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ISSN 1516-9162 REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE N° 18 - Junho - 2000

REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE … · Entretanto, se Marx propõe a idéia de que somos todos assujeitados por determinantes socioeconômicos, o que representa

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ISSN 1516-9162

REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREN° 18 - Junho - 2000

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Design Gráfico: Cristiane LöffSobre obra de René Magritte “Golconde”, 1953.

R454

REVISTA DA ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGRE / Associação Psicanalítica de Porto Alegre. - n° 18,2000. - Porto Alegre: APPOA, 1995, ----.Absorveu: Boletim da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.

Semestral

ISSN 1516-9162

1. Psicanálise - Periódicos. | Associação Psicanalítica de Porto Alegre

CDU: 159.964.2(05) 616.89.072.87(05)CDU: 616.891.7

Bibliotecária Responsável: Ivone Terezinha Eugênio CRB 10/1108

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ISSN 1516-9162REVISTA DA ASSOCIAÇÃO

PSICANALÍTICA DE PORTO ALEGREEXPEDIENTE

Publicação InternaAno IX - Número 18 - junho de 2000

Comissão Editorial deste número:Analice Palombini, Edson Luiz André deSousa, Eduardo Mendes Ribei ro,Henriete Karam, Janine Mallmann Car-neiro, Luis Fernando Loffrano de Olivei-ra, Maria Cristina Poli Filippi, MarianneStolzmann, Valéria Machado Rilho

Título deste número:DE UM AO OUTRO SÉCULO:A PSICANÁLISE

ASSOCIAÇÃO PSICANALÍTICADE PORTO ALEGRE

Rua Faria Santos, 258 Bairro Petrópolis90670-150 - Porto Alegre / RSFone: (51) 333.2140 - Fax: (51) 333.7922E-mail: [email protected]: www.appoa.com.br

MESA DIRETIVA(GESTÃO 1999/2000)

Presidência: Alfredo Néstor Jerusalinsky1a Vice-Presidência: Lucia Serrano Pereira2a Vice-Presidência: Maria Ângela C. BrasilSecretaria: Jaime Alberto Betts Marta PedóTesouraria: Carlos Henrique Kessler

Simone Moschen RickesAna Maria Gageiro, Ana Maria Medeirosda Costa, Ana Marta Goelzer Meira,Cristian Giles Castillo, Edson Luiz Andréde Sousa, Gladys Wechsler Carnos, IedaPrates da Silva, Ligia Gomes Víctora, LizNunes Ramos, Maria Auxiliadora PastorSudbrack, Mario Fleig, Robson de FreitasPereira e Valéria Machado Rilho

COMISSÕESComissão de AcolhimentoDiana Myrian Liechtenstein Corso, LuciaSerrano Pereira, Maria Ângela CardaciBrasil, Maria Auxiliadora Pastor SudbrackComissão de Analistas-MembrosCoordenação: Maria Auxiliadora PastorSudbrackAlfredo Néstor Jerusalinsky, Ana MariaMedeiros da Costa, Maria Ângela CardaciBrasil, Robson de Freitas Pereira

Comissão de BibliotecaCoordenação: Maria Auxiliadora PastorSudbrack e Ana Marta Goelzer MeiraÂngela Lângaro Becker, Fernada BredaLeyen, Luciane Loss, Luzimar Stricher,Roselene Gurski KasperzakComissão de EnsinoCoordenação: Ana Maria Medeiros daCosta e Mário CorsoAlfredo Néstor Jerusalinsky,Eda Este-vanell Tavares,Liliane Seide Fröemming,Liz Nunes Ramos, Lúcia Alves Mees, Lu-cia Serrano Pereira, Maria Ângela Carda-ci Brasil, Maria Auxiliadora Pastor Sud-brack, Mario Fleig, Robson de Freitas Pe-reira, Rosane Monteiro RamalhoComissão de EventosCoordenação: Ana Maria Gageiro e Ma-ria Elisabeth TubinoEloísa Santos de Oliveira, GrasielaKraemer, Maria Beatriz de A. KallfelzServiço de Atendimento ClínicoCoordenação: Ângela Lângaro Becker eLiz Nunes RamosCarlos Henrique Kessler, GrazielaKraemer, Maria Cristina Petrucci Solé

Comissão de PublicaçõesCoordenação: Mario FleigComissão de AperiódicosCoordenação: Mario FleigCarmen Backes, Conceição de FátimaBeltrão, Clara Maria Hohendorff, MagdaSparenberger, Maria Luiza Dib, MarianneStolzmann, Roséli Cabistani, UbirajaraCardoso de CardosoComissão do CorreioCoordenação: Maria Ângela Cardaci Bra-sil e Robson de Freitas PereiraAna Laura Giongo Vaccaro, FranciscoSettineri, Gerson Smiech Pinho, HenrieteKaram, Liz Nunes Ramos, Luzimar Stri-cher, Marcia Helena de Menezes Ribeiro,Maria Lúcia Müller SteinComissão da Home-PageCoordenação: Robson de Freitas PereiraGerson Smiech Pinho, Henriete Karam,Janine Mallmann CarneiroComissão da RevistaCoordenação: Valéria Machado RilhoAnalice Palombini, Edson Luiz André deSousa, Eduardo Mendes Ribei ro,Henriete Karam, Janine Mallmann Car-nei ro, Mar ia Cr is t ina Pol i F i l ipp i ,Marianne Stolzmann

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“Decifra-me ou te devoro!”:notas sobre o desassossegonas relações entre psicanálisee epistemologia ......................... . 79Analice de Lima Palombini

ENTREVISTAPoïética e psicanálise ................ . 91René Passeron

RECORDAR, REPETIR, ELABORARA letra e o outro no Japão .........106Kunifumi Suzuki

VARIAÇÕESCintilações múltiplas: fendas paramundos possíveis ......................117Míriam Chnaiderman

O maravilhoso mundo das análices................................................126

Donaldo Schüler

O inconsciente ótico .................130Edson Luiz André de Sousa

SUMÁRIO

EDITORIAL............................05

TEXTOSUm século de psicanálise .......... 09Eduardo Mendes RibeiroMário Corso

Centenários.............................. 18Jeanne Marie Gagnebin

A interpretação, entre a lingüística ea psicanálise ............................ 24Francisco Settineri

Era como num sonho... Era comonum filme.................................................. 37

Liliane Seide Froemming

“Seres humanos cristalizados”:intersecções entre a psicanálise e apesquisa genética ..................... 55Luciane da Luz Loss

Modernos e contemporâneos:ou considerações sobre o mesmo e ooutro ........................................ 65Maria Cristina Poli Filippi

O essencial é visível para os olhos............................................... 71

Maria Ângela C. Brasil

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EDITORIAL

O tema desta revista tomou como ponto de partida a pergunta sobre os efeitos quea psicanálise pôde produzir na cultura, desde a invenção freudiana até nossos

dias. Ao longo do trabalho editorial em que então nos engajamos, tal pergunta desdo-brou-se em uma série de interrogações em torno à problemática da psicanálise emextensão, à possibilidade da sua transmissão e à necessária interlocução com outroscampos de conhecimento. Permeando nosso debate, impôs-se a mesma questão no seureverso: o que dizer dos efeitos da cultura na psicanálise?

O nascimento do sujeito moderno, a partir do século XVII, prepara o terrenoque possibilita a Freud a invenção do inconsciente, no limiar do século passado. Ocu-pando-se da emergência do sujeito do inconsciente na relação eu/Outro, a psicanálisediz da divisão desse sujeito, apontando o insabido de todo saber, aquilo que, da cultu-ra, permanece sob recalque. Contudo, a psicanálise mesma, enquanto produto de seutempo, manifesta os efeitos dessa divisão. É desde uma particular posição epistemo-lógica, a qual não apenas reconhece o fato da transferência, mas o toma como funda-mento de seu saber, que a psicanálise pode sustentar o paradoxo que a constitui.

A relação ao Outro, então, é condição sine qua non para a produção de conhe-cimento em psicanálise. É somente na interlocução com o campo das ciências, daliteratura, da filosofia, das artes, que o discurso psicanalítico reafirma seu caráter deinvenção, possibilitando a subversão dos paradigmas da razão.

Sustentar o caráter epistemológico único que assume a psicanálise na relaçãoaos outros campos do conhecimento não implica, porém, situá-la em posição excêntri-ca a esses campos no plano de uma episteme. Lembremos que é numa tal posição deexceção – exceção à castração – que Lacan vai situar o lugar do mestre, uma das ver-

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sões do pai. O discurso psicanalítico, por sua vez, é aquele que mantém a disjunçãoentre saber e verdade: a verdade, portanto, não se diz do lugar de mestre.

Tal pensamento serviu-nos de guia na abordagem do tema que ora nos ocupa:sustentar uma interlocução com outros saberes sem ser desde uma posição de mestria.Essa interlocução, justamente, vem por em ato a relação ao Outro no campo da psica-nálise em extensão. Ela não realiza a ilusão da completude do encontro ideal, masconstitui-se em torno de um ponto resistencial – aquilo que faz limite em cada discipli-na ou entre interlocutores de uma mesma disciplina. O reconhecimento desta resistên-cia instaura as condições em que um diálogo torna-se efetivo.

A propósito, eis aí o insuperável valor do legado deixado por Freud: a possibi-lidade de testemunhar a invenção da psicanálise a partir de uma experiência singular,redimensionada pela alteridade que o diálogo com seus contemporâneos e com a he-rança cultural de seu tempo vem representar. Porém, para isto, além do advento dasubjetividade moderna, foi preciso alguém capaz de suportar e transmitir o encontrocom o mais vivo da experiência analítica: o fato de que o Pai, lugar de mestria, nadamais é do que um efeito discursivo.

Nosso ensejo é que os textos a seguir convidem à continuidade desse diálogo eque se tirem deles os efeitos para o próximo século. Boa leitura.

EDITORIAL

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TEXTOSTEXTOSUM SÉCULODE PSICANÁLISE

Eduardo Mendes Ribeiro*Mário Corso**

RESUMOO artigo propõe uma análise e uma reflexão sobre os efeitos produzidos pelateoria e prática psicanalítica na sociedade contemporânea. São identificadascertas idéias que foram assimiladas pelo senso comum de nossa época, einterpretadas as razões pelas quais outras noções psicanalíticas permane-cem de difícil assimilação.PALAVRAS-CHAVES: psicanálise na cultura; transmissão da psicanálise; re-sistências à psicanálise

ABSTRACTThis article proposes an analysis and a reflection about the effects producedby the psychoanalytical theory and practice in the contemporary society. Someideas that were assimilated by the common sense of our time were identified.Also, the reasons why other psychoanalytical notions remain hard to assimilatewere interpreted.KEYWORDS : psychoanalysis in culture; psychoanalysis transmission;resistance to psychoanalysis

* Psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Doutor em AntropologiaSocial pela UFRGS.** Psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.

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TEXTOS

Podemos ter todas as queixas do século XX menos a de monotonia. Foi um séculomais denso em mudanças que seus anteriores: o mundo e o homem não são os

mesmos depois dele. Pois bem, a psicanálise nasceu com o século e pode-se dizer quenão poderia ter nascido em qualquer século, pois seria necessário um certo grau deindividualismo para ela fazer sentido a seus contemporâneos. Afinal, sem uma indivi-dualidade cultivada e valorizada, não haveria espaço para tal dispositivo.

Recentemente um analista disse que a psicanálise teria sido a maior influênciaintelectual do século. É difícil concordar. O marxismo, gestado no século passado,forneceu a última, mas poderosa, utopia que transformou o século. Forneceu a revolu-ção russa, a chinesa e outras que a seguiram, e dividiu o mundo em blocos no pós-guerra, cuja desmontagem ainda não terminou. Além disso, seria grosseiro pensar queos efeitos do marxismo se restringiram ao plano político: acreditamos que ainda vaiser necessário um certo tempo para que se faça uma crítica mais isenta sobre a contri-buição positiva que tal teoria deu ao homem neste século que se encerra.

Entretanto, se Marx propõe a idéia de que somos todos assujeitados pordeterminantes socioeconômicos, o que representa um contraponto às ilusões iluministasacerca da autonomia das consciências, Freud desvenda outra ordem de determinação,qual seja, a de fatores subjetivos inconscientes que impõem limites a essa mesmapretensão. Para o primeiro, os indivíduos têm de ser pensados a partir de sua posiçãosocial; para Freud, é o social que se manifesta de forma singular em cada indivíduo.

Neste sentido, a revolução psicanalítica, se é que assim podemos falar, é bemmais silenciosa, pois ela se manifesta no plano em que o homem concebe a si mesmo.Nosso artigo busca pensar justamente essas mudanças e ver se não inflacionamos essaimportância. O que nos interessa é pensar em quê a psicanálise, além de ser filha deseu tempo, contribuiu para o desenvolvimento deste. É difícil dizer se o século tomariaa mesma inclinação sem ela, mas, ao menos, é certo que ela acelerou algumas tendên-cias que, de qualquer maneira, estavam buscando realização. Outras questões, pode-sedizer que, ao contrário, ela introduziu sem que estivessem em pauta.

Interessam-nos as idéias que entraram no circuito de entendimento básico dohomem contemporâneo, quando um conceito escapa do âmbito dos especialistas e jáfaz parte do senso comum de uma época. Usando um vocabulário antropológico, po-demos dizer tratar-se de representações sociais hegemônicas, que operam quando ohomem comum, não necessariamente letrado, assume uma determinada concepção,fazendo uso implícito de preceitos que ignora ou não.

A contribuição da psicanálise para as terapêuticas modernas não vamosabordar: nosso artigo já é demasiado pretensioso. Interessa-nos, num balanço geral,avaliar o que a psicanálise deixou para a cultura como um todo, ou seja, o que é que,graças a ela, já não se pensa da mesma maneira. Sendo o tema muito complexo paraum simples artigo, gostaríamos simplesmente de fazer um convite a pensar nessa dire-

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ção. Mas como isso pode parecer um tanto abstrato, melhor será pensar, por tópicos, acontribuição efetiva da psicanálise para esse século.

SEXUALIDADE INFANTILA tendência do nosso tempo era e vinha sendo a de uma valorização progressi-

va da infância. Como passamos a nos ocupar cada vez mais dela, torna-se compreen-sível que este interesse, mais cedo ou mais tarde, resultasse em algumas “descober-tas”. Que a psicanálise tenha colocado em pauta a sexualidade infantil não surpreende.Na verdade o que, sim, fica evidente, são as forças resistenciais que impediam isso deser visto. De fato, seria preciso muito malabarismo teórico para que se continuasseignorando o Complexo de Édipo. Entretanto a interpretação freudiana está longe deser percebida em sua radicalidade: o Édipo ainda é tomado por muitos apenas comouma fase passageira e curiosa de preferências pelo genitor do sexo oposto. Não é defácil aceitação colocar os adultos na ciranda do Édipo, pois este tende a ser concebidocomo um capítulo da infância, e não como um papel que vai ser revivido do outro ladona paternidade.

De qualquer maneira, a sexualidade das crianças é vista com naturalidade. Issoatualmente ganha uma dimensão que já não assusta ninguém. A descoberta da sexua-lidade infantil problematizou não somente a relação do sujeito adulto com a criançapropriamente dita, mas também, com a sua própria infância. A gritaria que essa teoriasuscitou defendia a inocência das criancinhas, mas, na verdade, eram os adultos daépoca que intuíam uma necessária reinterpretação da própria história. Neste sentido,esse conceito funcionou como uma espécie de elo perdido, capaz de eliminar o vazioque a amnésia de cada um sobre seus primeiros anos induziu em sua história. Desco-berta e interpretada a fonte do mal-estar para com a infância, seguem-se conseqüentesganhos para a diminuição do mal-estar para com as crianças, do que se conclui que oconvívio entre seres humanos grandes e pequenos deve muito à teoria analítica: elapossibilitou uma tolerância maior para com a infância.

