entrada no magistério público novos atores sociais e novos pro-blemas afloraram. E, então, o processo de discussão sobre a educação infantil foiintensificado (WARDE, 1999; KULMANN JUNIOR, 2000).

Além disso, os professores e professoras deviam possuir certos conhecimentossobre o cuidado com a higiene e a saúde. Com a divulgação dos fundamentos da

Page 135: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

135

medicina higienista, a escola primária passou a ser o locus multiplicador de taisprincípios. Dada a importância da higiene no entorno público e privado, observan-do-se as condições do ar e da luz no ambientes tais como ar e luz, e a higiene doscorpos do homem, da mulher e da criança foram introduzidas disciplinas relacio-nadas a esse tema no ensino primário e, consequentemente, nos cursos de forma-ção dos mestres e mestras.

Masculinidades e feminilidades do trabalho docente

A diferenciação entre a docência do professor e a da professora foi outra questãoimportante destacada na Revista Pedagógica. Os textos e manuais de Pedagogiapassaram a propagar um saber pedagógico e um fazer pedagógico cujo obje-tivo era a desvalorização de atributos masculinos e, em oposição, argumentavamque os atributos femininos seriam os que mais convinham às teorias pedagógicasmais atualizadas (SAN ROMÁN, 1998). Nesse contexto, no lugar dos mestressurgiram as mulheres mestras, legitimadas pelo saber científico e por seu título denormalista. Em resumo, nas escolas primárias, ainda que fosse para o desempe-nho de espaços profissionais inferiores, tão-somente havia lugar para as mu-lheres. Estudos têm demonstrado que o trabalho docente, em especial o do ensinoprimário, já foi muito exercido por homens, entretanto, mais precisamente a partirdo século XIX eles têm evadido e, cada vez mais, as mulheres têm ocupado esseespaço. Desde então, a educação tem sido uma profissao feminina e ainda hojetende a ser, basicamente, um trabalho de mulher (ENGUITA,1991;APPLE,1987,1988,1995).

Vale lembrar que há, na literatura educacional, confirmações da ocorrência deprocesso de feminização em certos países, por exemplo, Inglaterra e País deGales, Estados Unidos, Espanha, Portugal e Brasil. Tal processo se manifesta emritmos diferentes e com respectivas peculiaridades, próprias das condições histó-ricas nas quais encontraram-se os países. Quanto ao Brasil, a ocorrência do pro-cesso de feminização do corpo docente pode ser confirmada através de dadosdados estatísticos apresentados por Chamon (1996) e Hypólito (1997), por exem-plo. De fato, esse processo se iniciou nos anos finais do século XIX estendendo-se até a década de 70 do século XX. Todavia, esse processo nao deve ser enten-dido exclusivamente como

Demartini e Antunes (1993), além de demonstrarem como o trabalho docente foi setransformando em trabalho de homens em substituição a atividade exercida pelasmulheres na Província de São Paulo no final do século XIX, constataram a tendên-cia de as mulheres permanecerem dentro da sala. Enquanto isso, os homens tendi-am a ocupar os postos de planejamento, direção e chefia. Nesse sentido, o magisté-rio passou a ser uma carreira para o homem e uma profissão para a mulher.

Aprendendo a ser professor(a) através da Revista Pedagógica (1890-1896)DURÃES, Sarah Jane

Page 136: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

136

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Na visão dessas autoras, as experiências de vida desses professores e professo-ras, decorrentes dos diferentes processos de socialização de cada um deles(as),foram fatores decisivos para a constituição de diferentes expectativas de carrei-ra. Elas partiram do pressuposto de que as condições de gênero demarcaram ocampo de possibilidades de ascensão dentro do magistério.

Quanto à diferenciação entre os sexos dos docentes, a presença do homem “comoprofessor primário dentro da sala de aula representou um curto período de suastrajetórias profissionais: logo depois que iniciaram suas atividades foram promovi-dos a diretores, ou convidados para assumirem cargos técnicos no próprio sistemaeducacional” (DEMARTINI, ANTUNES, 1993, p.9).

Mediante exposto, para entender esse processo é necessário analisar tanto a di-nâmica de classe quanto a de gênero. Aliás, segundo Apple (1995, p.56), “a ativi-dade docente foi progressivamente passando de trabalho de homem a trabalho demulher”, e mais ainda, “é preciso verificar como se deu essa mudança e as con-dições econômicas e de gênero em torno disso”. Em conclusão, a feminização domagistério se consolidou porque os homens o abandonaram em decorrência dasua desvalorização. Na visão do autor “os homens começaram a- e quase sempreconseguiram – procurar trabalho em outro lugar” (op.cit, p.59). O autor em pautaargumentara que, assim como o trabalho docente, outras ocupações passarampor um processo de feminização. Assim, igualmente ao trabalho em escritório,

o magistério era uma ocupação masculina no século XIX e passou a femini-na no século XX. [...] Essa transformação está ligada, de uma forma comple-xa, a alterações nas relações patriarcais e econômicas que vinhamreestruturando a sociedade mais ampla (APPLE,1995,p.56).

Justificando a ocorrência desse processo, Enguita (1991) apresenta quatro moti-vos. Primeiramente porque a carreira do magistério tem sido considerada umaatividade extra-doméstica e representa uma preparação para o exercício damaternidade; desse modo, é uma atividade transitória. Em decorrência, a carreirado magistério tem proporcionado perda de prestígio. Em segundo lugar os baixossalários têm afugentado, progressivamente, os homens que têm procurado outrossetores da economia como: a indústria, o comércio e a administração pública.

Outro aspecto se refere à tentativa de grupos dominantes utilizarem os docentespara transmitirem sua cultura e manter a ordem. Nesse caso, as mulheres sãosocialmente “consideradas como mais conservadoras, menos ativas e mais dis-postas a aceitar a autoridade e a hierarquia que os homens” (ENGUITA, 1991,p.52). Finalmente, a escola pública é um dos poucos setores em que homens emulheres recebem o mesmo salário.

Page 137: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

137

Por outro lado, na escola primária, a atividade docente nem sempre foi considera-da como relacionada com as qualidades femininas. Ao contrário, foi, ao longodo século XIX em que se deu concretamente, a substituição do argumento de queas mulheres seriam mais apropriadas para ocupar determinados postos de traba-lho dentro do magistério (ENGUITA, 1991; APPLE, 1995; SAN ROMÁN, 1998).Alguns chegaram até mesmo a sugerir que isso comprometeria não somente aqualidade do ensino de algumas disciplinas mas também a formação dos alunos(homens).

Tal perspectiva, sugerida numa conferência por um professor, foi publicada emum artigo da Revista Pedagógica. E na visão desse professor, as mulheres nãoseriam muito boas para o ensino de ginástica para os meninos. Seu argumentosugere que esses alunos necessitavam espelhar-se em modelos de homem paraconstruir sua própria masculinidade. Nas suas palavras:

Também não acreditamos no ensino da ginástica aos alunos do sexo mascu-lino nas escolas regidas por senhoras. Entretanto, dizem-nos que a idéiadominante, hoje, entre alguns de nossos estadistas é substituir o homempela mulher na regência da escola primária. E é este um ponto que afetaprofundamente nossa tese.[...]Transformem o espírito varonil do cidadão brasileiro que no dia em que apátria exigir o valor de seus filhos encontrará não os espartanos de outrora,mas os frouxas e efeminados atenienses de nossos dias.[..]Entregar a educação da criança até os 8 anos de idade aos cuidados de umapreceptora inteligente e carinhosa é idéia que aplaudimos com todo entusi-asmo, mas entregar as nossas escolas nas quais se matriculam meninos de05 a 15 anos, e até com 16 e 17, apenas sem a afirmativa do país de que tem14, embora fisicamente muito desenvolvidos... (REVISTA PEDAGÓGICA,no. 96, 1896, p.121-3).

A resistência à presença da mulher como professora de Educação Física pode tercomo justificativas, os princípios higienistas. O homem higiênico estava repre-sentado não somente no adjetivo sadio, mas também nas qualidades viris, queeram amplamente propagadas como ideais. O modelo de masculinidade espelhava-se naqueles que eram cultos, heróicos e guerreiros. Segundo Costa (1979, p.185),esses modelos simbolizavam o valor do cultivo do corpo masculino.

Além desse aspecto, a presença dos homens professores nas escolas dos meni-nos poderia ser de grande importância uma vez que o professor, no século XIX,era tomado como exemplo. Nesse caso, ele poderia ser para os meninos nadamais, nada menos do que aquele que daria o exemplo de masculinidade. E, para aformação dos bons costumes, seria uma maneira de prevenir os comportamentos

Aprendendo a ser professor(a) através da Revista Pedagógica (1890-1896)DURÃES, Sarah Jane

Page 138: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

138

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

homossexuais. O aluno precisaria estabelecer a identidade entre ele e o professorpara construir a referência masculina ideal. Como sugere o artigo da RevistaPedagógica, a ausência do professor do sexo masculino poderia pôr em questão aeducação dos corpos dos meninos.

O artigo acima também evidencia a existência de grande polêmica em torno dapresença ou não do professor do sexo masculino nas escolas primárias. Entretan-to, a respeito desse assunto, algumas perguntas permanecem. Seria necessária,de fato, a presença do professor do sexo masculino na escola primária? Como assuas qualidades masculinas ajudariam a definir as identidades de gênero dos me-ninos? De que forma a presença da mulher professora poderia prejudicar talconstituição?

Ainda que para alguns (e algumas!) fosse temerário que as mulheres ocupassemo magistério, a sociedade foi progressivamente defendendo que a figura femininapossuía as qualidades que as teorias pedagógicas exigiam. Nesse sentido, medi-ante a influência de diferentes teorias psicológicas e pedagógicas, os atributosmasculinos considerados ideais para os mestres foram gradualmente sendo subs-tituídos por atributos femininos. Como evidencia San Román (1998), tais influên-cias foram exercidas pelos pressupostos de Kant quando ele dizia que “[...] laexperiencia maternal convierte a la mujer en idónea para dedicarse a la profesiónde maestra”. Ou, nos dizeres da metodologia froebeliana, como analisa a autoraneste trecho:

Requería de un agente familiarizado con la infancia, y la mujer, por esaexperiencia como madre y en la crianza de los hijos, tan subrayada porCondorcet, había dio generando en el hogar una serie de cualidadesfemeninas, carácter tranquilo, paciente, persuasivo e intuitivo, que no soloresultaban completamente coherentes con los principios metodológicamentepropuestos, sino que le hacían candidata insustituible para ocupar el sillónde la enseñanza [...] (SAN ROMÁN, 1998, p.185).

Nesse sentido, pautando-se pelos textos e manuais de Pedagogia, as escolas nor-mais representaram uma das mais significativas estâncias ao substituir os atribu-tos docentes (masculinos) de força, objetividade, vigor e severidade, existen-tes até então, por qualidades mais próximas dos atributos femininos. Dessa ma-neira, no ritual escolar, já não existia lugar para a severidade e para a figura sisudado mestre do sexo masculino. Ante o novo projeto pedagógico, entre outros as-pectos, era necessária a docilidade do mestre, porque também não havia lugarpara os castigos e maus tratos dos alunos e alunas.

Page 139: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

139

Considerações finais

A análise da Revista Pedagógica, de suas seções e do conteúdo de seus artigosrevelou a tendência de fazer circular diferentes teorias estrangeiras. Além disso,quanto às temáticas presentes, também foi possível identificar o discurso em de-fesa da necessidade de organizar uma rede de instrução, de instituir um modelo demestre/a para as escolas primárias, de uniformizar os conhecimentos e práticasde ensino. Também a polêmica com relação à educação das mulheres e suaspossibilidades de atuação no magistério ocupou páginas da revista.

Fato é que a Revista Pedagógica ao circular pressupostos de diferentes teoriasproduzidas na Europa, sobretudo advindas da Pedagogia e da Psicologia, contri-buiu para a (re)definição de representações docentes para a escola primária bra-sileira. Alguns conteúdos dos artigos sugerem às escolas reproduzirem teoriaspedagógicas já comprovadas em países europeus. Talvez essa recomendaçãotenha sido um dos grandes problemas daquele momento histórico, isto é, a distân-cia entre as teorias, a legislação e as diferentes realidades educativas do Brasil.

Quanto às qualidades ideais do professor, eram mencionadas, na revista, de ma-neira geral. Todavia, dependendo de determinadas disciplinas e/ou práticas esco-lares, algumas vezes, era apresentado, em determinados artigos, o reforço a atri-butos diferentes com relação a professores do sexo masculino ou feminino.

Fonte

No Arquivo Público Mineiro: REVISTA PEDAGÓGICA. (1891-1896). Rio deJaneiro: Alves e Cia, 1891-1896.

Referências

APPLE, Michael; CHRISTIAN-SMITH, Linda. The politics of the textbook. In:APPLE, Michael; CHRISTIAN-SMITH, Linda (Eds.). The politics of thetextbook. London: Routledge, 1991. p.1-21.

______. Trabalho docente e textos: economia política das relações de classe ede gênero em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.

ARROYO, Miguel, Mestre, educador, trabalhador - organização do trabalho eprofissionalização. Tese de Professor Titular. Faculdade de Educação da Univer-sidade Federal de Minas Gerais, 1985.

Aprendendo a ser professor(a) através da Revista Pedagógica (1890-1896)DURÃES, Sarah Jane

Page 140: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

140

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

AZEVEDO, Fernando de. A cultura brasileira. 6. ed. Rio de Janeiro: UFRJ,1996.

CARVALHO, M. M. C. Manuais escolares: reforma educacional e usos pedagó-gicos do impresso: algumas questões historiográficas. In: SEGUNDO SEMINARIOINTERNACIONAL: TEXTOS ESCOLARES EN IBEROAMÉRICA, Avataresdel pasado y tendencias actuales, Quilmes, Universidad Nacional de Quilmes,1997.

CATANI, Denice Bárbara. Estudos da história da profissão docente. In: LOPES,Eliane Marta Teixeira; FARIA FILHO Luciano; VEIGA, Cynthia Greive (Orgs).500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 585-599.

CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre Práticas e Representações. Riode Janeiro: Bertrand, 1990.

______. O mundo como representação. Estudos Avançados, vol.5, no.11, SãoPaulo Jan./Apr. 1991. pp.172-191. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40141991000100010&script=sci_arttext>, acesso em 25mar. 2013

COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Edi-ções Graal, 1979.

DELGADO CRIADO, B. Los libros de texto como fuente para la Historia de laEducación. Historia de la Educación, 2, 1983, p. 353-358.

DEMARTINI, Zeila, ANTUNES, Fátima. Magistério primário: profissão femini-na, carreira masculina. Caderno de Pesquisa. Nº 86. São Paulo: Fundação CarlosChagas, ago., 1993. p.5-14.

DURÃES, Sarah Jane Alves. Escolarização das diferenças: qualificação dotrabalho docente e gênero em Minas Gerais (1860-1905). Tese de Doutorado.Programa de Pós-Graduação em Educação: História, Política e Sociedade daPontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2002.

ENGUITA, Mariano. A ambigüidade da docência: entre o profissionalismo e aproletarização. Teoria e Educação, Porto Alegre, Pannonica, n. 4, 1991. p.41-61.

FARIA FILHO, Luciano, (2000). Instrução elementar no século XIX. In: LOPES,

Page 141: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

141

Eliane Marta Teixeira; FARIA FILHO, Luciano; VEIGA, Cynthia Greive. (Orgs).500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, p. 135-150.

______ et Alii. A história da feminização no Brasil: balanço e perspectivas depesquisa. In: PEIXOTO, Ana Maria Casasanta; PASSOS, Mauro (Orgs.). A es-cola e seus autores – educação e profissão docente. Belo Horizonte: Autêntica,2005. p.53-88.

GÉRARD, Francois-Marie; ROEGIERS, Xavier. Conceber e avaliar manuaisescolares. Porto: Porto Editora, 1998..

GONDRA, José Gonçalves, O veículo de circulação da pedagogia oficial da Re-pública: a Revista pedagógica. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos.Brasília, v. 78. n.188/189/190, jan-dez, 1997. p.374-395.

______. Entre os frutos e o arvoredo. A docência no projeto educacional republi-cano (1890-1896). In: 1º SEMINÁRIO DOCÊNCIA, MEMÓRIA E GÊNERO.São Paulo: Feusp/Plêiade, 1997. p.27-40.

GUEREÑA, Jean-Louis; OSSENBACH, Gabriela; DEL POZO, María del Mar.Manuales escolares en España, Portugal y América Latina; líneas actuales deinvestigación. In: Manuales escolares en España, Portugal y América Latina.Madrid: Uned, 2005. p.17-41.

HAMILTON, David. Towards of theory of schooling. Philadelphia: The FalmerPress, 1989.

KUHLMANN JUNIOR, Moyses. Educando a infância brasileira. In: LOPES,Eliane Marta Teixeira; FARIA FILHO, Luciano; VEIGA, Cynthia Greive. (Orgs).500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p.469-495.

MARIN ECED, Teresa. Manuales escolares y poder político (1934/1939). Bordón,Madrid, v. 53, n. 3,2001. pp.395-408.

PUELLES BENÍTEZ, Manuel de. Los manuales escolares: un nuevo campo deconocimiento. Historia de la Educación. Salamanca, Ediciones Universidad, n.19,2000. pp.52-75

RABAZAS ROMERO, Teresa. Los manuales de pedagogía y la formacióndel profesorado en las escuelas Normales de España (1839-1901). Madrid:Universidad Nacional de Educación a Distancia, 2001.

Aprendendo a ser professor(a) através da Revista Pedagógica (1890-1896)DURÃES, Sarah Jane

Page 142: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

142

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

______. Modelos de mujer sugeridos a las maestras en el franquismo. Bordón,Madrid, v. 53, n.3, 2001. p. 423-442.

SAN ROMÁN, Sonsoles. Las primeras maestras – los orígenes del proceso defeminización en España. Barcelona: Editorial Ariel, 1998.

SOUZA, Rosa Fátima de. Templos de civilização: a implantação da escola pri-mária graduada no Estado de São Paulo (1890-1910). São Paulo: UNESP, 1998.

VEGA GIL, L. Las corrientes pedagógicas europeas a la luz del movimientonormalista español del s. XIX. Historia de la Educación, 4, 1985. p.119-138.

VILLELA, Heloisa. O mestre-escola e a professora. In: LOPES, Eliane MartaTeixeira; FARIA FILHO, Luciano; VEIGA, Cynthia Greive (Orgs). 500 anos deeducação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000, p.95-150.

WARDE, Mírian Jorge. Por uma história disciplinar: psicologia, criança e pedago-gia. In: FREITAS, Marcos Cezar (Org.). História social da infância no Brasil.2.ed. São Paulo: Cortez, 1999. p.289-310.

Page 143: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

143

Resumo: Neste trabalho pretendemos analisar o processo de reconhecimento,construção de saber e adaptação dos colonizadores lusos na América Portuguesaquinhentista. Desta forma, privilegiaremos os aspectos ligados à sobrevivência esubsistência, assim como as técnicas desenvolvidas por estes no que se refere àobtenção e conservação de fontes de alimentos nos trópicos. Abordaremos, as-sim, questões relativas às dificuldades de introdução de espécies de animais nati-vos da Europa, pelos colonizadores portugueses. Neste sentido, analisaremos osprocessos de adaptação destes animais no que se refere ao clima e a nova ali-mentação na colônia, bem como a busca por alimentos que podiam ser obtidos namesma. Para isso, utilizamos os relatos feitos por viajantes, cronistas e explorado-res do Novo Mundo que contém descrições de espécies de animais dos trópicos.Para compreendermos as dificuldades relativas à adaptação ao novo ambiente,utilizaremos bibliografia que desenvolve análise a partir de um viés biológico/geo-

DE TATUS MOQUEADOS E PORCOS FUMADOS:CAÇA E CRIAÇÃO DE MAMÍFEROS NA AMÉRICA

PORTUGUESA QUINHENTIST A

Christian Fausto Moraes dos Santos*

Gisele Cristina da Conceição**

Fabiano Bracht***

* Pós-doutor em História Social da Cultura pela UFMG e doutor em História das Ciências e da Saúde pelaFundação Oswaldo Cruz. Atualmente é professor não titular da Universidade Estadual de Maringá ecoordenador do Laboratório de História, Ciências e Ambiente.

** Doutoranda em História pela Universidade do Porto/Portugal, com bolsa de Doutorado Pleno noexterior da CAPES. Mestre em História pela Universidade Estadual de Maringá com financiamento apesquisa pela Coordenação de Pessoal de Nível Superior. É graduada em História pela mesma institui-ção (UEM). Membro pesquisadora do Laboratório de Pesquisa em História, Ciências e Ambiente(LHC).

*** Doutorando em História pela Universidade do Porto/Portugal, com bolsa de Doutorado Pleno noexterior da CAPES. Mestre em História pela Universidade Estadual de Maringá com financiamento apesquisa pela Coordenação de Pessoal de Nível Superior. Membro pesquisador do Laboratório dePesquisa em História, Ciências e Ambiente (LHC).

Page 144: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

144

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

gráfico, com as obras de Jared Diamond, Alfred Crosby, Keith Thomas, WarrenDean, e outros que podem corroborar no entendimento dos fatores que dificulta-ram a introdução imediata de espécies de animais europeus.

Palavras-chave: América Portuguesa; história das ciências; alimentação; Sécu-lo XVI.

Abstract: In this work we intend to analyze the process of recognition, buildingknowledge and adaptation of the Lusitanian colonizers in sixteenth-centuryPortuguese America. Thus, the aspects will privilege survival and maintenance,as well as the techniques developed by these in relation to acquisition andmaintenance of food sources in the tropics. We will address, so questions concerningthe difficulties of introducing animal species native to Europe by Portuguesecolonizers. In this sense, analyze the adaptation processes of the animals in relationto the new weather and food in the colony and the search for foods that could beobtained in the same. We utilize the accounts given by travelers, chroniclers andexplorers of the New World which contains descriptions of species of animals inthe tropics. To understand the difficulties in adapting to the new environment, weuse the literature review that develops from a bias biological / geographical, withthe works of Jared Diamond, Alfred Crosby, Keith Thomas, Warren Dean, andothers who can corroborate the understanding of the factors hampered theimmediate introduction of species of European animals.

Keywords: Portuguese America; history of science; food; sixteenth century.

Resumen: En este trabajo nos proponemos analizar el proceso de reconocimiento, la construcción de conocimientos y la adaptación de los colonos portugueses enAmérica lusos XVI . Por lo tanto , nos concentraremos en los aspectos relacionadoscon la supervivencia y el mantenimiento , así como las técnicas desarrolladas poréstos en relación con la obtención y conservación de las fuentes de alimentos en lostrópicos. Comente , por lo que las cuestiones relativas a las dificultades de laintroducción de especies animales nativas a Europa por los colonizadores portugue-ses. En este sentido, el análisis de los procesos de adaptación de los animales enrelación con el clima y el nuevo poder en la colonia , así como la búsqueda dealimentos que se podrían obtener en el mismo. Para ello, se utilizan los relatos deviajeros, cronistas y exploradores del Nuevo Mundo, que contiene descripciones delas especies animales en las zonas tropicales . Para comprender las dificultadespara adaptarse al nuevo entorno , utilizamos revisión de la literatura que se desarrollaa partir de un sesgo biológica / geográfica, con la obra de Jared Diamond, AlfredCrosby , Keith Thomas , Warren Dean , y otros que pueden corroborar la comprensiónde los factores obstaculizado la introducción inmediata de especies animales europeas.

Palabras clave: La América portuguesa, Historia de la Ciencia, la Alimentación,del siglo XVI.

Page 145: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

145

Introdução

A história da alimentação pode esclarecer vários aspectos do cotidiano de umacivilização, seja no âmbito político, econômico ou social. Os hábitos alimentares eas tradições relacionadas à alimentação mudaram junto com a evolução das soci-edades humanas (MENEZES; CARNEIRO, 1997). De ração diária, passou a tercaracterísticas restauradoras da saúde, chegando aos dias atuais como uma culi-nária cheia de requintes. Ao longo da história dos alimentos, observamos proibi-ções a certas carnes, peixes e condimentos, que estavam relacionados à sexuali-dade, ou então recaiam sobre o julgo das leis clericais (FLANDRIN;MONTANARI, 1998). Comer bem sempre foi sinônimo de riqueza, oferecer aosconvidados determinados tipos de pratos significava, acima de tudo, boas manei-ras e apreço, enquanto que a falta de alimentos, ou não ter à mesa um bom bife,poderia indicar pobreza.

Há registros de tratados de cozinha e ou compilações de receitas culinárias desdeo século XIV, que traziam informações de caráter técnico como cortes de carne,preparo de pratos com aves com ilustrações, demonstrando os locais onde deve-riam fazer os cortes, assim como receitas de pratos restauradores e também dealguns doces. Estes tratados ou livros sobre a arte de cozinhar foram escritos emgrande parte por pessoas não profissionais, e também por médicos e chefes decozinha. Isso demonstra que o interesse pela alimentação norteou boa parte docotidiano dos europeus a partir do século XIII até os séculos XVII, XVIII e XIX,mesmo que os motivos para isso tenham sido estimulados pela glutoneria. A partirdo século XVI, com a era dos descobrimentos, até o século XVIII, percebe-se“claramente a liberação desta glutoneria” por alimentos, uma vez que os relatosde viagem demonstram a preocupação em obter fontes de proteína e gorduraanimal para o próprio mantenimento dos navegantes, e também o impulso sobreas redes de comércios das especiarias (FLANDRIN; MONTANARI, 1998, p.532-557).

Os homens renascentistas e aqueles anteriores a eles possuíam uma percepçãoda natureza repleta de sentimentalismo e, em certa medida, antropocêntrica. Aolongo da era Moderna ocorreram diversas mudanças relacionadas à maneira comoos homens observavam a natureza e compreendia sua interação com os animais,plantas e a paisagem que o rodeava. A partir do século XVI, observou-se que arelação entre o Homem e o Mundo Natural começou a se transformar. Os ani-mais passaram a ser classificados e considerados primeiramente como fontes dealimentos, perdendo características sentimentalistas (THOMAS, 2010). Um bomexemplo desta mudança, podemos verificar nas descrições do explorador portu-guês Gabriel Soares de Sousa (1587), onde o sentido útil (do ponto de vista ali-mentar) designado aos animais aparece constantemente, isto demonstra que o

De tatus moqueados e porcos fumadosCONCEIÇÃO, Gisele Cristina da; SANTOS, Christian Fausto Moraes dos; BRACHT, Fabiano

Page 146: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

146

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

contato com a fauna e flora do Novo Mundo e as dificuldades iniciais com aobtenção de alimentos fez com que os primeiros exploradores abandonassem dealgum modo o romantismo e percebessem que o conhecimento acerca do mundonatural era primordial naquele momento.

Para os homens daquele período, a dominação em relação aos animais era impor-tante, pois demonstrava racionalidade, assim como servia de justificativa para acaça, para a domesticação, para o hábito de comer carne, para o extermínio depredadores e animais nocivos, assim como a qualquer operação feita em animalvivo com o objetivo de realizar estudo ou experimentação (THOMAS, 2010, p.55-56). A dominação sobre os animais e o conhecimento das espécies eramfatores de extrema importância para a própria sobrevivência do homem. As ques-tões relacionadas ao estudo da natureza estavam em foco ao longo dos séculosXV e XVI na Europa. Quando os portugueses e espanhóis deram inicio as Gran-des Navegações, entrando em contato com novos povos e com novos ambientes,ficou claro que a diversidade de espécies era muito maior e muito mais complexado que os pensadores do Velho Mundo podiam supor. Diante disso, analisar asdescrições feitas pelos primeiros moradores do Novo Mundo pode nos auxiliar,também, na compressão da Filosofia Natural do século XVI. Imagine a reação deum viajante setecentista ao se deparar com um Cateto (Tayassu tajacu), comuma Queixada (Tayassu pecari), ou com um Tatu (Dasypodidae)! Neste senti-do, verificar o estranhamento e as tentativas de classificação dos animais en-contrados no Novo Mundo pode demonstrar esta busca para compreender o MundoNatural dos trópicos.

A partir da empreitada portuguesa rumo às terras desconhecidas, um leque deoportunidades abriu-se no que se refere aos alimentos. Sem contarmos com aprincipal expansão alimentar que se deu com as especiarias do oriente, temosuma gama de relatos dos primeiros colonizadores do Novo Mundo, descrevendocom profusão de detalhes os animais que encontravam nos trópicos. Do ponto devista dos hábitos alimentares europeus, e durante a era dos descobrimentos, aalimentação no Velho Mundo não se modificou, ou seja, os animais, plantas efrutos encontrados no Novo Mundo não foram introduzidos na dieta alimentareuropeia. O que podemos observar é a expansão dos temperos das índias e algu-mas especiarias americanas, como os pimentos. Este quadro começou a se trans-formar nos séculos XIX e XX, quando a alimentação no Velho Mundo começou areceber fortes influências dos elementos encontrados nos trópicos (FLANDRIN;MONTANARI, 1998, p. 532). Contudo, para os europeus, que estavam desbra-vando o continente americano, a sua rotina alimentar mudou radicalmente, pelomenos nos primeiros tempos do século XVI.

Page 147: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

147

Então, ao voltarmos nossa atenção para os hábitos alimentares destes europeusque colonizaram a América portuguesa, principalmente ao longo do século XVI,podemos encontrar algumas respostas para fatos ocorridos ao longo do processocolonizatório do que hoje conhecemos como Brasil, como por exemplo, a tentativade introdução, quase que imediata, de espécies de porcos (Javali), galinhas, ca-bras, vacas e outros bichos. Abordaremos ao longo deste texto, os motivos quelevaram os primeiros desbravadores portugueses a trazer, nas naus, certasespécies de animais na tentativa inicial de alimentar-se, mas também com o intuitode transpor e adaptar estes animais para a colônia.

Europeizando os trópicos

O porco europeu (Sus Scrofa) provavelmente esteve presente em muitas dasembarcações que cruzaram o Atlântico no século XVI. A partir de Portugal, osporcos domésticos foram introduzidos em muitos dos lugares em que os portugue-ses aportavam. Assim, uma grande distribuição da espécie foi feita consciente-mente, com o objetivo de deixar para os futuros colonizadores recursos para quepudessem se alimentar por algum tempo (CROSBY, 2011, p. 182-183-185). Quandoanalisamos as tentativas iniciais de introdução de animais oriundos da Europa naAmérica portuguesa verificamos que os colonizadores se depararam com algunsobstáculos referentes à adaptação daqueles animais ao clima e a nova alimenta-ção. Com o porco não foi diferente, mesmo sendo este um animal dotado deversatilidade para consumir diferentes fontes de proteínas e carboidratos concen-trados, incluindo alguns moluscos1 (CROSBY, 2011, p. 183) e frutos como casta-nhas. Na América Portuguesa o Sus Scrofa não suportou, de início, as altas tem-peraturas tropicais, e também encontrou algumas dificuldades para adaptar-se anova alimentação.

A importância deste animal para a fixação e conservação dos europeus na novacolônia era primordial, uma vez que a introdução de espécies provenientes dabiota européia facilitaria e viabilizaria a lavoura, mesmo em curto prazo, assimcomo supriria os habitantes da colônia de fontes de proteína, sem com isso neces-sitar de mão-de-obra excedente (DEAN, 2010).

Outro fator relevante para compreendermos a importância da introdução e adap-tação dos suínos na América Portuguesa esta relacionada com a dificuldade que

1 Alfred Crosby, em O imperialismo Ecológico, relata que na região da Nova Inglaterra existem registrosde porcos introduzidos pelos colonizadores, que se adaptaram nas regiões litorâneas passando a fossarem busca de moluscos. Na maré baixa sempre encontravam tais fontes de proteína (CROSBY, 2011, p.183).

De tatus moqueados e porcos fumadosCONCEIÇÃO, Gisele Cristina da; SANTOS, Christian Fausto Moraes dos; BRACHT, Fabiano

Page 148: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

148

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

os europeus enfrentaram ao tentar introduzir espécies de gado bovino nos trópi-cos. O gado levou gerações para se ajustar ao clima e a alimentação do continen-te americano, afinal, o clima ao qual estavam habituados, na Península Ibérica,tem por característica “invernos amenos e úmidos e verões longos, quentes esecos” (DIAMOND, 2008, p. 136). Em vista dessas dificuldades iniciais, os por-cos domésticos e o gado bovino nos trópicos, ao contrário do que ocorreu nasplanícies temperadas da região platina, levaram algumas gerações para se adap-tarem e se tornarem asselvajados2, dificultando o controle, e claro, o consumo dacarne, do couro e dos derivados de leite tão importantes para a subsistência hu-mana (CROSBY, 2011).

