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REVISTA DE DIREITO DAS SOCIEDADES Ano VII (2015), 3/4

REVISTA DE DIREITO DAS SOCIEDADES Revista de Direito das Sociedades Catarina Baptista Gomes A responsabilidade civil dos administradores assente em deliberações dos sócios.

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Page 1: REVISTA DE DIREITO DAS SOCIEDADES Revista de Direito das Sociedades Catarina Baptista Gomes A responsabilidade civil dos administradores assente em deliberações dos sócios.

REVISTADE DIREITO DAS SOCIEDADES

Ano VII (2015), 3/4

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REVISTA DE DIREITO DAS SOCIEDADESAno VII (2015), 3/4Diretor: ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO

Comissão de redaçãoAntónio Menezes CordeiroDiogo Costa GonçalvesFrancisco Mendes CorreiaAna Perestrelo de Oliveira

Proprietário: Faculdade de Direito de Lisboa (Instituto de Direito das Sociedades)NIPC 502 736 208Sede e Redação: Faculdade de Direito de Lisboa – Alameda da Universidade – 1649 -014 LisboaEditora: Edições Almedina, SA

Rua Fernandes Tomás n.os 76, 78, 80Telef.: 239 851 904 – Fax: 239 851 9013000 -167 Coimbra – [email protected]

Publicação: quatro números anuaisTiragem: 300 exemplaresAssinatura anual € 70,00 (12,5% de desconto sobre o total dos números avulsos)Número avulso € 20,00

Coordenação e revisão: Veloso da Cunha

Execução gráfi ca: DPS - Digital Printing Services, Lda.

Depósito legal: 289864/09N.º de registo na ERC – 125574

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ÍNDICE

GOVERNO DAS SOCIEDADES

D iogo Costa Gonçalves A remuneração dos administradores das instituições de crédito: o comité de remune-rações. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 509

DOUTRINA

Bernardo da Gama Lobo XavierAs pensões de reforma e a segurança social dos administradores e doutros membros dos órgãos das sociedades (artigo 402.º do Código das Sociedades Comerciais). . . . . . . . . 537

Evaristo MendesAval prestado por sócios de sociedades por quotas e anónimas e perda da qualidade desócio. Apontamento. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 587

A. Barreto Menezes CordeiroDeveres fi duciários de cuidado: imprecisão linguística, histórica e conceitual . . . . . . . . . 617

Cristiano DiasDa transmissão da responsabilidade contraordenacional na fusão por incorporação: análise crítica do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 5 de março de 2015. . . . 641

Hugo Luz dos SantosO tip-pooling nos casinos da Região Administrativa Especial de Macau: (show me the money?) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 673

Bruno José Machado de Almeida/Carlos Alberto da Silva e CunhaO papel do revisor ofi cial de contas na avaliação das entradas em espécie . . . . . . . . . . 693

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506 Revista de Direito das Sociedades

Catarina Baptista GomesA responsabilidade civil dos administradores assente em deliberações dos sócios . . . . . . 711

Elsa Pizarro PardalProject fi nance e projectos de infra-estruturas de transporte rodoviário em Portugal . . . . 753

Diogo CoelhoFinanciamento Societário, Covenants e Responsabilidade dos Credores – Qual o ppapel da Teoria da Agência aplicada aos Covenants na responsabilidade dos Credores--Financiadores? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 793

Joana Freire AlmeidaCapital social, reservas e suprimentos: seu conteúdo, função e papel na cobertura de prejuízos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 835

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GOVERNO DAS SOCIEDADES

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A remuneração dos administradores das instituições de crédito: o comité de remunerações*

PROF. DOUTOR DIOGO COSTA GONÇALVES

Sumário: § 1.º Vetores fundamentais da política de remuneração dos administradores: 1. A gestão sã e prudente de riscos; 2. A gestão de confl itos de interesses e a centralidade do comité de remunerações; 3. A remuneração nos códigos de bom governo. § 2.º A trans-posição da Diretriz CRD IV e o Decreto-Lei n.º 157/2014, de 24-out.: 4. Da Lei n.º 28/2009, de 19-jun. ao Aviso n.º 10/2011, de 29-dez.; 5. A política de remuneração da Diretriz n.º 2013/36/UE e a sua transposição para a ordem jurídica interna. § 3.º O comité de remunerações: 6. Dever de criação; 7. Composição; 8. Funções. § 4.º Tanto para tão pouco?

Os critérios de remuneração dos membros da administração de uma qual-quer organização económica estão intimamente associados a uma boa política de governo da instituição em causa. As instituições fi nanceiras, em particular os bancos, não são exceção.

Da adopção de corretos critérios de remuneração depende, em larga medida, a capacidade de atrair quadros de excelência e, em não poucos casos, a possibilidade de monitorizar e controlar as motivações subjacentes a algumas decisões de gestão.

Os qualifi cados deveres de lealdade dos administradores – decorrentes do facto da administração confi gurar uma permissão normativa de atuação in alienum e ad alienum1 – encontram na remuneração uma potencial situação de

* O presente artigo é publicado ao abrigo da colaboração estabelecida entre a Revista de Direito das Sociedades e o Governance Lab, grupo de investigação jurídica dedicado ao governo das organizações (www.governancelab.org).1 Com desenvolvimento, cfr. Diogo Costa Gonçalves, Pessoa coletiva e sociedades comerciais – Dimensão problemática e coordenadas sistemáticas da personifi cação jurídico-privada, 2015, 810 e ss.

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confl ito de interesses. As vantagens económicas que o administrador obtém da sociedade confi guram sempre um interesse próprio que pode não ser concor-dante com o interesse social. A permissão de atuação in alienum permite-lhe de facto praticar atos que não se orientam ad alienum mas antes à prossecução do seu próprio interesse, concretizado na vantagem remuneratória (em sentido amplo) que de tais atos possa advir.

Compreende-se, portanto, que ainda em 2010, o Aviso do Banco de Por-tugal n.º 1/2010 viesse exigir que a política de remuneração dos administra-dores das entidades bancárias contivesse uma referência ao “modo como a remu-neraç ã o é estruturada de forma a permitir o alinhamento dos interesses dos membros do ó rgã o de administraç ã o com os interesses de longo prazo da sociedade” [artigo 2.º/1 c)].

A centralidade do tema da remuneração dos administradores no âmbito do corporate governance bancário tem vindo, nos últimos anos, a ser posta a nú no palco nacional e internacional. Em particular, aponta-se a existência de más políticas de remuneração como uma das causas do colapso de muitas ins-tituições fi nanceiras, que assumiram uma exposição excessiva ao risco, apenas justifi cada pelos benefícios privados que daí potencialmente advinham para os seus quadros e administradores.

A crescente preocupação pelo tema tem-se traduzido no reforço dos ins-trumentos normativos e dos sistemas de controlo facultados por mecanismo de soft law.

As alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 157/2014, de 24-out. ao Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), em particular com o aditamentos dos artigos 115.º-C a 115.º-H, inserem-se neste movimento de reforço normativo, espelhando muito do que foi a reação à perturbação dos mercados vivida nos últimos anos.

Neste breve estudo, propomo-nos conhecer com melhor detalhe a política de remuneração dos administradores das instituições de crédito, tendo funda-mentalmente em conta as inovações trazidas pelo Decreto-Lei n.º 157/2014.

Centrar-nos-emos, em especial, na fi gura do comité de remunerações e no alcance, afi nal mitigado, da sua previsão no artigo 115.º-H RGICSF.

§ 1.º Vetores fundamentais da política de remuneração dos adminis-tradores

1. A gestão sã e prudente de riscos

I – Nos termos do artigo 115.º-C/3 RGICSF, aditado pelo Decreto-Lei n.º 157/2014, a política de remuneração das instituições de crédito deve “pro-

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mover e ser coerente com uma gestão de riscos sã e prudente e não incentivar a assunção de riscos superiores ao nível de risco tolerado pela instituição de crédito” [alínea a)].

O princípio programático ora enunciado conhece antecedentes relevantes na breve história normativa da política de remuneração. Recorde-se que já em 2010, a Carta-circular n.º 2/2010/DSB, de 01-fev., enunciava, nos seus prin-cípios gerais, o seguinte:

“I.4. As instituiç õ es devem adoptar uma polí tica de remuneraç ã o consistente com uma gestã o e controlo de riscos efi caz, que evite uma excessiva exposiç ã o ao risco (...).”

II – A relação direta entre a excessiva exposição ao risco das instituições de crédito e a política de remuneração em vigor em determinada instituição foi abertamente assumida pelo legislador comunitário na CRD III.

Recorde-se, desde logo, o considerando (1) da Diretriz 2010/76/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24-nov.-20102:

“A assunç ã o excessiva e imprudente de riscos no sector bancá rio teve como consequê n-cias o colapso de instituiç õ es fi nanceiras e problemas sisté micos nos Estados-Membros e a ní vel mundial. Embora as causas dessa assunç ã o de riscos sejam inú meras e complexas, é consensualmente reconhecido pelas autoridades de supervisã o e pelos organismos de regula-mentaç ã o, incluindo o G20 e o Comité das Autoridades Europeias de Supervisã o Bancá ria (CAESB), que as estruturas de remuneraç ã o inadequadas de algumas instituiç õ es fi nanceiras foram um dos factores que contribuiram para essa situaç ã o. As polí ticas de remuneraç ã o que dã o incentivos à assunç ã o de riscos que excedem o ní vel geral de risco tolerado pela instituiç ã o podem comprometer uma gestã o sã e efi caz dos riscos e exacerbar comportamentos de assunç ã o excessiva de riscos. (...)”.

O legislador comunitário não podia ser mais claro: o colapso de instituições fi nanceiras e a crise sistémica dos mercados teve origem, entre outras causas, na existência de estruturas de remuneração que consubstanciavam um incentivo objetivo à assunção de riscos para além do razoável.

A base normativa de Direito europeu foi, depois, sendo alvo de desenvol-vimentos para-normativos, de entre os quais se salientam as Guidelines on Remu-neration Polices and Pratices (2010), emitidas pelo Committee of European Banking

2 Numa orientação que se vem consolidando na Escola de Lisboa, designamos as diretivas comu-nitárias por diretrizes. Cfr. António Menezes Cordeiro, “Vernáculo jurídico: directrizes ou directivas?”, ROA 64 (2004) I/II, 609-614.

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Supervisors (CEBS)3 e os Pillar 3 disclosure requirements for remuneration (2011), divulgado pelo Comité de Basileia.

Em transposição da CRD III4, o Decreto-Lei n.º 88/2011, de 20-jul. pas-sou a exigir, na redação dada ao artigo 14./1 i) RGICSF, que as polí ticas e prá ticas de remuneraç ã o das instituições de crédito promovessem uma “gestã o sã e prudente dos riscos”.

III – O mesmo mote foi seguido e glosado na CRD IV (Diretriz n.º 2013/36/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26-jun.) que esta-belece, no seu artigo 92.º/2 a), que “a polí tica de remuneraç ã o deve promover e ser consistente com uma gestã o de riscos sã e efetiva e nã o incentivar a assunç ã o de riscos em ní veis superiores ao ní vel de risco tolerado pela instituiç ã o”.

O atual artigo 115.º-C/3 a) RGICSF corresponde à transposição do pre-ceito comunitário ora citado.

IV – A hipótese da remuneração de um administrador estar associada à assunção de riscos intolerados pela instituição de crédito que este dirige pressu-põe uma possibilidade causal estabelecida entre um ato de gestão, praticado nos termos legalmente aplicáveis, e uma vantagem económica diretamente asso-ciada à prática de tal ato.

Como se depreende, tal possibilidade causal só tem existência possível quando a remuneração do administrador está associada, de algum modo, à per-formance económica da instituição – à alea do negócio –, o que nos conduz pela mão aos critérios da formação da remuneração variável.

Por esta razão, o artigo 115.º-C/3 e) obriga a distinguir, de forma clara, como se forma a componente fi xa e variável da remuneração, determinando que os critérios que presidem a esta última devem ter em conta “o risco da ins-tituição de crédito”. No mesmo sentido segue o artigo 115.º-E/1, ao dispor que na defi niç ã o da componente variá vel da remuneraç ã o devem ser tidos em conta “todos os tipos de riscos, atuais e futuros”.

2. A gestão de confl itos de interesses e a centralidade do comité de remunerações

I – O segundo critério que deve respeitar a política de remunerações das instituições de crédito vem enunciado no artigo 115.º-C/3 b):

3 Em particular o ponto 2., referente ao Governance of remuneration.4 Para uma apreciação mais completa, veja-se Paulo Câmara, “A comissão de remunerações”, RDS III (2011) 1, 9-52, 11 e ss.

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“Ser compatível com a estratégia empresarial da instituição de crédito, os seus obje-tivos, valores e interesses de longo prazo e incluir medidas destinadas a evitar confl itos de interesses”.

A defi nição de uma política remuneratória dos administradores das insti-tuições de crédito (e das sociedades em geral) deve assumir, portanto, como pano de fundo, a existência de um latente confl ito de interesses, para o qual desde início chamámos a atenção. Toda a dogmática geral do confl ito de interesses entre administradores e a sociedades deve aqui ser convocada e desenvolvida em razão da diff erentia specifi ca de que tratamos5.

II – A atenção despendida pelo legislador a esta matéria também não é nova.

O Aviso do Banco de Portugal n.º 1/2010 previa, no seu artigo 2.º/1 c), que a divulgação da política de remuneração prevista na Lei n.º 28/2009, de 19-jun. devia incluir informação sobre “o modo como a remuneraç ã o é estruturada de forma a permitir o alinhamento dos interesses dos membros do ó rgã o de administraç ã o com os interesses de longo prazo da sociedade”.

Também a Carta-circular n.º 2/2010/DSB, no seu ponto I.4, fazia referên-cia à necessidade de que as políticas de remuneração adoptassem medidas que evitassem “potenciais confl itos de interesses”, seguindo-se a referência aos “interesses a longo prazo da instituiç ã o fi nanceira” e à “proteç ã o dos interesses dos clientes e dos investidores”.

III – Não nos alongaremos na crítica à redação do artigo 115.º-C/3 b) que corresponde, aliás, à transcrição literal do artigo 92.º/2 b) da Diretriz n.º 2013/36/UE. As críticas aduzidas a propósito da infeliz redação do artigo 64.º CSC e daquilo que denominámos “armadinha hermenêutica” – tecida pela inclu-são num texto normativo, que se pretende analítico, de um discurso descritivo de matriz anglo-saxónica – podem aqui, em parte, ser reproduzidas6.

5 Com desenvolvimento e referências, cfr., por todos, Paulo Câmara, “Confl ito de interesses no direito fi nanceiro e societário: um retrato anatómico”, Confl ito de interesses no direito fi nanceiro e societário – Um balanço a partir da crise fi nanceira (Paulo Câmara), 2010, 9-74 e, em especial, José Ferreira Gomes, Da administração à fi scalização das sociedades – A obrigação de vigilância dos órgãos da sociedade anónima, 2015, 32 e ss. 6 Com desenvolvimento, cfr. Diogo Costa Gonçalves, Pessoa coletiva e sociedades comerciais cit., 891.

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A redação da Carta-circular n.º 2/2010/DSB como antecedente normativo (ou para-normativo) do atual preceito evidencia que nos movemos nas mesmas águas.

IV – No âmbito específi co da gestão de confl ito de interesses em sede de remunerações, goza de um papel especialmente relevante a fi gura da comissão, agora comité de remunerações, atualmente prevista artigo 115.º-H:

Artigo 115.º-HComité de remuneraç õ es

1 – As instituiç õ es de cré dito signifi cativas em termos de dimensã o, de orga-nizaç ã o interna e da natureza, â mbito e complexidade das respetivas atividades devem criar um comité de remuneraç õ es, composto por membros do ó rgã o de administraç ã o que nã o desempenhem funç õ es executivas ou por membros do ó rgã o de fi scalizaç ã o.

2 – Compete ao comité de remuneraç õ es formular juí zos informados e inde-pendentes sobre a polí tica e prá ticas de remuneraç ã o e sobre os incentivos criados para efeitos de gestã o de riscos, de capital e de liquidez.

3 – O comité de remuneraç õ es é responsá vel pela preparaç ã o das decisõ es relativas à remuneraç ã o, incluindo as decisõ es com implicaç õ es em termos de riscos e gestã o dos riscos da instituiç ã o de cré dito em causa, que devam ser tomadas pelo ó rgã o social competente.

4 – No â mbito da sua atividade, o comité de remuneraç õ es deve observar os interesses de longo prazo dos acionistas, dos investidores e de outros interessados na instituiç ã o de cré dito, bem como o interesse pú blico.

O preceito em causa remonta aos anexos 24 e seguintes do artigo 28.º/2 do Decreto-Lei n.º 104/2007, de 3-abr. que, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 88/2011, de 20-jul., dispunha no sentido de que os processos de auto-ava-liação das instituições de crédito, em matéria remuneratória, fossem assegurados por uma comissã o de remuneraç õ es.

Os pontos 25 e 26 determinavam mais especifi camente:

“25 – As instituiç õ es de cré dito signifi cativas em termos de dimensã o, de organizaç ã o interna e da natureza, â mbito e complexidade das respetivas atividades devem criar uma comissã o de remuneraç õ es. A comissã o de remuneraç õ es deve ser constituí da de forma que lhe permita formular juí zos informados e independentes sobre as polí ticas e prá ticas de remuneraç ã o e sobre os incentivos criados para efei-tos de gestã o de riscos, de capital e de liquidez.

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26 – A comissã o de remuneraç õ es é responsá vel pela preparaç ã o das decisõ es relativas à remuneraç ã o, incluindo as decisõ es com implicaç õ es em termos de riscos e gestã o dos riscos da instituiç ã o de cré dito em causa, que devem ser tomadas pelo ó rgã o societá rio competente. O presidente e os membros da comissã o de remu-neraç õ es devem ser membros do ó rgã o de administraç ã o que nã o desempenhem quaisquer funç õ es executivas na instituiç ã o de cré dito em causa. Ao preparar tais decisõ es, a comissã o de remuneraç õ es deve ter em conta os interesses a longo prazo dos acionistas, dos investidores e de outros interessados na instituiç ã o de cré dito.”.

A CRD IV (Diretriz n.º 2013/36/UE) veio ocupar-se, no artigo 95.º, nos termos que segue:

Artigo 95.ºComissão de remunerações

1 – As autoridades competentes asseguram que as instituições signifi cativas em termos de dimensão, organização interna e natureza, âmbito e complexidade de atividades criem uma comissão de remunerações. A comissão de remunerações deve ser constituída de forma que lhe permita formular juízos informados e inde-pendentes sobre as políticas e práticas de remuneração e sobre os incentivos criados para efeitos de gestão de riscos, de capital e de liquidez.

2 – As autoridades competentes asseguram que a comissão de remunerações seja responsável pela preparação das decisões relativas à remuneração, incluindo as decisões com implicações em termos de riscos e gestão dos riscos da instituição em causa que devam ser tomadas pelo órgão de administração. O presidente e os membros da comissão de remunerações devem ser membros do órgão de admi-nistração que não desempenham funções executivas na instituição em causa. Se a representação dos trabalhadores no órgão de administração estiver prevista no direito nacional, a comissão de remunerações deve incluir um ou mais represen-tantes dos trabalhadores. Ao preparar as referidas decisões, a comissão de remune-rações deve ter em conta os interesses a longo prazo dos acionistas, dos investidores e de outros interessados na instituição, bem como o interesse público.

3. A remuneração nos códigos de bom governo

I – Tendo em conta a centralidade das políticas de remuneração para o bom governo das instituições fi nanceiras, não é de estranhar que encontremos abun-dantes referências a esta matéria nos códigos de bom governo. A comparação de instrumentos em Espanha, Itália, Reino Unido, Alemanha e Portugal, bem

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como das Guidelines da EBA, por exemplo, permite-nos uma visão sinótica muito rica e convergente nos aspetos essenciais de política de remuneração.

Em causa estão, fundamentalmente, os seguintes instrumentos:

– Espanha: Codigo de buen gobierno de las sociedades cotizadas (2015), elaborado pela Comisión Nacional del Mercado de Valores (CNMV);

– Itália: Codice di Autodisciplina (2014) e Disposizioni di vigilanza per le banche (2014), elaborados pelo Comitato per la Corporate Governance e pela Banca D’Italia, respetivamente;

– Reino Unido: The UK Corporate Governance Code (2014) e A review of cor-porate governance in Banks and other fi nancial industry entities – fi nal recommen-dations – Walker Report (2009), elaborados pelo Financial Reporting Council e por uma comissão liderada por Walker.

– Alemanha: Deutscher Corporate Governance Kodex (2014), elaborado pela Regierungskommission Deutscher Corporate Governance Kodex.

– Portugal: Código de Governo das Sociedades da CMVM – Recomendações (2013), elaborado pela CMVM e ainda o Código de Governo das Sociedades do IPCG (2014), elaborado pelo IPCG..

– Guidelines on Internal Governance, elaborados pela European Banking Authority.

II – Nos códigos analisados, a decisão da remuneração dos administradores fi ca a cargo do próprio órgão de administração, sob proposta de uma comissão de remunerações (Espanha e Itália).

No Reino Unido, distingue-se entre, por um lado, a remuneração do chair-man e dos administradores executivos e, por outro, a remuneração dos adminis-tradores não executivos: na primeira hipótese, a remuneração é decidida pela comissão de remuneração e, na segunda, a decisão cabe ao órgão de adminis-tração ou aos acionistas (se assim estiver previsto nos estatutos), ou ainda a uma comissão especial para o efeito (que pode incluir o CEO).

Na Alemanha, a remuneração dos administradores é, nos termos legais, decidida pelo órgão fi scalização e, em Portugal, o Código da CMVM reco-menda que a decisão sobre a remuneração dos administradores passe por uma comissão de remunerações (artigos 399.º e 429.º CSC).

A política de remuneração de altos dirigentes, que não sejam membros de órgãos sociais, é também objeto de atenção nos instrumentos ponderados: em Espanha, Itália e no Reino Unido, por exemplo, recomenda-se que seja a comissão de remunerações apresentar ao órgão de administração uma proposta de remuneração para tais cargos.

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III – Os instrumentos em análise são uníssonos quanto (i) à recomendação de a remuneração ser indexada a um fator de desempenho; e quanto (ii) à necessidade de a remuneração pelo desempenho ser articulada com a política de risco da instituição, de modo a evitar que o sistema de remuneração de administradores e altos dirigentes redunde num incentivo à assunção de ris-cos intoleráveis, com eventuais consequências sistémicas, favorecendo assim o crescimento sustentado da sociedade (Alemanha, Espanha e Portugal, por exemplo).

Em Itália, cabe à comissão de remunerações a defi nição dos critérios e obje-tivos de desempenho em função dos quais se determina a remuneração variável.

No Reino Unido, recomenda-se a adopção de sistemas de remuneração em função do desempenho que confi gurem incentivos de longo prazo (como a atribuição de ações), moderando assim a apetência por decisões de gestão direcionadas a resultados imediatos.

Em Espanha vai-se mais longe: a atribuição de incentivos de longo prazo (ações, opções, etc.) só deve ser feita fi ndo o mandato. Em Portugal, é igualmente recomendado o diferimento de parte da remuneração variável, sujeita à continuidade de um desempenho positivo. Quanto aos incentivos de longo prazo, recomenda-se, em Portugal, a criação de limitações à livre transmissibilidade de tais ativos, de modo a evitar potenciais comportamentos especulativos.

IV – Quanto à avaliação do desempenho, a generalidade dos instrumentos recomenda que ela seja individual e, na fi xação da remuneração variável, que sejam ponderados os resultados positivos e negativos (Alemanha). Recomen-da-se ainda que a avaliação apenas refl ita os aspetos da performance pessoal e não a evolução favorável do mercado, da conjuntura económica, etc. (Espanha).

Em Itália, Espanha e Portugal, por exemplo, recomenda-se expressamente que os administradores não executivos não recebam qualquer remuneração em função do desempenho.

§ 2.º A transposição da Diretriz CRD IV e o Decreto-Lei n.º 157/2014, de 24-out.

4. Da Lei n.º 28/2009, de 19-jun. ao Aviso n.º 10/2011, de 29-dez.

I – Os últimos 4 a 5 anos têm sido especialmente fecundos no que à política de remuneração dos administradores de entidades bancárias diz respeito.

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Recuemos a 2010, já após a publicação da Lei n.º 28/2009, de 19-jun. e das alterações então introduzidas em matérias de divulgação de políticas de remu-neração dos titulares dos órgãos de administração das instituições fi nanceiras.

A nível interno, merece desde logo referência o já supra mencionado Aviso do Banco de Portugal n.º 1/2010. Aí se vinha prever, no artigo 2.º, que a divulgação da política de remuneração dos administradores deveria incluir informação referente:

(i) ao processo de decisã o utilizado na defi niç ã o da polí tica de remune-raç ã o, em especial a composição e critérios adotados pela (eventual) comissã o de remuneraç ã o;

(ii) aos critérios da fi xação da remuneração variável; (iii) ao modo como a remuneraç ã o se encontrava estruturada de forma

a permitir o alinhamento dos interesses dos administradores com os interesses da sociedade;

(iv) à relação entre a remuneração e a avaliaç ã o do desempenho dos admi-nistradores; e, por fi m,

(v) aos mecanismos de desincentivo à assunç ã o excessiva de riscos e a sua relação com a política remuneratória.

O Aviso especifi cava depois critérios a observar na política remuneratória de administradores executivos e não executivos, consagrando no artigo 4.º um sistema de complain or explain.

II – Os critérios especifi cados no Aviso surgiam depois extensamente desenvolvidos na Carta-circular n.º 2/2010/DSB, de 01-fev.-2010, cujos prin-cípios gerais merecem ser retidos:

I.4. As instituiç õ es devem adoptar uma polí tica de remuneraç ã o consistente com uma gestã o e controlo de riscos efi caz, que evite uma excessiva exposiç ã o ao risco, que evite potenciais confl itos de interesses e que seja coerente com os objectivos, valores e interesses a longo prazo da instituiç ã o fi nanceira, designadamente com as perspectivas de crescimento e rendibilidade sustentá veis e a protecç ã o dos interes-ses dos clientes e dos investidores.I.5. A polí tica de remuneraç ã o deve ser adequada à dimensã o, natureza e comple-xidade da actividade desenvolvida ou a desenvolver pela instituiç ã o e, em especial, no que se refere aos riscos assumidos ou a assumir.I.6. As instituiç õ es devem adoptar uma estrutura clara, transparente e adequada relativamente à defi niç ã o, implementaç ã o e monitorizaç ã o da polí tica de remune-raç ã o, que identifi que, de forma objectiva, os colaboradores envolvidos em cada processo, bem como as respectivas responsabilidades e competê ncias.

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Especialmente relevante é o Ponto IV referente especifi camente à remune-ração dos membros do órgão de administração, executivos e não-executivos:

Membros executivos do órgão de administraçãoIV.1. A remuneraç ã o dos administradores que exerç am funç õ es executivas deve integrar uma componente variá vel, cuja determinaç ã o dependa de uma avaliaç ã o do desempenho, realizada pelos ó rgã os competentes da instituiç ã o, de acordo com crité rios mensurá veis predeterminados, incluindo crité rios nã o fi nanceiros, que considere, para alé m do desempenho individual, o real crescimento da ins-tituiç ã o e a riqueza efectivamente criada para os accionistas, a protecç ã o dos interesses dos clientes e dos investidores, a sua sustentabilidade a longo prazo e os riscos assumidos, bem como o cumprimento das regras aplicá veis à actividade da instituiç ã o.IV.2. As componentes fi xa e variá vel da remuneraç ã o total devem estar adequada-mente equilibradas. A componente fi xa deve representar uma proporç ã o sufi cien-temente elevada da remuneraç ã o total, a fi m de permitir a aplicaç ã o de uma polí -tica plenamente fl exí vel sobre a componente variá vel da remuneraç ã o, incluindo a possibilidade de nã o pagamento de qualquer componente variá vel da remunera-ç ã o. A componente variá vel deve estar sujeita a um limite má ximo.IV.3. Uma parte substancial da componente variá vel da remuneraç ã o deve ser paga em instrumentos fi nanceiros emitidos pela instituiç ã o e cuja valorizaç ã o dependa do desempenho de mé dio e longo prazos da instituiç ã o. Esses instrumentos fi nan-ceiros devem estar sujeitos a uma polí tica de retenç ã o adequada destinada a alinhar os incentivos pelos interesses a longo prazo da instituiç ã o e ser, quando nã o cotados em bolsa, avaliados, para o efeito, pelo seu justo valor.IV.4. Uma parte signifi cativa da remuneraç ã o variá vel deve ser diferida por um perí odo nã o inferior a trê s anos e o seu pagamento deve fi car dependente da con-tinuaç ã o do desempenho positivo da instituiç ã o ao longo desse perí odo.IV.5. A parte da componente variá vel sujeita a diferimento deve ser determinada em funç ã o crescente do seu peso relativo face à componente fi xa da remuneraç ã o.IV.6. Os membros do ó rgã o de administraç ã o nã o devem celebrar contratos, quer com a instituiç ã o, quer com terceiros, que tenham por efeito mitigar o risco ine-rente à variabilidade da remuneraç ã o que lhes for fi xada pela instituiç ã o.IV.7. Até ao termo do seu mandato, devem os membros executivos do ó rgã o de administraç ã o manter as acç õ es da instituiç ã o a que tenham acedido por forç a de esquemas de remuneraç ã o variá vel, até ao limite de duas vezes o valor da remune-raç ã o total anual, com excepç ã o daquelas que necessitem ser alienadas com vista ao pagamento de impostos resultantes do benefí cio dessas mesmas acç õ es.IV.8. Quando a remuneraç ã o variá vel compreender a atribuiç ã o de opç õ es, o iní -cio do perí odo de exercí cio deve ser diferido por um prazo nã o inferior a trê s anos.

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IV.9. Apó s o exercí cio referido no nú mero anterior, os membros executivos do ó rgã o de administraç ã o devem conservar um certo nú mero de acç õ es, até ao fi m do seu mandato, sujeito à necessidade de fi nanciar quaisquer custos relacionados com a aquisiç ã o de acç õ es, sendo que o nú mero de acç õ es a conservar deve ser fi xado.

Membros nã o-executivos do ó rgã o de administraç ã oIV.10. A remuneraç ã o dos membros nã o executivos do ó rgã o de administraç ã o nã o deve incluir nenhuma componente cujo valor dependa do desempenho ou do valor da instituiç ã o.

Indemnizaç õ es em caso de destituiç ã oIV.11.Devem ser estabelecidos os instrumentos jurí dicos adequados para que a compensaç ã o estabelecida para qualquer forma de destituiç ã o sem justa causa de um membro do ó rgã o de administraç ã o nã o seja paga se a destituiç ã o ou cessa-ç ã o por acordo resultar de um inadequado desempenho do membro do ó rgã o de administraç ã o.

III – Nesse mesmo ano, surgiu a Diretriz 2010/76/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24-nov.-2010, conhecida por CRD III.

O texto normativo não podia ser mais claro: a assunção imprudente de riscos no sector bancá rio teve como consequê ncias o colapso de instituiç õ es fi nanceiras e criação de problemas sisté micos de amplitude e consequências imprevisíveis. Pese embora as causas serem múltiplas e variadas, era evidente que certas estru-turas de remuneraç ã o tinham consubstanciado um incentivo a uma assunç ã o de riscos para além do economicamente razoável, promovendo comportamentos lesivos não só das instituições como do próprio sistema fi nanceiro.

Urgia, portanto, adotar medidas de promovessem sãs políticas remunerató-rias nas instituições fi nanceiras que consubstanciassem, desta sorte, incentivos a uma gestão prudente do risco.

IV – A CRD III foi transposta pelo Decreto-Lei n.º 88/2011, de 20-jul. de onde resultaram, entre outras, duas alterações ao RGICSF fundamentais em matéria de remuneração:

(i) Em primeiro lugar, passou a exigir-se expressamente que as institui-ções de crédito com sede em Portugal adotassem polí ticas e prá ticas de remuneraç ã o que promovesse uma “gestã o sã e prudente dos riscos” [artigo 14.º/1 i)], devendo tais políticas constar dos “dispositivos só lidos em maté ria de governo da sociedade”, nos termos do artigo 17.º/2 c), tam-bém estes exigidos no diploma de transposição.

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(ii) Em segundo lugar, passou a permitir-se ao Banco de Portugal que exigisse, como medida corretiva, a limitação da remuneraç ã o variá vel, sempre que tal remuneraç ã o nã o se mostrasse adequada à “manutenç ã o de uma base só lida de fundos pró prios” da instituição em causa [artigo 116.º-C/2 f)].

V – A base normativa de Direito europeu (Diretriz 2010/76/UE) e o regime interno de transposição (Decreto-Lei n.º 88/2011) foram sendo alvos de desenvolvimentos infra-legais.

A nível europeu, salienta-se as Guidelines on Remuneration Polices and Pratices (2010), emitidas pelo Committee of European Banking Supervisors (CEBS), em particular o ponto 2., referente ao 2. Governance of remuneration.

Tenha-se ainda presente os Pillar 3 disclosure requirements for remuneration (2011), divulgado pelo Comité de Basileia.

Entre nós, o Aviso do Banco de Portugal n.º 10/2011, de 29-dez., que revo-gou o Aviso n.º 1/2010, veio densifi car a matéria de remuneração dos adminis-tradores, em particular nos artigos 8.º a 10.º:

Artigo 8.ºRemuneraç ã o dos membros executivos do ó rgã o de administraç ã o

1 – A remuneraç ã o dos membros executivos do ó rgã o de administraç ã o deve integrar uma componente variá vel, com fi xaç ã o de um limite má ximo, cuja deter-minaç ã o dependa de uma avaliaç ã o do desempenho, realizada pelos ó rgã os com-petentes da instituiç ã o, de acordo com crité rios mensurá veis predeterminados, incluindo crité rios nã o fi nanceiros, que considerem, para alé m do desempenho individual, o real crescimento da instituiç ã o e a riqueza efectivamente criada para os accionistas, a protecç ã o dos interesses dos clientes e dos investidores, a sua sus-tentabilidade a longo prazo e a extensã o dos riscos assumidos, bem como o cum-primento das regras aplicá veis à actividade da instituiç ã o.

2 – Até ao termo do seu mandato, devem os membros executivos do ó rgã o de administraç ã o manter as acç õ es da instituiç ã o a que tenham acedido por forç a de esquemas de remuneraç ã o variá vel, até ao limite mí nimo de duas vezes o valor da remuneraç ã o total anual, com excepç ã o daquelas que necessitem de ser aliena-das com vista ao pagamento de impostos resultantes do benefí cio dessas mesmas acç õ es.

3 – Quando a remuneraç ã o variá vel compreender a atribuiç ã o de opç õ es, o iní cio do perí odo de exercí cio deve ser diferido por um prazo nã o inferior a trê s anos.

4 – O quadro plurianual a que se refere a alí nea h) do ponto 24 do Anexo ao Decreto-Lei no 104/2007, de 3 de Abril, na redacç ã o introduzida pelo Decreto-

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-Lei no 88/2011, de 20 de Julho, para efeitos de avaliaç ã o de desempenho, deve ser composto por um perí odo de trê s a cinco anos.

Artigo 9.ºRemuneraç ã o dos membros nã o executivos do ó rgã o de administraç ã o

e dos membros dos ó rgã os de fi scalizaç ã o

A remuneraç ã o dos membros nã o executivos do ó rgã o de administraç ã o e dos membros dos ó rgã os de fi scalizaç ã o nã o deve incluir nenhuma componente cujo valor dependa do desempenho ou do valor da instituiç ã o.

Artigo 10.ºIndemnizaç õ es em caso de destituiç ã o

As instituiç õ es devem implementar os instrumentos jurí dicos adequados para que nã o seja paga qualquer compensaç ã o ou indemnizaç ã o, incluindo pagamentos relacionados com a duraç ã o de um perí odo de pré -aviso ou clá usula de nã o con-corrê ncia, nos casos em que a destituiç ã o do membro do ó rgã o de administraç ã o, ou a resoluç ã o do seu contrato por acordo, resultar de um inadequado desempe-nho das suas funç õ es.

A continuidade com as orientações anteriores não surpreende.

5. A política de remuneração da Diretriz n.º 2013/36/UE e a sua transposição para a ordem jurídica interna

I – A evolução seguinte no Direito europeu foi a adopção da Diretriz 2013/36/UE do Parlamento e do Conselho, de 26-jun.-2013, conhecida como CRD IV. Aí se prevê, novamente, a necessidade de estabelecer sãs políticas de remuneração, “compatí veis com a apetê ncia pelo risco, os valores e os interesses a longo prazo da instituiç ã o de cré dito ou empresa de investimento” 7.

Tais políticas de remuneração surgem associadas, desde logo, à função de fi scalização do órgão de administração8. É o que decorre dos considerandos (56) e (57), em particular deste último que atribui aos administradores não executi-vos o encargo de “analisar a conceção e aplicação da política de remunerações”:

7 Considerando (63) da CRD IV.8 Para um enquadramento dogmático completo, cfr. José Ferreira Gomes, Da administração à fi scalização das sociedades cit., 148 e ss., com abundantes referências.

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(57) Os membros não executivos do órgão de administração de uma instituição deverão ter o papel de criticar, de forma construtiva, a estratégia da instituição, contri buindo assim para o seu desenvolvimento, analisar o desempenho do órgão de administração na consecução dos objetivos acordados, confi rmar que as infor-mações fi nanceiras são exatas e que os controlos fi nanceiros e os sistemas de gestão de risco são sólidos e defensáveis, analisar a conceção e aplicação da política de remunerações da instituição e pronunciar-se objetivamente sobre recursos, nomea-ções e normas de conduta.

II – Com tal enquadramento, não é de estranhar que o regime fundamen-tal sobre a remuneração surja nos arts. 92.º a 95.º ss., em sede de governação da instituição (artigos 88.º e ss.):

Artigo 88.º Sistemas de governoArtigo 89.º Comunicação discriminada por paísArtigo 90.º Divulgação pública da rendibilidade de ativosArtigo 91.º Órgão de administraçãoArtigo 92.º Políticas de remuneraçãoArtigo 93.º Instituiç õ es que benefi ciam de intervenç ã o do EstadoArtigo 94.º Elementos variá veis da remuneraç ã oArtigo 95.º Comissão de remunerações

III – No que ao comité de remunerações diz respeito, dispõe o artigo 95.º:

Artigo 95.ºComissão de remunerações

1 – As autoridades competentes asseguram que as instituições signifi cativas em termos de dimensão, organização interna e natureza, âmbito e complexidade de atividades criem uma comissão de remunerações. A comissão de remunerações deve ser constituída de forma que lhe permita formular juízos informados e inde-pendentes sobre as políticas e práticas de remuneração e sobre os incentivos criados para efeitos de gestão de riscos, de capital e de liquidez.

2 – As autoridades competentes asseguram que a comissão de remunerações seja responsável pela preparação das decisões relativas à remuneração, incluindo as decisões com implicações em termos de riscos e gestão dos riscos da instituição em causa que devam ser tomadas pelo órgão de administração. O presidente e os membros da comissão de remunerações devem ser membros do órgão de admi-nistração que não desempenham funções executivas na instituição em causa. Se a representação dos trabalhadores no órgão de administração estiver prevista no direito nacional, a comissão de remunerações deve incluir um ou mais represen-

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tantes dos trabalhadores. Ao preparar as referidas decisões, a comissão de remune-rações deve ter em conta os interesses a longo prazo dos acionistas, dos investidores e de outros interessados na instituição, bem como o interesse público.

IV – O CRD IV foi transposta pelo Decreto-Lei n.º 157/2014, que man-teve o enquadramento normativo oferecido pela diretriz. Em concreto, foi adi-tado ao RGICSF o Capí tulo II-A, com a epí grafe «Governo», correspondente aos artigos 115.º-A a 115.º-I.

A simples comparação do regime aí estauído com os arts. 88.º e ss. da CRD IV revela uma acentuada proximidade normativa e textual:

Artigo 115.º-A Sistemas de governoArtigo 115.º-B Comité de nomeaçõesArtigo 115.º-C Política de remuneração Artigo 115.º-D Remunerações em instituições de crédito que benefi ciem de

apoio fi nanceiro público extraordinárioArtigo 115.º-E Componente variável da remuneraçãoArtigo 115.º-F Rácio entre componentes fi xa e variável da remuneraçãoArtigo 115.º-G Comunicação e divulgação da política de remuneraçãoArtigo 115.º-H Comité de remuneraçõesArtigo 115.º-I Dever de divulgação no sítio na Internet

V – O RGICSF conheceu, após o Decreto-Lei n.º 157/2014 e até a dezem-bro de 2015, diversas alterações. Em concreto: a Lei n.º 16/2015, de 24-fev., a Lei n.º 23-A/2015, de 26-mar., o Decreto-Lei n.º 89/2015, de 29-mai., a Lei n.º 66/2015, de 06-jul., o Decreto-Lei n.º 140/2015, de 31-ju. e a Lei n.º 118/2015, de 31-ag.

Nenhum dos diplomas alterou, contudo, a disciplina referente à remuneração.

§ 3.º O comité de remunerações

6. Dever de criação

I – Nos termos do artigo 399.º/1 CSC, a existência de uma comissão de remunerações é facultativa: a assembleia geral pode, querendo, criar uma comis-são para fi xar a remuneração dos administradores9.

9 António Menezes Cordeiro, CSC Anotado, 2.ª ed., 2011, 399.º e Jorge Coutinho de Abreu, CSC em comentário, VI, 2013, 351 e ss.

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Não assim nos termos do artigo 115.º-H/1, no qual se prevê que “as ins-tituiç õ es de cré dito signifi cativas em termos de dimensã o, de organizaç ã o interna e da natureza, â mbito e complexidade das respetivas atividades devem criar um comité de remuneraç õ es”.

II – O dever de criação aí previsto deve ser interpretado em conformidade com o artigo 95.º/1 CRD IV, nos termos do qual as autoridades competentes “asseguram” que as instituições em causa criam uma comissão de remunerações.

Trata-se, portanto, de uma injuntividade normativa: algumas instituições de crédito (as signifi cativas) estão juridicamente obrigadas a ter um comité de remunerações; as outras (não signifi cativas), tê-lo-ão ou não, consoante a liber electio da instituição em causa.

III – Tratando-se de uma obrigação legal de Direito interno, seria de espe-rar uma maior concretização normativa das entidades que se encontram obri-gadas a adotar um comité de remunerações.

A lei, porém, basta-se com a reprodução do texto comunitário, densifi -cando o que seja uma “instituição signifi cativa” por referência a critérios, tão abertos quanto imprecisos, de dimensão, organização interna, natureza, âmbito e complexidade de atividades.

O resultado aplicativo mais pacífi co apontará no sentido de fazer coincidir as instituições signifi cativas, para efeitos do artigo 115.º-H/1, com as signifi cant supervised entities, sujeitas a supervisão direta do Banco Central Europeu (BCE).

Neste caso, e tendo em conta a Lista de 30-set.-2015, em causa estariam o BPI, a CGD, o BCP e o Novo Banco10.

IV – No entanto, tal entendimento carece da demonstração de um pressu-posto que não temos por certo: o de que existe um único conceito operativo de instituição signifi cativa, independentemente dos efeitos aplicativos em presença.

Com efeito, é sempre em razão do escopo aplicativo da norma que o intér-prete-aplicador determina o critério do seu preenchimento. De outra sorte, estar-se-ia a ignorar que o Direito é jurisprudência problemática e que as classifi ca-ções conceptuais – se necessárias para conferir sistematicidade ao conhecimento – não podem redundar em conceptualismos aprioristas.

Temos, portanto, que para aferir normativamente o que seja uma institui-ção signifi cativa – ou para concretizar os critérios da sua relevância (dimen-

10 Cfr. https://www.bankingsupervision.europa.eu/ecb/pub/pdf/list_sse_lsi_150930.en.pdf?9ae8cd8fe88af4aff 22af7218fec6463

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são, organização interna, etc.) – o intérprete-aplicador não poderá esquecer a dimensão funcional ou o escopo concreto que norma visa assegurar.

Neste contexto, é possível sustentar que a relevância de uma instituição (ou a sua signifi cância, parafraseando a lei) é distinta consoante em causa esteja a determinação de quais as entidades sujeitas a supervisão direta do BCE, ou quando em causa esteja saber que instituições de crédito devem adoptar um comité de remunerações.

Neste sentido, podemos chegar à conclusão que algumas instituições de crédito são signifi cativas para efeitos do artigo 115.º-H/1, não o sendo, todavia, para efeitos de supervisão direta do BCE11.

V – Independentemente do que se entenda, existe sempre (quanto a algu-mas entidades) um dever de criação de um comité de remunerações.

Tal dever está diretamente associado a uma adequada organização interna da instituição fi nanceira12. Todavia, e na medida em que a existência de um comité de remunerações e uma adequada implementação de uma política de remunerações tem relevância a nível sistémico, caberá sempre ao BdP, que-rendo, emitir uma determinação específi ca que obrigue determinada instituição a criar o comité de remunerações (artigo 116.º/1 c) RGICSF), caso entenda que tal instituição é signifi cativa, para estes efeitos.

VI – Aferido o dever de criação do comité de remunerações, cumpre saber a quem é, tal dever, organicamente imputável.

A lei não esclarece. Afi guram-se possíveis duas teses:

11 Mutatis mutandis, algo de semelhante ocorre quanto à plurifuncionalidade da imputação de direitos de voto, à luz do artigo 20.º CVM: em razão do escopo da imputação, é possível obter concretizações normativas diversas do critério de imputação. Cfr., com desenvolvimento, Paula Costa e Silva, “A imputação de direitos de voto na oferta pública de aquisição”, Direito dos Valores Mobiliários, VII, 2007, 403-441, “Organismos de investimento coletivo e imputação de direitos de voto”, CVM 26 (2007) 70-81, “O conceito de accionista e o sistema de record date”, Direito dos Valores Mobiliário, VIII, 2008, 447-460; João Mattamouros Resende, “A imputação de direitos de voto no mercado de capitais”, CVM 26 (2007), 59-69, A imputação de direitos de voto no mercado de capitais, UCP, 2010, passim ; João Soares da Silva, “Algumas observações em torno da tripla funcionalidade da técnica de imputação de votos no Código dos Valores Mobiliários”, CVM 26 (2007), 47-58 ; João Cunha Vaz, A OPA e o controlo societário – A regra da não frustração, 2013, 316 e ss. Com maiores reservas, se bem o lemos, Hugo Moredo dos Santos, Transparência, OPA obrigatória e imputação de direitos de voto, 2011, 493 e ss.12 José Ferreira Gomes, Da administração à fi scalização das sociedades cit., 239 e ss. 341 e ss. 436 e ss., por exemplo.

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(i) Ou entendemos que o comité de remunerações é em tudo idêntico à comissão de remunerações e, como tal, a competência para a sua criação é da assembleia geral (nos termos do artigo 399.º CSC) ou do conselho geral e de supervisão (artigos 429.º e 444.º/1 CSC);

(ii) Ou entendemos, mercê das regras sobre a sua composição e com-petências, que o comité é uma emanação do conselho de adminis-tração (artigo 407.º CSC), aproximando-se, assim, de uma comissão especializada.

A eleição exige, porém, uma ponderação mais ampla do regime do comité de remunerações.