SEXUALIDADE COMO CERNE DO HUMANONinguém tinha tido, até então, a coragem de colocar o acento na sexualidade

como a psicanálise o fez: passado um século, pode-se dizer que o saldo é positivo. Se,de fato, ainda não obtivemos todo o alcance que gostaríamos, dificilmente essa idéiapode ser revertida.

A verdade é que várias tendências históricas desentocaram o exercício da sexu-alidade. O que a psicanálise fez de mais importante foi dar uma visão de que o recalqueda sexualidade se paga com neurose. Essa idéia pegou, até exageradamente, podemosdizer. O exercício da sexualidade é uma fonte de prazer, mas não é a panacéia dafelicidade humana como quiseram fazer crer algumas correntes nascidas dentro dofreudismo.

UM SÉCULO DE PSICANÁLISE

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TEXTOS

Podemos dizer que a visão da sexualidade, enquanto risco à normalidade pes-soal e social, sofreu um giro: agora é o não-exercício pleno desta que produz o sofri-mento e a patologia. Uma das explicações contemporâneas para o nascimento da neu-rose é que o recalque da sexualidade, ou um trauma precoce, faz sair dos trilhos odesenvolvimento dito “normal” ou “natural”. É impossível não ver aqui o dedo dapsicanálise: são suas teses simplificadas e diluídas.

De qualquer forma, podemos dizer que quem habitou o fim do século sofreubem menos com os reveses de sua sexualidade do que os seus bisavós. Alguns com-portamentos sexuais hoje estão descriminalizados e fora também das nosografias comoalgo intrinsecamente patológico. Hoje é difícil conceber uma nova onda moralistacapaz de reeditar a época vitoriana, de uma cultura sexual subterrânea e hipócrita. Arevolução sexual pode não nos ter livrado de todos os sofrimentos oriundos da dificul-dade de lidar com a sexualidade, mas tornou tudo mais fácil.

A SEXUAÇÃODe sua amizade com Fliess, Freud herdou o conceito de bissexualidade que,

como outros que utilizou, pairava sobre seu tempo. A partir daí, ele passa a tomar asexuação para um ou outro sexo como um processo. Temos, então, feminino e mascu-lino como posições em relação às quais o ser humano, biologicamente homem oumulher, terá que se situar, embora de jeitos e com resultados diferentes. A riqueza dateoria freudiana consiste em pensar a sexuação como um processo que, embora apoi-ado no corpo, possui um roteiro de caminhos possíveis para tornar-se mulher e outropara resultar em um homem. Esses caminhos têm seus pontos de convergência, maspreservam seus próprios dilemas. A idéia de bissexualidade, embora não seja estrita-mente um conceito, apontou para a dialética constituinte do processo de sexuaçãohumana.

Por outro lado, a própria psicanálise tem sido mais conservadora do que seutempo, pois, se ela deu os instrumentos para promover uma maior tolerância em rela-ção a outros exercícios sexuais, o mundo tolerou as múltiplas possibilidades da sexuaçãoantes dela. Prova disso é a constatação de que só recentemente a teoria psicanalíticaestá tirando a homossexualidade da categoria de perversão.

Temos mais indícios de que o futuro não passará pela indiferenciação dos se-xos e sim, pela tolerância de suas diferenças. Embora não devamos nunca subestimaras resistências à sexualidade, cada dia ficará mais difícil conjugar abstrações de um serhumano não sexuado.

A RELATIVIZAÇÃO DA DIFERENÇA ENTRE NORMAL E PATOLÓGICOFrente a esta questão, muitos vão creditar-se como pais da criança: de fato,

foram vários os movimentos intelectuais e políticos que diminuíram a diferença entreo normal e o patológico. A psicanálise esteve nessa aventura, não num protesto políti-

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co, mas desmontando por dentro o sistema. Ao demonstrar que a neurose é a condiçãobásica do humano, menos ela aproximou o louco da normalidade e mais nos levou apensar que a normalidade não faz sentido.

A questão afeta também a noção de uma subjetividade “normal”, isto é, aquelaque se manifesta nos neuróticos que conseguem manter seu sofrimento distante deuma aparência “patológica”. Atualmente é um alívio para qualquer um saber que nin-guém é de todo certo, e que um parafuso a menos não é caso de desespero. Abretambém espaço para o neurótico buscar ajuda para seu sofrimento, antes restrito ape-nas aos casos graves. A angústia, a depressão, o sofrimento não espetacular ganhamterreno dentro de uma nova sensibilidade terapêutica.

Somente neste século, e a psicanálise foi pioneira neste terreno, passou-se aacreditar na possibilidade de uma administração razoável dos sofrimentos banais. Essavirada fez com que convivêssemos melhor com as possíveis diferenças que, aliás,podem ser creditadas à demanda por imparidade da sociedade individualista.

O RECALQUEA pedra fundamental do edifício analítico, para usar as palavras de Freud, foi

conservada. O recalque é um dos conceitos psicanalíticos mais amplamente admitidose chegou ao senso comum entendido como o difícil acesso à consciência de pensa-mentos que incomodam. Neste entendimento, desdobrou-se a idéia de que é desse dito“recalcado” que os problemas advêm. Ou seja, paira a idéia de um núcleo de verdadea que não se pode ter acesso e que muitos acreditam estar associada a uma origemsexual. Em português, temos até o termo “recalcado”, que começou como gíria paraalguém que não admitia algum de seus problemas e, por isso, era revoltado.

A VALORIZAÇÃO DA PALAVRAAté o começo do século, a palavra não tinha vez nas terapêuticas e nem mesmo

nas investigações: o doente não tinha voz, não era escutado. Digam o que disserem,ninguém tira da psicanálise o mérito de ter dado a voz, pela primeira vez, a quemsofre, tanto para compreendê-lo como para curá-lo.

Podemos dizer que ainda é difícil achar ouvidos e, mais ainda, bons ouvidos,mas se alguém insistir, hoje terá bem mais chances de ser escutado. A palavra passoua ter outro estatuto e, como subproduto, podemos dizer que os sonhos e os delíriospassaram a ser percebidos como portadores de um sentido, de uma mensagem a serdecifrada, e que possuem uma conexão não aleatória com o sujeito que a profere. Oato falho ganhou contornos públicos: qualquer um pode ser apanhado pela boca porproferir certas palavras.

A psicanálise contribuiu, como poucas outras disciplinas, para a aceita-ção da idéia de que o homem habita o território do simbólico. É verdade que o reco-nhecimento deste fato encontra forte oposição, principalmente por parte das correntes

UM SÉCULO DE PSICANÁLISE

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TEXTOS

médicas mais biologicistas, o que nos leva a crer tratar-se de uma luta perpétua, emque voltam a ser encenadas as aparentemente eternas disputas entre as concepçõespsicogênicas e organogênicas que, muitas vezes, nos pareceram superadas.

A VALORIZAÇÃO DO PARTICULAR COMO FONTE DE INVESTIGAÇÃOA psicanálise contribuiu, junto com outras ciências, para a constituição de um

paradigma moderno segundo o qual é possível chegar ao geral partindo do particular.Ela fez progressos analisando fragmentos de manifestações a que ninguém dava im-portância: foi através das interpretações dos sonhos, dos atos falhos, dos ditos espiritu-osos, e da valorização dessas produções, que ela ensaiou seus primeiros passos. Nuncadesdenhando do todo, mas sabendo que não há uma porta única para a verdade dosujeito, a psicanálise sempre foi à minúcia para rastrear os sentidos ocultos dos sinto-mas.

Atualmente, e esta é uma das características da sociedade individualista mo-derna, predomina a tendência da busca pela singularidade. Nesta direção, Lacan, sen-sível às peculiaridades de nosso tempo, definiu a psicanálise como a ciência do parti-cular. Esse sentido, acreditamos, foi preservado apesar de a psiquiatria ter tentadoestabelecer várias classificações generalizantes. Atualmente, só numa grande indigên-cia neurótica de significação, alguém aceita um rótulo de portador de tal ou qual qua-dro.

* * *

Por outro lado, existem aspectos centrais da teoria psicanalítica que o séculonão entendeu, embora sejam muito claros. Na verdade, não seria exatamente “enten-der”, seria melhor dizer que a psicanálise confrontou-se com a ideologia de sua época,e que a aceitação de certos conceitos e interpretações permanece restrita aos analistase a poucos teóricos de outras áreas. Neste sentido, a tarefa que nos cabe ainda é gran-de.

O SUJEITO É UNO E POSSUI UM CENTRONosso século não acredita que o sujeito seja múltiplo. Por mais evidentes que

sejam os sinais de sua divisão, os indivíduos contemporâneos continuam a tomar estefato como uma disfunção: o sujeito deveria ser íntegro. Não é só um entendimento, éum anseio, uma forma de buscar o melhor para cada um. Algumas estratégias de curanão operam de outra maneira: na falta de uma unidade, de uma identidade que devolvaao sujeito alguma significação, cria-se uma e faz-se crer a cada um que ele é isso.

A estratégia contra a fragmentação é conceber uma miragem única e central.São erros justapostos que acabam ocorrendo: o ego fica sendo o centro de um sujeitoautônomo, e esse centro seria uma unidade indivisível. Assim se concebe o homem doséculo XX, e a psicanálise fez pouco mais do que cócegas nessa idéia. Podemos dizer

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até o contrário: essa concepção pasteurizou boa parte das correntes psicanalíticas.MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO

O nosso fim de século ainda é embalado nas crenças positivistas de que a ciên-cia vai encontrar um jeito de conciliar o inconciliável. Acredita-se que a felicidade épossível. Se hoje ainda não chegou, em um futuro não distante chegará, e o sofrimentoe o mal-estar tenderão a ter um fim. A ciência é a fiadora de uma utopia envergonhadaem reconhecer-se como tal, mas nada tímida em promessas.

Freud nunca vendeu a ilusão da felicidade humana: poderíamos ser um poucomenos infelizes, só isso. Ele ironizava dizendo que a felicidade parecia não estar nosplanos dos criadores. Acreditava que a civilização tinha um preço que não havia comonão pagar. Enfim, o mal-estar é estrutural: podemos tentar driblá-lo aqui e ali, mas nãohá como escapar de uma certa dose de sofrimento.

Nossa época vive mal com isso, não há ano em que não inventam uma droganova que, finalmente, quimicamente, iria resolver os furos do nosso gozo. O homemmoderno não é resignado em seu sofrer, toma como uma derrota pessoal qualquermal-estar e vai procurar em seu interior as causas para tal angústia. Vive como poden-do, em tese, ter acesso a mais gozo e a uma felicidade durável. Que isso seja umafábrica de frustrações é o que atestamos cada dia na clínica.

Algumas correntes analíticas adoçaram a pílula. Creditaram o sofrimento à ocor-rência de um plus de repressão desnecessária e afirmaram que seria possível um equi-líbrio em uma sociedade não neurótica baseada em uma repressão mínima. Disso adviriaum ser humano novo e satisfeito. É bom lembrar que tal sociedade nunca chegou, masa contracultura popularizou a busca de uma sociedade não repressiva.

O TRAUMAA idéia mais banal que se tem dos distúrbios mentais é que eles são oriundos de

um trauma real. Freud, de fato, acreditou nisso, mas por muito pouco tempo, e desdeque a psicanálise começou a ser difundida, ela tenta convencer a todos do contrário. Otrauma é sempre ou ressignificado ou fantasiado, e quando encontramos traumas re-ais, mesmo assim, existe um sem número de possibilidades de como ele foi tomadopelo sujeito.

Segue sendo uma tarefa da psicanálise tentar explicar a possibilidade, conve-nhamos de difícil apreensão, de que alguém possa ser traumatizado por uma fantasia.E ainda por outro lado, cabe também desmontar a idéia de um trauma como fonteprimária e quase única de acesso ao patológico.

É mais fácil, tanto cognitivamente como também por economia de angústia,pensar que existe uma causalidade no que nos faz sofrer, que é possível descobrir afonte de nosso mal-estar e talvez, então, dominá-la. Uma fonte difusa ou múltipla daneurose, que, aliás, é a mais comum, joga-nos direto no vazio do ser, e aqui reside adificuldade. A idéia de encontrar o “episódio traumático” responsável pelo mal que

UM SÉCULO DE PSICANÁLISE

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TEXTOS

nos aflige é extremamente sedutora, na medida em que aponta para a possibilidade deremoção deste entrave e dá um sentido fácil para o sofrimento.

Em um contexto mais amplo, é difícil dizer se não é uma influência da psicaná-lise a idéia geral de que a subjetivação, qualquer que seja, é feita sempre à força e àrevelia do sujeito, no sentido de que toda subjetivação seria traumática. A mesma idéiase desdobrou numa inibição em relação à educação das crianças em todo o final doséculo, pois, de acordo com esta crença, qualquer intervenção poderia deixar marcasindesejáveis e irreversíveis nas crianças.

A TRANSFERÊNCIANão é tão trágico pensar que a idéia de transferência só chegou ao senso co-

mum como um efeito indesejável do contexto terapêutico (o risco do estabelecimentode uma condição de dependência e alienação em relação ao saber atribuído ao analis-ta); trágico é constatar que várias propostas psicoterapêuticas tenham recuado frente àradicalidade dos mecanismos da transferência ou se deixado seduzir por seu poder.

Segundo estas concepções, todos os indivíduos são portadores de uma identi-dade, e é a partir dela que exercitam suas relações sociais. Sempre que as experiênciasindividuais problematizam este entendimento, atribui-se o fato a mal-entendidos quepodem facilmente ser solucionados, desde que se dê tempo ao diálogo: essa é a idéiabásica. O fato de tropeçarmos o tempo todo num pântano de representações subjetivasembaralhadas, ou não é percebido ou é visto como um desvio de uma objetividade aser alcançada. As repetições dos comportamentos, os sempre mesmos desdobramen-tos de uma subjetividade frente à pluralidade das alteridades, não parecem capazes deabalar a ilusão de objetividade.

* * *

Acreditamos que a psicanálise veio para ficar, desde que a entendamos nãocomo um saber expresso em um conjunto de textos “sagrados”, mas sim, como umaprática e uma ética a serem renovadas em seu próprio exercício. Não há razões parasupor que a noção de “inconsciente”, introduzida pela psicanálise, tenha perdido suapertinência. Qual é o inconsciente do qual falamos é que são elas, pois poucos concei-tos são lidos em uma pluralidade semântica tão grande como este. O inconsciente maisusual, que mais faz ressonância, é o mais ôntico e mais gótico: um mundo instintual detrevas interior que suportamos não sem dificuldade. De qualquer forma, é um progres-so: pelo menos o homem passou a se conceber como menos senhor de si, intuindo quehá algo nele que não domina e não conhece. É verdade, entretanto, que a contribuiçãode Lacan, situando o inconsciente fora do indivíduo, como sendo o discurso do Outrointeragindo no processo de constituição das subjetividades particulares, está longe deter aceitação.

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A psicanálise, mais do que qualquer outra coisa, é uma teoria do desejo huma-no, mas não é esse o entendimento que se tornou dominante. Somos conhecidos comoterapeutas do páthos. Evidentemente, não se trata de responsabilizar a sociedade con-temporânea por este equívoco: seja por razões estratégicas, por inibição teórica, oupor falta de clareza de seu papel, foram os próprios psicanalistas que passaram a idéiade que somos uma especialidade que lida com o patológico. Não é assim tão mau, masainda está longe o tempo em que vamos ser procurados a partir do reconhecimento deque são os impasses do desejo que produzem nossos sofrimentos.