Diante dessas dificuldades iniciais relativas à introdução de animais vindos daEuropa, tornou-se primordial conhecer e reconhecer as espécies nativas da Amé-rica nos primeiros anos do processo de colonização da América Portuguesa. As-sim, a partir da análise das descrições feitas pelos primeiros colonizadores, via-gens, cronistas e senhores de engenho, como Gabriel Soares de Sousa, FernãoCardim, Hanz Staden, Pero de Magalhães Gandavo, Azpilcueta Navarro, Jean deLéry, André Thevet e outros, é possível verificar o quanto foi importante o reco-nhecimento de espécies nativas dos trópicos para o processo de fixação desseseuropeus no Novo Mundo.

Dentre a gama de relatos sobre os animais encontrados na América, notamos apreocupação e a constante busca por características similares entre as espécieseuropeias e as nativas do Novo Mundo. Tal fato se deu, enquanto fator determinanteno processo de reconhecimento do mundo natural, aos quais os exploradores es-tavam sendo submetidos. Afinal, ao atravessar o Atlântico no sentido Leste-Oes-te, mas também no sentido Norte-Sul, os europeus cruzaram uma barreira climá-tica e biogeográfica (DIAMOND, 2008), que em muito dificultou na transposiçãodos animais e plantas vindas do Velho Mundo, assim como, na própria adaptaçãodestes colonizadores ao novo ambiente. Ao se depararem com tal diversidade,logo perceberam que tal empreitada, rumo a lugares então desconhecidos, seriacomplexa e laboriosa.

É interessante notarmos as descrições feitas por cronistas, viajantes e senhoresde engenho, quando estes descrevem e catalogam as espécies de animais ter-restres dos trópicos. Hanz Staden descreve o porco nativo da América,

2 O gado introduzido na América pelos colonizadores europeus tornou-se selvagem ainda no século XVIe também ao longo do século XVII. O mesmo aconteceu com os porcos, que se tornaram esguios,rápidos e agressivos (CROSBY, 2011, p. 188). Isso demonstra as dificuldades enfrentadas pelos colo-nizadores quanto à introdução de espécies européias, e que a busca por alimentos nativos da Américaportuguesa era fator primordial para aqueles homens.

Page 149: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

149

enfatizando as características do animal que são semelhantes às daquele jáconhecido na Europa, na tentativa de alocar o animal dentro de seu universofilosófico natural. Assim ele diz que: “[...] uma (espécie) se parece com o porcoselvagem daqui (neste momento Hans Staden está escrevendo na Europa), e aoutra é pequena, parecendo-se com porquinhos novos [...]” (STADEN, 1557, p.189). Ao comparar o porco do mato, com o porco selvagem europeu, ele procu-ra estabelecer características analógicas (FOUCAULT, 2000), que naquelemomento era a melhor ferramenta para compreender e classificar o MundoNatural tropical.

O sistema classificatório desenvolvido pelos homens do século XVI que habita-ram ou passaram pela colônia era, em certos aspectos, novo. Eles organizaram omundo ao seu redor a partir de categorias comuns as que já conheciam, tendo,primeiramente, um propósito objetivo, pois primeiro classificavam os animais se-gundo princípios úteis, através de sua estrutura anatômica, habitat e modo dereprodução. Contudo, era preciso saber qual era a utilidade do animal para ohomem, se possuía valores alimentares, depois se havia alguma propriedade me-dicinal (THOMAS, 2010). Quando analisamos as descrições de animais do NovoMundo, percebemos que estes princípios foram utilizados pelos cronistas e viajan-tes.

Além desta burca por princípios úteis, existiu também a busca por sabores, afinalexistem muitas descrições de exploradores, colonizadores e viajantes do séculoXVI que enfatizam o fato de os alimentos encontrados no Novo Mundo serem tãoou mais saborosos que aqueles que tinham na Europa. Isso fica claro na descriçãode Gabriel Soares de Sousa (1587), quando este relata que “[...] a carne dosporcos é muito sadia e saborosa [...]” (SOUSA, 1971, p. 165), e também “[...] acarne é toda magra, mas saborosa e carregada para quem não tem boa disposição[...]” (SOUSA, p. 249). O cotidiano desses exploradores estava, naquele mo-mento, sob o predomínio da busca por fontes de proteína e gordura animal quepudessem lhes suprir uma necessidade alimentar básica e diária. Os descobri-mentos ampliaram a visão dos homens do século XVI em relação ao mundo natu-ral. Tudo era novo, diferente e a partir das diferenças e das semelhanças começa-ram a observar e classificar o mundo ao seu redor, iniciando assim uma novaciência sobre o mundo natural (ASSUNÇÃO, 2001, p. 109-111).

A rotina dos exploradores portugueses na busca por alimentos pode ser conside-rada como fator determinante para o desenvolvimento de técnicas para obter eprocessar alimentos no Novo Mundo. Para isso, esses observadores do mundonatural seiscentista, utilizavam todo o conhecimento que possuíam sobre animaiseuropeus, tentando encaixar tal percepção aos bichos que estavam encontrandona América. Esse tipo de classificação baseadas nas características provenientes

De tatus moqueados e porcos fumadosCONCEIÇÃO, Gisele Cristina da; SANTOS, Christian Fausto Moraes dos; BRACHT, Fabiano

Page 150: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

150

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

de animais europeus, ficam claras quando analisamos a descrição feita por AndréThevet em 1590 da Cotia:

[...] grande como um lebrão, que tem o pelo duro eriçado como o do javali,a cabeça como a de uma ratazana, as orelhas e a boca semelhantes às dalebre, e uma cauda de apenas uma polegada de comprimento. Seu dorso éinteiramente glabro da cabeça à cauda, e suas patas fendidas como as doporco (THEVET, p. 112, 1978, grifos nossos).

Nota-se que Thevet faz relação com quatro animais nativos de regiões européias,o javali (S. domesticus), a ratazana (Rattus norvegicus), a lebre (Leporidae) eo porco (S. scrofa) (é muito provável que este seja o porco europeu). O mundonatural do Novo Mundo se mostrou para os primeiros exploradores um ambienteinóspito, desconhecido, assim era primordial para aqueles homens a observação ea classificação daquele espaço, tanto no que refere aos animais terrestres e aqu-áticos, como também, as plantas. Neste sentido, os povos nativos na AméricaPortuguesa tiveram um papel importante, pois conheciam todo o ambiente. Den-tre os animais terrestres nativos da América, o Tayassu pecari também conheci-do como Queixada, teve um papel relevante no processo de fixação dos europeusno litoral. Mesmo com grande abundância de frutos do mar, os portugueses esta-vam habituados a consumir carne de suínos, e como a introdução do porco euro-peu (Sus Scrofa) não se deu de forma rápida e fácil, assim, encontrar umaespécie nativa americana com características semelhantes às europeias(GONELA, 2003) foi estrategicamente importante do ponto de vista alimentar,afinal o porco pode ser considerado como uma importante fonte alimentar.

Isso pode ser observado quando analisamos as diversas passagens do Tratadoescrito por Gabriel Soares de Sousa, em 1587, onde ele citou espécies de porcosda América tropical; em uma delas afirma que:

[...] os leitões são muito tenros e saborosos [...] A carne dos porcos é muitosadia e saborosa [...] e come-se todo o ano por em nenhum tempo ser preju-dicial, mas não fazem os toucinhos tão gordos como em Portugal, salvo osque se criam nas capitanias de São Vicente e nas do Rio de Janeiro (SOUSA,1971, p. 165).

Com uma rotina exaustiva, encontrar uma fonte de gordura e proteína de origemanimal, e que possuía características referentes ao gosto próximas às das espéci-es nativas européias, foi primordial para a sobrevivência dos exploradores nosprimórdios da colonização. Tão interessante quanto perceber as semelhanças, énotar que o viajante e senhor de engenho também notou as diferenças entre asespécies, e tentou compreende-las. Hoje sabemos que o Tayassu Pecari possuiuma glândula que fica em seu dorso, esta exala um cheiro que serve para que os

Page 151: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

151

porcos marquem seu território e reconheçam-se entre si (GONELA, apud, 2003,p. 9). Logo, Gabriel Soares de Sousa notou a presença desta glândula e a descre-veu como sendo um umbigo nas costas. Também notamos que Pero de Maga-lhães Gandavo e Fernão Cardim fizeram menção a este fato. Nos relatos feitospor estre três exploradores, percebemos a tentativa de identificar o motivo peloqual este animal possuía um “umbigo” que exalava mau cheiro: [...] tem o embigonas costas e por ele lhe saem um cheiro, como de raposinhos, e por este cheironos seguem os cães e são tomados facilmente [...] (CARDIM, 1980, p. 26, grifonosso).

No relato de Fernão Cardim verificamos a constatação da glândula de cheiro quefacilitava a caça desses animais, uma vez que os mesmos deixavam um odor fortepor onde passavam. Gandavo também relata a presença de glândulas de cheironos porcos selvagens da América Portuguesa: [...] Uns pequenos na terra quetem as cerdas mui grossas, ásperas e crespas; estes tem o umbigo nas costas[...] (GANDAVO, 1963, p.85, grifo nosso). Ao tentar descrever os porcos domato, Pero de Magalhães Gandavo percebe o “umbigo” no dorso dos animais; omesmo o faz Gabriel Soares de Sousa:

Tajaçueté é outra casta de porcos monteses que são maiores que os de quefica dito e tem toucinho como os monteses da Espanha, e grandes presas eo umbigo nas costas [...]. A estes porcos cheira o embigo muito mal; e se,quando os matam, lhos não cortam logo, cheira-lhes a carne muito ao mato;e se lhos cortam é muito saborosa. (SOUSA, 1971, p. 249, grifos nossos).

Sousa vai além e não só nota a glândula de cheiro, como também, o fato de estaprejudicar o sabor da carne do animal durante o seu preparo. A preocupação coma alimentação torna-se evidente nesta última passagem, afinal, quando este des-creveu a espécie de porco do mato, explicou que para a carne se tornar boa parao consumo deve-se extrair o “umbigo”. Sabemos hoje que esta glândula estapresente apenas nas espécies de porcos nativos da América do Sul (Novo Mun-do), e que elas ocorrem em duas espécies específicas: o Tayassu tajacu, conhe-cido como Cateto ou Tateto, e o Tayassu pecari, conhecido como Queixada(SILVA, 2006). A pormenorização dos animais encontrados no Novo Mundo, comono caso das espécies de porcos, denota um colonizador preocupado com a cons-trução de conhecimentos, acerca do Mundo Natural, que pudesse lhes ser útil nãoapenas em um primeiro momento, mas ao longo do processo de fixação e desen-volvimento da colônia, afinal o que tornou o homem capaz de fabricar seus própri-os alimentos é o resultado de um processo de superação e domínio sobre a natu-reza, visto que, a luta diária por comida não era uma tarefa fácil, ainda mais paraum colonizador do século XVI (DIAMOND, 2008).

De tatus moqueados e porcos fumadosCONCEIÇÃO, Gisele Cristina da; SANTOS, Christian Fausto Moraes dos; BRACHT, Fabiano

Page 152: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

152

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Outro aspecto relevante das informações extraídas das descrições feitas peloscronistas e viajantes que passaram ou se fixaram nos trópicos, está relacionadocom os parâmetros comparativos estabelecidos por estes quando do detalhamentodas semelhanças e diferenças entre os animais encontrados no Novo Mundo,com aqueles conhecidos do Velho Mundo. Neste ponto, não podemos deixar derelacionar o conceito de analogias estabelecido por Foucault em “As palavras eas coisas”, onde fica claro que tais descrições, em sua maioria, eram desenvolvi-das por meio de analogias (FOUCAULT, 2000), ou seja, por meio de compara-ções entre as espécies nativas européias e as nativas brasileiras. Assim desenha-va-se um quadro de semelhanças entre ambas para aí classificar o animal. Contu-do, em um primeiro momento, o conhecimento que estes homens possuíam sobrea fauna dos trópicos estava relacionado com o conhecimento dos povos autócto-nes. O conhecimento indígena foi utilizado por Gabriel Soares de Sousa paratentar compreender uma espécie de Tatu; neste caso ele compara o animal com oporco novo (bácoro), e depois declara as técnicas utilizadas pelos nativos paracapturar o animal e prepara-lo como alimento:

Tatuaçu é um animal estranho, cujo corpo é como um bácoro tem as pernascurtas, cheias de escamas, o focinho comprido cheio de conchas, as orelhaspequenas, e a cabeça, que é toda cheia de conchinhas; os olhos pequeninos,o rabo comprido cheio de lâminas em redondo, que cavalga uma sobreoutra; e tem o corpo todo coberto de conchas, feitas em lâminas, que atra-vessam o corpo todo, de que tem armado uma formosa coberta [...] Matam-nos os índios em armadilhas onde caem; tiram-lhes o corpo inteiro foradestas armas, que estendidas são tamanhas como uma adarga; cuja carne émuito gorda e saborosa, assim cozida como assada [...] (SOUSA, 1971, p.251, grifos nossos).

Nota-se a presença de analogias (FOUCAULT, 2000) no momento em queo explorador tenta caracterizar o Tatu, comparando-o com porcos novos, ele vaidetalhando todas as propriedades do animal estabelecendo parâmetros entre ani-mais que conhecia. A busca por similitudes entre os animais demonstra a constru-ção de um conhecimento sobre o mundo natural dos trópicos, assim como a elabo-ração de uma nova perspectiva filosófico natural (DEBUS, 2004).

A partir dessa perspectiva, que denota um colonizador preocupado em se adaptarao novo ambiente e tentar transpor para a nova colônia boa parte das caracterís-ticas do Velho Mundo, podemos perceber que o trabalho inicial foi árduo, pois abusca diária por alimentos despendia tempo e energia. Neste sentido, consideraresses exploradores como portadores de uma plasticidade e morosidade, que lhesauxiliava a se adaptar com facilidade a qualquer ambiente (HOLANDA, 2011)pode ser considerado como equivocado, afinal, desde o princípio, se observamosas fontes documentais que descrevem a fauna e flora dos trópicos, percebemos

Page 153: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

153

que a preocupação em relação à alimentação existia, e que seria laborioso o tra-balho de ocupar as terras recém-descobertas.

Conclusão

Apesar de os porcos europeus terem sido introduzidos, e hoje estarem dispersospor boa parte dos domínios tropicais da América, logo nos primeiros anos da colo-nização empreendida pelos portugueses alguns entraves de caráter climático, físi-co e alimentar, impediram a introdução e adaptação imediata deste e de outrosanimais. Esse fato em muito dificultou a transposição dos hábitos alimentares doscolonizadores lusos para a América, assim, uma nova perspectiva alimentar foiempregada na tentativa de obter fontes de alimentos ricos em proteína egordura animal.

É interessante notar as analogias feitas pelos primeiros colonizadores quando ten-tam descrever um animal até então desconhecido. Os sistemas classificatóriosutilizados por aqueles homens na tentativa de apreender o ambiente do NovoMundo é uma junção do conhecimento que traziam de suas experiências na Euro-pa com o conhecimento empírico que desenvolveram sobre a fauna da América.As dificuldades em transpor os animais do Velho Mundo para a América levaramos primeiros colonizadores a buscar todos os meios possíveis para sobreviver comaquilo que encontravam na fauna dos trópicos, assim descreveram e classifica-ram tudo o que os rodeava, afinal, antes de implementar-se um engenho de canade açúcar era necessário obter todo o alimento possível para garantir a própriasobrevivência.

Fontes

STADEN, Hans. 1974. Duas Viagens ao Brasil. São Paulo: Ed. Itatiaia.

THEVET, André. 1978. Singularidades da França Antártica. São Paulo: Ed.Itatiaia. SOUSA, Gabriel Soares de. 1971. Tratado Descritivo do Brasil. SãoPaulo: Brasiliana.

Referências

ASSUNÇÃO, Paulo de. 2001. A terra dos Brasis: a natureza da América portu-guesa vista pelos primeiros jesuítas (1549-1596). São Paulo: Annablume.

DIAMOND, Jared. 2008. Armas germes e aço: os destinos das sociedades hu-manas. Rio de Janeiro: Record.

De tatus moqueados e porcos fumadosCONCEIÇÃO, Gisele Cristina da; SANTOS, Christian Fausto Moraes dos; BRACHT, Fabiano

Page 154: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

154

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

DEAN, Warren. 2010. A ferro e fogo: a história e a devastação da mata atlânti-ca brasileira. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras.

CROSBY, Alfred. 1993. Imperialismo ecológico: A expansão biológica da Euro-pa 900-1900. São Paulo: Companhia das Letras.

FOUCAULT, Michel. 2000. As Palavras e as Coisas - Uma arqueologia dasciências humanas. São Paulo: Martins Fontes.

FLANDRIN, Jean Louis; MONTANARI, Massimo. 1998. História da Alimen-tação. 4ª Ed. São Paulo: Estação Liberdade.

GONELA, Adriana. 2003. Aplicação de marcadores microssatélites de Susscrofa domestica na caracterização genética de populações de Sus scrofasp. (porco-Monteiro) e Tayassu pecari (queixada). Tese apresentada à Fa-culdade de Medicina de Ribeirão Preto/USP – 2003.

HOLANDA, Sérgio Buarque. 2011. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhiadas Letras. SILVA, Roxane Wirschum. 2006. Avaliação Da VariabilidadeGenética Em Tayassu Tajacu (Cateto) e Tayassu Pecari (Queixada) PorMeio Da Utilização De Marcadores Microssatélites. Dissertação apresenta-da como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em Genética, cursode Pós Graduação em Genética, Setor de Ciências Biológicas, Universidade Fe-deral do Paraná.

LÉVI-STRAUSS, Claude. 2008. O pensamento selvagem. Tradução: TâniaPellegrini – 8ª ed. Campinas, SP: Papirus.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de; CARNEIRO, Henrique. História daalimentação: balizas historiográficas. Anais do Museu Paulista História e CulturaMaterial, São Paulo, v. 5, n. 5, p. 9-91, 1997.

THOMAS, Keith. 2010. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude emrelação ao homem e aos animais (1500-1800). São Paulo: Companhia das Letras.

Page 155: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

155

Resumo: Criadas a partir do ano de 1711, as câmaras foram um meio encontra-do pela coroa para levar leis e ordem aos distritos minerais. Com o passar dosanos, elas seriam responsáveis por várias atribuições, entre aplicar leis, normatizaros povos, fomentar obras e festividades, e zelas pelos interesses dos povos aosquais estava vinculada. Responsabilidades que em algumas situações as coloca-ram em lados opostos as autoridades estabelecidas na região, dentre as quais osouvidores. Os ouvidores foram instalados em Minas à mesma época das câma-ras, assumindo a incubência de melhor administrar a justiça na região. Entre suasfunções, estava fiscalizar várias ações das câmaras, o que em algumas ocasiõesgerou conflitos entre as duas partes. Animosidades que descortinam o conceito deadministração e prática governativa portuguesa no período moderno, criando zo-nas distintas de exercício do poder no interior da estrutura administrativa. Tendoem mira tal situação, a proposta do trabalho é apresentar algumas das tensões queocorreram entre as câmaras instaladas na região de Minas Gerais no século XVIII,e os ouvidores das comarcas ali instaladas.

Palavras-chave: poder local, administração, justiça.

AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO DAADMINISTRAÇÃO DE MINAS GERAIS NO SÉCULO XVIII

Pablo Menezes e Oliveira*

* Doutor em História pela UFMG com a tese: Cartas pedras tintas e coração: as casas de câmara de aprática política em Minas Gerais (1711-1798). (2013). É pesquisador do JALS – UFOP.

Page 156: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

156

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Abstract: Created from the year 1711, the chambers were found a way to takethe crown law and order to the mineral districts . Over the years, they would beresponsible for various duties , among enforce laws , regulate the people, fosterworks and festivities, and to care the interests of the people we were bound.Responsibilities in some situations put them on opposite sides of the establishedauthorities in the region, among which the special magistrate. The specialmagistrate were installed in the Minas same time the cameras, assumingincumbencies better administer justice in the region. Among his duties was tosupervise the actions of several chambers, which in some instances led to conflictsbetween the two parties. Animosities that arise the concept of administration andgoverning practice English in the modern period, creating distinct zones of exercisingpower within the administrative structure. Having in view this situation, theproposed work is to present some of the tensions that occurred between the camerasinstalled in the region of Minas Gerais in the eighteenth century, and the specialmagistrate installed there.

Key-words: local power, government, justice.

Resumen: Creado a partir del año 1711, las cámaras se han encontrado unaforma de tomarse la justicia por la corona y el orden a los distritos mineros. Através de los años, ellos serían responsables de diversas tareas, entre hacer cumplirlas leyes, regula la gente, obras temporales y festividades, y asegurar los interesesde las personas a las que se dirigían. Responsabilidades en algunas situaciones losponen en lados opuestos de las autoridades establecidas en la región, entre loscuales los oyentes. Los oyentes se instalaron en el Minas mismo tiempo las cámaras,asumiendo incumbencia mejor administrar la justicia en la región. Entre sus funci-ones estaba para supervisar las acciones de varias cámaras, que en algunos casoshan llevado a conflictos entre las dos partes. Animosidades que surgen del conceptode administración y de gobierno Inglés prácticas en la época moderna, la creaciónde zonas distintas de ejercer el poder dentro de la estructura administrativa. Tenera la vista esta situación, la propuesta de trabajo es presentar algunas de las tensionesque se produjeron entre las cámaras instaladas en la región de Minas Gerais en elsiglo XVIII, y los defensores del pueblo condados instalado allí.

Palabras-claves: poder local, gobierno, justicia.

Page 157: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

157

Em fins do século XVII, a Coroa portuguesa teve confirmada a existência demetais preciosos em grande volume no coração de seus domínios da Américaportuguesa, na região chamada Sertão dos Cataguases.1 Com a descoberta, umgrande número de pessoas afluíram para os novos distritos minerais, mais tardeconhecidos como Minas Gerais. Os relatos da época registram um grande nú-mero de pessoas migrando para a região, dos quais citamos os escritos pelo padrejesuíta Antonil, feito por volta de 1711:

a sede insaciável do ouro estimulou a tantos a deixarem suas terras e ameterem-se por caminhos tão ásperos como são os das minas, quedificultosamente se poderá dar conta do número de pessoas que atualmentelá estão. [...] Cada anno vem das frotas quantidades de portugueses e deestrangeiros, para passarem para as Minas. Das cidades, villas, recôncavos,e sertões do Brazil vão brancos, pardos e pretos, e muitos índios de que ospaulistas se servem. A mistura é de toda condição de pessoas (ANTONIL,2001, p. 243-244).

A migração em massa para as Minas teve impactos diretos na vida da Américaportuguesa e mesmo no Reino. Houve tentativas sistemáticas de conter a migra-ção para a região recém-descoberta, com a publicação de editais que limitavamesta ação. É muito ilustrativa a alusão de Artur de Sá e Meneses, nomeado gover-nador da Capitania do Rio de Janeiro, no ano de 1697, à possibilidade de que amigração para as Minas pudesse gerar o despovoamento e “desmonte” da econo-mia de outras regiões da América (CAMPOS, 2002, p.57-58; BOXER, 2000, p.67). Havia ainda uma temeridade de que o alarde fosse maior do que o que asminas podiam render. Até então, só havia sido descoberto o chamado ouro dealuvião – depositado no leito dos rios. Isso se refletiu na política que a Coroaestabeleceu para a região. Manifestada a existência de ouro no Sertão, foi deter-minada a instalação apenas de um posto de Guarda-mor e escrivão na região,cargos que ficaram na mão dos paulistas, condizendo com as incertezas da nas-cente atividade mineral.

Mesmo diante das tentativas da Coroa de conter a vinda para Minas, levaspopulacionais começaram a afluir para a região. Em pouco tempo o Sertão estavatomado de acampamentos de mineradores ávidos por encontrar riquezasencravadas no coração da América. Uma das faces dessa nova frente de ocupa-ção espacial da América Portuguesa foi um convívio entre os povos muito maiorque em outros lugares daqueles domínios (SOUZA, 1986, p. 105). Nesse ambien-

1 Segundo Holanda, antes da descoberta de ouro no Sertão dos Cataguases, já havia extração de ouro nasregiões de Iguape, Cananéia e Paranaguá. Mas estas atividades nunca chegaram a rivalizar com omontante de ouro extraído das minas descobertas em fins do seiscentos (HOLANDA, 1985, p. 255-258).

As câmaras e os ouvidores na construção da administração de Minas Gerais no século XVIIIOLIVEIRA, Pablo Menezes e

Page 158: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

158

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

te marcado pela grande heterogeneidade de povos, em que a disputa por lavrasminerais era grande, somado a uma precária rede de administração, uma série dedistúrbios e conflitos nas áreas recém-descobertas começaram a eclodir.

A tensão em torno do convívio entre pessoas oriundas de várias partes da Améri-ca e do reino, somada a uma rala institucionalização da região, em pouco tempomostrou-se perigosa. Nos primeiros anos do século XVIII, a Coroa teve de lidarcom conflitos entre os paulistas e aqueles que vieram de outras partes da Américae do reino, tensões mais tarde conhecidas como Guerra dos Emboabas. Esseevento fez com que a Coroa alterasse novamente o modelo adotado para a admi-nistração dos distritos minerais.

A Guerra dos Emboabas teve como pano de fundo conflitos entre paulistas eforasteiros, somados às políticas levadas a cabo pelo governador dom FernandoMartins Mascarenhas Lencastre (1705-1709). O governador era acusado de pri-vilegiar os forasteiros em detrimento dos paulistas, quando as determinações régi-as visavam à partilha de cargos entre os dois grupos. Apesar de descobridores, ospaulistas gradativamente foram deixando de ter preponderância sobre os cargosexercidos nos distritos minerais.2

Esse clima de atrito eclodiu em conflito aberto com uma disputa entre o paulistaJerônimo Pedroso e Manuel Nunes Viana, influente potentado e representantemaior dos forasteiros, pela posse de uma espingarda. Aparentemente banal, oconflito tomou enormes proporções, chegando os dois lados a reunirem um gran-de número de aliados para um combate no campo de Caeté. O aumento dastensões entre paulistas e “forasteiros” levou estes a cometerem ondas de ataquescontra aqueles, expulsando-os dos locais onde estavam instalados, sendoemblemáticos os conflitos que ocorreram em Sabará e Cachoeira do Campo. Odesfecho do ataque contra os paulistas deu-se no início de 1709, quando um grupode emboabas, chefiados por Bento Amaral Coutinho, seguiu rumo à região do Riodas Mortes a fim de combater os paulistas. O resultado dessa expedição foi oepisódio conhecido como Capão da Traição, em que os paulistas, cercados emum capão, mesmo rendidos e desarmados, foram mortos à queima-roupa (CAM-POS, 2002, p. 85-89; ROMEIRO, 2008, p. 169-208).

Tão logo as notícias sobre os primeiros conflitos ocorridos em Minas chegaram àCorte, o Conselho Ultramarino concluiu que o melhor meio de se chegar ao bomgoverno da região era através da instalação dos governos político, militar e eclesi-

2 Entre outras medidas, a criação do cargo de Superintendente de terras e águas minerais, sobrepondo afigura do guarda-mor, reduziu o poder dos paulistas sobre a região (CAMPOS, 2002, p. 64-71. ROMEI-RO, 2008, p. 68-70; SALGADO, 1985, p. 283-285).

Page 159: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

159

ástico. Antes mesmo de tomar ciência da gravidade dos ocorridos nos distritosmineradores, o Conselho se reuniu em 17 de julho do ano de 1709 para deliberarsobre ações que deveriam ser adotadas para administrar as minas de maneiraeficiente, para “pôr em melhor forma o governo daquelas terras”. (CONSULTASdo Conselho Ultramarino, 1687-1710, 1951, p. 219-242). Entre as várias questõestratadas, chamamos a atenção para a administração da justiça e o governo dasminas. Estes eram considerados importantes por serem “o último fim de todas asrepúblicas e a principal obrigação dos príncipes sendo esta a causa final para quesejam constituídos por Deus e pelos povos”. Ponto que mostra a vigência dasTeorias Corporativas do Poder como parte da prática política da época. Assim,ao aplicar a justiça entre os moradores daqueles novos descobertos, o Rei cum-pria sua função como grande árbitro da justiça.

Neste processo, registramos duas medidas que foram adotadas à época. A pri-meira foi a criação da Capitania de São Paulo e Minas de Ouro, no ano de 1709.Para a função de governador desta nova Capitania foi chamado o governadorAntônio de Albuquerque. Para além de instalar uma nova Capitania, a Coroadeterminou que fossem criadas municipalidades na região, como forma de aten-der várias demandas de administração. Implantadas estrategicamente nas Minas,deveriam servir de local de coleta do quinto, alfândegas, quartéis de infantaria ecavalaria. Funcionavam como parte do projeto régio de instalar nas Minas umgoverno “civil e militar”, além de instalar as bases da justiça e do fisco (FONSE-CA, 2001, p.137-138). Da parte dos vassalos, as câmaras acabavam por ser umaforma dos habitantes verem preservados acordos firmados com as autoridades,ligados às formas de tributação e distribuição de terras e ao abastecimento dosnúcleos urbanos, procedimentos importantes para que o sossego público fosseestabelecido nos distritos mineradores.

Realizando aquilo que fora determinado pela Coroa, Antônio de Albuquerque crioutrês municipalidades em Minas, todas no ano de 1711, depois de pôr em vista osmelhores lugares para que as vilas fossem estabelecidas. Ribeirão do Carmo, oprimeiro arraial a tornar-se vila, com a denominação de Vila de Nossa Senhorado Ribeirão do Carmo, era local onde haviam se fixado importantes reinóis etambém importantes famílias paulistas. A criação da vila era um meio, então, deinstitucionalizar as disputas por lavras auríferas na região entre os grupos que aliviviam. (FONSECA, 2001, p.152). A segunda vila criada, Vila Rica, foi fundadacomo resultado da união de duas paróquias, Antônio Dias e Pilar. Era uma regiãoimportante economicamente, por suas atividades comerciais e mineratórias, e ti-nha grande proximidade com os caminhos para Rio das Mortes, Rio das Velhas eSerro Frio (FONSECA, 2001, p. 153). A criação da terceira vila, a Vila de Sabará,estava ligada ao fato da região ter grande número de portugueses e encontrar-seno caminho para a Bahia, região de grande tráfego de mercadorias, portanto re-

As câmaras e os ouvidores na construção da administração de Minas Gerais no século XVIIIOLIVEIRA, Pablo Menezes e

Page 160: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

160

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

gião privilegiada para fiscalizar as atividades mercantis (FONSECA, 2001, p. 154-155). Além destas, outras vilas foram fundadas em Minas, entre os anos de 1713e 1798, espalhadas de forma desigual pelas várias regiões da Capitania.3

A grande importância dada às câmaras se deu, por um lado, pelas atribuições quelhes eram conferidas, pois tinham obrigações relacionadas às áreas fazendárias,judiciárias, militares e administrativas. Supervisionavam a distribuição e arrenda-mento das terras municipais, lançavam e cobravam taxas municipais, fixavampreços de produtos e provisões, bem como passavam licença aos vendedoresambulantes. Zelavam pela qualidade dos gêneros postos à venda, cuidavam daregularidade do abastecimento e supervisionavam os abatedouros públicos. Orde-navam a estrutura urbana da vila, através de concessão de licenças para a cons-trução de edifícios particulares e da construção e manutenção de estradas, pon-tes, fontes, cadeias e demais bens públicos. Deveriam regular os feriados e orga-nizar procissões e festividades cívicas e religiosas, e lançar editais régios.4 Naárea judiciária, atuavam como uma espécie de tribunal de primeira instância, sub-jugados ao ouvidor mais próximo ou mesmo ao Tribunal da Relação (BOXER,2001, p. 269-270). Em certos casos, as câmaras exerceram também a função deprestar “serviços sociais”. Cuidaram dos enjeitados e órfãos, por meio da atuaçãodos juízes de órfãos, e da contratação de criadeira de expostos (RUSSEL-WOOD, 1977, p.58-59).

Em Minas Gerais, o estabelecimento de vilas foi um importante recurso à organi-zação administrativa, sendo constantemente utilizado ao longo do XVIII. Além deestabelecer na região as leis e ordens régias, era por meio destas que eram fisca-lizados o abastecimento das vilas, se cuidava dos presos, dos órfãos, e das obraspúblicas. Além, as câmaras cuidavam da fiscalização e regulamentação da distri-buição dos gêneros, procedimentos estes importantes para manter as formasacomodativas nas Minas e evitar que seus habitantes não se amotinassem.(ANASTASIA, 1998, p.23). Além disso, as câmaras foram as principais promo-toras de festividades cívicas e religiosas que materializavam a presença do rei emMinas, bem como de obras públicas, como a casa de fundição de Vila Rica, em1725, o mesmo ocorrendo com a edificação de quartéis para os Dragões no ano

3 Além das três municipalidades, foram criadas as seguintes vilas: Vila de São João d’el Rey em 1713, Vilado Príncipe e Vila Nova da Rainha em 1714, Vila Nova do Infante em 1715 e Vila de São José d’el Reyem 1718. A vila de Nossa Senhora do Carmo foi elevada a Cidade em 1745, com o nome de Mariana,e foi a única cidade fundada em Minas no período. No ano de 1730 foi fundada a Vila de Bom Sucessode Minas Novas. Em 1789 foi fundada a Vila de São Bento do Tamanduá, em 1790 a Vila de Queluz, em1791 a Vila de Barbacena, e em 1798 as Vilas de Campanha da Princesa e de Paracatu do Príncipe. Arespeito, ver: PAULA, 2000.