7. Composição

I – Nos termos do artigo 115.º-H/1 RGICSF, o comité de remunerações é composto “por membros do órgão de administração que não desempenhem funções executivas ou por membros do órgão de fi scalização”.

A composição é surpreendente, se tivermos em conta a evolução das reco-mendações sobre esta matéria. Já não se atendermos aos circunstancialismos normativos da CRD IV.

II – Na redação originária do artigo 399.º CSC, só os sócios podiam fazer parte comissão de remunerações que era, na letra da lei, “uma comissão de acio-nistas”. Admitia-se, contudo, que a comissão fosse integrada por não-sócios, se para tanto existisse uma deliberação unânime dos acionistas13.

Com a Reforma 2006, o preceito passou a conhecer a atual redação. A substituição de uma “comissão de acionistas” pela locução “comissão por aquela nomeada” (a assembleia geral), visou justamente permitir que a comissão de remunerações fosse integrada por não acionistas, sem que para tal se exigisse uma deliberação unânime14.

III – As Guidelines CEBS (2010), por referência à CRD III, vieram reco-mendar a composição do comité por não-executivos e independentes, sendo que pelo menos um dos membros deveria ser especialista em controlo do risco (2.2.2.).

13 Ac. RLx 18-dez.-2002 (Salazar Casanova), Proc. n.º 0079688.14 Em articulação não exatamente pacífi ca com o artigo 399.º/1, a Reforma 2006 veio ainda prever que o conselho geral e de supervisão podia criar uma comissão para a “fi xação da remuneração dos administradores” (444.º/1).

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A própria CRD IV sublinha que a “(...) comissã o de remuneraç õ es deve ser constituida de forma que lhe permita formular juizos informados e independentes sobre as políticas e prá ticas de remuneraç ã o e sobre os incentivos criados para efeitos de gestã o de riscos, de capital e de liquidez.” (artigo 95.º/1).

A tendência internacional é reforçar a independência dos membros da comissão de remunerações, expressa no que se afi gura ser um requisito mínio: ser um não-executivo.

Entre nós, autores como Paulo Câmara sublinhavam a importância de pelo menos algum dos membros da comissão integrar a administração da sociedade, enquanto membro não-executivo, a fi m de garantir “uma sufi ciente, mas não excessiva, ligação à gestão executiva”15. Tal nota expressa netamente o que se espe-rava da composição de uma comissão de remunerações.

IV – Chegados que somos a 2014, o legislador, ao transpor a CRD IV, veio fi xar que os membros do comité são administradores não executivos ou membros do órgão de fi scalização.

Que sentido dar ao preceito? A composição do comité de remunerações está intimamente relacionada

com o sentido e alcance das suas funções. Também aqui vale o antigo aforismo, próprio de outras ciências, segundo o qual a função faz o órgão. A composição do comité deverá ser aquela que garanta a máxima optimização das funções que lhe são atribuídas. E tais funções são claras na lei: “formular juízos informados e independentes sobre a política e práticas de remuneração e sobre os incentivos criados para efeitos de gestão de riscos, de capital e de liquidez” (arts. 115.º-H/2 RGICSF e 95.º/1 CRD IV).

A formulação de juízos informados e, sobretudo, independentes é melhor ser-vida se absolutamente independentes forem os membros do comité de remune-rações. Este critério deve presidir ao processo hermenêutico.

V – Temos, portanto, que o resultado interpretativo do artigo 115.º-H/1 não pode ser o de uma composição exclusiva do comité por administradores não executivos ou membros do órgão de fi scalização.

A lei não proíbe, portanto, a presença de outros sujeitos no comité de remunerações. Estabelece, outrossim, que sendo o comité composto (também) por membros de órgãos sociais, estes só podem ser ou membros do órgão de fi scalização ou administradores não executivos.

15 Paulo Câmara, “A comissão de remunerações” cit., 46.

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A preocupação do legislador europeu foi, sobretudo, vedar a presença de administradores executivos no comité. A presença de administradores é, por-tanto, tolerada, desde que tais administradores não exerçam funções executivas na instituição em causa.

E, neste contexto, a presença de algum administrador (não executivo) pode até ser desejável, na medida em que garante uma ligação à gestão da instituição, com vantagens para o exercício prático das funções atribuídas ao comité.

VI – Nas franjas da interpretação preconizada, encontram-se as situações em que o comité seja composto exclusivamente (i) por independentes, que não sejam nem administradores não-executivos nem membros do órgão de fi sca-lização; ou (ii) pelos sujeitos previstos no artigo 115.º-H/1, em particular, por administradores não executivos.

O escopo do artigo 115.º-H não é, reitere-se, garantir um mínimo de par-ticipação de administradores ou membros do órgão de fi scalização no comité de remunerações; mas antes assegurar que, caso participem na composição do comité membros de órgãos sociais16, eles serão sempre administradores não executivos ou membros do órgão de fi scalização.

Inclinamo-nos, assim, para sustentar que uma composição do comité sem a participação de qualquer administrador ou membro do órgão de fi scalização, não se encontra vedada pelo artigo 115.º-H.

Pode objectar-se, todavia, que a CRD IV, ao associar a política de remu-nerações à função fi scalizadora do conselho de administração, impõe uma com-posição do comité com a presença (ainda que não exclusiva) de administradores não executivos; de onde, um comité composto sem a presença de qualquer administrador seria contrário à lei.

Cremos, todavia, que não devemos ir tão longe. Sem dúvida que a CRD IV quis reforçar as funções de fi scalização no governance das instituições fi nan-ceiras, associando a tal função a criação e monitorização de uma sã política de remunerações. Mas daí a ter criado uma reserva de competências para o órgão de administração sobre esta matéria, impondo uma presença, ainda que resi-dual, de administradores não executivos na composição do comité de remune-rações, é um passo que entendemos não ter sufi ciente fundamentação.

Retenha-se que a própria CRD IV chama a atenção, no considerando (56), por exemplo, para o facto de em muitos Estados-Membros as funções de fi sca-lização do órgão de administração serem, na verdade, exercidas por um outro órgão da sociedade.

16 Abstraindo aqui da questão de saber se o comité de remunerações pode ser qualifi cado como órgão social.

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VII – Questão diversa é saber se o artigo 115.º-H permite uma composição do comité de remunerações apenas integrada por administradores não executi-vos, por exemplo, como apertis verbis parece resultar da lei.

Nesta hipótese, e tomando por referência o modelo tradicional português17, o comité de remunerações funcionaria materialmente como uma comissão especializada do conselho de administração. Conheceria, eventualmente, um título diverso de constituição que não uma delegação de poderes (artigo 407.º CSC), teria um conteúdo funcional autónomo e não se aplicaria a regra da não exclusão de competências dos demais administradores (artigo 407.º/8 CSC). No entanto, materialmente, tudo se passaria no seio do conselho de administração.

Temos reservas quanto a esta possibilidade. Pese embora a infeliz redação do preceito, deve prevalecer o sentido nor-

mativo de permita a optimização das funções atribuídas ao comité de remune-rações que, em nosso entender, queda prejudicada por uma composição exclu-siva do comité por administradores, ainda que não executivos.

Se bem vemos, e tendo em conta os aspetos sistémicos associados a uma boa prática remuneratória, o legislador quis que o comité de remunerações fosse composto por quem se encontrasse em condições de formular “juízos informados e independentes sobre a política e práticas de remuneração” da instituição em causa.

Tolerou, é certo, a presença de administradores no comité, exigindo, ainda assim, que fossem não executivos. Não cremos, todavia, que tolere uma com-posição exclusiva do comité por administradores (mesmo que sem funções executivas).

VIII – Os dados ponderados parecem apontar no sentido de a competência para a criação de um comité de remunerações ser da assembleia geral, indepen-dentemente da natureza do comité face à comissão de remunerações prevista no artigo 399.º/1 CSC.

8. Funções

I – Vimos já que ao comité de remunerações cabe “formular juízos informa-dos e independentes sobre a política e práticas de remuneração e sobre os incentivos criados para efeitos de gestão de riscos, de capital e de liquidez” (artigo 115.º-H/2).

17 Seguindo a terminologia de José Ferreira Gomes, Da administração à fi scalização das sociedades cit., 151-155.

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Tais juízos informados e independentes materializam-se, depois na “preparação das decisões relativas à remuneração, incluindo as decisões com implicações em termos de riscos e gestão dos riscos da instituição de crédito em causa” (artigo 115.º-H/3). Tais decisões não são tomadas pelo comité, mas sim “pelo órgão social competente”.

O comité de remunerações tem, portanto, funções consultivas e preparató-rias das decisões que serão tomadas por outros órgãos sociais. Qualquer capaci-dade decisória exigirá uma delegação do órgão competente.

II – Excluida, pela lei, qualquer competência deliberativa própria, há que reconhecer à “preparação de decisões”, prevista no artigo 115.º-H/3, uma acen-tuada plasticidade normativa.

Cabe a cada instituição de crédito concretizar, face ao modelo de governo adotado, em que consiste tal preparação. Os códigos de bom governo e as reco-mendações das entidades de supervisão jogam, aqui, um papel determinante.

Preparar uma decisão pode incluir desde a elaboração da proposta, à emis-são de parecer vinculativo, à elaboração de estudos que suportem uma proposta não apresentada pelo comité. Cada instituição deve procurar aferir as melhores práticas e, sobretudo, defi nir quais os prodecimentos que melhor garantem uma gestão sã e prudente do risco e dos potenciais confl itos de interesses.

III – No artigo 115.º-H/4 surge prevista a norma de conduta a que se devem ater os membros do comité de remunerações, no exercício das suas funções (consultivas e preparatórias das decisões de outros órgãos, sublinhe-se).

No âmbito da sua atividade – reza o preceito – o “comité de remunerações deve observar os interesses de longo prazo dos accionistas, dos investidores e de outros interessados na instituição de crédito, bem como o interesse público”.

IV – A proximidade com a redação do artigo 64.º/1 b) CSC é manifesta e perplexante. Por que razão aproxima, o legislador, do padrão normativo dos adminis-tradores a conduta dos membros do comité de remunerações, cujas atribuições nada têm que ver com a administração da sociedade? Pode um membro do comité de remunerações estar sujeito ao mesmo padrão normativo de conduta de um administrador? Quais as consequências em sede de responsabilidade?

Mas mais dúvidas colocam as dissemelhanças: porque razão não manda o legis-lador atender ao interesse da sociedade, mas já obriga a ponderar o interesse de longo prazo dos sócios? A sustentabilidade da própria instituição é alheia a uma política de remunerações? E como conjugar tal teia de interesses com o interesse público?

Numa comissão cuja razão da existência é, justamente, garantir – em polí-tica remuneratória – o alinhamento do interesse dos administradores com o interesse da sociedade, o legislador teve por bem introduzir um fl agrante con-

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fl ito de interesses que se revela uma verdadeira “pedra de tropeço” no processo aplicativo.

V – Cabe ao intérprete-aplicador sublimar o enredo legislativo que em má hora o legislador criou, renunciando a um esforço de concretização analítica do preceito e rejeitando uma equiparação entre a conduta normativa exigida aos administradores e a que é esperada dos membros do comité de remunerações (que o sistema, no seu todo, não permite).

O que sobra, então, para o artigo 115.º-H/4? Pouco mais que uma norma de enquadramento, sem conteúdo normativo autónomo: a conduta normativa-mente exigível dos membros do comité resultará da conjugação de outros pre-ceitos, em especial dos que densifi cam as exigências requeridas a uma política de remuneraçãoo das instituições de crédito.

§ 4.º Tanto para tão pouco?

I – Numa fi gura tão central e relevante quanto o comité de remunerações, o Decreto-Lei n.º 157/2014 fi cou muito aquém do desejável e do dogmati-camente expectável. À guisa de conclusão, podem sumariar-se as principais fragilidades de regime, para as quais fomos chamando a atenção:

(i) Indeterminação de quais as instituições obrigadas a adotar um comité de remu-nerações. A defi nição do que seja uma instituição signifi cativa, para efei-tos do disposto no artigo 115.º-H/1, por referência àquelas que estão sujeitas a supervisão direta do BCE, parece-nos excessivamente redu-tor e parte de um pressuposto que não está demonstrado: a existência de um único conceito operativo de instituição signifi cativa, independen-temente dos efeitos aplicativos em presença.

(ii) Incerteza quanto à composição. Mau grado a aparente assertividade da lei, a concreta composição do comité desejada, por um lado, e proibida, por outro, nos termos do artigo 115.º-H/1, está longe de ser clara.

(iii) Incerteza quanto à criação e conteúdo funcional. Também não é claro, no RGICSF, de que órgão emana o comité de remunerações e qual o seu concreto conteúdo funcional. Em concreto, há uma larga margem de indefi nição quanto ao que seja a preparação de decisões que cabem a outros atores sociais.

II – Não se invoque, em justifi cação, que as insufi ciências do regime resul-tam do próprio artigo 95.º CRD IV.

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A transposição de uma diretriz para a ordem jurídica interna não pode ser entendida com uma mera reprodução acrítica do texto normativo europeu18. Exige-se uma verdadeira recriação do regime, à luz da tradição dogmática nacio-nal (que o legislador histórico não pode ignorar19) e das concretas especifi cida-des de cada ordem jurídica.

Tal esforço não foi bem sucedido. As sucessivas alterações ao RGICSF, posteriores ao Decreto-Lei n.º 157/2014 – seis em menos de um ano!, duas no mesmo mês! –, tão pouco emendaram a mão.

Neste momento, não se pedem (nem desejam) mais alterações às fontes. Agora é o tempo da praxis cinzelar o regime, da dogmática superar as insufi -ciências normativas e de se consolidarem boas práticas de governo das institui-ções que possam ajudar a defi nir, com maior concretude, o papel do comité de remunerações no quadro delicado das políticas de remuneração das instituições bancárias.

18 Sobre a transposição de diretrizes, veja-se António Pinto Pereira, A diretiva comunitária, 2014, 155 e ss.19 Com desenvolvimento, Christian Baldus, “Gut meinen, gut verstehen? – Historischer Umgang mit historischen Intentionen”, Gesetzgeber und Rechtsanwendung (Christian Baldus/Frank Theisen/Friederike Vogel), 2013, 5-28.

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As pensões de reforma e a segurança social dos administradores e doutros membros dos órgãos das sociedades (artigo 402.º do Código das Sociedades Comerciais)

PROF. DOUTOR BERNARDO DA GAMA LOBO XAVIER*

Sumário: 1. Introdução. 2. As interpelações da doutrina e da jurisprudência. 3.O estatuto dos administradores. Segurança social dos administradores. 4. Afl oramento de princípio geral ou excepção? O artigo 402.º aplicar-se-á às sociedades que não revistam a forma de SA? Aplicar-se-á aos outros membros dos órgãos sociais? 5. A dualidade dos esquemas previstos: i)”regime de reforma” especial (n.º 1); ii) “complementos” ou “pensões complementares” (n.º 2). 6. A competência dos estatutos (n.º 1) e da AG (n.º 2). O regulamento (n.º 4). 7. Articulação com o regime geral da segurança social e a cumulação de pensões. 8. Os limites das pensões (segunda parte do n.º 2). 9. A constituição e aquisição do direito. Condicio-namento da reforma. 10. A cessação da sociedade e as pensões (n.º 3). 11. As deliberações em matéria de pensões contrárias à lei. As prestações já liquidadas. 12. Prestações para cobertura de outros riscos sociais dos administradores. A questão da pensão de sobrevivência. 13. Sugestões para a revisão do artigo 402.º do CSC.

1. Introdução

O que o CSC, desde 1986, dispõe quanto à segurança social dos membros dos órgãos sociais1 encontra-se no artigo 402.º2, que é uma norma extrema-

* Professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa1 Na legislação de Segurança Social “membros dos órgãos estatutários das pessoas colectivas”, como designação mais geral. 2 Quando não houver outra indicação, as referências a artigos neste texto reportam-se ao CSC.

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mente incompleta porque refere apenas os administradores3 e está prevista tão--somente para as sociedades anónimas e relativamente a alguns riscos sociais4. De resto, tal norma, que se integra no título IV (Sociedades anónimas), capítulo VI (administração, fi scalização e secretário da sociedade), secção I (Conselho de administração), tem levantado as maiores dúvidas de interpretação e apreciável debate na doutrina.

O preceito, sob a epígrafe “reforma dos administradores”, tem a seguinte redacção:

1 – O contrato de sociedade pode estabelecer um regime de reforma por velhice ou inva-lidez dos administradores, a cargo da sociedade.

2 – É permitido à sociedade atribuir aos administradores complementos de pensões de reforma, contanto que não seja excedida a remuneração em cada momento percebida por um administrador efectivo ou, havendo remunerações diferentes, a maior delas.

3 – O direito dos administradores a pensões de reforma ou complementares cessa no momento em que a sociedade se extinguir, podendo, no entanto, esta realizar à sua custa contratos de seguro contra este risco, no interesse dos benefi ciários.

4 – O regulamento de execução do disposto nos números anteriores deve ser aprovado pela assembleia geral.

A leitura directa, dada pela letra e sentido imediatos da norma, permite entender prima facie o seguinte:

O CSC reconhece à sociedade a possibilidade de providenciar para cobrir dois riscos típicos diferidos dos administradores (invalidez e velhice), por dois mecanismos em alternativa: a) “regime” especial de pensão de reforma; b) “complementos” de pensões, que acrescem às pensões recebidas a outro título (caracteristicamente as relativas aos outros regimes de segurança social). Nos termos do n.º 1, o regime, a cargo da sociedade, é estabelecido no contrato social, não se dizendo com que desenvolvimento (ainda que se deduza que tal deve ser previsto sem pormenorizações, pois há que deixar margem para uma regulamentação da assembleia geral prevista no n.º 4). Quanto aos complemen-tos (n.º 2), o CSC não refere a necessidade de previsão em contrato social, dele

3 No artigo 433.º, 3, relativo a sociedades com estrutura orgânica dualista, prevê-se igualmente a reforma para os administradores. Faltam os membros de conselhos gerais, da mesa da assembleia geral, membros a título individual de órgão de fi scalização (numa palavra, membros dos órgãos estatutários das pessoas colectivas). Referimos, sob a designação “administradores”, o âmbito pes-soal e designação geralmente adoptados (cfr. nota seguinte).4 Nas sociedades por quotas – não contempladas na norma – a questão coloca-se quanto aos “gerentes”. No que se refere aos riscos sociais, na ordem prática, como veremos, releva apenas a não previsão da sobrevivência (risco morte).

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As pensões de reforma e a segurança social dos administradores e doutros membros… 539

não decorrendo constituir matéria estatutária. A regulamentação do regime pensionístico e dos complementos é matéria da assembleia geral (n.º 4). Quanto a montantes, a lei não prevê relativamente ao “regime” quaisquer limites (n.º 1); já quanto aos complementos estabelece que não deve ser excedida a maior remuneração em cada momento percebida por administrador efectivo (n.º 2). As pensões de reforma e as pensões complementares cessam no momento em que a sociedade se extinguir (n.º 3). A sociedade pode realizar contratos de seguros contra esse risco no interesse dos benefi ciários (parte fi nal do n.º 3).

Alguma doutrina tem considerado a norma lacunosa e pouco clara, ainda que nem sempre com razão, pois quanto a alguns aspectos as dúvidas se devem ao desconhecimento das regras e técnicas de segurança social. Mas é um facto que o artigo 402.º deixa sem resposta imediata muitas das dúvidas que possam ser levantadas: O que se passa quanto a outros riscos cobertos pela segurança social (doença, acidente, desemprego, morte)? O que acontece quanto à segu-rança social dos outros membros dos corpos sociais, ou aos gestores de outros tipos societários? Como se articulam as pensões previstas no artigo 402,.º, 1 e 2, com as conferidas pela segurança social? Quais devem ser os sistemas de fi nanciamento e de transparência de encargos assumidos pela sociedade? Como pode haver praticabilidade no seguro relativo à extinção da sociedade (fi nal do artigo 402.º, 3), quando esta extinção depende da vontade do tomador? E muitas outras questões.

2. As interpelações da doutrina e a jurisprudência

É sabido que, ao abrigo do artigo 402.º, se têm instituído nas empresas de certa dimensão benefícios na reforma dos administradores e que, na maior parte dos casos, as práticas e normas estabelecidas funcionam sem grandes problemas. A verdade é que, de quando em vez, por situações de crise fi nanceira ou por um mudar de mãos das próprias sociedades, surgem situações contenciosas e em que ex-administradores, que tinham confi ado em posições confortáveis, são confrontados com uma denegação do que julgavam ser seu bom direito resul-tante de compromissos livremente assumidos pela sociedade5. Não surpreen-

5 Referimos o normal das situações e não casos recentes conhecidos que escandalizam a comu-nidade pelo excesso de regalias [certas situações de pensões “milionárias”, a que alude Paulo Olavo Cunha, “Reforma e pensão de administradores”, em III Congresso – Direito das Sociedades em Revista (2014), 335, texto que nos é amavelmente dedicado]. Claro que tais excessos estão a ser combatidos, e devem sê-lo por forma efi caz, nos termos gerais da regulamentação de contrapar-tidas e estatuto remuneratório dos administradores.

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dendo que se tenham colocado dúvidas na doutrina e na jurisprudência quanto ao carácter e alcance dos preceitos, ainda assim merece reparo o excesso e pertinácia com que se pretende atacar práticas instituídas pacífi ca e duradoura-mente nas empresa, levantando difi culdades formais e estabelecendo limitações e nulidades que nada têm a ver com a letra da lei e, no nosso entender, com o seu espírito. Estará sempre por saber até que ponto abusos conhecidos com geral escândalo nas compensações dadas aos titulares dos órgãos de governo societário, sobretudo quando colocados a par com situações de emergência nas empresas, têm inspirado soluções jurisprudenciais denegadoras do direito a pensões instituídas com invocação do artigo 402.º: de qualquer modo alguém disse com razão que “o Direito é sempre maior que o contencioso”. As ques-tões principais postas pela jurisprudência e doutrina têm sido equacionadas rela-tivamente ao detalhe da previsão estatutária, limites de montante e articulação a este propósito com as pensões pagas6. Mas a propósito se desprendem outras questões, ainda assim importantes.

Propomo-nos examinar o assunto acentuando um aspecto altamente rele-vante, muito descurado e que se nos afi gura central: a segurança social dos administradores, que é um direito fundamental (artigo 63.º da Constituição)7. Voltaremos depois ao domínio societário, no plano do estatuto dos gestores, ainda que valorizando a ideia de liberdade e autonomia, como princípio geral a ter antes de mais em conta. Antecipando um pouco, consideramos a reforma pela sociedade anónima referida no artigo 402.º como dentro de um sistema especial de cobertura de certas pessoas no plano da Segurança Social, mas que faz parte do estatuto dos administradores, comparticipando de natureza análoga. Depois de tratarmos das questões de enquadramento, que permitem situar o

6 Poderá ver-se sucintamente, em termos muito exactos, a descrição do estado da arte em P. Olavo Cunha, “Reforma” cit., 332 ss e uma exaustiva indicação doutrina a p. 306-7.7 Pretendemos advertir (cfr. também nota seguinte) que o problema não é apenas nem principal-mente de Direito Societário, muito embora seja nesses domínios que o assunto aparece normal-mente tratado. Sobre as questões não há unanimidade doutrinal na comercialística, como aliás dão conta os estudos monográfi cos sobre a matéria [referimo-nos aos textos de Ânia Pais Ferreira e Teresa F. M. Fernandes, “Estudo sobre a atribuição de pensões e complementos de reforma aos administradores das sociedades anónimas”, em Direito das Sociedades em Revista, ano V, vol. 9 (2013), 215-246, e depois P. Olavo Cunha, “Reforma e pensão de administradores” cit., 305--338]. Na realidade, para assegurar o direito fundamental à segurança social relativa a riscos sociais (artigo 63.º da Constituição) é necessário preparar uma solução tendo em conta problemas muito concretos, dentro de esquemas pensionísticos às vezes ignorados, sobretudo na sua técnica jurí-dica própria, o que explica algumas difi culdades de compreensão de quem esteja fora dos temas da Segurança Social.

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artigo 402.º, vamos tentar dar resposta ao conjunto de dúvidas que se colocam e podem colocar8.

3. O estatuto dos administradores. Segurança social dos administradores9

3.1. A necessidade de esquemas de segurança social dos administradores. A “occasio legis”. Para interpretação do artigo 402.º há a considerar com atenção e den-tro de uma óptica abrangente o sistema de Segurança Social vigente na altura da publicação do CSC, em geral, e ainda as iniciativas privadas de protecção social e os esquemas complementares privados, que davam hesitantes passos. O primeiro ponto aqui a registar é a situação da Segurança Social nos anos oitenta e o contributo do artigo 402.º do Código de 1986 para ajudar à reso-lução de um problema que já tinha sido equacionado e só em termos de futuro poderia encontrar solução. Referimo-nos à situação dos administradores, que a legislação de Segurança Social da época começava a contemplar, ainda que imperfeitamente, e que se pensou na altura dever ser tratada também no plano societário. Na verdade, a segurança social dos administradores e trabalhadores independentes, dentro do sistema público e vinculativo, era neste domínio dos administradores incipiente (apenas começara em forma de lei nos anos oitenta10), e, se dava adequada protecção quanto a benefícios imediatos, con-sentia num defi cit de protecção quanto a benefícios diferidos como a reforma, que exigiam uma carreira retributiva capaz de os sustentar. Os administra-dores, em regra, não possuíam nessa altura um nível sufi ciente de descontos nas suas remunerações societárias para atingirem o prazo de garantia, ou, ten-

8 Uma observação no plano metodológico: não vamos considerar a questão como de Direito da Segurança Social ou de Direito Societário, para daí partir para a solução do problema. Esta questão, enquanto jurídica, compromete todas as áreas do Direito com que se conexiona. Não surpreen-derá que se invoquem, para além do Direito Comercial ou da Segurança Social e obviamente normas constitucionais (como o artigo 63.º da Constituição), também normas de Direito Civil ou do Direito dos Seguros, pois não há compartimentos estanques. A observação é necessária, pois já vimos decisões jurisprudenciais que, em virtude do enquadramento societário de questões, parece se dispensarem de refl ectir nos aspectos de Segurança Social.9 Como se disse, as questões colocam-se também relativamente a outros gestores e membros dos órgãos sociais das pessoas colectivas.10 Referimo-nos genericamente à primeira lei que contemplou a segurança social – Lei n.º 28/84, de 14 de Agosto, que vigorou até ao fi nal do milénio e sucessivamente substituída por três outras leis de bases (de 2000, 2002 e 2007) – e, em particular, ao Decreto-Lei n.º 8/82, de 18 de Janeiro, sobre a segurança social dos trabalhadores independentes, abrangendo especifi cadamente os gestores.

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do-o porventura atingido, a carreira contributiva não lhes dava direito a uma reforma sufi ciente.

O artigo 402.º tem pois de ser apreciado e visto de modo a compreender o quadro problemático que se punha ao legislador, na época11. Sendo importante a previsão na óptica do Direito das Sociedades para afastar qualquer difi culdade que pudesse surgir quanto a uma errada qualifi cação como acto gratuito e fora do princípio da especialidade e de eventuais confl itos de interesses na defi nição do estatuto dos administradores12, a norma habilitava as sociedades a resolver as questões de insufi ciente cobertura dos administradores no plano do seu direito fundamental à Segurança Social, nos termos do artigo 63.º da Constituição. De facto, olhando as coisas na óptica da protecção na reforma da nascente tecno--estrutura empresarial, é necessário constatar que à época, na prática, não tinha funcionado regularmente a cobertura pensionística no caso dos riscos velhice e invalidez. Como dissemos, no início da década de oitenta, o enquadramento era basicamente público e não assegurava adequada protecção a profi ssionais autónomos e a administradores. A sede legal do regime de reforma era ainda o Decreto n.º 45 266, de 23 de Setembro de 196613, em cujos artigos 87.º e seguintes se disciplinava o direito à percepção de uma pensão de reforma por velhice apenas para os trabalhadores subordinados. De acordo com as coordenadas legais, podia-se caracterizar, do ponto de vista do benefi ciário, o esquema de reforma como conferindo um direito: o direito à “pensão vitalícia de reforma”, que seria adquirido pelo preenchimento dos requisitos normativamente fi xa-

11 Não se pretende dizer que a previsão do CSC tenha hoje perdido inteiramente razão de ser quanto à reforma dos administradores, mas não é tão necessária como em 1986.12 O artigo 402.º, como previsão autónoma de esquemas de reforma para administradores, não tem precedentes na legislação societária de outros países, em que as reformas dos gestores são encaradas como segmento de remuneração, seguindo o respectivo regime de fi xação. Cfr., de Ânia Pais Ferreira e Teresa F. M. Fernandes, “Estudo sobre a atribuição de pensões e complementos de reforma aos administradores” cit., 220 ss. Ao contrário do que se passa nos países anglo-saxóni-cos, na Alemanha e em França em que as remunerações (e com elas as reformas) são conferidas de modo muito menos formalizado, destaca-se o caso isolado de Espanha em que os estatutos da sociedade devem fi xar a remuneração dos administradores e com ela a reforma. Na verdade, em Espanha ainda se parte do princípio de que os cargos da administração, mesmo nas sociedades de capitais, são exercidos gratuitamente, a não ser que de outro modo prevejam os estatutos. Em Itália, nas sociedades por acções, é também em regra a assembleia geral que fi xa as contrapartidas dos administradores (não encontramos referências a sistema de reforma específi co, sendo certo que estas pessoas estão cobertas pelo regime previdencial).13 Só posteriormente surgiu a Lei n.º 28/84, de 8 de Agosto – lei de bases da segurança social –na qual (artigos 2.º a 5.º) se concretizaram e desenvolveram os princípios vazados na Constituição, designadamente no sentido de um tendencial afastamento do velho sistema mutualístico-assegu-rador e também no distanciamento de uma concepção marcadamente laborística.

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dos – a idade, para além de um tempo mínimo de inscrição e de pagamento de contribuições14 – e que assumia, depois de integralmente formado, os con-tornos de um verdadeiro direito potestativo15. Estávamos a falar de idades de 65 e 62 anos e de períodos de garantia com sufi ciente densidade contributiva de 15 anos. De qualquer modo, o sistema geral era apenas para os trabalhadores subordinados, pois, por motivos vários (entre os quais um pendor laborístico dominante na segurança social), não estava reconhecido nos domínios da pre-vidência corporativa, como não o fora a seguir – ao menos na lei até ao início dos anos oitenta16 –, o direito a reforma dos gestores das sociedades, somente previsto em algumas sociedades de modo pontual e privado17.

Assim, quanto à segurança social garantida em 1976 pelo artigo 63.º da Constituição para todos os cidadãos, houve durante algum tempo um impe-rativo constitucional por realizar no que se refere aos gestores. O Decreto-Lei n.º 8/82, de 18 de Janeiro18, estabeleceu, inovadoramente, um regime público para os profi ssionais independentes, neles incluindo expressamente os admi-nistradores, obrigando-os a contribuições (ainda que com limites máximos) e atribuindo-lhes correlativamente os respectivos direitos, e assim os de reforma. Mas a novidade do sistema, os seus limites e a debilidade da cobertura nos primeiros anos de funcionamento tornava necessário um reforço, o que não era simples no sistema em que então se vivia, pelo que se tornou oportuna e talvez indispensável a previsão do nosso artigo 402.º Aliás, o enquadramento dos gestores só se passou a fazer autónoma e integradamente no sistema público em fi nais de 199419 e, ainda assim, de modo forçado e que levantou dúvidas à doutrina especializada20.

14 Cfr., para a época, Sérvulo Correia/Bernardo Xavier, “Reforma do trabalhador e caduci-dade do contrato de trabalho”, RDES, 1975, I, 24.15 O sistema manteve-se no Decreto-Lei n.º 329/93, de 25 de Setembro, diploma que estabeleceu o novo regime de protecção na velhice e na invalidez dos benefi ciários do regime geral de segu-rança social, revogando as disposições nesta matéria constantes do Decreto n.º 45 266.16 Referimo-nos ao Decreto-Lei n.º 8/82, de 18 de Janeiro (havia já uma portaria de 1977, nem sempre aplicada e, quanto a nós, menos conforme com o princípio da legalidade).17 Ilídio Duarte Rodrigues, A Administração das Sociedades por Quotas e Anónimas (Lisboa, 1990), 167, que alude a previsões anteriores ao CSC no pacto social ou em deliberações dos sócios, no silêncio da lei.18 Refi ra-se também a estruturação da LBSS de 1984, que estabelece a inclusão no chamado “regime geral” dos profi ssionais independentes.19 O Decreto-Lei n.º 327/93, de 25 de Setembro, no seu art.1.º, “visa assegurar a efectivação do direito à segurança social dos membros dos órgãos estatutários das pessoas colectivas”, tendo entrado em vigor em 1994.20 Cfr. Ilídio Das Neves, Direito da Segurança Social (Cb.ª Ed.ª, 1996), 221.

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É a esta luz que deve ser perspectivado a occasio do artigo 402.º21, que previu a concessão pela sociedade do direito à reforma dos administradores.

3.2. A complementação da reforma em geral e no caso dos administradores. Há um aspecto mais técnico, que se prende com a alusão da lei à alternativa “com-plementos”, que denomina também de “pensões complementares”. Quanto à complementação como o pilar privado da previdência22 relativo ao status dos administradores, entrávamos num domínio particularmente interessante23. No que se refere em geral à complementação, passada uma fase inicial em que os esquemas complementares eram marginais e infrequentes, o fl orescimento des-tes, subsequentemente à revolução de 1974, encontrou o seu dique no próprio igualitarismo e estatalismo nela suposto24-25. Tal concepção começaria, con-

21 Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais, 5.ª ed., 762: “Considerando que a situação remuneratória em caso de reforma – baseada nas contribuições efectuadas durante a vida ativa –, a cargo do sistema geral de segurança social, não proporciona ao administrador reformado condi-ções equivalentes ou sequer aproximadas às que ele desfrutava no ativo, a lei societária admite que o contrato de sociedade preveja, em acumulação com o regime geral de previdência, um regime de reforma a cargo da sociedade, ou inclusivamente a constituição de um Fundo de Pensões, sendo possível fazer aprovar pela assembleia geral ou pelo conselho geral e de supervisão um regulamento aplicável (artigos 402.º e 433.º, n.º 3)”. 22 Há também esquemas de complementação pública, ainda que infrequentes.23 Interessante e complexo ainda hoje, não só porque se situa numa zona comum Direito Pri-vado/Direito da Segurança Social, mas sobretudo porque a nossa jurisprudência (ainda que os problemas sejam maiores no quadro laboral) nem sempre tem dado respostas elucidativas sobre a compatibilização entre os sistemas de segurança social e os esquemas voluntários das empresas, alicerçados apenas na autonomia privada. Em outro plano, deve ser sublinhado que os problemas em causa apresentam crucial importância, tanto para todas as sociedades anónimas como para os seus administradores e daí para a governance do grande mundo empresarial. No domínio do Direito Privado, é convocado o Direito Societário e o Direito do Trabalho, aliás com aspectos muito mais delicados na área fi nanceira, aspectos que temos tratado muitas vezes (cfr. referências infra nas notas 27 e 28), mas a que só vamos aludir aqui marginalmente.24 O artigo 63.º da Constituição, sobretudo à luz do que era entendido em 1976 na sua primi-tiva redacção, orientava-se no sentido da institucionalização de um sistema público igualitário. A legislação subsequente remetia a iniciativa privada para posição subordinada. 25 O regime da Segurança Social, primordialmente público, tende desde há algum tempo a estar aberto à consideração de que as instituições públicas têm limitações, que justifi cam formas privadas de Segurança Social. Explique-se a relativa e parcial privatização por crise de fi nanciamento ou pela mutação social nas esferas público/privado e, sobretudo, pelo novo conceito de “sociedade de risco”, a Segurança Social assenta em três pilares ou, como se queira, envolve três patamares: o pri-meiro correspondente aos regimes estaduais, o segundo aos regimes profi ssionais e empresariais e o terceiro ao esforço pessoal, normalmente em certas aquisições de produtos do mercado fi nanceiro ou segurador. No segundo pilar, que é o que aqui sobretudo nos interessa, trata-se de esquemas que se caracterizam pela sua criação depender de iniciativa privada, pela voluntariedade da sua

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tudo, a mudar logo a partir da revisão constitucional de 1982 e, sobretudo, com a Lei n.º 28/84, de 14 de Agosto, sobre a segurança social. A admissibilidade de prestações complementares passou a ser indiscutível e em todos os vários sucessivos diplomas na matéria26 perpassava a ideia de abertura à iniciativa pri-vada, ainda que se defendesse, como nós sempre fi zemos, a maior cautela nestas formas privadas de segurança social, exigindo mediação por esquemas legais taxativos, sobretudo quando se pretende garantir os trabalhadores da empresa27.

origem e pela circunstância de não serem universais. Neste segundo pilar há esquemas próprios, ainda que residuais, e esquemas complementares de Segurança Social, entendidos como “formas organizadas de atribuições de prestações, para além das que são concedidas pelos regimes-base da Segurança Social”, facultativas, de carácter público ou privado. À época, Bagão Félix, no seu prefácio à obra de Apelles Conceiçâo, Legislação de Segurança Social – Regimes, Coimbra, 1989, p. XI, referia …”a tendência que em Portugal, como noutros países mais desenvolvidos se vem, irreversivelmente, verifi cando, conduzirá ao desenvolvimento de novas formas de previdência individual ou colectiva. A uma lógica fundamentalmente institucional de ver os sistemas sociais, baseada na quase exclusividade do Estado-prestador vem sucedendo, com mais ou menos rapidez, uma oferta (estatal ou não estatal) mais contratual e pluralizada posta à disposição das pessoas. Os Fundos de Pensões são exemplos dessas evidentes transformações”.26 Sem preocupação de exaustão, referiremos o Decreto-Lei n.º 323/85, de 6 de Agosto (Fun-dos de Pensões), depois reformulado, e o Decreto-Lei n.º 225/89, de 6 de Julho, sobre regimes profi ssionais complementares. Mencionamos aqui apenas a legislação da época da publicação do CSC, hoje muito alterada.27 Sendo obrigatória em todos os casos previsão legal (tal era claro nas versões do artigo 63.º da Constituição, desde 1982 a 1997), a institucionalização da complementação para o caso da gene-ralidade dos trabalhadores da empresa coloca questões muito complexas, que temos versado em estudos diversos. Como é evidente, não tem qualquer comparação, em termos de mobilização de recursos económicos, um esquema previdencial para meia dúzia de pessoas (administradores) e aquele que benefi cie todos os trabalhadores da empresa. Quanto a este tipo de esquema, temos posto restrições à previsão por simples convenção colectiva, desenquadrada do sistema legal. A verdade é que se tratava e trata de grandes massas fi nanceiras correspondentes aos vencimentos de todo o pessoal de uma empresa, em situações socialmente mais sensíveis. No nosso entender, o acordo deve estar ligado necessariamente a actos institucionais, privilegiando fundos de pensões, os regimes profi ssionais complementares de segurança social ou equivalentes, bem como respon-sabilidades transferidas para instituições seguradoras. O legislador começou a ter cada vez mais presente, no caso dos trabalhadores, os riscos do esforço fi nanceiro elevadíssimo que implica um esquema deste tipo, esquema que se aproxima do tipo de seguro, exigindo, nessa medida, o emprego de técnicas fi nanceiras e actuariais próprias e postulando um regime específi co e público de pro-tecção aos segurados e, ainda, a estatuição de garantias que protejam o responsável e o segurado de um empobrecimento súbito e imprevisto. O problema teve desenvolvimentos vários, sobre-tudo com a abertura dada pelo TC aos regimes ligados à contratação colectiva, mas é matéria que exorbita do presente texto. Ainda assim anotaremos que nos parece que o CT e a actual prática tornam a instituição de esquemas previdenciais por via colectiva possíveis desde que integrados nos esquemas legalmente instituídos. De facto, puseram-se dúvidas quanto à constitucionalidade das complementações. Entende-se que a Constituição hoje (mormente depois da revisão de 1982)

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De qualquer modo, mais complicada foi a circunstância de permaneceram largos sectores apenas assentes na autonomia privada ou na contratação colec-tiva, sem institucionalização prática de fundos próprios como aconteceu na Banca28 e, como no nosso caso em pequena escala e com assento legal no CSC, o dos administradores e gestores das sociedades29.

dá abertura à Segurança Social privada, desde que exista um quadro legal de referência e de inte-gração, como quanto a nós tem resultado do artigo 63.º da Constituição, ainda que actualmente com redacção menos expressiva. Os problemas têm-se nesta matéria colocado a propósito das situações dos trabalhadores, até, como dissemos, pela grande relevância e mobilização de fun-dos e de responsabilidades fi nanceiras que acarreta. Mas não são exclusivos dos trabalhadores do regime geral. De qualquer modo, como acentuámos, no nosso caso (administradores societários), são infi nitamente menos expressivas as responsabilidades empresariais no plano fi nanceiro e os problemas jurídicos emergentes. Também, não se põem nas sociedades os problemas intrincados que se colocam no caso de decisões empresariais no sentido de complementação dos seus trabalha-dores, quando, na ausência de uma norma habilitadora semelhante ao artigo 402.º do CT, exor-bitam as formas legalmente previstas. Queremos referir a necessidade de fundar fi nanceiramente essas responsabilidades em modalidades legais taxativas (regimes profi ssionais, fundos de pensões e seguros), como temos referido em anteriores trabalhos, o que deu lugar a graves difi culdades quanto a esquemas fora dessas modalidades, apenas alicerçados em convenções colectivas ou até em contratos individuais. No caso da reforma dos administradores, esta tem como fonte primária habilitadora a lei, no referido artigo 402.º. Cfr., para estas questões, entre os nossos estudos, prin-cipalmente, “Problemas jurídico-laborais dos fundos (fechados) de pensões – direitos dos traba-lhadores”; em RDES, 2009, n.º 3-4.28 A Segurança Social privada é normalmente complementar, mas ainda nos anos oitenta (i.e., con-temporaneamente à publicação do CSC) havia sectores importantes, como o bancário, em que o risco velhice era assegurado quanto à grande massa dos trabalhadores unicamente por um sistema privado, aliás decorrente de convenção colectiva com uma longa tradição. Só recentemente é que se procedeu à integração dos bancários no sistema público quanto às pensões de velhice e de invalidez. Num passado próximo, o ‘regime’ dos bancários consistia num esquema de protecção social próprio, tendencialmente excludente do da Segurança Social e com desvios signifi cativos, que residiam na cobertura fi nanceira dos riscos e no processamento dos benefícios. Não havia contribuições dos próprios trabalhadores, nem sequer das Instituições de crédito, para as refor-mas. A liquidação das pensões era uma despesa corrente das Instituições de crédito, sem necessi-tar de qualquer provisão ou de qualquer reserva ou fundo autónomo que garantisse as prestações pensionísticas. Os inerentes benefícios não dependiam sequer de inscrição nem eram prestados por instituição de carácter especifi camente previdencial, mas devidos pelas próprias Instituições bancárias Assim, a entidade seguradora dos riscos previdenciais era ainda a instituição bancária respectiva, ao contrário do regime geral em que as entidades patronais eram contribuintes da Segurança Social. Só depois se pôde contar com os Fundos de Pensões, para os quais contribuem também – a partir de 1995 – os próprios trabalhadores, e, no caso de reforma, pela instituição bancária no âmbito da qual se extinguiu o contrato de trabalho. Era um regime, pois, com seme-lhanças ao dos administradores, de que estamos a falar. 29 Neste grupo em números muito menos expressivos por natureza, como assinalámos, havendo bastantes casos de gestores e que muitas vezes se reformam apenas depois da idade legal, o que

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Na verdade, estamos a falar de esquemas de diverso grau de complexi-dade. O que se passou quanto à instituição de complementos no sistema? Se a existência de um “regime” próprio, como havia relativamente a muitos pro-fi ssionais (bancários, funcionários de certas empresas), era absolutamente com-preensível, sobretudo em face de ausência de cobertura da Segurança Social, tornaram-se também explicáveis e úteis esquemas complementares mesmo quando essa cobertura passou a existir, no início da década de oitenta. Aliás, as complementações fl orescem mesmo em áreas consolidadas já de cobertura de segurança social30. Mas o que era útil, mesmo em geral, foi quase indispensá-vel à época para os gestores. Em termos práticos, nem vale a pena encarecer a vantagem de fazer acrescer a pensões, que só substituíam muito parcialmente – até pela existência de plafonds – um rendimento perdido (de que muitas vezes não chegavam a 50%), um montante de complementação que assegurasse mais adequada cobertura das necessidades do pensionista.

Uma nota mais. Um esquema de complementação, tal como estava vul-garizado, seguramente mais simples e corrente, fosse ou não articulado com a Segurança Social, não seria sufi ciente em todas as situações, o que recomendava por vezes a existência do “regime” que referimos. Na verdade, sobretudo nos anos oitenta, eram como se disse frequentes as situações em que os adminis-tradores não tinham sequer uma base à qual acresceria a compensação, pelas difi culdades de cumprir os prazos de garantia e de adequar a carreira contri-butiva. Assim, as pensões de reforma da segurança social dos gestores não só eram muito distantes dos rendimentos do activo, mas até problemáticas. Não penso que seja necessário acrescentar mais para defender a oportunidade e a justiça da previsão no artigo 402.º de um “regime de pensões” para além de “complementos”.

torna os compromissos fi nanceiros menos sensíveis no contexto da economia de uma sociedade anónima que os comprometimentos empresariais de complementação dos trabalhadores, aliás muito frequentes (cfr. nota antecedente à anterior).30 Os mecanismos de segurança social privada na área de pensões visam, obviamente, melhorar a protecção relativa a uma vicissitude sempre presente na vida de um profi ssional, sendo este acrés-cimo de protecção muito útil, sobretudo, pela existência de limites às regalias concedidas pelo sistema ofi cial, e, muitas vezes, pela erosão monetária que tais prestações sofria. Acabam, portanto, por traduzir a criação de um novo patamar de garantia, em que é acautelada, já não a privação absoluta de sustento com o declinar da capacidade para exercer a profi ssão – é este o risco coberto pelo sistema público de previdência –, mas sim o perigo de um decréscimo súbito de rendimen-tos e de um abaixamento radical das condições materiais de vida. Ilídio das Neves (Dicionário Técnico e Jurídico da Segurança Social, Cb.ª Ed.ª, 2001, 593-4) defi ne o regime complementar como visando assegurar aos respectivos benefi ciários prestações destinadas a completar os benefícios atribuídos pelo regime público.

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3.3. A posição do direito à reforma societária dos administradores nas contrapartidas destes. Passando agora à actualidade, vamos analisar a questão tendo também em conta um prisma societário, de acordo com um modelo são e transpa-rente de governança31 e de contrapartidas na relação de administração e no estatuto dos administradores. Sendo na sua centralidade o modo de realização de um direito fundamental de todos os cidadãos, a Segurança Social inclui-se tradicionalmente no estatuto de emprego dos administradores, como quais-quer outros profi ssionais, em cujo conteúdo estão as remunerações, vantagens sociais e situações conexas. Trata-se de um segmento da relação de adminis-tração societária em que se tem em conta a relação de emprego, que se soma ao enquadramento tradicional de mandato e de Organträger da sociedade, pelo surgimento da profi ssionalização dos gestores e do seu distanciamento quanto à titularidade do capital.32

O CSC prevê no artigo 399.º a remuneração de cada um dos administra-dores, tendo em conta as funções desempenhadas e a situação económica da sociedade, a fi xar pela assembleia geral ou por uma comissão por esta nomeada. Depois, o referido artigo 402.º preceitua que o contrato de sociedade pode estabelecer um regime de reforma a cargo da sociedade e permite à sociedade atribuir complementos de pensões de reforma, com certas limitações. É este o desenho legal das contrapartidas expectáveis pelos administradores. A dou-trina comercialista identifi ca no plano remuneratório muitas outras prestações, incluindo a cobertura dos riscos sociais da pessoa dos administradores33.