UM SÉCULO DE PSICANÁLISE

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Jeanne Marie Gagnebin*

RESUMOReflexão sobre a tensão que se estabelece entre os ideais iluministas assu-midos pela filosofia moderna e a noção de inconsciente proposta pela psica-nálise. São apontadas as circunstancialidades históricas responsáveis pelaprogressiva problematização do sujeito do conhecimento. Para além, ouaquém, do cogito cartesiano, o pensamento contemporâneo se vê forçado areconhecer a existência de limites e determinações irredutíveis ao exame daracionalidade consciente.PALAVRAS-CHAVES: filosofia; inconsciente; iluminismo; sujeito

ABSTRACTThis article is a reflection about the tension that is established between the“Iluminatis” Ideals assumed by modern philosophy and the notion ofunconscious proposed by psychoanalysis. The historical circustancialities,responsible by the progressive problematization of the subject of knowledgeare pointed out. Beyond or before the Cartesian cogito, the contemporarythought finds itself forced to recognize the existence of limits and determinationsirreducible to the examination of conscious rationality.KEYWORDS: philosophy; unconscious; illuminism; subject

* Filósofa, professora de Filosofia da PUC/SP e da UNICAMP. Publicou, entre outros livros,“História e narração em Walter Benjamin” (Perspectiva, 1994) e “Sete aulas sobre linguagem,memória e história” (Imago, 1997).

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Recebi um telefonema de Porto Alegre. Um amigo me pede um texto sobre a im-portância da psicanálise para a filosofia, sobre o seu impacto, o questionamento

por ela provocado. Motivo: os cem anos da publicação da Traumdeutung.Fico intimidada. Nunca escrevi para uma revista de psicanálise, assim, sob

encomenda. Aceito, porém. Aceito porque fico não só intimidada, mas também leve-mente irritada. E ao tentar entender minha irritação, já começo a pensar num pequenotexto. Ei-lo aqui: gostaria de enviá-lo ao amigo para ele me ajudar a fazer frutificarmelhor essa irritação.

De onde proviria? Da segurança – talvez aparente, mas, no entanto, presente –com a qual um “psicanalista” pode perguntar a um “filósofo” sobre a significação dapsicanálise, de Freud, da Traumdeutung, para a filosofia. Pressupõe a questão queessa significação deva existir. Não pode ser anódina porque, se o fosse, não se escre-veria nada sobre ela. Ouço, á tort ou à raison, algo subentendido, a saber, o pressupos-to que essa significação deve ser da ordem da perturbação e do transtorno. Ou ainda:depois de Freud, não se pode mais filosofar como antes; vocês, filósofos, têm quereconhecer isso. Reconheço. Aliás, é esta minha prontidão, esta minha pressa em reco-nhecer tal evidência que me irrita também.

Engraçado, enquanto estávamos conversando no telefone, acertando algunsdetalhes práticos para o envio dessas linhas que agora estão lendo, perseguia-me avisão de uma aluna minha, psicanalista, que no último seminário de um semestre deaulas consagradas à tradição hermenêutica, à questão da interpretação, portanto, faloujustamente de Freud e da Traumdeutung. Para minha estupefação, aliás à altura daminha ingenuidade filosófica, contou então que Freud tinha acabado a obra já em1899, mas que esperou até 1900 para publicá-la, querendo marcar melhor seu caráterinaugural na memória da humanidade. “Por que precisou ele deste pequeno truque...narcisista?”, pensei comigo. Que sinal de confiança na obra e, simultaneamente, quan-ta fragilidade nesta tentativa deliberada de “fazer data” com o século!

Volto à minha irritação inicial. Talvez eu a entenda um pouco melhor agora.Ela manifesta um mal-estar diante desses papéis preestabelecidos do psicanalista e dofilósofo. Teríamos, de um lado, o detentor de um saber tão inefável quanto eficaz, omestre da suspeita, segundo a expressão de Foucault e de Ricoeur; e, do outro, um tolosimpático, ingênuo, porém muitíssimo complicado, alguém que ainda acredita em con-ceitos precisos, em discursos rigorosos, alguém que cai no(s) poço(s), mas continuaapostando nas palavras claras que reenviam a uma apreensão sem ambigüidades domundo. Alguém que continua afirmando a necessidade de um discurso coerente queilumina o mundo (este, sim, cheio de contradições e de incertezas), que continua alme-jando uma consciência clara, capaz de articular com esforço, dificuldade, dor talvez,mas finalmente com soberania e rigor estas palavras esclarecedoras.

Herdeiros deste belo ideal iluminista, desta vontade de esclarecimento, preocu-

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pados, em particular, em não se deixar enganar (este medo propulsor da dúvidacartesiana), os filósofos modernos e contemporâneos se foram despojando, paulatina-mente, de todas as superstições, ilusões, projeções e justificativas em suas reiteradastentativas de apreensão do “real” (como ousar escrever esta palavra sem a colocarentre aspas!). Eis que o último bastião, a consciência clara do sujeito autônomo, agoratambém se revela engodo, ilusão, projeção narcisista, que sais-je? Ou melhor: ela nãose revela tal, Freud a revela a si mesma, como um bom pai, de barba e cachimbo,censura com gentileza, mas com firmeza, meninos ingênuos e orgulhosos. E todos osnossos amigos psicanalistas guardam alguma semelhança com esse pai irônico e bon-doso – pelo menos eu sempre enxergo neles uma sombra de barba e um rastro defumacinha... Não é fácil se desfazer desse papel de filho arrependido que se apressaem reconhecer seus erros; este mea culpa (desculpem, mas Nietzsche também nãoescrevia na mesma época que Freud?), aliás, permite-me unir o gesto infantil do reco-nhecimento de que o pai está com razão e o gesto da razão, o gesto iluminista dacrítica e da autocrítica.

Esboço uma tentativa de sair deste palco. Deixar esta “menoridade auto-culpa-da” (Kant), talvez. No mínimo, sair desta peça já vista à exaustão. Deslocar, minima-mente, estes papéis de pai e filho, acusador e réu, daquele que sabe e daquele que seengana, esses papéis que só conseguimos repetir e graças aos quais não conseguimosnem aprender nem apreender algo novo. Tento pensar nesta passagem do Século XIXpara o XX. Imagino Marx, Nietzsche e Freud, os três mestres da suspeita, depoisSimmel, Weber, Lukács, Heidegger, Adorno, Benjamin, Proust também e Kafka, ima-gino todos eles chegando juntos à porta do Paraíso, imagino suas apostas recíprocassobre as chaves de São Pedro e sobre aquilo que haverá – ou não – atrás da porta daMorte. Chegaram juntos porque, em vida, a aposta deles foi a mesma. Com uma pala-vra: desencantamento (Entzauberung), não há mais magia, superstição, bruxaria, fei-tiço, não há mais ilusão que resista à nossa lucidez racional e nos console da dor deexistir e da finitude. Com duas palavras: desencantamento, sim, mas sentido também,isto é, devemos aprender a viver com esta luz fria e ardente sem ceder às armadilhasdo niilismo, do relativismo, ou do conformismo embrutecido. Se há uma grandeza nafrágil criatura “homem”, ela se encontra, pois, nesta junção de lucidez e de criatividadesempre renovada.

Há várias maneiras de dar um nome ou de descrever esse momento precioso deadvento da nossa contemporaneidade. Um historiador como Pierre Nora afirma queesta quebra do quadro ideológico tradicional se deve ao fim da preponderância daagricultura na economia global de um país; com a desagregação do meio camponês ea migração de partes cada vez mais importantes da população para as grandes cidades,desaparecem os valores e a memória tradicionais – isto é, tão naturais e enraizados quenem precisam ser lembrados. Lukács fazia remontar essa “perda transcendental dapátria” já ao fim da epopéia grega, mas ressaltava seu aprofundamento radical a partir

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da era burguesa. Lyotard fala do “fim das grandes narrativas” que organizavam a vidaem comum e lhe davam um sentido por todos reconhecido. Quanto a Nietzsche, játinha observado há tempo que, se Deus estava morto, nós homens ainda íamos demo-rar bastante em nosso trabalho de luto; marcado pela melancolia, o homem contempo-râneo deveria superar a si mesmo para não cair num niilismo abissal e ainda encontraras forças necessárias para uma aceitação plena da vida, isto é, também da dor e damorte.

Morte de Deus, fim das grandes narrativas, perda transcendental da pátria, fimdas raízes camponesas, todas essas descrições ajudam a entender melhor o surgimentoda psicanálise, sua inserção num contexto geral de questionamento e, simultaneamen-te, sua singularidade. Se Freud é, certamente, um dos mestres da suspeita, ele não estásozinho nesta empresa. Penso em particular que o nascimento dessa estranha forma denarração de si inaugurada pela psicanálise é inseparável das transformações profundasdos regimes de discurso e de narração na vida atual. Como disse Walter Benjamin, ahistória compartilhada por todos se esburaca, a experiência comum (Erfahrung) nãoexiste mais, não há mais uma narração, isto é, um conjunto de narrativas e uma práticanarrativa que possam dar sentido a nossas existências desorientadas. Inicia-se, então,esta estranha fala de si mesmo, hesitante, lacunar, única e singular em sua subjetivida-de solitária, mesmo que, muitas vezes, tão pouco “original”.

Durante um colóquio sobre “Memória e Desaparecimento”, belo e dolorosocolóquio sobre os desaparecidos no Chile, na Argentina, no Brasil, e sobre nossastentativas de rememoração, Joël Birmann fazia observar que a figura do Narradorausente, tão fundamental para Benjamin, tinha seu correspondente freudiano na figurado Pai. Se entendi bem seu instigante raciocínio, Birmann afirmava que a psicanáliseenquanto saber só se podia constituir quando a figura patriarcal tradicional começou adesmoronar. Enquanto o patriarca reina incontestado, nem mesmo sua tematização épossível, não se pode discutir sua função, autoridade, importância. Freud procurariaentender a constituição da economia psíquica a partir de uma situação nova (talvezmais nova em sua amplitude histórica que em sua expressão como conflito imemorial):o declínio do reino paterno incontestado, porque natural, que servia de eixo central atéaí para a organização da multiplicidade do desejo. Nesse contexto, me arrisco a espe-cular ou a delirar um pouco mais e lembro que a noção de lei, tão presente na psicaná-lise contemporânea, remete, por definição, ao arbítrio e à convenção (nomos em gre-go) da autoridade paterna, em oposição à necessidade natural da physis. De maneiraanáloga, Benjamin tentaria refletir se pode constituir-se um outro tipo de história, istoé, também de narração, quando não existe mais a antiga figura do narrador que reco-lhia e integrava, em sua fala, todo o campo da experiência humana.

Não podemos mais, depois de Nietzsche, “acreditar” na Verdade e em Deuscomo antes; depois de Marx, na organização casual do trabalho humano e na reparti-ção natural das riquezas; e depois de Freud? Cai o último bastião: o homem não é mais

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nem senhor em sua própria casa, não se pode mais confiar no controle racional de umsujeito racional sobre si mesmo; em particular, a certeza da primazia da consciênciamostra-se uma forma peculiar de hybris. As feridas narcísicas da teoria freudianaabalam, sem dúvida, o edifício do racionalismo moderno desde Descartes e nos obri-gam a pensar um sujeito bem diferente daquele que se apreendia a si mesmo, de ma-neira imediata e segura, no cogito. Uma boa parte da filosofia contemporânea poderiachamar-se, segundo a bela expressão de Ricoeur, uma filosofia do cogito ferido. Gos-taria então, por fim, de evocar rapidamente dois motivos – entre vários outros possí-veis – que me parecem já presentes, mas não explicitados, latentes por assim dizer, nafilosofia moderna e que cabe a Freud ter nomeado. Ressurgem estes motivos, inscri-tos no coração da reflexão filosófica contemporânea. Ambos remetem a este destro-namento da consciência que também significa o fim do ideal iluminista de uma lin-guagem transparente, cuja clareza nos livraria o sentido oculto da realidade.

O primeiro motivo consiste não só em questionar, como em Nietzsche, a nossavontade de verdade (em vez de partir de um desejo desinteressado de conhecimentoque seria genuinamente humano), mas também de afirmar que somos obrigados sim,forçados a empreender a “aventura do conhecimento” por um desamparo primordial –cujo avesso talvez seja a vontade de poder nietzscheana. Desamparo sem palavras,muito anterior à sua articulação consciente, que nos acompanha desde o nascimento(já antes, talvez?), que submerge o recém-nascido e a criança, e que sempre volta,apesar da linguagem, das explicações, do cálculo, apesar dos deveres de escola, defamília, de casamento, de profissão, de partido. Volta nas situações de extrema soli-dão, mas também nas tardes tediosas de domingo, volta nas graves doenças, mas tam-bém no simples cansaço, quando, de repente, não sabemos mais se já é dia, ou comose desce uma escada. Ora, filósofos tão diferentes como Heidegger ou Adorno nãocolocaram uma experiência semelhante no centro de suas reflexões? Heidegger, quandofaz da aceitação – do não-recalque – da Angst (“angústia”) o cerne de uma existênciaautêntica; Adorno quando afirma que, desde sempre, a razão – o esclarecimento –teve por objetivo liberar o homem do medo (não conseguiu, mas isso é uma outrahistória).

O segundo motivo, inseparável do primeiro, consiste em inscrever esse desajusteinicial na raiz do próprio logos. Claro, já sabíamos antes de Freud que as criançasaprendem a falar muito tarde e, mais tarde ainda, a usar da razão. Mas foi Freud querealçou o papel primordial deste período sem linguagem e sem razão, sem logos.Descartes já se queixava, no início do Discurso do Método, desta fase tão longa dainfância, propícia ao erro e à errância, sem a luz da razão. E talvez o desejo maior doracionalismo seja conseguir a façanha de Atena, padroeira dos filósofos: nascer dacabeça de Zeus (da cabeça masculina, portanto!), já adulta e armada para as lutas daguerra e da razão. Prescindir, então, do corpo da mãe e, simultaneamente, prescindirda in-fância, deste antes da linguagem e da razão, este tempo especificamente humano

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sem o qual os primeiros balbucios da fala e da razão não se formam, sem o qual não hálogos. Este motivo da infância percorre, de diversas maneiras, o pensamento contem-porâneo (Benjamin, Lyotard, Agamben) e solapa as pretensões de totalização do DeusLogos.

Não bastaria, então, nas pegadas do Iluminismo, desfazer-nos de nossas su-perstições, religiões, projeções e ilusões de toda ordem. Com o centenário Freud e,quem sabe, também com a filosofia, ainda temos uma tarefa: tentar fazer as pazes coma precariedade de nossa existência, dividida pelo sexo e marcada pela morte; isto étambém: tentar reconciliar-nos com nossa infância.

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TEXTOSA INTERPRETAÇÃO,ENTRE A LINGÜÍSTICAE A PSICANÁLISE

Francisco Settineri*

RESUMOO objetivo deste artigo é situar a discussão sobre a interpretação do discursoe envolve a abordagem realizada pela terceira fase da Análise do Discurso,que busca construir procedimentos lingüísticos para tratar da materialidadeda cadeia falada, entendendo o equívoco como fato estrutural implicado naordem simbólica, no sentido de Lacan. Essas formulações são comparadascom os procedimentos propriamente psicanalíticos de intervenção sobre essamesma materialidade, e se procura sugerir uma distinção entre o próprio decada disciplina, sem encerrar o diálogo entre ambas nem submeter uma aoprimado da outra.PALAVRAS-CHAVES: interpretação; análise do discurso; psicanálise;significante; polifonia

ABSTRACTThis article aims to place the discussion about discourse interpretation andinvolves the approach of the third fase of Discourse Analisis. This third fasesearches the construction of linguistic procedures to approach the materialityof the speech chain,conceiving the mistake as a structural fact implicated inthe simbolic order, in Lacan’s sense. This formulations are compared to thespecific psychoanalytical procedures of intervention about this same materiality,and suggest a distinction between what is characteristic of each area, notending the dialogue of both areas, not even submitting one to the other’sprimacy.KEYWORDS: interpretation; discourse analysis; psychoanalysis; significant;polyphony

* Psicanalista, Membro da APPOA, Mestre em Psicologia do Desenvolvimento e Doutorandoem Letras.