4 Ordenações Filipinas. Livro I, Título LXVI, “Dos vereadores”.

Page 161: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

161

de 1751. Ainda, nestes locais se instalaram as sedes de governo, as ouvidorias, ascasas de fundição e demais estruturas administrativas criadas ao longo do XVIII(RUSSEL-WOOD, 1977, p.47-48).

Além de administrar as várias “demandas” régias para zelar pela ordem das vári-as paragens da Capitania de Minas, é possível ver, para além das referidas práti-cas administrativas, um conjunto de medidas das câmaras arquitetadas com vias a“manutenção” da sociedade, expressas nas muitas correspondências trocadasentre as câmaras e o rei. Por outro lado, em algumas oportunidades as açõesadotadas pelos camaristas foram questionadas por autoridades instaladas em Mi-nas. Aqui, tomamos como objeto de estudo algumas tensões com os magistradosque exerceram seus ofícios em Minas Gerais, expressas na correspondência dacâmara com o Rei.

Encampando uma das principais funções do Rei, relacionada à adequada adminis-tração da justiça, afinal uma das principais funções do rei, foram enviados aosdistritos minerais bacharéis formados em leis para ocupar postos de ouvidores ejuízes de fora com vias a instalar nos distritos minerais as leis régias. Tendo comoprincipal função a circulação do direito entre os povos, os ouvidores da AméricaPortuguesa ocuparam funções variadas que, em muitos casos, transcendiam oexercício jurídico. Em Minas, os magistrados assimilaram funções quecorrespondiam aos cargos de corregedores e provedores. Estava a cargo delesa eleição dos juízes e oficiais do conselho; a inquirição uma vez por ano dosoficiais de justiça; a fiscalização da cadeia, dos forais, das rendas do conselho, edas posturas da câmara; devassar os carcereiros; verificar se havia usurpação dedireitos régios. Tal magistratura era vista como o “olho e ouvido” do rei, emitindoopiniões variadas sobre autoridades além-mar como vice-reis e governadores,limitando ainda os poderes das câmaras ultramarinas (SOUZA, 2000, p. 58).

As tensões dos ouvidores com os povos e instituições dos locais que faziam partede sua jurisdição foram motivadas por situações variadas. Os magistrados tive-ram problemas com as autoridades camarárias, quando da fiscalização das recei-tas e despesas das câmaras, feita através das correições, quando eram verificadasa compra e venda de bens móveis, a contratação de serviços, os gastos com apreparação de festas religiosas, entre outros. Ocorreram desentendimentos emalgumas situações por conta das eleições dos oficiais camarários, das quais osmagistrados eram responsáveis. Ainda houve desentendimentos motivados poroutras ações cometidas por ambas as partes. A análise dessa documentação for-nece uma medida dessas tensões.

No ano de 1713, dois anos após a fundação da Vila de Ribeirão do Carmo, seusmoradores se amotinaram contra o ouvidor da comarca, Manoel da Costa Amorim.

As câmaras e os ouvidores na construção da administração de Minas Gerais no século XVIIIOLIVEIRA, Pablo Menezes e

Page 162: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

162

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

A tensão resultou da decisão do ouvidor de redistribuir as lavras distribuídas navila, retirando os mineradores dos lugares que estavam instalados. No episódio, oscamaristas de Vila Rica, então parte da Comarca, sugeriram que os moradorescolocassem fim ao motim, por causa do “dano que daquela sublevação podiaresultar a todas [as] minas”. (ANASTASIA, 2012, p. 46). Os camaristas da Vilado Ribeirão do Carmo solicitaram que os camaristas de Vila Rica atuassem a seufavor para resolver a questão, o que não aconteceu, pois os vilarriquenhos eramfavoráveis ao posicionamento do ouvidor. No final, os cabeças do motim forampresos, sendo alguns remetidos para um degredo para Benguela, na África, de-pois revertido em perdão aos revoltosos pelo governador (ANASTASIA, 2012,p.46-47).

No ano de 1717, os oficiais da Câmara de Vila Rica remeteram carta ao rei,queixando-se dos procedimentos considerados inadequados do ouvidor-geral daComarca de Vila Rica, o desembargador Manoel Mosqueira da Rosa. Segundo oscamaristas, depois de assumir o posto que lhe fora conferido, o magistrado teriadado início a uma conflituosa relação com os habitantes da referida comarca. Ede acordo com os oficiais, quando tomara posse, o magistrado teria demonstrado“capacidade” e “inteireza”, mas com o tempo passou a adotar medidas contráriaaos interesses dos moradores. (AHU. Caixa 1, Documento 69). Além de retirar omagistrado, a câmara solicitava que se tirasse uma “exata” residência do ouvidorque mostraria os maus procedimentos deste. Do que fosse apurado, Mosqueirada Rosa deveria ser severamente repreendido para que servisse de “exemplo”aos que o sucedesse. Por conta dessas tensões, o Conselho Ultramarino sugeriu,em carta emitida no ano de 1718, que essas situações fossem apuradas pelo su-cessor do magistrado com o cuidado de observar as “paixões” que poderiamfazer com que alguns depoimentos colhidos fossem duvidosos.

No ano de 1731, os camaristas de Vila Rica se queixaram ao rei dos abusoscometidos pelo ouvidor da comarca, João de Azevedo Barros, que vinha execu-tando cobranças indevidas dos moradores daquela comarca. Segundo oscamaristas, as cobranças se referiam ao não comparecimento em audiências.Quando isso ocorria, deveriam pagar algo em torno de duas oitavas de ouro, masvinham pagando 7$500 réis, e, em alguns casos, 8$000 réis. O ouvidor ainda man-dava às mais variadas paragens da comarca oficiais das tropas para executarcobranças. Para remediar essa situação, o rei mandou verificar as denúncias paraserem juntadas à residência que deveria ser retirada quando da chegada de umnovo ouvidor na comarca. Segundo consta, para “dar remédio p.ª o futuro prohibindoesta exorbitante ladroisse e vexação dos povos”. (AHU. Caixa 19, Documento26). Mais uma vez, problemas derivados do uso da violência por autoridades,deixando os povos “vexados”, se tornavam objeto das demandas camaristas.

Page 163: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

163

Além das “vexações” já descritas, os camaristas das Minas apresentaram quei-xas ao rei no tocante aos pagamentos que deveriam ser feitos aos magistrados,que alcançavam valores “exorbitantes” nas Minas. Essa situação fica expressaem correspondência remetida pelos oficiais da Câmara da Vila do Ribeirão doCarmo no ano de 1721. Esta câmara foi saudada pelo rei por ali haverem “pesso-as zelozas do bem público”. Davam conta ao monarca das cobranças que osmagistrados vinham praticando nas Minas por assinaturas, escritas e diligênciasconsideradas “intoleráveis aos povos”. (Arquivo Público Mineiro/Seção Colonial,Códice 14, fl.84v-87). Como meio de solucionar a situação, o rei sugeriu que fosseinstalada uma junta, na qual fossem estabelecidos os valores que os magistradosdeveriam praticar por seus serviços na Capitania como forma de “remediar estedano”. A junta teria suas discussões ratificadas em ata datada de 17 de Setembrode 1721, em que constava a presença do Ouvidor da Comarca do Rio das Mortes,do juiz de fora da Cidade do Rio de Janeiro e do governador Dom Lourenço deAlmeida. Afinal o rei deu ouvidos às demandas dos camaristas e procurou darsolução às tensões dos magistrados com os moradores das Minas, embora aindahouvesse outras tantas questões que os atravessavam.

No ano de 1733, os camaristas de São João Del Rei denunciaram práticas consi-deradas inadequadas que vinham sendo cometidas pelo ouvidor da Comarca doRio das Mortes. Segundo os camaristas, os oficiais vinham obrigando que as duasVilas, que juntas compunham a Comarca, fornecessem erva e lenha para o desta-camento de soldados estabelecido na região, causando grande “opressão” aospovos. A esses inconvenientes, somavam-se os altos custos que os magistradoscobravam em suas diligências, que podiam chegar a quarenta e cinquenta mil réis,sendo exemplo dessa prática aquilo que havia obrado o Doutor Antônio da CunhaSilveira. O Conselho Ultramarino deliberou sobre o tema em agosto de 1733,chamando a atenção para que se corrigissem os abusos cometidos na Comarcado Rio das Mortes, relativo ao destacamento que estava instalado na região.

de sorte q elles não parecião o q erão, e não esbirros se fazião Ministros detão injustas e escandalozas execuções, e mais prejudicial q tudo era vintecavallos innutilmente separados dos seus corpos, e em Villa Rica cabeça detodas as outras aonde rezidia o Governador, e aonde estavão os Tribunaesq V. Mag.de tinha naquellas partes da provedoria da Fazenda Real das Cazasda moeda e fundição sem haver hum soldado montado para se mandar aqualquer repentina dilligencia q se offerecesse no Real Serviço (AHU. Caixa24, Documento 82).

Uma das facetas das tensões das câmaras com os magistrados podia ser eviden-ciada na tentativa de aproximar das câmaras poderes que poderiam “concorrer”com as ouvidorias. Por isso os camaristas se esforçaram para que a coroa insta-

As câmaras e os ouvidores na construção da administração de Minas Gerais no século XVIIIOLIVEIRA, Pablo Menezes e

Page 164: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

164

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

lasse no Rio de Janeiro um Tribunal da Relação. No ano de 1731, os camaristasda Vila do Ribeirão do Carmo solicitaram a instalação daquela instituição no Riode Janeiro por acreditarem “haver na administração da just.ª tantas desordens hepor estar tão longe a fonte da execução della”. Acreditavam que, havendo umTribunal da Relação tão próximo das Minas, os ouvidores haveriam de se empe-nhar em desempenhar suas funções da melhor maneira possível, evitando, assim,“as queixas q mtos formão” (AHU. Caixa 19, Documento 17). No ano de 1744, aCâmara de Vila do Príncipe enviou uma representação ao rei solicitando tambéma criação de uma Relação no Rio de Janeiro. Segundo os camaristas, por contadas distâncias que precisavam ser percorridas para recorrer de decisões tomadaspelos ouvidores da Capitania, deixavam muitas questões sem o devido remédio.Isso porque em muitos casos os ouvidores cometiam “excessos” e “vexações”contra os povos das Minas. Assim solicitavam ao rei que atendesse o pleito paraque as Minas pudessem se “conservar em paz”. Lembravam ao rei, com estafala, do frágil equilíbrio dos poderes nas Minas, muitas vezes quebrados, tendo emvista conflitos entre as várias “partes” que compunham a região. (AHU. Caixa44, Documento 97). Dando solução a essas demandas, o rei instalou, no Rio deJaneiro, um Tribunal da Relação, no ano de 1751, procurando amotercer tensõesentre magistrados e os povos das Minas.

Em correspondência remetida ao rei em 5 de junho de 1751, os camaristas daCidade de Mariana apontavam problemas relacionados com magistrados que in-fringiam determinações régias em benefício próprio. Acusavam o ouvidor Caeta-no da Costa Matoso de continuar cobrando uma oitava de ouro pela revisão delicenças dos ofícios mecânicos e de pessoas de lojas abertas, mesmo depois deum decreto régio proibir tal procedimento. Ele teria procedido à cobrança e depo-sitado as quantias recebidas, até que fosse julgada a questão. Em sua residência,o procedimento que havia tomado acabou por ser julgado inadequado. (SOUZA,2000, p. 57). A Câmara de Mariana não deixou de se manifestar contra essasmedidas adotadas pelo magistrado, em correspondência remetida ao rei em 5 dejunho de 1751. Segundo os camaristas, a permanência da cobrança indevida detributos causava problemas na Capitania, deixando a população toda “desinquieta”(AHU. Caixa 58, Documento 41).

Em janeiro de 1781, os camaristas de Minas Novas remeteram ao rei petição naqual se queixavam dos desmandos do ouvidor da Comarca do Serro Frio, SeixasAbranches (1779 -1783) que, segundo eles, “[exauriam] o sangue dos povos atítulo de justiça, sem temor de Deus e das leis de Sua Majestade”. E esse não foio único dos problemas causados pelo ouvidor aos povos daquela Comarca. Du-rante o governo de D. Rodrigo José de Menezes (1780-1783), foram apresenta-das várias queixas contra Seixas Abranches. Os oficiais da Câmara de Vila doPríncipe reclamavam do desrespeito do ouvidor às ações das câmaras, ao gover-

Page 165: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

165

nador e às leis régias (ANASTASIA, 2005, p. 122-123). Em agosto do ano de1783, o ouvidor foi conduzido preso a Vila Rica, pondo fim a sua sequência dedesmandos. Naquele mesmo ano, os camaristas da Vila do Príncipe aproveitarampara informar à rainha a situação da Vila. O capitão-mor e seus comandantesexcediam os limites de sua jurisdição e roubavam cavalos dos moradores paraatender necessidades alheias ao Real Serviço. Finalmente, os ouvidores suprimi-ram jurisdições inferiores, assim, “valendo-se do indulto para tratarem indecoro-samente a mesma justiça, com mandatos e despachos incompletos e fora doslimites de sua jurisdição sem procederem os competentes meios de apelação eagravo” (AHU. Caixa 120, Documento 36 apud ANASTASIA, 2005). Portantoforam muitas as desavenças entre os magistrados e os povos das localidades emque estavam instalados.

Além dessas desavenças, as câmaras tiveram desentendimentos com os ouvidorespor causa das eleições, pelas quais os magistrados eram responsáveis. Isso ficaexpresso em uma correspondência remetida pelo ouvidor Manoel Mosqueira daRosa – ouvidor de Vila Rica entre os anos de 1715 a 1719 – em que repreende oscamaristas pela não realização de eleições para o ano de 1717 (Arquivo PúblicoMineiro, Câmara Municipal de Ouro Preto, Códice 46, apud SOUZA, 2000, p.65).

Além das eleições, somava-se ao quadro de tensões com os magistrados as ques-tões referentes às correições que deveriam ser retiradas dos oficiais das câma-ras, com vias a conferir a forma como as câmaras faziam uso de seus recursos.Nos Autos de Contas, os ouvidores se empenhavam em corrigir erros referentesa gastos desnecessários e falta de diligência das câmaras na cobrança de deter-minados tributos. Quando constatavam incongruências, faziam nesses autos decontas glosas para que houvesse correção de valores por parte das câmaras. Eali aparecia mais um ponto de discórdia entre camaristas e magistrados.

No decurso do século XVIII, houve vários casos de glosas feitas pelos ouvidoresdas contas apresentadas pelas câmaras. Em 1715, o ouvidor Manoel Mosqueirada Rosa glosou as contas apresentadas pela Câmara de Vila Rica por dois moti-vos: um referente a vinte e oito oitavas de ouro que o tesoureiro e o procuradorgastaram com despesas supérfluas. A outra se referiu à cobrança dos foros pelacâmara que o ouvidor acreditava não serem feitas por causa do pouco esforço dacâmara para tanto (SOUZA, 2000, p. 82). No ano de 1728, o ouvidor de Vila Rica,João Pacheco Pereyra reprimiu alguns gastos festivos feitos pela Câmara de VilaRica.

Além de estarem atentos aos gastos das câmaras, os ouvidores estenderam seupoder sobre várias outras áreas concernentes às atribuições camarárias. Assim,

As câmaras e os ouvidores na construção da administração de Minas Gerais no século XVIIIOLIVEIRA, Pablo Menezes e

Page 166: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

166

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

as câmaras poderiam consultar o magistrado em matérias variadas, com vias aencontrar melhor solução às demandas que se apresentavam. Os camaristas deVila Rica solicitaram ao ouvidor providências para o problema de negros fugidosno termo da Vila em 1749. Além disso, foi o ouvidor que sugeriu que diante dosproblemas referentes às inundações em Vila Rica, se construísse uma ponte depedra (SOUZA, 2000, p. 85). É possível que estas consultas fossem uma formade evitar que seus gastos fossem colocados em xeque pelo magistrado, evitandoassim problemas nessa matéria.

Mas essa tensão nem sempre foi recorrente. Em correpondência ao rei em agos-to de 1729, referente à questão da execução por dívidas dos mineradores daCapitania, os sanjoanenses lembravam que tiveram grande apoio do ouvidor geralna matéria. O Doutor Antônio da Cunha Silveira havia obrado em favor dosmineradores, antes mesmo antes que o rei deliberasse sobre a matéria (SUPLICASdos mineiros de São João Del Rey referentes às execuções por dívidas. RAPM.1897, p. 371). Em algumas situações, chegaram a participar de motins ao lado dospovos locais, corroborando assim com seus interesses. Carla Anastasia cita algunsmagistrados que estiveram envolvidos com motins em Minas no períodosetecentistas. O ouvidor da Comarca do Serro Frio, Dr. Antônio Rodrigues Banha,teria insulflado a população a não pagar os direitos de entrada. Manoel Mosqueirada Rosa, então ex-ouvidor da Comarca do Ouro Preto, esteve envolvido na Sediçãode 1720. Caetano da Costa Matoso envolveu-se em um motim de oficiais mecânicosna Comarca de Vila Rica, a qual era vinculado, no ano de 1752 (ANASTASIA,1996, p. 14). Enfim nem só de tensões viviam os poderes instituídos na Capitania.

Assim, a relação dos magistrados com as câmaras em Minas Gerais foi semprependular, tangenciando ora para a proximidade, ora para a tensão. Tanto oscamaristas quanto os magistrados acusavam-se tendo como ponto de divergênciacondutas consideradas inadequadas. Acreditamos que parte destas dissençõesresultavam do processo de conformação administrativa de Minas Gerais. Consti-tuída nos primeiros decênios do século XVIII, as atribuições dos vários cargosadministrativos não eram nítidas, tanto no que se refere às suas atribuições, quan-to no que se refere à jurisdição exercida. Ainda, a utilização dos cargos públicos –como os ofícios das câmaras – como forma de atender e conformar interessesparticulares, acabava por problematizar o exercício da administração, o que emmuitos casos justificou a intervenção de magistrados no exercício do poder local.Para dar ordem a estas situações, pairava sobre eles a figura régia, que procuravaarbitrar as tensões entre os poderes instituídos, conformando o vasto império por-tuguês.

Page 167: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

167

Fontes:

Impressa:

CONSULTAS do Conselho Ultramarino, 1687-1710. Documentos Históricos.Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional / Divisão de Obras Raras e Publicações, v. 93,p. 219-242, 1951.

SUPLICAS dos mineiros de São João Del Rey referentes às execuções por dívi-das. Revista do Arquivo Público Mineiro. 1897, p. 371.

Manuscrita:

Arquivo Público Mineiro/Seção Colonial, Códice 14, fl.84v-87.

Arquivo Histórico Ultramarino: Caixa 1, Documento 69; Caixa 19, Documento26; Caixa 24, Documento 82; Caixa 19, Documento 17; Caixa 44, Documento 97;Caixa 58, Documento 41.

Referências

ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos rebeldes: violência coletiva nas Minasna primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 1998.

______. A geografia do crime: violência nas Minas setecentistas. Belo Hori-zonte: Editora UFMG, 2005.

ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas eminas. Lisboa: Comissão Nacional para as comemorações dos descobrimentosportugueses, 2001.

BOXER, Charles R. O império colonial português (1415-1825). Lisboa: Edi-ções 70, 2001.

______. A idade de ouro do Brasil: dores de crescimento de uma sociedadecolonial. Tradução de Nair de Lacerda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

CAMPOS, Maria Verônica. Governo de mineiros: “de como meter as minasnuma moenda e beber-lhes o caldo dourado” 1693-1737. 2002. Tese (doutoradoem História) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidadede São Paulo, São Paulo, 2002.

As câmaras e os ouvidores na construção da administração de Minas Gerais no século XVIIIOLIVEIRA, Pablo Menezes e

Page 168: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

168

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

FONSECA, Cláudia Damasceno. Povoir, villes et territories. Genése etrepresentations des espaces urbains dans le Minas Gerais (Brésil), XVIIIe – débutdu XIXe siécle. 2001. Tese (Doutorado) – E.H.E.S.S., Paris, 2001.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Metais e pedras preciosas. In: História Geralda Civilização Brasileira: a época colonial. 4 ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 1977.tomo 1, vol. 2, p. 259-310.

ORDENAÇÕES Filipinas. Livro 1. Título LXVI. Dos Vereadores. Lisboa: Fun-dação Calouste Gulbenkian. Edição de Cândido Mendes de Almeida, 1985.

PAULA, João Antônio de. Raízes da Modernidade em Minas Gerais. BeloHorizonte: Editora Autêntica, 2000.

ROMEIRO, Adriana. Paulistas e emboabas no coração das Minas: idéias, eimaginário político no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

RUSSEL-WOOD, A.J.R. O governo local na América Portuguesa: um estudo daconvergência cultural. Revista de História. São Paulo, v.55, p.25-81, 1977.

SALGADO, Graça. Fiscais e meirinhos: a administração no Brasil colonial. Riode Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

SOUZA, Laura de Melo e. Os desclassificados do ouro: a pobreza mineira noséculo XVIII. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1986.

SOUZA, Maria Eliza Campos de. Relações de poder, justiça e administraçãoem Minas Gerais no setecentos – a Comarca de Vila Rica do Ouro Preto: 1711-1752. Dissertação (mestrado em História). Niterói, PPGHIS-UFF, 2000.

Page 169: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

169

Resumo: Este artigo analisa os movimentos messiânicos no periodo Oitocentistasob um aspecto conceitual dos movimentos sociais. A partir das referencias teóri-cas de Tilly analisamos as ações coletivas no campo como formas reativas, apartir das lideranças religiosas e seu discurso enaltecedor da tradição. Este é orepertório da ação coletiva identificado nos comportamentos e discursos, apermanencia de um imaginario contra-reformista e barroco como elementocimentador dos movimentos rurais neste período. Assim, o questionamento paratal baseia-se na reflexão e importância que assumem as lideranças católicas nosmeios rurais e seus discursos aglutinadores calcados na tradição e em elementoscontrareformistas, que mantiveram e consolidaram um habitus da experiência,mas principalmente caracterizaram o repertorio dos conflitos rurais, identificadosa partir da lei de Terras de 1850 ate a primeira metade do seculo XX.

Palavras-chave: Igreja, Terra, Conflitos, messianismo, rural.

Abstract: This article deals with the messianic movements in the Brazil in 1800sunder a conceptual approach in the teory that focuses on its social implications.Stemming from the theoretical references put forward by Tilly , considering the

MOVIMENT OS REATIV OS E LIDERANÇAS CATÓLICAS NOSÉCULO XIX NO BRASIL

Célia Nonata da Silva*

* Doutora em História e Culturas Políticas pela UFMG, Pós-doutoramento em História com o temaAutoridades Mestiças na capitania das Minas. Autora do livro Territórios de Mando: banditismo emMinas Gerais,seculo XVIII. Belo Horizonte: Crisálida, 2007. Pesquisadora do IICA e NEAD em 2006-2007 com o projeto: O Pensamento Católico e a Questão Agrária no Brasil de 1950-2005.

Page 170: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

170

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

permanence of culture with elements the interaction of the investigation. Theanalysis of the collective actions interpret in the countryside were analyzed asreactive forms, conducted by religious leaders and their biased discourses, markedby an appraisal of the traditional values. This is the repertoire of the collectiveactions as identified in the behaviors and discourses, the permanence of a counter-reformation and baroque imaginary as a catalyst of the rural movements in thisperiod. Thus, the questioning is based on the reflection and importance assumedby the catholic leaderships in the rural milieu and their binding discourse groundedon the tradition and on counter-reformation elements, which maintained andconsolidated a “habitus” of the experience, but which, most of all, characterizedthe repertoire of the rural conflicts that can be identified since the the 1850 “Leide Terras” (Lands’ Law) up to the first half of the 20th century.

Keywords: Church, land, conflicts, messianism, rural.

1 A propósito do tema

Este artigo insere-se numa reflexão atual sobre os movimentos sociais, evidenci-ando o papel das lideranças católicas como um elemento importante para o pro-cesso de identidade de grupo e emancipação das ações coletivas no campo. Ocontexto histórico perpassa a segunda metade do seculo XIX, onde as condiçõessócio-políticas do país agiram como fomentadoras para o surgimento dos movi-mentos rurais, sem eximir a importância das lideranças e dos seus discursos, bemcomo das representações simbólicas e do alcance do repertório coletivo presentenos conflitos em cena1. Várias lideranças identificadas nos conflitos rurais duran-te o século XIX tornaram-se importantes no contexto histórico brasileiro pelacapacidade de intermediarem um diálogo fundamental entre o universo religioso eo seu meio social. As lideranças religiosas leigas ou consagradas são partes fun-damentais de nossa temática, dado a abrangência do campo simbólico religioso eseu nível de articulação, que orientou as sociedades rurais em tipos variados deconflitos e de ‘frames’ condicionados á terra. As lideranças religiosas foram oselementos fomentadores dos mais importantes eventos no sertão, mesmo queorientadas por um repertório coletivo contrareformista, ainda latente na segundametade do século XIX e início da República brasileira.

1 Ver: GOHN, Maria da Glória. Teorias dos Movimentos Sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos.São Paulo: Loyola, 2007. A autora analisa a importancia dos movimentos sociais e a retomada dosparadigmas classicos para a redescoberta da importancia das lideranças nos fenomenos coletivos,principalmente para a America Latina.

Page 171: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

171

Portanto, a análise proposta discute as argumentações conceituais clássicas so-bre o messianismo como interpretação usual para os movimentos sociais rurais noOitocentos e toda a República Velha. A nossa hipótese pressupõe os conflitosrurais no período citado como movimentos sociais reativos, orientados por umrepertório coletivo combinado ás mudanças no poder político da época. O reper-tório coletivo presente nas ações e discursos das lideranças acomodou sintomati-camente o conflito pela terra na tradição, perdendo a sua capacidade de dimensãopró-ativa. Tais movimentos reafirmaram não apenas uma política moral e conser-vadora ao distanciar-se de sua capacidade política de fato, como continuaram apermanência de uma economia moral no campo. Ou seja, este repertório coletivoda economia moral ao transcender a experiência de um passado imagético doSebastianismo e das formas tradicionais da Igreja missionária no sertão conser-vou os movimentos sociais numa política moral da tradição. Assim, a relevanteexperiência dos grupos, segundo Thompson (1998), – ou a sua falta – levou a queos movimentos rurais Oitocentistas se tornassem presos a uma consciência moralcontrareformista orientada pela decadência, pelo discurso apologético do apocalipse,conformando as ações humanas em sentimentos precários de uma sensibilidadecontrareformista da penitencia, das virtudes medievais da expiação da carne e dapobreza como honra pessoal. A longa duração e a manutenção deste repertóriocoletivo impediram a ação pró-ativa das lideranças, condicionando o seu ‘habitus’à tradição.

2 O state building e a questão agrária

A presença de padres católicos sempre foram uma constante nos sertões daAmérica Portuguesa. Isto pode ser atestado em documentos que relatam nãoapenas a atuação de padres jesuítas, capuchinhos e carmelitas como missionáriose evangelizadores, mas como coadjuvantes num processo de instauração deuma ordem privada no sertão. Daí por diante até o final do período imperial, nosúltimos anos do século XIX a questão agrária não existiu de fato porque a terraera abundante e como privilégio de poucos. Inserida no contexto das váriasreformas liberais que caracterizaram a segunda metade do século XIX na AméricaLatina, também o projeto Saquarema de governo previa, dentre outras coisas, omonopólio da terra pelo Estado, bem como a mudança gradual do trabalhoescravo.

A consolidação do conservadorismo manteve-se frente ao projeto de farmerizaçãodos Liberais, onde a base desta oligarquia rural seria a hegemonia plantacionista.Assim, a Lei de Terras de 1850 seria uma reorganização dos Saquaremas frenteàs exigências do capitalismo e a necessidade de operacionalizar as mudanças,

Movimentos reativos e lideranças católicas no século XIX no BrasilSILVA, Célia Nonata da

Page 172: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

172

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

promovendo um reordenamento jurídico sobre a posse da terra (MATTOS, 1994).Essa nova tentativa de disciplinar o direito agrário no país acabou como muitasoutras propostas enfrentando grandes problemas de natureza política e religiosa.A reorganização conservadora da terra favoreceu a concentração de terras pelosgrandes proprietários e pode ser constata pela documentação dos Arquivos Ecle-siásticos da época2. O modelo e desenvolvimento agrário centrado na ‘via farmer’proposta pelos liberais foi definitivamente abolida pela efetivação da Lei de Ter-ras de 1850 (SILVA, 1998, P. 14-18). Além disso, a decisão de revalidar as sesmariasque fossem produtivas, ou seja, cultivadas, permitiu que a estrutura agrária ficas-se incólume não modificando em nada o sistema de posses. Com fronteiras aindamal definidas e terras de sobra, o país entraria na fase republicana sem a escravi-dão que foi extinta um ano antes, em 1888. A imigração que trouxe ao país osimigrantes europeus e um pouco mais tarde os asiáticos reforçou as estruturasagrárias apoiadas no latifúndio, apesar de alguns casos terem resultado na forma-ção de núcleos de colonização que receberam terras em diversos pontos do terri-tório, especialmente, no Sul.

Já na República, em 1891, a nova Constituição passava ao domínio dos Estadosda Federação as terras devolutas ficando com a União somente o suficiente paragarantir a defesa das fronteiras, construções militares e ferrovias. O Código Civilde 1917 tratou de estabelecer a via judicial para discriminar as terras particularese as terras devolutas, ou seja, estabelecendo finalmente os critérios para discerniras propriedades do Estado e de particulares. Estavam a partir dali proibidas arevalidação das sesmarias e a revalidação de posses exigindo a regulamentaçãode todas as terras indicando àqueles que não o conseguissem pela falta da docu-mentação o dispositivo legal de solicitar usucapião. Essa mesma Lei proibia osEstados de alienar ou conceder terras públicas com área superior a dez mil hecta-res e ainda, permitia que os posseiros de terras devolutas que nelas residissemhabitualmente a preferência da compra de até 25 hectares. Estavam isentas deimposto territorial as propriedades com até 20 hectares que fossem exploradaspelos seus donos e parentes.

A República, pois, não modificou o quadro histórico de completo desinteresse pormudanças na estrutura agrária do país, e tal não poderia realmente acontecerporque a grande demanda política pelo fim da monarquia recebeu apoio de fra-

2 A este exemplo ver: Arquivo Publico do Ceará. Documentação não encadernada da Arquidiocese doCrato e de Fortaleza.

Page 173: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

173

ções importantes das elites agrárias, que ficariam mais conhecidas durante o pri-meiro período republicano como oligarquias. Essas oligarquias eram originadashistoricamente da aristocracia imperial, que haviam se desencantado com ocentralismo político do regime monárquico e pediam insistentemente autonomiapara cuidar dos seus negócios. O que significava também poder criar em cadaprovíncia e depois estado da federação, sua própria estrutura de poder garantindoamplo domínio regional sem a interferência do governo central.3 Aliado a estesaspectos políticos, a questão ambiental fomentou temor e desespero nas popula-ções miseráveis do nordeste. As secas que assolaram os sertões de Pernambucoe Paraíba foram motivos de suspensão dos trabalhos rurais, fome e deslocamentodas populações famintas para a região sudeste, principalmente com a grande secade 1877-79. Com este quadro os episódios históricos envolvendo a questão agrá-ria inicia-se com o evento de Canudos e Contestado. No Nordeste, o fenômenoAntônio Conselheiro, gerou inquietação do governo no final do século XIX, já noperíodo republicano. Imortalizado nas páginas de Os Sertões de Euclídes da Cu-nha, o arraial do Belo Monte passava por uma experiência camponesa que ame-açava destruir o mundo planejado pelos latifundiários e os positivistas da Repúbli-ca. A monarquia era o regime ideal para Antônio Conselheiro e seus seguidores,seguindo a tradição e a política moral.