31 O termo, pouco elegante – confessemo-lo –, não é propriamente um anglicismo derivado do corporate governance, pois tem raízes no português mais castiço.32 Cfr. notas seguintes.33 V., a propósito, Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, 2.ª ed (Coimbra, 2007), 881-2: “A remuneração dos administradores, designadamente no caso das sociedades anónimas, apresenta uma estrutura ainda mais complexa. Por razões de ordem social e fi scal, elas têm vindo a assu-mir composições parcial e crescentemente não-monetárias. Podemos apontar, como exemplo, as seguintes parcelas: a retribuição-base, normalmente mensal e as diuturnidades; as senhas de presença pela participação nas reuniões do conselho de administração; o complemento de remu-neração ou gratifi cação anual; a percentagem nos lucros; o uso do cartão de crédito da empresa; prestações em espécie, como o uso de automóvel, os combustíveis, os serviços de motorista, o uso de alojamento, o uso de material de comunicações; diversos subsídios de deslocação, de transporte e de despesas familiares, incluindo educação dos fi lhos. Acresce que, por vezes, o desempenho de funções de administração numa sociedade implica o desempenho de funções semelhantes, em empresas participadas, desempenho esse que é remunerado.O exercício das funções de administração confere ainda diversas regalias sociais. Para além das regras gerais de segurança social, os administradores podem desfrutar de esquemas específi cos, previstos nos estatutos da sociedade ou em regulamentos a eles anexos. A prática exemplifi ca

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Neste aspecto, verifi cara-se desde o fi nal do século passado uma nova men-talidade pela adesão à ideia de que a sociedade necessita de profi ssionais de topo34, que por natureza se não podem incluir na situação de trabalhadores, mas para os quais se exige um nível de protecção que contemple afi nal os direitos de quem presta serviço (seja a que nível for) numa empresa como organização de pessoas. Trata-se de profi ssionais e não é em vão que Menezes Cordeiro faz ligações ao Direito laboral no que toca à protecção dos gestores societários35, pense-se o que se pensar sobre a relação de administração e das suas conexões com o Direito do Trabalho36. Interessa às empresas não terem profi ssionais mal pagos ou inseguros quanto ao futuro e a consciência desse interesse vai aumen-tando à medida que estes atingem o topo da hierarquia.

Tem-se por certo que todos os profi ssionais, independentes ou não, ges-tores ou trabalhadores braçais, devem ser tratados condignamente, o que é de interesse da própria sociedade comercial no plano do recrutamento e motiva-ção. Com expressões próximas a propósito, há muito tempo o diziam o nosso

esquemas de reforma, de subsídios de doença e de invalidez, seguros profi ssionais, esquemas de apoio na aquisição de habitação e outros”. 34 Nas palavras de Paulo Olavo Cunha (Direito das Sociedades, cit., 741): “Os gestores das socie-dades anónimas são, no século XXI, profi ssionais altamente competentes e especializados não apenas na administração de grandes empresas, em geral, mas frequentemente na área em que se centra a actividade social, em particular, sendo propostos para desempenhar funções pelos seus vastos conhecimentos técnicos e enorme experiência”. Cfr., também, do mesmo autor, “Reforma e pensões de administradores (a cargo da sociedade administrada)”, cit., 309 ss.35 Assim, Direito das Sociedades, cit., 872.36 Tem-se ultrapassado a ideia do mandato e considera-se estar sempre presente uma relação de emprego, ainda para os que a entendem como resultante de um acto unilateral de aceitação que condiciona a efi cácia da designação da assembleia geral. V., no tema, Menezes Cordeiro (que, aliás, sem a seguir, equaciona a perspectiva laboral e de protecção social e ob. cit., 870 e ss), lendo-se a p. 874: “O administrador tenderá a ser contratado como um empregado dirigente, especialmente habilitado, mas ligado apenas por uma relação de serviço remunerada; porém já não há, parado-xalmente, quem lhe dê instruções”. V., também, Ilídio Duarte Rodrigues, A Administração das Sociedades cit. 261 ss; Brito Correia, Os Administradores de Sociedades Anónimas (Coimbra, 1993) 375 ss; Pinto Furtado, Curso de Direito das Sociedades 5.ª ed. (2004), 341. A mais recente refl exão doutrinária sobre o tema pertence a Irene Gomes, na sua dissertação de doutoramento O Diri-gente na Relação de Trabalho, disponível na Escola de Direito da Universidade do Minho, copiog., p. 142 ss. Nos termos aí indicados para distinções nos domínios laborais, Menezes Cordeiro e Coutinho de Abreu afastam a relação de administração de uma concepção puramente contra-tualista, para outra em que os poderes e deveres dos administradores são conformados principal-mente pela lei, estatutos e deliberações sociais. V., também, a perspectiva algo diferente de Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades, 712-714.

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Mestre Ferrer Correia e o nosso colega António Caeiro37, acentuando neste domínio específi co que a reforma será sempre um incentivo para que as pessoas permaneçam na sociedade, “seja qual for a sua condição ou profi ssão”, e, por maioria de razão, os administradores.

É certo que tem sido levantada presentemente – e bem – a discussão das remunerações de gestores de grandes empresas excessivamente pagos38, e pro-curam-se agora estabelecer limitações. Contudo, estes recentes episódios, por vezes escandalosos, são estranhos às formulações do CSC de há 30 anos: basta um pequeno parêntesis para dizer que a onda de contestação no que se refere à corporate governance, e que levou justamente ao endurecimento da legislação, não tem a ver com situações vividas à data da publicação do CSC. No pretérito próximo de há três décadas, a alta administração tinha outra imagem de serie-dade e de congruência com os interesses sociais e não se ouvia falar do moral hazard e, ainda menos, do “agenciamento” e de “pára-quedas dourados”.

De qualquer modo, o problema da reforma tem de ser tratado com alguma largueza de vistas, pois é erróneo pensá-la como “contrapartida sem causa”, partindo da ideia um tanto apressada que o reformado já não está ao serviço e nada oferece pois à empresa… É nessa linha pouco esclarecida que a reforma foi vista com desfavor nas páginas mais recentes de alguns privatistas e até comer-cialistas, como se representasse encargos “extraordinários” ou até “gratuitos”, a entender com cautelas. Na verdade, é estranho que neste século ainda se colo-que a reforma como integrável em actos gratuitos, a examinar com suspicácia, quando obviamente tem em si a componente de seguro que a leva a incluir no sistema das contrapartidas que são a garantia de competência e profi ssionalismo da gestão.

Quanto a nós, a pertença do direito à reforma ao pacote de contrapartidas dos administradores é evidente. Não que seja retribuição em sentido técnico--laboral, muito ligado a tutela específi ca (v.g., irredutibilidade, não-compen-sação, etc.) e a cálculos correspondentes a situações de não trabalho (ou não prestação de actividade, como nas férias e feriados pagos) 39. Para tal nem sequer pretendemos, como muitas vezes é tentado, recorrer a fórmulas hábeis, como

37 “Modifi cações do objecto social…previdência dos administradores”, em RDE, 1980-1, 267 ss, apud Ânia Pais Ferreira e Teresa F. M. Fernandes, ob. cit., 227. Não é pois exacto dizer-se que se considerava antigamente inadmissível a concessão de reforma aos administradores por tal constituir acto gratuito. Não era assim para a doutrina, pelo menos para a mais esclarecida. O ponto da pretensa gratuitidade será melhor debatido a seguir no texto.38 Sobre a matéria Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades, 537 ss e 746 e ss.39 Aliás, nós, no plano do Direito do Trabalho, temos considerado um plano de reformas fora do sistema retributivo, como regalia e no quadro dos benefícios sociais, em domínios de segurança social particularmente complexos.

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a de “salário diferido”. De facto, não sendo tecnicamente remuneração (aliás, o CSC separa com nitidez as atribuições), a conexão da reforma é com aquela absolutamente incontestável, como refere o já citado estudo recente sobre o assunto40, falando mesmo Menezes Cordeiro de “natureza retributiva”41 e do idêntico modo Ilídio Duarte Rodrigues, dizendo este ainda que as pensões se integram na “retribuição complexiva” a par das remunerações periódicas42. Especialmente afi rmativo quanto à conexão é Coutinho de Abreu, que, con-siderando embora discutível que essas prestações façam parte da remuneração, diz que “são prestações pecuniárias a cargo da sociedade e que aparecem em maior ou menor medida (…) como contrapartida do trabalho prestado pelo administrador”43 e, também, Pereira de Almeida44: “as pensões de reforma são um correspectivo do trabalho e dedicação prestados à sociedade”. Finalmente, Paulo Olavo Cunha entende que “é hoje pacífi co ser a atribuição de reforma um acto de interessa de sociedade e não consubstanciar um acto gratuito (doa-ção) para o qual a sociedade não teria capacidade”45.

Reforma como contrapartida46, pois!Negaram esta concepção Carvalho Fernandes e J. Labareda47-48, que enten-

deram a reforma como acto gratuito ou aparentado a doação remunerató-

40 Assim, Ânia Pais Ferreira e Teresa F. M. Fernandes, estudo cit.) logo nas linhas de entrada (p. 215). Seguidamente nos dizem (p. 230) “que não deve ser negada a relação de proximidade entre as pensões de reforma e a remuneração”. Outros trabalhos estão na mesma linha (M. Inês Sousa Guedes, A remuneração dos administradores: perspectiva a partir da crise de 2008, 2010, dispo-nível na internet).41 Ob. cit., 882.42 Ob. cit., 169- 170.43 Governação das Sociedades Comerciais, 2.ª ed. (Coimbra, 2010), 96-7.44 Sociedades Comerciais (Coimbra, 2011), 6.ª ed., 267.45 Direito das sociedades comerciais, 5.ª ed., 761, nota 1037. E, também, “Reforma…” cit., p. 311, citando jurisprudência relevante a p. 315.46 Assim, num dos últimos estudos sobre a matéria, de M. Inês Sousa Guedes, A remuneração cit., 16.47 Carvalho Fernandes e J. Labareda, “Do regime jurídico do direito à reforma dos adminis-tradores a cargo das sociedades anónimas”, em Revista do Direito das Sociedades, n.ºs 3-4 (2010). 48 Apesar da grande estima em que temos a memória do nosso saudoso colega e amigo Prof. Car-valho Fernandes e a consideração que lhe votamos e também ao Dr. João Labareda temos de qualifi car a sua perspectiva como inexacta neste tema da reforma dos administradores. Salvo o devido respeito, incorrem em equívocos quando referem este problema, que prejudicam depois as conclusões a que chegam, ligadas ao que consideram carácter excepcional do benefício em causa. Na verdade, a questão, muito claramente, não choca o princípio da especialidade das sociedades como pessoa colectiva, pois nem as sociedades têm apenas como objecto mediato (o objecto ime-diato é a actividade económica) o lucro em sentido estrito, nem a concessão do direito à reforma no estatuto dos administradores é um acto gratuito e sem contrapartida que lese esse objectivo, bases em que os autores alicerçam a sua argumentação. São esses os aspectos em que a unanimi-

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ria, fora do esquema das retribuições aos gestores e questionando o princípio da especialidade. Como se alcança do texto que publicaram49, tal resulta de antiga pronúncia, que infl uenciou de modo determinante o acórdão do STJ de 10/5/2000. Esta orientação é desajustada e teremos de a afastar de entrada, pois não lhe assiste razão, como confl ui a doutrina corrente que citámos. E, também, o Direito comparado, onde é fácil de ver que, nos sistemas europeus próximos do nosso, a reforma dos administradores se compreende no pacote de remune-rações50. É, sobretudo, de extrema importância notar que este enquadramento se nota no Direito comunitário51e em normas técnicas nacionais que possuem valor jurídico incontestável e que se destinam a evitar os abusos conhecidos, desde logo, nas alterações ao Decreto-Lei n.º 298/82, de 31 de Dezembro52, relativo embora à gestão bancária (ainda que com tendência á extensão dos seus princípios), em que se consideram as pensões facultativas dos administradores como integradas na política de remunerações (artigos 115.º C, 1, e 115.º E, 14).

Por outro lado, o Código do Governo das Sociedades da CMVM, de 2014, estabelece: “Para cada mandato, a comissão de remunerações deve igualmente aprovar o regime de pensões dos administradores, se os estatutos as admitirem” (ponto V., 2. 3)53. O regulamento da CMVM n.º 4/ 2013 sobre o Governo

dade da doutrina não dá razão aos ilustres autores. Posto isto, não se pode dizer que a reforma dos administradores constitui um acto lesivo dos credores da sociedade ou dos seus sócios. Um outro ponto dos ilustres autores é mais discutível: o carácter contratual (e não estatutário) do direito à reforma. Diremos que a doutrina maioritária se tem arredado de uma concepção contratualística quanto à posição dos administradores, que é a concepção de que partem os autores mencionados. A questão tem obviamente algum interesse, já que permitiu aos autores sustentar a invalidade do “contrato de reforma”, chamando a debate o artigo 294.º do C. Civ. ou, no caso, a inefi cácia, aplicando analogicamente o artigo 186.º, 2, do CSC. Mas, a tratar-se de inefi cácia, bastaria que a sociedade (ao menos na plenitude dos seus sócios) aceitasse o direito à reforma para que ele se tor-nasse efi caz, revelando bem que não estão em causa interesses de terceiros e que, mesmo para os autores cuja doutrina contradizemos, o suposto vício, nos termos do artigo 56.º, 1. d), não envolve nulidade. Carecem pois de razão os ilustres autores quanto aos pressupostos da sua posição, pelo que não vamos referir a não ser esquematicamente aos problemas do “contrato de administra-ção” e da inefi cácia, que trataremos quando vier a propósito em sede própria (n.º 11 deste texto).49 Ob. cit., 532. Do mesmo modo infl uenciou o Ac. de 2/12/2014.50 Tal é referido pelo estudo recente e completo de Ânia Pais Ferreira e Teresa F. M. Fernan-des cit., págs. 220-6. 51 Rec. 2004/913/CE (3.3.d) e mais actualmente a Resolução 2011/C 351 E/08 sobre a remunera-ção dos administradores (pontos 12, 26, 32). V. Ânia Ferreira e Teresa Fernandes, ob., cit., 230.52 Referimos um diploma em constante modifi cação (foi quarenta vezes alterado…) e em que têm vindo a ser cada vez mais apertadas as regras. 53 No 5.3.3. (ii) diz-se como fazendo parte das recomendações “informar sobre os direitos de pen-são adquiridos por cada administrador executivo”. Já antes nas recomendações datadas de 2013, sob o número II.3.5.: “Deve ser submetida à Assembleia Geral a proposta relativa à aprovação de

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das Sociedades tem um modelo em anexo que referencia no ponto 76, como conteúdo da informação: “Principais características dos regimes complementa-res de pensões ou de reforma antecipada para os administradores e data em que foram aprovados em assembleia geral, em termos individuais”.

Note-se ainda que os acórdãos da RLxª de 20/1/0554 e do STJ de 1/3/0755 negaram o carácter gratuito da reforma e chegam a estabelecer largamente a possibilidade de fi xação de pensões complementares por uma comissão de ven-cimentos. Mais recentemente, o Ac. de 2. 12. 2014, do STJ, contraria inteira-mente a tese da gratuitidade, aceitando uma concepção de contrapartida diferida e pondo em destaque a ideia de a reforma permitir o pagamento de remunera-ções inferiores, tendo também a vantagem da fi delização dos administradores.

Mas não nos interessa tanto a inclusão da reforma no conceito de remune-ração como afastar energicamente uma ideia de gratuitidade que contrastasse o princípio da especialidade, ideia já posta de lado há décadas pelas noções modernas e profi ssionalizantes da gestão societária.

Desde logo, já o vimos, a concessão de reforma não lesa o princípio da especialidade, pois as sociedades, dirigidas normalmente ao lucro, não estão colimadas a uma ideia estrita de retornos de curto prazo, nem tal as impede de ter uma actuação na vida desligadas da sua responsabilidade social: aliás, o artigo 64.º do CSC é claro nesse sentido56. Só uma concepção inadequada é que pode a este propósito invocar o princípio da especialidade. Está ultrapassado o princípio de pagar o menos possível aos que constituem o substrato humano na empresa, como esta lhes fosse alheia. Nem é necessário invocar os princí-pios constitucionais quanto ao trabalho em empresa: as regras de boa gestão da empresa moderna postulam um “salário de efi ciência”, que ultrapassa bastante as leis de oferta e da procura57.

Por maioria de razão não corresponde a uma perspectiva arejada dos pro-blemas considerar que o lucro se deve prosseguir com economias na gestão. Nem supomos que o queiram dizer os ilustres autores que criticámos, mas, de qualquer modo, há que reafi rmar o elevado grau de profi ssionalismo hoje exi-gido para os gestores, sobretudo nas sociedades anónimas. Não se diga, e aqui é que nos parece existir a falha dos autores criticados e da jurisprudência que

qualquer sistema de benefícios de reforma estabelecidos a favor dos membros dos órgãos sociais. A proposta deve conter todos os elementos necessários para uma avaliação correta do sistema”. 54 O acórdão foi no sentido de que as cl.ªs estatutárias apenas têm de prever a pensão de reforma, Ânia Pais Ferreira e Teresa F. M. Fernandes, ob. cit., 233.55 Com descrição destes casos Ânia Ferreira e Teresa Fernandes, ob. cit., pp. 228 ss e 243.56 O texto do preceito, na sua redacção inicial, era ainda mais expressivo.57 Basta ver os parâmetros indicados no soft law que temos referido quanto ao governo das sociedades.

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os seguiu, que não há na reforma os traços de recompensa ou de contrapar-tida. Como dissemos, o Direito comparado mostra que se considera a reforma incluída num conceito amplo de remuneração58 e na concessão de um direito à reforma confi gura-se, como se lê na doutrina maioritária já citada59, uma com-ponente de estatuto dos administradores fortemente conexa com a remunera-ção. Se meditarmos um pouco a conexão revela-se forçosa: se o administrador não estiver seguro contra o risco velhice ver-se-á na necessidade de tomar precauções e assumir encargos através de aforro ou de contratos de seguro60 de modo a garantir o risco velhice. E o mesmo quanto ao risco de morte, se pre-tender garantir minimamente os seus familiares. Ora assim terá de diminuir o seu rendimento disponível para se segurar, pelo menos, dos riscos sociais típicos que serão cobertos por prestações diferidas. Mas se garantirem ao administrador um direito a reforma ou se fi carem assegurados os seus familiares com uma pensão de sobrevivência, estas garantias conexas com a retribuição permitem também limitá-la, i.e., reduzi-la na sua reivindicação, mantendo-se, portanto, a equivalência para a sociedade no que toca a despesas com a gestão: o gestor aceitará mais facilmente uma retribuição menor se souber protegido contra os riscos sociais típicos61. E isto é assim não apenas quanto ao risco velhice, mas também quanto ao risco morte, a cobrir por pensões de sobrevivência.

Não se diga também, como aparece por vezes na doutrina62 e na jurispru-dência que criticamos, que são actos gratuitos da sociedade porque o reformado

58 Referida por Ânia Ferreira e Teresa Fernandes, ob. cit., 220 ss, e, como vimos, na própria jurisprudência do STJ.59 Ânia Ferreira e Teresa Fernandes, ob. cit., Citaremos ainda Pereira de Almeida, Socieda-des Comerciais, 6.ª Coimbra Ed.ª. (2011), 267, negando frontalmente que as pensões sejam meras liberalidades.60 Estamos a pensar principalmente nos normais seguros que conferem direitos (não a reembolso ou percebimento de capital) após certos eventos. Mas nada impede que a mesma lógica se aplique àqueles seguros que exactamente pelas razões de afi nidade prática com a retribuição são tributados em sede de IRS [artigo 2.º, 2, b), 3), i e ii e 11 do respectivo Código].61 Diz-se numa sentença (Ac. STJ de 2.7.97, Col.Jurisp., II, 301), a propósito dos bancários que não tinham o regime de reforma da Segurança Social, que, se os trabalhadores tivessem de fazer os descontos normais, a Banca seguramente lhes pagaria mais a título de salários. Retomam-se essas considerações, agora a propósito dos administradores, no já citado Ac. STJ de 2.12.2014.62 Carvalho Fernandes e J. Labareda, “Do regime jurídico do direito à reforma” cit., 534, referindo “a circunstância insofi smável de, no momento da sua prática” (entenda-se, do acto de reforma) “ter cessado a relação jurídica que vincula o administrador com a sociedade”. O argu-mento é conceitual e mesmo nesse domínio pouco sustentável (pois não há responsabilidade post factum fi nitum?). Mas, sobretudo, não tem em conta que o vínculo de seguro reforma está conexo e depende até da evolução da relação jurídica entre o administrador e a sociedade e a própria caracterização dos riscos, eventos e coberturas da Segurança Social. Parecem, pois, sem razão as observações dos autores quanto às “liberalidades” e ao princípio da especialidade. V. supra no texto.

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já não oferece contrapartidas… Esta afi rmação não pode deixar de surpreender. O que é facto é que o ex-administrador já prestou, na sua gestão, o contributo equipolente para ver-se garantido contra os riscos que venham a surgir, ainda que diferidos. Trata-se de equivocado entendimento do sinalagma de seguro social quanto à matéria. Na verdade, o que a sociedade atribui como contra-partida, durante o exercício das funções de administração, não é uma prestação mas uma garantia com grande signifi cado económico de que o atingido pelo evento danoso futuro será indemnizado quando for caso disso63. Por outro lado, o argumento prova de mais! Se fossem negócios gratuitos teríamos que as pensões de reforma atribuídas tantas vezes pelas empresas aos trabalhadores por mecanismos dispendiosos seriam também considerados actos gratuitos e fora do princípio da especialidade. Pensar assim já não é hoje possível64.

Deverá ainda lembrar-se que a inclusão da divulgação do direito à reforma dos administradores, enquanto componente do seu estatuto, é hoje recomen-dada pelas normas de soft law já referenciadas.

Não releva também a afi rmação que põe em evidência o não contributo dos benefi ciários para a formação da sua reforma, como daí decorresse o carác-ter gratuito e não de contrapartida. A contrapartida diferida no tempo que constitui a reforma nada tem a ver com a circunstância de o benefi ciário para ela contribuir. Na verdade, não se pode desconhecer que os sistemas comple-mentares são na maior parte dos casos suportados integralmente pelas empresas e não pelos seus benefi ciários trabalhadores65. Era, aliás, o que, por exemplo, acontecia à época quanto à integralidade do regime de reformas dos bancários em que a Banca assumia os encargos pensionísticos totais com o pessoal especí-fi co. Seja como for, parece evidente que, mesmo agora, o problema da reforma não terá maior melindre no plano dos interesses societários que o da remunera-

63 Ver Sérvulo Correia, “Teoria geral da segurança social”, ESC, 27, passim, mas especialmente p. 225.64 Sobretudo nestes dois últimos anos, com os constantes debates que tem havido sobre os Fundos de Pensões e sua integração no Estado e sobre o congelamentos em sociedades de capitais públicos (neste último caso com expressão na lei do OE para 2014 – artigo 75.º), não se pode desconhecer uma realidade que é o de ser vulgar (e não excepcional) que as sociedades atribuam regalias quanto a reformas aos seus ex-trabalhadores e a ex-administradores, e que ninguém considera que tal rea-lidade, que hoje deve corresponder a duas centenas de milhares de benefi ciários (v. os números que apresentamos no nosso estudo cit., p. 183), resulte duma violação do princípio da especialidade.65 V. nosso estudo cit., p.181-2, de que resulta que a maior parte dos sistemas de complementação dos trabalhadores não são contributivos e apenas estão alimentados pelas empresas. V., também, a já assinalada lei do OE para 2014 (artigo 75.º, 1) que paralisa os muitos casos de pagamento de complementos nas empresas do sector público quando não tenha havido contribuição dos pen-sionistas benefi ciários. De tal decorre que mesmo às empresas públicas foi consentido estabelecer complementos sem contribuição dos benefi ciários.

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ção aos administradores e, no plano fi nanceiro, o da reforma pela empresa dos seus trabalhadores66. As limitações que justamente se entenda colocar devem assim resultar do estatuto de contrapartidas com sede própria no artigo 399.º.

Posto isto poderemos tratar das dúvidas mais específi cas.

4. Afl oramento de princípio geral ou excepção? O artigo 402.º apli-car-se-á às sociedades que não revistam a forma de SA? Aplicar--se-á aos outros membros dos órgãos sociais?

Como acabamos de dizer, perfi lar a concessão de pensões de reforma nos negócios gratuitos é desacertado, sobretudo para daí extrair consequências quanto ao carácter “excepcional” do artigo 402.º relativamente à fi nalidade societária do lucro e, portanto, entender o preceito como norma a interpretar restritivamente, como fora do círculo do princípio da especialidade67…

Na altura da publicação do CSC, em face das dúvidas que se poderiam colocar e se tinham efectivamente colocado, era conveniente que a lei se ocu-passe do assunto. Por outro lado, tratando-se de segurança social privada, tal teria de ser legitimado pela lei (artigo 63.º da Constituição68). Mas isto não deve levar-nos a considerar o preceito como excepcional69. Entendemos o art 402.º como remedeio a uma situação insegura para deixar clara uma opção nítida do legislador, mas que corresponde à revelação de um princípio geral. Como vimos, não se pode considerar tal previsão como legitimando um acto gratuito, pois a reforma dos administradores “a cargo da sociedade” é afi nal uma contrapartida, sem tem nada de estranho e corrente no comércio jurídico. Olhando até o que se passa lá fora70, não se vê a razão de exigirem muitas for-

66 Basta pensar, como temos acentuado, na mobilização de recursos fi nanceiros que se torna neces-sária para criar um fundo de pensões.67 É basicamente a perspectiva Carvalho Fernandes e J. Labareda, “Do regime jurídico do direito à reforma” cit., passim, aliás seguida por mais doutrina, mesmo a que não aceita a gratui-tidade da instituição da reforma (cfr. nota seguinte à próxima).68 Como temos sustentado, a segurança social privada tem de estar legalmente fundada, nos temos do artigo 63.º da Constituição (sobretudo na redacção de 1984 em vigor ao tempo da publicação do CSC). Cfr. nota 73.69 Tal aparece em parte da doutrina e até na jurisprudência, mas como afi rmação não justifi cada, a não ser quando se parte da errada concepção, criticada no n.º antecedente e a seguir no texto, de acto gratuito e portanto contrário ao princípio da especialidade. Para Pereira de Almeida, ob. cit., 268, o artigo 402.º não é uma norma excepcional, o que nos parece certo pelas razões do texto.70 É o que decorre da investigação de Ânia Pais Ferreira e Teresa F.m. Fernandes, ob. cit., 220-7. Cfr. nota 12.

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malidades, sobretudo em face do diminuto formalismo que existe para a fi xação da remuneração dos gestores. E isto será sobretudo assim para quem propugne a liberdade das empresas em estabelecer regalias especiais de Segurança Social para os seus colaboradores71.

Se o princípio da legalidade do artigo 63.º da Constituição aconselha reserva, não vemos razão para que não lhes fi que assegurada a cobertura complementar, ainda dentro dos sistemas legalmente previstos (regimes profi ssionais e fundos de pensões). Não nos parece que seja um esquema exclusivo das sociedades anónimas e não possa ser estendido com as devidas precauções72 às sociedades por quotas. O que pode parecer excepcional em termos de Segurança Social e do que podem decorrer riscos é o estabelecimento de um “regime de reforma” (artigo 402.º, n.º 1), mas não já “atribuir aos administradores complementos” (n.º 2). Nem parece que não se possam abranger os outros membros dos corpos sociais ou o secretário da sociedade, nas sociedades anónimas.

Não julgamos, pois, que se verifi quem obstáculos para estabelecer comple-mentações nas sociedades, a favor das pessoas titulares dos órgãos sociais (aliás note-se que a complementação é dada muitas vezes aos trabalhadores), desde que através de sistemas conhecidos e legalmente previstos (dentro do sistema do artigo 63.º da Constituição73 e do princípio da legalidade aí estabelecido).

A verdade é que o princípio geral a ter em conta é a liberdade estatutária e a autonomia da própria sociedade que, dentro da lei e dos princípios gerais, pode agir livremente, desde que não actue abusivamente, em contrariedade dos bons costumes ou em prejuízo de terceiro. E a tal actuação nada se poderá apontar quando se coadune com os princípios agora em voga de responsabilidade social.

71 Excepcional, em termos de seguros sociais, poderia parecer a previsão de o regime fi car “a cargo da sociedade”, do que decorreria eventualmente (ainda que não necessariamente) que podia não ser comparticipado pelos benefi ciários, contrariando assim a lei da Segurança Social então vigente (artigo 65.º da Lei n.º 84/84). Mas este preceito, que exigia a quotização dos benefi ciários, nunca passou de letra morta, desmentida não só pela prática mas pelos sucessivos diplomas sobre fundos de pensões, contemporâneos e posteriores.72 Assim, Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades (Coimbra, 2007), 2.ª ed., 872, nota 2475; P. Olavo Cunha, Direito das Sociedades cit., 686. Ainda mais afi rmativamente, Pereira de Almeida, 268. Contra Carvalho Fernandes e J. Labareda, ob. cit., 549.73 Como muitas vezes temos dito, qualquer sistema privado tem de estar previsto na lei (artigo 63.º da Constituição, sobretudo na redacção até 1997) pelo que parece algo difícil sustentar uma interpretação extensiva do n.º 1 do artigo 402.º que permita um “regime” próprio para os geren-tes e membros dos órgãos estatutários a seguir referidos. Mas já não vemos difi culdades, como se diz já a seguir no texto, na previsão de “complementos” de reforma (n.º 2) para outros titulares de cargos sociais, mesmo em outro tipo de sociedades, sob a modalidade de regimes profi ssionais e fundos de pensões, que estão legalmente previstos na legislação própria.

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No que se refere à Segurança Social e à sua complementação, desde que prevista na lei, os princípios gerais a convocar são os da liberdade e de comple-mentaridade, na base duma subsidiariedade articulada.

5. A dualidade dos esquemas previstos: i)”regime de reforma” espe-cial (n.º 1); ii) “complementos” ou “pensões complementares” (n.º 2)

Voltemos ao que está previsto no CSC:No n.º 1 do artigo 402.º preceitua-se que o pacto social pode estabelecer um

“regime” de reforma para os administradores “a cargo da sociedade” e no n.º 2 que é permitido à sociedade atribuir, dentro de certos limites, “complementos de pensões de reforma”. Comuns a esses dois esquemas distintos e alternativos de pensionamento, o n.º 3 – que estabelece que eles cessam no momento em que a sociedade se extinguir, podendo esta realizar à sua custa contratos de seguro para prevenir o risco dos benefi ciários – e o n.º 4. Este último número, como baliza no plano das competências societárias, impõe a regulamentação desses benefícios pela assembleia geral, i.e., não por uma comissão de remune-rações, mas transparente e publicamente pelo órgão societário soberano74-75.

Temos então que do artigo 402.º do CSC decorre, quanto a nós clara-mente, que o problema do status dos administradores76 no plano da segurança social se pode situar também na esfera privada. Perfi la-se como facultativo, (pois os gestores estão já abrangidos, fora casos cada vez menos usuais, pelo sistema público) e desenvolve-se em duas linhas: uma de “regime” específi co e outro de “complemento” e, por boas razões, nem sempre com idêntica disciplina. Para os administradores estão pois previstos como admissíveis ou um “regime” ou “complementos”, não estando expressa qualquer proibição de adicionar –

74 Como excepção ao que se praticava quanto às outras contrapartidas dadas aos administrado-res, normalmente fora da transparência da fi xação em assembleia geral, já que só é exigível ou recomendável (e só recentemente mesmo nos casos mais estreitos) declarações sobre a política de remunerações. Assim, os aspectos regulamentares dos benefícios pensionísticos devem ser esta-belecidos em AG, fora o caso previsto no artigo 433.º, 3. 75 De facto, tem sido discutida a possibilidade de delegação de poderes da assembleia geral em uma comissão, havendo jurisprudência nesse sentido. No quadro presente, não parece que seja uma competência que a assembleia possa delegar.76 Adoptamos a qualifi cação de M. Cordeiro, ob. cit., 880.

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um e outros – à pensão percebida do sistema ofi cial ou estadual de segurança social, se existir no caso77.

Notar-se-á que na data da publicação do CSC (1986) poderia muito bem acontecer que os gestores não tivessem carreira contributiva sufi ciente para constituir o respectivo direito ao pensionamento. Assim, se não existisse pen-sionamento78, os esquemas do artigo 402.º serviriam como sucedâneo. No seu teor verbal, o artigo 402.º distingue claramente a fonte79 dos dois esquemas de pensionamento: quando se trata de um “regime”80, obviamente matéria com-plexa de certo melindre e especifi cidade, o pensionamento nos termos do n.º 1 terá base estatutária81; quando se trate de mera complementação, em que os

77 Na medida em que existam (há ainda casos infrequentes de administradores não remunera-dos), em regra adicionam-se (fora os casos que esteja prevista uma integração articulada – v. infra). Note-se que, a partir de 1982, os administradores das sociedades passaram legalmente a ser con-tribuintes e benefi ciários do sistema público de Segurança Social, do que decorreu que em regra qualquer benefício empresarial que lhes fosse reconhecido se adicionaria às prestações públicas a que tivessem direito mais tarde, passado o período de garantia ou de carência (no caso de 15 anos e, portanto, a partir de 1997, se atingissem sufi ciente densidade contributiva). 78 Tal seria frequente à data da entrada em vigor do CSC e durante os anos necessários a que decorresse o período de carência (cfr. nota anterior), sendo hoje raro (porventura nos casos de estrangeiros não comunitários sem convenções de harmonização e outras pessoas que não tenham ainda atingido o período de garantia com o mínimo de descontos).79 Cfr. a seguir (nota 86): antes de 1986 verifi cavam-se práticas quer de previsão em cláusulas do contrato de sociedade quer de deliberações de sócios. 80 O termo “regime” possui diversas denotações em segurança social, mas na espécie, sobretudo tendo em conta a terminologia da época, só pode signifi car esquemas privativos de um sector ou grupo de benefi ciários, i.e., num quadro de “regimes especiais” (no caso, o dos administrado-res da empresa) determinados fora do chamado “regime geral”: assim, por exemplo, para além do chamado “regime não contributivo, o regime dos rurais, dos trabalhadores independentes, dos bancários e até certos regimes específi cos de empresa (ex-trabalhadores da Marconi). Cfr. as obras de Apelles Conceiçâo À época (Legislação de Segurança Social – Regimes, Coimbra, 1989) e o glossário de Segurança Social, Manual Prático (Lisboa, 1994), 5.ª ed. Para um glossário, ainda que mais recente, v. as várias entradas de Ilídio das Neves, Dicionário Técnico Jurídico de Protecção Social (Cb.ª Ed.ª, 2001). Cfr., também, sobre a matéria, do mesmo autor, Direito da Segurança Social, (Coimbra, 1996), 84, a rúbrica “ponto de especialização: os regimes de segurança social”. Aí se diz: “As relações jurídicas de segurança social surgem e desenvolvem-se em contextos factuais e sócio- profi ssionais muito diversos. No caso de a lei dar relevância jurídica a essa diversidade, tal circunstância determina a organização de conjuntos normativos diferenciados em função do estatuto jurídico ou económico reconhecido às pessoas que são titulares dos direitos à segurança social. É neste contexto que surgem os regimes de segurança social, os quais podem ser defi nidos como conjuntos, em regra diversifi cados, de disposições legais e regulamentares, imperativas ou facultativas, que defi nem e organizam o direito à segurança social de grupos específi cos de pes-soas, criando obrigações e fi xando os direitos correspondentes”.81 “O pacto social pode…”

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benefi ciários e o tempo de alcance do benefício já se encontram defi nidos, bas-tará, nos termos do n.º 2, uma deliberação da sociedade82. Tal resulta de modo nítido da letra do Código, que é formulada neste aspecto com um quadro conceitual cuidadoso nos domínios do Direito societário: a) quando emprega designações tais como “contrato de sociedade”, refere-se aos estatutos ou pacto social, como se queira; b) quando atribui qualquer permissão à sociedade do tipo –: “é permitido à sociedade” – reporta-se aos órgãos societários compe-tentes cujos actos sejam àquela imputáveis (maxime, da assembleia geral83). Isto é, o CSC distingue sempre com terminologia clara o contrato de sociedade e os actos (normalmente deliberativos) da sociedade.

Como também o CSC é claro na sua letra84, em que as restrições do n.º 2 (a reforma não ser maior que a remuneração dos administradores do activo) se reportam aos complementos.

Tecnicamente uma coisa é um “regime”85 e outra um esquema de “com-plementos”86, do que se apercebeu bem o STJ no ac. de 2.12.2014. Alguma doutrina societarista não se dá conta por vezes da linguagem da Segurança Social e chega a amalgamar, sem sentido e base legal, duas realidades muito diferentes: a dos regimes próprios e a dos complementos. De facto, o termo “regime” não designa um sistema normativo detalhado numa grande área do Direito ou a disciplina de um instituto jurídico contida num diploma estruturado87 mas a

82 “É permitido à sociedade…”83 Assim, no CSC, podemos ver, sem a mínima preocupação exaustiva e quase ao acaso, para “socie-dade” referida aos órgãos que a representam e têm as necessárias competências (artigo 4.º; 29.º; 38.º; 91.º e ss; 186.;, 397.º, normas em que aparece por vezes “a sociedade pode”); para “contrato”, relativo ao pacto social ou a matérias ou competências estatutárias (artigo 5.º; 7.º ss; 15.º ss; 407.º ss). Os artigos 6.º, 4; 11.º; 15.º; 38.º; 53.º; 56.º; e 85.º exprimem também clareza terminológica. Como escreve P. Olavo Cunha, Direito das Sociedades cit., 127, “contrato “ e “estatutos” são sinónimos.84 Como veremos, muitos entendem que esses limites se aplicam também ao “regime” por iden-tidade de razão, o que não nos parece correcto, pois há razões para distinguir, como explicare-mos já de seguida.85 Cfr. nota 80 supra e a seguir no texto.86 Nos estatutos de algumas sociedades a distinção é nítida (v. o exemplo referido em Ânia Fer-reira e Teresa Fernandes, ob. cit., 237). Quem estava atento ao que se passava anteriormente à entrada em vigor do CSC verifi cou que se encontravam práticas de pensionamento quer de previsão em cláusulas do contrato de sociedade quer em deliberações de sócios (Ilídio Duarte Rodrigues, ob. cit., 168). O mesmo autor (ob. e loc. cit.) distingue o regime dos complementos.87 Isto é, diploma articulado e sistemático destinado a regular exclusivamente certos domínios do jurídico: RJCIT (regime jurídico do contrato individual do trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49 408) ou o RJCS (regime jurídico do contrato de seguro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008) ou RJIES (regime jurídico, constante da Lei n.º 62/2007, das instituições de ensino superior), ou o RJUE (regime jurídico constante do Decreto-Lei n.º 555/99, da urbanização e edifi cação).

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instituição de um esquema típico e diversifi cado de segurança social para um grupo específi co88, o que certamente provocou uma teia de mal-entendidos na doutrina. Disso é exemplo o equívoco, primeiro de Carvalho Fernandes/João Labareda89 e depois de Paulo Olavo Cunha90, ao dizer que “o número 2 do artigo 402.º constitui uma mera especifi cação do disposto no n.º 1 e não um preceito complementar”, a que soma, salvo o devido respeito, um argumento de carácter circular, escrevendo que “tal resulta com clareza da sua parte fi nal”, em que estabelece como limite a remuneração dos administradores efectivos91. Na verdade, só não considerando o quadro conceitual da Segurança Social é que se pode deixar de atribuir signifi cado a esquemas descritos com tão diversos enunciados verbais, estabelecidos por métodos tão diferentes92.

Aliás, em seguida, o CSC é novamente cristalino ao distinguir os dois tipos de cobertura pensionística, quando no n.º 3 menciona em disjuntiva “o direito

88 Cfr. nota 80. Diga-se que são explicáveis as confusões actuais, até porque a terminologia na Segurança Social tem evoluído: hoje fala-se de sistemas, regimes e esquemas, ao tempo falava-se sobretudo de “regimes”. Não sendo muito precisa a terminologia, a verdade é que nesta norma o sentido possível tem de estar ligado à ideia de “regimes especiais”, como acentuámos na nota 80. Não nos parece haver dúvida, em face dos conceitos de Segurança Social à época (anos oitenta) e da respectiva LBSS e a legislação complementar, sobretudo tendo em conta a conexão que aqui interessa (âmbito pessoal dos profi ssionais em causa, como os por conta de outrem, independentes, bancários, clero, etc.). Para a lei havia “regime geral” – artigo 10.º – e “regimes especiais” – artigo 69.º), e uma coisa eram esses regimes e outra os complementos, entendendo-se aqui os recenseados por Ilídio das Neves (Dicionário técnico e jurídico de protecção social, p. 593 ss).89 Perguntam os autores (ob. cit., 544): “Ao contrato social basta a previsão da possibilidade de a sociedade praticar esquemas de reforma para os seus administradores? Ou é necessário que dele conste algo do respectivo regime?”. E concluem pelo segundo termo, com base no equívoco assinalado quanto ao signifi cado de “regime”. Continuam os equívocos quando consideram os complementos do n.º 2 um benefício adicional ao contemplado no n.º 1 (p. 551).90 Sobretudo em “Reforma e pensão de administradores”, já cit.91 Na realidade, Paulo Olavo Cunha (Direito das Sociedades cit., 764), em parte na esteira de Car-valho Fernandes/João Labareda, pretende que se apliquem, sem apoio na letra da lei, os limites do n.º 2 ao regime do n.º 1 e por isso defende uma certa leitura dos preceitos, afi rmando que se referem à mesma realidade, apresentada no n.º 1 e especifi cada no n.º 2. A circularidade do racio-cínio fi ca oculta porque o autor remove a ideia evidentemente errada de Carvalho Fernandes/João Labareda (de facto, não é aceitável que o n.º 2 complemente o n.º 1) para dar como assente que o n.º 2 é uma mera especifi cação, afi rmando isso mesmo, porque vai defender seguidamente que os limites do n.º 2 se aplicam ao n.º 1…Na verdade, como veremos, tratam-se de coisas muito diferentes para quem esteja atento às técnicas de Segurança Social.92 Já Paulo Olavo Cunha teve melhor percepção da dualidade num passo já aqui transcrito (p. 762), em que refere disjuntivamente “um regime de reforma” (o itálico é desse nosso ilustre colega) “ou inclusivamente a constituição de um Fundo de Pensões” (como é notório os fundos de pen-sões funcionam normalmente como esquemas de complementação). Do mesmo modo,”Reforma” cit., 312.

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dos administradores a pensões de reforma ou complementares”, e, ainda, quando no n.º 4 se refere a regulamento de execução do disposto nos núme-ros anteriores, sendo certo que o n.º 1 se reporta a um “regime” e o n.º 2 a “complementos”93.

Ora, no nosso entender, as técnicas e linguagem da Segurança Social pos-tulam a distinção entre “regime” e “complementos”94.

6. A competência dos estatutos (n.º1) e da AG. O regulamento (n.º 4)

6.1. A previsão estatutária referida no n.º 1 do artigo 402.º do CSC e as interpre-tações restritivas. Parte da doutrina, cujo formulação mais moderna é de Paulo Olavo Cunha95, mas defendida já por Carvalho Fernandes e João Labareda, cujo pensamento infl uenciou um acórdão do STJ muito citado de 2000 (de 10/5/00) e agora o de 2014,96 entende que não basta a mera previsão estatutária do direito à reforma nos termos do n.º 1, mas é necessário mesmo um regime hoc sensu, ou “bases gerais” com várias especifi cações, em que se estabeleçam “os destinatários (ou sujeitos de direito), pressupostos de concessão, tipo e con-teúdo […] da prestação de reforma” e ainda outras coisas…97

93 De facto, a partir de 1982, os administradores das sociedades passaram legalmente a ser con-tribuintes e benefi ciários do sistema público de Segurança Social, do que decorreu que qualquer benefício empresarial que lhes fosse reconhecido se adicionaria naturalmente às prestações públicas a que tivessem direito. Paulo Olavo Cunha (Direito das Sociedades Comerciais, 5.ª ed., Coimbra, 2012, 763) diz que “a lei societária admite que o contrato de sociedade preveja, em acumulação com o regime geral de previdência, um regime de reforma a cargo das sociedades ou inclusivamente a constituição de um Fundo de Pensões” (sublinhado nosso).94 Abrindo caminho a uma amálgama da disciplina dos dois esquemas, tal como proposto por Paulo O. Cunha, cfr. um acórdão mais recente da R. de Lx.ª (4.2.2014).95 Basicamente a partir da 4.ª ed. do Direito das sociedades comerciais e desenvolvido no artigo “A reforma…” cit.96 Ac. de 2.12.2014, ainda que o assunto seja muito diferente. Sendo certo que a orientação dos tribunais tinha mudado, Ânia Ferreira e Teresa Fernandes, ob. cit., 232 ss, referenciam lar-gamente o Ac. da R. Lx.ª de 20/1/05 e o Ac. do STJ de 1/3/07. 97 Ob. cit., 544. E os autores dizem logo a seguir, com um exemplo que, salvo o devido respeito, parece arbitrário, sem qualquer apoio no texto legal ou em princípios gerais conhecidos: “Em termos mais concretos, e a mero título de exemplo, tem o contrato social de, genericamente, esta-belecer se o benefício é atribuído a todos os administradores ou apenas a certas categorias, regras mínimas sobre a idade de reforma, o período de duração dos mandatos, o grau de invalidez, ou máximas quanto ao valor da reforma, ou os critérios a que deve obedecer o seu cálculo.Ao regulamento fi ca reservado o papel de, com respeito destes parâmetros, estabelecer o regime específi co de todas estas bases gerais, mas ainda outras complementares, como se são admitidas pen-

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Quanto a nós, o problema é o de defi nir o grau de concretização, sendo certo que, no mesmo artigo 402.º (n.º4), está previsto fi car espaço para uma pormenorização regulamentar e, porventura, para uma concretização em deli-beração específi ca da assembleia geral. O que se diz no n.º 1 – “estabelecer um regime” – poderia pela letra signifi car a montagem de um normativo completo, mas, referindo-se a matéria estatutária, é perfeitamente compatível com a ideia de “prever” ou “instituir”, deixando as regras de execução para dispositivos de segunda linha, e isto sobretudo quando a seguir se exige uma regulamentação por acto da assembleia geral (expressamente o n.º 4 do mesmo preceito).