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1 INTRODUÇÃO

Freud e Saussure não se conheceram, e nenhum deles, ao que tudo indica, tomouconhecimento do trabalho do outro (Arrivé, 1994). Entretanto é cada vez maior o

interesse de suas disciplinas, respectivamente a psicanálise e a lingüística, pelas rela-ções entre inconsciente e linguagem. Porém na história de cada uma dessas discipli-nas, ambas inauguradas neste século, é desigual e irregular a incursão de seus especi-alistas no que concerne a trilhar o terreno oposto.

É inegável a influência da leitura de Saussure sobre a teorização de Lacan,assim como hoje se fala em um atravessamento da Análise do Discurso e das aborda-gens lingüísticas da enunciação pela psicanálise, mais exatamente, pela leitura realiza-da por Lacan da obra freudiana. Entretanto é relativamente pouco – ou pelo menosinsuficiente, dada a importância dessa interlocução – o que se tem escrito e elaboradosobre as relações entre essas disciplinas, de modo a favorecer uma idéia clara e maisacessível das possibilidades de trabalho e interlocução, em um diálogo entre elas.

O objetivo do presente artigo é situar algumas das questões centrais de minhasatuais pesquisas, concernentes às relações entre lingüística e psicanálise, procurandoancorar a discussão em duas tradições.

Por um lado, a da análise do discurso, representada por Pêcheux (1990) em “Odiscurso: estrutura ou acontecimento”. Por outro, relacionando os conceitos deequivocidade (na vertente psicanalítica) e o de “heterogeneidade constitutiva” (caro aJ. Authier, que pertenceu ao grupo de Pêcheux), mostrar as possibilidades que se apre-sentam, no momento em que “o próprio da língua” e “o próprio da psicanálise” sãodiscernidos, como pontos de vista – movimento que amplia os questionamentos emcada uma das disciplinas, sem a tentação de instituir uma delas como “ciência régia”nem de promover uma espécie de redução de uma ao primado da outra, mas fazendo-as funcionar mutuamente como exterioridades, ainda que procurando considerá-lasem um quadro epistemologicamente consistente.

2 ESTRUTURA E ACONTECIMENTO, DESCRIÇÃO E INTERPRETAÇÃOO livro “O discurso: estrutura ou acontecimento”, de Michel Pêcheux, surge

para alguns como uma espécie de legado do fundador da análise do discurso. Paraoutros, parece constituir-se em um incômodo a ser deixado de lado, tal a virada teóricaque promove em relação às etapas anteriores da AD.

Nessa obra, Pêcheux busca caracterizar o que seria sua posição de trabalho,posição que buscaria abster-se do recurso de simplesmente mencionar campos do real,como “a história, a língua, o inconsciente” (op. cit., p. 18), ou do argumento de auto-ridade. Procura inscrever-se na tradição da análise do discurso, valendo-se para tantodos procedimentos técnicos que lhe são próprios. Situa seu campo de trabalho noentrecruzamento de três caminhos, o do acontecimento, o da estrutura e o da tensãoentre descrição e interpretação.

A INTERPRETAÇÃO, ENTRE A LINGÜÍSTICA...

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TEXTOS

Pêcheux inicia por uma cerrada discussão epistemológica, que concerne emgrande parte à época, e na qual não nos deteremos, mas em que não deixa de introdu-zir, de forma irônica, a questão das adequações entre as abordagens de diferentes dis-ciplinas, quando se pretende fazer aproximações entre elas. Assim, o velho marxistada história contada no início da obra está munido apenas de uma rosca, e havia porcasde toda espécie candidatando-se a uma acoplagem: “porcas fenomenológicas, estrutu-ralistas, hermenêuticas, existenciais, discursivas, lingüísticas, psicanalíticas,epistemológicas, desconstrutivistas, feministas, pós-modernas, etc...” (op. cit., p. 16)1 .

Mais adiante, Pêcheux define o rumo de suas investigações, propondo-se abuscar “maneiras de trabalhar sobre as materialidades discursivas, implicadas em ritu-ais ideológicos, em enunciados políticos, nas formas culturais e estéticas, através desuas relações com o quotidiano, com o ordinário do sentido” (op. cit., p. 49).

Se o autor havia afirmado anteriormente que a revolução estruturalista tinhaatestado o reconhecimento da castração simbólica como “fato estrutural próprio à or-dem humana” (p. 46), nesta proposição, ele aprofunda esse reconhecimento, à medidaque a abordagem considerada é necessariamente parcial, distanciada, pois, de qual-quer veleidade de se constituir como uma ciência régia, tal como se havia tentadofazer, primeiramente com a escolástica aristotélica e, mais modernamente, com a ciên-cia positivista e com a ontologia marxista, consideradas como as “epistemes maioresde nosso tempo” (op. cit., p. 36).

Para fazer cumprir essa proposta, impõem-se para ele algumas exigências. Aprimeira seria a da pesquisa lingüística se descolar da obsessão da lógica excludentedo “ou... ou”, admitindo o real da língua como condição da existência do simbólico,referido no sentido de Jakobson e Lacan. “... Abordar o próprio da língua através dopapel do equívoco, da elipse, da falta, etc...”, cujo ‘núcleo duro lógico’ seria, aindasegundo o autor, constituído pela equivocidade, ou a heterogeneidade constitutiva, deJ. Authier (pp. 50-51), é a tarefa a que nos dedicaremos na próxima seção.

Aproximando-se cada vez mais da psicanálise, Pêcheux afirma que a pesquisalingüística se obriga a construir “procedimentos capazes de abordar explicitamente ofato lingüístico do equívoco como fato estrutural implicado pela ordem do simbólico”(idem). Para tanto, configuram-se dois espaços para o objeto da lingüística, o da mani-pulação das significações estabilizadas e o das transformações do sentido, o trabalhodo sentido.

1 Quanto às minhas atuais preocupações, envolvendo lingüística e psicanálise, elas procuramresumir-se ao diálogo de duas tradições; a saussuriana, na qual se inscrevem, entre outros,Pêcheux e J. Authier, e a psicanalítica, representada pela psicanálise lacaniana. Nada tenho aopinar sobre outras roscas e outras porcas, no momento.

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A partir disso, evidencia-se para ele a questão da interpretação, compondo umquadro em que o equívoco da língua situa-se na posição central: “toda descrição (...)está intrinsecamente exposta ao equívoco da língua: todo enunciado é intrinsecamentesuscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo. (...) Todo enunciado (...) élingüisticamente descritível como uma série (...) de pontos de deriva possíveis, ofere-cendo lugar à interpretação” (op. cit., p. 53).

Para Pêcheux, a questão das disciplinas da interpretação é a da existência dooutro social-histórico, que corresponderia ao outro próprio da discursividade; aheterogeneidade é condição da possibilidade de interpretar: “a descrição de um enun-ciado ou seqüência de enunciados coloca necessariamente em jogo (...) o discursooutro como espaço virtual de leitura desse enunciado ou dessa seqüência” (p. 54-5).Essa presença virtual, dentro da materialidade que se pode descrever, marca a insis-tência sócio-histórica do outro.

Neste ponto, tanto a análise do discurso como a psicanálise expressam seudistanciamento em relação à hermenêutica. Interpretar não consistiria em fixar signifi-cados, mas oferecer a possibilidade de outras leituras, permitir que se possa enveredarpor elas, sem no entanto privilegiar uma delas em particular.

Examinemos, porém, a concepção que Jacqueline Authier-Revuz faz da(s)heterogeneidade(s) no discurso, concepção que, entendemos, prossegue as preocupa-ções pêcheutianas, em seu canto de cisne.

3 A HETEROGENEIDADE CONSTITUTIVA:UMA ABERTURA AO CAMPO DO OUTRO

Em 1982, Jacqueline Authier-Revuz expõe de maneira extensa sua concepçãosobre a heterogeneidade mostrada e a heterogeneidade que chama de constitutiva, emum artigo que corresponde a exposições realizadas entre 1980 e 1982, no seminário daDRLAV2 .

Nele, Authier concebe os diferentes tipos de heterogeneidade mostrada comosendo as diversas formas de “negociação” do sujeito falante com a heterogeneidadeconstitutiva.

Com isso, abre em leque a descrição de diversas formas marcadas, na língua,da heterogeneidade, sobretudo as da modalidade autonímica, não deixando de se ins-crever na proposta de Pêcheux, em “Estrutura e Acontecimento”, à medida que:

1) Ao estudar sistematicamente a modalidade autonímica, busca a regularidadeestrutural das montagens discursivas, em uma descrição que aponta necessari-amente para a possibilidade da interpretação, e

2 DRLAV – Revista Francesa de Lingüística.

A INTERPRETAÇÃO, ENTRE A LINGÜÍSTICA...

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TEXTOS

2) Se não passa diretamente a abordar o próprio da língua por meio do papel doequívoco, mesmo assim Authier refere a heterogeneidade mostrada àconstitutiva, situando esta última, ou seja, a equivocidade, com sua dimensãode alteridade, na base do fenômeno lingüístico. E o faz sem desvalorizar oestudo das formas marcadas de heterogeneidade, ao mesmo tempo que nãoevita as formas não-marcadas, como se fossem impróprias à pesquisa lingüísti-ca.A autora situa primeiramente o “outro” do discurso relatado, nos casos em que

o locutor oferece lugar, de maneira explícita, ao discurso de um outro em seu discurso.Na formas marcadas de conotação autonímica, por sua vez, haveria o acúmulo

do uso e da menção. O locutor mostra-se como usuário das palavras e, além disso,como observador/comentador das palavras que utiliza, fazendo com que estas assu-mam, desse modo, um outro estatuto. Essas formas, no entanto, permaneceriam noterreno do marcado e do explícito.

A seguir, J. Authier procura demonstrar haver um continuum de formas, par-tindo daquelas que seriam mais marcadas pela presença do outro e que têm ao fundoum “ponto de fuga” no qual se veria esgotada a possibilidade de uma apreensão lin-güística, tal a diluição do outro apresentada no discurso. Não haveria marcas unívocasdessa presença, nos casos do discurso indireto livre, da ironia, da antífrase, da imita-ção, da alusão, da reminiscência e do estereótipo, formas mencionadas pela autora.

Por fim, são relacionadas as formas em que se pode constatar a presença das“palavras sob ou dentro das palavras”, domínio multiforme, no qual se reúnem dadosmateriais do signo – homonímia, paronímia, polissemia, enfim, a equivocidade –com as figuras ou tropos que permitem jogar com eles – metáfora e metonímia, equí-vocos, trocadilhos, jogos de palavras, etc.

Em suma, tem-se que, para Authier, as formas marcadas atribuem um lugar aooutro no discurso, lugar lingüisticamente descritível e claramente delimitado. Elaspodem ser consideradas em um continuum de formas intermediárias, chegando-se aoponto de uma presença do outro por toda parte e sempre, e que não dependeria de umenfoque lingüístico.

Como se disse, a autora evita ignorar as formas não-marcadas como exterioresà lingüística e, ao mesmo tempo, não quer desvalorizar a descrição propriamente lin-güística das formas marcadas – já que o outro estaria por toda parte, que diferençafaria? O que ela se propõe é “articular a realidade lingüística das formas marcadas (ousugeridas) de heterogeneidade à realidade da heterogeneidade constitutiva” (p. 99).Aqui transparece novamente a preocupação de Pêcheux, pondo em jogo claramente atensão entre descrição e interpretação.

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3.1 A ANCORAGEM DE JACQUELINE AUTHIER NA PSICANÁLISEA psicanálise, para Authier-Revuz, questiona a unicidade significante da ca-

deia falada. A leitura lacaniana de Freud situa o sujeito nos antípodas de uma concep-ção que o poderia situar como sujeito pleno, causa de uma fala que se pretenderiahomogênea. O sujeito é dividido, e sua fala, heterogênea.

São testemunhas disso os atos falhos, os lapsos, os esquecimentos, os sonhos eaté mesmo os sintomas.

O inconsciente é considerado, através de Lacan, na concepção de seu “Discur-so de Roma” (1966), como sendo o capítulo censurado da história do sujeito, mas quepoderia ser restaurado por meio de traços ou inscrições observáveis, tarefa igualmentereconstrutora3 do sentido.

O tratamento psicanalítico transgride as convenções normais da conversação, enão pode ser concebido como uma atividade de comunicação, dado o caráter assimétricodos protagonistas dessa cena enunciativa particular, em que a disparidade subjetivaassume suas reais proporções.

Para Authier, a língua é o lugar da interpretação psicanalítica, não se tratandode passar de um sentido manifesto ao latente por comentários explicativos, mas atra-vés “de um trabalho de escuta que é de corte, de pontuação, de colocação em eco e quese efetua sobre a materialidade da cadeia falada” (p. 128). Ou seja, trata-se de umasituação especificamente psicanalítica, que se dá em transferência, mas a língua emquestão é sempre a mesma, ou seja, a que os lingüístas estudam em seu funcionamen-to.

A colocação em evidência do trabalho do inconsciente, prossegue Authier, jáestaria presente em Freud, incidindo de igual maneira sobre a materialidade da língua,como nos casos dos ditos de espírito, dos lapsos, dos rébus e homonímias que surgemdurante a interpretação dos sonhos.

Por trás da cena principal, da linguagem convencional, situa-se a outra cena,denunciada pela emergência do inconsciente, considerado presença permanente. Nãose trataria de um outro discurso, mas do mesmo, tomado em seu avesso.

3 Dizemos “reconstrutora”, tendo como pressuposto ter havido uma perda de sentido para osujeito. Com efeito, se para Lacan o sintoma é o significante de um significado recalcado para osujeito, a tarefa da psicanálise, entre outras, é reconduzir de alguma forma o “significadorecalcado” ao discurso, empresa que pode ser definida como a de “construção” significante.Entretanto, não se pode considerar simplesmente um “significado” recalcado, ou seja, constitu-ído previamente e depois recalcado. Lacan era um leitor perspicaz de Saussure, adepto da teseda arbitrariedade do significante, e não poderia trabalhar com a hipótese de significados fixos. Aevolução de sua teoria, após o “Discurso de Roma”, vai nesse sentido.

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TEXTOS

O trabalho analítico vem a ser, segundo a autora, a escuta do significante, quenão corresponde, portanto, à procura de um significado escondido, mas de umsignificante escondido, para se chegar ao sentido do desejo.

Para Authier, todo discurso é polifônico, e o trabalho interpretativo de análiseseria levar a “ouvir ao mesmo tempo as diferentes vozes” (p. 74) que o compõem,mesmo que habitualmente dissonantes. E a polifonia do discurso se inscreveria namaterialidade e na linearidade da cadeia falada. Assim considerada, a língua é situadapor Lacan como condição do inconsciente.

O discurso, desse modo, é visto como atravessado pelo discurso do Outro e poroutros discursos e, nele, a alteridade é entendida como condição constitutiva, tratan-do-se de um sujeito falante que não é fonte primeira de seu dizer, apesar da ilusão desê-lo ser-lhe necessária.

Nas formas da heterogeneidade mostrada, de acordo com a autora, o outro édesignado como objeto do discurso. Há um posicionamento de tomada de distância dosujeito em relação à parte de seu discurso em que se delimita uma alteridade. Aexplicitação dessa distância, em um afastamento da divisão constitutiva do sujeito e daheterogeneidade constitutiva, configura a representação fantasmática que, segundo J.Authier, o locutor faz de sua enunciação.

Essa representação assume a forma de uma denegação da heterogeneidadeconstitutiva, passando uma idéia de Um na qual imperaria o não-Um e configurandoassim uma divisão subjetiva.

Ao circunscrever o outro4 , nos pontos de heterogeneidade do discurso, o locu-tor instituiria o resto do discurso como adequado e transparente, mostrando o ponto deheterogeneidade como contingente e evitável, e dando a impressão de homogeneidadeà generalidade do discurso. Ao fazê-lo, coloca-se na posição de supostamente deterum domínio sobre seu próprio discurso.