3 A Igreja Oitocentista e suas lideranças

É necessário salientar que paralelamente a esses fatos a Igreja passava por umprocesso de revitalização na segunda metade dos oitocentos, fruto de iniciativasda Hierarquia e do Papa. Esse processo de reforma entre 1840 a 1962 ficouconhecido como romanização. A Igreja nesta fase procurou impor a obediência aTrento, impedindo qualquer desvio na doutrina da Igreja e outras manifestaçõesque pudessem deturpar as orientações da Santa Sé. A romanização no país procu-rou certificar-se das exigências de uma Igreja conservadora e tradicional, afas-tando o padre do povo e das possíveis causas de escândalos, que eram numero-sas. A situação encontrou lugar seguro em Minas Gerais na Arquidiocese deMariana pelas mãos de Dom Antonio Ferreira Viçoso. Os colégios seminaristasvicentinos do Caraça percorriam as Minas Gerais e lugares pobres para as açõesmissionárias (SERBIN, 2008). O nordeste se viu abarrotado de padres estrangei-ros no intuito de levar a boa fé e as virtudes católicas da Igreja ao sertão. A força

3 Ver: CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados. São Paulo: Cia das Letras, 1999. O autor enfatizaa emergencia do poder republicano no país e a formação da nation building na forma autoritária,delimitando o aspecto publico da burocracia brasileira.

Movimentos reativos e lideranças católicas no século XIX no BrasilSILVA, Célia Nonata da

Page 174: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

174

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

de Dom Viçoso foi vigorosa no sentido de promover o clero brasileiro e renovarsua atuação social e religiosa. Entretanto, a presença dos beatos e beatas e algunslideres religiosos consagrados mantiveram-se inseridos na tradição católica maissocial. Isto fez com que os movimentos se sustentassem, mesmo num repertóriocoletivo contrareformista.

O relacionamento entre essas lideranças e os camponeses além de possibilitar oaparecimento de mitos religiosos populares, permitia suportar as más condiçõesde vida às quais estava submetida essa imensa população que se vinculava aterra. Assim também ocorreu no Contestado, episódio semelhante ao de Canudos,que se desenrolou entre 1912 e 1916 numa região fronteiriça entre Santa Catarinae Paraná. Neste caso, os monges homônimos chamados João Maria e um tercei-ro cujo nome é José Maria, lideraram os camponeses sem se submeterem à Hie-rarquia o que lhes causou terrível perseguição com as tropas do governo produ-zindo enorme morticínio, talvez maior do que o de Canudos. Para uma maiorcompreensão dos eventos dividimos os movimentos, segundo o seu comporta-mento e transformações políticas.

3.1 Movimentos pré-Canudos: ajuntamento de massas4

Estes movimentos são tidos muito mais como organização de massas e caracteri-zam-se pela rede de solidariedade que se estabelece entre Igreja, beatos e coro-néis. O seu aparecimento não tem como motivo questões políticas ou ambientais,mas sociais. Justifica-se pela ação missionária católica no sertão das Casas deCaridade, pela expectativa da salvação no outro mundo e total negação do vivido.Este comportamento de negação não produz qualquer questionamento da ordemagrário-conservadora, nem da Igreja e seus missionários. A exemplo, Pe. Cíceroe Frei Floro Bartolomeu eram os elos de ligação entre camponeses fanáticos efazendeiros.

Destes movimentos pré Canudos temos o Reino Encantado e da Pedra Bonita.Estes movimentos foram liderados pelos beatos que surgiram em Pernambucologo após a Confederação do Equador – 1824, refletindo a miséria e a seca queatacavam os sertanejos além das ameaças dos grandes proprietários. No caso doReino Encantado, em 1836, na serra do Catolé, atual município de São José do

4 Este termo retoma um dos conceitos de Elias Canetti (2005, p. 13-19) sobre massa aberta e fechada.Segundo o autor a massa fechada se organiza por um sentimento de medo ou ódio, significando seusentimento de destruição e ou perseguição ao sentimento de domesticação religiosa.

Page 175: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

175

Belmonte, na divisa de Pernambuco e Paraíba, o mameluco João Antônio dosSantos liderou o movimento. Antes disso, Silvestre José dos Santos, fundou oarraial Reino da Pedra Bonita em 1819 na serra do Rodeador em Pernambucosendo atacado pelo exército e destruído em 1820. Pouco depois em outro local,José dos Santos, que morava no sítio da Pedra Bonita, dizia ter se avistado com D.Sebastião, rei místico de Portugal. Após convencer as pessoas de sua história,esse líder engendrava complexo ritual culminando com sacrifício humano. Depoisde certo tempo, João Ferreira, uma espécie de “assessor” de José dos Santos,passou a liderar a seita e se dizia uma santidade engravidando as virgens quegerariam os guardiões do reino. Em 1838, um membro da seita, José Pereira,numa ânsia de destruição organizou uma matança seguindo as determinações devisões que tivera e após matar animais, velhos, crianças e as mulheres foi mortopelo próprio irmão. Em seguida a Guarda Nacional atacou o povoado matando ossobreviventes e aprisionando três deles.

3.2 Canudos e Contestado: movimentos reativos

Estes movimentos reativos, embora enrijecidos pelo repertório coletivo dacontrareforma, mantiveram uma diferença com os primeiros pela disposição emrecusar a Igreja tradicional e as redes dos favores dos latifundiários. Fundaramuma comunidade com apelos morais e religiosos, mas sem conformidade com aordem vigente. Antônio Conselheiro e os beatos do Contestado ansiavam peloretorno de um passado político e religioso e com isto feriam drasticamente osinteresses oligárquicos sustentados pelo novo poder.

O movimento o Caldeirão foi um dos mais importantes do nordeste. Este movi-mento recebeu este nome por causa da Fazenda do Caldeirão, no Crato - Ceará,local onde atuava José Lourenço, beato e afilhado do padre Cícero que neste localreuniu centenas de seguidores nos anos 30. Lourenço, filho de negros alforriados,tornara-se discípulo de Pe. Cícero praticando a penitência, a castidade e aautoflagelação. Nos anos de 1894 e 1895, José Lourenço foi morar com seus paise alguns romeiros numa região denominada Baixa de Dantas, arrendado pelo Pe.Cícero ao coronel João de Brito, em Crato. Ali ele começou a receber váriostrabalhadores rurais e moradores das redondezas enviados por Pe. Cícero. JoséLourenço é um dos poucos sobreviventes ao massacre. Em 1926 o beato José foise instalar com alguns sobreviventes do massacre e outros tantos numa regiãochamada Caldeirão – comprada pelo Pe. Cícero. Esta comunidade durou 10 anos,“onde habitaram 1.700 pessoas vivendo uma forma de comunidade onde ‘tudoera de todos’ e onde se podia enxergar um exemplo materializado de utopia comu-nista” (CORDEIRO, 2004, p. 44-45).

Movimentos reativos e lideranças católicas no século XIX no BrasilSILVA, Célia Nonata da

Page 176: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

176

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Antes de Contestado em 1912 surgiu o movimento dos Santarrões em 1872 noRio Grande do Sul e Canudinho em 1897, entre os rios Pelotas e Canoas, noterritório de Santa Catarina5. Novo Canudos nasceu sob a liderança de Miguel ouMiguelito que foi identificado posteriormente como desertor do exército e se de-clarou ser irmão do monge João Maria, grande baluarte do movimento do Contes-tado, e se estabeleceu no engenho de cana do comerciante Francelino Subtil deOliveira, onde começou a fazer rezas receitando remédios e pedindo penitências.A vila foi se enchendo de pobres, doentes e veteranos maragatos – federalistas -que foram derrotados poucos anos antes na Revolução Federalista (1893-1895)pelos pica-paus, republicanos. A pedido do governador de Santa Catarina, HercílioLuz, os soldados gaúchos destruíram o pequeno povoado que havia recebido daimprensa o nome de “novo Canudos” ou “Canudos de Lages”, porque os fatosque se desenvolviam na Guerra de Canudos eram paralelos aqueles que estavamocorrendo naquela região sulina. O temor de um “fanatismo” que pudesse se

5 Sobre os Santarrões Segundo Narber (2003, p. 74-75), este movimento distinguiu-se de tudo já visto atéentão. O grupo interessou unicamente colonos alemães e seus descendentes, que não apresentavamnenhuma miscigenação ou mestiçagem. Os colonos recebiam seus lotes e iam cortando a mata levan-tando suas casas em relativo isolamento. O governo nada lhes deu a não ser as terras. Com o tempo iamprogredindo materialmente, no entanto, espiritualmente a situação era caótica, nem padres católicos,nem pastores traziam ensinamentos religiosos aos habitantes. A solução encontrada por eles foiescolher o mais capacitado para passar os ensinamentos em comum. Em 1872, nesta região, moravano sopé do morro do Ferrabraz, um casal, João Jorge e Jacobina Maurer, com seus cincos filhos. Pelacarência de recursos médicos e religiosos, ficaram conhecidos pelos seus poderes como curandeiros.Diziam que João Jorge passara a curar por ter ouvido misteriosa voz que lhe ordenava. Jacobina eraanalfabeta, mas, sua paixão pela Bíblia fê-la aprender a soletrar e depois a ler. Falava com grandefluência e suas explicações se revestiam de aspectos fanáticos. Os moradores da região acreditavam queera ela inspirada por um espírito superior. Não tardou muito a iniciarem a prática de rituais, que nãotinham datas fixas para seres realizados. Começavam cantando hinos protestantes e rezando váriasorações. Em seguida, Jacobina aparecia vestida com vestes brancas e uma coroa, ficava em êxtase eabençoava a todos os presentes. Formava-se então uma seita da qual Jacobina era a alma. Durante acerimônia, Jacobina afirmava ser a reencarnação de Cristo e que as suas palavras eram também deCristo. Como Cristo, ela também escolheu doze apóstolos, sendo o primeiro seu marido. Jacobinaestabeleceu também uma série de regras e proibições. Inclusive, detinha o poder de promover edissolver casamentos. Em sua casa, promovia reuniões noturnas entre pessoas de ambos os sexos.Formava a seita uma comunidade estruturada e organizada. A profetiza ocupava o vértice e abaixo delahavia um conselho secreto, formado pelos quatro adeptos mais fervorosos, em seguida os doze apósto-los e mais abaixo os adeptos. Possuía suas normas próprias, ditadas pela profetiza, que regulamentavatodos os aspectos da vida civil e religiosa dos fiéis. Além dos trabalhos, impuseram contribuições“consoantes ás posses de cada um”, devendo todos, sem exceção, pagar sua quota à caixa comum;enveredavam mesmo para o comunismo puro e simples, que Jacobina justificava religiosamente: osprimitivos judeus tinham tudo possuído em comum. Num primeiro ataque os Muckers saíram vencedo-res, o que aumentou mais ainda as lendas a respeito deles. No entanto aumentou a quantidade de tropase foi provocado um incêndio do templo, muitos conseguiram escapar construindo outro abrigo maisintrincado no mato onde aguardavam por melhores tempos. Começou a espalhar a notícia de queAurélia, filha de Jacobina, estivesse querendo continuar a obra da mãe e a relação entre colonos e osMuckers (palavra de origem alemã que significa falso religioso) se tornaram cada vez mais tensa,culminando em crimes e assassinatos até 1898.

Page 177: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

177

alastrar rapidamente fez com que os fazendeiros e o governo tomassem medidasdrásticas, entretanto, já era costumeira a ação violenta da política naquela região.A captura e morte dos líderes puseram fim a um movimento que possuía duasorigens: o federalismo e o messianismo de João Maria. Ainda, outro movimento:os Monges Barbudos do Lagoão ficou registrado na liderança de André FerreiraFrança, lavrador, mais conhecido como Deca França. Em 1935 começou a pregaros ensinamentos do monge João Maria, organizando na sua propriedade, no distri-to de Lagoão, que era parte do município de Soledade no Rio Grande do Sul, umapregação que atraía os moradores daquela região, em geral colonos alemães eitalianos. Acreditando que o fim do mundo estava próximo, esses pregadores bar-budos e de cabelos longos andavam descalços e impressionavam os proprietáriosde terra e comerciantes que, em abril de 1938, ordenaram o massacre da comuni-dade pela polícia. Deca França foi fuzilado em 15 de agosto desse mesmo ano.

3.3 Movimentos acomodativos

Dois movimentos importantes que marcaram a primeira metade do século XX sãoconsiderados por Narber (2003, p. 93-104): Pau de Colher e o Povo do Velho Pedro.O primeiro se deu no povoado Pau de Colher, do município de Casa Nova, Bahia,onde era efetuada uma expedição militar para desbaratar um importante centro docatolicismo popular que se formou durante a década de 30. Considerados uma gran-de ameaça aos planos do Governo Vargas no Estado Novo, os adeptos da irmanda-de eram vaqueiros, roceiros, boiadeiros e simples sertanejos que foram rotulados debruxos e fanáticos perigosos. O segundo foi um grupo de seguidores do curandeiroPedro Batista da Silva, que pregou em Alagoas, Sergipe e Pernambuco, estabele-cendo-se finalmente em Santa Brígida, povoado de Jeremoabo, Bahia, próximo dolocal onde existiu o arraial de Canudos, em 1945. Apesar de ser acusado de fanatizarseus seguidores, continuou atuando sob a proteção de um potentado local. O povo-ado recebeu benfeitorias com a construção de escolas e de eletricidade. O VelhoPedro como era conhecido esse líder religioso continuou a benzer e aconselhar semser perturbado. A trajetória histórica deste movimento nos convida a refletir umpouco sobre os novos parâmetros políticos do Governo Vargas.

Na longa fase da história agrária do país o sistema de colonato, sucedâneo daparceria, prevaleceria incólume até a década de 1940 quando começavam a sur-gir os primeiros sinais de mudanças na legislação trabalhista. Não obstante, Getú-lio Vargas tenha fechado os olhos aos camponeses não estendendo a eles as leisque protegiam os operários, havia uma perspectiva de que cedo ou tarde issoacabaria ocorrendo. De fato, o Estatuto do Trabalhador Rural começou a sergestado na Constituição de 1946, bem como a reforma agrária. Ambos iriam ge-rar ao longo das décadas seguintes as lutas políticas de maior intensidade. Além

Movimentos reativos e lideranças católicas no século XIX no BrasilSILVA, Célia Nonata da

Page 178: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

178

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

disso, não se pode aceitar no período de 1890 a 1955, uma passividade dos cam-poneses. Mesmo que se consiga demonstrar sua falta de condições para se orga-nizar, é de se supor que houvesse outras formas de resistência que se traduzemem exemplos tais como: Canudos, Contestado, Pau de Colher, Caldeirão e porquenão o próprio fenômeno do Padre Cícero.

Durante todo esse período a aproximação da Igreja com os proprietários e cam-poneses deve ser encarada como situação de absoluta regularidade. Em relaçãoao governo os laços entre Igreja e Estado se solidificaram. Apoiado por bisposimportantes, o governo Vargas receberia em 1942, através de um documentooficial de alguns bispos, a consagração de sua antiga amizade pessoal com oinfluente Cardeal D. Sebastião Leme. Intitulado “Disciplina e Obediência ao Che-fe do Governo,” tal declaração proclamava as afinidades com o regimeestadonovista, reafirmando que a Legislação Trabalhista correspondia à DoutrinaSocial da Igreja, colocando claramente a sua posição anticomunista(MAINWARING, 1989, p. 59).

Portanto, sob o regime republicano o catolicismo se fortaleceu apesar da propa-gação de um ideal de laicização representado pela filosofia positivista, essência dadefesa republicana. Num outro nível, a economia do país se industrializava lenta-mente e assegurava a sua forma agro-exportadora pela produção crescente docafé auxiliada pelos planos de proteção subsidiada através do Convênio de Taubatéjá no início do século XX. Da Revolução de 30 até o fim do Estado Novo osolhares se voltaram para a cidade com a organização incômoda dos operários.Enquanto isso no campo, os coronéis e grandes cafeicultores viviam seu momentode angústia por causa da crise econômica e da intervenção dos tenentes queparticiparam e apoiaram o novo regime. Nesse momento reinou nas regiões dosertão o cangaço considerado banditismo rural. Na década de 40 a situação docampo começava a se modificar lentamente acelerando o êxodo dos camponesesque iriam para as cidades grandes em busca de trabalho e de uma outra vida. Istofez talvez com que houvesse uma tolerância dos ruralistas e do próprio Estado emperceber e reconhecer algumas mudanças na conjuntura social de determinadaspopulações carentes. Lamentavelmente esta mudança partiu do próprio poderburocrático, não de uma ação social no campo.

4 Conclusão: a moral pastoral como permanência

A indubitável relevância do problema da terra ou da questão agrária no Brasil nãose deve apenas a uma antiga situação de exploração dos trabalhadores. A longaduração de uma estrutura social hierarquizada herdada de um passado agrário ede concentração de terras, forjada historicamente pelo modelo concentrador de

Page 179: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

179

renda de grande potencial produtor de riquezas para as elites em geral, resultounuma matriz histórica da defesa da posse e a propriedade da terra.

Essa intrincada história de lutas pela terra deve ser gradualmente desvendadacom a reflexão acerca das informações que forem obtidas na leitura dos docu-mentos existentes nos arquivos a serem investigados pela pesquisa ora proposta.Há sem dúvida uma grande variedade de situações que devem ser objeto deestudo sistemático que se inicia com a primeira análise responsável pela revela-ção da importância do acontecimento – afinal o fato histórico é uma construçãodo historiador. Assim, as análises aqui propostas deverão seguir o processo histó-rico no recorte temporal proposto.

As lideranças católicas no campo consagradas ou não colhem seus frutos aindano século XIX com prisões e mortes. Movimento e conflitos condicionados apartir de transformações políticas, econômicas e ambientais, descortinando umaserie de eventos rurais entre os pequenos agricultores e os latifundiários. As ame-aças e mortes feitas aos padres por não aceitar os favores dos donos de terrastem início em 1850 com a Lei de Terras.6 A Igreja que faz a opção pelos pobrescomeça com fundação das casas de caridadade lideradas por beatos e beatas,liderados pelo Padre Ibiapina, a contraponto de uma Igreja tradicional e conserva-dora, muito mais atuante no Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo. Entretanto,o discurso e as ações destas lideranças ainda são modelados pelo repertório cole-tivo de uma moralidade que enaltece a tradição e o passado. Isto fez com que osmovimentos sempre estivessem olhando para a monarquia e para o dom da eco-nomia moral com base na luta pela terra. Este repertório converteu os movimen-tos em reativos. Neste sentido, enquanto o Estado se organizava, os movimentosestavam ainda com a mentalidade tradicional, não acompanhando as posiçõespolíticas de fato. Depois do Governo de Getúlio Vargas os movimentos se acomo-dam nas relações de poder e são cooptados. O enfraquecimento destes movimen-tos deve-se a própria liderança religiosa ainda corrompida pelo repertório moraldo poder político e da economia. E assim, a pobreza e a servidão á terra ainda sãotraços que marcaram as condições específicas dos conflitos rurais.

6 A existência desta documentação está presente em arquivos eclesiásticos, tais como: Arquivo eclesiás-tico da Arquidiocese do Ceará; Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese da Paraíba, Arquivo Eclesiástico daArquidiocese de Santa Maria e Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de São Félix do Araguaia.

Movimentos reativos e lideranças católicas no século XIX no BrasilSILVA, Célia Nonata da

Page 180: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

180

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Fontes:

Arquivos

1. Arquivo Público do Ceará.

- Documentação não organizada da Arquidiocese de Crato e de Fortaleza.

- Livros paroquiais (1848).

2. Arquivo Público de Pernambuco.

Referências

AZZI, Riolando. O movimento de Reforma Católica durante o século XIX. In:Revista Eclesiástica Brasileira. Petrópolis: Vozes, 1974, n. 34, p. 646-661.

BARROS, Luitgarde Oliveira. Do Ceará, três santos do nordeste. In.: RevistaCanudos. Bahia: UNEB, 1996, v. 01, n. 01, p. 37-55.

BONIM, Anamaria Aimoré et alii (org). Movimentos Sociais no Campo. Prefá-cio de Otavio Ianni. Curitiba: Scientia et Labor-Editora da UFP/ Edições Criar,1987.

BORGES, Accioly Borges et alii. Os Donos da Terra e a Luta pela ReformaAgrária. Rio de Janeiro: CODECRI-IBASE, 1984.

CANETTI, Elias. Massa e Poder. Tradução de Sergio Tellaroli. São Paulo: Cia.Das Letras, 2005.

CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados. São Paulo: Cia das Letras, 1999.

CORDEIRO, Domingos Sávio. Um beato líder: narrativas memoráveis do Cal-deirão. Fortaleza: Imprensa Universitária, 2004.

DAVATZ, Thomas. Memórias de um Colono no Brasil - 1850. Prefácio deSérgio Buarque de Holanda. 2 edição. São Paulo: Martins Fontes, 1951.

DESROCHERS, G. & HOONAERT, E. Padre Ibiapina e a Igreja dos Pobres.São Paulo: Paulinas, 1991.

Page 181: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

181

FACÓ, Rui. Cangaceiros e fanáticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1965.

FERNANDES, Rubem César. Os Cavaleiros do Bom Jesus: uma introdução àsreligiões populares. São Paulo: Brasiliense, 1982.

GOHN, Maria da Glória. Novas teorias dos Movimentos Sociais. São Paulo:Loyola, 2008.

______. Teorias dos Movimentos Sociais: paradigmas clássicos e contemporâ-neos. São Paulo: Loyola, 2007.

HERMANN, Jacqueline. “Sebastianismo e sedição: os rebeldes do Rodeador naCidade do Paraíso Terrestre, Pernambuco: 1817-1820”. In.: Tempo. Vol. 02. 11,2001. pp.: 131-142.

HOONAERT, Eduardo. Formação do Catolicismo Brasileiro, 1550-1800.Petrópolis-R.J., Vozes, 1974.

LUSTOSA O. P. Oscar de Figueiredo (org.). A Igreja Católica no Brasil e oRegime Republicano. São Paulo: Edições Loyola/CEPEHIB, 1990.

MAINWARING, Scott. Igreja Católica e Política no Brasil, 1916-1985. SãoPaulo: Brasiliense, 1989.

MARTINS, José de Souza, O Cativeiro da Terra. São Paulo: Editora: CiênciasHumanas, 1979.

MATTOS, Ilmar Rohloff. O tempo Saquarema: a formação do Estado Imperial.Rio de Janeiro: Acces, 1994.

MOTTA, Márcia Maria Menendes. Nas fronteiras do poder: conflitos de terrae direito agrário no Brasil de meados do século XIX. Rio de Janeiro: ArquivoPúblico do Estado do Rio de Janeiro/Vício de Leitura, 1998.

NARBER, G. Entre a Cruz e a espada: violência e misticismo no Brasil rural.Tradutores: Paulo Roberto Leite Salgado e Eduardo Soares de Freitas. São Paulo:Terceiro Nome, 2003.

PINSKY, Jaime (org.) Capital e Trabalho no Campo. Introdução de Paul Singer.São Paulo: Hucitec, 1977.

Movimentos reativos e lideranças católicas no século XIX no BrasilSILVA, Célia Nonata da

Page 182: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

182

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira. O Messianismo no Brasil e no Mundo. SãoPaulo: Alfa-Omega, 1976.

ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado. São Paulo: Kairós, 1979.

SERBIN, Kenneth P. Padres, Celibato e conflito social. São Paulo: Cia dasLetras, 2008.

SILVA, Francisco Carlos Teixeira. “Conservadorismo e Hegemonia Agrária noBrasil”. In.: CARNEIRO, Maria José et alii (org). Campo Aberto: o rural noEstado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: ContraCapa, 1998. pp. 13-40.

TILLY, Charles. Social Movements, 1768-2004. London: Paradigm Publishers,2004.

THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura populartradicional. Tradução: Rosaura Eichemberg. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998.

Page 183: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

183

ARTIGOS

Page 184: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

184

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Page 185: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

185

Resumo: Os princípios da Educação surgiram como norteadores dosdirecionamentos da construção da civilização interferindo inclusive nos rumos daHistória. Na antiga Grécia todo ideal de cidadania refletia-se no que chamavamde Arete, ou seja, a virtude que todo cidadão deveria cultivar. A partir das refle-xões dos primeiros pensadores e filósofos chegou-se a conclusão que este idealnão era apenas inato, mas deveria ser ensinado. O nascimento da Paidéia naantiga Grécia demarcou o primeiro degrau no campo da Educação representandodesta forma seu significado primordial. A partir daí a própria denominação Paidéiafoi de certa forma adulterada para “Pedagogia”, quando a ideia original de forma-ção de pensamento de homens livres foi sendo paulatinamente substituída pelaprática de conduzir as gerações futuras.

Palavras-chave: Pedagogia; educação; filosofia, Grécia antiga; história.

Abstract: The axioms of Education emerged as guiding directions to the civilizationbuilding, interfering even in the course of History. In ancient Greece every ideal ofcitizenship was reflect in what they called Arete, in other words, the virtue that allcitizen should cultivate. From the reflections of the first thinkers and philosophers,

O FENÔMENO DA EDUCAÇÃO NACONSTRUÇÃO DA HISTÓRIA

Genaro Alvarenga Fonseca*

Vânia de Fátima Martino**

* Professor do Departamento de Educação, Ciências Sociais e Políticas Públicas – UNESP campus deFranca.

** Professora do Departamento de Educação, Ciências Sociais e Políticas Públicas – UNESP campus deFranca.

Page 186: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

186

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

was reached the conclusion that this ideal was not only innate, but should bethought. The birth of the Paideia in the ancient Greece defined the first step of theEducation field representing, thus, its primordial meaning. From there the namePaideia itself was, somewhat, adulterated to “Pedagogy”, while the original ideaof thinking construction of freeman was gradually replaced for the practice ofconducting the future generations.

Keywords: Pedagogy; education; philosophy; ancient Greece, history.

Resumen: Los principios de la Educación surgieron como guías de la construcciónde la civilización, interfiriendo incluso en el curso de la Historia. En la antiguaGrecia, todo ideal de ciudadanía expresábase en la llamada Arete, es decir, lavirtud que todo ciudadano debía cultivar. A partir de las reflexiones de los primerospensadores y folósofos se alcanzó la conclusión que este ideal no era solo innato,sino que también debería ser enseñado. El nacimiento de la Paideia en la antiguaGrecia señaló el primer paso en el campo de la Educación, representando susignificado primordial. A partir de ahí, la propia denominación Paideia fué de algunamanera adulterada para “Pedagogía”, cuando la idea original de formación depensamiento de hombres libres fué gradualmente reemplazada por la practica deconduzir generaciones futuras.

Palabras clave: Pedagogía; educación; filosofía; Grecia Antigua; historia.

Introdução

Referindo-se ao tema Educação, reporta-se à categoria de “Fenômeno”, com ointuito de explicitar que a perspectiva educacional é inerente ao chamado “espíritohumano”. O epíteto “humanidade” é, pois, atribuído mediante características queconstituem os princípios elementares do “ser” homem. Sabe-se que estes princí-pios fundamentais não são inatos; assim, desde a aurora da humanidade os ho-mens são “educados” para serem homens dentro de seus sistemas de vida sociale cultural. Esta discussão torna-se mais aguçada se questionar-se o conceito deformação do “espírito humano”, que, por sua vez, envolve uma intrincada rede designificados e combinações, pois quando se refere a “humanidade”, isto não sóimplica no existir solitário do homem, mas alude ao significado de sua vida comoutros homens e todas as implicações que daí surgem.

As discussões que envolveram esta questão existencial floresceram inicialmentena Grécia Antiga, quando os homens livres questionavam sua real participação nomundo sem a intervenção direta de seus deuses. Este período histórico demarca a

Page 187: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

187

consciência diante da liberdade de pensamento. A partir do momento em que ohomem tomou para si a responsabilidade de seus atos e a consequente implicaçãodestes em seu meio, estabeleceram-se princípios norteadores para que se pudes-se preservar seu bem mais precioso: a liberdade.1

A complexidade do sistema social ultrapassa os limites estritos da sociologia paraestender-se em uma espécie de “ontologia social”, na qual os limites da vidaindividual se fundem indelevelmente com a vida social e a partir daí criam umterceiro sistema vital e assim sucessivamente. Dilthey afirma o seguinte:

El punto de partida para la comprensión del concepto de sistemas de la vidasocial lo constituye la riqueza vital del individuo mismo, que, como elemen-to de la sociedad, es objeto del primer grupo de ciencias. Imaginemos primeroesta riqueza vital de un individuo dado como completamente incomparablecon la de otro e intransferible a este. Entonces estos individuos podríandominarse y subyugarse mutuamente por la fuerza física, pero no poseeríanningún contenido común: cada uno estaría encerrado en sí mismo frente atodos los demás. De hecho, en absoluto en una coordinación semejante desus actividades con otros. Lo que en la plenitud vital del individuo estácondicionado por este punto no entra en ninguno de los sistemas de la vidasocial. La semejanza de los individuos es la condición para que exista unacomunidad de contenido en su vida. (DILTHEY, 1980, p. 101)

Ser senhor das próprias decisões não é tarefa fácil, quiçá nem tão desejada; ospoderosos sistemas teocráticos da Antiguidade, com exceção dos gregos, protegi-am o homem de si mesmo. Assim, pode-se aceitar o pensamento helênico comoum marco da tomada de consciência da humanidade. Contudo, quando outro fortesistema teológico – ou seja, o cristianismo – dominou o mundo ocidental (efetiva-mente a partir do século V da nossa era), a discussão sobre a liberdade do “espí-rito humano” tornou-se secundária, sendo retomada somente no século XIX, como pensamento idealista alemão. Tem-se, portanto, um gigantesco hiato que so-mente há pouco mais de um século ousou-se preencher com ensaios de livrepensamento. O próprio conceito de liberdade tornou-se dúbio por mais de ummilênio; os sistemas políticos e religiosos sempre funcionaram como aparelhoscontroladores e formadores de pensamentos, como nos lembra Althuser. Duranteséculos, o homem viveu comodamente sob uma espécie de liberdade assistida econtentava-se plenamente com esta situação. Em alguns momentos revolucioná-rios a paz de pensamento era perturbada, mas, com alguns ajustes, a ordem sem-pre retornava.

1 Esta afirmação não se reporta aos conceitos contratualistas do Iluminismo, mas sim ao questionamentodas relações entre o homem como ser social e o livre pensamento.

O fenômeno da educação na construção da históriaFONSECA, Genaro Alvarenga; MARTINO, Vânia de Fátima

Page 188: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

188

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

No que consiste, pois, a chamada liberdade de pensamento? É um estado deespírito? Uma ausência de inquietações? O direito de seguir os próprios concei-tos? Todos estes questionamentos apenas comprovam que a tese da liberdadepode ser facilmente fabricada e embutida na estrutura de pensamento de qual-quer sistema social e cultural. Contudo, ao longo da história pode-se citar várioscasos de livres pensadores que ousaram perverter a ordem do “reto pensar”. Oexemplo mais clássico é o de Sócrates, quando foi acusado e condenado porcorromper a juventude. Nas palavras de Meleto: “Sócrates é réu de haver-seocupado de assuntos que não eram de sua alçada, investigando o que existe em-baixo da terra e no céu, procurando transformar a mentira em verdade e ensinan-do-a às pessoas.” (PLATÃO, 1999, p. 68)

Nota-se, dada a severidade da condenação de Sócrates, a existência de “nichos”de pensamento que devem permanecer intocados nas sociedades; neste caso,questioná-los torna-se verdadeiro tabu. Frequentemente estes valores são susten-tados por um “arcabouço epistemológico” que representa o conjunto de conheci-mentos apresentados como verdadeiros, compatíveis com a natureza da socieda-de em questão; por conseguinte, são muitas vezes também amparados por umsistema religioso, visto que em um primeiro momento Sócrates foi acusado deateísmo.

Sem querer adotar o caminho do velho mestre, Platão vale-se de alguns estrata-gemas para burlar a vigilância “ideológica” da época:

Daí, as cautelas de Platão, quando da fundação da academia, para obter obeneplácito das autoridades competentes. Por isto mesmo deu à nova insti-tuição o caráter de confraria religiosa, dedicada às nove Musas, e sob adireção permanente de um escolarca, ele próprio enquanto viveu. Por dispo-sição testamentária sucedeu-lhe no cargo seu sobrinho Espeusipo, queiniciou suas atividades mandando colocar no Jardim da academia as estátu-as das Três Graças. (NUNES, 1980, p. 8)

Sabe-se, portanto, que o crime maior de Sócrates foi “contaminar” a juventude,ou seja, perverter os valores e conhecimentos já consolidados pela cultura daépoca, sendo que sua maior, senão única arma, seriam as palavras expressas pormeio dos Diálogos de Platão. O mestre contrapõe novos conhecimentos, ou melhor,um novo olhar aos conhecimentos que seus jovens discípulos já possuíam. Emtoda a obra Diálogos vê-se que Sócrates realiza uma constante contraposição deargumentos e ideias às “verdades” de seu tempo. Assim, percebe-se claramentea sobreposição de “sistemas educativos” em um embate dialético, no qual osargumentos socráticos, em sua simplicidade desconcertante, expunham as con-tradições de conhecimentos até então apresentados como inabaláveis. Conclui-

Page 189: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

189

se, portanto que o ato mais nocivo não foi questionar o saber antigo e aceito, masproporcionar às novas gerações a possibilidade de ver o mundo de outra forma e,desse modo, elaborar suas próprias indagações. Platão demonstra isso na metáfo-ra do Mito da Caverna.