Por outro lado, mesmo as interpretações literais têm de se coadunar com o quadro conceitual apropriado. Como se disse98, considerar que com a palavra “regime” o legislador pretendia que se incluísse nos estatutos um regime jurí-dico-normativo ou de “bases gerais” é ignorar a linguagem aplicada na Segu-rança Social e vulgarmente empregue a propósito da reforma. E isto sobretudo quando o regime em causa se liga a um certo tipo de cobertura por pensões e aos riscos de velhice e invalidez. O que, a propósito das reformas correntemente se entendia na linguagem corrente e normativa da Segurança Social quanto a “regime”99, tinha a ver – já o deixámos enunciado – com tipos ou esquemas de segurança social, no plano de inscrição, contribuições e benefícios, havendo um “regime geral” (dividido em “regime contributivo” e “não contributivo”), “regimes complementares” e vários “regimes sectoriais” e “regimes especiais”, como sabe quem não esteja demasiado longe destes domínios. Temos assim, basta ver qualquer glossário da Segurança Social da época, na entrada “regi-me”100, os regimes especiais da função pública, das actividades agrícolas, dos independentes, o dos advogados e dos solicitadores, dos transportes colectivos do Porto, o do clero, o dos bancários, dos ferroviários, etc. E também era o que se retira da disjuntiva do artigo 402.º – “regimes” ou “complementos” –, já que estes se destinavam a complementar, enquanto aqueles eram específi cos.

Não deixaremos de insistir101 em que um esquema a se de pensionamento e que não representasse uma mera complementação era, sobretudo na época, pensável para muitas situações. Na verdade, apesar de vigorar já um sistema de segurança social para os administradores, admitidos estes como contribuintes

sões parciais, ou pontos concretos no cumprimento da correspondente obrigação: início e termo da pensão, meios e prazos de pagamento.” 98 Cfr. número anterior.99 Veja-se o prefácio de Bagão Félix no livro de Apelles Conceição, Legislação da Segurança Social, I, com o subtítulo expressivo REGIMES, referido na nota 80.100 Cfr. nota anterior e notas 80 e 88.101 Cfr. n.ºs 3 e 4 supra.

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e benefi ciários, o que viesse nesses domínios ganharia sentido nos casos em que essas pessoas não tinham qualquer segurança social ou esta era diminuta (por exemplo, no caso de exercício gratuito de funções102, profi ssionais liberais, cidadãos estrangeiros103, e, sobretudo, na Banca, já que todo o sector bancário estava à época fora do regime previdencial104).

Quanto a nós, nem pode ser exigível para o “regime de pensões” que os Estatutos contenham todo o aparato a que se referem algumas decisões judi-ciais105, na base do excessivo da formulação de C. Fernandes/Labareda106. Se assim fosse o legislador diria “regulamentar”, como fez logo anteriormente no artigo 400.º, 2. No nosso entender, seguindo aliás a opinião de Coutinho de Abreu107 e de outros, basta uma previsão estatutária, que nalguns casos será mais detalhada, noutros menos. É o que nos diz a prática, pois haverá pouquíssimos exemplos de tal detalhe108.

Note-se ainda que a exigência desses autores para que se prevejam aspectos institucionais, ainda que relevantes, não tem afi nal coerência e real alcance.

102 Não sufragamos a posição de que esses administradores não possam ter reforma: por quê, não seria em muitos casos justo?103 Quando não tivessem reforma ou não pudessem fazer valer os seus direitos de reforma nos países de origem ou no caso de administradores que não tenham atingido o período de garantia para a reforma da segurança social. 104 Situação que só terminou há poucos anos.105 Com antecedentes no ac. STJ, de 10/5/00 largamente referido no estudo Ânia Ferreira e Teresa Fernandes, ob. cit., 231-2.O acórdão decidiu na erradíssima base que já criticámos de que se trata de atribuição sem contrapartida, de carácter excepcional e em princípio exorbitantes da fi nalidade lucrativa da sociedade.106 Cujo parecer teve infl uência signifi cativa naquela decisão, como se lê na p. 534 do referido estudo dos ilustres autores. Notaremos, en passant, que os AA, ao referirem à sua listagem de por-menorizações um “pelo menos”, demonstram a perigosa fraqueza dessa indicação. Não pode haver nem um “pelo menos” nem um “pelo mais”. Na realidade, os necessários elementos de “regime” (se a palavra, com acepção diferente da terminologia da Segurança Social, envolvesse um nor-mativo completo) deveriam ser taxativamente estabelecidos na lei, pois não pode no domínio da liberdade da autonomia negocial uma sociedade estar sujeita a eventualmente considerar-se que faltam elementos no pacto social para defi nição de um “regime” de pensões. Que segurança jurídica oferecem as indicações dos autores como um “pelo menos”? Não poderia sempre surgir quem fi zesse outras exigências? 107 Ob. e loc. cit. e também Ânia Ferreira e Teresa Fernandes, ob, cit., principalmente pp. 239. E, ainda, Pereira de Almeida, Sociedades Comerciais, 6.ª ed., Coimbra Ed.ª. (2011), 267.108 Resulta da ob. cit. de Ânia Ferreira e Teresa Fernandes (pp. 240-6) que pesquisaram alguns estatutos, que estes não são nestes domínios minimamente pormenorizados e se contentam com uma simples previsão. Nós próprios seguimos esse exemplo, visionando vários pactos sociais de grandes sociedades anónimas: apenas encontramos um (o do Montepio) que cumpria minima-mente o que indicam os autores e a jurisprudência criticados.

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Com efeito, verifi ca-se que os pontos mais melindrosos no plano prático e os únicos que poderão ter relevo de ordem pública quanto à garantia do pen-sionamento e dos interesses gerais (suporte fi nanceiro da reforma, através de provisões, separação de patrimónios e fundos de pensões) são deixados, nesse entender que vimos criticando, à discricionariedade da assembleia geral ou até do conselho de administração109...

Colocar nos estatutos, sobretudo em sociedade nascente110, as questões con-sideradas exigíveis pela jurisprudência citada na senda de C. Fernandes/Laba-reda traria desproporção e sobrecarga ao pacto social111, que tem como se sabe um conteúdo estrito, formulado de modo enxuto. Por outro lado, envolveria a necessidade de mudar constantemente esse mesmo pacto social, sobretudo se se entendesse imprescindível a multidão de normas a que os Ilustres autores exigem112. A exigência de pormenorização “matará” completamente as possi-bilidades de previsão de reforma pela sociedade. Aliás, como se referiu, o artigo 402.º, 4, impõe um regulamento de execução pela assembleia geral, o que fi caria sem objecto a considerar a exigência requerida pela doutrina criticada. Não se sabe o que sobraria para esse regulamento113 (e não se vê razão para que não seja independente), se o pacto social tivesse a preocupação de estabelecer os termos de concessão das pensões com o detalhe a que aludem C. Fernandes//Labareda114. Como bem concluem Ânia Ferreira e Teresa Fernandes115, a cl.ª estatutária não tem de conter todo o regime da reforma “o que se deve retirar do artigo 402,.º, 1, do CSC é que o estatuto tem de prever a atribuição dessas vantagens”116.

Não é de surpreender que nos usos do tráfi co não surjam nos estatutos mais do que meras permissões. Dizem as Autoras que temos citado a concluir o seu estudo: “olhando para a realidade empresarial e comercial actual, os estatutos

109 Aliás, o legislador do CSC apenas se refere, neste domínio, a contratos de seguro.110 Não se perf ila ainda nessas sociedades o problema da reforma, mais longínqua, dos administradores.111 Basta pensar que o aspecto acessório da reforma dos administradores ocuparia mais espaço esta-tutário que o que é normalmente dado ao próprio conselho de administração.112 Como frisam, acertadamente, Ânia Ferreira e Teresa Fernandes, ob, cit., 239. 113 Chamando a atenção para o erro que constitui não considerar devidamente o regulamento, Coutinho de Abreu, Governação das Sociedades Comerciais, (Coimbra, 2010), 2.ª ed., 98-9.114 Assim, Coutinho de Abreu; ob. cit., 236. A crítica de C. Fernandes/Labardeda à dou-trina de Coutinho de Abreu não convence, porque a exemplifi cação que fornecem da matéria estatutária e regulamentar é arbitrária e não assenta em critério seguro e defensável: há aspectos básicos no que consideram regulamentar e pormenores no que entendem como fundamental e reservado aos estatutos.115 Ânia Ferreira e Teresa Fernandes, ob. cit. 235 e 239, na esteira de Coutinho de Abreu.116 Ob. cit., 237.

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das sociedades estudadas optam pela mera previsão/autorização para que a AG (ou CGS) venha, posteriormente, no Regulamento de execução, pormenorizar o seu regime”117.

O argumento substantivo de Carvalho Fernandes e João Labareda118 ao exigir uma pormenorização estatutária na matéria, invocando interesses de ter-ceiros como credores sociais e de sócios futuros, parece ser tão débil quanto o volume de comprometimentos que está em causa119. No plano de compro-missos da sociedade anónima, um direito à reforma envolve escassas mobili-zações de recursos, em face até da diminuta rotatividade dos administradores e do seu pequeno número. Actos de enorme importância e que determinam a mobilização de meios fi nanceiros vultuosíssimos, como a constituição de fun-dos de pensões para todos os trabalhadores (fundos em que se incluem muitas vezes os membros dos órgãos sociais), são matéria da competência do conse-lho de administração120. Afi nal, o próprio estatuto remuneratório, esse sim, envolvendo outros quantitativos e sobretudo as questões de imagem da corporate governance, é matéria de fi xação por uma comissão de vencimentos! Por outro lado, as especifi cações contidas no soft law para a transparência e equidade na corporate governance não insistem em dar dignidade estatutária a algo que é por essência mutável. A que título exigir uma previsão estatutária, ainda por cima, pormenorizada?

Quanto a nós, a referência do artigo 402.º, 1, à previsão estatutária fun-damenta-se no relevo que a própria lei quis dar à solução do problema que equacionámos. A necessidade de segurança jurídica relativamente a accionistas e terceiros121, no caso, não particularmente relevante, consegue-se com a sim-ples previsão: não é a leitura de um certo normativo abstracto (ainda por cima a regulamentar em assembleia geral) que dá minimamente a ideia de quais são

117 Ânia Ferreira e Teresa Fernandes, ob. cit., 246.118 Ob. cit., 539, nota 13.119 Também criticamente Ânia Ferreira e Teresa Fernandes, ob. cit., 238 s. 120 Não se diga que os futuros sócios ou credores estarão preocupados com as bases gerais da reforma dos ex-administradores e não, por exemplo, com a existência de “pára-quedas dourados” para os que se encontram em exercício…121 Insistindo nessa ideia, Paulo Olavo Cunha, “Reforma” cit., 316-7, refere a necessidade de “plena consciência” (dos accionistas) …”para poderem antecipar ou, pelo menos, ter a percep-ção adequada dos respectivos encargos (a assumir pela sociedade)”. Nós não podemos aceitar esta argumentação, pois na verdade os órgãos societários são competentes para assumir encargos infi -nitamente mais vultuosos, e que não têm especial defi nição nos estatutos. Tal acontece inclusiva-mente com os encargos com a administração da sociedade. A argumentação só seria cabida num quadro legislativo como o espanhol em que a lei das sociedades e a lei das sociedades de capitais exigem expressa previsão estatutária para a existência de contrapartidas e respectiva política quanto aos administradores.

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na prática as responsabilidades e seu volume, o seu provisionamento, etc.122. Os sinais deixados pela previsão estatutária são sufi cientes para alertar os inte-ressados, accionistas ou credores, que estão atentos sim ao volume real de res-ponsabilidades e não a fórmulas abstractas. Por outro lado, estes compromissos têm de ser provisionados e constarão das contas da sociedade nas rubricas de encargos (pessoal/administração) a título de benefícios pós-emprego, sendo os interesses dos credores e dos transmissários acautelados por um mínimo cum-primento da norma contabilística.

Em suma, na economia dos n.ºs 1 e 4 do artigo 402.º trata-se da previsão de um preceito estatutário de atribuição de competência à assembleia geral, i.e., de habilitação, e não uma regra legal que pretenda estabelecer uma divisão de competências normativas tipo “bases gerais” e “regulamento”. A ideia de regu-lamentação não envolve mera execução (pode tratar-se de um regulamento independente), mas que seja estabelecido pela assembleia geral um normativo que desenvolva os pressupostos de facto da atribuição da reforma de modo a permitir a respectiva liquidação, contendo eventualmente as regras procedi-mentais adequadas123.

6.2. O n.º 2 do artigo 402.º do CSC e as interpretações que exigem aqui tam-bém uma previsão estatutária (pormenorizada). Agrava o equívoco que se gerou ao entender-se que era exigível a completa previsão estatutária de um “regime” (n.º 1), a teoria divulgada de que é necessário um normativo pormenorizado, mesmo no que se refere aos complementos do n.º 2124. Não se vê qualquer razão, devendo notar-se que a letra da lei nem sequer remotamente sugere a previsão estatutária relativamente a complementos, quanto mais quanto a um “regime” (hoc sensu) de complementos! Pelo contrário, quando o artigo 402.º pretende estabelecer disciplina igual e comum para o “regime” do n.º 1 e para os “com-plementos” do n.º 2, di-lo expressamente e de forma específi ca, como nos n.ºs 3 e 4125.

Analisemos a argumentação no plano substantivo. Diz-se que não há razão para distinguir e, portanto, se devem aplicar aos dois casos todas as restrições respectivas. Assim, para que a sociedade estabeleça os complementos do n.º 2,

122 Também Ânia Ferreira e Teresa Fernandes, ob.cit. 237, seguindo Coutinho de Abreu.123 Cfr. Ânia Ferreira e Teresa Fernandes, ob.cit., 236-7, seguindo Coutinho de Abreu.124 A generalidade da doutrina assim pensa, reproduzindo sem análise um argumento de identi-dade de razão relativamente à exigência de previsão estatutária contida no n.º I.125 Como vimos, no n.º 3 que prevê a cessação dos direitos e eventual seguro contra este risco especifi ca em disjuntiva o direito a “pensões de reforma ou complementares”. O n.º 4 refere o regulamento para a execução dos “números anteriores”.

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entende muita da doutrina ser obrigatória também a normação estatutária à qual no seu entender alude o n.º 1. Diz-se ainda que se aplicam as limitações quantitativas (vencimento do administrador de maior remuneração) também para o “regime” estatutário do n.º 1, embora apenas previstas no n.º 2 para a complementação126.

Já tivemos há pouco de chamar a atenção para a impropriedade da pers-pectiva de Paulo Olavo Cunha, quando entende que o n.º 2 do artigo 402.º especifi ca o n.º 1, sendo para nós evidente que estes dois números traçam a previsão de duas realidades muito diferentes, cada uma delas com estatuição diferenciada. Salvo o devido respeito, é desajustado o argumento de que não há razão para distinguir as duas hipóteses. São desprovidas de base as asserções que se contentam em afi rmar que se aplicam reciprocamente todas as limitações…por uma identidade de razão que não se vislumbra! Na verdade, mostrámos e mostraremos ao longo deste texto que são coisas bem diferentes a instituição de um “regime” e a concessão de “complementos”.

Não pensamos que na matéria se devam fazer interpretações restritivas, método proposto por Menezes Cordeiro127, o que nos merece reservas. Na verdade, como acentuámos (supra n.º 4), está longe de ser uma norma excep-cional aquela que, preservando a autonomia negocial, vai no sentido de uma concepção moderna da sociedade e da sua gestão128. O artigo 402.º, porventura historicamente conveniente para resolver em defi nitivo um problema que se tinha colocado, corresponde ao princípio geral de autonomia. Assim, o artigo 402.º, não é excepcional enquanto habilita, mas apenas nos segmentos de norma em que estabelece restrições.

Se a letra da lei e o seu enquadramento no sistema não confortam as já criticadas exigências, ainda menos a sua substância, pois estamos em presença de situações inteiramente diferentes! Se nos aproximarmos da diversidade de questões e de técnicas da Segurança Social encontraremos as diferenças entre prever um “regime”, o que é matéria complicada129, e “atribuir complemen-tos”, o que às vezes se consegue pela simples adesão a um Fundo de Pensões ou

126 Note-se ainda que, quanto aos limites da remuneração do n.º 2 aplicáveis à situação do n.º 1, há mais comercialistas que entendem assim.127 Apud autores cits., 538. O Ilustre privatista também não considera válida a cláusula estatutária que se limite apenas a uma previsão (Código das Sociedades Comerciais anotado, nota 2, 982).128 As actuais limitações no estatuto de benefícios da governance não põem em causa sequer a possi-bilidade de as sociedades em geral disporem regras quanto à reforma. No nosso sistema, sendo-se largo nos aspectos de remuneração e fringe benefi ts da administração matéria em que nem sequer é necessária deliberação da assembleia geral, a lógica não permite ser estrito relativamente à reforma.129 Instituir um “regime” supõe que seja estabelecida uma previsão fi nanceira, com um certo grau de complexidade, muito diferente de esquemas complementares, a cargo de fundos autónomos e

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com a subscrição de PPR’s130! Trata-se de coisas de diversíssima complexidade. Seja qual for o sentido do artigo 402.º, haverá que aperceber que o comprome-timento técnico, jurídico e eventualmente de dispêndio fi nanceiro da monta-gem de esquema próprio ou “regime” nada tem a ver com “complementos”, a conceder até em casos pontuais, em que estão defi nidos à partida os respectivos pressupostos. No caso dos complementos, os elementos essenciais da relação de Segurança Social privada estão fi xados, normalmente, pela existência de um sistema público para que se remete e, como tal, pode até dispensar a defi ni-ção de pressupostos. Por isso faz todo um sentido que no caso de “regime” se exija previsão estatutária e no caso de “complementos” tal possa ser confi ado à assembleia geral, aí com algumas limitações, como vamos referir.

6.3. O regulamento do n.º 5 do artigo 402.º. A instituição de esquemas de reforma (estatutária ou da assembleia geral, no caso dos complementos) não necessita nem parece poder conter pormenorizações, pois há que deixar mar-gem para uma regulamentação imposta pelo n.º 5 do artigo 402.º.

Quanto a esse regulamento, o estudo C. Fernandes/Labareda131 aborda alguns problemas. Um deles será o de os estatutos preverem exaustivamente mesmo os aspectos regulamentares, retirando à assembleia geral essa compe-tência, para o que os autores consideram não haver impedimento. Nós vemos sem simpatia a expropriação das competências defi nidas pela Lei e não perce-bemos porque o pacto social deva obstar à soberania da assembleia geral neste preciso ponto. Parece-nos que os estatutos não devem ser exaustivos e não se vê por que é possam pretender fi xar no plano regulamentar, com carácter de relativa defi nitividade, matérias deste tipo. Contudo, aceitamos, ainda que com dúvidas, que – se assim o entenderem – podem os estatutos assumir uma regulamentação completa. Mas este ponto tem escassas consequências práticas e serão certamente poucos os casos da assunção pelos estatutos da regulamentação minuciosa de um ponto tão secundário da vida societária132.

em que a responsabilidade é muito mais limitada. V., B. XAVIER, “Problemas jurídico-laborais dos fundos (fechados) de pensões”, cit, passim.130 Nestes casos, simples, é patente quão desproporcionado seria exigir uma previsão de “bases gerais” no pacto social, ainda por cima a completar por um regulamento…131 Ob. cit., 542-3.132 Se os autores citados tiverem razão, qualquer regulamentação aprovada contrária aos estatu-tos será meramente anulável nos termos do artigo 58.º, 1, a), como veremos a seguir. Mas, se os autores referidos não tiverem razão, não vemos também que se verifi quem especiais consequên-cias práticas pela violação da lei pelos estatutos nesse preciso ponto, sendo que a assembleia geral continua a poder exercer o seu poder regulamentar.

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Os autores que temos citado aceitam contudo a imprescindibilidade do regulamento se o pacto social não o contiver. De facto, tal corresponde à letra da lei (“deve”) e, se o regulamento não existir, não há direito de reforma, que não pode ser atribuído por qualquer outro órgão. Parece certo e isto tem a ver com a necessidade de defi nição geral e abstracta dos termos da reforma, a menos que esta esteja defi nida sem dar lugar a difi culdades substantivas nos estatutos, nesse ponto self executing. O que se pretende certamente é evitar deli-berações para privilegiados ou votações efectuadas de forma emotiva, por acto concreto e específi co da assembleia geral: de qualquer modo, sendo esse acto apenas anulável, as consequências terão pouco signifi cado.

Um apontamento fi nal para dizer que nos casos de sociedades de estrutura dualista, nos termos do artigo 433.º, 3, a aprovação do regulamento compete ao conselho geral e de supervisão, a não ser que os estatutos determinem que pertence à assembleia geral.

7. Articulação com o regime geral de segurança social e a cumulação de pensões

Temos visto defendida a obrigatoriedade da integração no sentido de ser dedu-zida da reforma dos administradores o que recebam a outro título. Não se nota, contudo, que o artigo 402.º imponha uma complementação integrada, pois pode-se sempre estabelecer um regime autónomo de benefício defi nido relati-vamente a um certo montante.

De facto, em técnica de Segurança Social mesmo a complementação ou os esquemas complementares não exigem a articulação ou integração dos com-plementos com a pensão da segurança social, o que pode ou não ocorrer. Por exemplo, os esquemas complementares, que seguem o método de “benefícios defi nidos”, não estão articulados muitas vezes com os benefícios da Segurança Social, articulação essa que seria, aliás, um risco considerável para a própria sociedade.

Sem querer entrar aqui em questões técnicas da Segurança Social, devem distinguir-se os esquemas de “contribuições defi nidas” dos de “benefícios defi nidos”. No primeiro caso, as prestações são função da poupança trazida pelas quotizações e as prestações a receber são iguais às somas entregues no decurso da carreira, aumentadas dos lucros relativos aos investimentos. No caso de “benefícios defi nidos”, há uma vinculação em corresponder determinadas prestações ao benefi ciário, independentemente do modo como o regime é fi nanciado. No primeiro caso são os benefi ciários a suportar o risco da renta-bilidade do património investido; no segundo caso o risco corre por conta da

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entidade devedora. O que se pratica, normalmente, é o um sistema de presta-ções defi nidas e actualizadas, para “manter o nível de vida […] aproximado do que desfrutavam no activo”133, o que envolve um risco considerável tomado pela entidade prestadora (no caso, a sociedade).

No caso de benefícios defi nidos, é necessário distinguir entre esquemas integrados ou não integrados na Segurança Social. No primeiro caso, esquemas articulados, as prestações complementares dependem e são função do regime nacional instituído, tomando-o em conta, deduzindo essas prestações daquilo que é assegurado. São portanto variáveis. Nas situações de não integração (ou não articulação), o benefício soma-se à pensão ofi cial instituída, seja qual for. Se esta modalidade é agora muito frequente, não faltam também exemplos em que os quantitativos complementares são estabelecidos numa lógica de articula-ção. Mas tal não é forçoso e coloca problemas difíceis, pois a integração desen-volveu-se no suposto da estabilidade das pensões e até no seu crescimento. A desilusão tem sido grande e acarretou enormes problemas de fi nanciamento a responsabilização, por exemplo dos fundos de pensões, para cobrir o recuo das pensões da Segurança Social a pretexto de estar convencionado um regime de benefícios defi nidos, mas variáveis134.

Enfi m, ainda que na defi nição dos pressupostos do regime ou da comple-mentação se possam considerar os quantitativos obtidos em outros lugares, pare-ce-nos que a articulação não é sequer um naturaliter do pensionamento socie-tário. Pelo contrário: o princípio é o da livre acumulação135, seja no “regime” próprio seja no esquema complementar, e nada permite deduzir na pensão de reforma atribuída aquilo que os ex- administradores recebem por outra via, a menos que tal se encontre previsto nos actos que estabelecem os respectivos benefícios136. Contabilizar imperativamente o recebido pela Segurança Social

133 Paulo Olavo Cunha, “Reforma” cit., 309.134 Assim por exemplo, já se colocou o problema se as pensões aumentam (como se verifi cou quando foi concedido o 13.º mês ou o subsídio de férias): da articulação resultará uma diminuição das responsabilidades do instituidor do complemento? E se houver um “corte” das responsabilidades da Segurança Social, isto envolverá um aumento das responsabilidades da complementação? Em termos actuais, que não inspiram optimismo, se se introduzir um sistema de integração com a Segurança Social pública, de modo a garantir ao benefi ciário um nível de réditos constante, a álea para a sociedade é muito grande e pouco desejável. Tratou-se de uma aposta arriscada na manu-tenção e correcta actualização das prestações da Segurança Social em que não se encarou, como presentemente, um recuo retrospectivo das coberturas.135 Cfr. 56.º do Decreto-Lei n.º 329/ 93 , de 25 de Setembro (diploma sobre as pensões).136 Ânia Ferreira e Teresa Fernandes, ob, cit., 233, indicam que o STJ de 29/11/05 “veio a admitir o cúmulo da reforma do regime da Segurança Social com aquelas atribuídas aos admi-nistradores e a cargo da sociedade onde prestaram serviço”.

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não é coisa que se presuma, mesmo para a complementação, que não exige a integração de pensões. Tal não tem a menor base legal e só haverá integração se isso mesmo resulte dos estatutos, da deliberação ou do regulamento relativo às pensões societários, o que aliás acontecerá muitas vezes.

8. Os limites das pensões (segunda parte do n.º 2)

Como acabamos de dizer, o princípio geral é que não há limites para a acumulação de pensões, nem restrições para acumulação de pensões com ren-dimentos de trabalho137 fora da esfera dos serviços do Estado, nem máximos de reforma: pelo contrário, a acumulação é admitida e considerada para efeitos de incremento dos encargos fi scais ditos de solidariedade em caso de acumulação, mesmo quando tal resvale para o confi sco.

É a esta luz que se devem entender os limites previstos na parte fi nal do n.º 2 relativo aos complementos: “contanto que não seja excedida a remunera-ção em cada momento percebida por um administrador efectivo ou, havendo remunerações diferentes, a maior delas”.

Em primeiro lugar, ao contrário do que muitas vezes se diz, o preceito limitativo do n.º 2 não se refere ao “regime” do n.º 1, aliás por boas razões, já que este tem necessariamente previsão estatutária e a ele corresponde um normativo próprio dela decorrente, que se perfi lará em regra como esquema completo, aliás duvidosamente susceptível de complementação e alheio mesmo a essa melhoria138. O limite é referido à complementação e assim apenas ao caso do n.º 2 (que literalmente depende tão-somente de deliberação simples da assembleia geral).

De facto, é necessário dar conta de que se trata nesses segmentos de norma de restrições e, portanto, de excepções aos regimes de liberdade de estipulação e de gestão da sociedade139, que não podem ser aplicadas em domínios em que nem sequer se verifi cou uma lacuna. Os estatutos, assentes numa refl ectida autonomia da vontade constituinte, não devem estar condicionados por qual-

137 Cfr. legislação cit. na penúltima nota.138 Só podemos fi gurar as situações raras, em que esteja prevista a complementação do “regime” no próprio título que o instituiu.139 Sobre o princípio de autonomia da vontade, Paulo O. Cunha, Direito das Sociedades cit., 72 ss: “Assim, e concluindo, estamos num domínio em que não há que procurar a autorização para a prática de um ato ou celebração de um contrato, mas apenas verifi car cuidadosamente que a solução contratual engendrada não põe em causa regras imperativas ou os princípios caracteriza-dores do próprio sistema jurídico-societário, entre os quis assume especial primazia e destaque o da autonomia privada” (p. 74).

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quer limite que não seja de direito estrito, e, ainda que o problema para o caso tenha pouca importância, nada permite que se lhes coloquem as restrições do n.º 2 apenas aplicáveis à deliberação social140’141. Não se vê que possa cair fora da soberania estatutária uma defi nição de um “regime” sem essas características e limites, quando não há para isso o menor fundamento literal. Na realidade, as limitações e restrições são excepcionais (odiosa restringenda), sendo, sobretudo, errada a ideia de que há aqui encargos excepcionais ou extraordinários.

Ainda que se verifi casse identidade de razão142, à doutrina só caberia registar a falta de simetria das soluções legais e a eventual vantagem da extensão ao n.º 1, jure constituendo, a menos que detectasse lacuna ou vontade diversa do legis-lador, o que nem sequer aparece invocado pelos autores, que sufragam aqui a existência do que poderemos chamar “restrições sem lei”.

Voltando aos complementos, regista-se muita cautela no n.º 2 do artigo 402.º, talvez excessiva, no plano dos interesses sociais, possivelmente destinada a evitar pensões avulsas, emotivamente fi xadas pela assembleia geral ou que mostrem uma certa descompensação. O sentido da limitação do n.º 2, no que se refere ao não excesso dos complementos relativamente à remuneração dos administradores no activo, sobretudo quando desapoiadas no pacto social, tem a ver com a necessidade de evitar situações difíceis e de melindre, quando pas-síveis de simples deliberações.

Aliás, nesta matéria de complementos, não se vê que a limitação de valo-res estabelecida para as deliberações da assembleia geral tenha de valer se os estatutos estabelecerem de outro modo, pois julga-se que se trata de matéria dispositiva (cfr. artigo 9.º). Parece-nos pois que tal limitação só se aplica às deli-berações dos sócios e não aos estatutos.

De qualquer modo, as questões são diferentes no “regime” e nos “com-plementos”143. É razoável, sobretudo se não se contabilizarem para o efeito

140 Assim, distinguindo as situações, A. Pais Ferreira e T. Fernandes, “Estudo…”, cit., 217-8, ainda que as autoras adiram depois à posição da “identidade de razão”, pensamos que por falta de ponderação das técnicas de segurança social.141 Ou até de quem represente para o efeito a sociedade, como uma comissão de vencimentos, em que a assembleia geral pode ter delegado esta função em casos pontuais, dentro da regulamentação aprovada nos termos do n.º 4. Mas não vamos versar o problema.142 Como sustentam Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., 552, na esteira de Ilídio Duarte Rodrigues, A Administração das Sociedades cit, 171.143 Como já dissemos, quem verifi car ao que se passava anteriormente à entrada em vigor do CSC observará que se encontravam práticas quer de previsão em cláusulas do contrato de sociedade quer de deliberações de sócios (I.D. Rodrigues, ob. cit., 168, nota 243).

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outros segmentos do pacote remuneratório144, deixar sem limitações um regime próprio, legitimado pelo pacto social. Já são mais compreensíveis as limitações a deliberações de complementação avulsa, até porque no plano substantivo os administradores reformados poderão contar no quod plerumque accidit com uma outra pensão.

Resta saber a que se refere o legislador no inciso “ a cada momento”, sendo certo que as contrapartidas dos administradores do activo podem ser e normalmente são muito superiores. Quanto a nós, a referência à evolução no tempo (“a cada momento”) teve que ver com a própria evolução da situação dos administradores no contexto infl acionista então existente, permitindo a actualização do parâmetro de acordo com tal evolução: estávamos em 1984 num quadro de infl ação de 2 dígitos145… Não nos parece que o legislador tenha aceitado diminuir reformas por uma limitação substantiva que derive da mudança do sistema de governança da sociedade, do decréscimo da sua impor-tância e da redução de vencimentos da gestão146.

Um outro ponto é saber se para os limites devem contar outras pensões recebidas, nomeadamente a que vieram a perceber pela Segurança Social. Paulo Olavo Cunha entende que a ideia é assegurar ao ex-administrador um nível semelhante ao que desfrutava no activo e que assim a lei não permite “que a soma dos complementos da pensão de reforma a cargo da sociedade e da pensão recebida do sistema contributivo da segurança social ultrapasse a remunera-ção do administrador em funções mais bem remunerado”147. Pela nossa parte, não vemos o que possa justifi car esse cômputo, que tem aspectos demasiado intrusivos, pouco admissíveis e até pouco praticáveis, a não ser que as próprias

144 Há quem entenda que se devem contar para este efeito a retribuição bruta e os benefícios variá-veis regulares (neste sentido, Pereira de Almeida, ob. cit., 268).145 Por isso, nos parece que a expressão “a cada momento” do artigo 402.º, 2, foi aposta para possi-bilitar a actualização da reforma (tal seria duvidoso se o legislador tivesse escrito “no momento” da reforma). O que o legislador seguramente pretendia era defender os reformados contra a infl ação, aceitando que a pensão variasse, como necessariamente variaria a dos administradores, e preve-nindo-os contra o risco de fi xá-la e parametrizá-la no momento da reforma. De facto, se não fosse esse inciso “a cada momento” e se se considerasse a remuneração dos administradores no activo à data da reforma, tal parâmetro sofreria, a manterem-se as taxas de infl ação então correntes, uma diminuição anual de cerca de 25%...146 De toda a maneira, hoje pôr-se-ão legitimamente questões de interpretação do “momento” se houver transformação da sociedade (no caso as SGPS), fusões e outras modifi cações. Não fará sen-tido comparar a sociedade ao tempo da reforma e a que lhe tiver sucedido e o mesmo se aumenta-rem ou diminuírem consideravelmente os negócios. Parece-nos que a limitação deve ser corrigida não só com a ideia do “momento”, mas também com a do “rebus sic stantibus”.147 “Reforma” cit., p.319.

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normas estabelecidas na sociedade o prevejam148. O que é facto é que a lei nada diz a este propósito. O que resulta do sistema é uma ideia geral de liberdade e a excepção é a relativa intromissão que estabeleça limites. O argumento de não fazer sentido que um administrador reformado possa receber mais, à custa da sociedade, do que os que estão no activo e contribuem para assegurar os meios indispensáveis ao pagamento da pensão complementar149 só faz sentido relativamente ao que é recebido pela empresa, mas não pela Segurança Social ou por outra actividade que o ex-administrador passe a desempenhar ou pelos rendimentos que aufi ra por uma fortuna vasta. A letra da lei limita apenas os complementos às remunerações; os limites não estão defi nidos para a totalidade das pensões de reforma!

9. A constituição e aquisição do direito. Condicionamento da reforma

Quanto à constituição e aquisição dos direitos pouco há a dizer, porque em regra se trata de matéria de que se ocupam os actos instituidores da regalia em causa, de acordo com o modo como estão estabelecidas, havendo de ser interpretadas a essa luz.

Os problemas mais salientes colocam-se a propósito das pensões de reforma150, mas a questão mais complicada é a referida por lei e será tratada no próximo número. Importante também será a questão da reforma nos casos em que o administrador seja destituído por actos ilícitos contra a sociedade151.

148 Há ainda outros aspectos possíveis numa articulação, tendo sido colocado o problema da neces-sidade de a reforma pela sociedade ter de obedecer aos requisitos de idade da lei geral, o que o STJ afastou pelo Ac. de 2.12.14, já referido a outro propósito (no caso a reforma societária estava estatutariamente articulada com a ofi cial, a qual àquela seria deduzida).149 Assim P. O. Cunha, ob. e loc. cit. A argumentação do autor parte da ideia, quanto a nós menos acertada, de que a permissão de reformas pela sociedade é excepcional e desenvolve raciocínios que nos parecem muito discutíveis: o de que o que é pago “à custa da sociedade” pode englobar a pensão da segurança social pública e que os administradores no activo contribuem para asse-gurar os meios indispensáveis ao pagamento da pensão complementar societária. Mesmo que o autor tivesse razão, nada na lei permite somar à pensão paga pela sociedade qualquer outra para defi nir os limites do n.º 2. 150 As questões são versadas por Carvalho Fernandes/João Labareda, ob. cit., 547 ss e 552 ss.151 Paulo Olavo Cunha, “Reforma” cit., 326, refere o problema, mas trata-o a propósito de uma previsão estatutária concreta.

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10. A cessação da sociedade e as pensões (n.º 3)

Estabelece-se que o “direito dos administradores a pensões de reforma ou comple-mentares cessa no momento em que a sociedade se extinguir”, solução que deixa pro-fundamente desamparados os gestores. Já temos analisado o problema quando criticámos a complementação sem estrutura de fundos, que mesmo para os trabalhadores comuns pode conduzir a graves resultados de carência. Por isso será recomendável a adopção de sistemas de património separado (para evitar os riscos inerentes à diminuição do património e insolvência), como de fundos de pensões ou então de seguros para a eventualidade da extinção. Seguindo tal espírito, o artigo 402.º, 3, prevê que a sociedade pode “realizar à sua custa con-tratos de seguro para essa eventualidade”, ainda que não seja fácil equacionar uma cobertura directa do tipo, pelo que certamente se recorrerá a fundos de pensões com portabilidade de direitos, à atribuição de PPR, etc.

A fusão das sociedades acarretará a passagem para a nova sociedade dos direitos e deveres152.

11. As deliberações em matéria de pensões contrárias à lei. As pres-tações já liquidadas Como vimos, alguns, no nosso entender com considerável excesso, advo-

gam imensas restrições aos esquemas do artigo 402.º, atingindo assim na ordem prática muitíssimos casos de reformas em vigor pela sociedade e fazendo derivar dessas restrições a nulidade da atribuição da reforma153. Encontram-se, pois, na necessidade de considerar numa óptica social o dramatismo da situação dos reformados, que teriam de devolver as pensões recebidas durante anos (pelo menos nos últimos 5 anos), e encontrar mecanismos de limitar efeitos. É o caso de Paulo Olavo Cunha, que admite, ainda que com carácter provisório, “que as quantias recebidas a título de pensão – até ao momento em que se suscitaram dúvidas sobre a sua legitimidade – não terão de ser devolvidas, a menos que se prove que o administrador não ignorava no caso concreto que a mesma não tinha fundamento legal e contratual sufi ciente”154. Os argumentos (boa-fé no percebimento de pensão que o ex-administrador não tinha razão para conside-

152 Carvalho Fernandes e J. Labareda, “Do regime jurídico do direito à reforma”, 553-4.153 Particularmente expressivos nesse domínio C. Fernandes/Labareda, ob. cit., passim.154 “Reforma” cit., 331.

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rar indevida e que já teria despendido) não serão muito convincentes no plano jurídico, ainda que respirem uma louvável ideia de equidade155.

Para nós, não é de considerar desconforme com a lei a prática comum e assim os muitos regimes apenas previstos nos estatutos ou complementos que decorram da deliberação da assembleia geral e, portanto, os problemas específi cos de desvalor jurídico do pensionamento terão escala bastante mais reduzida156. De qualquer modo, descontando os casos menos complicados de ultrapassagem de limites, há que qualifi car as situações em que a reforma ou os complementos tenham sido processados e pagos apesar de não corresponderem a previsões lícitas. A circunstância de se considerarem esses actos inefi cazes, no sentido de não terem aptidão para os fi ns pretendidos157, levou autores como Paulo Olavo Cunha a proteger a situação em que fi cava o ex-administrador, que desconhecia qualquer irregularidade na reforma e se veria na necessidade de restituir o seu montante quando porventura já a teria dispendido, ocasionan-do-lhe um empobrecimento brusco para o qual não teria responsabilidade. Daí a limitação de efeitos já descrita, propugnada por este autor.

É, normalmente, de pretensas ilegalidades que estamos a tratar. Mas, mesmo que as deliberações relativas à reforma fossem ilegais, nunca seria necessário proteger especialmente os ex-administradores de boa-fé, porque a verdade é que benefi ciariam do regime da anulabilidade. De facto, nos casos em que o esquema de pensionamento de ex-administradores contraria o artigo 402.º do CSC, a deliberação ou deliberações que o constituem não são nulas. Confi gu-re-se, por exemplo, a hipótese de “regime” de reforma apenas aprovado pela

155 Na verdade, se vemos bem as coisas, tratar-se-ia da repetição do indevido, que não parece poder ser paralisada só por uma ideia de tutela de confi ança e da boa-fé e de algo (ter eventual-mente despendido a vantagem patrimonial auferida) que é muito menos exigente que o cômputo da vantagem patrimonial do não enriquecimento (artigo 473.º e 476.º do C. Civ.).156 Como temos dito, pensamos que não têm razão os autores que defendem que o preceito esta-tutário e deliberações conexas estão feridos de nulidade pela circunstância de naquele não estarem previstas com completude os esquemas de reforma. Tal nos parece em absoluto infundamentado, sem qualquer alicerce na letra da lei, e, do mesmo modo, outras ampliações ilegítimas de restri-ções que não estão pensadas para os complementos pensionísticos. Como diremos a seguir Pas de nulité sans loi! Se existisse nulidade, a consequência seria a de se atingirem direitos constituídos, adquiridos à sombra do pacto social e de deliberações passadas da assembleia geral e de outras deliberações mais recentes, o que seria gravíssimo se tal pudesse produzir efi cácia na esfera jurí-dica dos reformados. Como se verá do texto, mesmo eventual desconformidade com a lei apenas determinará a anulabilidade.157 Paulo Olavo Cunha (“Reforma…” cit., 321) preocupou-se apenas com os efeitos práticos e por isso não curou de qualifi car o desvalor jurídico dos actos estatutários ou da assembleia geral contrários à lei, referindo a “inefi cácia”, ou a qualifi cação jurisprudencial da situação como “nula” “não escrita”e até referir a menção como “irrelevante e juridicamente inexistente”.

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assembleia geral sem qualquer base estatutária, ou regime ou complementos atribuídos avulsamente, sem mediação de um regulamento da assembleia geral ou complementos atribuídos a ex-administradores excedendo os limites legal-mente previstos, ou, de qualquer modo, actos da sociedade de concessão de reforma que exorbitem do artigo 402.º158. Ora, parece que, se se tiver atribuído uma pensão ao abrigo de esquemas que excedem as disposições habilitadoras do artigo 402.º, a deliberação não será nula, mas apenas anulável.

Pas de nulité sans loi! O princípio geral quanto aos vícios das deliberações sociais é o de que deles

decorre meramente a anulabilidade, o que decorre claramente do artigo 58.º do CSC, no que existe consenso doutrinário. Na realidade, há que consolidar e tornar seguros os actos sociais e por isso mesmo se consagra geralmente, para os casos de irregularidade (incluindo a ilegalidade) das deliberações, a sanção de mera anulabilidade, em acção a interpor pelo sócio num prazo muito limi-tado. A nulidade é excepcional159 e, mesmo quando se trate de violação de norma, só pode resultar da deliberação, nos termos do artigo 56.º, 1, d), cujo “conteúdo” seja ofensivo “de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios”. Parece-nos que nos casos de concessão ilegal de reforma a vontade unânime dos sócios poderá quase sempre dar remédio à situação160 e não se divisa violação de norma injuntiva de ordem pública, que a doutrina costuma referir como ligada a interesses de terceiros e destinada a tutelar os credores sociais ou a futuros sócios161. Alguns autores que vimos citando defendem essa caracterização162 o que nos parece artifi cioso, já que estas questões de limites e de estatuto de administradores têm a ver eviden-temente com os interesses dos próprios sócios; a verdade é que quando os não reportem à ordem pública ou a terceiros deixam de poder invocar a nulidade, como ensina a doutrina relevante163. Não nos parece, pois, que C. Fernandes/Labareda tenham razão quanto à eventual lesão de interesses dos credores ou

158 Estamos a referir-nos actos da sociedade, no sentido de terem suporte em deliberação da assem-bleia geral e já não a actos que decorram de órgão absolutamente incompetente para o efeito de prever e atribuir pensões, como o conselho de administração ou a comissão de vencimentos. A prática desses actos envolverá a responsabilidade de quem os tiver praticado.159 Vasco Lobo Xavier, “Invalidade e inefi cácia das deliberações sociais”, sep. RLJ, n.ºs 3732-3 (1985).160 Com excepção dos limites dos complementos de reforma à maior remuneração para quem, diferentemente de nós, entenda que tal não possa ser estabelecido no pacto social.161 Vasco Lobo Xavier, Anulação da Deliberação Social e Deliberações Conexas, (Coimbra, 1976), 152 ss.162 Principalmente C. Fernandes/Labareda, ob. cit., 539, 542, 546-7, 550.163 Cfr. Vasco Xavier, ob. cit., principalmente a p. 166 que exclui do carácter cogente as normas legais que remetem para os estatutos e ainda da sanção de nulidade as normas de carácter proce-

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dos futuros sócios, pois haverá de considerar-se que neste caso o encargo, na sua amplitude, nada tem a ver com o gravame que corresponde a muitas outras simples deliberações do conselho de administração, como por exemplo as rela-tivas a complementos de pensões para trabalhadores, tantas vezes levadas a efeito pela gestão, essas sim, mesmo que os complementos sejam fundados institucio-nalmente como é mister, supõem contributos onerosíssimos164. É inaceitável defender que os limites do artigo 402.º (limites internos, de procedimento, no máximo de competência e quase sem expressão no plano do conteúdo) tenham sido colocados para defesa dos interesses dos credores ou de futuros sócios.

Não se vê pois razões que fundamentam o carácter absolutamente impe-rativo, de interesse e ordem pública, hoc sensu. No que diz respeito à nulidade por violação de normas imperativas, há a registar que tem de se tratar de uma imperatividade particularmente qualifi cada, como é lição de Vasco Xavier, que se refere a norma “de carácter imperativo ou cogente (hoc sensu)”165 e de Pinto Furtado (imperatividade reforçada ou hiper-imperatividade166). Como demonstrou aquele que entre nós estudou mais aprofundadamente estes pro-blemas, Vasco Xavier167, há um sentido próprio de imperatividade168 que se contrapõe à categoria de preceitos dispositivos, com o preciso alcance de serem consideradas meramente anuláveis deliberações para as quais a lei exige habi-litação estatutária quando ela não exista. Signifi cativamente, Vasco Xavier dá como exemplos casos de deliberações em que não era preexistente uma dis-

dimental (p. 180 ss). V., principalmente, as conclusões da p. 260-1 do que resultam as formula-ções do actual CSC.164 Aliás, não falta jurisprudência a aceitar essa complementação das pensões dos trabalhadores, mesmo quando não fundada institucionalmente, o que consideramos ser imprudente e descon-forme com o nosso sistema, nas suas múltiplas normas promovendo uma regularização, como temos referido em outros lugares. Como se trata de problemas restritos à complementação dos trabalhadores, omitimos desenvolvimentos, aqui desnecessários.165 Cfr. Anulação da deliberação social cit., 179- 180, assim pretendendo signifi car uma especial impe-ratividade, diferente da mera injuntividade.166 Cfr. as referências de Pinto Furtado, ob. cit., 618- 624.167 Muito embora nós sejamos obviamente suspeitos ao formular este juízo, supomos que é um mérito indiscutível do nosso saudoso irmão, formulado pela unanimidade dos societaristas.168 Não que se discuta que o artigo 402.º, 1, se imponha aos sócios, pois o ponto não é esse, mas o das consequências de eventual infracção a esse preceito, que exige uma habilitação estatutária. Como muitas vezes aparece incorrectamente invocado o pensamento de Vasco Xavier, transcre-vemos de Anulação da deliberação social e deliberações conexas (Coimbra, 1976), 154 nota 54: “Quanto aos preceitos não imperativos (hoc sensu), na medida em que se imponham aos sócios – isto é, na medida em que não tenham sido afastados, como o podem ser, por cláusulas estatutárias aprovadas contempo-rânea ou posteriormente à constituição da sociedade –, as deliberações que os contrariem estarão feridas de anulabilidade …” (itálico e sublinhado nossos).

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posição estatutária legalmente necessária169. Não vemos que a norma do n.º 1 de artigo 402.º, injuntiva embora, mesmo que fosse violada nas situações em causa, tenha substantividade para ser considerada com o grau de direito neces-sário cuja violação acarreta a nulidade da deliberação. O artigo 402.º, como norma estruturadora das competências legais do pacto social, quando aprovei-tada pelo pacto social e deliberação subsequente, pertence a domínios em que sempre os sócios poderiam unanimemente deliberar170. É o que afi rma Vasco Xavier a propósito de normas do mesmo tipo: “o seu teor é claro – de que ele pode ser derrogado pelos sócios, não interessando para o efeito que só o possa ser em sede de alteração do pacto social”171. No tema diz Coutinho de Abreu, paralelamente, que uma deliberação que atribua a reforma aos administradores sem regulamento será anulável172. E, na realidade, o n.º 1 do artigo 402.º é uma norma de atribuição de competência ao pacto social e, em rigor, não possui “conteúdo” no sentido do artigo 56.º do CSC. Para a nulidade é indispensável, repetimos, que se trate de um vício de “conteúdo”173 e não de procedimento e, mesmo que se entenda arbitrariamente que nos vícios de conteúdo estão os de competência interna, será necessário para tal que não se refi ra a interesses disponíveis dos próprios sócios.