4 A PALAVRA OUTRA EM PSICANÁLISEEm 1991, J. Authier reformula a oposição entre heterogeneidade mostrada e

heterogeneidade constitutiva, em termos de heterogeneidade constitutiva eheterogeneidade manifesta, situando:

a) o heterogêneo constitutivo da enunciação, presente de modo permanente,“mas não diretamente observável”;

4 As maneiras pelas quais Authier descreve essa circunscrição do outro no próprio discurso dosujeito falante podem fornecer elementos importantes de observação psicológica, pois evidenci-ariam algo de sua posição em relação aos outros e de si mesmo nessa relação.

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b) o heterogêneo manifesto,b.1) o que emerge de forma bruta, simplesmente manifesto, eb.2) a heterogeneidade mostrada, que surge sob a forma de sua representa-ção pelo próprio sujeito falante.

Acrescentaríamos à classificação de Authier uma outra modalidade,b.3) heterogêneo a posteriori, em casos como o da palavra “exposição”, nolapso “decorada/decotada”5 , quando a referida palavra, até então transpa-rente, se vê ressignificada em função do lapso cometido, que correspondeao heterogêneo manifesto do tipo b1. Trata-se de um heterogêneo que sópode ser inferido a posteriori, por meio de um ato de interpretação. Eis aquiuma das maneiras em que pode ser pensada uma heterogeneidade “genera-lizada”, nos pontos em que, a princípio, não poderia ser caracterizada umaforma marcada de heterogeneidade, mas nos quais, posteriormente, por meiode um ato de interpretação, seria evidenciada uma posição equívoca.

Começaremos, desse modo, nossa discussão sobre “o próprio” da psicanáliseabordando a questão da interpretação. Se, como dissemos, para Pêcheux, “todo enun-ciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo” e seria“lingüisticamente descritível como uma série (...) de pontos de deriva possíveis, ofere-cendo lugar à interpretação” (p. 53); é desses enunciados, presentes na língua, que éfeita a fala do analisante – e a do analista – em uma sessão analítica. E é nas sessõesanalíticas que a psicanálise, sobretudo, desenvolveu-se.

De acordo com Pommier (1999), não é possível ao analista elaborar conscien-temente, no momento da escuta, um monólogo teórico que lhe permita dar conta da-quilo que está operando, antes de intervir. Que há um “discurso outro, como espaço deleitura do enunciado” já seria um dado a priori para o psicanalista, que intervém sempoder fazer-se uma descrição prévia daquilo que está pondo em prática.

A explicação teórica se daria por um ato a posteriori, de modo que, nesse caso,a descrição viria depois da interpretação, definida por Chemama (1998) como sendo aintervenção do psicanalista que busca provocar o surgimento de um sentido novo, oude vários, além do manifesto, apresentado por um paciente em um sonho, um atofalho, um lapso e até mesmo em uma parte qualquer de seu discurso.

5 Retomo um exemplo trazido por Freud, em “Psicopatologia da vida quotidiana”:Um cavalhei-ro e uma dama, presentes em uma exposição, conversavam sobre a mesma. A dama apresentavaum generoso decote, que chamava a atenção. A uma certa altura da conversa, ele afirma: “Aexposição está magnificamente decotada!” O lapso decotada/decorada, além de dar conta dodesejo irrompendo na linguagem, aponta para um outro sentido da palavra “exposição”, tornadaheterogênea - polissêmica - por meio da leitura de Freud. Neste caso, pode-se afirmar que ainterpretação opacifica, da mesma forma que o fazem as formas autonímicas.

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TEXTOS

O psicanalista não iria com as armas da teoria para uma análise do dito, masse oferece, desarmado, para uma escuta. Há um decifrar em ato, de elementos de falaque ficaram em suspenso durante a escuta psicanalítica, decifrar que não poderia dar-se com um entendimento prévio, pois, quando surge, é em um movimento de precipi-tação, de corte, de pontuação, no qual as unidades significantes são recortadas, e porisso, definidas.

Freud parte da idéia de que manifestações diversas como os sonhos – conside-rados em seus relatos -, os lapsos, os atos falhos, os chistes e até mesmo os sintomaspodem ser interpretados, e que assim receberiam um sentido diferente do manifesto,situando-se a interpretação na base da obra freudiana, forjada, de acordo com Chemama(1998), principalmente pela prática da interpretação dos sonhos, em que desempenha-vam um papel fundamental as associações do paciente. A partir do sonho, a interpre-tação passa a ser utilizada para as outras ditas formações do inconsciente – lapsos,chistes, atos falhos – chegando a ser estendida a qualquer enunciado ou parte deste,desde que o contexto permita entendê-lo de outra maneira.

O avanço da teoria freudiana recomendou prudência aos psicanalistas, dadoque as linhas interpretativas poderiam ser as mais variadas, agindo de formasobredeterminada e face à inviabilidade de privilegiar um, e só um sentido, entre asleituras interpretativas possíveis que continuamente se apresentam. Se na interpreta-ção dos sonhos era dado um lugar importante às associações do analisante, agora atarefa de fazer as leituras também lhe é deixada: o ato interpretativo limita-se a abrir aspossibilidades de leitura, configurando-se o modelo espontâneo de interpretação, quesuporia associar um significado a cada formação do inconsciente ou sintoma, maiscomo um obstáculo ao prosseguimento do discurso, ou seja, à continuidade da análise.

Partindo da equivocidade da linguagem humana, a psicanálise vai estar atentaàs diferentes alternativas de corte na cadeia falada, nas ambigüidades e erros gramati-cais apresentados, nos fatos de homonímia, paronímia e polissemia, que permitem aosignificante veicular as significações mais contraditórias. Desse modo, a interpretaçãovisa não uma tradução compreensiva, mas a não- restrição dos efeitos de sentido dosignificante, introduzindo o sujeito em significações novas. Para obter esse efeito, opsicanalista vale-se da citação, retomando de preferência os próprios termos doanalisante, e de intervenções na forma de enigma, através das quais busca não deixarsupor que faz uma leitura unívoca da fala do analisante e evita aliená-lo a uma com-preensão que seria a do outro. É assim que o psicanalista procura fazer com que oanalisante ouça a polifonia, naquilo que ele mesmo enunciou.

Até aqui, há uma grande consistência entre a interpretação como levando aouvir as diferentes vozes (Authier, op. cit.), e manter abertos os efeitos de sentido dosignificante (Chemama, op. cit.); intervindo, como quer Pêcheux, nos “pontos de deri-va possíveis”. A pontuação, a escansão e o sublinhamento, em psicanálise, limitam-sea apontar para uma heterogeneidade, na sessão analítica, deixando para o analisante a

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tarefa de examiná-la e de enveredar pelo eixo das suas associações, ao mesmo tempoque o analista se abstém de aliená-lo em suas próprias leituras.

Há um ato de interpretação, porém, que escaparia em alguma medida a esseparalelo com a concepção de interpretação em análise do discurso, que é propriamentechamado de “interpretação”, e que, segundo Lacan, deve ser enigma e citação.

4.1 A INTERPRETAÇÃO PSICANALÍTICAPommier (1990) enfatiza a insuficiência da leitura literal, proporcionada pela

pontuação e pela escansão, para impedir a possibilidade de uma nova fixação do sinto-ma. Disso decorre a necessidade de uma outra operação, a saber, a interpretação.

Em que consiste a interpretação, em psicanálise? Na concepção tradicional dainterpretação, haveria um fato de linguagem a interpretar, o significante, ao qual setrata de dar sentido, associando a ele uma significação. Poder-se-ia supor que o levan-tamento do recalque consiste em associar, àquilo que se apresenta inicialmente comoincompreensível, a significação que o esclarece (Chemama, 1994).

Há muitos argumentos neste sentido, e sabe-se do alívio que se pode produzirquando o analisante tem a impressão de compreender um sintoma que até então oatormentava e lhe parecia absurdo. Essa é a concepção comum da tarefa analítica.

De acordo com Chemama (1994), essa concepção seria discutível, entretanto,do ponto de vista ético. O “progresso das luzes”, de que fala Lacan (1966), não estarialigado a uma revelação da significação, mas a um trabalho de articulação das própriascadeias significantes.

O modelo trivial de interpretação – o da interpretação compreensiva – não levamuito longe, diante das formações do inconsciente ou dos sintomas, constituindo an-tes um obstáculo ao prosseguimento do discurso. Lacan recomendava desconfiar des-se tipo de interpretação, que acaba por reduzir, por homologar o mesmo ao mesmo –as significações não são numerosas no campo psicanalítico, e os milhares de símboloscompreendidos no campo da psicanálise acabam por se reportar a um conjunto muitolimitado: “o corpo, as relações de parentesco, o nascimento, a vida e a morte” (Lacan,op. cit.)

Para Lacan, a interpretação inverte a relação que faz com que o significantetenha por efeito, na linguagem, o significado e, afirma, é preciso interpretar no níveldo significado, para fazer surgir significantes (Lacan, 1979).

Chemama (1994) traz o exemplo de um analisante que, durante o tratamento,cogitava iniciar uma nova atividade profissional. Isto representava um avanço em suaanálise, pois estaria abandonando seus esquemas anteriores, que eram repetitivos. Aspessoas que o rodeiam nesse novo meio, ao mesmo tempo o assustam e o fascinam.Ele está engajado, mas um tanto temeroso com o novo projeto.

Um dia, ele conta a seu analista um sonho, no qual se encontra com X., umpersonagem importante na nova atividade. Está conversando com X., quando este lhe

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morde com violência a garganta. O analisante dá, como interpretação desse sonho, aidéia de que talvez ele tenha mais medo de X. do que gostaria de acreditar. O analistanada comenta a respeito desse significado único que o analisante lhe proporciona, e asessão prossegue, passando por associações sobre outros assuntos. Até o momento emque, inclusive reevocando X., ele começa a falar, de modo entusiasmado, do quantoestava engajado nas novas atividades e de que não queria recuar diante das tarefas comque estava envolvido. Ao que o analista intervém, no momento propício: “Você estámordido” (em francês, mordu – mordido – possui o sentido figurado de entusiasma-do, apaixonado). O que provocou o riso do analisante.

A interpretação não consistiu em fixar para o sonho um sentido, mas reintroduziuo equilíbrio, pelo duplo sentido. A interpretação deve comportar, sempre, mais de umsentido, trazendo consigo, desse modo, uma parte de enigma. Ao mesmo tempo, cons-titui uma citação, ao remeter o “mordido” da expressão entusiasmada do analisante ao“mordido” da cena do sonho referida anteriormente. O desejo surge em toda a suaambivalência: o que se teme e o que se quer estão enlaçados em um mesmo significante.Não há aqui a fixação de um significado único, como gostaria de fazer a interpretaçãoclássica, mas a restauração, a regeneração da linguagem em sua mais pura polissemiae equivocidade, em meio às relações tensas, ambivalentes e polifônicas da significa-ção.

Chemama (op. cit.) reúne algumas características, procurando incluir, de acor-do com Lacan, a interpretação no conjunto de formas lingüísticas que se estende doprovérbio à locução:

1) A expressão deve formar um todo, que em geral não pode caber em umconjunto maior. O analista não poderia dizer, por exemplo, “você está mordidopor X.”. Se o fizesse, a interpretação não teria o mesmo efeito.2) Esta expressão não pode ser substituída por nenhuma outra equivalente. Se-ria impossível, no caso, qualquer substituição para “mordido”, tal como “corta-do com os dentes”. A interpretação se vale de expressões estereotipadas.3) E, sendo expressão estereotipada, assim como as demais formas lingüísticasapontadas por Lacan, é intransformável. O efeito interpretativo ocorre quandoda intervenção do analista – uma expressão banal é colocada contextualmentecomo novidade, como coisa inesperada.Temos, pois, que “você está mordido” é, ao mesmo tempo, do ponto de vista do

sentido, equívoco, polissêmico e, do ponto de vista da forma, insubstituível,intransformável e não-integrável a estruturas mais amplas.

Esse exemplo parece corresponder àquilo que Lacan indica, quando diz que ainterpretação vai em sentido inverso ao da relação habitual entre significante e signifi-cado. Neste caso, de fato, no nível das significações, o sujeito sabe que sente medo, atémesmo angústia, mas, ao mesmo tempo, está “mordido”, exaltado. A interpretação

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não acrescenta a isso nenhuma significação, pelo contrário, reúne-as. Remete, porém,das significações a um significante, se concordarmos com a assertiva lacaniana de quea locução, a expressão estereotipada, sejam exemplares do significante.

E, nesse caso particular relatado por Chemama, o analista vale-se de uma cita-ção – a do mordido inicial – para passar um efeito de sentido que na retórica clássica échamado de silepse6 .

CONCLUSÃO PROVISÓRIASe, tanto na tradição da análise do discurso como na da psicanálise lacaniana, a

interpretação possui uma dimensão de apontar para o heterogêneo, para a polifoniaque subjaz aos discursos, na psicanálise, a tarefa interpretativa possui a dimensão doato. Ato psicanalítico, no vocabulário lacaniano, que se dá em uma cena enunciativaparticular: a da transferência.

Com isso, e talvez pelas particularidades do trabalho psicanalítico, configura-se uma maneira particular de intervir, própria à psicanálise, próxima da solução de umrébus ou de uma charada, mas que, no entanto, só pode ser compreendida naposterioridade de uma descrição ou de uma teorização sobre aquilo que, com a fala,foi feito. Esse caminho, que de acordo com Lacan vai do significado ao significante ese constitui como enigma e citação, tem a virtude de reconduzir à cadeia significanteaquilo que se representava antes como sintoma, na vida do sujeito.

Não são muitos os exemplos similares ao referido por Chemama – do paciente“mordido” – na literatura psicanalítica, assim como apenas alguns autores, entre elesPommier (1990) e Chemama (1994, 1998), dispuseram-se, em alguns momentos desua elaboração, a descrevê-los, não obstante sua importância para a compreensão daação do analista.

Entretanto consideramos importante tentar empreender a descrição lingüísticadaquilo que o psicanalista faz com suas palavras. A pontuação e a escansão, delimitan-do um novo recorte possível na cadeia falada, colaboram necessariamente na produ-ção de sentido, acrescendo possibilidades de leitura imprevistas na fala do analisante.Na interpretação, o analista associa a um trecho do enunciado do analisante um termodo próprio discurso anterior deste último. Pela possibilidade de um estudo pormenori-zado daquilo que o analista faz – mesmo que na hora ele não saiba exatamente por queo faz –, a pesquisa lingüística pode auxiliar muito na compreensão da própria teoriapsicanalítica, ajudando a elucidar os mecanismos de sua prática.

6 Mais exatamente, foi feita uma alusão, quando da intervenção psicanalítica. Alusão esta que,no contexto, criou um efeito de silepse, pelo uso de significantes homófonos com significadosdiferentes, dentro de uma contigüidade.

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TEXTOS

Por sua vez, a psicanálise, com a hipótese do inconsciente e do recalque per-passando a totalidade da cadeia falada, ao considerar as possibilidades de abertura anovos sentidos por meio de um ato que se constitui como corte na cadeia da fala doanalisante e ciente de que esses novos sentidos possíveis dependem da particularidadedo corte que é feito – e do produto desse corte –, pode ser de grande valia para umesforço muito atual da lingüística moderna: fazer avançar a semântica.

BIBLIOGRAFIAARRIVÉ, M. Langage et psychanalyse, linguistique et inconscient. Paris : PUF, 1994.AUTHIER-REVUZ, J. Hétérogénéité montrée et hétérogénéité constitutive: éléments pour une

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(org.), Le sens et ses hétérogénéités. Paris : Éditions du Centre national de la recherchescientifique, 1991.