Diferentes visões provocam diferentes pensamentos e, conseqüentemente, novasinterpretações da realidade; contudo, as estruturas mentais previamenteestabelecidas são bastante resistentes a mudanças bruscas. A realidade que épaulatinamente construída serve-se destas estruturas socialmente “confiáveis” eaceitas ™ afinal, a realidade é o que se vê e percebe. Destarte, chega-se aconclusão que o conhecimento do mundo é o próprio mundo, pois o homem enxer-ga-o e percebe-o a partir de si mesmo; este “si mesmo” constitui-se daquilo que oser humano conhece e traça em uma constante relação entre si e o mundo. Merleau-Ponty afirma o seguinte:

Todo pensamento de algo é ao mesmo tempo consciência de si, na falta doque ele não poderia ser objeto. Na raiz de todas as nossas experiências e detodas as nossas reflexões encontramos um ser que se reconhece a si mesmoimediatamente, porque ele é seu saber de si e de todas as coisas, e queconhece sua própria existência não por constatação e como um fato dado,ou por uma inferência a partir de uma idéia de si mesmo, mas por contatodireto com essa idéia. A consciência de si é o próprio ser do espírito emexercício. (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 496)

Desta forma, todo o intrincado processo que leva o indivíduo a acessar o conheci-mento sempre foi historicamente bem cuidado pelas diferentes culturas, pois istorepresentava a preservação e manutenção de seu status quo; em última instân-cia, o domínio das fontes do conhecimento sempre esteve associado à detençãodo poder, seja ele político, religioso, ideológico etc. Admite-se, portanto, a impor-tância do direcionamento deste processo, inclusive como sistema de controle so-cial. Como afirmou-se anteriormente, várias culturas delegam aos deuses a fontedo conhecimento por meio de revelações e oráculos, porém os gregos, que ousa-ram elaborar sua própria maneira de descobrir e explicar o mundo, destituíram asexplicações metafísicas da laboração do conhecimento. Sob esta perspectiva,porém, necessitava-se elaborar um sistema eficaz de aquisição e transmissão deconhecimentos. Assim, pode-se dizer que surgia, neste momento, mesmo que demaneira tímida, uma ciência pedagógica, pois já estava reconhecida a importânciada formulação de questionamentos em detrimento dos saberes dogmáticos.

O saber elaborado no bojo da visão do cotidiano constitui a formação da própriaessência da civilização e da identidade íntima do indivíduo. Hegel afirma que é ochamado “espírito humano” que constitui a espinha dorsal das civilizações edireciona o curso da história. Assim, o conhecimento e suas formas de aquisição

O fenômeno da educação na construção da históriaFONSECA, Genaro Alvarenga; MARTINO, Vânia de Fátima

Page 190: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

190

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

e difusão tornam-se o verdadeiro patrimônio cultural das civilizações; daí o con-trole de sua produção, que evidentemente representa a mola mestra dodirecionamento das ações humanas ao longo de sua existência. A questão daformação do indivíduo é, em primeira e em última instância, o ponto chave daconstituição do próprio conceito de humanidade entendida como sua característi-ca a priori. O pensador contemporâneo Gadamer afirma:

Cada indivíduo em particular que se eleva de seu ser natural a um ser espi-ritual, encontra no idioma, no costume, nas instituições de seu povo umasubstância já existente, que, como o aprender falar, ele, terá de fazer seu. Épor isso que cada indivíduo em particular já está sempre a caminho daformação e já sempre a ponto de suspender sua naturalidade tão logo omundo em que esteja crescendo seja um mundo formado humanamente noque diz respeito à linguagem e ao costume. Hegel acentua: nesse seu mundoum povo deu-se existência. Ele trabalhou a partir de si mesmo e extraiu de si,o que ele é em si. (GADAMER, 1997, p. 54)

Ao voltar-se a questão inicial da associação do conceito de Educação como Fe-nômeno Humano2, pode-se afirmar que o “espírito humano” é construído pelaeducação, e esta, por sua vez, segue os direcionamentos do sistema social vigen-te. O que se almeja investigar mais profundamente, no entanto, é a natureza apriori do questionamento do homem em busca da verdade, tal como Sócratespreconiza no diálogo Teeteto3; neste aspecto, a Educação apresenta-se apenasuma parte do processo, pois o verdadeiro conhecimento não é simplesmente ad-quirido definitivamente, mas é eternamente almejado. Os sistemas educativoscomprometidos com a verdade reconhecem este dilema e, inclusive, preconizamem seus pressupostos teóricos a limitação epistemológica que a própria ciência daEducação possui em relação à conquista da verdade absoluta, pois, do contrário,cairia em um ciclo vicioso de dogmatismo.

Educação formadora de cidadãos

A formação do povo grego percorreu um longo e tortuoso caminho até o triunfodo helenismo. O “espírito” helênico desde seus primórdios calcou-se basicamentesobre dois conceitos fundamentais: Educação e urbanidade4. Os gregos, tradicio-

2 Tomou-se a liberdade de utilizar o termo “Fenômeno Humano” originalmente cunhado por TeilhardChardin em sua obra homônima: CHARDIN, T. O Fenômeno humano. Porto: Tavares e Martins, 1970.

3 Neste diálogo, Sócrates afirma que a busca pela verdade é uma forma confiável e honesta de conheci-mento, pois a verdade suprema não é alcançável.

4 O conceito de cidade para o homem grego supera a idéia de simples aglomeração urbana com finalidadesocial e econômica, a pólis representava a concretização de todas as suas aspirações. Segundo Rodrigues:“Três grandes princípios presidem à formação da pólis: eleuteria (independência), autonomia (poderpróprio) e autarquia (autogestão). A cidade era tudo para o cidadão grego. O verbo politeyesthai, quesignificava tomar parte nos negócios públicos, também significava viver. No fundo a polis é uma idéiasupratemporal, que não depende nem mesmo de um ponto geográfico” (RODRIGUES, 1988, p. 76)

Page 191: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

191

nalmente elitistas e auto-denominados superiores, sempre fizeram questão de afir-mar a superioridade de sua cultura sobre os demais povos de seu tempo; enxerga-vam seus vizinhos frequentemente como “bárbaros”, ignorantes ou demasiada-mente superstiosos e, portanto, incapazes de ver claramente o mundo que oscercava.5 O conceito de Educação na Grécia antiga desenvolveu-se paralela-mente ao de urbanidade, em função do incremento da vida social. A complexidadeda vida na Grécia clássica exigiu um processo de formação diferenciado entre osmembros da sociedade. Os estrangeiros, camponeses e escravos que povoavamas cidades gregas exerciam funções delimitadas à sua condição, já os cidadãosexigiam um processo de formação muito mais elaborado, cuja finalidade incluía apreservação dos valores que caracterizavam sua própria identidade cultural.

A formação da cidadania sempre foi um problema complexo em todas as socieda-des. Ser cidadão não é o mesmo que ser um membro do clã, pois esta condiçãoexige participação consciente na tomada de decisões que assinala os rumos dacivilização. Sua formação é, portanto, crucial e demandada pelo próprio contextode seu tempo. O sistema de “castas” nobres da Grécia arcaica já não mais satis-fazia a sociedade politizada do século V. A estruturação da pólis grega calcou-sesob um sistema social urbano legitimado por seus cidadãos conscientes de seupapel social e de todas as implicações que daí viriam. Este “papel social” consistiabasicamente em exercer a cidadania de acordo com a Arete, ou seja, a represen-tação de todo ideário de virtudes esperadas de um cidadão grego6. Os princípiosda Arete já podiam ser vistos nos versos de Homero, nos quais se expunha umcódigo de honra e virilidade dentro de um ideal heróico embasado em princípiosmorais e patrióticos. Tanto na Ilíada quanto na Odisséia demonstrava-se a tena-cidade responsável pelo consequente triunfo do homem grego sob as diversidadesadvindas do embate contra outros povos e até mesmo com os deuses.

A virtude representada pela Arete não advinha de um privilégio de nascimento,como previa o sistema de nobreza por castas, mas era um direito conquistado. Asociedade urbana grega moldou sua estrutura sob os princípios da Arete, comoafirma Jaeger:

A nova sociedade civil urbana tinha uma grande desvantagem em relação àaristocracia, porque, embora possuísse um ideal de homem e cidadão e o julgas-

5 Popper (1974, p. 84) afirma: “Platão e seu discípulo Aristóteles apresentavam a teoria da desigualdadebiológica e moral do homem. Gregos e bárbaros são desiguais por natureza; a oposição entre elescorresponde àquela entre senhores naturais e escravos naturais.”

6 Em relação à Arete, Jaeger explica o seguinte: “O tema essencial da história da educação grega é antes oconceito de Arete, que remonta os tempos mais antigos. Não temos na língua portuguesa um equivalenteexato para este termo; mas a palavra” virtude “na sua acepção não atenuada pelo uso puramente moral,e como expressão do mais alto grau cavalheiresco, unido a uma conduta cortês e distinta e ao heroísmoguerreiro, talvez pudesse exprimir o sentido da palavra grega” (JAEGER, 1979, p. 23)

O fenômeno da educação na construção da históriaFONSECA, Genaro Alvarenga; MARTINO, Vânia de Fátima

Page 192: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

192

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

se, em princípio, muito superior ao da nobreza, carecia dum sistema coerente deeducação para atingir aquele ideal. A educação profissional, herdada do pai parao filho que lhe seguia o ofício e a indústria, não se podia comparar à educaçãototal de espírito e de corpo do nobre, baseada numa concepção total de homem.Cedo se faz sentir a necessidade duma nova educação capaz de satisfazer osideais do homem da pólis. (JAEGER, 1979, p. 312)

Assim sendo, o princípio básico da educação foi a formação de um “espírito” decoletividade a fim de fundamentar uma estirpe comprometida com a vida sobtodos os aspectos ligada à pólis. Tal tarefa não é simples, pois exige umareformulação no próprio modo de enxergar o mundo e, a partir daí, traçar novasperspectivas e metas a serem atingidas. Todo processo civilizatório possui esteprincípio, pois do contrário a própria civilização se converteria em uma nau rumoà inevitável extinção. Têm-se, inclusive, inúmeros exemplos históricos que com-provam isto. A Arete não deveria nem poderia ser privilégio de uma camadanobre por direito de sangue; antes, deveria ser difundida a todos os cidadãos. Osfundamentos desta “difusão” foram chamados de Paidéia, ou seja, o princípio daeducação grega e de todo o pensamento ocidental.

Os gregos foram, assim, pioneiros em atribuir conscientemente à educação atarefa de construir uma civilização. A educação, sob este ponto de vista, deveriaser um meio de igualar os cidadãos, superando os privilégios da nobreza de san-gue, comuns nas sociedades arcaicas. Por ela os homens poderiam alcançar aArete e, assim, legitimariam sua posição na sociedade como cidadãos. Nestesentido, a Educação atinge uma conotação de movimento, visto que por meio delapode-se observar uma mobilidade social na da antiga estrutura arcaica e aristo-crática • aliás, a visão da educação como mobilizadora social persiste até os diasde hoje. Por outro lado, as novas camadas de pessoas admitidas no seio da soci-edade como cidadãs formariam também uma categoria social politizada, a qualsustentaria o ônus dos encargos políticos da pólis. Com estas considerações nãoestamos apenas discutindo as questões políticas da Grécia antiga, mas os funda-mentos das políticas educacionais que influenciaram não somente o mundo grego,mas toda a cultura ocidental vindoura. Jaeger afirma:

O estado do século V é o ponto de partida histórico necessário do grandemovimento educativo que imprime o caráter a este século e ao seguinte, e noqual tem origem a idéia ocidental de cultura. Como os gregos a viram, éintegralmente político-pedagógica. Foi das necessidades mais profundasda vida do Estado que nasceu a idéia de educação, a qual reconheceu nosaber a nova e poderosa força espiritual daquele tempo para a formação dehomens, e a pôs ao serviço desta tarefa. (JAEGER, 1979, p. 313)

Nota-se assim que a idéia de cidadão estava intimamente atrelada à questão daEducação, que leva a concluir que também a idéia de Estado estaria ligada à

Page 193: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

193

Educação, pois esta seria a responsável pela formação dos valores estruturadoresda sociedade da época, igualando os cidadão mediante suas reais capacidades enão antigos valores tribais.

Deste modo, os conceitos de Estado e cultura aparecem correlatos, visto que todaa civilização grega engendrava-se sob um modelo político-pedagógico. Destarte,torna-se clara a confluência entre as idéias de Estado, Educação, cidadania ecultura, analisada sob o aspecto de civilização, conceito este que, por sua vez,anela-se aos precedentes. Nesta perspectiva, a Paidéia surge como um eloaglutinador de todos os valores que os gregos prezavam para compor sua culturae sua civilização; o saber torna-se, portanto, uma poderosa força “espiritual” paraa formação dos homens. O poder da Educação demonstra-se como um vigorosomovimento que parte da antiga estrutura aristocrática e expande-se para formar ocidadão crítico, consciente e apreciador da liberdade.

O pensamento grego através da Educação teve a capacidade de libertar o “espí-rito humano”, até então preso às amarras da religiosidade exacerbada, do estigmade privilégio de castas e do dogmatismo que fornecia suporte aos conceitos ante-riores. O próprio conceito de saber difundido até então entra em colapso: o saberrestrito, técnico e objetivo se destinaria a escravos, artesãos e camponeses; aocidadão caberia o aprimoramento da Arete, o conjunto das virtudes do homemlivre. Hegel, na obra Introdução à história da filosofia, afirma:

A genuína filosofia começa no ocidente. Só no Ocidente se ergue a liberdadeda autoconsciência, desaparece a consciência natural e o espírito desce den-tro de si próprio. No esplendor do Oriente desaparece o indivíduo; só noOcidente a luz se torna a lâmpada do pensamento que ilumina a si própria,criando por si o seu mundo. A beatitude do Ocidente caracteriza-se pelo fatode nele o sujeito durar como tal e permanecer no estado de substancial, já queo espírito singular compreende o seu ser como universal, e a sua universalida-de consiste nesta relação consigo mesmo. Este ser por si, esta personalidadee infinidade do eu, forma o ser do espírito; só assim ele é e não de outramaneira. Que um povo se reconheça livre e seja tal apenas enquanto univer-sal, eis o que constitui o seu ser, o princípio de toda a vida moral e civil. Temos,por exemplo, a noção do nosso ser essencial no sentido que a liberdadepessoal é sua condição fundamental, e que nós por conseguinte não pode-mos ser escravos; se fosse lei o mero arbítrio do príncipe e este quisesseintroduzir a escravatura, estamos certos que tal não sucederia. O dormitar, ofugir, o estar às ordens de outro não constitui nosso ser essencial; mas sim onão ser escravo: isto tem a importância dum estado natural. Assim no Ociden-te estamos no terreno da verdadeira e própria filosofia. (HEGEL, 1989, p. 147)

A complexidade crescente da idéia de Arete, que já não mais se satisfazia com oheroísmo ingênuo da Ilíada, resultou a partir do século V a C. em uma verdadeira

O fenômeno da educação na construção da históriaFONSECA, Genaro Alvarenga; MARTINO, Vânia de Fátima

Page 194: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

194

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

“revolução educacional”, pois a complexidade da vida urbana exigia novos sabe-res. Isto não significa a substituição da Arete, muito menos na corrupção de seusvalores primordiais, mas em uma “reorganização” dos valores antigos em conflu-ência com as exigências da sociedade urbana. Neste cenário, surge a importantefigura do sofista que no momento exerceu um inestimável trabalho, no sentido depromover a Educação dos jovens gregos. Não obstante a Educação ter uma fun-ção estrutural na civilização grega, o Estado nunca tomou para si tal tarefa, o quea torna ainda mais descompromissada com o poder político e mais próxima aosvalores de verdade, questionamento e liberdade. O sofista, como personagem nouniverso da filosofia, possui uma imagem controvertida e polêmica, graças aosmordazes ataques de Sócrates e Platão. No entanto, estes tiveram uma importân-cia fundamental ao tomarem para si o papel dos primeiros educadores “laicos”,desvinculados dos sistemas de formação de religiosos, escribas ou ofícios.

Talvez as maiores falhas atribuídas aos sofistas não estejam relacionadas a seumétodo de ensino, mas às doutrinas redundantes e pretensamente infundadas queprofessavam; sabemos que muitos deles restringiam-se a fazer com que seusdiscípulos memorizassem os versos de Homero e Hesíodo, sem que daí surgissemprofundas reflexões. Porém, o que se interessa observar é que com os sofistasinicia-se formalmente o processo de ensino e aprendizagem. Os primórdios davida intelectual grega estavam quase exclusivamente restritos à poesia; esta, nafalta de um sistema filosófico sólido, oferecia fundamentos de moralidade, patrio-tismo e virilidade. O sofista Protágoras, em diálogo com Sócrates, defende o se-guinte sistema educativo:

Começando de pouquinho desde pequeno, enquanto vive é a criança ins-truída e educada neste sentido. Desde que ela compreende o que lhe diz, amãe, a ama, o preceptor e o próprio pai conjugam esforços para que o meni-no se desenvolva da melhor maneira possível; toda palavra e todo ato lhesenseja oportunidade para ensinar-lhe o que é justo ou injusto, o que éhonesto e o que é vergonhoso, o que é santo e o que é ímpio, o que pode eo que não pode ser feito. Se ele obedece, muito bem: caso contrário, comofazemos com as árvores inclinadas e contorcidas, são endireitados por meiode ameaças e processos violentos. Depois, o enviam para a escola e reco-mendam aos professores que cuidem com mais rigor dos costumes do meni-no do que do aprendizado das letras e da cítara. É o que os professoresfazem; e quando o aluno aprende a ler, e começa a compreender o que estáescrito, tal como o faziam antes com os sons, dão-lhe em seu banquinho a leras obras de bons poetas, que eles são obrigados a decorar, prenhes depreceitos morais, com muitas narrações em louvor e glória dos homensilustres do passado, para que o menino venha a imitá-los por emulação e seesforce para parecer-se com eles. Do mesmo modo procedem os professo-res de cítara; envidam esforços para deixar temperantes os meninos e desviá-los da prática de ações más. Depois de haverem aprendido a tocar cítara,

Page 195: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

195

fazem-nos estudar a criação de outros grandes poetas, os líricos, a quemdão acompanhamento a lira, trabalhando, deste modo, para que a alma dosmeninos se aproprie dos ritmos e da harmonia a fim de que fiquem maisbrandos e, porque mais ritmados e harmônicos, se tornem igualmente aptostanto para a palavra quanto para ação. Pois em todo seu decurso a vida dohomem necessita de cadência e harmonia. De seguida, entregam-nos ospais ao professor de ginástica, para que fiquem com o corpo em melhorescondições de servir o espírito virtuoso, sem virem a ser forçados, por fra-queza de constituição, a revelar covardia, tanto na guerra quanto em situa-ções semelhantes. Assim procedem os que mais podem, e podem mais osricos, cujos filhos começam muito cedo a freqüentar a escola e são os últi-mos a deixá-la. (PLATÃO, 1980, p. 62)

Os sofistas representaram a primeira tentativa de estruturação de um sistemaeducacional. Por mais que possam ser criticados pela escola socrática, o sistemasofístico implantou uma nova idéia de Arete, baseada no saber e não apenas emvalores heróicos e morais difundidos em seu tempo. Cabe-se até afirmar,ousadamente, que a “sofística” preparou um terreno fértil para a germinação dopensamento socrático. Observa-se neste momento histórico que Educação vistacomo fenômeno realiza um “movimento”, de acordo com o pensamento deHeráclito, no qual parte definitivamente de uma estrutura arcaica e aristocráticapara adequar-se a uma nova visão de mundo que se descortinava, dando voz aosquestionamentos do espírito humano que se seguiam à senda do infinito e inesgo-tável. Assim, a ideia de Arete torna-se ampla o bastante para compreender toda ademanda existencial do ser humano, pois suas fronteiras não se limitavam mais àmera virtude, mas à infindável busca pelo saber.

Protágoras e outros sofistas de seu tempo, embora criticados duramente porSócrates, preconizaram a relevância da formação intelectual. Mesmosupervalorizando a importância da dialética, adotaram o sistema do trivium equadrivium como estudos propedêuticos, ainda que a estes relegassem uma apre-ciação menor pelo fato de estarem a cargo de um pedagogo. Percebe-se clara-mente o nascimento da “Paidéia” não apenas como um sistema de ensino ele-mentar, mas como o despertar consciente da ação da Educação e da culturacomo formadoras do espírito humano. Não obstante ao mérito mencionado dossofistas, as mudanças de paradigma a partir do século V a.C. não puderam secontentar com o frágil conhecimento retórico, pois este, parafraseando Marx,engendrou o germe de sua própria destruição: as reflexões geradas em seu seioproduziram questionamentos que somente um sistema filosófico superior poderiasatisfazer. A pólis demandava, pois uma atividade cultural permanente: o teatro, apoesia e a música constituíam itens básicos da vida cotidiana dos gregos. O as-pecto representativo das artes, e não apenas sua função estética, contribuiu paraexercitar a capacidade de reflexão dos cidadãos. Comumente discutia-se pelas

O fenômeno da educação na construção da históriaFONSECA, Genaro Alvarenga; MARTINO, Vânia de Fátima

Page 196: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

196

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

ruas e praças o enredo das peças teatrais ou se criavam polêmicas sobre o con-teúdo das poesias declamadas, tal como se faz nos dias de hoje com filmes enovelas. Em todo o mundo grego, as artes assumem um caráter pedagógico, emque valores éticos são transmitidos de forma lúdica. Os sofistas aproveitaram-sedesta tradição até terem seus métodos questionados por Sócrates, que reclamavaum saber autônomo para o homem livre, governado pelas suas próprias idéias.Assim sendo, o ideal socrático encontra em tempo oportuno um terreno fértil paradesenvolver-se.

O homem grego, ao contrário de seus contemporâneos, já absorvera o conceitode Educação (Paidéia) como um verdadeiro ideal nacional; a pólis, como foi dito,era uma verdadeira “máquina educativa”, e não só tinham os gregos plena cons-ciência deste fato como também necessitavam disto para se manter. 7 Cambiafirma o seguinte:

[...] será Sócrates quem irá mostrar a dramaticidade e a universalidade de talprocesso (educativo), que envolve o indivíduo ab imis e busca sua identi-dade pela ativação de um daimon que traça seu caminho e pelo uso dadialética que produz a universalização do indivíduo pela discussão racionale pelo seu processo sempre renovado, a fim de atingir a virtude mais própriado homem, que é o “conhece-te a ti mesmo”. Estamos já no horizonte daPaidéia, daquele ideal de formação humana, da “formação de uma humani-dade superior” nutrida de cultura e de civilização, que atribui ao homem,sobretudo uma identidade cultural e histórica. “Ela não parte do indivíduo,mas da idéia. Acima do homem-rebanho e do homem pretensamente autôno-mo, está o homem como idéia”, ou seja, “como imagem universal e exemplarda espécie” (Jaeger) nutrida de história e capaz de realizar os princípios davida contemplativa. Esse humanismo ninguém o possui por natureza, ele é ofruto apenas da educação, e é o desafio máximo que alimenta todos osprocessos de formação. (CAMBI, 1999, p. 87)

A própria trajetória de vida de Sócrates fez dele o maior pedagogo da história daeducação ocidental, e até mesmo sua morte foi usada até os instantes finais comouma última lição a seus discípulos. Sócrates ensinou o valor inegociável do conhe-cimento: a busca pela verdade não poderia ser impedida nem mesmo com a mor-te. Assim inicia-se no ocidente o verdadeiro movimento de indagação filosófica.Não se pode negar que o pensamento socrático fora influenciado pelas escolasanteriores, como a cosmologia de Anaxágoras e a poesia de Aristófanes; seusestudos iniciam-se pela geometria e pela cosmologia, mas foi pelo questionamentosobre a vida cotidiana que se tornou célebre. Os questionamentos intelectuais dosgregos nesta época davam vazão às reflexões a respeito da natureza e do cos-

7 O estado grego nunca foi coeso do ponto de vista político, por isso perdeu sua autonomia política;contudo, permaneceu como modelo cultural para todo mundo ocidental.

Page 197: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

197

mos, mas Sócrates modificou o foco das indagações e passou a buscar respostassobre a natureza do homem, como se este fosse um microcosmo a ser explorado.E foi exatamente neste momento que teve início a filosofia ocidental, tal como aconhecemos. O ser humano, visto como um universo extremamente complexovaleria mais a pena ser perscrutado que o mundo supraterrâneo.

Ao contrário dos sofistas, que pululavam na Atenas do século IV a.C. revestidosde uma aura de sapiência e só se dignavam a falar nas casas de cidadãos abasta-dos para um seleto rol, Sócrates não se dirigiu, a princípio, aos membros notáveisda sociedade, nem cobrava por suas palestras; o filósofo usava os espaços públi-cos como ginásios e praças ou ocasiões especiais como banquetes para dirigir-sea seus ouvintes. Apresentava-se como um homem simples e não preparava suas“conferências”, falava sobre o cotidiano e usava exemplos do dia a dia comoilustração. Assim foi capaz de refutar e desmontar todo o arcabouço pré-fabrica-do dos argumentos sofísticos, tidos até então como verdadeiros. Sócrates, na ver-dade, não apresentava novos conhecimentos, mas refutava os que já existiam elevantava novos questionamentos sobre a visão de mundo de seu tempo. As ex-planações plenas de razões dogmáticas dos sofistas se revelaram frágeis demaispara se contraporem às indagações socráticas. Contudo, seria por demasiadosimplista pensar que o pensamento deste filósofo se restringisse a meras especu-lações, pois o método socrático deu início ao processo de filosofar, expandindo avisão do homem ocidental, fazendo que ele fosse capaz de visualizar o universo apartir de si mesmo.

O mais importante, no entanto, foi a transmissão da mensagem educadora deSócrates: o filósofo estava plenamente consciente de sua missão como educador,preocupando-se sobretudo com a “alma” dos cidadãos e não apenas com suaposição social, convicções religiosas ou políticas. A educação, acima de tudo,seria o bem mais precioso, pelo qual valeria a pena lutar e até morrer, como elemesmo o fez, visto que cuidar da alma, no sentido intelectual, seria uma missãosuprema. A “alma”, no sentido socrático ,representava a essência do espíritopensante; assim, a educação adquiria uma importância fundamental até entãodesconhecida, pois os gregos davam grande importância ao cultivo do corpo atra-vés da ginástica e da oratória desenvolvida por meio da arte da Retórica. Platão,na obra Apologia a Sócrates, relata as seguintes palavras de Sócrates, demons-trando sua preocupação com a educação dos jovens:

Cálias, se teus dois filhos fossem dois potros ou duas vitelas, terias deencontrar e pagar uma pessoa que tomasse conta deles, que tivesse a capa-cidade de lhes ensinar as virtudes para serem acrescentadas à sua natureza,e eles se tornariam cavalariços ou agricultores; mas teus filhos são homens;que educação, então tencionas proporcionar-lhes? Quem entende das vir-

O fenômeno da educação na construção da históriaFONSECA, Genaro Alvarenga; MARTINO, Vânia de Fátima

Page 198: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

198

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

tudes que lhes são necessárias, ou seja, das virtudes do homem cidadão?Acredito que pensaste a respeito disso quando puseste os filhos no mun-do. (PLATÃO, 1999, p. 69)

O sistema filosófico e educativo socrático ousou desafiar o modo de vida gregosecularmente estruturado; sabe-se o preço desta ousadia, mas o intento final foraconquistado. Os gregos prezavam sobremaneira um modo de vida hedonista, va-lorizando, sobretudo, o belo e o prazer. Sócrates foi incomodamente incisivo quan-do seus questionamentos fizeram desmoronar as estruturas frágeis sustentadaspelos sofistas de seu tempo: os conceitos de verdade, do bem e da moral foraminseridos no círculo das discussões e isto por si só demonstrou a superficialidadedas palestras dos sofistas e mais ainda a precariedade do “sistema de educação”vigente até então.

A questão educacional fora apartada da religião, pois o conceito de alma estavaligado ao aspecto intelectual e não “espiritual” (religioso), daí observa-se o fato dofilósofo ter sido acusado de ateísmo. Os pensadores posteriores, tais como Platãoe Aristóteles, também trataram à sua maneira a questão da alma, mas esta jáestava definitivamente dissociada do aspecto religioso. Platão, em alguns aspec-tos, foi mais harmônico que seu mestre: associou o conceito de belo aos princípiossocráticos de bem e verdade, assim estabeleceu uma coesão perfeitamente acei-tável entre a filosofia, a educação e o modo de vida grego. Platão não foi menosincisivo que Sócrates, mas foi mais “polido”, soube conquistar o respeito e admi-ração dos cidadãos de toda a Grécia. Para isso utilizou as mesmas técnicas de seumestre, mas, adequando-as ao gosto dos homens de seu tempo, soube compreen-der que a filosofia e a educação não podem ser “engolidas goela abaixo”, devem,antes, ser “saboreadas”. A imagem de Hedonismo como ideal foi substituída pelaEudaimonia, ou seja, instituiu-se o conceito da busca crítica pela verdade comoparte dos ideais da virtude. Daí pode-se entender em que contexto Platão cria aalegoria do “Mito da caverna”. Esta parábola não representa apenas uma fábulapara divertir as rodas de discussão, mas demonstra o perigo real da prisão daconsciência em meio a uma pseudo-realidade fabricada.

Platão foi capaz de mostrar ao mundo de seu tempo que a verdadeira virtude seencontrava na busca da verdade, e a beleza, tão cara aos gregos, encontrava-senão somente nas coisas materiais, mas era uma força vital que emanava de tudo,e poderia ser somente captada pelos olhos da alma, que, por sua vez, deveriamestar revestidos de sensibilidade e conhecimentos. Nesta perspectiva, conclui-seque não se pode sequer enxergar o mundo verdadeiro tal como ele é sem umapreparação prévia do espírito; isto justifica a criação de um sistema educativo emque o conhecimento pudesse ser transmitido de forma livre e descompromissadade dogmatismos. Embora Sócrates não tenha fundado uma escola propriamente

Page 199: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

199

dita, possibilitou a Platão e Aristóteles formularem as bases de um sistema educa-cional no qual pudessem desenvolver seu pensamento filosófico. Sócrates inclusi-ve atribuía um aspecto prático à educação, pois somente por meio dela o homematingiria sua plenitude de caráter e, por conseguinte, a felicidade. Jaeger afirma:

Assim, pois, a redobrada atenção que Sócrates dedica às “coisas humanas”actua como princípio selectivo no reino dos valores culturais vigentes atéentão. Por trás da pergunta: “até onde se deve levar um estudo?” ergue-seesta outra, mais importante: “para que serve esse estudo e qual é a meta davida?”. Sem dar uma resposta a tal pergunta, não seria possível uma educa-ção. (JAEGER, 1979, p. 501)

Sob este aspecto, Sócrates foi mais realista que seu discípulo Platão, que previauma sociedade perfeita somente poderia ser governada por reis filósofos. Em suaconcepção o ser humano poderia perfeitamente criar um mundo harmonioso, semque isto se caracterizasse apenas como delírios utópicos. Segundo Sócrates, serianecessário construir primeiramente o interior de cada homem para que, a partirdaí, estes construíssem a pólis ideal, justa e igualitária. Neste meio os homensseriam iguais pelas suas virtudes, aperfeiçoadas pela educação, e estariam aptosa governar e serem governados como seres verdadeiramente livres.

Considerações finais

A questão da liberdade sempre esteve em pauta quando se discute humanismo.Ao longo da história da filosofia, muitos pensadores afirmaram que o homem é umser livre por natureza, porém vive em constante embate entre com as forças quepretendem subjugá-lo. Descartes nos fala da tirania das paixões; Freud, das for-ças indomáveis da natureza animal etc. Seria possível citar inúmeros outros atítulo de exemplo, mas é oportuno voltar às reflexões socráticas, cujo autor afirmaque o homem só é verdadeiramente livre quando está afastado dos vícios e possuio domínio de si mesmo “ daí o famoso aforismo: “conhece-te a ti mesmo”. Aliberdade seria, portanto, um alento capaz de fazer com que o homem sinta-secompleto consigo mesmo, alcançando assim o patamar dos heróis olímpicos. Es-tas figuras metafóricas representavam a luta do bem contra o mal: o homem maisfraco, porém mais inteligente, seria capaz de vencer as forças mais numerosas,mas tacanhas do mal.