169 Vasco Xavier, em “Invalidade e inefi cácia das deliberações sociais no projecto do Código das Sociedades, RLJ, n.ºs 3732 a 3736 (4) – sep., p. 9 – dá, como exemplo de deliberação anulável, aquela que, relativa a um esquema de remuneração dos gerentes só permitida por cláusula expressa do pacto social (que não ocorria), venha consagrar esse esquema por outra via que não seja a de alteração estatutária. O mesmo (p. 10) no caso de subtracção à distribuição de lucros em parcela superior à prevista na lei, em termos que a mesma lei só consente aos estatutos. À irregularidade da deliberação que estabelecesse uma distribuição de lucros menor sem cobertura estatutária corresponderia anulabilidade. Na opinião de C. Fernandes/Labareda, ob. cit., (quanto a nós referindo-se equivocadamente à tese de Vasco Xavier) aconteceria algo de mais grave: a irregu-laridade da deliberação da assembleia geral que tivesse de ser antecedida de previsão estatutária mais pormenorizada seria nula. Na esteira de Vasco Xavier, a solução de anulabilidade ocorre mesmo, já não apenas nas deliberações que exijam interposição estatutária, mas ainda naquelas que violem os estatutos.170 Eram certamente derrogáveis por vontade unânime dos sócios e, nos termos dos estatutos, matéria de deliberação da sociedade (artigo 9.º, 3).171 Ob. cit., p. 9, 2.ª coluna.172 Governação cit., 99. Também, Ânia Ferreira e Teresa Fernandes, ob. cit., 237. Em autores, como M.ª Inês Sousa Guedes (“A remuneração dos administradores: perspectivas a partir da crise de 2008”, trabalho realizado na Fac. Dt. Porto em 2010, disponível na Internet), lê-se a p. 16-7 que “se os estatutos contemplarem os complementos de reforma mas não especifi carem esta disciplina e, se na ausência de regulamento e execução for atribuída uma determinada pensão por deliberação dos sócios, essa deliberação será anulável, nos termos do artigo 58.º, 1, a) do CSC.” 173 Nos termos da al. d) do artigo 56.º, 1.

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12. Prestações para cobertura de outros riscos sociais dos administra-dores. A questão da pensão de sobrevivência

O direito à Segurança Social traduz-se basicamente no direito dos indiví-duos e das famílias à segurança económica. Como dissemos, os administradores benefi ciam hoje do sistema de Segurança Social e descontam nos termos do artigo 61.º e ss do Código contributivo, garantindo-se-lhes plena cobertura quanto a riscos sociais174, sendo que benefi ciam normalmente no risco doença dos esquemas complementares de apoio (médico e medicamentoso, para além da Segurança Social) comuns aos trabalhadores da respectiva empresa.

Quanto a acidentes de trabalho, os administradores têm desde há muito um regime semelhante aos trabalhadores por conta de outrem, podendo também benefi ciar das respectivas complementações, como é prática, ainda que não prevista no artigo 402.º. Muito embora lei preveja que os acidentes de trabalho dos trabalhadores autónomos sejam regidos por normas próprias, mantém-se em vigor o esquema tradicional.

Tem sido muito discutida a pensão de sobrevivência. Não vemos qualquer razão para que os estatutos não possam prever pensões por morte, analoga-mente às complementações já referidas, ainda que tal não seja expresso. Na verdade, valem as razões que permitem aos estatutos defi nir as reformas, tanto mais que as pensões de viuvez ou de orfandade175 lhe estão em geral associadas. De um modo geral, tal tem a ver também com uma diminuição de encargos com os contratos e remunerações dos membros do conselho de administração, sobretudo quando são negociados. Como é sabido, a integração das comple-mentações relativas aos riscos sociais num pacote de contrapartidas permite que as remunerações directas sejam menos avultadas e de mais fácil negociação. De tal resulta o equilíbrio dos gastos com a gestão das sociedades.

Carvalho Fernandes e João Labareda176 entendem que a pensão de sobrevi-vência não pode ser conferida, quer por argumentos literais, esses consistentes, quer pelo carácter excepcional da norma, pela sua injuntividade e excepcio-nalidade, relativamente a actos gratuitos desta natureza. Paulo Olavo Cunha defende igualmente essa opinião177, tendo também em conta a letra da norma e

174 Sem embargo, pensamos ser raro recorrerem os administradores à Segurança Social na situa-ção em que faltam por doença (as sociedades descontam a remuneração dos gestores, quando eles faltam?!), ainda que teoricamente seja um risco coberto, e também não será frequente utilizarem prestações de desemprego (a não ser nas pequenas empresas) ou de parentalidade.175 São normalmente pensões de viuvez, sendo pouco frequente consignar as situações de orfandade.176 Ob. cit., 549-550.177 “Reforma” cit., 330

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a sua excepcionalidade, tanto mais que para esse autor seria difi cilmente expli-cável estabelecer pensões de orfandade e de viuvez, por não se enquadrarem no prolongamento das contrapartidas a pagar ao administrador, e assim um acto desconforme com a natureza e fi m da sociedade.

Parece-nos que não têm razão os referidos autores, que consideram estar vedado às sociedades conferir esses benefícios. Já dissemos que a regra é a pre-valência da autonomia e da liberdade de estipulação estatutária e já demonstra-mos que não se trata de actos gratuitos e, pelo contrário, estão ligados à própria defi nição de contrapartidas (a remuneração dos administradores será tenden-cialmente maior se não tiverem à sua morte as pessoas a cargo devidamente pensionadas).

Há também na perspectiva dos autores criticados um equívoco na análise: o de pensarem que se trata de regalia destinada a pessoa fora do círculo socie-tário, enquanto simples familiar de administrador falecido. A verdade é que, muito embora a cobertura do risco morte benefi cie materialmente apenas as pessoas instituídas sobrevivas, em termos jurídicos o evento pertence aos riscos da própria pessoa, que na sua vida procura adquirir uma estrutura confi ável de segurança relativamente a eventos danosos que possam atingir familiares ou equiparados. Assim, se por exemplo é a viúva ou viúvo do administrador o benefi ciário, em técnica de seguro o risco de morte era do mesmo administra-dor, sendo coberto por um capital ou por uma pensão, naturalmente destinado a outro que não o segurado. Do mesmo modo também na Segurança Social, em que a viuvez é coberta pelos seguros sociais públicos mas como eventua-lidade própria (morte), que o profi ssional deve deixar prevenida e garantida (artigo 63.º da Constituição)178. E, muito embora não seja esta exactamente a questão, a verdade é que na sociedade conjugal, contando mesmo com o tempo sucessivo à sua dissolução, cada vez é menos encarado como próprio o direito de cada um dos cônjuges a certas prestações da Segurança Social179. Pois não será que na pensão da sobrevivência atribuída se podem encontrar traços de reconhecimento do contributo do benefi ciário para a situação profi ssional do outro cônjuge?

13. Sugestões para a revisão do artigo 402.º do CSC

Do que se disse, ligado à redacção do artigo 402.º e à explicação que dele pode ser feita no plano da história recente e ainda à defesa do seu sentido

178 Artigo 52.º, 1, g) da LBGSSS (Lei n.º 4/ 2007, de 16 de Janeiro), apenas como exemplo.179 M.ª João Vaz Tomé, O direito à pensão de reforma enquanto bem comum do casal (Coimbra, 1997).

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directo, que alicerçou consideráveis expectativas e uma prática corrente, não signifi ca que consideremos desejável a manutenção da norma: ela tem afi nal alicerçado um sistema lacunoso e que se mostra pouco fi ável para as sociedades e administradores. Proporíamos uma radical mudança do preceito, garantindo a confi ança naquilo que tem sido feito até ao momento por uma norma de direito transitório, que assegure os direitos adquiridos e as expectativas jurídicas mais consistentes180, e mantenha provisoriamente os esquemas já montados, dando algum tempo para uma transição, relativamente ao actual artigo 402.º181.

Quanto à revisão! Partimos do princípio que a previsão de complementa-ção da reforma (ou mesmo a instituição de qualquer regime sucedâneo) não tem qualquer excepcionalidade no estatuto dos administradores e não possui qualquer característica de gratuidade ou de excepção. Daí que a autonomia da sociedade, temperada com as regras de transparência hoje exigidas por um sadio sistema de governance, deve ser a regra, não nos parecendo que a propósito da segurança social se encontre especialmente em causa a defesa dos credores da sociedade, dos sócios e dos trabalhadores. Não se pense, de qualquer modo, que advogamos plena autonomia de vontade, pois esta deve estar submetida aos princípios gerais da segurança social privada e às limitações que existam ou possam existir relativamente ao estatuto retributivo dos gestores. A questão é pois basicamente a de enquadramento das formas privadas da Segurança Social nos quadros da administração societária e daí que as regras a encarar devam estar em linha com as concepções gerais do artigo 63.º da Constituição, fi cando na lei apenas a disciplina necessária para que as coberturas dos riscos sociais decor-ram transparentemente e de forma certa e segura para a sociedade e para os benefi ciários, pela obrigatoriedade de recurso aos esquemas legais disponíveis (seguros, PPR e fundos de pensões), que ao mesmo tempo tornem defi nidos os encargos da sociedade e absolutamente garantidas as pensões e outras presta-ções, num sistema de separação patrimonial e gestionária.

180 Não é possível versar aqui o problema, que temos tratado em outros lugares. Teremos, con-tudo, de chamar a atenção que a lei designa muitas vezes as expectativas que dependem ainda em termos civilísticos de certos requisitos, como “direitos” e, às vezes, como “direitos preservados”.181 Se fosse caso disso, assegurar-se-iam algumas situações em que fosse desejável a retroactivi-dade acentuando o carácter interpretativo de certas regras. A disposição transitória poderia ter a seguinte redacção:

Mantêm-se em vigor as actuais pensões e complementos de reforma estabelecidos ao abrigo da primitiva redac-ção do artigo 402.º do CSC e aqueles que sejam requeridas até à adaptação prevista no n.º 3.Consideram-se ao abrigo do artigo 402.º os regimes previstos nos estatutos e os complementos, nos termos defi nidos pela assembleia geral.Os regimes, complementos e respectiva regulamentação ao abrigo do artigo 402.º serão adaptados pela socie-dade ao presente diploma nos próximos três anos.

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Proporíamos assim uma grande simplifi cação do regime do artigo 402.º. Não nos parece necessário tornar obrigatória uma previsão estatutária

específi ca, como hoje é requerido no n.º 1, nem julgamos que tenha sentido instituir um “regime” no sentido tradicional, porque hoje em dia bastam os esquemas complementares constantes das leis próprias. Estes são transparentes e postulam separação de patrimónios e de gestão e funcionam em termos de numerus clausus, não sendo prudente estabelecer outros esquemas de fi nancia-mento pela própria empresa. Assim, a sociedade complementará as reformas, se assim o entender, incluindo os administradores nos fundos de pensões da empresa ou em fundos abertos182, ou poderá atribuir-lhes PPR ou constituir em seu favor seguros para melhorar a cobertura das eventualidades legalmente previstas (doença, parentalidade, doenças profi ssionais, invalidez, velhice e morte). A tal poderão ainda acrescer suplementos de protecção no caso de aci-dentes183. Através desses mecanismos de separação patrimonial fi carão também os administradores resguardados quanto a vicissitudes da sociedade, tornando--se assim inútil o actual n.º 3, que poderá desaparecer.

Consideramos que os limites deverão ser aqueles que se construíram e estão construindo quanto ao estatuto remuneratório dos gestores. Não vemos razão para estabelecer na lei os limites que hoje decorrem do n.º 2 do artigo 402.º ou quaisquer outros do tipo. Limites destes não estão na lógica do estatuto dos reformados184, como serão de difícil aplicabilidade numa visão não estática: como corresponder às variações da moeda infl ação/defl ação e, sobretudo, à mudança de perfi l da própria sociedade185? Tudo recomendará manter-se com-pleta abertura, desde que se mantenha igualmente completa transparência.

182 Será discutível a possibilidade de inclusão dos administradores nos chamados “regimes profi s-sionais”. O ponto não tem muita importância prática porque nos parece ser um esquema privado em desuso.183 Referimos especialmente este aspecto porque os acidentes de trabalho estão entre nós excluídos da Segurança Social, por força do peso de tradição sem lógica ou sentido, mas que tem merecido um incompreensível consenso político. Sendo uma das áreas pelas quais muitos Estados começaram a preparar a Segurança Social (aliás, assim é hoje no domínio das doenças profi ssionais), a verdade é que entre nós marcou una zona de resistência, não sendo coberta pela previdência corporativa nem pela subsequente a 1974, apesar de mencionados na Constituição os respectivos riscos. 184 Já não vemos obstáculos à defi nição geral de um limite máximo às pensões por lei ou regras de plafonamento, e até pensamos de aplaudir que o título constitutivo da complementação (estatutos, regulamento ou até deliberação da empresa) estabeleça limites.185 Assim, se a sociedade passar a ter maiores dimensões e administradores mais bem pagos, aumen-tar-se-á sem razão substantiva o limite. Ou se a sociedade passar a ter uma confi guração total-mente diversa, transformando-se, ou então passar a ter um volume muito pequeno de negócios do que decorre uma administração menos bem paga e o que é que terá isso a ver com a situação

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Nessa linha, dispensaríamos também o n.º 4, que obriga a uma defi nição regulamentar. Na verdade, pensamos que são aspectos que devem fi car em aberto, sobretudo em situações de administradores contratados e para as quais não servirá, porventura, um mesmo regulamento. De qualquer modo, parece--nos útil deixar essa possibilidade, que serve sempre uma ideia de normalizar e defi nir em abstracto situações, o que contribui para evitar casos emotivos e pontuais.

Um ponto deverá ser tratado, apenas para resolver o problema que já aqui foi versado: o da integração das prestações, sobretudo a pensão devida, com as prestações congéneres a cargo da Segurança Social, o que aliás só tem interesse se forem estabelecidos limites. Como a questão se colocou recentemente na nossa jurisprudência e que será sempre um quebra-cabeças para o intérprete, valerá a pena deixar uma lembrança, dizendo que a fi xação do complemento deverá estabelecer os termos em que este se integra com prestações congéneres da segurança social, sendo de presumir, se nada se tiver disposto em contrário, que é completamente autónomo186.

Poderão talvez resolver-se aqui no sentido afi rmativo certas questões quanto à possível aplicabilidade a outros titulares de órgão sociais (membros do conse-lho geral187, membros individuais dos órgãos internos de fi scalização, secretário da sociedade, membros da mesa da assembleia geral), até porque podem estar excluídos dos direitos e obrigações da segurança social (artigo 63.º do Código Contributivo), ainda que se deva exigir cobertura regulamentar. Do mesmo modo, será de estender a possibilidade de complementação a outros tipos de sociedade, desde que se verifi que previsão estatutária188.

Nestes termos, submetemos à consideração pública sugestão para um pre-ceito que substituiria o actual nos seguintes termos:

Artigo 402.º(Segurança social dos administradores)

1 – A segurança social dos administradores é a legalmente estabelecida, podendo, con-tudo, a sociedade, nos termos e com as limitações previstas no artigo 399.º e normas congé-

do ex-administrador reformado? E como se contabilizam as muitas vantagens dos administrado-res do activo por vezes ocultas? 186 Deverá ter-se em conta o previsto no artigo 86.º da lei geral (LBGSSS), que antevê a regula-mentação dos complementos com o subsistema previdencial. 187 Recorde-se que, em sociedade com estrutura orgânica dualista, a reforma apenas está prevista para os administradores e não para os membros do conselho geral (artigo 433.º, 3). Se for adoptado um regime semelhante ao que propomos, deixará de se justifi car tal n.º 3.188 Cfr. fi nal do n.º 3 e nota 72.

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neres, instituir complementos relativamente às eventualidades previstas, desde que revistam a formas de fundos de pensões e de saúde ou outras modalidades reconhecidas pela lei.

2 – Nos termos do número anterior, pode a sociedade complementar a segurança social dos administradores através de planos de poupança e reforma ou como tomadora de seguros de saúde, de acidentes, vida e outros destinados a esse fi m.

3 – Pode ser prevista a articulação com as coberturas da Segurança Social, entendendo-se que, na ausência de estipulação sobre a matéria, a complementação é independente.

4 – A instituição e as normas permanentes de complementação a que se referem os números anteriores podem ser estabelecidas em regulamento, aprovado pela assembleia geral.

5 – O regulamento previsto no n.º anterior pode alargar o regime deste artigo aos outros membros dos órgãos legais e estatutários.

6 – O regime previsto nos números anteriores pode ser estabelecido para sociedades de outro tipo, nos moldes que constem do respectivo contrato de sociedade.

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Aval prestado por sócios de sociedades por quotas e anónimas e perda da qualidade de sócio. Apontamento* 1

PROF. DR. EVARISTO MENDES

Sumário: A – Aval em letra ou livrança (completa). B – Aval de sócio em livrança subscrita e emitida em branco pela sociedade. C – Aval em livrança em branco e perda da qualidade de sócio. Limitação do objeto da garantia. D – Direito à redução do objeto da garantia. E – As livranças em causa como títulos não destinados à circulação. F – Resumo.

Continua a haver uma abundante jurisprudência acerca do aval cambiá-rio, sendo em grande número os problemas que permanecem controvertidos. Salienta-se, no entanto, a jurisprudência relativa aos avales apostos em livranças em branco, mormente quando o subscritor-emitente da livrança é uma socie-dade por quotas ou uma sociedade anónima fechada e o aval é nelas aposto por sócios da mesma. Enunciam-se em seguida algumas questões.

I) Que sentido tem a aposição de uma assinatura de aval em livrança em branco emitida por certa sociedade por quotas ou anónima a favor de um fi nanciador desta que “exige” como condição da celebração de determinado negócio de fi nanciamento a entrega dessa livrança com os avales dos sócios dessa socie-dade – via de regra, sócios-gerentes ou administradores? Que função se destina a

* Trata-se do texto que serviu de base à minha participação nas I Jornadas de Direito das Garantias que, sob a coordenação científi ca dos Profs. Doutores António Menezes Cordeiro e Januário Gomes, tiveram lugar na FDL no dia 19 de novembro de 2015. Numa revista de direito das sociedades, seria expectável que o tratamento do tema contemplasse o importante problema de governação (ou governança) societária que a prestação generalizada de garantias pessoais por sócios de sociedades por quotas e anónimas, a favor dos fi nanciadores destas, suscita. Porém, tratando-se de jornadas sobre garantias e não sobre sociedades, este aspeto fi cou de fora.

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cumprir tal livrança? É expectável que o fi nanciador-portador venha a negociá-la, nomeadamente descontando-a numa outra Instituição de crédito (IC)?

A prestação do aval num tal documento em branco possui o mesmo signifi cado que a entrega por parte de alguém de uma letra ou livrança1 após ter nela aposto o seu aval2?

II) Que sentido tem ainda para os avalistas essa assinatura da livrança em branco (ou já completa) quando todos os sócios a assinam, designadamente sob a inscrição única «por aval à subscritora», «bom para aval à subscritora» ou outra congénere? Nas relações entre eles, atuam de forma «coletiva», solidária, ou cada um por si, de forma independente3?

III) Vindo um avalista a ser acionado, pode o mesmo invocar a exceção de violação do pacto de preenchimento? Será esta uma mera exceção pessoal4?

1 Tenha-se presente que um tal documento só vale como livrança, com o conhecido rigor que caracteriza este título, quando se encontrar devidamente confi gurado nos termos do artigo 75 da LULL (artigo 76; para a letra, cfr. artigos 1 e 2).2 Procede a tal distinção, como se observará, Carolina Cunha, num artigo em que comenta o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ n.º 4/2013, de 11.12.2012, «Cessão de quo-tas e aval: equívocos de uma uniformização de jurisprudência», DSR 9 (2013), p. 91-114, 92ss. Já antes, Carolina Cunha, Letras e Livranças. Paradigmas actuais e Recompreensão de um Regime, Coimbra (Almedina) 2012, p. 584ss (acerca das relações de fi nanciamento duradouras, p. 597ss; sobre o tema específi co da perda da qualidade de sócio pelo avalista, p. 610ss). Na mesma linha, cfr. também Filipe Cassiano dos Santos, «Aval, livrança em branco e denúncia ou resolução de vinculação: anotação ao AUJ do STJ de 11-12-2012», RLJ 142 (2013), p. 300-312, 312-346, 318ss, e Januário Gomes, «O (in)sustentável peso do aval em branco prestado por sócio para garantia de crédito bancário revolving – Ac. de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2013, de 11.12.2012, Proc. 5903/09», CDP 43 (2013), p. 15-32, 32-47, 34ss.3 Sobre o tema, cfr., designadamente, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ n.º 7/2012, de 5.06.2012 (relatado por Abrantes Geraldes), proc. 2493/05.0TBBCL.G1.S1, DR I de 17.07.2012, e o Acórdão do mesmo Tribunal de 30.04.2015 (também relatado por Abrantes Geraldes), proc. 2430/11.3.TVLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt. Lê-se no primeiro: «Sem embargo de convenção em contrário, há direito de regresso entre os avalistas do mesmo avalizado numa livrança, o qual segue o regime previsto para as obrigações solidárias». Com posição crítica, cfr., designadamente, Pais de Vasconcelos, «Avales dos sócios de sociedades comerciais», in DSR 11 (2014), p. 13-34, 17ss. Em sentido favorável, Carolina Cunha, «Pluralidade de avalistas e direito de regresso – Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2012, de 5.6.2012, Rev. 2493/05», CDP n.º 40 (2012), p. 41-55, 56-67. Anteriormente, cfr. P. Pais de Vasconcelos, «Plu-ralidade de avales por um mesmo avalizado e «regresso» do avalista que pagou sobre aqueles que não pagaram», in AAVV, Nos 20 anos do CSC, III, Coimbra Editora 2007, p. 947-978.4 Há vasta corrente jurisprudencial no sentido deste carácter pessoal, apenas admitindo a invocação do pacto pelos avalistas quando sejam partes nele. Cfr., por ex., o Acórdão do STJ de 22.02.2011 (relatado por Sebastião Póvoas), proc. 31/05 – 4TBVVD – B.G1.S1, em cujo sumário se lê: «2. A

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IV) Se um avalista perde a qualidade de sócio – por morte, alienação da parti-cipação, exoneração, exclusão, amortização forçada das quotas ou ações, etc. – deve entender-se que ele (ou em caso de morte os seus sucessores) continua(m) a cobrir, com o seu aval, a relação de negócios existente entre a sociedade subscritora da livrança e a entidade fi nanciadora que a detém, com as dívidas contraídas após essa ocorrência? Por tempo ilimitado? E sem limite de valor? Apesar de ter perdido o interesse e o, maior ou menor, poder de infl uência que detinha na sociedade? Que pode justifi car uma garantia com esse objeto e duração? Uma eventual disposição contratual nesse sentido contida nas CCG do fi nanciamento é válida, em especial quando o sócio que sai é um particular pessoa singular?

Acerca deste último grupo de questões, pronunciou-se, em parte, o STJ no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2013, de 11.12.2012.5

violação do pacto de preenchimento é uma excepção de direito material que não pode ser invocada pelo avalista salvo se o mesmo nele teve intervenção, subscrevendo-o»; bem como o Acórdão do mesmo Tribunal de 10.09.2009 (de que foi relator Lopes do Rego), proc. 380/09.2YFLSB, em cujo sumário se escreve: «2.Sendo a execução instaurada pelo benefi ciário de livrança que lhe foi entregue em branco, e não tendo tido o avalista, segundo a sua própria versão fáctica, qualquer intervenção, quer nos negócios jurídicos subjacentes à subscrição da livrança, quer na celebração do pacto de preenchimento, não lhe é possível opor ao portador do título a excepção de preen-chimento abusivo, nem invocar erro na prestação do aval, já que, neste caso, não existe qualquer relação extracartular entre portador da livrança e avalista que possa fundamentar a dedução de tais excepções.» Ambos os acórdãos se encontram disponíveis em www.dgsi.pt (última consulta: novembro de 2015). Toma-se adiante posição diferente, pelos motivos aí aduzidos. Em geral, sobre a letra em branco, cfr. Paulo Sendin, Letra de Câmbio, I, Lisboa (Almedina) 1980, p. 143ss, 156ss, 172ss, 176ss, 183ss, 198-264, 306ss, 359ss, etc. No sentido de que o aval é dado no pressuposto da observância do acordo de preenchimento, cfr. Evaristo Mendes, «Aval e fi ança gerais», Direito e Justiça XIV (2000)/1, p. 149-169, 150. Cfr. também, embora em sentido não inteiramente coinci-dente com o do texto, os referidos comentários de Carolina Cunha, «Cessão de quotas e aval: equívocos de uma uniformização de jurisprudência», DSR 9 (2013), p. 91-114, mormente, p. 96ss, Januário Gomes, «O (in)sustentável peso do aval em branco prestado por sócio para garantia de crédito bancário revolving», CDP 43 (2013), p. 15-32, 32-47, 38, 41ss (sobretudo, 43ss), e Filipe Cassiano dos Santos, «Aval, livrança em branco e denúncia ou resolução de vinculação: anota-ção ao AUJ do STJ de 11-12-2012», RLJ 142 (2013), p. 300-312, 312-346, 333ss.5 Acórdão relatado por Gabriel Catarino e comentado criticamente, designadamente, por Caro-lina Cunha, no primeiro estudo citado, «Cessão de quotas e aval: equívocos de uma uniformi-zação de jurisprudência», DSR 9 (2013), p. 91-114. Quanto ao problema específi co da desvincu-lação do avalista que perde a qualidade de sócio, vejam-se em especial as páginas 99ss (mormente quanto à resolução, por inexigibilidade, do acordo de preenchimento, e seus limites, 113ss). Já antes, realçando a diferença que existe entre o aval aposto em letra ou livrança completa e o aval inscrito numa letra ou livrança em branco e reconhecendo ao sócio que cede a sua participação na sociedade o direito de se desvincular, para o futuro, cfr. Letras e Livranças (2012), cit., p. 610ss, em especial, 613ss. Sobre o assunto, em tom igualmente crítico, cfr. também F. Cassiano dos Santos, «Aval, livrança em branco e denúncia ou resolução de vinculação: anotação ao AUJ do

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Posteriormente, podem indicar-se, com especial interesse, o Acórdão de 12.11.20136 e o Acórdão de 11.09.2014.7 Procede-se em seguida a um breve

STJ de 11-12-2012», RLJ 142 (2013), p. 300-312, 312-346 (embora valorando a perda da quali-dade de sócio de modo diferente do daquela autora – p. 315, 320ss/324ss), e Januário Gomes, «O (in)sustentável peso do aval em branco prestado por sócio para garantia de crédito bancário revolving – Ac. de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2013, de 11.12.2012, Proc. 5903/09», CDP 43 (2013), p. 15-32, 32-47, bem como, em sentido favorável ao Acórdão, Pais de Vascon-celos, «Avales dos sócios de sociedades comerciais», in DSR 11 (2014), p. 13-34, 27ss; todos com mais indicações. O Acórdão encontra-se disponível, designadamente, em www.dgsi.pt e no DR de 21.01.2013 (1ª série). Fixou-se jurisprudência no seguinte sentido: «Tendo o aval sido prestado de forma irrestrita e ilimitada, não é admissível a sua denúncia por parte do avalista, sócio de uma sociedade a favor de quem aquele foi prestado, em contrato em que a mesma é interessada, ainda que, entretanto, venha a ceder a sua participação social na sociedade avalizada». Lê-se no sumário do Acórdão fundamento, de 2.12.2008, relatado por Paulo Sá, proc. 08A3600 (disponível, em www.dgsi.pt): «V – Embora o aval seja irrevogável, é admissível a sua denúncia até ao momento do preenchimento do título, em situações como a dos autos, em que a livrança é decorrente de um contrato de abertura de crédito com um prazo inicial de 6 meses, que foi sendo renovado 16 vezes, por prazos idênticos e sucessivos, já tendo decorrido cerca de 4 anos e meio sobre a aposição do aval. VI – A denúncia basta-se, então, com a simples comunicação ao Banco exequente da vontade e do pedido feito pelo avalista de “ser retirado” da livrança o seu aval, isto independentemente do fundamento que foi invocado (a circunstância de ter deixado de ser sócio e renunciado à gerência da sociedade subscritora da livrança). VII – Tendo a declaração de denúncia chegado ao poder do Banco benefi ciário, a mesma tornou-se efi caz (artigo 224.º, n.º 1, do CC)». Acerca da possibilidade de denúncia, cfr. também Evaristo Mendes, «Aval e fi ança gerais», Direito e Justiça XIV (2000)/1, p. 149-169, 158, 160 s, 163 ss. Note-se, no entanto, que a denúncia não respeita ao aval e que, havendo, no momento em que produz efeito, uma dívida do avalizado, o avalista não pode exigir que o aval seja riscado do título, embora possa exigir a anotação no mesmo título, quanto a si, do valor até ao qual responde (cfr. «infra», na parte fi nal do estudo).6 Acórdão relatado por Nuno Cameira e disponível em www.dgsi.pt; proc. 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1. Salienta-se no sumário: «IV – Actua com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o banco que aciona uma livrança, que os executados avalizaram em branco, oito anos depois de estes se terem afastado da sociedade subscritora, na qual tinham interesse, tendo o exequente conhecimento que estes só avalizaram a livrança por serem pessoas com interesse na sociedade subscritora, sendo que, na altura do afastamento (meados de 2003), a conta caucionada de que a sociedade era titular encontrava-se regularizada e, posteriormente ( já depois de 2004), o exequente, sabendo que os executados se sentiam desobrigados e que era bastante a garantia dos restantes avalistas, continuou a conceder crédito à sociedade através da renovação do con-trato de abertura de crédito que tivera início em 03-07-2002. V – Perante estes dados de facto, verifi ca-se que os executados podiam fundadamente confi ar que, tanto tempo depois de se terem apartado da sociedade subscritora, o banco não acionaria o aval que prestaram: é inadmissível e contrária à boa fé a conduta assumida pelo exequente, na medida em que trai a confi ança gerada nos executados pelo seu comportamento anterior, confi ança essa reforçada pelo decurso de um tão dilatado lapso de tempo».7 Acórdão relatado por Bettencourt Faria e disponível em www.dgsi.pt; proc. 3871/12.4 TBV-FR-A.P1.S1.

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apontamento sobre o tema, deixando para outra altura um tratamento mais aprofundado do conjunto das questões enunciadas.

Há cerca de 20 anos, publicámos um estudo sobre a fi ança geral (fi ança global ou omnibus), em que chamámos a atenção para a especifi cidade de tais fi anças, quando dadas por sócios (gerentes ou administradores) a favor das suas sociedades, contrariando a tendência que então se desenhava na jurisprudên-cia no sentido de uma indiscriminada consideração da mesma como inváli-da,8 embora com decisões em sentido oposto, donde resultou o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2001.9 Seguiu-se um outro relativo ao aval e à fi ança gerais.10 Com o texto de hoje procura-se, novamente, chamar a atenção para tais especifi cidades, em relação aos avales apostos por sócios de

8 Cfr. Evaristo Mendes, «Fiança geral», RDES XXXVII (1995), p. 97-158, em especial, p. 136ss,154ss.9 DR I de 8.03.2001. Embora proclamando uma posição de princípio desfavorável às fi anças omni-bus, o Acórdão deixa abertura para o tratamento diferenciado de situações especiais, que de resto tem sido utilizada pelos tribunais. Para um breve panorama da evolução que se operou na matéria, cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, X – Direito das Obrigações. Garantias, Coimbra (Almedina) 2015, p. 509ss, em especial, 515ss. Note-se que, apesar de haver diversos Acórdãos dos tribunais superiores em sentido contrário, a doutrina do Aresto é, no essencial, transponível para o correspondente problema do aval. Neste sentido, cfr., ainda, Menezes Cordeiro, p. 601. Já antes, Carolina Cunha, Letras e Livranças. Paradigmas actuais e Recompreensão de um Regime (2012), cit., p. 599 ss. Acerca do mesmo Acórdão, merece destaque o comentário de Januário Gomes, «O mandamento da determinabilidade na fi ança omnibus e o AUJ n.º 4/2001», in Estudos de Direito das Garantias, I, Coimbra (Almedina) 2004, p. 109-137; já antes, sobre o tema, Assunção fi dejussó-ria de dívida, Coimbra (Almedina) 2000, p. 597ss. Não exactamente na mesma linha, cfr., ainda, Menezes Cordeiro, p. 520 s. Veja-se, ainda, L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, Coimbra (Almedina) 2010, p. 95 ss, em especial, 99 ss.10 Evaristo Mendes, «Aval e fi ança gerais», Direito e Justiça XIV (2000)/1, p. 149-169, já citado. Neste texto, formulámos perguntas semelhantes às acima enunciadas. Salienta-se aí: 1) conside-rando o caso normal de a livrança em branco avalizada ser entregue ao banco, sem que o avalista, nas relações com este, defi na claramente os termos em que se vincula, pode a garantia ser inter-pretada no sentido de não compreender dívidas posteriores à saída do sócio da sociedade? Tendo o banco tido conhecimento da saída, pode considerar-se abusivo o acionamento da garantia no seu confronto? 2) Uma vez prestada a garantia, pode o garante «exonerar-se» da mesma (denun-ciá-la ou revogá-la, com efeitos «ex nunc», relativamente a dívidas futuras)? Como? 3) São válidas as garantias? Dentro de que limites? Para mais pormenores, cfr. as p. 151 e 152. Acerca da fi gura do chamado «aval geral», cfr. p. 156 s (entendendo que o que está em jogo é um aval aposto em livrança em branco sendo a autorização de preenchimento de caráter geral); acerca da validade, p. 161 ss (cfr. também p. 167s); sobre a função sócio-económica deste tipo de garantias e o pro-blema de governança societária que colocam, p. 166 s. Sobre o aval omnibus, com mais indica-ções, cfr. também Carolina Cunha, Letras e Livranças. Paradigmas actuais e Recompreensão de um Regime (2012), cit., p. 597ss, L. Miguel Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias (2010), cit., p. 116ss, Menezes Cordeiro, Tratado X (2015), cit., p. 601.

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certa sociedade em livrança em branco subscrita e emitida por esta a favor de um fi nanciador; considerando especifi camente as consequências da perda da qualidade de sócio e defendendo, para as situações típicas, um princípio de limitação da responsabilidade do garante ao valor em dívida no momento em que perde a qualidade de sócio. Dissentindo assim de uma importante corrente jurisprudencial que rejeita tal limitação.

A – Aval em letra ou livrança (completa11)

1. Nos termos do artigo 30 I da LULL,12 o avalista garante o pagamento da letra; e, segundo os artigos 31 IV e 32 I, a garantia está ligada a uma ope-ração cambiária principal de referência (saque, aceite ou endosso) – «acesso-riedade típica» (Rossi, Paulo Sendin13) – embora seja dela substancialmente independente (artigos 7 e 32 II). Quer isto dizer: ao devolver voluntariamente uma letra em que fi gura como avalista, a pessoa em causa (i) assegura ao por-tador cartularmente legitimado14 da mesma que, se este a apresentar pontual-mente a pagamento ao destinatário da ordem de pagar nela contida (o sacado15), o pagamento não lhe será recusado (artigo 30 I); (ii) assumindo16 tal posição no título em atenção ao autor da operação avalizada17, pela confi ança que este lhe merece,18 inserindo-se por isso na cadeia cambiária a par dele (artigos 31 IV e 32 I).19

11 Recorda-se: única que vale como tal (artigos 2 e 76 da LULL).12 Salvo se outra coisa resultar de indicação expressa ou do respetivo contexto, os artigos citados respeitam à Lei Uniforme relativas às Letras e Livranças de 1930 (LULL).13 Deste autor, sobre o aval, cfr., desenvolvidamente, Letra de Câmbio II (1982), p. 721ss (acerca da acessoriedade típica, p. 783s).14 Sobre este conceito, cfr. o artigo 16 I da LULL.15 Haja aceite ou não; cfr. o caso paralelo do cheque.16 Ou supondo-se que assume. Não importa o estado psicológico do autor, mas o que é normal acontecer, com pessoas normais, razoáveis. Cfr. nota adiante.17 Este, ao deixar sair o título da sua esfera jurídica, com a sua assinatura, empenha nele o seu crédito, garantindo legalmente o seu pagamento pontual (sacador e endossantes: artigos 9 e 15) ou prome-tendo cumprir a ordem de pagamento que através da letra lhe é dada (sacado-aceitante: artigo 28).18 Tudo apreciado em termos de típica normalidade, independentemente portanto do concreto estado de alma do avalista e do avalizado, de a operação avalizada responsabilizar realmente o ava-lizado (artigo 7 e 32 II), etc.19 Cfr., a respeito da conceção de Paulo Sendin, Evaristo Mendes, «Letra de Câmbio e Direito Comercial centrado na Empresa. O Legado de Paulo Sendin», in Estudos em Memória do Prof. Dou-tor Paulo M. Sendin, Lisboa (UCE) 2012, p. 13-70, 67ss. Cfr. também Carolina Cunha, Letras e Livranças (2012), cit., p. 105ss.

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Se o resultado voluntariamente garantido pelo avalista – que também é legalmente garantido pelo sacador e eventuais endossantes e eventualmente prometido pelo sacado (assumindo desse modo a qualidade de aceitante) – não se produzir, verifi cados os demais pressupostos legais,20 a letra, que até aí era um título circulante (destinado a circular – artigos 11 ss) e continha uma ordem de pagamento garantida e eventualmente aceite,21 converte-se num título pura-mente obrigacional a liquidar (destinado a ser liquidado – cfr. o artigo 20), contendo obrigações de regresso dos subscritores (artigos 47ss).22 De tal modo que, via de regra, não compensa subscrever e utilizar uma letra se não houver a fundada expectativa de ela vir a ser paga pelo sacado no vencimento.23

2. Transpondo este regime para a livrança (cfr. o artigo 77 da LULL) – e pensando no caso de um aval prestado por honra do respetivo subscritor/emi-tente, que promete pagar o valor inscrito no título (artigo 75) –, o avalista, em atenção a este seu avalizado (artigos 31 IV e 32 I/artigo 77) mas de forma inde-

Em geral sobre a concepção não obrigacional da letra, na sua fase normal (distinta da fase patoló-gica mas meramente eventual do regresso), com uma correspondente reconstrução do aval, podem ver-se Paulo Sendin, Letra de Câmbio, Lisboa, Almedina, 1980 e 1982, Paulo Sendin/Evaristo Mendes, A natureza do aval e a questão da necessidade ou não de protesto para accionar o avalista do acei-tante, Coimbra (Almedina) 1991, em especial, p. 954ss, e Evaristo Mendes, «Letra de Câmbio e Direito Comercial centrado na Empresa. O Legado de Paulo Sendin», in Estudos em Memória do Prof. Doutor Paulo M. Sendin, Lisboa (UCE) 2012, p. 13-70, 19ss, Títulos de Crédito – Aulas da FDL 1990-1991, disponível em evaristomendes.eu. Para uma reconstrução doutrinal do título, veja-se, ainda, a supracitada obra de Carolina Cunha, Letras e Livranças (2012). Para a visão tradicional, cfr., por ex., José Engrácia Antunes, Os Títulos de Crédito. Uma Introdução, Coimbra (Almedina) 2012, p. 51ss (85ss, quanto ao aval), e A. Soveral Martins, Títulos de crédito e valores mobiliários, I – Títulos de crédito, Coimbra (Almedina) 2012.20 Apresentação pontual a pagamento, recusa de pagamento e comprovação dessa recusa por pro-testo tempestivamente requerido (cfr. os artigos 38, 44 e 53).21 Estando aceite, a posição jurídica inscrita no título já não é apenas de benefi ciário (legitimado) de uma ordem de pagamento legalmente garantida pelo sacador e eventuais endossantes, bem como voluntariamente pelos avalistas; a letra incorpora também a obrigação do aceitante. Mas, sendo o aceite facultativo (embora hoje em dia existente em quase todas as letras), a sua essência continua a residir na ordem de pagamento. Estruturalmente, continua a ser uma espécie de título de «delegação»: o sacador encarrega o sacado de fazer certo pagamento, em princípio por sua conta (cfr. o artigo 3 da LULL). O confronto com o cheque, que é insusceptível de aceitação (artigo 4 da LUCh), é elucidativo disto mesmo.22 Se não se verifi carem os pressupostos do regresso, encontrando-se aceite, a letra também se con-verte num puro título obrigacional, uma vez que a obrigação do aceitante (artigo 28) se mantém (cfr. o artigo 53 I) e as garantias (do sacador, dos endossantes e dos avalistas) se extinguiram, sem se converterem em obrigações de regresso. 23 Cfr. também, a respeito do cheque, Evaristo Mendes, «O actual sistema de tutela da fé pública do cheque», Direito e Justiça (DJ) XIII/1 (1999), p. 199-254.

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pendente (artigos 32 II e 7/artigo 77), garante ao portador cartularmente legi-timado que, se apresentar o título a pagamento a tal subscritor, no vencimento, receberá dele24 esse pagamento (artigo 30 I/artigo 77). Caso o resultado pro-metido pelo subscritor e garantido pelo avalista não se produza, verifi cados os demais pressupostos da LULL, todos os que nela tenham a sua assinatura25 fi cam responsáveis pelo seu pagamento de regresso (artigos 47ss). Na falta de tais pressupostos, o título, em rigor, apenas documenta a obrigação do subscri-tor (artigo 75; cfr. artigos 53 e 77), mas a orientação de largo dominante é no sentido de que um avalista como o presente também é obrigado.26

A garantia do avalista – e portanto a sua responsabilidade – é autónoma (artigos 7, 32 II e 17; cfr. o artigo 77). Se o ato é ainda qualifi cável como abs-trato ou não mostra-se um problema distinto, que pode discutir-se. A LULL não impõe que assim seja e isso também não parece resultar da sua inserção no ordenamento jurídico português; mas, em última análise, tudo depende da conceção de abstração perfi lhada.27

24 Ou por seu intermédio.25 Em nome próprio ou em nome alheio se faltam os necessários poderes (artigo 8). Em princí-pio serão todos. Pode, no entanto, faltar a responsabilidade de um ou mais, designadamente por incapacidade, por ser falsa a assinatura, por ter sido desapossado do título (controvertido), etc. Neste caso, além do artigo 16 II, é importante o princípio da independência recíproca do artigo 7. 26 Isto deriva, em termos conceptuais, da corrente conceção do aval como um ato instituidor – não de uma garantia de produção de certo resultado (o pagamento pontual do título no vencimento, pelo sacado da letra ou pelo subscritor/emitente da livrança), com a correspondente eventual obrigação de regresso se se verifi carem os pressupostos deste – mas de uma obrigação solidária de garantia da obrigação do avalizado. Sobre este ponto, cfr. Paulo Sendin/Evaristo Mendes, A Natureza do Aval e a Questão da Necessidade ou não do Protesto para Accionar o Avalista do Aceitante, Coimbra (Almedina) 1991. 27 Em termos gerais, a abstracção de um negócio ou obrigação cartulares signifi ca a sua indepen-dência relativamente à respetiva causa [relação subjacente (causa remota) e convenção executiva (causa próxima, que estabelece a ponte entre o plano cambiário e o plano causal)], que pode ser plúrima, como nas letras e livranças e nos cheques (salvo, porventura, no caso do aval, que cumpre uma função de garantia), ou corresponder a um determinado tipo negocial, como sucede no caso do conhecimento de carga (cuja relação causal é necessariamente o contrato de transporte de mer-cadorias por mar e, portanto, só comportará abstracção no primeiro sentido). No caso das letras e livranças, ela é frequentemente identifi cada, no que respeita às obrigações, com o disposto no artigo 17 da LULL [cfr., por ex., Soveral Martins, Títulos de crédito (2012), p. 80ss, e Menezes Cordeiro, Tratado X (2015), p. 603 (só existe quando o título está nas mãos de um terceiro de boa fé)], o que signifi ca a sua recondução à autonomia do título. Afi rmando também o seu caráter relativo, cfr. Paulo Sendin, «Usura. Letra de Câmbio e Direito Comercial», in AAVV, Nos 20 Anos do CSC, III, Coimbra Editora 2007,851-914, 901s [a letra vale por si, a operação cambiária é «sufi -ciente»; mas trata-se de um regime jurídico, não de um dogma, e possui caráter relativo: havendo entre os intervenientes cambiários uma relação imediata (por serem partes também na relação causal subjacente), essa sufi ciência deixa de existir, sendo possível apreciar o negócio subjacente e

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Embora a LULL não o diga expressamente,28 enquanto garantia cambiária operacional aposta no título (isto é, conexa com uma operação «principal», do avalizado: cfr. os artigos 31 IV e 32 I), pode afi rmar-se, ainda, um seu caráter incondicionável; e, após ter-se constituído ou tornado efi caz com a entrega do

opor exceções pessoais daí derivadas]. Porém, com mais desenvolvimento e estendendo-a também ao domínio das relações imediatas (que existem entre intervenientes da cadeia cartular partes numa relação subjacente) e portanto conferindo-lhe relevância própria embora mitigada, cfr. Ferrer Correia (Paulo Sendin/Sampaio Cabral), Lições de Direito Comercial, III, Coimbra 1966 (polic.), p. 45ss [abstracção signifi ca pluralidade de funções do negócios cambiários e independência da causa ou função, a causa é separada do negócio, fi cando fora da obrigação cambiária; aludindo à autonomia nas relações mediatas (artigo 17 – este consagra a abstracção: p. 59) e considerando que a autonomia é uma decorrência da literalidade e da abstracção, cfr. p. 47s, 59s, 65; conside-rando que a inoponibilidade da convenção de favor também é manifestação da abstracção, p. 50; entendendo que, nas relações imediatas, tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta, porque a disciplina da LULL visa assegurar a sua fácil circulação, através da protecção da boa fé de terceiros – p. 67s e 88; mas entendendo também que a natureza da obriga-ção é, em rigor, a mesma no domínio das relações mediatas e imediatas, ou seja, que a obrigação é sempre literal e abstracta, embora nas relações imediatas, por razões de economia processual, as excepções causais funcionem como uma «contra-pretensão» que vem compensar e anular a que o portador imediato baseia na letra, cfr. p. 88ss (na linha de La Lumia e aludindo ao enriquecimento sem causa). A este respeito, tenha-se presente, ainda, que, quando se discutiu a validade em Por-tugal das garantias bancárias autónomas, se justifi cou a mesma distinguindo entre abstracção (que elas não teriam) e autonomia (inoponibilidade de excepções) – cfr. Evaristo Mendes, «Garantias bancárias autónomas…», RDES 1995/4, p. 411-444, 445-473, 421ss, 430, 433ss, 448ss, 451, 462ss Considerando, nos títulos abstractos, um absurdo entender que a abstracção só existe no domínio das relações mediatas, mas admitindo nas imediatas a oposição das excepções causais, procurando uma explicação para tal, cfr. também Fernando Olavo, Direito Comercial, II – Títulos de crédito em geral, Coimbra Editora 1978, p. 48ss (em especial, p. 51s, 57ss). No direito alemão, cfr., por ex., Hueck/Canaris, Recht der Wertpapiere, (Munique (Vahlen) 1986, p. 26ss, 44, 106s, 165ss, e Ernst Jacobi, Wechsel- und Scheckrecht, Berlim 1956, p. 275ss. Importa assinalar que a abstracção do título, em si mesmo, e do respectivo ato criador, pode, no caso do cheque, retirar-se do artigo 3 da LUCh, na medida em que a validade do mesmo não depende da existência da provisão que tipicamente justifi ca a ordem de pagamento que através do cheque é dada ao sacado. E é defen-sável igual construção para as letras e livranças, embora falte na LULL disposição semelhante. Tudo o resto – saber se os demais negócios cambiários e obrigações são abstractos – é, em face do ordenamento causalista português, discutível [cfr. também, por ex., Francesco Galgano, I titoli di credito, Pádua (Cedam) 2009, p. 30ss – embora justifi cando a inoponibilidade de exceções nas relação mediatas através de uma construção do fenómeno «translativo» muito vulgarizada mas igualmente discutível]. Sobre o tema, na literatura recente, cfr. a reconstrução de Carolina Cunha, Letras e Livranças (2012), p. 123ss (134ss; 151ss, quanto aos negócios cambiários), 208ss. 28 Diversamente do que sucede com o saque, o endosso e o aceite (cfr. os artigos 1, 12 e 26 I da LULL), bem como com a subscrição/emissão da livrança (artigo 75.2.º).