CHEMAMA, R. Éléments lacaniens pour une psychanalyse au quotidien. Paris : Éditions del’Association freudienne internationale, 1994.

CHEMAMA, R.; VANDERMERSCH, B. Dictionnaire de la psychanalyse. Paris : Larousse,1998.

FREUD, S. Psicopatología de la vida cotidiana (1901b). In: _____. Obras Completas. Traduçãode José L. Etcheverry. Buenos Aires : Amorrortu, 1989.

LACAN, J. Escritos (1966). Tradução de Tomás Segovia. 17. ed. Madri : Siglo Veintiuno,1994.

_____. O Seminário, Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro :J. Zahar, 1979.

PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução de Eni Orlandi. São Paulo :Pontes, 1990.

POMMIER, G. O desenlace de uma análise. Rio de Janeiro : J. Zahar, 1990._____. L’amour a l’envers. Essai sur le transfert en psychanalyse. Paris : PUF, 1999.

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TEXTOSERA COMO NUM SONHO...ERA COMO NUM FILME...

Liliane Seide Froemming*

RESUMOTanto na fala de um paciente em análise quanto na produção de um filme,uma cadeia associativa se produz. A montagem no cinema e a associação-livre na psicanálise é o tema do presente estudo.PALAVRAS-CHAVES: associação-livre; cadeias associativas; montagem; ci-nema; psicanálise

ABSTRACTAn associative chain is produced both in the speech of a patient in analysisand in a film production. The montage in cinema and the free association inpsychoanalysis are the subject of this study.KEYWORDS : free association; associative chains; montage; cinema;psychoanalysis

* Psicanalista, APPOA; Professora, Instituto de Psicologia, UFRGS; Mestre, UNB; Doutoranda,UFRGS; Membro da equipe multidisciplinar “Cinema e Pesquisa”, UFRGS.

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TEXTOS

O cinema e a psicanálise compartilham uma mesma data de nascimento. Ambossurgem no final do século XIX. O cinema é tanto uma radical inovação tecnológica

quanto uma nova arte. A psicanálise nos diz da descoberta de um novo sujeito, aocolocar em cena o fato de o inconsciente governar seus atos. O clima de final de séculotestemunha ainda o surgimento de muitas outras transformações tecnológicas e histó-ricas.

Tanto o cinema como a psicanálise apontam para a importância do registroimaginário, trabalham com a questão da imagem. O olhar da mãe cumprindo umafunção ortopédica para a postura da criança bem como para a constituição de suaimago, e o olhar do espectador que condiciona e é condicionado pela produção cine-matográfica são olhares que conduzem, criticam e apontam caminhos e vias de inter-rogação e de pesquisa. Há que se pensar a constituição do sujeito moderno a partir dosurgimento do cinema e da psicanálise.

Quando Freud propunha a seus pacientes que associassem livremente, que fa-lassem tudo o que lhes viesse à mente sem censurar nenhum conteúdo, invariavelmen-te eles lhe contavam sonhos. Hoje nossos pacientes contam, além de sonhos, filmes,impressões causadas por filmes e utilizam muito a expressão “era como num filme”para nos dizer de uma senso-percepção peculiar, difícil de ser traduzida em palavras.

Uma das questões cruciais para a formação de um analista é aprender a escutara cadeia associativa de seu paciente. Em geral, dizemos que um paciente se encontraem análise, não pelo fato de estar deitado em um divã, mas porque ocorre a instalaçãoda transferência, e ele associa livremente. Associação livre e transferência são doisconceitos muito interligados no desenvolvimento da teoria e da técnica freudianas.

Paradoxalmente a chamada regra fundamental, que é a única que o pacientedeve seguir procurando falar livremente, sem regras, sem preocupações com nexos,coerência, seqüência, lógica, compreensibilidade ou razões de ordem moral não é tãolivre assim, pois é uma fala dirigida a um outro, ao analista, na suposição de sua escutae do seu saber sobre os sintomas. Provisoriamente poderíamos dizer que a transferên-cia é o “correio” no qual flui esta “correspondência”.

Um estudo comparativo entre o ofício do analista e o ofício do montador nocinema poderá revelar-se fecundo. Nossa hipótese é de que ambos operam com al-guns fundamentos e algumas ferramentas comuns de trabalho. Tanto na fala de umpaciente em análise quanto na produção de um filme, algo da ordem de uma cadeiaassociativa se produz. Que cortes podem ser identificados, seja por exemplo, quando opaciente muda de assunto ou o terapeuta faz uma intervenção, seja quando há umamudança de cena numa película ou qualquer outra operação de montagem é realizada?

A produção de um filme, em geral, implica horas de filmagem que, através decortes, construirá uma cadeia associativa. Os cortes operados de uma cena para outra

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impõem uma lógica, uma leitura possível, uma seqüência, uma possibilidade de pro-duto final, diferente do caso em que os cortes tivessem operado em outros lugares.Poderíamos tomá-lo similarmente ao efeito que produz uma “mudança de assunto”(Froemming, 1994, p.57) na fala de um analisante ou ao corte operado por uma inter-pretação que poderá sinalizar um novo curso a ser seguido pela cadeia associativa.

O close que é uma ampliação da imagem no espaço, a câmera lenta, que é aampliação da imagem no eixo do tempo e o plano-seqüência, que é o fluxo contínuode um acontecimento, sem cortes, são alguns exemplos de como a técnica procuraproduzir efeitos no espectador, ora de maior sensibilização, ora de cumplicidade, orade suspense.

Já W. Benjamin (1936/1985) chamava a atenção para a transformação da sen-sibilidade que as novas técnicas e tendências evolutivas da arte impõem. A naturezafiltrada pela câmera não é a mesma captada pelo olhar, diz ele. A reprodutibilidadetécnica da obra de arte é o fato central da análise do autor. O surgimento da fotografia,em relação à litografia, representou uma revolução que libertou a mão humana de umtrabalho que passa a ser assumido pelo olho.

O cinema nos revela o mundo em outras escalas, hipertrofiando nossa percep-ção, como não o fizeram a máquina do fotográfo, a luneta do astrônomo ou o micros-cópio do biólogo. O cinema é uma ilusão perceptiva que incide sobre nossa retina soba forma de uma persistência, qual seja, nós vemos os movimentos da imagem e não osfotogramas, o que nos dá uma idéia de continuidade.

Christian Metz (1980) procura analisar a maneira como os fenômenos incons-cientes se revelariam no fazer do cinema, deslocando conceitos do campo da psicaná-lise para este outro campo e também utilizando recursos de análise do campo da lin-güística

Gabbard (1997), da Clínica Menninger, analisa a tendência crescente da cola-boração entre cineastas e psicanalistas. Refere o reconhecimento do diretor ClaudeChabrol pela colaboração da psicanalista Caroline Eliacheff na elaboração do roteirode “La Cérémonie” (Feinstein, 1996). Também observa que, cada vez mais, as revis-tas de psicanálise reservam espaços para revisões e análises de filmes.

“O Cinema tornou-se um depósito que armazena as imagens psicológi-cas de nosso tempo. Os filmes cumprem as mesmas funções, para asplatéias contemporâneas, que a tragédia cumpriu, no século V, para osgregos. Não provocam apenas catarse, mas também unem as platéiascom sua cultura, através de suas dimensões mitológicas, da mesma for-ma que Ésquilo e Sófocles deram a visão dos cidadãos de Atenas ”(Gabbard, 1997, p.429).

VARIAÇÕES SOBRE O TEMA DA MONTAGEM NO CINEMAEstabelecer um marco zero das origens do cinema não é tarefa fácil. Provavel-

ERA COMO NUM SONHO...

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mente remonta aos jogos de sombras orientais surgidos na Indonésia, China e Birmâniano período abarcado entre 150 A.C. a 120 A.C. De acordo com o VídeoGuia Multimídia(1998), também Leonardo da Vinci está entre os precursores, quando constrói, noséculo XV, a primeira câmera escura, assim como Athanasius Kircher, com sua lanter-na mágica, no século XVII. A concepção de espetáculo cinematográfico surge com ofrancês Georges Meliès, confesso admirador e imitador da técnica descoberta pelosIrmãos Lumière em 1895. Seu filme “Viagem à Lua” (1902) é considerado comoprecursor do gênero ficção científica, assim como o filme do americano Edwin StrattonPorter, “O grande roubo do trem” (1903), o é em relação ao gênero cinematográficodo faroeste.

Na visão de um espectador moderno, os filmes da primeira década do séculoXX parecem não ter continuidade. Noël Burch (citado por Vanoye, 1994) aponta anão-homogeneidade, o não-rematamento e a não-linearidade como elementosconstitutivos da não-continuidade do que ele designa como cinema “primitivo”. Qualseja, nem sempre as legendas tinham relação estreita com as imagens, os atores oraencenavam de forma mais teatral, dirigindo-se ao público, ora num estilo mais docu-mental. Como a obra não era marcada por uma autoria, as cópias eram vendidas, e aprática comum era cortar pedaços de filmes, efetuar mudanças de seqüências, o queresultava em várias versões a partir de um original. Era uma espécie de obra “aberta”,que permitia outros remates, outras costuras. A propósito, diz Vanoye (1994):

“Os comentadores atribuem esses traços de descontinuidade narrativaao fato de que os modelos dos cineastas não eram o romance do séculoXIX ou o teatro clássico, mas antes o music-hall, o vaudeville, a históriaem quadrinhos, os espetáculos de lanterna mágica, de circo, de teatropopular” (p.25).

Vanoye (1994) considera que D.W. Griffith tem um papel fundamental na his-tória do cinema, especialmente a partir de 1915, ao estabelecer as bases para umacontinuidade narrativa, fato que irá marcar tanto os filmes produzidos em Hollywoodquanto na Europa. O dispositivo da continuidade narrativa buscava homogeneizar osignificante visual e o narrativo ao tempo do cinema mudo. Mais tarde, essahomogeneização incluiria o significante audio-visual. Havia uma busca de sincroniaentre imagens, sons e palavras. Havia um esforço deliberado de tornar linear o vínculoentre os planos, dando início a uma nova linguagem, uma espécie de sintaxe de ima-gens. Exemplo: dois planos consecutivos em que aparecem um personagem que olhae logo um objeto, deduzimos que o alvo do olhar do sujeito é o dito objeto. Estedispositivo que começa a ser criado visa fazer “o espectador esquecer o caráter funda-mentalmente descontínuo do significante fílmico constituído de imagens coladas umasàs outras” (Vanoye, 1994, p.26).

Dois eventos que ocorrem simultaneamente são mostrados alternadamente, ouum detalhe é inserido com destaque, em primeiro plano, cortando uma seqüência nar-

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rativa. Estes são alguns dos primeiros recursos usados por Griffith, visando a constru-ção de estruturas narrativas próprias da linguagem do cinema e que constituem o iní-cio da técnica da montagem.

Pudovkin (1926/1983) é outro pioneiro que parece ter intuído a estreita relaçãoestabelecida entre montagem e cadeia associativa. Não nos parece demasiado repro-duzir três trechos seus extremamente vinculados a nossa temática:

“A montagem não é apenas um método para juntar as cenas ou planosseparados, e sim um método que controla a direção psicológica do es-pectador” (p.63). “Há uma lei em psicologia que diz que, se uma emo-ção gera um determinado movimento, pela imitação deste movimentopode-se provocar uma emoção correspondente” (p.62). “Deve-se apren-der e entender que a montagem significa, de fato, a direção deliberada ecompulsória dos pensamentos e associações do espectador” (p.62).

Entretanto há críticas aos efeitos da montagem ou ao papel que muitos teóricosdo cinema e cineastas a ela atribuíram. Bazin (1951/1983) e Metz (1959/1977) expres-sam suas diferenças com os autores que, segundo eles, transformaram a montagem naessência do fazer do cineasta. Metz chega a usar expressões como “fanatismo da mon-tagem” e analisa uma época do cinema que ele chama de “montagem-rei”. Ele faz umainteressante observação relacionando “esta obsessão da decupagem e algumas tendên-cias do espírito e da civilização modernos” (Metz, 1959/1977, p. 49) com os brinque-dos de armar, brinquedos de montagem como trens elétricos, navios, que ocupam ascrianças introduzindo-as no mundo da manipulação. Esta habilidade, esta atitude ope-ratória, poderá ser útil mais tarde, quando essas crianças se tornarem engenheiros,técnicos de computação, lingüistas ou montadores de cinema. Orson Welles, à épocada filmagem de “Cidadão Kane” (1941), maravilhado com o equipamento de que dis-punha, teria dito: “Este é o mais belo brinquedo elétrico que já se ofereceu a um garo-to” (citado por Metz, 1959/1977, p.49).

A noção de montagem é fundamental na teoria e na prática do cinema. A mon-tagem é o dispositivo que estabelece as relações sintagmáticas na linguagem fílmica,quais sejam, as relações de encadeamento e os conseqüentes cortes realizados a partirda primeira cópia total filmada, o chamado “copião”.

A montagem no cinema envolve operações de seleção, agrupamento e junçãodos planos filmados. Justapor elementos homogêneos ou heterogêneos, organizar nacontigüidade ou na sucessão e fixar a duração de cenas são tarefas que o montador seimpõe. Metz (1972/1980) aponta três principais modalidades de operações de encade-amento: a colagem de planos isolados, o movimento da câmera e a presença simultâ-nea de motivos diversos num mesmo plano.

De acordo com Aumont (1995), a montagem é o princípio que rege a organiza-ção de elementos visuais e sonoros e seu agrupamento, justapondo, encadeando e/ouorganizando sua duração. Quais seriam as funções da montagem e que efeitos ela

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produz? Esta pergunta nos remete a fazer um breve elenco, a partir da abordagem deAumont (1995):

- Função narrativa: ao encadear os elementos da ação estabelecendo relaçõescausais e temporais, a montagem procura fazer com que o espectador melhorperceba e entenda a trama.- Função expressiva: ao exprimir, por si mesma, o contraste entre duas ima-gens, a montagem produz um efeito estético no espectador. Caberia a ela atarefa de imprimir o movimento, o ritmo, e criar “a idéia”.- Função sintática: ao estabelecer relações formais, independentes do sentido,produz efeitos de ligação, disjunção, pontuação, demarcação, alternância elinearidade.- Função semântica: ao utilizar seus inumeráveis recursos de ordem espaço-temporal, ao comparar, criar paralelos e estabelecer relações de causa-efeito, amontagem cumpre funções de produzir sentidos denotados e conotados.- Função rítmica: ao combinar ou justapor ritmos temporais e/ou plásticos ocinema se caracteriza como uma música da imagem.Alguns exemplos de montagem: raccord, flashback , plano-seqüência ou plano

americano, construção em abismo, primeiro-plano ou close. O raccord é derivado daexperiência do cinema clássico, em seu compromisso com a impressão de continuida-de, procurando “apagar” as mudanças de plano. Busca preservar elementos de conti-nuidade nas colagens realizadas entre diferentes planos.

Sem explicitar mais detalhadamente os exemplos de montagem, acrescentaría-mos uma definição geral e abrangente proposta por Aumont (1995): “a montagempoderia ser definida (...) como a colocação, lado a lado, de dois elementos fílmicos queacarretam a produção de um efeito específico, que cada um desses elementos, consi-derados isoladamente, não produz” (p.66).

Ora, deriva daí nosso interesse pelo estudo da montagem. Há uma deliberaçãode criar uma cadeia associativa que produz efeitos de significação que tendem a ser“lidos” pelo espectador. Em alguma dimensão, o espectador é “alfabetizado” nestaforma de linguagem, é introduzido num universo semântico, em que se vão criando etransformando convenções. Já, numa análise, o analisando vai falando e produzindoefeitos pela intercalação ou continuidade de temas, assuntos, descrições de imagens,gestos, silêncios. Há uma dimensão inconsciente que “governa”, que determina umalógica, nesta aparente incoordenação de idéias do fluxo associativo.