Os ideais socráticos não se perderam com sua morte, ao contrário, tornaram-semais forte e sistematizados, sendo materializados pela escola fundada por Platãono fim do século IV a.C.:

Com relação à Academia, o que se pode dizer com segurança é que o seufundador soube assentar a nova instituição em alicerces muito sólidos. Em

O fenômeno da educação na construção da históriaFONSECA, Genaro Alvarenga; MARTINO, Vânia de Fátima

Page 200: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

200

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

toda a história da cultura grega não há notícia de uma escola deste tipo quedurasse 900 anos. Fundada no ano 387 antes de Cristo, só veio a ser dissol-vida no ano 529 da nossa era, por decreto do Imperador Justiniano. Tal foi ocuidado que Platão delineou o seu projeto e o devotamento com que dirigiua academia nos quarenta anos que ainda lhe restariam de vida. (NUNES,1980, p. 6)

Esta perspectiva não apenas educacional, mas vivencial perdurou pela Antiguida-de e prosseguiu até a consolidação dos valores cristãos na Idade Média.

Referências

CAMBI, F. História da pedagogia. Trad. Álvaro Lorencini. São Paulo: Unesp,1999.

DILTHEY, W. Introducción a las ciências del espítitu. Trad. Julián Marias.Prólogo José Ortega Y Gasset. Madrid: Alianza Editorial, 1980.

GADAMER, H. G. Verdade e método. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis:Vozes, 1997.

HEGEL, G. W. F. Introdução à filosofia da história. Trad. Orlando Vitorino. 4.ed. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

JAEGER, W. Paidea, a formação do homem grego. Trad. Artur M. Pereira.São Paulo: Martins Fontes, 1979.

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. Trad. Carlos AlbertoRibeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

NUNES, C. A. Prefácio. In: PLATÃO. Diálogos. Trad. Carlos Alberto Nunes.Belém: Universidade Federal do Pará, 1980. vol. III e IV.

PLATÃO. Apologia a Sócrates. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

______. Diálogos. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: Universidade Federaldo Pará, 1980. v. III e IV.

POPPER, K. R. A sociedade aberta e seus inimigos. Trad. Milton Amado.Belo Horizonte: Itatiaia, 1974.

Page 201: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

201

* Doutor em História pela Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Professor do Mestrado em Históriapelo Departamento de História da Universidade Estadual de Montes Claros - Unimontes.

** Mestre em Desenvolvimento Social e Graduado em História pela Universidade Estadual de MontesClaros – Unimontes. Professor de Estudos Sociais / História do Instituto Federal do Norte de MinasGerias – IFNMG.

“DEU A LOUCA NA CHAPEUZINHO” E HISTÓRIA:UMA ANÁLISE POSSÍVEL

Alessandro de Almeida*

Fábio Antunes Vieira**

Resumo: A partir da década de 1970, o interesse dos historiadores pelo cinemacomo fonte de estudos cresceu consideravelmente. Entretanto, apesar das váriasabordagens sobre o assunto, é notório que ainda existem lacunas teóricas emetodológicas não supridas, que dificultam uma maior exploração desse recursoem trabalhos de pesquisa. Nesse sentido, o propósito desse artigo é aguçar novasdiscussões sobre o tema, através da demonstração de que a História pode serpensada a partir de desenhos animados, como o filme Deu a Louca naChapeuzinho. Assim, nas páginas seguintes, discussões envolvendo teoria emetodologia serão tecidas, tomando por base o saber histórico e a obra supracitada.

Palavras-chave: História, cinema, teoria, método e mídia.

Abstract: From the 1970s, the interest of historians in the film as a source ofstudies has grown considerably. However, despite the various approaches to thesubject, it is clear that there are still theoretical and methodological gaps not met,which hinder further exploitation of this resource in research. Accordingly, thepurpose of this article is to sharpen further discussions on the subject, by showing

Page 202: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

202

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

that history can be considered from cartoons, as the movie Hoodwinked! Thus, inthe following pages, discussions involving theory and methodology will be woven,based on historical knowledge and the work above.

Keywords: History, cinema, theory, method and media.

Resumen: A partir de la década de 1970, el interés de los historiadores del cinecomo fuente de estudios ha crecido considerablemente. Sin embargo, a pesar delas diversas aproximaciones al tema, está claro que todavía hay lagunas teóricas ymetodológicas que no se cumplen, lo que dificulta aún más la explotación de esterecurso en la investigación. En consecuencia, el propósito de este artículo es paraafilar los debates sobre el tema, al mostrar que la historia puede ser consideradadesde los dibujos animados, como la épica película de La Increíble! Pero Cierta!Historia de Caperucita Roja. Así, en las páginas siguientes, los debates relacio-nados con la teoría y la metodología se tejen, con base en el conocimiento históri-co y la obra citada.

Palabras claves: Historia, cine, teoría, método y medios de comunicación.

Na historiografia contemporânea, apesar dos inúmeros avanços ou adaptaçõespertinentes aos novos modos de se conceber o trabalho do historiador, algumasabordagens continuam com certa carência de estudos, a exemplo do emprego deobras audiovisuais como instrumento de discussões metodológicas. Corroborandocom tal afirmação, Bernardo Jefferson de Oliveira argumenta que “embora o usopedagógico de filmes e dos debates que eles propiciam estejam bastante dissemi-nados, ainda há poucos estudos sobre esse recurso ou livros que ajudem aincrementá-lo” (OLIVEIRA, 2005, p. 07).

Apesar do exposto, é evidente que a interação entre História e Cinema tem setornado cada vez mais estreita, como demonstram as mega produções épicashollywoodeanas que têm atraído o interesse de um público cada vez maior, seja eleleigo ou especializado. Para tanto, uma boa justificativa pode ser encontrada nopensamento de Marc Bloch, expressado por José Carlos Reis. Segundo o historia-dor francês, “ainda que a História não tivesse nenhuma utilidade, serviria ao menospara nos divertir”, pois, mesmo para aqueles que insistem em subjugá-la como umanão ciência, “o espetáculo das atividades humanas” ao longo do tempo, no mínimo,“seduz a imaginação” e desperta a “curiosidade” (REIS, 2004, p. 108).

Embora não caiba ingenuidade em relação aos objetivos comerciais e ideológicosinscritos na indústria cinematográfica, o fato é que o crescimento das produções

Page 203: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

203

audiovisuais vinculadas aos saberes históricos tem contribuído para otimizar oprocesso de aprendizagem sobre os diversos conteúdos neles inscritos, seja nasunidades básicas de ensino ou nas universidades. Obviamente que isso requerobservância aos postulados metodológicos que a ciência histórica preconiza, umavez que um filme histórico não expressa apenas a tentativa de reconstituição deacontecimentos passados, mas, sobretudo, o “olhar das pessoas envolvidas emsua montagem e, indiretamente, o imaginário de seus espectadores” (OLIVEI-RA, 2005, p. 09). Sobre o assunto, não por acaso, Alcides Freire Ramos argumen-ta que “o estudo dos filmes históricos, sem dúvida, constitui-se numa das formasde trabalho mais instigantes que o historiador pode encontrar em sua relação como cinema”. (RAMOS, 2001, p. 26).

Pertinente às discussões acerca da validade das produções cinematográficas como“documentos históricos”, os estudos de Marc Ferro representam um referencialpeculiar. Um dos pioneiros em estudos dessa natureza, na década de 1970 o autorchamou a atenção para o fato de o cinema ser desprezado pelos historiadores, atéentão despreparados para lidarem com “informações de outra natureza”, que fu-gissem das fontes convencionalmente utilizadas por eles. Corroborando com MarcFerro, Eduardo Morettin avalia que o “fato de o cinema não ocupar um lugar dedestaque na reflexão histórica naquele momento, relaciona-se à própria formaçãodo historiador de então”. Para o autor, “iniciados em técnicas de pesquisa válidaspara os séculos passados”, escapou aos historiadores que, “para a época contem-porânea pelo menos, eles dispunham de documentos de um tipo novo, de umalinguagem diferente” (MORETTIN, 2007, p.43).

Com base em alguns autores tais como: Alcides Freire Ramos, José HonórioRodrigues, Maria Helena Capelato e Eduardo Morettin, é possível afirmar que apartir das reflexões de Marc Ferro acerca da relação entre cinema e História, ouso desse recurso audiovisual como fonte passou a ser gradualmente ampliado.Entretanto, assim como para outras fontes, a utilização das produções cinemato-gráficas como objeto do saber histórico demandou discussões metodológicas atéentão pouco evidenciadas. Aqui, em meio ao pioneirismo, Marc Ferro tambémprestou grande contribuição sobre o assunto, ao definir os postulados do que ficouconhecida como “crítica analítica”.

Sobre a “crítica analítica”, Eduardo Moretti explica que “ao indicar os problemasque a ‘transcrição da história em linguagem cinematográfica’ coloca, Ferro apon-ta para a necessidade de ‘respeitar a historicidade’ e permanecer firme sobre asposições que a compreensão tinha adotado previamente”. Ao proceder dessaforma, é possível que o historiador tenha maiores condições de identificar e “dei-xar de lado documentos fílmicos” que falsifiquem o sentido da narração. Em ou-tras palavras, no trato com produções cinematográficas, cumpre ao historiador

“Deu a louca na chapeuzinho” e históriaALMEIDA, Alessandro de; VIEIRA, Fábio Antunes

Page 204: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

204

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

“destacar o predomínio, desde a primeira etapa do trabalho”, “dos critérios oriun-dos do conhecimento histórico”. Para Morettin, “a relevância desse conhecimen-to histórico prévio figura de maneira indireta, porém marcante, na crítica analíticaproposta por Ferro em relação ao cinema” (MORETTIN, 2007, p.58).Analogamente, Alcides Ramos salienta que “cabe ao historiador em seu trabalhode pesquisa adotar uma postura de crítica constante e minuciosa do material fil-mado, confrontando, sempre que possível, as informações retiradas dos filmescom aquelas que os documentos considerados ‘tradicionais’ podem oferecer”(RAMOS, 2001, p.11).

Até o momento, é notório que a condução dos argumentos se prestou a discus-sões teóricas condizentes à validade da utilização de material fílmico como “docu-mento histórico”, segundo definição de Marc Ferro. Aqui, salienta-se que o obje-tivo não é condicionar as informações submetidas à “análise crítica” como sendoverdadeiras, mas, tão somente, admiti-las como “efeito de verdade”, segundo en-tende Michel de Certeau em suas observações pertinentes ao trabalho do histori-ador (CERTEAU, 1982, p.102).

Partilhando o exposto, José Honório Rodrigues já salientava, em fins da décadade 1960, que “o filme em si não representa, tanto quanto qualquer documentovelho ou novo, uma prova da verdade”. Para ele, “toda a crítica externa e internaque a metodologia da história impõe ao manuscrito impõe igualmente ao filme.Todos podem igualmente ser falsos, todos podem ser ‘montados’, todos podemconter verdades e inverdades” (RODRIGUES, 1969, p. 174). Além disso, comoafirma Adam Schaff, todo conhecimento não passa de uma soma de verdadesparciais, uma vez que a verdade absoluta, assim como o saber absoluto, não podeser alcançada pelo homem em nenhum campo do saber científico (SCHAFF,1995, p.113). Entretanto, embora importantes, as explanações tecidas até entãose prestam apenas para ratificar teoricamente a validade das discussões a seguir,acerca da produção fílmica Deu a Louca na Chapeuzinho, objeto deste artigo.

Produzido nos Estados Unidos pela Pixar e Dream Works, o longa-metragemDeu a Louca na Chapeuzinho foi lançado em outubro de 2006. Trata-se de umaprodução fílmica em animação, dirigida por Cory Edwards, Todd Edwards e TonyLeech. De classificação livre, recebeu boa aceitação dos críticos, embora poucostenham avaliado o filme para além das questões técnicas ou humorísticas, confor-me é possível perceber através de uma consulta aos sites vinculados ao filme nainternet. Em termos gerais, a produção caracteriza-se como uma paródia do con-to Chapeuzinho Vermelho, envolvendo seus personagens tradicionais e outrosque foram acrescidos à trama. No mais, corroborando a receita de sucesso, sali-entamos que o ano de 2011 marcou a produção de um segundo filme com osmesmos personagens, embora ele não seja objeto deste artigo.

Page 205: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

205

Sobre o enredo, o filme trata de uma investigação acerca de sucessivos roubos dereceitas de doces na floresta; roubos esses efetuados por um suspeito que passoua ser denominado como “guloso”. Na seqüência dos acontecimentos, a“Chapeuzinho Vermelho”, o “Lobo”, a “Vovó Puckett” e o “lenhador Kirk” setornam os principais suspeitos. A partir de então, através do intermédio do sapo“Nick Flippers”, cada um apresenta sua versão dos acontecimentos que, apesarde partir de pontos de vista diferentes, contribuem para montar o quebra-cabeçasque conduzem a um culpado até então insuspeito, ou seja, o coelho “Boingo”, quetermina por ser o grande vilão da história.

De humor refinado, o filme consegue, conforme os críticos, agradar aos públicosde todas as idades. Entretanto, outros elementos, pouco notados em análises obje-tivas, também contribuíram para o sucesso do desenho que, inclusive, já tevecontinuidade, como mencionado. Partindo do pressuposto de Marc Ferro de que o“cinema é um testemunho singular de seu tempo” que “traz à tona elementos queviabilizam uma análise da sociedade”, com a produção Deu a Louca naChapeuzinho não poderia ser diferente (MORETTIN, 2007, p.40). Quebrandoas regras comportamentais tradicionais dos vários personagens do filme, seusresponsáveis terminaram por representarem aspectos citadinos da sociedade atu-al.

Começando pela própria Chapeuzinho, ao contrário da versão tradicional de umamenina recatada e vulnerável, na trama em questão ela aparece como uma pré-adolescente em conflito. Lutadora de karatê, a menina demonstra descontenta-mento com a vida monótona da floresta e com o trabalho que realiza (entrega dedoces). No filme, claramente ela expõe sua vontade de buscar “outro mundo”,chegando a clamar em certa música por alguém que a tirasse daquela vida, con-forme a seguinte tradução: “Ei, me tira daqui, por favor, eu quero outro mundo”.Essa ruptura com o tradicionalismo da versão original, vincula-se perfeitamenteaos padrões comportamentais de muitos adolescentes da sociedade contemporâ-nea que, marcados pela “era da informação” e crise da instituição família, termi-nam por lidarem cada vez mais com a própria vida de um modo mais autônomoque as gerações precedentes, bem como a ignorar alguns valores que outroraeram preconizados como essenciais no contexto social.

Acerca da construção do individualismo e do desmembramento das famílias nu-cleares no século XIX e principalmente no século XX, Hobsbawm destaca que “arevolução cultural” do período da Guerra Fria fez emergir um crescente públicojovem que se caracterizava pela independência e pelo individualismo. Assim, ocrescimento do número de jovens, associado ao descrédito progressivo da famílianuclear, acabou fazendo com que grandes empresas apoiassem a emergência dorock, contribuindo para o surgimento de verdadeiras divindades populares vincu-

“Deu a louca na chapeuzinho” e históriaALMEIDA, Alessandro de; VIEIRA, Fábio Antunes

Page 206: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

206

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

ladas à música, ao cinema e ao suicídio, este último utilizado como um recursopropagandístico das indústrias culturais. Nesse contexto, inúmeros ícones da mú-sica e do cinema se destacaram como Jimi Hendrix, Jenis Joplin, Bob Marley,James Dean e outros. Acerca desta questão, destacamos que:

A nova ‘autonomia’ da juventude como uma camada social separada foisimbolizada por um fenômeno que, nessa escala, provavelmente não teveparalelo desde a era romântica do início do século XIX: o herói cuja vida ejuventude acabavam juntas. (...) O surgimento do adolescente como atorconsciente de si mesmo era cada vez mais reconhecido, entusiasticamente,pelos fabricantes de bens de consumo, às vezes com menos boa vontadepelos mais velhos, à medida que viam expandir-se o espaço entre os queestavam dispostos a aceitar o rótulo de ‘criança’ e os que insistiam no de‘adulto’ (HOBSBAWM, 1995, p. 318).

A discussão proposta pelo autor evidencia a importância do estudo de fenômenosaudiovisuais para a compreensão da história, já que em períodos da Guerra Friaocorreu, por exemplo, um superinvestimento nas calças jeans e em bandas derock ou de música alternativa que se enquadravam no gosto jovem daqueles tem-pos. Reflexos desta questão podem ser percebidos em músicos do rock nacionalque também morreram de forma trágica e ainda de pouca idade como Raul Seixas,Renato Russo e o próprio Cazuza, que na música “Ideologia” afirmou: “meusheróis morreram de over dose”. Atendo-nos mais uma vez ao nosso objeto, sabe-mos que os anos iniciais do século XXI caracterizam-se ainda pela proliferaçãode empresas do capital monopolista que exploram os anseios dos jovens, criançase adultos com o intuito de fortalecer suas indústrias culturais. Assim, empresascomo a Worner Bros, Disney e outras reinventam os contos veiculados principal-mente pela televisão e cinema, passando assim a exercer influência notável sobreos indivíduos com uma potencialidade ainda maior do que a proposta pela impren-sa escrita. Assim, apesar do pressuposto de que contos e indústrias monopolistassão as donas dos meios que produzem tais releituras, o homem, ainda comoreferencial básico da história, tem sua análise individual resguardada de formaque a premissa de uma dominação pode se ver, assim, fragilizada.

Focados novamente nos personagens do filme Deu a Louca na ChapeuzinhoVermelho, a vovó Puckett, ao contrário do imaginário constituído da avó tricoteirae contadora de histórias, aparece como uma praticante de esportes radicais, nadapredisposta a atividades sedentárias. Aqui, também é possível identificar uma re-alidade da sociedade atual. Os avanços da medicina, a valorização das práticasesportivas e até mesmo o advento de medicamentos como o viagra e o ciales,dentre outros fatores, têm contribuído para ampliar a qualidade de vida dos idosos,que gradativamente vêm vivendo mais e ampliando o percentual populacional nomundo inteiro.

Page 207: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

207

No caso do lobo, as rupturas também são evidentes. Ao contrário do elemento vil,carnívoro e, subjetivamente pedófilo, da versão original do conto infantil, no filmeele aparece como um ser sociável, de hábitos refinados e com boa formaçãoprofissional na área de jornalismo. Apesar disso, em um primeiro momento apre-senta-se como o principal suspeito dos roubos das receitas. Durante o processodos interrogatórios, é o único amordaçado e vítima de práticas de tortura, comoeletrochoques. Nesse sentido, é bem possível identificar no lobo todos aquelesindivíduos que, historicamente, fazem parte de grupamentos humanos submetidosa preconceitos sociais ou raciais. O lobo do filme é o negro, o cigano, o judeu ou oárabe, dentre outros que, indiferente dos seus esforços, sempre são estigmatiza-dos, ainda que subjetivamente, como elementos passíveis de desconfiança ou pre-conceitos, dentro de um contexto mais amplo das relações sociais. Porém, aocontrário do percebido na história contemporânea, ao final da história o lobo apóiaa chapeuzinho vermelho, a vovó, o lenhador, o sapo investigador e os demaispersonagens e, com um trabalho de equipe, eles conseguem capturar o “coelhinhoguloso”. Ressalta-se que a busca pela implantação de valores pacifistas, tais comoaceitação da diferença e trabalho em equipe, são concepções importantes deserem colocadas a serviço das indústrias culturais e do processo de globalizaçãoque está em voga.

Além dos personagens evidenciados até então, o sapo Nick e o urso, chefe depolícia, também são relevantes para empreender uma discussão atual, condizenteà ação repressiva do Estado em relação à sociedade civil. Comandando a unidadede policiamento ostensivo da floresta, o oficial Ursídio, quase o filme inteiro, re-presenta um tipo de polícia insidiosa, repressiva e mal preparada, que pode serencontrada com certa facilidade em vários países do mundo, não fugindo o Brasila essa regra. Por outro lado, o inspetor Nick, embora não sendo especificamenteum policial, já representa um tipo de polícia mais voltada aos anseios da sociedadeatual, ou seja, uma polícia bem preparada, que sabe tratar polidamente o cidadão,ainda que infrator, sem com isso perder sua autoridade ou relaxar no cumprimentode suas funções. Nesse contexto, o antagonismo entre Nick e Ursídio é exata-mente o aspecto do filme que se presta à discussão central deste artigo, que é aobservância de alguns métodos da História em obras cinematográficas. No casoespecífico de Deu a Louca na Chapeuzinho, claramente são notórios os méto-dos “indiciário” e “crítico”, respectivamente definidos por Carlo Ginzburg e MarcBloch.

Sobre o método indiciário de Ginzburg, é possível dizer que se trata de um métodopautado por critérios investigativos, cujos resultados dependem de um exame deta-lhado dos “pormenores mais negligenciáveis” do objeto de interesse (GINZBURG,2002, p.144). Interpretando Ginzburg, e fazendo uso de algumas de suas palavras, épossível afirmar que, em meio ao seu método indiciário, o historiador que busca

“Deu a louca na chapeuzinho” e históriaALMEIDA, Alessandro de; VIEIRA, Fábio Antunes

Page 208: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

208

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

ampliar o conhecimento sobre um objeto de pesquisa que tenha lhe despertado ointeresse, deve ser “comparável ao detetive que descobre o autor do crime (...)baseado em indícios imperceptíveis para a maioria” dos pesquisadores (GINZBURG,2002, p. 145). Assim, muitas vezes, as respostas mais cabais aos problemas de umadada pesquisa ou investigação, não podem ser encontradas em evidências maisperceptíveis, mas sim em pequenos detalhes, em regra negligenciáveis aos observa-dores pouco atentos. Sobre o assunto, não por mero acaso, Ginzburg ilustra a aplica-ção do método indiciário através das ações de Sherlock Holmes, personagem criadopor Arthur Conan Doyle (GINZBURG, 2002, p. 145).

Quanto à ocorrência do método indiciário no filme Deu a Louca na Chapeuzinho,é possível dizer que o contraste entre os procedimentos adotados pelo comandan-te Ursídeo e pelo sapo Nick para descobrirem o “bandido guloso” serve parademonstrá-la. De modo convencional, em meio aos interrogatórios, o urso tentaencontrar um culpado com base em evidências gerais e regras preexistentes, queterminam por conduzi-lo constantemente a emitir julgamentos precipitados, emrazão delas não serem suficientes para a resolução do caso. Nesse sentido, algu-mas frases do urso, tais como: “pegamos o bandido”, “tem digitais dele [do lobo]1

pela casa toda: fichem!” ou, “vou prender todos eles, é isso que eu faço, por issosou chefe de polícia”, demonstram seu despreparo para resolver a situação combase em indícios pouco notados.

Partindo do princípio de que “ninguém aprende o ofício de conhecer (...) limitan-do-se a pôr em prática regras preexistentes”, uma vez que o conhecimento atra-vés do método indiciário demanda de “elementos imponderáveis” tais como “faro,golpe de vista e intuição” (GINZBURG, 2002, p. 179), o inspetor Nick, adotandoprocedimentos diferentes dos do urso, conseguiu solucionar o caso do roubo dasreceitas. Embora não analisando indícios materiais como Holmes, o sapo pautousuas conclusões com base em detalhes orais observados ao longo dos depoimen-tos dos suspeitos. Nesse sentido, como já mencionado anteriormente, ele atuoucomo um detetive e descobriu o autor do crime valendo-se de indícios impercep-tíveis aos policias que até então conduziam os trabalhos. O coelho Boingo (“ban-dido guloso”), só foi identificado em razão do sapo ter tido a sensibilidade deidentificá-lo em todos os depoimentos. A presença do coelho nas versões dosenvolvidos era o detalhe até então não notado pelos demais. Porém, não bastavaao sapo Nick apenas conhecer o detalhe, era preciso verificar se ele fazia sentidono conjunto do “quebra-cabeças”. Para tanto, findo os depoimentos, o sapo Nicktratou de compará-los para obter as semelhanças, a partir da exclusão dasdessemelhanças.

1 Grifo nosso.

Page 209: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

209

“Que a palavra das testemunhas não deve ser obrigatoriamente digna de crédito,os mais ingênuos dos policiais sabem bem” (BLOCH, 2002, p.89). Entretanto,ainda que as “testemunhas possam se enganar ou mentir”, cabe àquele que inves-tiga “preocupar-se em fazê-las falar, para compreendê-las” e não julgá-las(BLOCH, 2002, p. 96). No que concerne ao filme, este é outro ponto dicotômicoentre o sapo e o urso, que permite observar a aplicação do “método crítico” deMarc Bloch. Para o autor, o ofício do historiador consiste em compreender e nãoem julgar. Para tanto, a lógica do conhecimento, com base no método crítico,advém de “um trabalho de comparação” que, “necessariamente”, permite dissociaro semelhante do que é dessemelhante (BLOCH, 2002, p.109).

Conduzindo isso ao filme, é possível observar que o investigador Nick procedeudessa forma em relação aos depoimentos, não só procurando compreender asmotivações de cada um dos envolvidos como também comparando suas versões,com o propósito de identificar algum elemento que fosse comum entre eles. Porsua vez, contrariando os postulados do método crítico, o urso chefe de políciaoptou em tecer julgamentos precipitados, incorrendo assim no mais grave equívo-co daquele que busca conhecer seu objeto de interesse, segundo Marc Bloch. Nofilme, o sapo Nick, demonstrando possuir uma sensibilidade crítica para trabalharcom os depoimentos, uma vez identificado que o coelho era o detalhe que apare-cia em todos eles, conseguiu, por meio de um processo comparativo, defini-locomo o bandido guloso responsável pelos roubos das receitas.

Tomando outras análises para além de Ginzburg e Bloch, em Dos Meios as Medi-ações, Jesus Martim Barbeiro enfatiza que principalmente a televisão passou nacontemporaneidade a fazer parte do espaço doméstico, reintroduzindo o discurso dainteração social cotidiana. O autor acredita que a hegemonia dos discursos e dasconstruções simbólicas propagadas pelos “meios” encontra-se em uma situação deconstantes disputas conflituosas com as “mediações”. Nesse sentido, esta novaversão do conto da Chapeuzinho Vermelho, ao ressaltar diferentes versões para ahistória, a enfatizar a análise investigativa e a instigar a reconstrução das verdades,possibilita ao telespectador uma potencialidade de atividades mediante os fatos his-tóricos. Nesse sentido, Márcio, um telespectador do filme, destacou que:

é um bom filme para um fim de semana, mergulhado em humor leve e refinado.Consegue garantir o divertimento de todas as idades e algumas risadas soltaspara quem tem alma de criança, ou para quem, como pequenino, brinca com asmuitas vertentes das verdades prontas e dos estereótipos. (Disponível em:<http://www.guiadasemana.com.br>. Acesso em: 23 maio 2009).

O depoimento de Márcio revela uma questão interessante. Ele destaca que opúblico infantil e mesmo o adulto podem “brincar com as muitas vertentes das

“Deu a louca na chapeuzinho” e históriaALMEIDA, Alessandro de; VIEIRA, Fábio Antunes

Page 210: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

210

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

verdades prontas e dos estereótipos”. Assim, podemos ressaltar que um dos pres-supostos presentes na historiografia atual, sem dúvida, parte da crítica e da dis-cussão acerca da quebra dos paradigmas que marcaram os estudos históricos doséculo XIX, sobretudo fundamentada na escola positivista, no Marxismo e, paraalguns, já no século XX, pela própria “Escola dos Annales”, apesar de Braudelafirmar que Febvre e Bloch não tiveram a intenção de criar um paradigma. As-sim, em História. Entre a Filosofia e a Ciência, o historiador José Carlos Reisafirma que, apesar de algumas divergências existentes entre os historiadores re-presentantes da primeira e da terceira geração dos Annales, que “a legitimidadeintelectual da história é anterior à sua utilidade: o homem é um objeto de conheci-mento como qualquer outro, que exige uma problematização, hipóteses, conceitos,documentos, reflexão e pesquisa”. (REIS, 2004, p. 112).

Um dos pressupostos que atemoriza alguns estudiosos ao analisarem o recursoaudiovisual, diz respeito à idéia de que a televisão manipula ou expressa uma“cultura inferior” e medíocre. Assim, muitos pesquisadores se indispõem dianteda utilização das fontes audiovisuais como um recurso para se pensar as sociabi-lidades e as disputas que permeiam a contemporaneidade histórica.

Porque, se a incultura constitui a quintessência da televisão, se explica odesinteresse e, no “melhor” caso, desprezo dos intelectuais pela televisão,mas também aí fica a descoberto o caráter elitista pertinaz e oculto quealonga este olhar: confundindo iletrado com inculto, as elites ilustradas,desde o século XVIII, ao tempo que afirmam o povo na política, o negavamna cultura, fazendo da incultura o traço intrínseco que configurava a iden-tidade dos setores populares e o insulto com que tapavam sua interessadaincapacidade de aceitar que, nesses setores, pudesse haver experiências ematrizes de outra cultura (MARTIN-BARBERO, 2004, p. 24.)

Outra importante obra que ressalta a utilização do filme como documento históri-co é O Beijo de Lamourette, em que Darnton analisa o filme Danton, do polonêsAndrzej Wadja, discutindo seu duplo sentido de construção/recepção para a Polônia,onde foi produzido e transmitido para a França, local em que o filme também foiveiculado. A produção cinematográfica de Wadja teria sua estréia na Polônia e naFrança em 1989, data do bicentenário da Revolução Francesa de 1789.Historicizando a situação da Polônia, o autor destaca que o filme foi bem aceito,pois o contexto polonês era de luta contra o autoritarismo das ditaduras socialistasimpostas pelo Pacto de Varsóvia e combatidas pelo sindicato Solidariedade. Nes-se sentido, a população oprimida pela ditadura se identificou com o personagemDanton que combatia aquilo que consideravam atrocidades, emanadas deRobespierre. Porém, a situação de decadência enfatizada no filme causou estra-nheza de muitos franceses que não receberam bem a história de uma revoluçãoque poderia ser interpretada como fracassada. Acerca desta questão, o autor

Page 211: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

211

destaca que:

O filme poderia ser visto de maneiras completamente diferentes. Não foi omesmo em Varsóvia e Paris. Sua capacidade de gerar um duplo sentidosugere que o próprio significado é modelado pelo contexto e que a significa-ção da Revolução Francesa nunca se esgotará. O debate pode parecer umainofensiva luta de sombras, mas ainda assim há vidas nas sombras.(DARNTON, 1990, p. 63).

Estabelecendo um diálogo do exposto acima com o filme Deu a Louca naChapeuzinho Vermelho, sabemos que este também procura retratar uma novaversão de fatos aceitos, no caso do conto de “Chapeuzinho Vermelho”, destacan-do a princípio uma revisão desta história que se pautaria em uma trama investigativaem que cada personagem daria sua versão sobre o episódio. Numa perspectivaparecida à da série Sherek, o filme, ao procurar rediscutir contos de fadas, permi-te pensar sobre os constantes trabalhos historiográficos, que têm como uma desuas características exatamente a revisão histórica. Nessa vertente, a análisedos episódios, considerando um bom número de fontes, potencializa o historiadora se aproximar de uma realidade histórica distante de seu tempo. Em tom dedelação, o crítico e internauta Celso Sabadin afirmou:

Não nego que fiquei desconfiado quando soube da produção de um dese-nho animado em longa-metragem que iria satirizar a clássica história deChapeuzinho Vermelho. Achei a idéia um pouco “Sherek” demais. E, afinal,quem seriam estes irmãos Cory e Todd Edwards, praticamente estreantes,para roteirizar e dirigir um projeto no altamente competitivo mundo da Pixar,Dream Works e companhia?

Repare-se que na opinião, expressa na citação acima, algumas questões impor-tantes colocadas pelo internauta, permitem que sejam tecidas algumas questõespertinentes ao ofício do historiador. Em relação à desconfiança, o internauta des-taca que assim que se deparou com o filme teve dúvidas em relação ao seusucesso, sobretudo devido à falta de originalidade, pois, achou “a idéia um poucoSherek demais”. Logo em seguida, afirma que o contexto de produção, marcadapelo predomínio de algumas grandes empresas culturais de destaque na produçãode desenhos, faria com que a viabilidade e o sucesso do filme estivessem emrisco. Com um pouco mais de investigação e análise crítica, ele destacou aindaque, quando viu “o filme pronto, a surpresa foi das melhores: Deu a Louca naChapeuzinho traz um roteiro inteligente e bem-humorado, num ritmo ágil e es-perto que agrada tanto aos adultos quanto às crianças”. Portanto, aos historiado-res cabe a crença de que os pressupostos metodológicos da ciência podem propi-ciar a análise de quaisquer fontes. Nesse sentido, pensamos ser pertinente con-cluir ser necessário uma deu a louca nos historiadores, de modo que as inves-

“Deu a louca na chapeuzinho” e históriaALMEIDA, Alessandro de; VIEIRA, Fábio Antunes

Page 212: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

212

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

tigações passem a ser mais constantes também em relação à análise de docu-mentações provenientes do avanço dos meios de comunicação.

Referências

BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício de Historiador. Rio de Ja-neiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universi-tária, 1982.

DARNTON, Robert. O Beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1990.

GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais. 2. ed. São Paulo: Companhia dasLetras, 2002.