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documento avalizado, a sua natureza irrevogável.29 Mas, tal como sucede com o aceite (artigo 26 I), a garantia pode fi car limitada apenas a uma parte do valor do título (artigo 30 I). E nada impede que essa ou outra limitação resulte, em relação a certo interveniente e/ ou portador do título, de uma convenção extra-cartular, expressa ou tácita – originando então, em relação a ele, uma exceção pessoal do avalista: ou seja, vindo essa pessoa a ser portadora do título e a fazer valer o direito nele inscrito, desse avalista não pode exigir mais do que o valor entre eles acordado e nas condições ajustadas.

Cumprindo o título todos os requisitos dos artigos 1 (letra) e 75 (livrança) da LULL, aquilo que o avalista garante encontra-se cartularmente predefi nido. Embora corra um risco maior ou menor, porque os títulos cambiários têm uma base fi duciária e nessa medida envolvem risco, ele conhece os precisos ter-mos da responsabilidade em que pode vir a incorrer; sendo a defi nição precisa daquilo que garante que permite a sua sujeição ao chamado «rigor cambiário».

Todo o regime da LULL está concebido para tornar a letra e a livrança um título de crédito negociável, especialmente apto para a circulação e destinado a circular.30 No sistema da Lei, o aval, com o rigor próprio de uma garantia subs-tancialmente autónoma, insere-se nessa lógica circulante, reforçando o crédito do título com vista conferir-lhe aptidão circulatória ou a melhorá-la. Pode o título cumprir, na prática, outras funções, independentes desta aptidão, mor-mente de garantia; e o aval desempenhar aí um papel tão ou mais fundamental. Mas, legalmente, subsiste sempre uma correlação estreita entre um princípio de literalidade e de formalidade estrita do título e o indicado rigor cambiário, que atinge designadamente os subscritores, incluindo avalistas.

29 Tais afi rmações carecem, em todo o caso, de ser justifi cadas. Não resultam evidentes do texto da lei.30 Isto não deve, no entanto, fazer esquecer a mudança de paradigma que entretanto ocorreu. Presentemente, as letras são emitidas, via de regra, para serem descontadas, morrendo nas mãos do primeiro endossado (em geral um banco). E esta circulação limitada apenas existe porque se generalizou no século passado o saque à ordem do sacador; se fosse utilizada a modalidade do saque a favor ou à ordem do tomador, nem sequer tal circulação limitada ocorreria. O mesmo se verifi ca com as livranças: como se diz no texto, estas encontram-se tipicamente associadas a con-tratos de concessão de crédito ou de risco e cumprem em geral uma função de garantia e melhoria da posição processual do fi nanciador destinatário, não se destinando a circular. Sobre o assunto, cfr. Evaristo Mendes, «Letra de Câmbio e Direito Comercial centrado na Empresa. O Legado de Paulo Sendin», in Estudos em Memória do Prof. Doutor Paulo M. Sendin, Lisboa (UCE) 2012, p. 13-70, máxime, p. 19, e Carolina Cunha, Letras e Livranças (2012), cit., passim.

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B – Aval de sócio em livrança subscrita e emitida em branco pela sociedade

3. No caso das livranças subscritas e emitidas em branco, por sociedades por quotas ou anónimas, e avalizadas em branco pelos respetivos sócios,31 a favor de um fi nanciador da sociedade,32 a situação mostra-se substancialmente diferente; muito diferente, mesmo.33 Via de regra, trata-se de documentos sem a indica-ção do valor prometido pelo subscritor (em branco quanto ao montante)34 e sem indicação do momento em que tal valor deve ser oferecido ou pode ser exigido (em branco quanto ao vencimento).35

A própria LULL afi rma expressamente que tais documentos de livrança, enquanto não tiverem inscrito o montante a pagar, não valem como livranças (artigo 7636) – isto é, não são títulos de crédito (especifi camente títulos cambiá-rios), sujeitos ao regime nela estabelecido. E, portanto, as declarações de aval também não valem, em termos técnico-jurídicos, como avales, com as caracterís-ticas e o regime a que a LULL os sujeita. Quando muito, poderá falar-se em títulos provisoriamente incompletos, em livranças em formação ou pré-livran-ças, e em avales em formação ou pré-avales;37 mas a ideia de provisoriedade

31 Em geral, sócios gerentes ou administradores; menos frequentemente, apenas sócios maioritá-rios e/ou gerentes/administradores. Sobre estas em geral, cfr. Evaristo Mendes, «Aval e fi ança gerais», Direito e Justiça XIV (2000)/1, p. 149-169, 166ss.32 Trata-se de um fenómeno muito difundido, quer em Portugal quer noutros países europeus, envolvendo via de regra sociedades por quotas e anónimas de pequena e média dimensão. Mas também se observa em relação a agrupamentos societários cuja faturação anual ascende a algumas centenas de milhão de euros. E também existe fora do contexto profi ssional, por exemplo, no crédito ao consumo. Com frequência, os sócios constituem-se, ainda, fi adores, além de avalistas ou em alternativa ao aval.33 Como também realçam Carolina Cunha, Cassiano dos Santos e Januário Gomes, nos comen-tários supracitados.34 Falta, portanto, a «quantia determinada» a que se refere o artigo 75.2.º (cfr., para as letras, o artigo 1.2.º); o que faz com que a promessa de pagamento seja uma promessa em branco, não cartu-larmente determinada nem determinável.35 Quanto a este elemento, embora quando completada com a quantia devida a livrança possa surgir como uma livrança pagável à vista (cfr. o artigo 76 I) – isto é, mediante a simples apresentação do título por quem esteja cartularmente legitimado a fazê-lo (artigos 34 I e 77) –, isso não é forçoso.36 Para as letras, cfr. o artigo 2. Cfr., por todos, Engrácia Antunes, Os Títulos de Crédito (2012), p. 55s, e A. Soveral Martins, Títulos de crédito (2012), p. 46 s. Cfr. também, por exemplo, o aludido comentário de Januário Gomes, «O (in)sustentável peso do aval em livrança em branco prestado por sócio…», CDP 43 (2013), p. 36ss (citando, designadamente, Oliveira Ascensão, Pinto Coelho, Carolina Cunha e P. Sendin) e 41.37 Mostra-se controvertida a questão de saber quais os requisitos absolutamente indispensáveis para haver uma letra ou uma livrança em branco, ou seja, para haver um título cambiário em formação,

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nem sequer é totalmente correta, porque a grande maioria dos documentos de livrança em apreço nunca chega a converter-se em livrança, em virtude de os contratos subjacentes serem pontualmente cumpridos.

Mais: a LULL quase não regula a fi gura, cujo recorte depende assim subs-tancialmente dos vários ordenamentos nacionais. A única norma existente é a do artigo 10 (aplicável às livranças por força do artigo 77), claramente destinada a proteger o título enquanto título circulante, acautelando o interesse de poten-ciais adquirentes cartulares de boa fé. Mas este preceito não nos interessa, pelo menos diretamente, uma vez que as livranças de que tratamos são reconhecida-mente, como veremos, livranças de caução ou garantia; não títulos destinados à circulação.38

4. Além disso, contendo o documento uma promessa de pagamento e garantias de pagamento sem indicação do montante, se não houvesse elemen-tos adicionais capazes de permitir a determinação desse objeto da obrigação e das garantias, tanto o negócio jurídico de constituição da dívida, do subscritor--emitente, como os negócios constitutivos das garantias,39 dos avalistas, seriam nulos, nos termos gerais (artigo 280.1 do CC). Daí a essencialidade dos acordos ou pactos de preenchimento a que alude o artigo 10 da LULL.40

sujeito à regra do artigo 10 da LULL. Diferentemente de entendimento corrente na Alemanha, também perfi lhado por Ferrer Correia (Lições de Direito Comercial, III, Coimbra 1966, com a colaboração de P. Sendin e Sampaio Cabral), o Prof. Sendin defendia a necessidade da verifi cação, no caso da letra: de um documento com a palavra letra e de uma ordem de pagamento, com um autor (assinatura do sacador), um destinatário (sacado) e um benefi ciário (o próprio sacador ou um tomador) [cfr., sobretudo, Letra de Câmbio I (1980), p. 176ss]. Sobre o assunto, cfr., em sentido não totalmente coincidente, por ex., A. Soveral Martins, Títulos de crédito (2012), cit., p. 45, com mais indicações (p. 133), Engrácia Antunes, Os Títulos de Crédito (2012), e Carolina Cunha, Letras e Livranças (2012), cit., p. 544ss, 548. Se os pré-avales podem ou não valer como fi anças relativas à obrigação subjacente, que para a sociedade decorre do contrato de fi nanciamento, é problema de que não nos ocupamos. 38 Apresenta-se controvertida a questão de saber se o título pode circular cambiariamente ainda em branco e, vindo tal a acontecer, se é aplicável o artigo 10. Mas, pela razão indicada no texto, o seu tratamento cai fora do âmbito deste pequeno apontamento, relativo às correntes livranças em branco com avales prestados por sócios da sociedade subscritora. 39 Note-se que, legalmente, estas são negócios jurídicos de garantia do pagamento do título no vencimento, não da obrigação do avalizado, que pode não existir, por vício ou falta de efi cácia vinculativa do negócio constitutivo (cfr. o artigo 32 II e, ainda, o artigo 7).40 Pode, eventualmente, vir a surgir uma letra ou uma livrança, por força dos artigos 7 e 16, apesar de não haver um ato constitutivo válido. Esse é, no entanto, um problema distinto, de que aqui não tratamos. Sobre as livranças em branco e o «aval geral» (aval em branco com autorização geral de preenchimento) nelas aposto, cfr., por ex., Evaristo Mendes, «Aval e fi ança gerais», Direito e Justiça XIV (2000)/1, p. 149-169, 156ss. Cfr. também F. Cassiano dos Santos, «Aval, livrança

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Na verdade, além de por eles se saber que o documento não pretende ser imediatamente pagável à vista (embora, tendo em conta o artigo 76, pudesse aparecer como tal), é através deles (i) que o elemento montante a pagar, essen-cial tanto para a promessa como para as garantias, haverá de determinar-se e é através deles (ii) que o portador fi cará com o poder de completar o documento, transformando-o em livrança e fazendo desse modo nascer a obrigação (do subscritor-emitente) e as garantias cambiárias (dos avalistas); devendo, ainda, tal poder ser exercido dentro dos limites da autorização conferida.

Aqui, importa fazer uma distinção. Quem tem poder para confi gurar ou conformar a livrança – enquanto título de crédito cambiário – é o subscritor (emitente). Ficando o documento de livrança incompleto, é este, portanto, que confere ao portador que o recebe o poder jurídico de o completar com o ele-mento em falta.41

Isto quer dizer duas coisas. Primeira: o pacto de preenchimento, em sen-tido próprio, é apenas aquele que é celebrado entre o subscritor-emitente e o tomador/portador a quem a livrança em branco é entregue.42 Segunda: tal pacto de preenchimento não é um mero acordo extracambiário, gerador de simples exceções pessoais oponíveis entre os seus subscritores ou partes no mesmo. Com efeito, é através dele que o portador recebe do subscritor-emitente o poder jurídico de fazer nascer a livrança como tal, enquanto título cambiário, bem como a obrigação e as garantias cambiárias. Logo, é um acordo que atribui ao portador o poder de conformar o próprio título e defi ne os limites do exer-cício desse poder. Com uma ulterior consequência: o portador autorizado con-fi gura o título com efi cácia face a todos os subscritores, incluindo os avalistas; e, como reverso da medalha, a violação do acordo faz nascer uma exceção relativa ao próprio título, isto é, oponível, por qualquer subscritor da livrança, incluindo os avalistas, ao portador que é parte nesse acordo e a qualquer portador subse-quente (se cartularmente legitimado, dentro dos limites do artigo 10).43

em branco e denúncia ou resolução de vinculação: anotação ao AUJ do STJ de 11-12-2012», RLJ 142 (2013), p. 300-312, 312-346, 333ss, em especial, 335ss.41 Cfr., em especial, Paulo Sendin, Letra de câmbio I (1980), p. 176ss.42 Tratando-se de um documento circulante, se se admitir a sua circulação ainda em branco, o acordo é celebrado com o tomador, para que este o preencha ou, se essa for a vontade das partes, ceda a um seu endossado o poder de o preencher; podendo o processo repetir-se. Já se indicou, no entanto, que este é um mundo diferente daquele que nos ocupa, o das livranças de garantia (e um mundo, de resto, hoje em dia, mais virtual que real). 43 Cfr. Evaristo Mendes, «Aval e fi ança gerais», Direito e Justiça XIV (2000)/1, p. 149-169, 154, 157 ss. Sobre o tema, admitindo que o acordo de preenchimento pode envolver os avalistas como partes, considerando que, em geral, o avalista, através da aposição da sua assinatura na livrança em branco, manifesta a sua vontade no sentido de que o documento seja preenchido, quanto a

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Vendo as coisas de outro ângulo. Assinalou-se acima que, numa letra ou livrança título de crédito cambiário (valendo como tal nos termos dos artigos 2 e 76), o avalista garante ao portador cartularmente legitimado que, se ele apre-sentar pontualmente o título, no vencimento, a quem está nele indicado para o pagar, o pagamento não será recusado. A posição jurídica assumida pelo avalista de um documento de livrança em branco é, em conformidade com a natureza desta, distinta.

Seguindo a mesma lógica da livrança-título de crédito cambiário, ele garan-tirá ao portador que, (i) se este completar tal documento em conformidade com o acordo de preenchimento, fazendo dele uma livrança, e (ii) o apresentar pon-tualmente a pagamento assim confi gurado, o pagamento não lhe será recusado; tornando-se responsável de regresso se o resultado garantido não se produzir, desde que se verifi quem os demais pressupostos do regresso.

Mostra-se, de resto, compreensível que assim seja. Na verdade, só é, em geral, expectável que o subscritor de um documento de livrança em branco venha a pagar a livrança já completa, pontualmente, no vencimento – resultado garantido pelos avalistas – se o acordo de preenchimento tiver sido observado. O aval prestado nestas condições pressupõe naturalmente que o portador con-fi gure o título com respeito pelo pacto de preenchimento celebrado com o subscritor. Ninguém que atue com um mínimo de racionalidade aceita, em geral, garantir o pagamento pontual do título, por parte do seu criador e deve-dor principal, se o respetivo pacto conformador, que este devedor pode opor ao portador dentro dos limites do artigo 10 da LULL, não dever ser respeitado, também em relação a si. E um declaratário normal (de boa fé e razoável) colo-cado na posição do destinatário entenderá assim as coisas: ou seja, compreen-derá que o avalista o autoriza a preencher o documento de livrança em branco com o seu aval, transformando-a em título de crédito cambiário, nessas condições e não noutras. Sendo, em geral, injustifi cado um distinto entendimento desse destinatário.44

si, nos termos que vigoram para o avalizado, quer participe no acordo de preenchimento quer não (neste caso, há uma determinação do conteúdo da sua declaração de aval «per relationem») e situando o problema da eventual inobservância do mesmo no campo do artigo 10 da LULL, cfr. Carolina Cunha, Letras e Livranças (2012), p. 586ss, em especial, p. 588, 591ss (apreciando também a jurisprudência que recorre ao artigo 32 I).44 Como se observará adiante, nas livranças típicas de que tratamos, a situação ainda pode ser mais diferente daquela que se encontra os artigos 30 a 32 da LULL, mormente no artigo 30 I. Na ver-dade, em geral, a livrança só surge como título de crédito, com o preenchimento, em situações, de incumprimento ou mora qualifi cada no âmbito da relação fundamental, nas quais (ou em boa parte das quais) não é expectável que a sociedade subscritora a pague, à simples apresentação.

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5. Todavia, o pacto de preenchimento não é tudo.45 Como se assinalou, por um lado, nada impede que os avalistas limitem, no próprio título, o valor garantido (artigo 30 I). Por outro lado, nada obsta a que, extracartularmente, pro-cedam a igual limitação e/ou estabeleçam outros termos ou condições do exercício ou acionamento da garantia prestada – que tanto lhes podem ser favoráveis, como desfavoráveis.

Por exemplo, quanto a estas últimas condições desfavoráveis, mostra-se concebível que os avalistas acordem eventualmente com o destinatário da livrança em prestar-lhe uma garantia do pagamento desta em face da simples recusa de tal pagamento por parte do subscritor, sem poderem invocar a exce-ção de preenchimento abusivo. Não é a situação normal e natural, mas, dentro dos limites gerais da vinculação por garantia, é uma hipótese plausível.

Quanto ao estabelecimento de limitações favoráveis aos avalistas, o panorama apresenta-se mais diferenciado. Vejamos.

Numa letra ou livrança completas, o avalista limita-se, via de regra, a aderir ao conteúdo constante do título, sem exprimir quaisquer reservas destinadas a valer em relação ao seu destinatário46 e sem consignar no documento qualquer limitação quantitativa da garantia. De facto, a não ser assim, poderia estar a pôr em causa o crédito do título, a confi ança no seu pagamento pontual, em vez de o reforçar.47

Numa livrança em branco (ainda em formação ou incompleta), já se viu que quem tem competência para autorizar a sua transformação em livrança

45 Considerando que, ao apor a sua assinatura em letra ou livrança em branco, o dador de aval o faz no pressuposto de que o acordo de preenchimento será observado, cfr. Evaristo Mendes, «Aval e fi ança gerais», Direito e Justiça XIV (2000)/1, p. 149-169, 150. Observa-se aí também que o poder jurídico de completar o título é conferido ao portador pelo emitente, mas que o exercício de tal poder fi ca sujeito ao que a esse respeito fi car convencionado, expressa ou tacitamente, bem como aos princípios gerais aplicáveis (p. 154, 157 s). Considerando, no fundo, que o preenchimento pressupõe uma autorização de cada subscritor, incluindo os avalistas, cfr. Januário Gomes, «O (in)sustentável peso do aval em livrança em branco prestado por sócio…», CDP 43 (2013), p. 38, embora não desenvolva o assunto por o considerar irrelevante no contexto do AUJ que comenta; cfr. também p. 43, onde fala num (possível) acordo de garantia entre avalista e banco fi nanciador, englobando o pacto de preenchimento e o documento em branco assinado pelo avalista, a respeito do qual se coloca o problema da desvinculação referido adiante.46 No comum das letras, hoje em dia, uma instituição de crédito que aceita descontá-lo, com quem de resto o avalista muitas vezes nem contacta.47 Na Alemanha, o aval cambiário, em especial nas letras, tem um signifi cado prático limitado, justamente porque se entende, mais latamente, que, se uma letra tem aposto um aval, é porque há algum problema com a confi ança no seu pontual pagamento; aproveitando-se a garantia legal do endosso para evitar que tal aconteça: se é preciso reforçar o crédito do título, em vez de o garante aparecer como avalista, é inserido na cadeia cambiária como endossante.

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em sentido jurídico, completando o documento com o elemento ou os ele-mentos em falta, é o respetivo subscritor-emitente, conferindo ele tal poder ao portador a quem entrega o documento, através do acordo de preenchimento. Um preenchimento nesses termos, com respeito pelo acordo, é, portanto, em princípio, oponível aos avalistas. A aposição da sua assinatura no documento de livrança tem implícita uma autorização de preenchimento do mesmo com a declaração de aval nele inscrita, nessas condições; e, legalmente, ela vale com esse sentido, em face de um portador do título em geral, uma vez que estamos no domínio da conformação do título. Rege o artigo 10.

Todavia, em primeiro, nada impede que, complementarmente, entre o avalista e um portador da livrança – via de regra, o primeiro e único destinatá-rio da mesma – seja concluído, expressa ou tacitamente, um acordo relativo à prestação do aval;48 que o avalista, nas relações entre eles, poderá, naturalmente, invocar. Em face de eventual portador mediato, estranho ao acordo, vale a regra do artigo 17.

Em segundo lugar, pode não haver acordo, mas o aval ser prestado sob determinados pressupostos, essenciais para o seu autor, e essa essencialidade ser reconhecida pelo portador do título – em geral o primeiro e único destinatário do mesmo e do aval. Ou, pelo menos, podem tais pressupostos ser pertinentes e conhecidos ou reconhecíveis por ele dentro de padrões de diligência (profi s-sional) média. De tal modo, que um acionamento da garantia com desconside-ração dos mesmos se apresente contrário à boa fé.

Em terceiro lugar, a aposição de uma assinatura de aval em livrança em branco está sujeita a interpretação, simples e complementadora, nos termos gerais. Neste domínio se situam questões como a de saber se estamos perante

48 A ideia segundo a qual, extracartularmente, só há acordos entre avalista e avalizado, presente num número considerável de Acórdãos, não corresponde à realidade; mormente na situação típica dos fi nanciamentos concedidos pelas IC às sociedades. De facto, estas são aí consideradas tipica-mente como organizações dotadas de certo elemento pessoal, os sócios, que se querem dentro da operação, formando um bloco com a sociedade, não fora dela; ainda que, formalmente, eles pos-sam aparecer como simples subscritores de um documento de livrança em branco na qualidade de (futuros e potenciais) avalistas. Consciente de que o comportamento contratado da sociedade a fi nanciar será determinado pelos sócios (em geral, sócios gerentes ou administradores), a ideia da IC é fi nanciar essa determinada sociedade com os seus sócios, levando estes a corresponsabilizar--se perante si pelo pontual cumprimento do contrato por parte sua sociedade, sob pena de ela, IC credora, fazer nascer a livrança com os avales e exigir o seu pagamento. É esta a mensagem fundamental presente na sua declaração negocial, a que, com maior ou menor boa vontade, os sócios dão o seu acordo, expresso na assinatura do documento de livrança. Em muitos casos, isso leva a que os sócios também assinem o acordo de fi nanciamento (hoje em dia, englobando com frequência o pacto de preenchimento). Mas quando o não fazem a situação é substancialmente análoga. Retoma-se o tema, adiante, no texto.

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uma declaração negocial revogável ou irrevogável (e no interesse de quem será a irrevogabilidade: sociedade e/ou IC).49 Mesmo entendendo que o aval cam-biário é irrevogável, incondicionável e sujeito ao princípio da literalidade, isso não é assim com a subscrição de uma declaração de aval em livrança em branco enquanto esta situação se mantiver.

Em quarto lugar, aplicam-se aqui integralmente as regras nacionais relativas à vinculação por garantia, incluindo as respeitantes à sua validade.50 A circuns-tância de o aval cambiário ser eventualmente qualifi cável como um ato abstrato mostra-se, para o efeito, irrelevante; podendo, inclusive, afi rmar-se que, se é assim, então mais rigorosas devem ser as suas condições legais de validade. Além disso, colocando-se o problema antes do preenchimento do título, em que ainda não há um aval cambiário, a questão não se põe nesses termos.

C – Aval em livrança em branco e perda da qualidade de sócio. Limi-tação do objeto da garantia

6. Entre os aludidos pressupostos do aval, sobressai o da qualidade de sócio do avalista. Os avales em apreciação são tipicamente prestados pelos sócios – em regra, sócios gerentes ou administradores – enquanto tais, na qualidade de mem-bros da sociedade e, através dela, de benefi ciários indiretos do fi nanciamento que à mesma é concedido.51

De facto, é esse o sentido normal da declaração de aval. Por um lado, corres-ponde tipicamente à vontade real dos avalistas e esta é reconhecível por qual-quer fi nanciador profi ssional como os bancos. Por outro lado, é esse o sentido que plausivelmente lhe dará um declaratário normal ou destinatário típico da mesma (e portador da livrança), profi ssionalmente diligente, razoável e de boa

49 Mais latamente, cfr. «supra», as observações de Carolina Cunha.50 Designadamente o regime das CCG e de defesa do consumidor. Sobre o tema, cfr., por ex., Menezes Cordeiro, Tratado X (2015), p. 601 ss, bem como, em geral, p. 191ss, 216ss; a respeito da fi ança, p. 447ss, 509ss.51 Na maioria dos casos, a prestação dos avales destina-se a criar condições para que a sociedade obtenha capitais alheios, suprindo uma insufi ciência de capitais próprios. Daqui decorre, por exem-plo, que, não obstante o teor literal do artigo 243 do CSC, vindo um avalista a pagar a livrança, o crédito de regresso que terá contra a sociedade deva ser, via de regra, ao menos numa sociedade por quotas e quanto a detentores de mais de 25% do capital do capital nas sociedades anónimas (segundo a doutrina nacional maioritária, bastam 10%), objecto de qualifi cação legal como crédito de suprimento, para os efeitos do artigo 245 do CSC. E, tal como sucede com a realização de suprimentos (cfr. o artigo 244 do CSC), também pode o pacto social impor aos sócios a prestação deste tipo de garantias.

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fé (atuando com natural prudência e racionalidade económica, o que o leva a atender àquela vontade reconhecível, sem desconsiderar as legítimas expectati-vas do autor da declaração).52

Mas mais do que isso. É esse também o sentido fundamental da exigência dos avales por parte dos fi nanciadores.

Na verdade, mais do que adicionais patrimónios de garantia, a estes fi nancia-dores interessa o comportamento cumpridor da sociedade fi nanciada. Quando uma instituição de crédito concede um fi nanciamento a certa sociedade, fá-lo primordialmente em atenção à sua capacidade de gerar receitas para lhe pagar pontualmente e à presumida vontade de cumprir o acordado.53 Mas tem igual-mente presente que, em boa medida, a sociedade são os seus sócios, num grande número de casos também gerentes ou administradores, a quem pertence o res-petivo valor líquido ou residual (após dedução do passivo), que surgem como senhores do seu destino e que determinam o seu comportamento.

A exigência dos avales explica-se, antes de mais, porque a IC fi nancia-dora quer comprometer os sócios com uma gestão e um comportamento da sua sociedade favoráveis ao cumprimento do contrato de fi nanciamento. E é também em atenção à respetiva qualidade de sócios – a quem pertence o valor da sociedade e nessa medida benefi ciam dos fi nanciamentos a ela concedidos – que os mesmos aceitam presumivelmente envolver-se, cobrindo com a apo-sição da sua assinatura de avalistas no documento de livrança em branco, con-vertível em aval em caso de incumprimento: (i) as responsabilidades emergentes de um concreto negócio, (ii) a relação de negócios estabelecida entre a IC e a sociedade ou (iii) um segmento desta relação de negócios, com as responsabi-lidades delas derivadas.

Vindo tal qualidade de sócio a faltar, a cobertura das responsabilidades consti-tuídas, à data da comunicação da saída, em princípio, não se discute. É para isso que serve, a fi nal, a livrança com os avales: para efetivar de maneira efi ciente e melhorada tais responsabilidades, se vier a ocorrer um incumprimento contra-tual sério (o que, repete-se, é uma situação anómala e, felizmente, excecional).

52 Cfr. os artigos 236 e 238 do CC. Sobre eles, vejam-se Evaristo Mendes/Fernando Sá, in Comentário ao Código Civil. Parte Geral, edição da FDUCP, Lisboa (UCE) 2014, p. 532ss, com mais indicações, e Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, II, Parte Geral. Negócio Jurídico, 4ª ed., Coimbra (Almedina) 2014, p. 673ss, 715ss. No sentido do texto, a respeito da fi ança, cfr. também Evaristo Mendes, «Garantias bancárias autónomas…», RDES 1995/4, p. 411-444, 445-473, 457s (e «Fiança geral», cit., p. 133).53 Em certo sentido, pode, assim, dizer-se que às IC fi nanciadoras interessa prioritariamente esta «garantia económica» (assente na capacidade solutória da sociedade devedora) e a disposição para cumprir; não tanto as garantias patrimoniais destinadas a funcionar em caso de incumprimento.

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Está em causa um valor de que a sociedade e o sócio, enquanto membro dela, benefi ciaram. Logo a garantia mantém-se quanto a elas.

Tratamento distinto merece, porém, a cobertura da relação de negócios que perdura entre a sociedade e a IC, com as inerentes responsabilidades futuras da sociedade já sem o sócio. Na verdade, quanto a esta, a perda da qualidade de sócio faz desaparecer, em princípio, a razão de ser da exigência da garantia (por parte dos fi nanciadores) e da correspondente vinculação (por parte dos avalistas). Isso mesmo resulta do regime legal aplicável à saída de um sócio de responsabi-lidade ilimitada (artigo do 175.2 do CSC) ou com complementar responsabili-dade limitada de índole estatutária perante os credores (artigo 198 do CSC).54 A circunstância de as sociedades por quotas e anónimas serem legalmente orga-nizações produtivas de membros variáveis, sendo este um dado com que todos têm que contar, fi nanciadores incluídos, reforça esta conclusão.

7. Vejamos melhor este tópico, considerando, antes de mais, o problema sob a ótica dos fi nanciadores. Na fi ança tradicional, o fi ador é um terceiro, que vem reforçar ou conferir crédito negocial ao afi ançado, acrescentando-lhe um património de garantia; e na conceção corrente do aval cambiário (aposto em título completo), que vê nele uma garantia ou obrigação de garantia da obriga-ção do avalizado, a situação é semelhante. Na conceção do aval que, na linha do Prof. Sendin, entendemos estar presente na LULL (cfr. sobretudo os artigos 30 I e 32 II), o avalista reforça o crédito do título, enquanto título negociável, assegurando ao portador cartularmente legitimado que, atendendo à confi ança que lhe merece o avalizado,55 o título terá bom fi m, isto é, será pago pontual-mente no vencimento (pelo sacado/aceitante da letra ou pelo subscritor da livrança). Podendo, de resto, acrescentar-se que, numa operação de concessão de crédito a um particular (máxime, crédito ao consumo), com emissão de livrança em branco avalizada por terceiro, a situação ainda apresenta algumas semelhanças com as precedentes.

Porém, as coisas passam-se de maneira diferente nas típicas operações de fi nanciamento bancário (ou de outras IC) a organizações produtivas com livranças em branco avalizadas pelos sócios. Sobretudo tratando-se de PMEs, como é o caso normal das sociedades por quotas e anónimas fechadas, em que avultam: (i) em primeiro lugar, a sua maior ou menor capacidade de gerar receitas sufi cientes para pagarem os compromissos assumidos; (ii) em segundo

54 Sobre o assunto, cfr. também Evaristo Mendes, «Aval e fi ança gerais», Direito e Justiça XIV (2000)/1, p. 149-169, 168s.55 Trata-se, como se observou, de uma garantia operacional, conexa com uma operação cambiária principal (cfr. os artigos 31 IV e 32 I).

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lugar, o papel que os sócios, em geral gerentes ou administradores (no todo ou em parte), podem ter na sua gestão e no seu comportamento, incluindo o respeitante a esses compromissos; (iii) em terceiro lugar, uma comum estrutura do capital desequilibrada, ou seja, um acentuado endividamento e um capital próprio relativamente pequeno.56

No modelo legal destes tipos sociais, seria suposto a sociedade ter os meios próprios necessários57 para – juntamente ou não com outros recursos econó-mico-fi nanceiros fornecidos pelos sócios sob a forma de suprimentos e/oupor terceiros – desenvolver a sua atividade, com responsabilidade limitada ao seu ativo (artigos 197.3 e 271 do CSC). Pertencendo o seu valor líquido ou residual aos sócios e podendo estes determinar em grande medida a sua gestão – sobretudo através das correntes qualidades de gerentes ou administra-dores –, no caso de possuir capital próprio num nível considerável, merecedor de ser preservado, haveria um incentivo natural para que a mesma fosse gerida de modo a assegurar pelo menos essa preservação; o que implica, antes de mais, ir cumprindo os compromissos que vai assumindo (mormente, ir pagando o que deve).

Por conseguinte, se esta fosse a situação real, os bancos e outros fi nancia-dores até poderiam, sobretudo para melhorar a sua posição processual, exigir a subscrição de livranças em branco.58 Mas não haveria, via de regra, justifi ca-ção bastante para exigir, adicionalmente, a aposição nas mesmas de avales dos sócios.

Todavia, em Portugal, não é o que em geral acontece. Daí a exigência59 quase sistemática, por parte dos bancos, da subscrição de livranças em branco avalizadas pelos sócios. O objetivo primordial não é o de acrescentar ao patri-mónio da sociedade outros patrimónios de garantia, executáveis em caso de incumprimento da sociedade devedora, mas o de se assegurarem que a socie-

56 Salienta-se, mais uma vez, que estamos a considerar situações societárias típicas, abstraindo de situações específi cas de sociedades confl ituais, com sócios minoritários «ausentes» ou de mera fachada, etc. 57 Mesmo sem a imposição de um capital mínimo (tenha-se presente o regime das SA e SCA no CCom).58 Apesar de já benefi ciarem da presunção do artigo 799 do CC. Note-se que o NCPC de 2013 voltou a circunscrever de forma acentuada o rol dos títulos executivos extrajudiciais, mantendo neles, porém, os títulos cambiários (artigo 703).59 Quando esta se justifi ca, dada a conhecida subcapitalização e sobreendividamento das SQ e SA, mas também quando tal não seria necessário. Generalizou-se, de facto, uma prática, não salutar, de exigência sistemática, sem critério, de livranças em branco avalizadas, mesmo em relação a operações comezinhas e de risco limitado, como locações fi nanceiras e contratos de mútuo, rea-lizadas, inclusive, com grandes grupos empresariais.

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dade será gerida de modo a honrar pontualmente os compromissos assumidos para com eles. Uma vez que o valor do capital próprio é insufi ciente para levar a esse resultado, são exigidas garantias pessoais, forçando os sócios a comprome-ter-se pessoalmente com uma gestão da sociedade «amiga» dos credores cujos créditos garantem.

Noutros termos, os documentos de livrança em branco com apostas assi-naturas de aval dos sócios são, acima de tudo, instrumentos de pressão, de índole compulsória, incidindo a pressão, em especial, sobre os sócios gerentes ou administradores. Apenas no caso excecional de tal mecanismo não funcionar é que tais documentos serão convertidos, com o seu preenchimento, em títulos de crédito cambiários e entrará em jogo a função secundária de garantia patri-monial destes, com a efetivação dos direitos nelas inscritos.

Duas notas mais. Primeira: o que acaba de expor-se explica-se porque a principal garantia dos credores de uma organização produtiva é uma espécie de «garantia económica», consistente na sua capacidade para gerar fl uxos monetá-rios sufi cientes para pagar o que vai devendo, à medida que as dívidas se ven-cem; não são as garantias patrimoniais civis, destinadas a funcionar apenas como último recurso, quando a «gestão solvente» e cumpridora da sociedade falha. Estamos perante uma lógica de índole económica, não estático-patrimonial.

Segunda: via de regra, o aval tem aqui uma feição distinta daquela que apre-senta na LULL. De facto, no presente contexto, ele não tem tipicamente implí-cita nenhuma manifestação de confi ança no pagamento pontual da livrança pela sociedade subscritora, no vencimento, mediante simples apresentação do título para o efeito. Se a sociedade não cumpriu o contrato fundamental, em regra, também não estará em condições de pagar a livrança. Nos casos excecionais60 em que a livrança chega efetivamente a constituir-se como título de crédito cambiário, o aval surge, assim, como mais uma obrigação de pagar, a par da obrigação cambiária da sociedade.61

Em suma, no presente contexto, os fi nanciadores, com vista ao objetivo primordial do cumprimento pontual dos contratos de fi nanciamento celebra-

60 Embora em número considerável, como se revela pelo volume existente de casos judiciais.61 Dito de outro modo. Os documentos de livrança em branco, com as declarações de aval dos sócios, apenas se convertem em livranças e tais declarações em avales em último recurso, se a socie-dade devedora não cumprir o contrato de fi nanciamento; ou seja, se eles não tiverem cumprido a sua função primordial de meios tendentes a evitar o incumprimento. E, neste caso, a mensagem que os avalistas transmitem ao portador do título não é a de que, se ele o apresentar pontualmente a pagamento, ele lhe será pago. A situação é outra: porque não funcionou o mecanismo de «pres-são» da livrança avalizada, como solução de recurso, excecional, os avalistas vão responder com os seus patrimónios pelo valor em falta.

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dos com a sociedade, exigem que os respetivos sócios – enquanto titulares de participações na mesma62 que os tornam, também a eles, benefi ciários do fi nanciamento e enquanto pessoas capazes de determinar a sua gestão e o seu comportamento, incluindo no que toca aos compromissos assumidos – subs-crevam a seu favor documentos de livrança em branco, na qualidade de ava-listas, como forma de os levar a diligenciar para que a sua sociedade cumpra os compromissos assumidos, sob pena de, não acontecendo tal, virem a responder como avalistas pelo que a sociedade dever; sendo esta uma das condições fun-damentais dos contratos de fi nanciamento. Na base de tal exigência está, pois, a qualidade de sócio dos prestadores de aval, frequentemente acompanhada da qualidade de gerentes ou administradores. É ela que a justifi ca.

A livrança em branco avalizada e os respetivos avales cumprem assim duas funções típicas. A primordial, comum a todas elas e desempenhada especifi -camente pelo documento de livrança em branco com as assinaturas de aval, consiste em pressionar a sociedade a cumprir o contrato subjacente e, sobre-tudo, em pressionar os avalistas, atendendo ao interesse que têm na sociedade e ao poder de infl uência de que nela gozam, a fazer com que tal suceda.63 A segunda, limitada à minoria das situações em que tal mecanismo de pressão não foi efi caz, consiste em criar para o fi nanciador, portador da livrança por ele completada ao abrigo do pacto de preenchimento, uma posição processual-mente favorável e em minorar as consequências do incumprimento da socie-dade devedora, fazendo nascer e acionando os avales.

Na sua grande maioria dos casos, os documentos de livrança em branco avalizados não chegam a converter-se em verdadeiras livranças – títulos de crédito cambiários; e, portanto, os avales também não chegam a constituir-se. Tudo se mantém num espécie de limbo ou plano virtual, a menos que ocorra um facto anómalo: o eventual «incumprimento» do contrato de fi nanciamento, havendo valores em dívida.64

Quer isto dizer que o centro de gravidade do fenómeno está no plano sub-jacente à livrança; não nesta e nos avales. A independência que caracteriza os títulos cambiários, perante as relações subjacentes aos mesmos, apenas se mani-

62 Quotas-partes do seu valor líquido, dos lucros, etc., que em maior medida podem transferir para os seus patrimónios pessoais.63 Nas garantias comuns, esta função compulsória também pode existir mas com signifi cado dife-rente. Cfr., a este respeito, Menezes Cordeiro, Tratado X, cit., p. 205 e 447.64 Salienta-se este dado. As livranças em apreço não são apenas títulos provisoriamente incomple-tos, destinados a ser preenchidos segundo pacto de preenchimento: via de regra, não se destinam a ver nascer a luz do dia. São títulos futuros, meramente eventuais, que na maioria dos casos nunca chegam a constituir-se e, inclusive, que se espera não venham a constituir-se (porque isto é sinal de que as coisas correm bem e, portanto, a função primordial foi cumprida).

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festa de forma secundária e, no caso dos avales, de um modo diferente daquele que está presente na LULL.

8. Vistas as coisas sob a ótica dos avalistas, é também em virtude da sua qua-lidade de sócios da sociedade fi nanciada (a que se soma, num grande número de casos, a de gerentes ou administradores) que eles aceitam constituir-se como (potenciais) avalistas. Isto é assim porque, por um lado, eles são titulares do valor residual dessa sua sociedade e benefi ciários do respetivo aviamento, para os quais contribui o fi nanciamento solicitado; por outro lado, visto que se mostram detentores de um poder de infl uência (pelo menos coletivo) capaz de determinar a gestão e portanto também o comportamento contratual da sociedade devedora, sobretudo quando gerentes ou administradores; e, ainda, porque têm uma posição que lhes permite acompanhar e de algum modo con-trolar o nível de endividamento global da mesma sociedade.

Trata-se de uma circunstância sobejamente conhecida. E, em todo o caso, os fi nanciadores da sociedade não podem ignorá-la, porque, em boa medida, é também ela que justifi ca a exigência, por si, dos avales.

9. Atentemos agora na perda da qualidade de sócio: por exoneração, exclusão, transmissão voluntária entre vivos a título singular da quota ou das ações (que, na falta de um direito geral de exoneração por justa causa,65 cumpre, em boa medida, uma função de substituto ou sucedâneo da exoneração), amortização forçada por outros motivos, etc. Terminada essa qualidade, decorre do exposto que, em princípio, desaparecem, para o futuro, os pressupostos da exigência do aval do sócio em causa pelas IC (perspetiva dos fi nanciadores) e da prestação do mesmo por esse sócio (perspetiva dos avalistas), quanto à continuação da garantia de cobertura da relação de negócios subsistente entre o fi nanciador e a sociedade fi nanciada, relação essa da qual podem resultar novas dívidas.66 O que, por si,

65 Acerca de um possível direito geral de exoneração por justa causa com fi gurino diferente do previsto na lei, cfr. Evaristo Mendes, «Exoneração de sócios (…)», AAVV, II Congresso DSR (2012), Coimbra (Almedina) 2012, p. 13-89.66 Sobre esta ideia de que a IC fi nanciadora da sociedade e portadora da livrança tem direito a que os avalistas cubram as dívidas contraídas pela sociedade até à sua eventual saída desta, mas, em princípio, não tem nenhum direito (ou sequer uma legítima expectativa), a que eles cubram o seu subsistente negócio com a sociedade, continuando a benefi ciar do respetivo «serviço de acreditamento», após a cessação da qualidade de sócios, cfr., a respeito das garantias de duração indefi nida, Evaristo Mendes, «Aval e fi ança gerais», Direito e Justiça XIV (2000)/1, p. 149-169, 160s, 164s (admitindo neste caso a denúncia quanto a esse serviço ou cobertura, com naturais implicações na autorização para o exercício do poder de completar o documento de livrança com efi cácia face aos avalistas).

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como solução de princípio e em certa medida, já justifi ca o reconhecimento ao avalista da possibilidade de se opor a tal continuação.67

Mas existe uma razão adicional para que o desaparecimento de tais pressu-postos possa ser oposto pelo avalista ao fi nanciador portador da livrança. De facto, como é sobejamente sabido, as sociedades por quotas e anónimas, mesmo quando de restrita base social ou caráter familiar, são organizações produtivas de membros variáveis. Logo, salvo havendo uma cláusula do género da que se prevê no artigo 229, n.º 5, alínea a), do CSC, o fi nanciador também contará ou deverá contar com a variabilidade do seu elemento pessoal e a consequente perda, por parte do sócio que sai, do interesse e do maior ou menor poder de infl uência que determinaram não só a sua decisão de prestar o aval, mas tam-bém a correspondente exigência do mesmo.

Infere-se do que antecede que o princípio a reter deverá ser este: se um sócio sai da sociedade e a saída é comunicada a um fi nanciador da sociedade, numa altura em que ainda não há uma livrança em sentido técnico, o fi nan-ciador deve poder contar com a sua garantia para a dívida da sociedade exis-tente, mas não com a cobertura de dívidas assumidas pela sociedade a partir dessa data. Se o fi nanciador entende que, desse modo, a garantia se tornou insufi ciente, colocando em perigo o recebimento do valor em dívida, pode, designadamente, pedir o reforço da mesma sob pena de cessar o fi nanciamento e, em último recurso, de preencher a livrança e fazer valer os correspondentes direitos cambiários.68 Se a insufi ciência respeitar tão-só à cobertura do negócio que tem interesse em manter com a sociedade e às correspondentes dívidas futu-ras, cabe-lhe redimensionar ou reequacionar a relação de negócios em apreço, nomeadamente mediante acordo com a sociedade.69

À mesma conclusão se chega vendo o problema sob a ótica dos avalistas. Na verdade, aceitando o avalista apor a sua assinatura na livrança em branco para viabilizar e/ou promover a relação de negócios da sua sociedade com a IC em causa – porque isso era do seu interesse enquanto sócio e porque tinha pelo menos alguma possibilidade de acompanhamento e infl uência na sociedade –, se perde a qualidade de sócio, essa razão de ser do seu ato desaparece quanto

67 Cfr. também, a respeito da fi ança, Evaristo Mendes, «Garantias bancárias autónomas…», RDES 1995/4, p. 411-444, 445-473, 458.68 Cfr., designadamente, os artigos 626, 633 e 701 do CC. Mais latamente sobre o problema visto na ótica dos bancos e da sociedade, cfr. Januário Gomes, «O (in)sustentável peso do aval em livrança em branco prestado por sócio…», CDP 43 (2013), p. 45s, e Carolina Cunha, «Cessão de quotas e aval: equívocos de uma uniformização de jurisprudência», DSR 9 (2013), p. 91-114, 109ss.69 Trata-se, de resto, de uma solução semelhante à que ocorre na perda da qualidade de sócio por sócio de responsabilidade ilimitada (artigo 175.2 do CSC) e por sócio de sociedade por quotas que tenha assumido estatutariamente uma responsabilidade nos termos do artigo 198 do CSC.

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à cobertura da relação de negócios subsistente, entre a sociedade que já não é sua e a IC. Apenas quanto à dívida existente falta, em regra, fundamento para fazer cessar unilateralmente a garantia; embora possa obter, naturalmente, uma liberação negociada.