Sergei Eisenstein (1898-1948), cineasta russo, é um dos precursores da siste-matização da teoria e da técnica da montagem. Atuou junto ao Instituto de Cinema deMoscou, realizou seis filmes completos e deixou muito material inacabado. Quandojovem, ele trabalhou com o diretor de teatro Meyerhold, foi amigo do poeta Maiacovskie soube das experiências realizadas por Pavlov. Estas influências marcam a primeiraetapa de sua produção.

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A Revolução Russa influencia sua obra, mas com a burocratização crescentedo Estado soviético, com a imposição das idéias dominantes do realismo socialista naobra de arte, ele é acusado de formalista, de intelectualista. O efeito inicial dessasacusações é o de torná-lo mais próximo das exigências oficiais, buscando fazer umtrabalho pedagógico de acordo com o discurso oficial. Porém ele sempre foi um cria-dor que extrapolou os limites estreitos impostos pelo estalinismo para a arte soviética.

Eisenstein (1995) considera como uma das partes mais centrais e estimulantesde seu trabalho o problema que constitui ilustrar uma atitude em relação à coisa ilus-trada. Assim, como representar na tela o pesar, o medo, o receio, o sentimento devitória e outros sentimentos? Como representar idéias abstratas? A ilustração do pesartende a tornar pesarosos os próprios espectadores, quando bem construída. “Um dosmeios mais efetivos para ilustrar esta atitude está na composição, ainda que esta atitu-de não possa mostrar-se nunca apenas com ela, nem é esta sua única tarefa” (p.141).

A composição, entendida como a lei que governa a construção de ilustrações,passa a ser um conceito fundamental. O fato ilustrado no filme deve dar-se a mostrare, paralelamente, demonstrar a atitude do personagem em relação a ele (o fato), impli-cando efeitos pretendidos pelo autor sobre o espectador. Eisenstein busca o conceitode composição no universo da música e refere Bach como um autor que buscava me-ticulosamente, no jogo das relações humanas, os elementos composicionais para aelaboração de sua obra. A composição é “entendida aqui como uma lei para a constru-ção de uma ilustração” (p.142) e irá adotar os elementos estruturais dos sentimentosou idéias abstratas,estabelecendo uma espécie de cânone. Assim, elementos como aestrutura do comportamento emocional do homem devem unir-se ao conteúdo experi-mentado frente ao fenômeno ilustrado. Os princípios de composição utilizados namúsica vocal e instrumental dos clássicos derivam das entonações do discurso emotivovivo dos homens.

A literatura também trabalha com a idéia de composição, aponta Eisenstein,traçando uma série de considerações. Ana Karenina é um trabalho de composiçãoliterária em que a idéia do mal, no caso um adultério, é comparada com, é ilustradapor, um assassinato. Porém, o cinema se ocupa com a construção orgânica de suacomposição como um todo.

Aqui esboçamos a questão da transposição do conceito de composição, quetem um lugar especial na teoria do cinema proposta por Eisentein, para o campo dapsicanálise. Um paciente escolhe os elementos que irão ilustrar a composição queproduzirá ao falar para o analista. O analista, ao registrar um caso clínico, ao construiro caso dando a ele uma forma escrita, ora cita o texto do próprio paciente, entremeadode citações de clássicos (Freud, Lacan, Melanie, ..) ora enuncia seus comentários ereflexões. Não se trata de uma narrativa no sentido clássico nem de um texto ou de umdiscurso. Qual o melhor termo para definir o produto da fala de um paciente produzidatransferencialmente mediante a consigna da regra fundamental? Provisoriamente o

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termo composição merece ser examinado como uma opção, como configurando seruma ferramenta conceitual de utilidade.

Assim como um diretor escolhe elementos composicionais determinados parailustrar seu filme, também um paciente “escolhe” elementos e determinada seqüênciapara ilustrar sua fala sobre temas variados que lhe ocorrem numa análise. Para analisarum filme, a pergunta relativa a qual o método que governa sua composição é umapergunta-chave.

Eisenstein (1995), ao expor o método de composição utilizado para realizar o“Encouraçado Potemkin” demarca dois traços fundamentais: a construção orgânica desua composição como um todo e o páthos do filme. A organicidade, como uma quali-dade composicional, procura dar conta do fato de que “os elementos que nutrem aobra como um todo invadem todos os traços que compõem dita obra” (p.150). Cadaárea, cada parte, como luz, música, ritmo é convocada a participar no trabalho decomposição de forma articulada, contribuindo para ilustrar o que é pretendido pelodiretor. Já o páthos faz referência aos traços básicos de construção que deve possuiruma composição do ponto de vista da emoção que pretende despertar no espectador.Eisenstein assinala que o páthos de uma obra de arte remete a um ato de ex-stasis,fazendo o espectador sair de si, ficar como fora de si, abandonar-se, sair de sua condi-ção ordinária.

Um dos segredos do impacto e da beleza do filme “O Encouraçado Potemkin”,cuja composição atende as exigências de organicidade e páthos, está no fato de queseu ritmo obedece à mais canônica forma de uma composição trágica: a Tragédia emCinco Atos, que é uma estrutura posta à prova durante séculos. O filme é dividido em5 partes e estas, por sua vez, têm um ponto de transição. Este ponto de corte divide aomeio cada uma das 5 cenas refletindo a temática de um ponto de vista oposto. Esseponto de corte divide o filme em dois, da mesma forma que cada uma das cinco partesé subdividida.

VARIAÇÕES SOBRE O TEMA DA ASSOCIAÇÃO-LIVRE NA PSICANÁLISEA associação-livre surge a partir da crítica à hipnose e ao método catártico no

tratamento de casos de histeria, desde Anna O. (Freud, 1892-1898). É o método queconsiste em exprimir, indiscriminadamente, todos os pensamentos que acorrem à mente,quer a partir de um elemento dado (palavra, número, imagem de um sonho), quer deforma espontânea. É amplamente utilizado na Interpretação de Sonhos (Freud,1900/1976).

De acordo com Roudinesco (1998), foi Aristóteles (384 a.C. – 332 a.C.) quemprimeiro enunciou o conceito de associação de idéias. As leis que regem a associaçãoobedecem à lógica da contigüidade, da semelhança e do contraste.

Já encontramos na pré-história da psicanálise, num artigo originalmente escritoem francês, encomendado a Freud por Charcot, referência ao tema da associação. Ao

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realizar esse estudo comparativo entre as paralisias motoras orgânicas e as paralisiasde fundo histérico, escreve Freud (1888/1976):

“Considerada do ponto de vista psicológico, a paralisia do braço consis-te no fato de que a concepção do braço não consegue entrar em associ-ação com as outras idéias constituintes do ego, do qual o corpo da pes-soa é parte importante. A lesão seria a abolição da acessibilidadeassociativa da concepção do braço. O braço comporta-se como se nãoexistisse para as operações das associações. Não há dúvida de que, se ascondições materiais correspondentes à concepção do braço estão pro-fundamente modificadas, a concepção também será prejudicada. Mastenho de demonstrar que esta consegue estar inacessível sem estardestruída e sem estar lesado o seu substrato material (o tecido nervosoda região correspondente ao córtex)” (p. 236).

O interesse de Freud por um artigo de Havelock Ellis, escrito em 1919, ende-reçando-lhe críticas, leva-o a falar sobre a pré-história da técnica analítica. Ellis refereo trabalho do médico e poeta J.J. Garth Wilkinson, datado de 1857, que teria sido ocriador de um método chamado “de impressão” que consistia em dar livre curso àsidéias que surgissem a partir da escolha de um tema. Razão e vontade eram deixadasde lado, e o método era deixar fluir, por mais estranhas e exóticas que parecessem,frases ou palavras que viessem à mente, as quais, infalivelmente terminavam por sereferir ao tema. Ora, conclui Ellis, a diferença entre Freud e Wilkinson é que o primei-ro pretende dar base científica a seu trabalho, enquanto o segundo empregava essemétodo para fins literários. E estaria aí esboçada, a prova de que o método freudiano éum método de artista.

Freud (1920/1976) diz que setenta anos antes de Wilkinson, já Schiller em suacorrespondência com Körner, fizera referência ao método da associação livre comoforma de dar produtividade aos escritores. Porém nem Wilkinson nem Schiller inspi-raram Freud. O fato de que, antes dele, outros já tivessem percebido a existência dessemétodo, atesta não a sua natureza artística, mas o compartilhamento de uma convicçãoda psicanálise com o campo da arte, de que os fatos psíquicos são completamentedeterminados.

Porém, se Freud (1920/1976) não credita a esses autores a inspiração para atécnica, irá fazê-lo em relação a um breve escrito de Ludwig Börne escrito em 1923,“A Arte de tornar-se um Escritor Original em Três Dias”, ao qual teve acesso atravésde uma indicação que lhe fez Ferenczi. Ao lê-lo, ou relê-lo, lembra que recebera depresente as obras de Börne aos 14 anos e, então, lera avidamente. Por muitos anos,vinham-lhe à mente outros artigos contidos neste mesmo volume, sem razão aparente.Ao deparar-se com o referido artigo, ficou espantado ao encontrar muitas das opiniõese argumentos que havia expressado reiteradas vezes.

Fica expresso o reconhecimento da influência da leitura de Börne em sua ju-

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ventude para a pré-história da técnica psicanalítica na frase: “Assim não parece im-possível que essa sugestão possa ter trazido à luz o fragmento de criptoamnésia queem tantos casos se pode suspeitar jazer por trás da originalidade aparente” (Freud,1920/1976, p. 318).

Anna O. é considerado o primeiro caso de atendimento em que a hipnose égradativamente substituída pelo método catártico e em que os rudimentos da técnicada associação livre começam a se delinear para Freud. O caso é atendido por Breuer erelatado por ambos, na Comunicação Preliminar (1893/1976).

A paciente pioneira de um tratamento no qual a técnica da associação-livre éutilizada por Freud, no nosso entender, é Emmy de N. O tratamento inicia em maio de1889.

A maneira como Freud expõe e discute o caso, além de indicações clínicas,também nos aporta questões de cunho metodológico. Para melhor ilustrar sua exposi-ção e demonstrar o estado da paciente e de sua própria condução do tratamento, expõeas anotações diárias das três primeiras semanas do tratamento, intercalando comentá-rios e questões surgidas em sua experiência posterior. Não é a história clínica do paci-ente que ele irá expor, mas a história do tratamento, no qual o analista está implicadona história que conta.

Emmy de N. tem 40 anos, e Freud a encontra “deitada em um sofá com acabeça repousando numa almofada de couro” (p. 92). Ela fala com esforço, tem pro-blemas de afasia, contrações, tiques nervosos e interrompe, constantemente, sua tenta-tiva de falar, com um som singular, inarticulado, semelhante a um canto de galo sil-vestre. Parece estar sob a ação de uma alucinação aterradora que a assalta e constante-mente interrompe sua tentativa de fala, pedindo silêncio e para não ser tocada. Aindaassim, com constantes interrupções, retorna a falar em voz baixa, sem nada referir aoassinalado. Quando Freud lhe pergunta porque se assusta com tanta facilidade, comocom o ruído de uma porta, ela lhe responde que são recordações de sua infância quelhe ocorrem, e passa a relatar uma sucessão de sustos e medos ocorridos. E ele comenta:

“Essa série de causas desencadeantes traumáticas, que citou em respos-ta a minha pergunta sobre a razão de estar tão sujeita a assustar-se, já seachava pronta em sua memória. Ela não poderia ter reunido esses episó-dios de diferentes períodos de sua infância de maneira tão rápida duran-te o curto intervalo que transcorreu entre minha pergunta e sua respos-ta” (p. 96).

Freud (1895/1976) comenta, a propósito dessa paciente, a existência de “falsasconexões” entre idéias e do surgimento de sintomas determinados por coincidênciacausal.

Já afirmamos em outro momento, mas não é demasiado repetir, que a liberdadeda associação é relativa, na medida em que a fala é endereçada ao analista, logo, atra-

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vessada pela transferência. A forma como as associações se derivam e se sucedem, eos pontos nodais de seus cruzamentos são elementos importantes para a escuta analítica.

Os mecanismos do sonho envolvem, de acordo com Freud (1900/1976), astarefas ou operações de condensação, deslocamento, consideração sobre a figurabilidadeou representação dos pensamentos oníricos e a elaboração secundária. Que forma to-marão num sonho idéias abstratas? Ou mesmo conetivos, preposições, advérbios, comoserão representados? É o mesmo problema com que se depara um montador, em certamedida, qual seja, estabelecer regras para uma composição.

A condensação pode dar-se por omissão, fusão, neologismo. O deslocamentoinverte valores, altera o sentido, torna obscuro o evidente, troca expressões verbaispor pensamentos. A figurabilidade envolve uma espécie de transposição narrativa. Otrabalho do sonho se engaja na busca de novas formas de indicar as relações entre ospensamentos, a simultaneidade, as relações causais, a alternância e a contradição.

Ao propor ao paciente que fale tudo que lhe vem à mente, o analista faz umconvite a uma fala em que o estabelecimento de uma cadeia associativa que privilegiea cronologia ou a clareza narrativa não se impõe. O que está em jogo é muito maisescutar a cadeia associativa, ou seja, ligações, disjunções, alternâncias e contrastes.

Freud (1900/1976) afirma que a divisão dos sonhos em duas partes se presta àsignificação. O intervalo entre elas pode ser tomado como uma vírgula ou como arelação que se estabelece entre duas orações numa frase: subordinada e principal. Asucessão de imagens ou acontecimentos no sonho, bem como a transformação de umaimagem em outra podem prestar-se a expressar uma relação causal. As consideraçõesà figurabilidade e a questão das representações das formas lógicas nos sonhos foramobjeto de um estudo minucioso de Freud nessa monumental obra que é “A interpreta-ção dos sonhos”.

O INCONSCIENTE ESTÁ ESTRUTURADO COMO UMA MONTAGEM?Uma entidade lingüística se expressa, segundo Saussure, pela associação

estabelecida entre significante e significado. Depreende-se daí que a cadeia da fala édupla: a de conceitos (significado) e a de imagens acústicas (significante). A significa-ção tende a ser dada pelo contexto. Por exemplo, teremos que nos remeter ao contextofrente a uma mesma imagem acústica que remete a diferentes significados.

Diz Saussure “Vimos, a propósito do circuito da fala, que os têrmos implicadosno signo lingüístico são ambos psíquicos e estão unidos, em nosso cérebro, por umvínculo de associação” (1916/1991, p. 80). E acrescenta que será na oposição a outrostermos que cada termo irá adquirir seu valor.

Quando duas idéias, dois temas, duas imagens são justapostas, um sentido seproduz. Este sentido é um terceiro elemento, independe do sentido que cada um dosdois primeiros produz isoladamente. Podemos dizer que é a associação, a contigüida-de ou contraste entre dois elementos que produz um efeito de sentido.

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O corte em uma seqüência produz um efeito. A montagem usa este recursoinúmeras vezes, testando o ponto em que irá incidir o corte, produzindo diferentesversões, até optar pela que considerar melhor em função de seus objetivos.

Em psicanálise, o termo corte também é utilizado. A interpretação pode sertomada como o momento em que o analista produz um corte na cadeia associativa deseu analisante. A transferência pode ser vista como um corte. Eloqüente a este respeitoé o comentário de Freud (1912/1976) ao justapor a resistência à transferência. Eleafirma que há um momento em que a resistência se torna tão forte que a próximaassociação traz a sua marca, isto é, o paciente pára de associar, e emerge a presença doanalista. Acompanhar a raiz de um sintoma no inconsciente implica ingressar “numaregião em que a resistência se faz sentir tão claramente que a associação seguinte temde levá-la em conta e aparecer como uma conciliação entre suas exigências e as dotrabalho de investigação” (p. 38). A transferência entra em cena e produz a associaçãosubseqüente, anunciando-se por sinais de resistência como o silêncio, a interrupçãodas associações ou outras formas correlatas de demonstração de efeitos do inconscien-te produzidos em uma análise.