HOBSBAWM. Eric. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. SãoPaulo: Cia das Letras, 1995.

MARTIN-BARBERO, Jesus. Dos Meios as Mediações: comunicação, culturae hegemonia. 2.ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 2001.

MARTIN-BARBERO, Jesus. Os Exercícios do Ver: hegemonia audiovisual eficção televisiva. 2. ed. São Paulo: Senac São Paulo , 2004.

MORETTIN, Eduardo. O Cinema como Fonte Histórica na Obra de Marc Ferro.In: CAPELATO, Maria Helena, et al. História e Cinema. São Paulo: Alameda,2007.

OLIVEIRA, Bernardo Jefferson de (Org.). História da Ciência no Cinema.1ed. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2005.

RAMOS, Alcides Freire. Cinema e História – Do Filme como Documento à Es-critura Fílmica da História. In: MACHADO, Maria Clara Thomas; PATRIOTA,Rosângela (Orgs.) Política, Cultura e Movimentos Sociais: ContemporaneidadesHistoriográficas. Uberlândia: UFU (Programa de Mestrado em História), 2001.

REIS, José Carlos. A História entre a Filosofia e a Ciência. 3. ed. Belo Hori-zonte: Autêntica, 2004.

RODRIGUES, José Honório. A Pesquisa Histórica no Brasil. 2. ed. São Paulo:Companhia Ed. Nacional, 1969.

SCHAFF, Adam. História e Verdade. 6.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

Page 213: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

213

Resumo: Este estudo objetiva discutir o termo desenvolvimento econômico, iden-tificando os fatores determinantes desse fenômeno, especialmente quando o mes-mo é concebido nos primórdios do desenvolvimento enquanto disciplina autônoma(após a II Guerra Mundial). Para tanto, propõe uma revisão histórica da discussãosobre o tema com enfoque nos autores da chamada escola anglo-saxã da econo-mia do desenvolvimento. Conclui-se através desta pesquisa que apesar de a eco-nomia do desenvolvimento apresentar um caráter multidisciplinar está ligada aocrescimento econômico através da industrialização, com incrementos reais narenda per capita e participação atuante do Estado.

Palavras-chaves: Industrialização, Renda, Estado.

Resumen: Este estudio pretende debatir el término desarrollo económico, a tra-vés de la identificación de los factores determinantes de este fenómeno, especial-mente cuando se ha sido diseñadolos comienzos dedesarrollo como disciplinaautónoma (después de la Segunda Guerra Mundial). Proponemos una revisiónhistórica de la discusión sobre el tema con un enfoque en los autores de la escuela

UMA REVISÃO HISTÓRICA DA ECONOMIA DODESENVOLVIMENT O:

OS PIONEIROS DA ESCOLA ANGLO-SAXÃ

Ido Luiz Michels*

Caio Luca Costa**

* Professor da UFMS. Graduado em Ciências Econômicas (UFSC); Mestrado em Economia Rural (UFPB-Campina Grande); Doutorado em Geografia Humana (USP); Pós-Doutor (USP);<[email protected]>.

**Graduado em Ciências Econômicas (UFMS); Mestrando em Administração (UFMS);<[email protected]>.

Page 214: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

214

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

anglosajona de la economía del desarrollo. El resultado de esta investigación es deque, a pesar de la economía del desarrollo presentar un carácter multidisciplinar,está vinculada al crecimiento económico a través de la industrialización, converdaderos aumentos en el ingreso per cápita y la participación activa del Estado.

Palabras-claves: Industrialización, Ingresos, Estado.

Abstract: This study has the aim of discuss the term economic development,identifying the determinants of this phenomenon, especially when it is designed inthe early development as an autonomous discipline (after World War II). Wepropose a historical review of the discussion on the subject focusing on the authorsfrom the so-called Anglo-Saxon school of development economics. Through thisresearch we conclude that even though development economics presents amultidisciplinary approach it is linked to the economic development throughindustrialization, with increments in the per capita income and the activeparticipation of the State.

Keywords: Industrialization, Income, State.

Introdução

Desde que o tema desenvolvimento econômico surgiu ele nunca deixou de serrecorrente entre os que discutem políticas econômicas. Ganhando força em tem-pos de crise financeira mundial, onde a incapacidade dos países mais ricos demanterem o crescimento econômico contrasta com o crescimento sustentado,justamente, pelas nações denominadas emergentes, que buscam alcançar os statusde países desenvolvidos. Normalmente as crises tendem a acentuar as disparidadesno nível de desenvolvimento econômico, deixando países subdesenvolvidos emsituações ainda mais complicadas. No entanto, o núcleo desta crise foi justamenteas economias dos países mais ricos, colocando em xeque suas políticas econômi-cas adotadas até então. Enquanto isso, países emergentes que vêm já há algumtempo buscando de forma contínua implementar um processo desenvolvimentistaem suas economias têm uma oportunidade de destacarem-se no cenário econô-mico mundial, para quem sabe finalmente alcançarem o almejado desenvolvimen-to econômico.

Entender o que de fato caracteriza o desenvolvimento econômico, quais são seusfatores determinantes, de qual forma pode e deve o Estado interferir no processodesenvolvimentista, se faz importante para que os formuladores de políticas eco-nômicas possam trabalhar em prol deste objetivo. Justifica-se, portanto, a elabo-

Page 215: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

215

ração deste estudo, uma vez que ele se faz proveitoso a estes formuladores depolíticas econômicas justamente por pretender auxiliar na resposta dessas ques-tões. De tal forma, que se pretende, através de uma revisão histórica sobre adiscussão do tema desenvolvimento econômico perpassando pelas teorias de al-guns dos principais pioneiros na discussão do tema, responder as seguintes ques-tões: Qual o conceito de desenvolvimento econômico?; Quais são os fatoresdeterminantes do desenvolvimento econômico e como o Estado pode atuar sobreeles?

Em seguida a esta parte introdutória, apresenta-se uma seção dedicada à umarevisão histórica da discussão sobre o desenvolvimento econômico. Posterior-mente são apresentadas brevemente as ideias, conceitos e modelos do processode desenvolvimento econômico dos principais pensadores pioneiros do desenvol-vimento econômico da escola anglo-saxã. Por fim são apresentadas algumas re-flexões provenientes da pesquisa desenvolvida.

Histórico da Discussão sobre Desenvolvimento Econômico

Apesar dos autores clássicos da economia terem contribuído indiretamente aodebate sobre o desenvolvimento econômico, suas discussões não abordavam es-pecificamente a este tema, e limitavam-se estritamente à ciência econômica, semlevar em conta o aspecto multidisciplinar que este carregava. No entanto, a partirdo período logo após a Primeira Guerra Mundial elavam-se os debates sobre aindependência e o futuro econômico das colônias europeias ao primeiro plano dasdiscussões mundiais. Surgindo o que se chamou de “geocultura do desenvolvi-mento”, tema que se consolidou após a II Guerra Mundial.As razões determinantespara a universalização do tema “desenvolvimento econômico” foram o processode descolonização asiática e africana, o fracasso econômico liberal dos anos 20/30, a necessidade de reconstrução do pós-guerra, a competição geopolítica e ide-ológica durante a Guerra Fria e as disputas pelos territórios tornados independen-tes (FIORI, 1999).

Em mesmo sentido, Cardoso (2012) observa que o fracasso das doutrinas liberaiscomo o laissez-faire durante o período entre guerras, abriu espaço para diversasteorias econômicas de cunho intervencionista, derivadas, em boa parte, da própriaRevolução Keynesiana, que, assim como a teoria do desenvolvimento econômicodesenvolvida por Schumpeter, tiveram grande participação na formação e conso-lidação da Economia do Desenvolvimento. Essas teorias intervencionistas identi-ficavam falhas de mercado, ressaltando a necessidade de um Estado maisinterventor para promover e sustentar o desenvolvimento.

Uma revisão histórica da economia do desenvolvimentoMICHELS, Ido Luiz; COSTA, Caio Luca

Page 216: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

216

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

O aporte teórico destas políticas implementadas no período pós-guerra veio porparte de alguns pensadores considerados pioneiros no debate sobre desenvolvi-mento econômico. Dos quais, de acordo com Hirschman (1981, apud Cardoso,2012), merecem destaque os autores Paul Rosenstein-Rodan, Hans Singer, RagnarNurkse, Arthur Lewis, Albert Hirschman e Gunnar Myrdal, além dos estruturalis-tas latinos americanos da Cepal, principalmenteRaúlPrebisch e Celso Furtado.Faz-se pertinente ressaltar que apesar de esses autores serem considerados pio-neiros na escola da Economia do Desenvolvimento é inegável que suas teoriasutilizaram-se da Teoria do Desenvolvimento Econômico de Schumpeter e da Te-oria Keynesiana. Mas o que diferenciava os pensadores da escola da Economiado Desenvolvimento dos seus antecessores era a capacidade de extrapolar oconhecimento da economia, buscando incluir no debate conhecimentos proveni-entes de outras áreas do conhecimento, como a formação histórica sociológica epolítica do local em análise.

Em mesmo sentido, Cardoso (2012) observa que nesse período ocorreu uma pro-funda mudança na opinião pública e acadêmica sobre os objetivos do desenvolvi-mento, incorporando objetivos sociais, tais como adequadas condições de saúde,educação e nutrição. Não se tratando apenas de acrescentar os objetivos sociaisaos econômicos, mas também questionando se determinados tipos de crescimen-to, não causariam alguns problemas sociais. Higgins (1980), por exemplo, obser-vou que a rejeição do crescimento da renda nacional como objetivo único dosprojetos desenvolvimentistas, por parte dos teóricos da Economia do Desenvolvi-mento, mostrou a necessidade de planejar direta e simultaneamente todos os ob-jetivos do desenvolvimento. Inclusive considerando as interações e retroalimentaçãoentre estes objetivos.

Apesar disso, o crescimento econômico ainda era visto como uma condição ne-cessária, embora não suficiente, do desenvolvimento econômico. Isto ocorreu pelaprópria conjuntura econômica do período, onde o principal objetivo dos paísesdesenvolvidos no pós II Guerra Mundial era promover o crescimento econômicode seus países, inevitavelmente gerando uma relação entre desenvolvimento ecrescimento. Portanto, como o aporte teórico da discussão sobre desenvolvimen-to nos países pobres derivava, de alguma forma, daquele desenvolvido para ana-lisar o crescimento econômico nos países ricos, o crescimento econômico mante-ve fundamental importância no processo desenvolvimentista.

Fiori (1999) observa que apesar de todos os projetos desenvolvimentistas discuti-dos naquela época concordarem com a necessidade de um Estado forte,intervencionista e protecionista, eles, assim como os teóricos clássicos, esbarra-vam na ambiguidade observada referente à relação do Estado na questão das

Page 217: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

217

economias nacionais e os sistemas econômicos e políticos internacionais. Istofragilizava a discussão teórica e das estratégias político-econômico dos projetosdesenvolvimentistas. A dificuldade maior encontrada era:

Que o “Estado” dos desenvolvimentistas foi sempre uma abstração que oraaparecia como construção ideológica idealizada, ora era transformado pelateoria numa dedução lógica ou num mero ente epistemológico requeridopela estratégia de industrialização, sem que tomasse em conta a naturezadas coalizações de poder em que se sustentava. (FIORI, 1999, p. 26).

Essa ambiguidade era mais forte entre os autores anglo-saxões, os quais se man-tiveram sempre fiéis à teoria das vantagens comparativas de David Ricardo e aopoder homogeneizador do comércio internacional. No entanto, cada um deles possuiuma visão diferente do papel do Estado, Rosestein-Rodan (1943) acreditava queo Estado deveria se restringir à preparação da mão-de-obra e à coordenação dosinvestimentos industrializantes no longo prazo. Já Nurkse (1952) defendia a parti-cipação do Estado como indutor do investimento doméstico e externo. ArthurLewis (1954) via na abundante disponibilidade de mão-de-obra em níveis de sub-sistência presentes em economias menos desenvolvidas uma oportunidade demanter constante altas taxas de investimento e lucratividade. Para tanto, caberiaao Estado restringir e manter sob controleo poder de negociação dos trabalhado-res e assumir uma política protecionista ativa do empresariado local frente à com-petição externa.

Gunnar Myrdal (1957) e Albert Hirschman (1958), importantes teóricos do desen-volvimento, defenderam posições mais próximas dos estruturalistas latino-ameri-canos. Myrdal via na acumulação e concentração do progresso tecnológico e decapitais de investimento, além de fatores do mercado, como as causas dos baixosníveis de ingresso e poupança e pela escassa capacidade fiscal das nações subde-senvolvidas, dessa forma, fazendo-se necessária coordenação e planejamentoestatais, além do protecionismo da indústria nacional. Já Hirschman acreditavaque o maior fator inibidor do desenvolvimento era a ausência de um agentearticulador capaz de incentivar e coordenar um programa de investimento orien-tado pelo mercado e suas particularidades, esse papel poderia caber ao Estado.

Os estruturalistas latino-americanos partiram de um ponto completamente opostoaos teóricos anglo-saxões, iniciando suas teorias justamente pela crítica à teoriaricardiana do comércio internacional. Suas discussões partiam da análise do siste-ma econômico mundial procurando explicar o subdesenvolvimento pela distribui-ção desigual do progresso tecnológico. Estes teóricos defendiam uma visão estru-tural e histórica do capitalismo, um sistema em expansão que foi incorporado asucessivas periferias especializadas e articuladas com base nos mercados e in-

Uma revisão histórica da economia do desenvolvimentoMICHELS, Ido Luiz; COSTA, Caio Luca

Page 218: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

218

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

vestimentos das economias centrais. O principal instrumento indutor do desenvol-vimento defendido por estes teóricos era a estratégia de substituição de importa-ções, que deveria ser implementada nas nações subdesenvolvidas através de for-te atuação protecionista do Estado, com o intuito de promover a industrializaçãointerna visando sempre o crescimento econômico e o progresso tecnológico.

Com o esgotamento e as críticas à estratégia de substituição de importações aolongo da década de 1950, uma nova vertente do pensamento estruturalista ganhouforça ao longo dos anos 1960, as chamadas teorias da dependência. Os adeptosdessa linha de pensamento fizeram uso da visão de periferia capitalista inseridanuma economia global e hierarquizada proveniente dos estruturalistas. Havia di-ferentes vertentes entre os adeptos da teoria da dependência, uma primeira quepode ser destacada via o subdesenvolvimento como resultado de um desenvolvi-mento capitalista condicionado por um sistema internacional onde países maisdesenvolvidos exploravam os menos avançados, certificando-se de manter a de-pendência desses e apoiados por uma burguesia regional que se beneficiava des-tas relações. Dentro dessa linha de pensamento, cabe destacar a citação deWallerstein (1979, p. 61 apud FIORI, 1999), onde de acordo com ele “dentro daeconomia-mundo capitalista todos os estados não podem se desenvolver simulta-neamente por definição, já que o sistema funciona por força de ter núcleos desi-guais e regiões periféricas”.

Uma vertente estruturalista é destacada por Fiori (1999), denominada de “teoriado capitalismo tardio” tem como principais pensadores M.C. Tavares, com a teseAcumulação de capital e industrialização no Brasil defendida em 1974, e J.M. Cardoso de Mello, com a tese Capitalismo tardio de 1975. Nesta teoria ofoco central passou a ser a internalização dos mecanismos de acumulação decapital, fazendo com que a dependência externa passasse para segundo plano dasdiscussões. O desenvolvimento econômico dos países de economia menos avan-çadas passaria pelo desenvolvimento de um “capitalismo tardio” que leva emconta a formação histórica e econômica como economia exportadora e escravistae o seu momento de inserção internacional num capitalismo já industrializado emonopolista em escala mundial.

Durante a década de 1980 o neoliberalismo ganhava força nas discussões teóri-cas e consequentemente nos programas econômicos mundo a fora. No que tangeo desenvolvimentismo, essa guinada ao liberalismo, ou mais especificamente aoneoliberalismo, se refletiu nas teorias surgidas durante a década de 1990, princi-palmente a “nova economia institucional”. Esta teoria tinha como principais teóri-cos Ronald Coase e Douglas North, que se utilizavam das teorias neoclássicas,apesar de refutarem a racionalidade ilimitada dos agentes econômicos. Caberia

Page 219: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

219

aos chamados “custos de transação” a existência de mercados imperfeitos, deforma que caberia aos países subdesenvolvidos criarem instituições mais fortescapazes de reduzirem estes custos, diminuindo as incertezas dos empreendedo-res, seguindo o exemplo dos países mais desenvolvidos.

Neste sentido, conforme coloca Medeiros (2010), em sua análise sobre a literatu-ra contemporânea sobre o desenvolvimento econômico, verifica-se atualmenteuma concentração nas explanações sobre as diferentes trajetórias nacionais dedesenvolvimento, buscando redefinições sobre o subdesenvolvimento e na elabo-ração de propostas normativas paras nações menos desenvolvidas. Estudosnormativos seguem este mesmo referencial teórico institucionalista, procurandoinserir novas dimensões e redefinições conceituais sobre o desenvolvimento, ten-do como foco central os indivíduos e suas capacitações. Em geral, todos estesestudos terminam com proposições que incentivam programas que busquem aqualificação dos cidadãos das nações mais pobres de forma que possam sair dapobreza por conta própria.

Os Pioneiros do Desenvolvimento Econômico

Após a II Guerra Mundial o tema desenvolvimento veio à tona nos círculos inte-lectuais, sendo adotado como objeto de estudo principal de diversos pensadoresao redor do mundo. Os motivos que levaram este tema ao primeiro plano já foramdiscutidos neste trabalho, no entanto, faltou identificar quem foram esses estudio-sos do desenvolvimento, quais conceitos cada um introduziu, os princípios deduti-vos utilizados e os modelos do processo de desenvolvimento que cada um criou.Segue, portanto, alguns dos principais pioneiros do desenvolvimento econômico esuas ideias.

Paul Rosenstein-Rodan

Paul Rodan é um polonês criado em Viena que desenvolveu seus estudos naInglaterra. Escreveu em 1943 um texto considerado inaugural da Economia doDesenvolvimento, expandindo a discussão deste trabalho em 1944 com outro tra-balho complementar. Nestes estudos o autor discute os problemas econômicosenfrentados pelo leste e sudeste europeu.O autor defendia que a abordagem doprocesso de desenvolvimento não deveria se dar como uma teoria de equilíbrioestático tradicional, mas sim como uma análise do processo de crescimento dese-quilibrado, dessa forma levando à compreensão dos problemas do desenvolvi-mento econômico. Apesar disso Rodan ficou associado à teoria do desenvolvi-mento equilibrado (CARDOSO, 2012).

Uma revisão histórica da economia do desenvolvimentoMICHELS, Ido Luiz; COSTA, Caio Luca

Page 220: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

220

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

De acordo com Rosenstein-Rodan (1943), o desenvolvimento passaria pela in-dustrialização, uma vez que essa tem a capacidade de produzir emprego produtivopara a população agrária excedente, e quando aplicada em regiões mais pobresassume um papel de promover o equilíbrio estrutural na economia internacional.Como a industrialização se concentra em regiões urbanas onde justamente asrendas são mais elevadas, gera-se um ciclo autoalimentado, regiões de rendamais elevadas atraem indústrias e essas por sua vez aumentam a renda destasrespectivas regiões. Mesmo que se desenvolva algum processo de industrializa-ção em países subdesenvolvidos, este tende a ser concentrado em algumas pou-cas regiões.Esta característica da industrialização de se voltar para regiões maisricas é o que geraria uma diferença cada vez maior entre países desenvolvidos esubdesenvolvidos. Os mecanismos de mercado não seriam suficientes para resol-ver essa crescente diferença entre as nações, pelo contrário, se estiverem livrespara agir apenas aumentarão o processo cumulativo que gera a desigualdadeentre as nações.

A migração do capital em direção ao trabalho, ou seja, em direção à regiões ondea produtividade dos trabalhadores é muito baixa ou quase nula, é o que define aindustrialização. E como as economias externas, ou os retornos crescentes, sãomuito maiores na indústria do que na agricultura, para alcançar o desenvolvimentoeconômico nas nações subdesenvolvidas é necessário levar a elas a industrializa-ção, que por sua vez se passa pelo progresso da agricultura. Rosenstein-Rodandefende que a inicialmente deve-se desenvolver uma indústria leve intensiva emmão-de-obra, respeitando a divisão internacional do trabalho. A implantação destetipo de indústria, se bem sucedido, seria suficiente para dinamizar a economia daregião voltando-a para uma trajetória de desenvolvimento econômico.

Ao Estado caberia a coordenação e planejamento dos projetos de investimento,de forma a aproveitar possíveis efeitos de complementariedade entre projetos,além de levar essa industrialização a diferentes setores da economiaconcomitantemente, ocasionando uma transformação em toda a economia, es-sencial ao processo de desenvolvimento econômico. Dessa forma, seriapotencializado o alcance e os efeitos dinâmicos das economias externas geradaspor estes investimentos industriais, tudo isso rigorosamente calculado, prevendo-se as demandas de cada empreendimento e também dos trabalhadores que virãoa ter sua renda aumentada.Seria também necessário treinar e habilitar a mão-de-obra do país, mais uma responsabilidade do Estado.

Partindo destas estratégias de promover a industrialização através de políticasaplicadas pelo Estado, Rosenstein-Rodan desenvolve a Teoria do Grande Impul-so. Basicamente esta teoria sugere que seria necessária uma quantidade mínima

Page 221: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

221

de recursos aplicados no projeto de industrialização de forma a promover o de-senvolvimento econômico. Caso sejam aplicados investimentos insuficientes, ouque cresçam de forma gradativa lentamente, o desenvolvimento não se viabilizará,nos casos de países subdesenvolvidos requer-se grandes e profundas transforma-ções.

A integração dos investimentos poderiam se dar através da criação de uma espé-cie de truste industrial, repetindo o termo utilizado pelo autor, o qual centralizariaos projetos de investimento, os seus custos e retornos. Com este truste, mesmoempreendimentos que não se tornariam viáveis quando analisados individualmen-te, tornam-se interessantes economicamente quando analisados seus efeitos so-bre outros empreendimentos, devidoà geração de economias externas.

Quanto ao problema de suprir o capital necessário para a industrializaçãoo autorsugere que sejam utilizados recursos tanto nacionais quanto internacionais. O ca-pital internacional seria emprestado ou garantido pelos governos dos países cre-dores, a razão motivadora disso seria a importante contribuição à expansão darenda mundial e à reorganização do comércio internacional que esses países esta-riam dando. A segurança dos países credores viria do suficiente controle sobre otruste industrial criado, além de um compromisso das autoridades da nação deve-dora de não manterem políticas tributárias discriminatórias que possam atrapalhara rentabilidade dos investimentos.

Ragnar Nurkse

Ragnar Nurkse (1907-1959) nasceu na Estônia, foi professor na Universidade deColumbia e teve seu desenvolvimento teórico muito influenciado pela Escola Aus-tríaca. Defendeu uma posição muito próxima a de Roseinstein-Rodan, adotandotambém a tese do crescimento equilibrado e da teoria do grande impulso.Via notamanho reduzido do mercado nas economias mais pobres o principal fator limitantedo desenvolvimento econômico. Isso ocorreria por desencorajar, e até mesmoinviabilizar a utilização de um maquinário mais moderno, uma vez que sua produ-ção seria grande demais para ser absorvida pelo consumo interno. Conformecoloca Furtado (2007), sendo assim, o problema dos países subdesenvolvidos nãoseria necessariamente a escassez de poupança, mas sim a falta de estímulo àsinversões, por conta da capacidade limitada de absorção do mercado.

De acordo com Nurkse (1952), o incentivo para o uso de capital é limitado, porconta do tamanho reduzido do mercado, ao mesmo tempo em que o pequenotamanho do mercado é devido ao baixo nível de produtividade. Por sua vez obaixo nível de produtividade é causado pela pequena quantidade de capital empre-

Uma revisão histórica da economia do desenvolvimentoMICHELS, Ido Luiz; COSTA, Caio Luca

Page 222: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

222

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

gado na produção, a qual é devida ao pequeno tamanho do mercado.Com isso,Nurkse chega a seguinte conclusão: “Estamos em presença de uma conjugaçãode forças que tendem a manter qualquer economia retrógrada em condição esta-cionária... O progresso econômico não é uma ocorrência espontânea ou automá-tica”.

Para promover esta passagem do estado de equilíbrio para o de desenvolvimento,Nurkse defende que os programas de desenvolvimento devem envolver um gran-de número de investimentos sincronizados, uma vez que alguns investimentos iso-lados podem ser inviáveis e não lucrativos. De tal forma que estes investimentosdevem se dar em vários setores, de maneira que um gere demanda para o outro,possibilitando assim o que o autor chama de crescimento equilibrado, o qual seriacapaz de gerar economias externas, assim ampliando o tamanho do mercado paracada empresa ou setor.

Existiriam dois tipos de investimento, o investimento “autônomo” que é feito pelasautoridades públicas e financiado com fundos externos privados ou públicos e nãodepende do estado atual da demanda. O outro tipo de investimento é levado acabo pelo setor privado e denominado de investimento “induzido”, por ter que serestimulado por demanda explícita no mercado. Dessa forma sempre caberá aoEstado uma importante participação no processo desenvolvimentista, por ter acapacidade, e a obrigação, de realizar o investimento autônomo de forma a criarcondições de mercado que atraiam o investimento induzido, tanto de capital inter-no quanto externo.

Além do capital externo é necessária aos países subdesenvolvidos a formação deuma poupança interna que seja suficientemente grande para financiar os investi-mentos. No entanto, existiria nos países de menor renda um fator inibidor deacumulação de capital que Nurkse denominava efeito demonstração. Ao verifica-rem a diferença do nível de consumo entre os países ricos e pobres, os habitantesdas nações de menor renda tendem a aumentar seu consumo, tomando para sinecessidades que antes se quer detinham, reduzindo assim sua capacidade depoupança, gerando uma tendência inflacionária e ainda enfraquecendo sua balan-ça de pagamentos. É importante ressaltar que em nenhum momento Nurkse de-fende que seja aplicado um isolamento dos países de baixa renda em relação aocomércio internacional, mas sim que sejam criadas medidas que possibilitem aextrair mais poupança da renda nacional.

Page 223: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

223

Hans Wolfgang Singer

Hans Wolfgang Singer (1910-2006) nasceu na Alemanha, mas teve sua formaçãointelectual na Inglaterra. Foi um dos pioneiros da Economia do Desenvolvimento,sofrendo fortes influências das teorias de Joseph Schumpeter e Keynes, dos quaisfoi aluno nas universidades de Bonn e Cambridge respectivamente. O próprioSinger (1985) destacava o papel de Keynes na Economia do Desenvolvimento,por esse ter formulado um modelo onde caso a economia fosse deixada semnenhuma intervenção não existiria uma tendência natural ao pleno emprego, ca-bendo então ao Estado intervir na busca por este objetivo. Além disso, no modelokeynesiano o objetivo da análise reside em como mudar uma situação insatisfatória,tendo um caráter mais revolucionário, o qual Singer leva para sua teoria.

A primeira conclusão que Singer (1952) chega ao explicar seu modelo de desen-volvimento econômico é que a agricultura, apesar de ser o setor que mais criaempregos em economias subdesenvolvidas, não é o setor que mais gera renda.Portanto, o caminho para o desenvolvimento econômico envolve uma modifica-ção estrutural, onde a proporção da população na agricultura terá de cair e o setornão-agrícola deverá expandir-se. Não importa se esta alteração estrutural vempor meio de uma industrialização, pelo desenvolvimento agrícola (intensificaçãode capital), ou por qualquer outra forma que seja desde que resulte em uma redu-ção relativa do setor agrícola.

Apesar da produtividade marginal nos países subdesenvolvidos ser alta, por contada escassez de capital, ao medir-se o custo de inserir um novo trabalhador nosetor não-agrícola deve-se levar em conta a produtividade de todo um conjunto defatores necessários, entre eles o capital equipamento diretamente produtivo, maiso exigido para a produção de componentes ou bens complementares, além dasprovisões de serviços requeridos pelo novo investimento. Justamente ai que Singer(1952) aproxima-se das teorias de Roseinstein-Rodan e Nurkse, por também de-fender que os investimentos não devem ser isolados, uma vez que devido à baixaprodutividade desse conjunto completo necessita-se o máximo aproveitamentodas economias de escala, de forma a viabilizar esses empreendimentos.

Não se espera que em uma economia subdesenvolvida haja uma formação depoupança suficiente para financiar as taxas de investimento necessárias para co-locar em prática um programa de rápido desenvolvimento. Portanto, Singer (1952),propõe quatro possíveis soluções:

1) Reduzir o custo do programa de desenvolvimento, baixando a relação capital/renda (ou aumentando o rendimento por unidade de capital empregado).

Uma revisão histórica da economia do desenvolvimentoMICHELS, Ido Luiz; COSTA, Caio Luca

Page 224: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

224

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

2) Aumentar a poupança líquida através de tentativas para reduzir o consumoabaixo do nível considerado como voluntariamente aceito com a distribuição exis-tente de renda.

3) Reduzir a taxa de crescimento da população, de forma que o dispêndio total noprograma de desenvolvimento decresceria exatamente em proporção à taxa decrescimento da população.

4) Complementar os recursos nacionais com recursos do exterior.

Quanto a esta última opção, Singer ressalta que os encargos da dívida provenien-tes do financiamento dos investimentos com capital externo são altamente elásti-cos em relação à taxa de poupança marginal. De tal forma que um pouco deausteridade agora evitará muita austeridade mais tarde. E a principal fonte depoupança interna que pode se esperar obter de uma economia subdesenvolvida, aqual normalmente já possui um consumo extremamente reprimido, é através dapossibilidade de poupar uma alta proporção dos incrementos de renda provenien-tes do processo de desenvolvimento econômico. Sendo assim é importante atri-buir-se, nos programas de desenvolvimento, uma alta prioridade àqueles tipos deempreendimentos onde uma grande fatia dos ganhos é reinvestida em novos pro-jetos.

Arthur Lewis

Nascido na ilha de Santa Lúcia em 1915, quando esta ainda era uma colôniainglesa, Arthur Lewis foi premiado com o Nobel de economia de 1979, por seupioneirismo no estudo do desenvolvimento econômico, em particular pelo estudodos problemas dos países em desenvolvimento. Em suas pesquisas desenvolveudois modelos econômicos que marcam as causas da pobreza entre a populaçãodos países em desenvolvimento, bem como os fatores que determinam o ritmoinsatisfatório de desenvolvimento. Divididas em duas principais obras: “O desen-volvimento econômico com oferta ilimitada de mão-de-obra” de 1954; e “A Teo-ria do Desenvolvimento Econômico” de 1955.

Arthur Lewis (1954, 1955), seguindo um referencial teórico clássico, desenvolveseus modelos baseando-se na hipótese de oferta ilimitada de mão-de-obra naseconomias subdesenvolvidas, de forma que se possa desenvolver uma indústriasem sofrer com pressões derivadas da escassez de mão-de-obra. Essa pressupo-sição baseia-se em algumas particularidades dessas economias como, por exem-plo, o grande tamanho da população em relação ao capital e recursos naturaisexistindo assim setores onde a produtividade marginal do trabalho é ínfima, nula

Page 225: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

225

ou mesmo negativa. Existiria, portanto, uma espécie de desemprego disfarçado,onde se alguns trabalhadores, ocupados principalmente em propriedades familia-res, deixassem seu posto em busca de outra ocupação não haveria perdas deprodução nesses empreendimentos.

Outra reserva de mão-de-obra presente nas economias menos desenvolvidas é ogrande números de mulheres fora do mercado de trabalho, as quais se ocupamapenas com os afazeres domésticos. Sendo um dos traços mais marcantes dodesenvolvimento econômico a transferência das mulheres de suas casas para ostrabalhos comerciais. De tal forma que uma das maneiras mais seguras de gerarcrescimento econômico é a criação de novos postos de trabalhos para as mulhe-res. Outra fonte de trabalho para a expansão industrial seria o crescimentopopulacional resultante do excedente de nascimentos em relação à mortalidade.

Portanto, de acordo com Lewis (1954), o preço do trabalho nas economias subde-senvolvidas corresponderia ao nível de subsistência, dessa forma, a escassez detrabalho não impõe limite algum à criação de novas fontes de emprego. Sendopossível verificar a acumulação de capital e o aumento do emprego sem aumentodos salários reais. Os verdadeiros inibidores do desenvolvimento seriam, portanto,o capital e os recursos naturais, e uma vez tendo esses poderia obter-se tambéma qualificação necessária à mão-de-obra.

Para Lewis as economias podem ser divididas em dois setores, o setor capitalista,que representa a parte das economias que utiliza capital reproduzível e que retri-bui aos capitalistas pelo uso destes, e setor de subsistência, é toda parte da econo-mia que não utiliza capital reproduzível. Esses dois setores existemconcomitantemente, espalhados pelos diferentes setores da economia. Quantomais capital, mais trabalhadores do setor de subsistência podem ser levados parao setor capitalista, aumentando o produto per capitada economia.