Importa, em todo o caso, fazer duas ressalvas. Primeira: as situações con-cretas são muito variadas e portanto o princípio enunciado apenas pode valer como uma diretriz de índole geral, tendo por base o fenómeno típico do fi nan-ciamento das sociedades portuguesas.70

Segunda: dentro dos limites legais gerais – tendo em conta que a garantia do ex-sócio passará a ser uma garantia prestada a dívida de terceiro (deixando de ser, via de regra, uma garantia patrimonialmente interessada), que ninguém pode vincular-se por uma garantia geradora de uma responsabilidade potencial inabarcável, que ninguém pode fi car sujeito perante outrem a uma vinculação potestativa de duração e/ou objeto (valor) ilimitados, bem como o princípio da proibição os vínculos perpétuos, o regime das CCG, etc.71 –, parece de admi-tir uma estipulação especial derrogatória de tal princípio. Ou seja, o avalista

70 No mesmo sentido, quanto à solução que propõe da resolução por inexigibilidade, cfr., por ex., Carolina Cunha, «Cessão de quotas e aval: equívocos de uma uniformização de jurisprudência», DSR 9 (2013), p. 91-114, máxime, 105ss, 109.71 Neste sentido depõe, em especial, o CSC, ao fi xar um limite máximo para as eventuais pres-tações suplementares dos sócios (artigo 210, n.º 3 a), e n.º 4), ao reconhecer o direito de «aban-dono da quota» no artigo 207.2 e ao exigir que as possíveis obrigações de prestações acessórias tenham fi xados os elementos essenciais nos estatutos (artigos 209.1 e 287.1). Assinala-se também que o mesmo Código admite a assunção por um ou mais sócios de responsabilidade pelas dívidas sociais, mas apenas desde que seja fi xado um limite a essa responsabilidade (artigo 198). E o n.º 2 do artigo 198 afi rma expressamente que a responsabilidade abrange apenas as obrigações assu-midas pelas sociedade enquanto o sócio a ela pertencer e não se transmite por morte, sem pre-juízo da transmissão das obrigações a que o sócio estava anteriormente vinculado. Em geral, cfr. Januário Gomes, «O mandamento da determinabilidade na fi ança omnibus e o AUJ n.º 4/2001», in Estudos de Direito das Garantias I (2004), cit, p. 109-137 e, já antes, Assunção fi dejussória de dívida, Coimbra (Almedina) 2000, p. 597ss, sobretudo,621ss, e Menezes Cordeiro, Tratado X (2015), cit., p. 191ss, 509ss, 601ss. Veja-se também Evaristo Mendes, «Aval e fi ança gerais», Direito e Justiça XIV (2000)/1, p. 149-169, 161 ss (salientando a insufi ciência de uma mera determinabili-dade «per relationem» do objeto da garantia – máxime, p. 163) e «Fiança geral» (1995), cit, p. 140, 143s, 154, 157s. Entendendo, com razão, que a aplicação ao aval aposto em livrança em branco da doutrina daquele AUJ n.º 4/2001, relativo à fi ança, não pode sem mais afastar-se e que, na linha do que escrevemos em «Aval e fi ança gerais», «a atribuição ao avalista em branco que garante uma operação sem prazo do poder de se desvinvular relativamente a dívidas posteriores à efi cácia da declaração de desvinculação constitui um requisito essencial de validade deste tipo de garantias», cfr., ainda, Januário Gomes, «O (in)sustentável peso do aval em livrança em branco prestado por sócio…», CDP 43 (2013), p. 42.

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pode, em certas circunstâncias, vincular-se a manter a garantia de cobertura da relação de negócios subsistente.

Acresce o que se segue. Como se observou, o aval é, legalmente, uma garantia do pontual pagamento do título em que é aposto (artigo 30 I) – neces-sariamente uma letra ou livrança que preencha os requisitos dos artigos 1 ou 75 da LULL,72 quer dizer, um título completo. O avalista garante ao portador cartularmente legitimado que, se ele o apresentar pontualmente a pagamento, no vencimento, o mesmo lhe será pago. Ou, na conceção dominante, é uma garantia de cumprimento da obrigação do avalizado (…mesmo que esta não exista).

Aplicando literalmente o artigo 30 I ao caso, dir-se-ia que o avalista garante ao portador do título que, (i) se ele o preencher em conformidade com o estabelecido, expressa ou tacitamente, no acordo de preenchimento celebrado com o subscritor-emitente e (ii) o apresentar pontualmente a pagamento, no vencimento, a esse o subscritor, o pagamento não lhe será recusado. Ficando responsável (de regresso) pelo pertinente valor do título se o resultado garan-tido não se vier a verifi car.

Já se viu que a situação presente assume contornos especiais, donde decorre que o fi gurino do aval não é bem este, porque tipicamente não é expectável que a sociedade subscritora da livrança a venha a pagar. Porém, em nenhuma circunstância, ele pode ser visto como um mecanismo de cobertura da relação de negócios que uma instituição de crédito esteja interessada em manter com uma sociedade após a perda da qualidade de sócio pelo seu autor; impondo-lhe a manutenção dessa cobertura apesar desta perda. Pelo menos, não é isso o aval cambiário regulado na LULL. Nem é esse o sentido normal da vinculação assumida com a prestação do aval em livrança em branco, sem mais. O ava-lista pode, eventualmente, consentir em que tal aconteça, mas torna-se, então, necessária uma manifestação de vontade inequívoca nesse sentido.

D – Direito à redução do objeto da garantia

10. Concretizando melhor o que acaba de expor-se, realça-se, à cabeça, que a perda da qualidade de sócio, apesar de signifi car a insubsistência de um pressuposto da manutenção da garantia de cobertura da relação de negócios existente entre a IC e a sociedade, não opera automaticamente a cessação dessa

72 O mesmo se aplica ao cheque – cfr. o artigo 25 I da LUCh.

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cobertura. O que se justifi ca é reconhecer ao ex-sócio um direito de lhe pôr termo, limitando a sua responsabilidade ao valor que estiver em dívida, como se assinalou.73

A perda da qualidade de sócio funciona como causa ou justifi cação do direito – de caráter negocial (apoiada na interpretação e integração da declaração de aval aposta no documento de livrança em branco, tendo designadamente em conta a sua fi nalidade, a razão que a justifi cou e a boa fé) e/ou de índole legal (resolução-redução por inexigibilidade, atendendo sobretudo à circunstância de o ex-sócio deixar de acompanhar a evolução da relação de negócios em apreço), que o ex-sócio exercerá ou não, como entender.74

73 Admitiu-se uma limitação nestes termos, designadamente, no Acórdão do STJ de 3.05.2001, apesar de o pacto de preenchimento limitar a responsabilidade dos subscritores da livrança em branco a certo montante, superior ao valor à data da saída, tendo sido o título preenchido com tal montante. O Acórdão encontra-se publicado na ROA 61 (2001), p. 1039 ss, com anotação favo-rável de Menezes Cordeiro (p. 1051s, embora observe que problemas como o presente também podem ser vistos sob o ponto de vista da invalidade da garantia por indeterminabilidade do objecto e da eventual quebra de confi ança com o concomitante abuso do direito, porque só se entrega uma livrança assinada em branco a um banqueiro quando nele se tenha uma especial confi ança). Isto é assim atendendo à regra que os interessados, agindo de boa fé, criariam se tivessem regu-lado o assunto; ou atendendo à vontade hipotética do autor do negócio em causa de estabelecer a reserva em apreço, a qual, em conformidade com a boa fé, será oponível ao fi nanciador destina-tário do documento de livrança em branco.Pode discutir-se, nos casos correntes de operações de crédito renováveis, se o momento relevante para fi xar a responsabilidade coberta pela garantia é o da comunicação da perda da qualidade de sócio ou se, por exemplo, num contrato de abertura de crédito com renovação automática de 6 em 6 meses, o avalista deverá seguir a via da oposição à renovação com efi cácia face a si, sendo esse o momento relevante. E, quando o ex-sócio excerça um direito de denúncia, se deve obser-var um pré-aviso. Cfr. Januário Gomes, «O (in)sustentável peso do aval em livrança em branco prestado por sócio…», CDP 43 (2013), p. 44, e adiante, no texto (n.º 13).74 Cfr. Carolina Cunha, Letras e Livranças (2012), cit., p. 613, aludindo à posição de Januário Gomes expressa no estudo supracitado, a respeito da fi ança, e, mais desenvolvidamente, «Cessão de quotas e aval: equívocos de uma uniformização de jurisprudência», DSR 9 (2013), p. 91-114, 105ss. No sentido de que os sócios fi adores e os sócios que apõem o aval em livrança em branco merecem tratamento semelhante, perante situações de aberturas de crédito renováveis a favor das respectivas sociedades, cfr., ainda, Januário Gomes, «O (in)sustentável peso do aval em livrança em branco prestado por sócio…», CDP 43 (2013), p. 40s, aludindo também, a respeito do aval em livrança em branco, à doutrina da inexigibilidade, «enquanto legitimadora do rompimento resolutivo da relação contratual duradoura», na p. 44 («a priori, poderá ser inexigível a continuação da vinculação como garante relativamente a novas situações de dívida, quando o avalista deixa de ter interesses na sociedade enquanto sócio, tendo sido este – o de sócio – o status determinante do aval em branco»).

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11. No que respeita à forma de exercício do direito, coloca-se a questão de saber se a simples comunicação pelo sócio ao banco fi nanciador e portador da livrança de que, por exemplo, cedeu a sua quota deve valer como tal; ou é necessária uma declaração expressa no sentido (i) de fazer cessar a garantia de cobertura da relação de negócios existente, limitando-a ao valor em dívida nessa altura, (ii) de se desvincular para o futuro, etc., usando fórmulas deste género ou semelhantes. Embora o assunto seja controvertido, não apenas em Portugal mas também no estrangeiro, mormente em França, consideramos que o sentido normal da comunicação é esse, ou seja, que ela contém uma declara-ção negocial com esse signifi cado.75

12. Exercido o direito, o banco portador apenas fi ca autorizado a preencher a livrança, se tal vier a ser necessário, com o aval em causa, nesses termos restri-tos. E o dador do aval pode exigir-lhe que faça constar do título o montante máximo da sua garantia (por exemplo, anotando ao lado da sua assinatura «até ao montante x»).

Ainda que o não faça, o banco fi ca sujeito a que o avalista lhe oponha tal exceção de redução da garantia. Donde resulta que, se vier a endossar a livrança a terceiro sem o elucidar acerca do assunto, a exceção só será oponível a esse terceiro adquirente nos termos do artigo 17;76 mas o banco endossante terá um comportamento contrário à boa fé, sendo obrigado a indemnizar o avalista pelo dano causado.

13. No caso de a relação de negócios coberta pela garantia ser uma relação duradoura, sem fi xação de prazo ou com fi xação de prazo renovável auto-maticamente, o sócio que apõe a sua assinatura no associado documento de livrança em branco, como avalista, tem, nos termos gerais, o direito de, unilate-ralmente e sem invocar causa justifi cativa («ad nutum»), declarar ao banco portador do documento de livrança que a sua garantia deixa de ter por objeto tal relação de negócios, passando a circunscrever-se à dívida existente nesse momento.77

75 No mesmo sentido, Carolina Cunha, Letras e Livranças (2012), cit., p. 612. Sobre o assunto, cfr. também Januário Gomes, «O (in)sustentável peso do aval em livrança em branco prestado por sócio…», CDP 43 (2013), p. 44 (nota 70).76 Em face do acima exposto, pensamos ser este preceito o aplicável, embora o simples conhe-cimento, factual ou normativo, do adquirente da livrança seja de considerar, no específi co caso em apreço, sufi ciente para dizer que o mesmo atua conscientemente em detrimento do devedor (avalista). O resultado não será, assim, substancialmente diferente, neste caso especial, daquele que resulta da aplicação do artigo 10, preconizada por Carolina Cunha. 77 Evaristo Mendes, «Aval e fi ança gerais», Direito e Justiça XIV (2000)/1, p. 149-169, 156ss, 168. Não qualifi camos esta faculdade de desvinculação parcial ad nutum como denúncia, de propósito.

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O que, em caso de cessação da qualidade de sócio, signifi ca uma possibilidade de desvinculação (parcial) independente de se considerar que há justo funda-mento para a mesma.

Duas ressalvas, no entanto. Primeira: mesmo quando ocorre a perda da qua-lidade de sócio, havendo um contrato renovável por períodos relativamente curtos, pode ser exigível ao sócio que exerça este direito sob a forma de uma oposição à renovação, quanto a si; em vez de exercer o direito referido no número anterior.

Segunda: se o direito de desvinculação parcial ad nutum for exercido por um sócio que conserva a qualidade de sócio, haverá que ver em que medida esse exercício é conforme à boa fé, levando em conta não apenas possíveis motivos subjetivos do avalista (por exemplo, afastamento da gerência), mas também a legítima expectativa do fi nanciador. De facto, é plausível pensar que o fi nan-ciamento, nos termos em que ocorreu, pressupunha a manutenção da garantia de cobertura enquanto os «dadores de aval» conservassem a sua qualidade de sócios. Nessa medida, pode entender-se que a qualidade de sócio é um pressu-posto negocial bilateral.

E – As livranças em causa como títulos não destinados à circulação

14. Uma última nota. As livranças em causa não são concebidas para cir-cular.78 Apesar de via de regra lhes faltar uma cláusula «não à ordem», e de haver inclusive CCG de alguns bancos que preveem o seu possível endosso, mormente para desconto, a sua função sócio-económica típica é de garantia.

Na realidade, por um lado, quando ainda em branco, o título difi cilmente é apto para desconto. E o seu eventual preenchimento surge, de um modo geral, em situações em que não se espera que a sociedade subscritora o pague – seja

De facto, também é concebível a sua qualifi cação como revogação, considerando que pode estar em jogo a modifi cação do objecto de um negócio jurídico unilateral. Trata-se de um problema técnico-jurídico de importância menor. Sobre o tema, cfr. Januário Gomes, «O (in)sustentável peso do aval em livrança em branco prestado por sócio…», CDP 43 (2013), p. 42ss (embora, no que toca à revogação, só aluda à revogação por justa causa, que entende poder consistir na perda da qualidade de sócio, estabelecendo o paralelo com a resolução – p. 45). Admitindo-se a exis-tência de um contrato de garantia entre o avalista e o fi nanciador, ele tanto pode ser resolvido ex nunc, quanto às novas situações de dívida, com possível fundamento na perda da qualidade de sócio, como, havendo uma relação duradoura celebrada por tempo indeterminado, ser objecto de denúncia (p. 43 e 44).78 Cfr. também Evaristo Mendes, «Aval e fi ança gerais», Direito e Justiça XIV (2000)/1, p. 149--169, 151, 156. Se houver circulação, cfr. p. 158 s.

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à simples apresentação, seja num dado prazo subsequente; logo, também fará menos sentido o seu desconto quando já completo. Por outro lado, a intenção tipicamente reconhecível da sociedade subscritora e dos avalistas é a de fornecer ao fi nanciador da primeira um instrumento de garantia e de melhoria da sua posição processual; não um título para negociar. Tornando, em geral, contrária à boa fé a eventual negociação.

F – Resumo

15. Em breves palavras, realça-se o que se segue. O aval cambiário só surge como tal quando a letra ou livrança em que é aposto preencher todos os requi-sitos dos artigos 1 e 75 da LULL. Antes disso, existe uma simples vinculação jurídica pré-cambiária (um pré-aval). Quando um sócio apõe uma declaração de aval numa livrança em branco subscrita pela sua sociedade a favor de um fi nanciador desta, fá-lo, via de regra, na qualidade de sócio: é este o signifi -cado razoável da exigência do aval por parte do fi nanciador e é este também o sentido que um sócio normal atribuirá a essa exigência e à sua declaração de aval. Nessa medida, nas situações em que a livrança avalizada cobre a rela-ção de negócios existente entre a sociedade e o fi nanciador assinalado, ou um certo segmento dessa relação de negócios, perdendo o pré-avalista a qualidade de sócio, falta, em princípio, justifi cação para o mesmo continuar a cobrir tal relação de negócios. O sentido normal da vinculação por aval, neste contexto, é o da cessação da cobertura dessa relação de negócios para o futuro, especi-fi cando-se o objeto da garantia e passando o pré-aval a cobrir apenas a dívida existente nessa altura.

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Deveres fi duciários de cuidado: imprecisão linguística, histórica e conceitual

PROF. DOUTOR A. BARRETO MENEZES CORDEIRO, LLM

Sumário: § 1.º Introdução: 1. Panorama geral; 2. Fundamentos da posição e apreciação inicial; 3. Direito, linguagem e circunscrição linguística. § 2.º Deveres fi duciários: 4. Raízes históricas e etimológicas; 5. Dever de lealdade; 6. Dever de lealdade enquanto sinónimo de dever fi duciário. § 3.º Os deveres de cuidado: 7. Origens do duty of care; 8. O duty of care nas relações fi duciárias; 9. Duty of care nos Direitos anglófonos contemporâneos; 10. Deveres de cuidado e diligência de um gestor criterioso e ordenado; 11. Conclusões.

§ 1.º Introdução

1. Panorama geral

I. No âmbito da gestão das sociedades que representam, os administra-dores1 das sociedades comerciais devem, à luz do disposto no artigo 64.º do CSC, observar deveres de cuidado e deveres de lealdade e empregar, em toda a sua atuação, a diligência de um gestor criterioso e ordenado2.

1 O termo administrador é aqui empregue numa aceção ampla, englobando, consequentemente, também os gestores das sociedades por quotas, das sociedades em nome coletivo e das sociedades em comandita. 2 Apesar da construção frásica apontar para uma circunscrição desta diligência aos deveres de cui-dado, semelhante delimitação não é, do ponto de vista do conteúdo dos deveres de cuidado e da própria sistemática do artigo 64.º, lógica, nem se mostra, em face dos pressupostos interpretativos vigentes, cientifi camente defensável: os administradores devem ser diligentes e criteriosos em toda a atividade que desenvolvam.

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II. O artigo 64.º do CSC é reconhecidamente um artigo intrincado. Esta complexidade não refl ete, apenas, a natureza e a extensão dos deveres que adstringem a posição jurídica dos administradores. A esta factor inato cum-pre acrescentar um outro, de índole legislativa, em sentido amplo: o preceito resulta da condensação3 de múltiplos conceitos e de quadros jurídicos mentais com origens jurídicas díspares4.

As alterações introduzidas em 2006 são, de resto, ilustrativas do método seguido pelos responsáveis indiretos pela grande reforma societária5.

III. Desde que a preparação legislativa societária escapou ao campo de infl uência da Academia, a publicação de trabalhos preparatórios passou a ser inexistente ou insufi ciente6. Não se pretende negar a importância de ouvir os diferentes atores – reguladores, advogados e magistrados, pelo menos –; toda-via, a realidade mostra-nos um processo menos transparente e opaco, em que as consequências de reformas pouco claras ou mesmo incompreensíveis não podem ser assacadas ou sequer dissecadas.

A publicação de estudos, tornados célebres por Raúl Ventura, no campo societário e, especialmente, por Vaz Serra, no campo civil, foram de extrema importância para a consolidação das reformas então introduzidas. A presença de académicos representa, tradicionalmente, uma forte garantia de que o público interessado irá ter acesso aos estudos que antecederam a tomada de posição por parte dos autores materiais dos novos diplomas.

As consequências práticas da não publicação de trabalhos preparatórios são tremendas: o processo de aperfeiçoamento jurídico-científi co acaba por se tor-

3 Compare-se com o extenso § 91/I do AktG e que apenas abrange a diligência de um gestor cri-terioso e ordenado ou com o pormenorizado regime anglo-saxónico, previsto nas s. 170 a 177 do Companies Act, 2006. 4 Para um apanhado geral: António Menezes Cordeiro, Direito das sociedades comerciais, I, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2011, 850 ss. 5 Vejam-se as críticas de António Menezes Cordeiro: A grande reforma das sociedades comerciais, 138 O Dir, 2006, 445-443 e Os deveres fundamentais dos administradores das sociedades comerciais (artigo 64.º/1 do CSC), 66 ROA, 2006, 443-488, 486 ss: especialmente dirigidas às alterações introdu-zidas no artigo 64.º.6 Os textos que acompanharam a reforma, nomeadamente o Processo de consulta pública n.º 1/2006, janeiro de 2006, e o Complemento ao processo de consulta pública n.º 1/2006, fevereiro de 2006, são manifestamente insufi cientes. Ambos podem ser consultados no sítio da CMVM: http://www.cmvm.pt/pt/Legislacao/ConsultasPublicas/CMVM/Paginas/consulta_cmvm20060130a.aspx?v=. Acresce que a estrutura e o conteúdo fi nal do artigo 64.º, em especial no que à autonomização do dever de cuidado respeita, não eram contempladas no projeto apresentado ao público. Também neste ponto, as explicações aduzidas fi cam muito aquém do que se exige: http://www.cmvm.pt/pt/Legislacao/ConsultasPublicas/CMVM/anexos/Paginas/20060302a.aspx.

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nar irrealizável; basta, para o efeito, atender aos acórdãos que versam sobre as matérias dos deveres dos administradores7.

IV. A complexidade dogmática e a incerteza conceitual introduzidas com a reforma de 2006 foram mais recentemente agravadas com a divulgação da expressão deveres fi duciários, para designar, conjuntamente, os deveres de cuida-dos e os deveres de lealdade que adstringem os administradores8.

Partindo desta interpretação, a atuação dos administradores – raciocínio extensível, por exemplo, aos intermediários fi nanceiros (artigo 304.º/2 do CVM) ou às sociedades gestoras de fundos de investimento coletivo (artigo 68.º/1 do RJOIC) – surge moldada pelo dever fi duciário de cuidado e pelo dever fi duciário de lealdade9. No limite, a expressão tenderá a consumir toda a posição dos administradores.

V. A recondução dos deveres de cuidado ao universo fi duciário tem sido especialmente divulgada pelo Supremo Tribunal do Delaware, um dos grandes motores do Direito societário contemporâneo10. Esta interpretação, com raízes pouco claras11, foi objeto de uma notável difusão na viragem da década de 80

7 Veja-se a nossa anotação: Deveres de não concorrência e dever de não utilização de bens pertencentes à sociedade – Anotação a STJ 30-set.-2014, 7 RDS, 2015, 163-190. 8 Sem propósitos exaustivos. Doutrina: Paulo Câmara, O governo das sociedades e os deveres fi duciários dos administradores em Jornadas sociedades abertas, valores mobiliários e intermediação fi nanceiros, coordena-ção de Maria Fátima Ribeiro, Almedina, Coimbra, 2007, 163-179; Pedro Pais de Vasconcelos, Business judgment rule, deveres de cuidado e de lealdade, ilicitude e culpa e o artigo 64.º do Código das Socie-dades Comerciais, 1 DSR, 2009, 41-79, em especial 63 ss; Ricardo Costa/Gabriela Figueiredo Dias, Anotação ao artigo 64.º do CSC em CSC/CA, I, Almedina, Coimbra, 2010, 726 ss; Hugo Moredo Santos/Orlando Vogler Guiné, Deveres fi duciários dos administradores: algumas conside-rações (passado, presente e futuro), 5 RDS, 2013, 691-711. Jurisprudência: RPt 12-abr.-2012 (Leonel Serôdio), proc. n.º 9836/09.6TBMAI.P1: citando Pais de Vasconcelos.9 Assumindo esta premissa, não vemos razão para que os seus defensores não estendam esta comu-nhão conceitual a todas as restantes relações fi duciárias, também ditas relações de confi ança. 10 Quanto às razões do sucesso da legislação societária do Delaware: Lawrence A. Hamermesh, The Policy Foundations of Delaware Corporate Law, 106 Colum L Rev, 2006, 1749-1792 e William J. Carrey e George B. Shepherd, The Mystery of Delaware Law’s Continuing Success, U Ill L Rev, 2009, 1-93: os Autores, que colocam em causa a superioridade do Direito societário do Estado do Delaware, criticam o crescente recurso a conceitos indeterminados (pense-se no recente duty of good faith), assentes em critérios que os próprios defi nem como imprecisos e economicamente condenáveis. 11 Penn Mart Realty Co v Becker, 298 A 2d 349-352 (Del Ch, 1972), 351: “they may also breach that (fi duciary duty) by being grossly negligent or by wasting corporate assets” – temos, todavia, dúvidas quanto à inclusão da decisão neste leque. É possível interpretar as palavras do acórdão diferentemente, no sentido de que os deveres de lealdade não são os únicos deveres que moldam a posição dos

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para a década de 90 do século passado, com o mais alto órgão jurisdicional do Estado do Delaware a formalizar uma sistematização fundada numa imprecisa conceção tripartida: deveres fi duciários (i) de boa-fé12, (ii) de cuidado; e (iii) de lealdade13. O acórdão Cede & Co v Technicolor, datado de 1993, representa um marco inquestionável, na consolidação desta visão unitária dos deveres dos administradores, ao empregar a expressão tríade – adotada em inúmeras decisões que se seguiram14. O próprio Court of Chancery of Delaware, baluarte local da distinção entre Equity Law e Common Law, reconhece esta interligação conceitual15.

A terminologia obteve uma expansão federal com as alterações introduzi-das, em 1997, no Uniform Partnership Act – acolhido por cerca de 39 Estados. Atente-se ao disposto na sua s. 404(a):

The only fi duciary duties a partner owes to the partnership and the other partners are the duty of loyalty and the duty of care.

O uso da expressão deveres fi duciários de cuidado e deveres fi duciários de lealdade, conquanto criticado por uma parte da doutrina local16, é utilizada pela maioria dos autores estado-unidenses.

fi duciários; Aronson v Lewis, 473 A 2d 805 (Del, 1984): resulta do espírito do acórdão; Smith v Van Gorkom, 488 A 2d 858-899 (Del, 1985), 872: a análise de informação é apresentada como uma decorrência direta da posição fi duciária desempenhada. 12 A autonomização do dever de boa-fé é debatida pela doutrina e jurisprudência local: Do trust no Direito civil, Almedina, Coimbra, 2014, 547 ss.13 Citron v Fairchild Camera and Instrument Corp, 569 A 2d 53-71 (Del, 1989), 54: “fi duciary duties of good faith and due care”.14 Malone v Brincat, 722 A 2d 5-15 (Del, 1998), 10; Emerald Partners v Berlin, 787 A 2d 85-99 (Del Supr, 2001), 91: “triad of fi duciary duties: due care, loyalty or good faith”; Stone v Ritter, 911 A 2d 362-373 (Del, 2006), 370: embora criticando a autonomização do dever de boa-fé.15 Chen v Howard-Anderson, 87 A 3d 648-692 (Del Ch, 2014), 673; Quadrant Structure Products Co, Ltd v Vertin, 102 A 3d 155-205 (Del Ch, 2014), 171-172. Repare-se que, do ponto de vista dos tribunais de Equity, o reenvio dos deveres de cuidado aos deveres fi duciários tende a ampliar as suas competências. Não se desconhece, sublinhe-se, que os próprios deveres de cuidado foram igualmente desenvolvidos pela Equity Law. 16 Deborah A. DeMott, Beyond Metaphor: An Analysis of Fiduciary Obligation, Duke LJ, 1988, 879-924, 915; D. Gordon Smith, The Critical Resource Theory of Fiduciary Duty, 55 Vand L Rev, 2002, 1399-1497, 1409; Larry E. Ribstein, Are Partners Fiduciaries?, U Ill L Rev, 2005, 209-253, 220; William Gregory, The Fiduciary Duty of Care: A Perversion of Words, 38 Akron L Rev, 2005, 181-206; Carter G. Bishop, A Good Faith Revival of Duty of Care Liability in Business Organiza-tion Law, Tulsa L Rev, 2006, 477-512, 480 – o Autor abandonou, posteriormente, esta posição: The Deontological Signifi cance of Nonprofi t Corporate Governance Standards: A Fiduciary Duty of Care without a Remedy, 57 Cath UL Rev, 2008, 705-776; Darian M. Ibrahim, Individual or Collective

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Curiosamente, esta agregação conceitual e terminológica não encontra paralelo nos restantes sistemas da Common Law17.

VI. Em terras britânicas18, a doutrina societária19 e a doutrina fi duciária (Trust Law)20 criticam abertamente esta solução21. O incontornável acórdão Bristol & West Building Society v Mothew, usualmente citado a este propósito, atuou, porventura, como uma barreira a uma possível receção da visão norte americana. Atente-se às palavras do então Millett LJ, hoje Lord Millett22:

It is ... inappropriate to apply the expression (fi duciary duty) to the obligation of a trus-tee or other fi duciary to use proper skill and care in the discharge of his duties.

Também no campo do Direito positivo não restam dúvidas quanto a este afastamento. No Companies Act, 2006, o legislador teve a preocupação de dis-tinguir os deveres de cuidado dos deveres de lealdade para efeitos de responsa-bilidade, com um evidente e direito impacto na sistematização e dogmatização de toda a temática. Diz-nos a s. 178(2) do referido diploma:

The duties in those sections (with the exception of section 174 (duty to exercise reaso-nable care, skill and diligence)) are, accordingly, enforceable in the same way as any other duty owed to a company by its directors.

Liability for Corporate Directors, 93 Iowa L Rev, 2008, 929-971, 961; Kelli A. Alces, Debunking the Corporate Fiduciary Mith, 35 J Corp L, 2009, 230-282, 250.17 Christopher M. Bruner, Is the Corporate Directors Duty of Care a “Fiduciary” Duty? Does It Mat-ter?, 48 Wake Forest L Rev, 2013, 1027-1054: sublinhando, precisamente, este facto.18 Austrália: Andrew Keay, Directors’ Duties, Jordans, Bristol, 2009, 174: com referências jurisprudenciais.19 Gower & Davies: Principles of Modern Company Law, 9.º ed., Sweet & Maxwell, Londres, 2012, 517-518; Mark Arnold, General Duties of Directors em Company Directors Duties, Liabilities and Remedies, coordenação de Simon Mortimore, 2.ª ed., OUP, Oxford, 2013, 221-239, 223.20 Lewin on Trusts, 18.ª ed., Sweet & Maxwell, Londres, 2008, 1214; Matthew Conaglen, Fidu-ciary Loyalty: Protecting the Due Performance of Non-Fiduciary Duties, Hart, Oxford, 2010, 35 ss.21 Peter Birks, Content of Fiduciary Obligation, 34 Isr L Rev, 2000, 3-38, 35 ss: o Autor assume uma posição intermédia, ao atribuir, aos deveres de cuidado, uma dimensão fi duciária. Julgamos, como será devidamente explorado no texto principal, que Birks aponta para uma defensável e mais que provável infl uência da dimensão fi duciária da posição em todos os deveres. Conaglen, Fiduciary Loyalty, cit., 38-39: mostra-se especialmente crítico desta interpretação. 22 [1998] Ch 1-28, 6.

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2. Fundamentos da posição e apreciação inicial

I. Os autores favoráveis à unifi cação terminológica parecem alicerçar essa posição na seguinte premissa: tanto os deveres de lealdade como os deveres de cuidado têm uma origem comum: emergem da especial relação de confi ança existente entre os administradores e a sociedade.

Ora, é certo que todos os deveres que adstringem a posição dos adminis-tradores advêm da relação que se estabelece com a pessoa coletiva que repre-sentam – de resto, esta mesma conclusão é transponível para qualquer situação jurídica, independentemente dos contornos que em concreto assuma –, mas deste facto não se pode retirar a conclusão prosseguida, ou seja, a de que todos os deveres são fi duciários por natureza.

Repare-se que seguindo este raciocínio, então também os deveres de representação, de gestão ou de informação deveriam ser descritos nesses exatos moldes, isto é, como deveres fi duciários. Não é certamente assim.

II. Por outro lado, também o pressuposto de que os deveres dos fi duciários são moldados pela forte relação de confi ança – o que se reconhece e se sublinha – é insufi ciente para as pretensões jurídico-linguísticas prosseguidas. Façamos a prova dos nove.

Partindo desta premissa e à luz do disposto no artigo 762.º/2 do CC:

No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito corres-pondente, devem as partes proceder de boa-fé,

seríamos obrigados a concluir que todos os deveres e direitos assumidos no âmbito de qualquer relação jurídica são deveres e direitos de boa-fé.

III. Afastada esta primeira interpretação, resta uma outra, mais credível e porventura estimulante: a atribuição da designação fi duciária advém do facto de ambos os deveres serem exclusivos das relações de confi ança. Esta excecionali-dade justifi caria por inteiro o caminho.

Também não é assim: os deveres de cuidado, nos moldes em que hoje são concebidos, tanto pela Ciência jurídica anglófona – britânica e estado-unidense – como pela Ciência Jurídica portuguesa, não estão circunscritos ao universo fi duciário: estendem-se de forma oblíqua a todo o ordenamento.

Como veremos, a análise histórica não só reforça esta conclusão como sus-tenta a transversalidade originária dos deveres de cuidado, aspeto usualmente desconsiderado pela doutrina especializada.

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A título introdutório, interessa-nos, ainda, focar um aspeto que tende a assumir uma importância crescente num ordenamento jurídico com uma clara propensão para a divisão em microssistemas: a relevância da circunscrição lin-guística no avanço da Ciência Jurídica.

3. Direito, linguagem e circunscrição linguística

I. O Direito, enquanto Ciência, encontra na linguagem o seu fundamento primordial: a transmissão de conhecimentos, o debate científi co e os avanços dogmáticos apenas são possíveis na medida em que a Ciência Jurídica foi desen-volvendo e aperfeiçoando uma linguagem própria, não raramente distinta da linguagem comum. Sem linguagem técnica não há certamente Ciência23.

II. Do ponto de vista dos avanços da Ciência Jurídica e sem propósitos exaustivos, sublinha-se a importância de três processos gerais: (i) de criação; (ii) de circunscrição; e (iii) de absorção.

O processo criativo é particularmente empregue no âmbito da transposição de novos mecanismos ou institutos, pense-se na supressio e surrectio, no contrato de franquia ou nos warrants. Nestes casos, meramente exemplifi cativos, a Ciên-cia Jurídica empregou três técnicas distintas: na primeira, recorreu ao latim, na segunda, a uma tradução para o português e na terceira, adotou a expressão inglesa.

III. O processo circunscritivo, que é também ele criativo, encontra o seu espaço natural no seio dos grandes conceitos indeterminados. Pense-se no caso paradigmático do princípio da boa-fé.

Num primeiro nível, a boa-fé distingue-se em subjetiva e objetiva. Esta última concretiza-se, depois, em vários institutos: culpa in contrahendo, alteração das circunstâncias ou abuso do direito. Cada uma destas manifestações realiza--se, por sua vez, ao ponto de poderem ser aplicadas, com um elevado grau de segurança, a casos concretos. Recorra-se a um exemplo ilustrativo:

23 Como ponto de partida para o estudo da interação entre linguagem e Direito veja-se, entre nós, Miguel Teixeira de Sousa, Linguagem e Direito em EH Oliveira Ascensão, I, Coimbra ed., Coimbra, 267-290 e Introdução ao Direito, Almedina, Coimbra, 2012, 301-314 e António Mene-zes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, I, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, 188-194.

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Partindo da ideia de abuso do direito, a Ciência Jurídica desenvolveu os mecanismos de venire contra factum proprium, supressio e surrectio, tu quoque ou a doutrina das inalegabilidades formais24.

Quer o processo criativo quer o processo circunscritivo assentam numa delimitação da linguagem: com a criação de um novo termo jurídico, inde-pendentemente de resultar de um desenvolvimento interno ou de uma trans-posição externa de um mecanismo ou instituto, está a munir-se o sistema de um conceito delimitado e autónomo até então desconhecido ou anónimo – com consequências práticas e dogmáticas coincidentes: difi cilmente os tribunais poderão aplicar uma realidade inominada.

IV. O processo de absorção linguística e conceitual encontra-se num pata-mar distinto, sendo muitas vezes empregue conjuntamente com os dois referidos processos. Esta última categoria assume propósitos essencialmente sistemáticos.

A título exemplifi cativo, pense-se na construção fi duciária unitária, com origens anglófonas, e que sustenta uma aproximação dogmática das diferentes relações de confi ança, fundando-se numa coincidência do núcleo identifi cativo das posição fi duciárias (p. ex.: administradores de sociedades comerciais, man-datários ou intermediários fi nanceiros)25.

V. A pretensão de reconduzir os deveres de cuidado ao universo fi du-ciário representa, ao mesmo tempo, uma medida absortiva e uma medida circunscritiva.

A dimensão absortiva traduz-se na atribuição, aos deveres de cuidado, de toda a carga jurídica, histórica e cultural inerente aos deveres fi duciários.

A dimensão circunscritiva impossibilita, por seu lado, a utilização indis-criminada das expressões deveres fi duciários e deveres de lealdade, até agora empregues como sinónimas.

Na prática, busca-se uma reconstrução absoluta de toda a estrutura concei-tual e linguística que envolve as relações fi duciárias, especialmente notada no âmbito da relação existente entre os administradores e as sociedades que estes representam.

O acolhimento desta mudança apenas poderá ser assumido perante a demonstração de fortes e ponderosos argumentos linguísticos, históricos, prá-ticos e dogmáticos. E, mesmo admitindo essa possibilidade, a importância da consolidação e o reconhecimento do papel da linguagem no desenvolvimento

24 É ainda possível apresentar tanto a supressio e surrectio como a doutrina das inalegabilidades for-mais como concretizações do venire contra factum proprium. 25 Do trust, cit., 470 ss e 509 ss e Direito dos valores mobiliários, I, Almedina, Coimbra, 2015, 281 ss.

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jurídico e na transmissão de conhecimentos desaconselha qualquer alteração conceitual e linguística, para mais com o impacto prejudicial subjacente que se julga incontestável.

A história da nossa Ciência Jurídica mostra-nos que o caminho percorrido tem ido na direção da circunscrição linguística e conceitual. Neste caso busca--se precisamente o oposto.

§ 2.º Deveres fi duciários

4. Raízes históricas e etimológicas

I. O termo fi duciary, bem como a versão portuguesa fi duciário, encontra as suas origens etimológicas na expressão fi des26, o que, só por si, nos fornece importantes pistas quanto ao seu conteúdo jurídico e carga histórico-cultu-ral. Não se trata certamente de uma expressão nova, sendo, pelo contrário, conhecida e dominada pela Ciência Jurídica desde o Direito romano arcaico e de forma transversal, pense-se em todas as milenares manifestações fi duciárias: fi ducia cum amico, fi ducia cum creditore ou fi deicommissum27.

Terá sido precisamente por infl uência latina e romanística que o termo entrou no vocabulário jurídico inglês28.

II. Qualquer levantamento signifi cativo e conceitual de expressões, técnicas ou não-técnicas, para mais quando reportadas a períodos formativos, esbarra numa inevitável multiplicação de preenchimentos que possibilita a tomada de posição por diferentes soluções e interpretações. As palavras têm vida própria. Os seus conteúdos são mutáveis, variando consoante a época.

Sem negar estas condicionantes, é possível, através de um levantamento jurisprudencial, identifi car o caminho percorrido pelas expressões fi duciário e deveres fi duciários.

26 Francis E. J. Valpy, A Manual of Latin Etymology, as Ultimately Derived, with but few Exceptions, from the Greek Language: in Alphabetical Order. Together with the Formation of the Latin Cases, Tenses, Moods, Persons, and other Terminations from the Greek, Longman, Londres, 1852, 52; Menezes Cor-deiro, Da boa fé, cit., 53-59: com ampla bibliografi a citada.27 Do trust, cit., 704 ss.28 Charles P. Sherman, The Romanization of English Law, 23 Yale LJ, 1914, 318-329, 323: as fontes romanísticas medievais eram conhecidas e dominadas pelos juristas ingleses, à imagem do que se verifi cava na Europa continental.

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III. Numa primeira fase, o termo é utilizado como sinónimo de trustee29. Na passagem do século XIX para o século XX, em resultado da emergên-cia de uma nova categoria jurídica – fi duciary relationships30 –, o termo passa a ser empregue de forma a abranger todos os sujeitos que ocupassem uma posição de confi ança (fi duciary position), inicialmente devedora do fi duciário originário: o trustee31. Paulatinamente, cada uma destas distintas posições foi assumindo contornos próprios e autónomos32 – este processo evolutivo é facilmente assimilável se atendermos à posição dos administradores das socie-dades comerciais33.

Ao longo deste período, a Ciência Jurídica britânica passou a empregar, sempre alicerçada na Trust Law34, o termo fi duciary duty, com o objetivo de descrever a situação passiva característica dos sujeitos fi duciários. A primeira decisão identifi cada em que a expressão surge utilizada data de 182035 – encon-trámos textos com datas anteriores, mas não de natureza jurisprudencial36. Curiosamente, a locução é sempre empregue no plural: não se trata de um dever fi duciário, mas sim de deveres fi duciários – esta multiplicação encontra continuidade nos tempos modernos: relembre-se que os deveres fi duciários estão hoje positivados nas ss. 172 (deveres de lealdade positivos), 175, 176 e 177 (deveres de lealdade negativos) do Companies Act, 2006.

Nestes primeiros acórdãos, o sentido atribuído aos deveres fi duciários apro-xima-se dos conteúdos modernamente atribuídos às no confl ict e no profi t rules:

29 Nathan Bailey, An Universal Etymological English Dictionary, 21.ª ed., Londres, 1675: veja-se a entrada fi duciary.30 Todos os sujeitos hoje descritos como fi duciários foram, durante longas décadas, tratados como sendo trustees.31 Re, West of England & South Wales District Bank, ex parte Dale & Co (1879) 11 Ch D 772-778, 778: “What is a fi duciary relationship? It is one in respect of which if a wrong arise, the same remedy exists against the wrong-doer on behalf of the principal as would exist against a trustee on behalf of the cestui que trust”.32 Gwembe Valley Development Co Ltd v Koshy (No 3) [2004] 1 BCLC 131-179, 157: “The fi duciary relationship has developed by analogy from the trust relationship”.33 O acórdão Re, City Equitable Fire Insurance Co Ltd é demonstrativo da consolidação alcançada nos fi nais do primeiro quartel do século passado “It has sometimes been said that directors are trustees. If this means no more than that directors in the performance of their duties stand in a fi duciary relationships to the company, the statement is true enough”, cfr., [1925] Ch 407-549, 425.34 Swindle v Harrison [1997] 4 All ER 705-736, 734: “fi duciary duties are equitable extensions of trustees duties”.35 Cholmondeley v Clinton (1820) 2 Jac & W 1-192, 185. 36 A título meramente exemplifi cativo: Francis Plowden, Jura Anglorum: The Rights of English-men, Londres, 1792, 485: “the fi duciary duty of our governors to ensure and protect the community. . .”.

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It never remains in his hands cloathed with any fi duciary duty. He is never entrusted with the care37 of it, nor under any obligation to hold it for any one but himself, nor is he allowed to use it for any other purpose38.

[N]o person in whom fi duciary duties are vested shall make a profi t of them by employing himself 39.

Mas também pela positiva, ou seja, o fi duciário deve prosseguir sempre os interesses do benefi ciário:

[A] breach of their fi duciary duty. That duty is, to take immediate steps to have the fund invested 40.

IV. No lado de lá do Atlântico, a expressão, pelo menos no que ao campo jurisdicional respeita, não tem raízes tão antigas; todavia, parece evidente que, durante o século XIX, o termo, quando empregue41, assume um conteúdo em tudo análogo ao encontrado em terras inglesas42. A infl uência britânica era então muito forte – esta ascendência, reconheça-se, não surge patente em todos os acórdãos consultados. A decisão Cumberland Coal & Iron Co v Parish, datada de 1875, é especialmente elucidativa:

There is therefore no question as to the fact that [the director] bore an important fi duciary relation to the Company, as well as one of trust and confi dence in the general control and management of its aff airs. Holding such relation, he was bound to exercise all the power and authority delegated to him, in conjunction with others, for the protection of the property, and the promotion of the best interest of the corporators, the stockholders, according to his skill and ability. As between trustee and cestui que trust, or agent and principal, the rule is infl exible, that the trustee or agent cannot be allowed to take the benefi t of a transaction the entering

37 O vocábulo é aqui utilizado no sentido de confi ança e não de cuidado, numa aceção técnico--jurídica moderna.38 Cholmondeley v Clinton (1820) 2 Jac & W 1-192, 185. 39 Broughton v Broughton (1854) 5 De G M & G 160-166, 164.40 Warwick v C. Richardson (1842) 10 M & W 284-296, 291.41 Os termos trust e trustee continuam a ser privilegiados: Upton v Tribilcok, 91 US 45-56 (US, 1875), 47: “It is a trust fund, of which the directors are the trustees. It is a trust to be managed for the benefi t of its shareholders ... this duty is a sacred one, and cannot be disregarded”. 42 Da leitura destes artigos, datados já do início do século passado, chega-se a idêntica conclusão: James Barr Ames, Law and Morals, 22 Harv L Rev, 1908, 97-113, 108; R. D. Weston, Promoter’s Liability: Old Dominion v Bigelow, 30 Harv, 1916, 39-61.

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into which was in violation of his duty, or where the benefi t claimed and the duty required to be p erformed are in any respect inconsistent, the one with the other43.

V. Em Portugal, a locução fi duciário e as suas variantes, embora antiga – pense-se no fi deicomisso –, apenas muito recentemente começou a ser utili-zada no âmbito dos deveres dos administradores das sociedades comerciais, por evidente ascendência anglófona.

A palavra tem sido usada em três aceções distintas: (i) para descrever a posi-ção desempenhada pelos administradores; (ii) como sinónimo de dever de leal-dade; e (iii) de modo a abarcar os deveres de cuidado e os deveres de lealdade, nos moldes descritos introdutoriamente.

5. Dever de lealdade

I. O dever de lealdade encontra as suas raízes etimológicas e jurídicas na fi des romanística44 e na Treu germânica45. Todavia, apenas nos interessa, por agora, as origens do termo no seio da Ciência Jurídica anglo-saxónica e em especial no âmbito das relações fi duciárias.

II. A utilização da expressão, num sentido moderno, é devida à Ciência Jurídica estado-unidense. Os tribunais e a doutrina inglesa apenas recentemente começaram a recorrer à expressão no âmbito das relações fi duciárias46.

Mas mesmo na outra margem do Atlântico, a locução é particularmente moderna: foi pela primeira vez empregue por Austin Scott, Redator do First Restatement of Trusts, 193547, no incontornável § 170, com a epígrafe Duty of Loyalty:

(1) The trustee is under a duty to the benefi ciary to administer the trust solely in the interest of the benefi ciary.

43 42 Md 598 (Md, 1875).44 António Menezes Cordeiro, Da boa fé no Direito civil, Almedina, Coimbra, 2001 (reimpres-são), 53 ss.45 Carlos Sardinha, Alta-traição e lesa-majestade. Germanismo e romanismo na história do Direito visi-gótico primitivo, Universidade Católica, Lisboa, 2011, 57-93.46 Sempre centrados na jurisprudência britânica, os primeiros acórdãos fi duciários e societários em que o termo é utilizado data, apenas, da viragem da década de 80 para a década de 90 do século passado. 47 Thurman Arnold, The Restatement of the Law of Trusts, 21 Colum L Rev, 1931, 800-823; Aus-tin W. Scott, The Restatement of the Law of Trusts, 31 Colum L Rev, 1931, 1266-1285.

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(2) The trustee in dealing with the benefi ciary on the trustee’s own account is under a duty to the benefi ciary to deal fairly with him and to communicate to him all material facts in connection with the transaction which the trustee knows or should know.

Até então, a locução não era utilizada comummente e muito menos para designar o núcleo da posição fi duciária48.

III. A consolidação e a dogmatização do dever de lealdade é indissociável do pensamento jurídico-fi duciário de Austin Scott. Coube a este eminente Professor de Harvard a publicação de um primeiro estudo sobre o tema. Aten-te-se à defi nição então avançada, próxima da positivada no First Restatement of Trust:

It is the duty of a trustee to administer the trust solely in the interest of the benefi ciaries. He is not permitted to place himself in a position where it would be for his own benefi t to violate his duty to the benefi ciaries49.

6. Dever de lealdade enquanto sinónimo de dever fi duciário

I. Uma análise aprofundada ao conteúdo dos deveres de lealdade escapa aos propósitos do presente estudo. Apenas nos interessa, tendo em vista uma comparação com os deveres fi duciários de origem estado-unidense, identifi car o seu conteúdo nuclear.