“Pois nossa experiência demonstrou – e o fato pode ser confirmado com tantafreqüência quanto o desejarmos – que, se as associações de um paciente faltam, ainterrupção pode invariavelmente ser removida pela garantia de que ele está sendodominado, momentaneamente, por uma associação relacionada com o próprio médicoou com algo a este vinculado” (Freud, 1912/1976, p. 35). Um analista não busca osentido quando interpreta, é o seu trabalho incidindo sobre a cadeia significante quetende a provocar efeitos de sentido para o analisante, articulando inusitadas vias deassociações até então sequer cogitadas.

Ao introduzir o conceito de fantasma, Calligaris (1986) expõe um caso clínicoe propõe uma construção em termos de como poderia articular o sintoma do pacienteLaurent. Diz que propõe tal construção “de saída, ao passo que o que a autoriza é o quese seguirá” (p.21).

Um dos princípios elementares do funcionamento da linguagem é que, paraqualquer enunciado, sua significação lhe advém de outro lugar ou de outro enunciadoa ele relacionado ou, em última instância, de uma abstração que poderia ser nomeadacomo o universo total da linguagem. E aqui, para o tema das cadeias associativas, aoescutá-las, é importante atentar para a seguinte proposição:

“O que é desagradável é que não há linguagem “em seu todo”, de talforma que a significação de um enunciado está sempre suspensa a umalhures que - não podendo ser a totalidade acabada da cadeia dos enun-ciados – é sempre uma cadeia incompleta que suspende por sua vez aprópria significação a um terceiro enunciado ainda, e assim indefinida-mente” (Calligaris, 1986, p. 22).

As conseqüências do efeito do corte na cadeia associativa, não se deixando

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enredar pela escuta de uma narrativa causal e linear, merecem ser aprofundadas. Oefeito de suspensão que um final de sessão produz, uma pergunta ou mesmo qualquerfala do analista bem como cortes ou busca de apagamento de cortes da parte doanalisante (“agora eu quero falar de outra coisa”, “mas continuando naquilo que euvinha falando”) merecem um estudo e uma atenção (sempre flutuante) especiais. Tra-ta-se de formações do inconsciente que se produzem transferencialmente.

O gênero do suspense no cinema atenta para efeitos especiais de montagem,como o uso de longas seqüências sem cortes. Isso nos põe a questão de que a exacer-bação da espera potencializa o efeito do corte. Ou talvez, que o desenlace da cena,quanto mais esperado mais impacto produz no espectador? Enfim, que articulaçõespodemos fazer entre cinema, montagem, a experiência analítica e as produções decadeias associativas com seus cortes, suspensões, encadeamentos e outros efeitos?

Lacan afirma que o inconsciente está estruturado como uma linguagem. Será amontagem (ou, talvez, a própria elaboração do roteiro) uma das formas para pensaressa questão e desdobrá-la? Cabe lembrar que ele propõe a desmontagem da pulsão.

ERA COMO NUM SONHO... ERA COMO NUM FILME Uma das principais razões pelas quais Freud começou a se interessar por so-

nhos foi o fato de que, ao enunciar a regra fundamental, seus pacientes contavam osseus (além das questões que lhe eram postas por seus próprios sonhos). Hoje nossospacientes falam, no decurso de sua cadeia associativa, além de sonhos, de filmes queviram e das impressões que lhes causaram determinadas cenas.

Bazin (1957/1983) elabora a hipótese de “que a psicologia do espectador decinema tenderia (...) a se identificar com a do indivíduo que sonha” (p. 137) e que estaanalogia poderia ser mais desenvolvida. Diz que a censura existe, e é constitutiva,tanto no sonho quanto no cinema e que ambos não podem ser tomados como umconjunto anárquico de imagens, mas seguem uma predeterminação e uma lógica. Ecomenta, que, paradoxalmente, o código puritano gerou algumas das mais belas, sen-suais e metafóricas imagens do cinema como a de Marilyn Monroe com a saia levan-tada esvoaçando por efeito da corrente de ar do metrô no filme “O pecado mora aolado” (Billy Wilder, 1955). É um refinamento da imaginação operando no sentido debuscar burlar certos códigos da censura. O tema do imaginário assim como o da cen-sura e do erotismo são caros à psicanálise enquanto referenciais teóricos. Interessanteobservar que, em seu artigo, Bazin não refere Freud e a psicanálise, apesar da evidenteinfluência que o imanta.

Na fase do espelho, tal como é analisada por Lacan, instala-se uma pré-figura-ção do eu que traz a marca de uma alienação. O sujeito se reconhece numa ficção, numlugar outro, alhures, numa imagem exterior. Essa capacidade de o homem se projetarem imagens, estátuas, fantasmas, tem aqui sua origem.

O momento da passagem do eu especular para o eu social é marcado pela inser-

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ção do sujeito no universo do desejo através do drama do chamado ciúme primordial(ciúme violento do ex-lactente ante a cena da amamentação do irmãozinho recém-nascido, imagem retirada por Lacan de uma passagem de Santo Agostinho para efeitosde ilustração deste momento) e pela identificação com a imago do semelhante. Passa aexistir uma relação triangular entre o eu, o objeto e o outro: “O objeto do desejo dohomem é essencialmente um objeto desejado por algum outro”. (Lacan, 1951/1998, p.46).

A intuição da globalidade do próprio corpo, expressa no júbilo de agitar pernase braços ante a visão do corpo do outro, constitui uma espécie de imago ideal antecipa-da que irá marcar a inscrição imaginária do corpo no próprio eu do sujeito.

Françoise Dolto (1991) expande o conceito de Lacan, ao propor a idéia deimagem inconsciente do corpo. Foi no trabalho clínico com crianças pequenas, utili-zando desenhos, que a formulação lhe ocorreu. A imagem inconsciente do corpo desa-parece com a imagem especular e só irá ressurgir nos sonhos, nas fantasias e nossintomas. Diz ela: “Quando eu procurava a identidade na imagem representada euperguntava sempre à criança: Onde tu estás no desenho? Onde tu estarias se estivessesno desenho? A partir do momento em que a criança se situa num lugar, ela entra emtroca com o outro” (p. 12). Esta formulação nos parece de grande utilidade na escutade relato de filmes feitos por pacientes. Talvez nem formulando a questão explicita-mente, mas escutando o lugar de enunciação. Esta escuta talvez nos permita inferironde está no filme, ou onde estaria se estivesse no filme, o analisante. Haveria que seescutar, de forma muito especial, o lugar ou o momento em que, o relato de um deter-minado filme, se conecta na cadeia associativa. Do que falava o paciente quando lheocorreu falar de um filme que viu, e o que fala subseqüentemente, qual seja, qual oenlace, o nexo associativo, que se produz aí?

A seguir, algumas cadeias associativas produzidas por pacientes em análise:“Da última vez que saí daqui é como se as coisas estivessem um pouco confu-

sas. Como se eu tivesse que botar uma ordem. A imagem mais forte que ficou... écomo se eu estivesse no cinema. Já me distraí pensando como seria a história do pontode vista de outros personagens, que não o principal. A escolha da história ou do que sevai acompanhar. No cinema tem o ponto de vista de alguns personagens, poderia ter ode outros também. Essa perspectiva de personagem principal, é como se eu nuncativesse me colocado muito ...”.

“Sonhei com a minha casa. É difícil explicar, era uma mistura de três dimen-sões com uma planta baixa. Parece que era um desenho, mas eu já estava morando.Um lado era todo aberto para a rua. Um acesso para o segundo andar, eu não chego aver, mas tem. Tem uma seqüência de peças uma depois da outra e uma parede cega. Derepente, é o fim do sonho, me dei conta que a casa estava toda aberta. Era um lado todoaberto, tudo exposto, qualquer um poderia entrar.”

“Tenho sonhos de tocar sem deixar as digitais, sem deixar vestígios. É como

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ficar fora da comparação, porque sempre quis ser querida. Sempre fui voyeur da vida,fiquei vendo as coisas acontecer, as coisas passar ...”.

“Eu sempre disse que quero uma sala onde possa abrir os braços sem bater emnada. O lugar onde vou morar, o lugar que uma pessoa usa, ocupa. Estou recomeçandoa pensar a questão de namorar alguém, mas não consigo me colocar nesta posição.Não sei conversar, quando conto algo é cheio de detalhes. Nunca sei se vou contar aversão mais longa ou a mais curta. Me perco um pouco quando vou contar uma histó-ria”.

(Faz um gesto) “Este movimento aqui tem um sentido de olhar para trás. Aforma de sentir é que fica em suspenso. É muito forte a sensação de ser criança quandofalo do meu pai e da minha mãe”.

“É como uma família tradicional: Fulano, me dá dinheiro pra isso. Ela nãotrabalha e passa se queixando da vida. Uma pessoa que não toma conta da própriavida. Esse excesso de tempo. É como num filme, numa caricatura. Essa mulher nãoexiste. Não posso imaginar que um filho venha a fazer isto comigo”.

“Na noite passada tive um sonho. A impressão que ficou dele foi muito estra-nha, foi como um peso. Agora já passou um pouco. O cenário era meio escuro, todosonho era meio escuro. Não lembro exatamente. São só dois momentos que lembro. Aseqüência é que é muito clara. Eu estou vindo para cá, mas o lugar não é esse, mas simo destino. Vinha de trem, bonde ou ônibus, não sei bem. Comigo vem o C. Depois,antes ou ao mesmo tempo, não fica bem claro. É um sonho só, mas tem estes doismomentos, duas cenas, podem ser três. São bem diferentes. É quase como se nãofizessem parte do mesmo sonho. Era quase como se eu não conseguisse me separar.Talvez uma sensação de que eu não deveria estar junto. Como se algo não devesse.Sobre as perguntas, nunca me passou pela cabeça perguntar a minha mãe aquilo que tume perguntavas no sonho, se agora ela não precisa de companhia, se eu não tenho quelevá-la mais aos lugares e que agora ela não pode mais ir sozinha. Não é uma sensaçãoque tenha ficado do sonho, não é uma idéia. Ao mesmo tempo que eu fico tempodemais com o D., esse tempo do percurso em que eu estou acompanhada. Como sefosse uma oposição ao tempo em que eu não estou acompanhando minha mãe. Umasensação de falta.”

“Estava vendo, numa revista na sala de espera, uma foto da Maria Callas. Elatinha a voz e conseguiu ir tão longe. Mas a expressão dela na foto é de uma pessoacomum, bonita, bem vestida, discreta, com um colar de pérolas. A gente não se dáconta até onde pode chegar, as pessoas não se vêem. Não sei se as pessoas me vêemcomo poderosa. Na prática, não exerço um certo poder que eu tenho, mas estava pen-sando se isso não determina muitos de meus relacionamentos, o fato de como algumaspessoas me tratam ... Lembro quando eu era criança. Não lembro bem se eu vi issonum filme ... Acho que num desses filmezinhos “Se meu fusca falasse 1, 2 ou 3 ...”,tinha sempre um sujeito filmando, ele filmava tudo que acontecia. Acho que foi a

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partir daí que eu passei a ter a sensação de que eu não podia fazer nada de erradoporque havia o tempo todo alguém me filmando. Eu pensava: estão me filmando edepois os outros vão me ver. Fiquei com essa coisa muito tempo. Passei a me escon-der. Sempre fui muito extrovertida, mas, sobre quem eu sou, muito reservada. Atéextrovertida para esconder um pouco isso. Como se eu não existisse, não sei sobre aminha pessoa, o que eu penso, como sinto, não falo sobre isso com ninguém, nem eusei”.

(Fala sobre uma cirurgia) “Me lembrei de um filme que eu não vi; que eu nãoquis ver. É aquele de uma mulher que vai perdendo os pedaços: “Encaixotando Hele-na”. Não sei se é o jeito que eu olho, se é como eu ouço ou até como eu falo. Tem umlado disso que parece muito ... não sei se é frio, não sei se é mecânico, mas essa coisada movimentação possível ... Quando eu falo do esquartejamento é muito forte, édramático ... Eu não sabia o que era sentir medo antes desse tempo agora, depois dacirurgia”.

Qual o lugar de enunciação do sonhador no sonho, desde onde ele conjuga suaação e em que tempo o faz? De uma análise preliminar das falas de pacientes por nósregistradas, depreende-se um grau de dificuldade de amarrar a posição do sujeito dosonho. Uma imprecisão que também se revela em outras falas do cotidiano, como norelato de um filme. O sujeito se reconhece alhures, na tela, e se queixa de nada sabersobre si.

Lacoste (1992) faz uma retrospectiva das metáforas utilizadas por Freud pararepresentar o aparelho psíquico desde “Lembranças Encobridoras” (1899) até o “Blo-co Mágico” (1925), percurso este mais detidamente feito por Lacan (1985) para situaro eu na teoria e na técnica freudianas.

“Este aparelho freudiano, o bloco mágico psíquico, terá sido inicial-mente equipado de um eu de geometria variável no espaço da palavra.Desde 1899, a função encobridora da lembrança revelava-se por umadistinção entre o eu-que-se-lembra e o eu-que-age na cena contada; a“posição de observador” ocupada pelo que fala tornava-se o indício deuma tessitura sobreposta na memória do acontecimento. Primeiro dis-positivo de iluminação dando conta da legibilidade das inscrições pordisjunção de um eu figurado e um eu figurante”. (Lacoste, 1992, p.52).

O conceito de imaginário, como um dos três registros em que o eu pode inscre-ver-se, aponta justamente para aquilo que o eu tem de desconhecimento, de dualidadee de alienação. Remete a uma identificação operada mediante sucessivos deslocamen-tos. O eu nunca está onde o supomos, há que buscá-lo sempre em outro lugar.

CONSIDERAÇÕES GERAISA dificuldade do analisante para contar um sonho guarda certa semelhança

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com a dificuldade que é descrever cenas de um filme. Expressões do tipo “era como”,“parece”, são recorrentes em ambos os casos. Também situar o ponto de vista dosonhador, que está num lugar mas sabe ou “vê” o que se passa em vários outros, édifícil. Há uma espécie de onipresença do olho do sonhador, como acontece, em certamedida, com a câmera. Ela se comporta, em relação ao espectador, como seu olho,dirigindo seu olhar e permitindo deslocamentos rápidos e pontos de vista variados demodo quase intermitente.

Numa análise, tanto o relato de um filme quanto o de um sonho, serão tomadosnuma escuta equiflutuante da cadeia associativa do seu paciente, pelo analista.

Morin (1956/1983) retrata o cinema como uma operação que integra o fluxo dofilme ao fluxo psíquico do espectador. Diz que o cinema compartilha com as máqui-nas a função de mastigar o trabalho do homem, facilitando-o: “O filme é detentor dealgo equivalente a um condensador (...). Na medida, pois, em que ele executa, porconta do espectador, toda uma parte de seu trabalho psíquico, dá-lhe satisfação comum mínimo de despesa” (p.161).

Ver filmes, se aceitarmos esta constatação, atenderia então a um princípio daeconomia psíquica, que rege a própria atividade de condensação no sonho; tema caroà psicanálise. Além disso, tanto o espectador de cinema como o sonhador não têm umaparticipação motora efetiva no sonho ou no filme. Quando a saída motriz está impedi-da, o caminho, a saída, pela via da percepção, é incrementada. A cadeira do cinema,onde o espectador fica imóvel, lembra um pouco a imobilidade do analisante no divã.

Assim, o que pretendemos, ao ilustrar nossa exposição com relatos de sonhos efalas de analisantes bem como buscando selecionar trechos de filmes em que monta-gens singulares são exemplificadas, é expor a temática da qual nos ocupamos e proporpensar relações com considerações teóricas elaboradas no campo do Cinema e daPsicanálise.

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