Quanto à questão salarial das economias em desenvolvimento, Lewis observaque o salário pago pelo setor capitalista em expansão é determinado pelo que sepode ganhar no setor de subsistência. Isto gera um problema político, uma vez queo próprio setor capitalista pode utilizar-se de sua influência para manter a produ-tividade baixa no setor de subsistência, impedindo o desenvolvimento dessa parteda economia.

Um fenômeno observado nas economias que conseguem alcançar o desenvolvi-mento econômico é o aumento da proporção de poupança na renda nacional. Detal forma, que para alcançar o desenvolvimento econômico é necessário que adistribuição de renda se altere em benefício da classe poupadora. Segundo Lewis,

Uma revisão histórica da economia do desenvolvimentoMICHELS, Ido Luiz; COSTA, Caio Luca

Page 226: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

226

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

praticamente toda a poupança provém daqueles que têm lucros ou rendas umavez que a classe trabalhadora não poupa por que simplesmente não sobra rendapara poupar, e a classe média quando já não está endividada poupa muito pouco,normalmente para consumir posteriormente, sobrando apenas os membros do setorcapitalistas. A taxa de poupança da economia está diretamente ligada à proporçãode lucro, por isto que países que possuem um setor capitalista muito pequeno nãoconseguem gerar uma poupança. Outra fonte de capital, além dos lucros, provémde um aumento líquido da oferta de dinheiro, principalmente por meio do créditobancário.

O processo de desenvolvimento pode ser detido quando, apesar de existir exce-dente de trabalho, ocorram aumentos nos salários reais de tal maneira que reduzaos lucros dos capitalistas a tal nível que a totalidade dos lucros seja consumida,não havendo mais investimento líquido. Isso ocorreria por uma das quatro razõesa seguir:

1) Caso a acumulação de capital se dê mais depressa que o aumento da popula-ção, reduzindo o número de pessoas no setor de subsistência, aumentando assimo produto médio por trabalhador neste setor;

2) Por conta de um aumento do tamanho do setor capitalista em relação ao desubsistência, alterando a relação real de intercâmbio desfavoravelmente ao setorcapitalista, obrigando-o a pagar uma porcentagem maior de seu produto para seustrabalhadores;

3) Um aumento na produtividade no setor de subsistência, elevando indiretamenteo salário real do setor capitalista, reduzindo o excedente capitalista e a taxa deacumulação do capital;

4) Caso a relação de intercâmbio entre os setores se modifique em prejuízo dosetor capitalista, por conta de um aumento do preço dos bens de subsistência ouporque o preço não diminui tão rapidamente quanto o exige o aumento da produ-tividade per capita no setor de subsistência ou, ainda, por elevarem os trabalha-dores capitalistas seu nível de subsistência.

Albert Hirschman

Albert Hirschman nasceu na Alemanha em 1915, vivendo a maior parte de suavida e desenvolvendo a maioria dos seus estudos nos Estados Unidos, principal-mente nas universidades de Berkeley, Yale, Columbia, Harvard e Princeton. Fezinúmeras viagens a países subdesenvolvidos, inclusive desenvolvendo trabalhos

Page 227: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

227

na Colômbia, Brasil, Chile entre outros países latino-americanos. Baseado nasexperiências adquiridas nesses países, Hirschman se opôs à aplicação da doutrinatradicional de desenvolvimento econômico, afirmando que para alcançar o desen-volvimento econômico se deveria atentar às particularidades locais de cada naçãoem análise, e não apenas adotar princípios econômicos supostamenteuniversais.Outra questão combatida por Hirschman seria a passividade das na-ções subdesenvolvidas frente a políticas prejudiciais impostas de forma exógena aestes, apenas aceitando todas as sugestões externas, sendo incapazes de desen-volver suas próprias soluções. O conceito geral da teoria de Hirschman é breve-mente analisado a seguir.

Para Hirschman (1958), uma vez iniciado o processo de desenvolvimento econô-mico ele pode se autoalimentar, muito mais por conta da capacidade de encontrare elencar recursos e habilidades que levem ao desenvolvimento, que estejam es-condidos, dispersos ou mal utilizados, do que da habilidade de encontrar combina-ções ótimas para recursos e fatores de produção dados.O desenvolvimento de-penderia da habilidade e determinação de uma nação em buscar tal objetivo, jáque nas nações subdesenvolvidas o processo de desenvolvimento econômico se-ria um processo menos espontâneo do que nos países onde este desenvolvimentoocorreu primeiro. Essa determinação da busca pelo desenvolvimento deveria sercombinada com a identificação das necessidades que precisariam ser saciadas,processo esse que aconteceria gradualmente.

O principal instrumento das políticas desenvolvimentistas seria um processo deindustrialização focado principalmente em indústrias com um forte encadeamentopara trás, os quais correspondiam a enviar estímulos para setores que forneciamos insumos requeridos por uma atividade qualquer. De acordo com Bianchi (2007),essa ideia era revolucionária para a época, pois implicava que um país que quises-se industrializar-se deveria iniciar seu processo através do estímulo às indústriasde setores líderes que arrastariam atrás de si a indústria intermediária e básica,além do resto da economia. Não sendo viável ou desejável eliminar as tensões edesequilíbrios gerados pelo processo de desenvolvimento, já que haveria uma “vir-tude criativa” neles.

Caberia, portanto, aos países menos desenvolvidos encontrar seu caminho atra-vés de uma sequência desse crescimento desequilibrado. Sendo, portanto, a teoriade Hirschman contrária às teorias do crescimento equilibrado defendidas porRosenstein-Rodan, Nurkse e Lewis. Seriam os mecanismos que levam ao afasta-mento do equilíbrio que formariam um padrão adequado ao processo de desenvol-vimento, já que, segundo Hirschman, são os desequilíbrios que desencadeiam asmudanças, que por sua vez gerariam novos desequilíbrios.

Uma revisão histórica da economia do desenvolvimentoMICHELS, Ido Luiz; COSTA, Caio Luca

Page 228: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

228

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

A indução do desenvolvimento teria início em regiões que se caracterizam comocentros regionais economicamente mais fortes. Inevitavelmente isso geraria desi-gualdades regionais que, por sua vez, geraria pressões e tensões que estimulariamo crescimento nas outras regiões. Isto deriva da principal característica do de-senvolvimento, que é extrair forças justamente das tensões e distorções que elemesmo cria. Segundo o autor, entender, considerar e saber aproveitar este aspec-to do processo desenvolvimentista é fundamental para o sucesso na superação dosubdesenvolvimento.

Gunnar Myrdal

Nascido na Suécia em 1898, Gunnar Myrdal estudou direito na Universidade deEstocolmo e se doutorou em Economia nos Estados Unidos, retornando àEuropainicialmente para Genebra na Suíça onde permaneceu pouco tempo antede voltar definitivamente para a Universidade de Estocolmo onde permaneceupor praticamente toda sua vida acadêmica. Dedicou-se inicialmente aos estudosda teoria econômica pura, somente após a década de 1930 começou a dedicar-seà economia aplicada e aos problemas sociais, incentivado principalmente pelosproblemas econômicos provenientes da crise de 1929. Pelo seu pioneirismo nateoria da moeda e flutuações econômicas e pela análise da interdependência dosfenômenos econômicos, sociais e institucionais, foi agraciado, conjuntamente comFriedrich August von Hayek, com o Prêmio em Ciências Econômicas em Memó-ria de Alfred Nobel de 1974.

Myrdal (1957) observou uma divisão entre os países em dois grupos: países de-senvolvidos, os quais se caracterizavam por possuírem altos níveis de renda percapita, integração nacional e vultosos investimentos; países subdesenvolvidos,que possuíam baixos níveis de renda per capita e reduzidos índices de crescimen-to. Dentro dos próprios países existiriam também desigualdades regionais, comregiões mais prósperas e desenvolvidas que outras mais pobres e com menosdinamismo econômico. O autor conclui ainda que o número de países desenvolvi-dos é muito menor que o de subdesenvolvidos, além disso, os mais prósperostendem a aumentar seu grau de desenvolvimento, enquanto os subdesenvolvidostendem a piorar sua situação. Essa é uma das mais importantes constatações deMyrdal, já que na época em que observa esse fenômeno predominava a teoria deque os países menos desenvolvidos automaticamente convergiriam para o estadoem que se encontravam os mais desenvolvidos, dado o efeito positivo que teorica-mente o desenvolvimento exerceria sobre os outros países.

O fato das teorias vigentes até então separarem suas análises em fatores econô-micos e não econômicos limitava a análise das disparidades regionais apontadas

Page 229: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

229

por Myrdal. Por isso, o autor desenvolveu uma teoria baseada em um processo decausação circular cumulativa, onde o sistema econômico é instável e desequili-brado. Existiria um ciclo vicioso, onde fatores negativos causam outros fatoresnegativos e fatores positivos tendem a gerar efeitos também positivos. Isto impli-ca que, ao menos que sejam realizados esforços no sentido contrário, as desigual-dades regionais (dentro e entre países) tendem a se agravar.

De acordo com a teoria da causação circular cumulativa são vários os fatoresrelacionados entre si que explicam uma situação de desigualdade econômica, porexemplo, a desigualdade entre dois países pode ser determinada por questõesculturais, comerciais, por disponibilidade de riquezas naturais, renda interna, graude investimento, nível de instrução médio, estabilidade política e econômica, entreinúmeros outros. Quando se atua em pelo menos um desses fatores, os demaiselementos são induzidos a se alterarem, provocando mudanças secundárias nosistema, que por sua vez causam mudanças terciárias, e assim sucessivamente,intensificando os movimentos iniciais.Como coloca o autor:

Em geral uma transformação não provoca mudanças compensatórias, mas,antes, as que sustentam e conduzem o sistema, com mais intensidade, namesma direção da mudança original. Em virtude dessa causação circular, oprocesso social tende a tornar-se acumulativo e, muitas vezes, a aumentar,aceleradamente, sua velocidade. (Ibid., p. 34).

Tendo em vista os efeitos que alterações em fatores que explicam o desenvolvi-mento podem ter no desenvolvimento econômico como um todo, Myrdal defendea importância de um Estado de integração nacional, auxiliado por uma sociedadecivil organizada, com o intuito de contrabalancear/neutralizar/potencializar os efeitosnegativos/positivos da lei de funcionamento do sistema circular cumulativo.Umfenômeno observado Myrdal é que quantomais alto fosse o nível do desenvolvi-mento de uma nação, mais fortes tenderiam a ser os “efeitos propulsores” queinduzem ao desenvolvimento. De tal forma, que uma das razões que explicam adificuldade de superar o subdesenvolvimento reside no fato de os “efeitos propul-sores” serem fracos nesses países, ou seja, as políticas indutoras de crescimentodevem ser mais fortes em regiões subdesenvolvidas para gerarem um mesmoefeito sobre a economia que gerariam em locais desenvolvidos. Além disso, exis-tiriam os chamados “efeitos de polarização” que representam uma tendência docapital de se alocar em regiões onde já foi empregado com sucesso anteriormen-te, ou seja, em centros econômicos já estabelecidos.

Caberia, portanto, aos Estados das nações subdesenvolvidas programarem políti-cas necessárias para consolidar a democracia, diminuir as disparidades, intensifi-car os “efeitos propulsores” e minimizar os “efeitos de polarização”, neutralizan-

Uma revisão histórica da economia do desenvolvimentoMICHELS, Ido Luiz; COSTA, Caio Luca

Page 230: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

230

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

do as forças de mercado que resultam em disparidades regionais e estimulando odesenvolvimento econômico em um processo de causação circular.

Conclusões

Apesar de esta pesquisa objetivar a discussão sobre os conceitosadotados para otermo desenvolvimento econômico, através dela ficou muito claro o quão comple-xo é este conceito e o quanto seu entendimento está ligado a juízos de valores,formações ideológicas, experiências práticas vividas, interesses pessoais e parti-culares, entre diversos outros determinantes. No entanto, através do estudo dospensadores pioneiros do desenvolvimento econômico, no caso das escolas europeiase americanas (provenientes de países desenvolvidos), é possível identificar algunspontos de convergência entre suas ideias, o que contribui para a formulação deuma ideia geral do que pode se chamar de desenvolvimento econômico.

Um processo de desenvolvimento econômico requer uma mudança na estruturaprodutiva de uma nação, de forma a gerar um incremento na renda, principalmen-te na renda per capita. Para que um país possa ser chamado de desenvolvido,esse processo deve resultar não somente em incrementos absolutos da renda,mas também numa melhor distribuição da renda e riqueza, além de oferecer umarelativa igualdade de oportunidades para todos os cidadãos, sem esquecer as clas-ses mais pobres do país.Para praticamente todos os pensadores pioneiros do de-senvolvimento econômico, mesmo entre aqueles mais inclinados à doutrina dolaissezfaire, o Estado tem um importantíssimo papel como indutor do desenvolvi-mento econômico. Cabendo normalmente ao Estado iniciar o processodesenvolvimentista, além de manter o equilíbrio desse processo e as condiçõesnecessárias a sua perpetuação.

Além dos autores citados neste estudo, podem ser inclusos como pioneiros doestudo do desenvolvimento econômico diversos outros estudiosos, em especial osautores da escola estruturalista latino-americana, Celso Furtado e RaúlPrebisch.Ficando, portanto, como sugestão de estudo futuro uma revisão teórica que bus-que englobar autores que por ventura tenham ficado de fora desta pesquisa. Alémdisso, muito se discutiu posteriormente aos estudos pioneiros em relação aodesenvolvimentismo, ficando, portanto, também como sugestão um estudo quepretenda revisar as pesquisas mais recentes sobre o tema.

Page 231: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

231

Referências

AGARWALA, A.; SINGH, S. P. A economia do subdesenvolvimento. Rio deJaneiro: Forense, 1969.

BIANCHI, Ana Maria. Albert Hirschman na América Latina e sua trilogia sobredesenvolvimento econômico. Econ. soc., Campinas, v. 16, n. 2, ago. 2007. Dis-ponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-06182007000200001&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 14 fev. 2013.

CARDOSO, Fernanda Graziella. A armadilha do subdesenvolvimento: umadiscussão do período desenvolvimentista brasileiro sob a ótica da Abordagem daComplexidade. São Paulo. Faculdade de Economia, Administração e Contabilida-de. Universidade de São Paulo, 2012. Tese de Doutorado em Ciências.

FIORI, José Luis. De volta à questão da riqueza de algumas nações. In; Fiori,José Luis (org.), Estados e moedas no desenvolvimento das nações, Petrópolis:Editora Vozes, 1999.

FURTADO, Celso. Memórias do Desenvolvimento. Ano 1, nº 1. Rio de Janeiro:Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, 2007.

HIGGINS, Jean Downing. The Reluctant Planner: An Overview. In: Cook, W. D.e Kuhn, T. E. (eds.), Planning and Development Processes in the Third World,TIMS Studies in Manegement Science, New York: North Holland, 1980.

HIRSCHMAN, Albert Otto. The Rise and Decline of Development Economics.In: Essays in Trespassing – Economics to Politics and Beyond, Cambridge:Cambridge University Press, 1981.

HIRSCHMAN, Albert Otto. The Strategy of Economic Development, NewHaven: Yale University Press, 1958.

LEWIS, Arthur. O desenvolvimento econômico com oferta ilimitada de mão-de-obra. In: Agarwala, A. N. e Singh, S. P. (eds.), A Economia do Subdesenvolvi-mento, Rio de Janeiro: Cia Editora Forense, ([1954] 1969).

LEWIS, Arthur. A Teoria do Desenvolvimento Econômico, Rio de Janeiro: ZaharEditores, ([1955] 1960).

MEDEIROS, Carlos Aguiar de. Instituições e desenvolvimento econômico: uma

Uma revisão histórica da economia do desenvolvimentoMICHELS, Ido Luiz; COSTA, Caio Luca

Page 232: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

232

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

nota crítica ao “nacionalismo metodológico”. Econ. soc., Campinas, v. 19, n. 3,dez. 2010. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-06182010000300009&lng=pt&nrm=iso>.Acesso em 08 jan. 2013.

MYRDAL, Gunnar. Teoria Econômica e Regiões Subdesenvolvidas, Rio deJaneiro: Editora Saga, 2ª ed., ([1957] 1968).

NURKSE, Ragnar. Alguns Aspectos Internacionais do Desenvolvimento Econô-mico. In: Agarwala, A. N. e Singh, S. P. (eds.) A Economia do Subdesenvolvi-mento, Rio de Janeiro: Cia Editora Forense, ([1952] 1969).

ROSENSTEIN-RODAN, Paul. Problemas de Industrialização da Europa Orien-tal e Sul-Oriental. In: Agarwala, A. N. e Singh, S. P. (eds.), A Economia doSubdesenvolvimento, Rio de Janeiro: Cia Editora Forense, ([1943] 1969).

ROSENSTEIN-RODAN, Paul. The International Development ofEconomically Backward Areas, International Af fairs (Royal Institute ofInternational Affairs), vol. 20, nº 2, p. 157-165, 1944.

SINGER, Hans Wolfgang. O mecanismo do desenvolvimento econômico. In:Agarwala, A. N. e Singh, S. P. (eds.), A Economia do Subdesenvolvimento, Riode Janeiro: Cia Editora Forense, ([1952] 1969).

SINGER, Hans Wolfgang. The Relevance of Keynes for Developing Countries.In: Wattel, H. (ed.), The Policy Consequences of JMK, 1985.

WALLERSTEIN. I. Present state of the debate on world inequality. In: Id, TheCapitalisty World-Economy, Cambridge University Press, Cambridge, 1979.

WALLERSTEIN. I. The Modern World System. Academic Press, Nova York,1974.

Page 233: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

233

NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ORIGINAIS

A Revista “Caminhos da História” propõe-se a publicar trabalhos na área deHistória, inéditos, em português, de autores (docentes e pesquisadores) daUNIMONTES ou outras Instituições na forma de:l artigos;l resenhas; Somente serão aceitas, quando houver, uma resenha, uma tradução,uma comunicação e uma entrevista em cada edição.l traduções de artigos recentes (prazo de 2 anos da primeira publicação), deinteresse relevante e acompanhadas de autorização do autor(es) e da revista emque o mesmo foi originalmente publicado;l comunicações;l entrevistas de reconhecido valor acadêmico.

Apresentação dos originais

Os trabalhos deverão ser entregues em duas vias, constando apenas em umadelas a identificação do(s) autor(es), e em um CD; apresentados em letra 12,fonte Times New Roman, espaço um e meio, folha A4, margens 2,5 cm, versãoWord for Windows 7.0 ou inferior, de dez a vinte laudas para os artigos e traduções,até oito para as entrevistas, até cinco para as resenhas e três para as comunicações.A Revista aceita contribuições em fluxo contínuo.

Estrutura do trabalho

Os artigos e traduções deverão obedecer à seguinte seqüência:l Título;l Nome do autor (somente em uma das cópias impressas) - deve vir à direita dapágina, acompanhado das referências acadêmicas do autor informadas em notade rodapé. A remissão dessa nota deve ser feita pela utilização do símbolo asterisco

Page 234: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

234

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

(*); já que as remissões numéricas são reservadas as notas explicativas;l Resumo;l Unitermos;l Abstract e Resumen. (Além do resumo em Português é obrigatório a apresentaçãoem mais dois idiomas, inglês e espanhol).l Keyword e Palabras-claves. (Além dos unitermos em Português é obrigatório aapresentação em mais dois idiomas, inglês e espanhol).l Texto - usar para as citações, bem como para as referências a autores, osistema autor-data de acordo com as atuais normas da ABNT;l Citação textual (caso haja) - até três linhas devem ser colocadas no corpo dotexto entre aspas; com mais de três linhas devem vir destacadas do texto, emespaço simples;l Notas de rodapé (caso haja) - devem ser colocadas ao pé da página. As remissõespara o rodapé devem ser feitas por números, na entrelinha superior;l Fontes (caso haja) - devem vir antes das Referências Bibliográficas, listadaspor arquivos ou locais em que se encontram;l Tabelas e figuras (caso haja) - devem ser numeradas consecutivamente,encabeçadas por título e conter legenda informando a fonte de consulta;l Referências Bibliográficas - somente as que constarem do corpo do texto, deacordo com as normas ABNT/última versão.As resenhas e comunicações dispensam o resumo e os unitermos.As entrevistas não obedecem as normas da estrutura do artigo, pois devem seguira forma pergunta-resposta.Obs.: Trabalhos entregues fora das normas ou sem revisão de português nãoserão analisados.

Da publicação

Os textos entregues à publicação serão apreciados por pareceristas anônimos:membros do Conselho Consultivo e professores do corpo docente daUNIMONTES ou de outra Instituição Universitária (especialista no tema propostopelo artigo, desde que não seja o autor do mesmo), convidado para este fim.

Os textos voltarão aos autores caso seja necessário alguma alteração. Para taiscasos, o trabalho final deverá ser novamente entregue em duas vias e em um CD,de acordo com as normas informadas anteriormente. A Comissão Editorial, baseadanos pareceres recebidos, selecionará os trabalhos que serão publicados; os que nãoforem selecionados podem ser retirados pelo autor no Departamento de História daUNIMONTES, ou requisitados por correspondência, no prazo de 02 (dois) mesesapós o recebimento do parecer. Após tal prazo os mesmos serão destruídos.

Page 235: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

235

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIANORMAS PARA ENVIO DE ORIGINAIS E SUBMISSÃO DE ARTIGOS E CONTRIBUIÇÕES

Critérios de Seleção

l Escolha do tema, no caso de edições temáticas (dossiês)l Relevância do temal Coerência do artigol Contribuição historiográfica

Os trabalhos devem ser enviados para o Departamento de História daUNIMONTES.Endereço:Revista Caminhos da HistóriaUniversidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTESCampus Universitário “Prof. Darcy Ribeiro”Centro de Ciências Humanas - CCH - Prédio 2 - Depto de HistóriaAv. Dr. Rui Braga, s/n - Vila Mauricéia39401-089 - Montes Claros - MG

DireitosOs autores dos trabalhos aprovados terão direito a um exemplar da edição em queconstar sua publicação. Caso haja mais de um autor para o mesmo trabalho, cadaum terá direito a um exemplar. O (s) autor (es), ao submeterem o trabalho àanálise, automaticamente cedem os direitos de publicação à Revista, em sua versãoimpressa e/ou eletrônica.

Nos artigos com mais de três autores, apenas o primeiro nome constará nos créditoscomo autor; os demais serão nominados como colaboradores em nota de rodapé.

Os trabalhos publicados não serão remunerados em nenhuma hipótese

Todos os casos não previstos serão analisados pela Comissão Editorial que, dentreoutras atribuições, ficará encarregada de informar aos autores da possibilidade dapublicação, contra os quais não caberá recurso.

Page 236: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

236

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

EDIÇÕES ANTERIORESPara adquiri-las entre em contato com a Unimontes, pelo e-mail:

[email protected]

DOSSIÊ: “COISAS DE CIDADE: DIÁLOGOS CUL TURAIS E INTERDISCIPLINARES”Organizadores: Márcia Pereira da Silva; Carlos Martins Junior...........................................................................................................................A CIDADE DESEJADA E A CIDADE POSSÍVEL: A CONSTRUÇÃO DA URBE REPUBLICANA - Jadir Peçanha Rostoldo....................OS ÁLIBIS DO CONSUMO: ANÁLISE SOBRE A MENSAGEM PUBLICITÁRIA DE ELETRODOMÉSTICOS EM PERIÓDICOS DORECIFE DOS ANOS 1930 - Kátia Medeiros de Araujo; Tiaggo Correia Cavalcanti de Morais................................................................................LIMA BARRETO E A “RECONSTRUÇÃO” DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO: UMA ANÁLISE HISTÓRICA DO ROMANCE VIDAE MORTE DE M. J. GONZAGA DE SÁ - Carlos Alberto Machado Noronha; Rinaldo Cesar Nascimento............................................................O INTENDENTE E A CIDADE: MODERNIZAÇÃO E URBANIZAÇÃO EM CAMPO GRANDE (1921-1923)Márcia Pereira Silva; Carlos Alexandre Barros Trubiliano......................................................................................................................................O SERTÃO DAS MINAS E O PROGRESSO CITADINO: REFLEXÕES SOBRE A AÇÃO POLÍTICA POPULAR NO INÍCIO DA REPÚ-BLICA - Alysson Luiz Freitas de Jesus........................................................................................................................................................................OS ARMAZÉNS DE SECOS E MOLHADOS E A CÂMARA MUNICIPAL DA CIDADE DE IRATI-PR, 1907-1920Neli Maria Teleginski; Valter Martins...........................................................................................................................................................................VIAGEM DAS COISAS E DAS IDÉIAS: PORTO, EMBARCAÇÕES E PRODUTOS IMPORTADOS NOS MEADOS DA BELÉMOITOCENTISTA - Mábia Aline Freitas Sales; Leila Mourão....................................................................................................................................UMA CIDADE SOB MÚLTIPLOS OLHARES: AUTORIDADES PÚBLICAS, SENHORES E ESCRAVOS EM BELÉM DO GRÃO-PARÁ(1871-1888) - José Maia Bezerra Neto; Luiz Carlos Laurindo Junior.........................................................................................................................ARTIGOOS REGIMES DE WELFARE DE ESPING-ANDERSEN E SUA DEMONSTRAÇÃO NO COTIDIANO DE EUA, CANADA, FRANÇA,INGLATERRA, CUBA E IRLANDA – UMA ANÁLISE DE SICKO E INSIDE I’M DANCINGGerson Oscar de Menezes Júnior............................................................................................................................................................................

9

11

25

43

59

71

87

101

139

Montes Claros v.16, n.2 p.1-157 2011CAMINHOS DA HISTÓRIA

Montes Claros v.16, n.1 p.1-177 2011CAMINHOS DA HISTÓRIA

AS CRUZADAS E O REINO CRISTÃO ARMÊNIO DA CILÍCIA - Lincoln ETCHEBÉHÈRE-Júnior; Thiago Pereira de Sousa LEPINSKI..............ARBÍTRIO E DESMANDO NO MÉDIO SOLIMÕES - Luís Carlos Valois...........................................................................................................A PRESENÇA INDÍGENA EM RORAIMA: DA COLONIZAÇÃO À CONSOLIDAÇÃO DO ESTADORaimunda Maria Rodrigues Santos; Marília Gomes Ghizzi Godoy............................................................................................................................PODER, TRADIÇÃO MILITAR E ARMAS NO CONTEXTO DAS MINAS SETECENTISTAS: INFLUÊNCIAS EUROPÉIAS E INDÍGE-NAS - Izabella Fátima Oliveira de Sales; Arnaldo José Zangelmi.............................................................................................................................PERMANÊNCIAS E DESCONTINUIDADES NAS BARRANCAS DO VELHO CHICO: UM ESTUDO DE HISTÓRIA LOCAL NO MU-NICÍPIO DE JANUÁRIA(MG) - Iara Toscano Correia; Maria Clara T. Machado..................................................................................................FAZENDA DAS QUEBRADAS – PATRIMÔNIO CULTURAL - Simone Narciso Lessa; Áurea Viviane Fagundes Silveira..................................CAMPANHA DA LEGALIDADE: SIGNIFICADO E SIMBOLISMO PARA O ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (RS)Daniel Arruda Coronel; Airton Lopes Amorim..............................................................................................................................................................OS NÓS DE CULTURAS: EXPERIÊNCIAS DE DESIGUALDADE NOS MODOS DE VIVER A CIDADE - Sheille Soares de Freitas........TRABALHADORES POBRES (?): NOTAÇÕES SOBRE PESQUISA EM HISTÓRIA, VIDA URBANA E CONDIÇÕES DE CLASSES(UBERLÂNDIA/ MG) - Sérgio Paulo Morais..........................................................................................................................................................FATORES EXPLICATIVOS DA MOBILIDADE SOCIAL E DA REDUÇÃO DAS DESIGUALDADES DE RENDA NO BRASIL: 1981 A2007 - Luciene Rodrigues..............................................................................................................................................................................................

725

41

61

77103

117127

147

161

DOSSIÊS: “ HISTÓRIA DA UNIMONTES” . “EDUCAÇÃO ” - Organizadores: Márcia Pereira da Silva, Regina Célia Lima Caleiro,Marcos Fábio Martins de Oliveira..............................................................................................................................................................................UNIVERSIDADES E DESENVOLVIMENTO REGIONAL: ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DA UNIMONTES NO NORTE DEMINAS GERAIS, BRASIL - José Maria Alves Cardoso, Luciene Rodrigues, Maria de Fátima Rocha Maia...................................................NORMAL SUPERIOR MODULAR EMERGENCIAL: UMA ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA DA UNIMONTESAndréa Maria Oliveira Versiani Santiago, Regina Célia Lima Caleiro...................................................................................................................IMPLANTAÇÃO DO SISTEMA DE COTAS NA UNIMONTES E ANÁLISE DA DEPENDÊNCIA ENTRE ALUNOS COTISTAS E NÃOCOTISTAS DOS CURSOS DO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS (CCH)Maria Elizete Gonçalves, Luciene Rodrigues, Maria Helena de Souza Ide............................................................................................................A IMPRENSA PERIÓDICA E A EDUCAÇÃO PARA A VIDA MODERNA EM MONTES CLAROS/MG: 1889-1926Luciano Pereira da Silva, Brenya Paula Miranda Santos.........................................................................................................................................‘ALUMIAR A MENTE’: A INSTRUÇÃO ESCOLAR DOS DISCÍPULOS ANA E ZEZINHO NAS TERRAS GOIANAS EM FINS DOSÉCULO XIX - Diane Valdez...................................................................................................................................................................................EDUCAR E CIVILIZAR NO SERTÃO: RASTROS DO IMAGINÁRIO SOCIAL NA EXPERIÊNCIA DE ESCOLARIZAÇÃO DA PRO-VÍNCIA DE GOIÁS – SÉCULO XIX - Thiago F. Sant’Anna.................................................................................................................................EDUCAÇÃO AMBIENTAL SOB O ENFOQUE DA CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO GEOGRÁFICO: RECUPERANDO O PASSADO ECOMPREENDENDO O PRESENTE - Analúcia Bueno dos Reis Giometti...........................................................................................................ARTIGOS LIVRES .................................................................................................................................................................................................A IMPLANTAÇÃO DO GÁS CANALIZADO NO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO - Vanessa Meloni Massara..............................................“UMA COISA É VER E OUTRA É O CONTAR” : OS IMPACTOS CAUSADOS PELAS NOVAS DESCOBERTAS MINERAIS NO NORTEDE MINAS GERAIS NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVIII - Raphael Freitas Santos.......................................................................HISTÓRIA E MEMÓRIA: AS ORIGENS DA DIOCESE DE MONTES CLAROS NO NORTE DE MINAS GERAIS (1903-1943)Franscino Oliveira Silva............................................................................................................................................................................................MARC BLOCH E LUCIEN FEBVRE: REVISITANDO A PRIMEIRA GERAÇÃO DOS ANNALES - José D’Assunção Barros...................CAIAPÓS, ARAXÁS, BOROROS, GERALISTAS... CONFLITOS REVELADOS, IDENTIDADES E MEMÓRIAS CONSTRUÍDAS NOSERTÃO DA FARINHA PODRE NOS SÉCULOS XVIII E XIX - Glaura Teixeira Nogueira Lima, Robert Mori..............................................RESENHA................................................................................................................................................................................................................“FOI ASSIM QUE CONHECI MEU AVÔ...” : AUTOBIOGRAFIA DA CRIANÇA QUE NASCERÁ PARA SER CARPINTEIROIvaneide Barbosa Ulisses.............................................................................................................................................................................................

9

11

35

49

73

95

115

129141143

157

179197

217239

241

Montes Claros v.17, n.1/2 p.1-250 2012CAMINHOS DA HISTÓRIA

Page 237: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

237

Page 238: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

238

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013

Page 239: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

239

Para receber periodicamente informações sobre as nossas publicações e ondeadquiri-las, basta preencher este cupom e enviá-lo à EDITORA UNIMONTES:

Campus Universitário Prof. Darcy Ribeiro, s/n - Prédio da Biblioteca Central- Montes Claros-MG - Cep: 39401-089 - C. Postal: 126 -

Telefone:(38)3229-8210 Fax:(38)3229-8211

Nome: .............................................................................................................Endereço: ........................................................................................................Cidade: ....................................................Estado: ..........................................Fone: ....................................... Fax: ....................................... CEP.:..... ..............e-mail:.............................................................................................................Livro que o(a) atende: ....................................................................................

Page 240: REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIA - franca.unesp.br · Gisele Cristina da Conceição; Christian Fausto Moraes dos Santos; Fabiano Bracht..... AS CÂMARAS E OS OUVIDORES NA CONSTRUÇÃO

240

REVISTA CAMINHOS DA HISTÓRIAv. 18, n.1/2013