II. À luz da visão hoje dominante na Ciência Jurídica nacional, os deveres de lealdade assentam na seguinte premissa originária50: os administradores assu-mem a obrigação de atuar, no âmbito dessa posição jurídica, no interesse do benefi ciário último da relação, ou seja, a sociedade.

Partindo deste princípio estruturante, os administradores estão obrigados, pela positiva, a procurar sempre o interesse da sociedade e estão, pela negativa, impedidos de colocar os seus interesses individuais ou os interesses de terceiros à frente dos interesses da sociedade que representam. Os deveres de lealdade

48 Primeiro artigo encontrado em que a expressão é utilizada: Austin W. Scott, Resulting Trusts Arising Upon the Purchase of Land, 40 Harv L Rev, 1927, 669-711, 674: em rodapé.49 The Trustee’s Duty of Loyalty, 49 Harv L Rev, 1936, 521-565, 521.50 Por todos: António Menezes Cordeiro, Anotação ao artigo 64.º do CSC em CSC/MC, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2011 e Costa/Figueiredo Dias, Anotação ao artigo 64.º do CSC em CSC//CA, I, Almedina, Coimbra, 2010.

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positivos e negativos materializam-se, necessariamente, em inúmeras concreti-zações, típicas e atípicas51.

III. Em terras inglesas52, o dever de lealdade, também dito dever fi duciário, está estruturado em torno de duas concretizações gerais: a no confl ict rule e a no profi t rule53. A no confl ict rule veda, ao administrador, todo o tipo de atuação da qual possa originar um confl ito entre os interesses da sociedade e os seus inte-resses pessoais54, enquanto a no profi t rule impede esses mesmos administradores de obterem lucros ou proveitos através da posição fi duciária que ocupam, salvo se previstos no contrato da sociedade ou devidamente autorizados pelo órgão societário competente55.

As no confl ict e no profi t rules surgem usualmente associadas ao dever de lealdade negativo. A dimensão positiva do dever de lealdade encontra-se hoje parcialmente positivada na s. 172(1) do Companies Act, 2006:

A director of a company must act in the way he considers, in good faith, would be most likely to promote the success of the company for the benefi ts os its members as a whole. IV. Finalmente, também a Ciência Jurídica estado-unidense, com toda a

variedade que a caracteriza, aponta num sentido coincidente. O panorama geral mantém-se, como seria expectável, próximo do que foi vertido no § 170 do First Restatement of Trusts, nos moldes então concebidos por Austin Scott56.

No seio do Direito societário do Estado do Delaware, ordenamento que mais tem contribuído para a divulgação da expressão deveres fi duciários de cuidado, o dever de lealdade assume um conteúdo em tudo idêntico. Neste

51 Veja-se a nota anterior. 52 Do trust, cit., 219 e Doutrina das oportunidades societárias (corporate opportunities doctrine). Parte I: Introdução – Direito estado-unidense – Direito inglês, 5 RDS, 602-632, 622 ss.53 O’Donnell v Shanahan [2008] EWHC 1973 (Ch), [37]: “the “no confl ict rule” and “no profi t rule” to which fi duciaries such as directors are subject”. 54 Aberdeen Rail Co v Blaikie Brothers [1843-1860] All ER Rep 249-256, 252; Regal (Hastings) Ltd v Gulliver [1967] 2 AC 134-159, 137-138 e 154-155; Boardman v Phipps [1966] 3 All ER 721-762, 733-734; Industrial Development Consultants v Cooley [1972] 2 All ER 162-176, 171 ss; Bhullar v Bhullar [2003] EWCA Civ 424, [27-42].55 Parker v McKenna (1874) LR 10 Ch App 96-127, 124; Bray v Ford [1896] AC 44-56, 51: duas decisões clássicas que estão na origem do princípio geral, posteriormente estendido a todos os fi duciários; Re, Macadam Dallow [1945] 2 All ER 664-679, 672; Boardman v Phipps [1966] 3 All ER 721-762, 748; Guinness v Saunders [1990] 1 All ER 652-668, 660. 56 Veja-se o interessa artigo de John H. Langbein, Questioning the Trust Law Duty of Loyalty: Sole Interest or Best Interest?, 114 Yale LJ, 2005, 929-990.

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ponto, o incontornável caso Guth v Loft, datado de 1939, conserva toda a sua relevância e centralidade:

[T] he most scrupulous observance of his duty, not only affi rmatively to protect the inte-rests of the corporation committed to his charge, but also to refrain from doing anything that would work injury to the corporation, or to deprive it of profi t or advantage ... The rule that requires an undivided and unselfi sh loyalty to the corporation demands that there shall be no confl ict between duty and self-interest57.

V. Da comparação entre estes três ordenamentos, torna-se evidente que as expressões deveres de lealdade e deveres fi duciários assumem conteúdos idên-ticos, devendo, consequentemente, ser utilizados como sinónimos: o dever de lealdade não é um dever fi duciário, mas sim o dever fi duciário.

§ 3.º Os deveres de cuidado

7. Origens do duty of care

I. É comum a doutrina especializada anglo-saxónica afi rmar que as origens do duty of care devem ser procuradas no campo da responsabilidade civil (Tort Law), mais especifi camente no tort of negligence58-59. Esta visão clássica, assumida pacifi camente para além das fronteiras da Common Law, não pode ser aceite acriticamente. De resto, parece mesmo ceder, quando acompanhada de uma cuidada análise histórica.

II. A expressão reasonable care é empregue, pela jurisprudência inglesa, pelo menos desde os inícios do século XVIII. Num caso datado de 1703, o King’s Bench afi rma que, tendo um determinado sujeito sido contratado para trans-portar bens, será responsável por todos os danos causados à carga transportada, desde que resultem de uma atuação negligente:

If a man undertakes to carry goods safely and securely, he is responsible for any damage they may sustain in the carriage thro’ his neglect tho’ he was not a common carrier and was to have nothing for the carriage60.

57 23 Del Ch, 255-283 (Del, 1939), 270.58 Por todos: Gower & Davis, cit., 518: embora reconheça as especifi cidades da relação.59 Do trust, cit., 484 ss: apanhado geral da fi gura.60 Coggs v Bernard (1703) 2 LR 909-920, 919.

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And yet if he receives his master’s money, and keeps it lock’d up with a reasonable care, he shall not be answerable for it, though it be stolen61.

II. O interesse deste caso reside, essencialmente, no facto de o tribunal ter utilizado a expressão reasonable care. Já quanto ao pressuposto-base: responsabi-lização de prestadores de serviços – recorrendo a uma nomenclatura contem-porânea – por atuações negligentes, estes remontam aos primórdios do Direito inglês:

– Bukton v Tounesende, 1348 (assumpsit for misfeansance): um sujeito foi con-tratado para transportar uma égua por via marítima. Ao contrário do que havia sido acordado, carregou a sua embarcação com mais equídeos. Em decorrência desta decisão, a embarcação naufragou, com toda a carga transportada. O dono da égua interpôs uma ação para responsabilizar o barqueiro62;

– Waldon v Mareschal, 1369 (trespass): um veterinário foi contratado para examinar e medicar um cavalo, tendo o animal acabado por falecer, por notória negligência do físico63;

– Thomas v Sampson, 1384 (trespass): um hóspede avança com uma ação contra um estalajadeiro, em que alega ter sido furtado em cerca de 10 libras enquanto permanecia hospedado na sua estalagem64;

– Skyrne v Butolf, 1388 (assumpsit for misfeansance): um médico é trazido ao banco dos réus por um seu doente, que pretende o ressarcimento dos danos causados em virtude de um diagnóstico incorreto65.

III. Para um jurista continental, é particularmente curioso que a solução

para estes casos fosse encontrada no seio da responsabilidade civil extracontra-tual. Ora, na realidade, essa afi rmação não é correta: nestes litígios, os autores das ações não invocaram o incumprimento de um dever extracontratual, os fundamentos eram outros e variados: um acordo, uma promessa, um contrato, um precedente jurisdicional ou um costume.

61 918.62 John H. Baker, Baker and Milsom: Sources of English Legal History – Private Law to 1750, 2.ª ed., OUP, Oxford, 2010, 399. A versão original pode ser consultada no sítio: http://www.bu.edu/phpbin/lawyearbooks/display.php?id=11790. 63 A versão original pode ser consultada no sítio: http://www.bu.edu/phpbin/lawyearbooks/display.php?id=14060. 64 Baker and Milsom, cit., 605-606.65 Baker and Milsom, cit., 405-409.

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A Common Law, nos seus moldes originais, consistia num complexo sistema formalístico de ações, em que a entrada de uma petição inicial estava depen-dente do preenchimento dos pressupostos formais e substantivos dos docu-mentos existentes – os célebres writs66. À época, não existia uma ação de res-ponsabilidade extracontratual: os lesados podiam recorrer a diferentes tipos de writs, sendo alguns deles, séculos volvidos, reconduzidos à Tort Law67 e outros à Contract Law68. Nos casos Bukton v Tounesende e Skyrne v Butolf, os lesados fi zeram uso de um writ contratual clássico: writ of assumpsit of misfeasance; e nos casos Waldon v Mareschal e Thomas v Sampson a um writ extracontratual clássico: o writ of trespass.

Esta incerteza dogmática é extensível à própria doutrina. Nos séculos que se seguiram, encontramos interpretações que apontam em ambos os sentidos69. Não resistimos a citar o incontornável Edward Coke (n. 1552, f. 1634), que parece favorecer uma origem contratual do duty of care70:

So it is if good be delivered to a man to be safely kept, and after those goods are stolen from him, this shall not be excuse him; because by the acceptance he undertook to keepe them safely, and therefore he must keepe them at his peril.

IV. É assim possível traçar uma linha histórica e lógica que se inicia, pelo menos, no século XIV e atravessa todo o Direito obrigacional – numa aceção continental. Os desenvolvimentos posteriores, em especial nos últimos sécu-los, colocaram os deveres de cuidado no campo da responsabilidade extracon-tratual. Contudo, a sua emergência está longe de representar uma qualquer receção tardia. Como demonstram os acórdãos supra referidos – meramente exemplifi cativos –, o duty of care é muito anterior a qualquer sistematização dos dois ramos obrigacionais.

66 Do trust, cit. 129 ss.67 A sistematização da responsabilidade extracontratual anglófona é particularmente recente, sendo contemporânea do fi m do sistema formalístico de ações: fi nais do século XIX, cfr., Do trust, cit., 482. 68 Percy H. Winfield, The History of Negligence in the Law of Torts, 42 LQ Rev, 1926, 184-201, em especial 186-188.69 Veja-se a nota anterior.70 Edward Coke, The First Part of the Institutes of the Laws of England; or a Commentary upon Littleton: Not the Name of the Author only, but of the Law Itself, Filadélfi a, 1853, s. 123, 89. a).

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8. O duty of care nas relações fi duciárias

I. A imposição de deveres de cuidado a sujeitos fi duciários – dogmati-camente construída em torno dos conceitos de reasonable care and diligence – é igualmente antiga. Atente-se às palavras de Lord Cottenham LC, no caso Clough v Bond, de 183871:

It will be found to be the result of all the best authorities upon the subject, that, although a personal representative, acting strictly within the line of his duty, and exercising reasonable care and diligence, will not be responsible for the failure or depreciation of the fund. Repare-se que Lord Cottenham LC não está a criar novo Direito: está a

recorrer às melhores autoridades (best authorities). Este aspeto contraria duas ideias muito divulgadas: (i) a de que os deveres de cuidado são realidades recentes; e (ii) a de que foram desenvolvidos no seio da responsabilidade extracontratual.

O facto de, em período anteriores, não encontrarmos a expressão reasonable care em nada afeta estas conclusões. As palavras de Lord Hardwicke LC, citadas no caso Ex parte Belchier (1754), vão ao encontro das conceções modernas:

If trustee acts as prudently for the trust as for herself, and according to the usages of business, então, não poderá ser responsabilizado pelos danos causados72.

II. No último quartel do século XIX, o conteúdo do dever de cuidado surge já consolidado, na jurisprudência – o acórdão Speight v Gaunt desempe-nhou um lugar destacado neste processo de sistematização73:

The trustee is bound to shew that he has adopted the safest course, or at least a safe and reasonable course, and he must exercise reasonable care and diligence74.

[A]s a general rule a trustee suffi ciently discharges his duty if he takes in managing trust aff airs all those precautions which an ordinary prudent man of business would take in managing similar aff airs of his own75.

71 3 My & Cr 491-499, 496.72 Am 218-220, 219. 73 (1883) 9 App Cas 1-33.74 Cit., 4.75 Cit., 19.

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9. Duty of care nos Direitos anglófonos contemporâneo

I. A ligação umbilical existente a fi gura do trustee e os restantes sujeitos fi duciários foi decisiva para a imposição, aos administradores das sociedades comerciais, de um dever de agir de forma cuidadosa e diligente. Durante lon-gas décadas, vigorou, em terras inglesas e de forma análoga à sentida no campo da Trust Law, um dever de cuidado subjetivo, em que o padrão exigido estava dependente das capacidades de cada administrador, individualmente. Na prá-tica, apenas não seria possível exigir a cada administrador mais do que o próprio poderia dar76.

O panorama jurisdicional britânico foi objeto de uma autêntica revolução, na viragem da década de 80 para a década de 90 do século passado77. Apoiado na s. 214(4) do Insolvency Act, 198678, o então Hoff mann J. sustentou a sujeição dos administradores das sociedades comerciais a dois testes, no âmbito do cum-primento ou incumprimento do dever de cuidado: (i) um teste subjetivo, que impõe um comportamento adequado às capacidades individuais de cada admi-nistrador; e (ii) um teste objetivo, que exige uma atuação consentânea com a expectável de um administrador diligente79.

Em 2006, com a introdução de um novo Companies Act, o legislador bri-tânico acabaria por positivar esta última conceção, na s. 174, que tem como epígrafe: Duty to exercise reasonable care, skill and diligence:

(1) A director of a company must exercise reasonable care, skill and diligence.(2) This means the care, skill and diligence that would be exercised by a reasonably

diligent person with –(a) the general knowledge, skill and experience that may reasonably be expected of a

person carrying out the functions carried out by the director in relation to the com-pany, and

(b) the general knowledge, skill and experience that the director has.

76 Re, City Equitable Fire Insurance Co [1925] Ch 407-549, 408: “he need not exhibit in his duties a greater skill than may reasonable be expected from a person of his knowledge and experience”. 77 Gower & Davis, cit., 519.78 (4) For the purposes of subsections (2) and (3), the facts which a director of a company ought to know or ascertain, the conclusions which he ought to reach and the steps which he ought to take are those which would be known or ascertained, or reached or taken, by a reasonably diligent person having both –(a) the general knowledge, skill and experience that may reasonably be expected of a person carrying out the

same functions as are carried out by that director in relation to the company, and(b) the general knowledge, skill and experience that that director has.79 Re, D’Jan of London Lda [1993] BCC 646-649: decisão decisiva e incontornável.

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II. Também no Direito estado-unidense e atendendo apenas às linhas gerais do dever de cuidado, encontramos um conteúdo base idêntico80. Atente-se aos esclarecedores conteúdos da s. 4.01(a) do ALI’s Principles of Corporate Governance:

A director or offi cer has a duty to the corporation to perform the director’s or offi cer’s functions ... with the care than an ordinary prudent person would reasonably be expected to exercise in a like position and under similar circumstances81.

e do § 8.30(b) do Model Business Corporation Act:

The members of the board of directors or a committee of the board ... shall discharge their duties with the care that a person in a like position would reasonable believe appropriate under similar circumstances82.

10. Deveres de cuidado e diligência de um gestor criterioso e ordenado

I. Na sua versão original, o artigo 64.º versava apenas, de forma direta, sobre o dever de diligência:

Os gerentes, administradores ou directores de uma sociedade devem actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos accionistas e dos trabalhadores.

Nestes termos, o preceito encontra as suas origens mais diretas no § 93/I do AktG83. A norma foi, numa primeira fase, assimilada a uma medida de culpa (de negligência), surgindo sistematicamente devedora dos §§ 276 do BGB e 374 do HGB. Atualmente, a Ciência Jurídica alemã atribui-lhe uma dupla fun-ção: à clássica medida de culpa acrescenta-se um papel decisivo enquanto regra de conduta. O § 227 do BGB representa, no âmbito desta segunda dimensão, um elemento interpretativo decisivo84.

80 Melvin A. Eisenberg, The Duty of Care of Corporate Directors and Offi cers, 51 U Pitt L Rev, 1990, 945-972: interessante ponto de partida para o estudo de toda a temática dos deveres de cuidado.81 Apud. Lyman P. Q. Johnson, Corporate Offi cers and the Business Judgment Rule, 60 Bus Law, 2005, 439-469, 442.82 Apud. Model Business Corporation Act Annotated, I, 4.ª ed., ABA, USA, 2008, 8-185.83 Menezes Cordeiro, Direito das sociedades, I, cit., 852.84 Holger Fischer, Anotação ao § 93 do AktG em Spindler/Stiltz AktG, 2.ª ed., Beck, Munique, 2010, Rn. 16; Jens Koch, Anotação ao § 93 do AktG em Hüff er AktG, 11.ª ed., Beck, Munique,

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Raúl Ventura, Autor do anteprojeto, considerava que a função do preceito, já então parte integrante da nossa ordem jurídica, se esgotava na sua dimensão de norma de conduta. Numa perspetiva dogmática, o dever de atuar diligente-mente surge relacionado com o disposto nos artigos 487.º/2 e 799/2.º do CC e com conceito indeterminado de bom pai de família85.

II. A expressão dever de cuidado entrou no nosso Direito das sociedades com a reforma de 2006. A inclusão do termo foi inesperada: a proposta apresentada a consulta pública não continha qualquer referência ao preceito:

1. Os gerentes ou administradores da sociedade devem actuar com a diligên-cia de um gestor criterioso e ordenado e com lealdade, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores.

2. Os titulares de órgãos sociais com funções de fi scalização devem actuar de acordo com elevados padrões de diligência profi ssional e com lealdade86.

A CMVM teve o cuidado de explicitar a mudança da cláusula original, sem, contudo, explicar as razões que motivaram esta alteração:

A cláusula geral da actuação cuidadosa foi separada do critério de actuação diligente que serve de bitola ao cumprimento daquela; além disso, foi decomposta nos seus elementos essenciais e complementada com a ideia da adequação das qua-lifi cações exigidas em relação ao tipo de funções desempenhadas87.

O que se buscou, com a inclusão de um conceito externo ao nosso Direito? Um esclarecimento dos deveres dos administradores? Repita-se o que acima se escreveu: basta analisar os acórdãos que têm sido produzidos sobre esta matéria para concluir que a Ciência Jurídica nacional está longe de ter estes conceitos por consolidados88. Sem doutrina e jurisprudência a suportar esta mudança e

2014, Rn. 5; Wolfgang Hölters, Anotação ao § 93 do AktG em Hölters AktG, 2.ª ed., Beck, Munique, 2014, Rn. 2: atribuindo maior relevância a esta segunda função.85 Menezes Cordeiro, Direito das sociedades comerciais, I, cit., 858 ss.86 A proposta pode ser consultada no sítio da CMVM: http://www.cmvm.pt/pt/Legislacao/ConsultasPublicas/CMVM/Documents/59bf1f4f121d4ca4a76729b3d33a0dc5proposta_articulado_csc.pdf. 87 Sítio da CMVM: http://www.cmvm.pt/pt/Legislacao/ConsultasPublicas/CMVM/anexos/Paginas/20060302a.aspx. 88 Impõe-se um estudo jurisprudencial sobre todos os desenvolvimentos subsequentes à reforma de 2006.

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sem trabalhos preparatórios que a explicitem, outro resultado não poderia ser possível.

III. Podemos admitir que a denominada decomposição traz algumas vanta-gens, mas o mesmo já não poderá ser dito no que à expressão deveres de cuidado respeita: trata-se de uma repetição desnecessária de conceitos e que tende a desvirtuar o percurso histórico-jurídico subjacente.

Da análise aos Direitos anglo-saxónicos é possível identifi car duas fases: na primeira fase, foram impostos deveres de cuidado – reasonable care; e, na segunda fase, esses deveres de cuidado foram fortalecidos por recurso ao conceito orde-nador de administrador diligente (teste objetivo).

Ora, se a Lei portuguesa já exigia esta diligência objetiva, a inclusão do termo deveres de cuidado não se justifi ca: o artigo 64.º não sofreu, neste campo, qualquer alteração material, apenas se introduziu um termo sem ligação dogmática ao Direito nacional e que não refl ete a sua evolução.

A coincidência conceitual é reconhecida pela própria CMVM, quando, em breve nota às alterações propostas, escreve o seguinte:

Propõe-se a explicitação do dever de lealdade, o que se revela necessário, por-quanto complementa a vinculação a deveres de diligência (duties of care).

Ou seja: o dever de atuar diligentemente (continental) e o duty of care (anglo-saxónico) têm um conteúdo análogo – as diferenças existentes refl etem regimes, culturas e Direitos distintos.

Também não poderá ser argumentado que a referência aos deveres de cui-dado possibilitou a concretização das condutas efetivamente exigíveis. Para o efeito, basta analisar a solução germânica: esta materialização foi alcançada por intermédio de conceitos e termos conhecidos e dominados.

IV. Quanto ao preenchimento dos supostos deveres de cuidado, a nossa juris-prudência conserva a posição já então manifestada por Raúl Ventura: os admi-nistradores devem atuar diligentemente, sendo-lhes exigível um grau de cui-dado mesmo superior ao que se espera de um bom pai de família89.

Ora, mas é este dever de atuar diligentemente um dever de cuidado espe-cífi co das relações fi duciárias? Não. De modo idêntico ao que se verifi ca nos Direitos anglo-saxónicos, também no Direito português são inúmeras as posi-ções jurídicas que surgem moldadas por exigências análogas, começando, desde

89 Por todos: STJ 20-set.-2014 (Fonseca Ramos), proc. n.º 1195/08.0TYLSB.

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logo, por todas as disposições em que encontramos o conceito de bom pai de família. Na realidade, o dever de atuar diligentemente impõe-se nas demais rela-ções jurídicas: os artigo 487.º/2, 799.º/2 e 1446.º do Código Civil abrangem todas as posições jurídicas obrigacionais e reais.

Em suma, a obrigação de atuar diligentemente molda as posições passivas de forma transversal, independentemente da sua origem ou estrutura. A espe-cialidade das posições fi duciárias poderá porventura residir no grau da diligên-cia exigida.

Todavia, seria sempre necessário demonstrar, o que ainda não foi feito entre nós, que todos os sujeitos fi duciários estão adstritos a deveres de diligência mais gravosas.

11. Conclusões

I. O interesse continental pelo conceito anglófono das fi duciary relationships refl ete, por um lado, a crescente ascendência da Coomon law e, por outro lado, o papel cada vez mais decisivo que as relações de confi ança tendem a assumir na nossa sociedade moderna90.

II. A transposição de conceitos e termos estranhos à comunidade jurídica nacional é uma realidade que tem acompanhado os avanços da nossa Ciência local.

Ao indiscutível peso dos glosadores e comentadores91 seguiram-se as nações iluminas e polidas da Boa Razão92; a ascendência napoleónica, que marcou todo o século XIX, foi paulatinamente substituída pela pandetística, a partir de Guilherme Moreira93, sendo hoje cada vez mais evidente o peso das conceções anglófonas, em especial no campo societário e no dos valores mobiliários94.

90 Direito dos valores mobiliários, I, cit., 281 ss.91 Em especial as posições defendidas por Bartolus: Nuno Espinosa Gomes da Silva, Bártolo na história do Direito português, sep. 12 RFDUL, 1960 e Martim de Albuquerque, Bártolo e bartolismo no Direito português, 304 BMJ, 1981, 102-123. 92 Lei de 18 de agosto de 1769, § 9. José Homem Correia Telles, Commentario critico à Lei da Boa Razão, António José da Rocha, Lisboa, 1836, 27-28. 93 António Menezes Cordeiro, Teoria geral do Direito civil – Relatório, Separata da Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Lisboa, 1988, 131 ss. e Da modernização do Direito civil, Vol. I: Aspectos gerais, Almedina, Coimbra, 2004, 37 ss.94 Veja-se a monumental obra de Jan von Hein, Die Rezeption US-amerikanischen Gesellschaftsrechts in Deutschland, Mohr Siebeck, Tubinga, 2008 (XLVI + 1089 pp). Não podemos ainda deixar de notar a gradual receção do trust pelos sistemas civilísticos, cf. Do trust, cit., 47 ss.

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A receção de novos institutos é, assim, parte integrante da nossa História Jurí-dica. Contudo, as receções legislativas a doutrinárias devem ser feitas com espe-cial cautela.

Ora, a adoção das expressões deveres fi duciários de lealdade e deveres fi du-ciários de cuidado não se justifi ca, por razões de (i) ordem histórica – ambas as situações jurídicas desenvolveram-se autonomamente, no respetivo sistema de origem –; (ii) de ordem conceitual – tratam-se de realidades distintas, com propósitos próprios e diferenciados; (iii) de ordem sistemática – os deveres fi duciários ou de lealdade sentem-se com maior intensidade nas relações de confi ança; já o dever de atuar diligentemente molda todas as posições jurídicas passivas; e (iv) de ordem linguística – o termo dever de lealdade, perfeitamente consolidado entre nós, assume-se como sinónimo de dever fi duciário.

As consequências práticas e científi cas desta receção são consideráveis, difi -cultando o estudo, a aprendizagem e a transmissão de conhecimentos.

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Da transmissão da responsabilidade contraordenacional na fusão por incorporação: análise crítica do acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 5 de março de 2015

DR. CRISTIANO DIAS

Sumário: 1. Antecedentes. 2. Breves considerações sobre a fusão: 2.1. Enquadramento; 2.2. Conceito e tipos de fusão; 2.3. Tramitação; 2.4. Efeitos. 3. Do pedido de decisão prejudicial. 4. Da decisão do Tribunal de Justiça. 5. Apreciação crítica: 5.1. Delimitação do objeto; 5.2. Património passivo e responsabilidade contraordenacional; 5.3. Da transmissão do património passivo; 5.4. Proteção de terceiros; 5.5. Conclusões.

1. Antecedentes

A jurisprudência da União Europeia fi ca, no ano de 2015, marcada pelo acórdão proferido pela Quinta Secção do Tribunal de Justiça da União Euro-peia datado de 5 de março relativamente à transmissão da responsabilidade em caso de fusão mediante incorporação de sociedades comerciais (“Acórdão”).

O Acórdão reporta-se ao processo número C-343/131 que teve por objeto um pedido de decisão prejudicial, que deu entrada no Tribunal de Justiça da União Europeia2 em 24 de junho de 2013, apresentado pelo Tribunal de Tra-

1 A decisão encontra-se disponível em http://curia.europa.eu. Encontram-se igualmente disponí-veis no mesmo sítio as conclusões do Advogado-Geral, Melchior Wathelet, apresentadas em 12 de novembro de 2014 (“Conclusões do Advogado-Geral”).2 Para maior desenvolvimento sobre o Tribunal de Justiça da União Europeia, vd. Fausto de Quadros, Direito da União Europeia, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2015, pp. 367-384; Maria José Rangel de Mesquita, Introdução ao Contencioso da União Europeia, Almedina, Coimbra, 2015, pp. 45-65; e Miguel Gorjão-Henriques, Direito da União Europeia – História, Direito, Cidadania, Mercado Interno e Concorrência, 7.ª edição, Almedina, Coimbra, 2014, pp. 197-208.

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balho de Leiria3, no âmbito de uma decisão proferida por este tribunal em 14 de março de 2013.

O litígio em causa teve como intervenientes a sociedade Modelo Conti-nente Hipermercados, S.A. (“Modelo-Continente”)4 por um lado, e a Auto-ridade para as Condições de Trabalho – Centro Local do Lis (“ACT”)5, por outro.

Em termos gerais, a ACT condenou a Modelo-Continente por infrações cometidas no âmbito do direito do trabalho português pela Good and Cheap – Comércio Retalhista S.A. (“Good and Cheap”)6, antes desta sociedade ter sido incorporada na Modelo-Continente através de uma fusão.

Em concreto, a ACT realizou, no dia 15 de fevereiro de 2011, uma inspe-ção à Good and Cheap relativamente ao registo das horas de trabalho prestadas pelos seus trabalhadores efetuado nos meses de dezembro de 2010 e janeiro de 2011. Através dessa inspeção, a ACT constatou que a Good and Cheap se encontrava a infringir regras do Código do Trabalho7 relativas ao número de horas de trabalho consecutivas e número de horas de descanso entre os períodos de trabalho.

3 Nos termos do artigo 267.º do Tratado de Funcionamento da União Europeia, na versão con-solidada pela Decisão 2012/419/UE do Conselho Europeu, de 11 de julho de 2012, que alterou o Estatuto de Maiote perante a União Europeia, que estabelece: “O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial: a) Sobre a interpretação dos Tratados; b) Sobre a vali-dade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União. Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie. Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pen-dente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal. Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível.”4 A Modelo-Continente é uma sociedade anónima de direito português que se dedica ao comér-cio retalhista e armazenista no sector da alimentação desde 1985, tendo sido a primeira cadeia de hipermercados em Portugal. Hoje conta com mais de uma centena de estabelecimentos comer-ciais por todo o país.5 A ACT é um serviço do Estado que tem como missão a promoção da melhoria das condições de trabalho em todo o território continental através da fi scalização do cumprimento das normas de direito do trabalho, promoção de políticas de prevenção dos riscos profi ssionais e controlo do cumprimento da legislação relativa à segurança e saúde no trabalho.6 A Good and Cheap era uma sociedade anónima de direito português que se dedicava ao comér-cio retalhista e armazenista em supermercados e em hipermercados.7 Na redação dada pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro, que aprovou a revisão do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto.

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Neste contexto, foi imputada à Good and Cheap a violação das seguintes disposições do Código do Trabalho8:

Artigo 213.º, número 1: “O período de trabalho diário deve ser interrompido por um intervalo de descanso, de duração não inferior a uma hora nem superior a duas, de modo a que o trabalhador não preste mais de cinco horas de trabalho consecutivo, ou seis horas de trabalho consecutivo caso aquele período seja superior a 10 horas”9.

Artigo 214.º, número 1: “O trabalhador tem direito a um período de descanso de, pelo menos, onze horas seguidas entre dois períodos diários de trabalho consecutivos.”

Consequentemente, a ACT condenou a Good and Cheap por violação das regras laborais portuguesas segundo as quais (i) os trabalhadores não podem prestar trabalho por mais de cinco horas consecutivas e (ii) que os trabalhado-res têm direito a um período de descanso de, no mínimo, onze horas seguidas entre dois períodos de trabalho.

Esta situação conduziu a que a ACT lavrasse os autos de notícia respeitantes a estas violações contra a Good and Cheap com intenção de aplicar as respetivas coimas. Os autos de notícia foram lavrados no dia 7 de março de 2011, tendo contudo a ACT apenas procedido à notifi cação dos respetivos autos à Good and Cheap no dia 4 de abril de 201110. Os autos de notícia aplicaram à Good and Cheap duas coimas (“Coimas”), uma por cada violação11.

No entanto, após a supra referida inspeção e antes de serem aplicadas as Coimas, a Modelo-Continente e a Good and Cheap registaram na Conserva-tória do Registo Comercial, em 31 de março de 2011, uma fusão, nos termos da qual a Good and Cheap seria fundida por incorporação na Modelo-Conti-nente, conduzindo necessariamente à sua extinção12.

8 Vd. ponto 20 das Conclusões do Advogado-Geral.9 Negrito nosso.10 Vd. ponto 11 do Acórdão e ponto 20 das Conclusões do Advogado-Geral. 11 Foram aplicadas as seguintes coimas: (1) Coima pela violação da proibição de os trabalhado-res prestarem trabalho por mais de cinco horas consecutivas no valor de € 459,00 (quatrocentos e cinquenta e nove euros), correspondente ao auto de notícia número 161100188; e (2) Coima pela violação do direito dos trabalhadores a um período de descanso de, pelo menos, onze horas seguidas entre dois períodos de trabalho, correspondente ao auto de notícia número 161100190. Vd. ponto 22 das Conclusões do Advogado-Geral.12 O respetivo projeto de fusão tinha sido registado perante a Conservatória do Registo Comer-cial em 22 de fevereiro de 2011, e respetivamente publicado no portal das publicações do Minis-tério da Justiça [https://publicacoes.mj.pt]. Vd. ponto 10 do Acórdão e ponto 19 das Conclusões do Advogado-Geral.

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Perante isto, em 24 de setembro de 2012, a ACT decidiu-se pela aplicação das Coimas à Modelo-Continente pelas infrações acima referidas cometidas pela Good and Cheap13.

Em virtude desta condenação, a Modelo-Continente decidiu recorrer da condenação para o Tribunal de Trabalho de Leiria, alegando a incompatibili-dade entre o direito nacional e o direito da União Europeia, nomeadamente do artigo 112.º do Código das Sociedades Comerciais com o artigo 19.º da Diretiva 2011/35, de 5 de abril de 2011.

Conforme veremos melhor abaixo, em termos gerais, a Modelo-Conti-nente recorreu da condenação com base no fundamento de que não se trans-mite para a sociedade incorporante, por efeito da fusão por incorporação, a responsabilidade da sociedade incorporada que apenas emerge, de forma defi -nitiva, depois da fusão, ainda que os factos originadores dessa responsabilidade tenham sido praticados antes da fusão.

O Tribunal de Trabalho de Leiria não conseguiu decidir se, numa situação de fusão por incorporação, “a transmissão universal do conjunto do património ativo e passivo da sociedade incorporada para a sociedade incorporante pode incluir a transfe-rência, para a sociedade incorporante, da responsabilidade pelo pagamento das coimas aplicadas por infrações de natureza contraordenacional cometidas pela sociedade incorpo-rada antes da fusão”14.

Foi neste contexto que o Tribunal de Trabalho de Leiria deduziu um pedido de decisão prejudicial15 ao Tribunal de Justiça da União Europeia res-peitante a esta matéria.

13 Para maior desenvolvimento deste procedimento, vd. pontos 23 a 25 das Conclusões do Advogado-Geral.14 Vd. ponto 14 do Acórdão.15 Atualmente, o processo das questões prejudiciais encontra-se previsto no artigo 267.º do Tra-tado de Funcionamento da União Europeia e constitui o meio contencioso que tem por objetivo a garantia da uniformidade na interpretação e na aplicação do Direito da União Europeia, sendo que visa igualmente a tutela jurídica dos particulares através de correta e válida interpretação e aplicação do Direito da União Europeia ou a revelação da desconformidade entre o Direito nacio-nal e o Direito da União Europeia. Recorrendo às palavras de Maria José Rangel de Mesquita: “este meio contencioso confi gura-se como um instrumento de cooperação entre o TJUE, por um lado, e os tri-bunais nacionais, de acordo com o qual estes últimos podem ou devem, consoante o caso, nas causas sujeitas à sua apreciação e decisão em que esteja em causa a aplicação de uma norma ou princípio de Direito de União, e quando o considerem ser necessário para a sua decisão do litígio, colocar ao TJUE uma questão prejudicial que pode incidir sobre a interpretação ou validade do Direito da União Europeia passível de tal interpretação ou apreciação de validade nos termos do artigo 267.º do TFUE.” Vd. Maria José Rangel de Mesquita, Introdução ao Contencioso da União Europeia, cit., p. 124. Para maior desenvolvimento sobre ques-tões prejudiciais de interpretação e de apreciação de validade do Direito da União Europeia, bem como de questões prejudiciais obrigatórias e facultativas, vd. idem, pp. 124-126.

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2. Breves considerações sobre a fusão

2.1. Enquadramento

Antes de avançarmos para o âmbito do pedido de decisão prejudicial dedu-zido pelo Tribunal de Trabalho de Leiria e para a análise da decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, importa enunciar breves notas sobre a fusão em geral e sobre a fusão por incorporação em particular.

No Direito da União Europeia, a matéria de fusão de sociedades comerciais é atualmente regulada pela Diretiva 2011/35/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 5 de abril de 2011, relativa às fusões das sociedades anónimas (“Diretiva 2011/35”)16.

Esta Diretiva 2011/35 procedeu à revogação do antigo regime da fusão de sociedades que constava da Terceira Diretiva 78/855/CEE do Conselho, de 9 de outubro de 1978, fundada na alínea g) do número 3 do artigo 54.º do Tra-tado CEE e relativa à fusão das sociedades anónimas, conforme alterada, pela última vez, pela Diretiva 2009/109/CE do Parlamento Europeu e do Conse-lho, de 16 de setembro de 200917 (“Terceira Diretiva”).

Conforme se pode ver abaixo, as questões prejudiciais levantadas pelo Tri-bunal de Trabalho de Leiria remetem sempre para a conjugação do direito nacional com a Diretiva 2011/35. Ora, conforme refere o Tribunal de Justiça da União Europeia18, a Diretiva 2011/35 não se encontrava em vigor à data

16 Alterada pela Diretiva 2014/59/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de maio de 2014, que estabelece um enquadramento para a recuperação e a resolução de instituições de crédito e de empresas de investimento e que altera a Diretiva 82/891/CEE do Conselho, e as Diretivas 2001/24/CE, 2002/47/CE, 2004/25/CE, 2005/56/CE, 2007/36/CE, 2011/35/UE, 2012/30/UE e 2013/36/UE e os Regulamentos (UE) n.º 1093/2010 e (UE) n.º 648/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho.17 Diploma que, por sua vez, altera as Diretivas 77/91/CEE, 78/855/CEE e 82/891/CEE do Con-selho e a Diretiva 2005/56/CE no que respeita aos requisitos em matéria de relatórios e docu-mentação em caso de fusões ou de cisões.18 Vd. pontos 21 e 22 do Acórdão.

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dos factos19, razão pela qual deve ter-se em consideração para análise e resposta das questões prejudiciais a Terceira Diretiva e não a Diretiva 2011/3520.

No entanto, uma vez que os principais artigos para a discussão em causa, nomeadamente os artigos 3.º e 19.º, são os mesmos em ambas as Diretivas, seja na numeração, seja na redação, a referência a uma ou a outra Diretiva acabar por perder relevância, pois a solução é a mesma independentemente de qual das Diretivas se aplique.

No plano nacional, a matéria da fusão de sociedades encontra-se atualmente prevista no Capítulo IX da Parte Geral do Código das Sociedades Comer-ciais21, mais propriamente nos artigos 97.º a 117.º22.

2.2. Conceito e tipos de fusão

A fusão23, a par da cisão24 e da transformação25 de sociedades, consiste numa vicissitude societária que implica uma alteração da situação ab initio da socie-dade, acarretando, por isso, de certa forma, uma alteração do equilíbrio societá-

19 Leia-se: da infração (dezembro de 2010 e janeiro de 2011), da inspeção (15 de fevereiro de 2011), da fusão por incorporação (31 de março de 2011) e da notifi cação da aplicação das Coimas à Good and Cheap (4 de abril de 2011). A data relevante não é a da aplicação das Coimas à Modelo-Con-tinente (24 de setembro de 2012), mas a data da prática dos factos originadores da infração em causa. Recorde-se que a Diretiva 2011/35 apenas entrou em vigor no dia 1 de julho de 2011. Vd. artigo 33.º da Diretiva 2011/35.20 O Advogado-Geral, nas suas conclusões, apesar de a fusão ter-se realizado ao abrigo do regime da Terceira Diretiva, preferiu referir-se apenas à Diretiva 2011/35, seguindo de perto o que foi feito pelo Tribunal de Trabalho de Leiria e pelas próprias partes do processo. Vd. ponto 5 das Conclusões do Advogado-Geral.21 Antes da entrada em vigor do atual Código das Sociedades Comerciais, o regime jurídico da fusão era regulado pelo Decreto-Lei n.º 598/73, de 8 de novembro, tendo sido no Código Comercial de 1888 que surgiu a primeira referência legislativa à fusão de sociedades. Para maior desenvolvimento, vd. António Menezes Cordeiro, Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2.ª edição (Coordenação), Almedina, Coimbra, 2014, pp. 333-336, e Joana Vasconcelos, A cisão de sociedades, Universidade Católica Portuguesa, (2001), pp. 77-86.22 A fusão transfronteiriça encontra-se igualmente regulada no Código das Sociedades Comer-ciais nos artigos 117.º-A a 117.º-L, tendo sido introduzida pela Lei n.º 19/2009, de 12 de maio, em transposição das Diretrizes n.º 2005/56/CE, de 26 de outubro, e 2007/63/CE, de 13 de novem-bro, do Parlamento Europeu e do Conselho.23 Sobre a fusão, vd., entre outros, António Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades I – Parte geral, 3.ª edição, Ampliada e Atualizada, Almedina, Coimbra, pp. 1125-1135; Paulo Olavo Cunha, Direito das sociedades comerciais, 5.ª edição, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 896-904; Diogo Costa Gonçalves, Fusão, Cisão e Transformação de Sociedades Comerciais – A Posição Jurídica dos Sócios e a Delimitação do Statuo Viae, Almedina, Coimbra, 2009; José Drago, Fusão de Sociedades Comerciais -

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rio e do status do sócio. 24Podemos dizer que a 25fusão consubstancia um fenómeno de alterabilidade das sociedades comerciais26.

A fusão consiste no facto de, em princípio27, “duas ou mais sociedades, ainda que de tipo diverso, podem fundir-se mediante a sua reunião numa só”28.

Esta “reunião” de duas ou mais sociedades numa só pode ocorrer de duas formas: (i) por fusão por incorporação, ou (ii) por fusão por concentração29.

Segundo o Código das Sociedades Comerciais30, a fusão por incorporação corresponde à transferência global do património de uma sociedade para outra e à atribuição aos sócios daquela de partes, ações ou quotas desta31.

No plano da legislação da União Europeia, a Diretiva 2011/35 e a Terceira Diretiva defi nem a fusão por incorporação como “a operação pela qual uma ou

Notas Práticas, Almedina, Coimbra, (2007); e Eduardo Fondevila Roca, Fusiones y Adquisiciones como instrumentos estratégicos del empresario, Cedecs Editorial, Barcelona, 1997.24 A cisão de sociedades corresponde à situação inversa da fusão, i.e. consiste “na separação patrimonial realizada no âmbito de uma sociedade, que origina o aparecimento de duas ou mais sociedades em substituição da sociedade que realiza a operação” (Vd. Paulo Olavo Cunha, Direito das sociedades comerciais, cit., p. 904). Pelo que uma sociedade pode (a) destacar parte do seu património para com ela consti-tuir outra sociedade (cisão simples), (b) dissolver-se e dividir o seu património, sendo cada uma das partes resultantes destinada a constituir uma nova sociedade (cisão-dissolução), ou (c) destacar partes do seu património ou dissolver-se, dividindo o seu património em duas ou mais partes, para as fundir com sociedades já existentes ou com partes do património de outras sociedades, separadas por idênticos processos e com igual fi nalidade (cisão-fusão). Em termos gerais, o processo necessário para que possa ocorrer uma cisão de sociedades é idêntico ao processo de fusão que será melhor referido abaixo. Cf. artigos 118.º, n.º1, 123.º, 124.º, 126.º a 129.º do CSC.25 A transformação de sociedades consiste no facto de uma sociedade constituída ab initio segundo um dos tipos enumerados no Código das Sociedades Comerciais (sociedade em nome coletivo, sociedade por quotas, sociedade anónima ou sociedade em comandita simples ou por ações) pas-sar a adotar outro desses tipos societários, diferente do inicial (transformação formal). Se assim for deliberado pelos sócios, podemos ainda ter, excecionalmente, uma transformação em que o seu processo implica necessariamente a extinção da sociedade transformada e a criação de uma nova sociedade de outro tipo societário que sucede à sociedade extinta de forma global e automática (transformação extintiva). Cf. artigo 130.º, n.ºs 1 e 5 do CSC.26 Vd. o nosso, Direitos Especiais dos Sócios, Almedina, Coimbra, 2015, pp. 351-355.27 A fusão não será possível, nomeadamente, a partir da data da petição de apresentação da socie-dade à insolvência ou do pedido de declaração da sociedade. Cf. artigo 97.º, n.º2 do CSC.28 Cf. artigo 97.º, n.º1 do CSC.29 Vd. Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades I – Parte geral, cit., p. 1125.30 Cf. artigo 97.º, n.º4, alínea a) do CSC.31 Um exemplo de fusão por incorporação é a designada fusão inversa (“reverse merger”) que consiste na absorção da sociedade dominante (a sociedade-mãe) pela sociedade dominada (sociedade-fi lha). Vd. Paulo Olavo Cunha, Direito das sociedades comerciais, cit., p. 900, e Eduardo Fondevila Roca, Fusiones y Adquisiciones como instrumentos estratégicos del empresario, cit., p. 142.

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várias sociedades, por meio de uma dissolução sem liquidação32, transferem para outra todo o seu património ativo e passivo, mediante a atribuição aos acionistas da sociedade ou das sociedades incorporadas de ações da sociedade incorporante e, eventualmente, de uma quantia em dinheiro não superior a 10% do valor nominal das ações assim atribuí-das ou, na falta de valor nominal, do seu valor contabilístico”33.

Por outro lado, a fusão por concentração34 corresponde à constituição de uma nova sociedade, para a qual se transferem globalmente os patrimónios das sociedades fundidas, sendo aos sócios destas atribuídas partes, ações ou quotas da nova sociedade35.

Conforme resulta do acima exposto, a fusão no caso em apreço corresponde a uma fusão por incorporação, na medida em que ocorreu uma transferência global do património da Good and Cheap para a Modelo-Continente, não se tendo verifi cado a constituição de uma nova sociedade para a qual fossem, por-ventura, transferidos globalmente os patrimónios das duas sociedades fundidas.

2.3. Tramitação

Em termos gerais, a realização de um processo de fusão envolve necessaria-mente que sejam observados uma série de trâmites, nomeadamente as seguintes fases: (1) fase da elaboração, (2) fase da fi scalização, (3) fase da aprovação em assembleia geral dos sócios e (4) eventual fase de oposição dos credores.

Em primeiro lugar, tem de ser elaborado um projeto de fusão pela admi-nistração das sociedades intervenientes que terá de conter os seguintes elemen-tos36: (a) a modalidade, os motivos, as condições e os objetivos da fusão, (b) o tipo, a fi rma, a sede, o montante do capital e o número de matrícula no registo

32 No entanto, segundo o número 2 do artigo 3.º da Diretiva 2011/35 e da Terceira Diretiva, a “legislação de um Estado-membro pode prever que a fusão mediante incorporação possa igualmente ser efetuada quando uma ou várias das sociedades incorporadas se encontrem em liquidação, desde que esta possibilidade seja dada apenas às sociedades que não tenham ainda iniciado a partilha dos ativos entre os seus acionistas”.33 Vd. artigo 3.º, número 1 da Diretiva 2011/35 e da Terceira Diretiva.34 Cf. artigo 97.º, n.º4, alínea b) do CSC.35 A Diretiva 2011/35 e a Terceira Diretiva defi nem fusão por concentração (ou utilizando a expressão das Diretivas, “fusão mediante constituição de uma nova sociedade”) como “a operação pela qual várias sociedades, por meio de uma dissolução sem liquidação, transferem para uma sociedade que elas constituem todo o seu património ativo e passivo, mediante a atribuição aos acionistas de ações da nova sociedade e, eventualmente, de uma quantia em dinheiro não superior a 10% do valor nominal das ações assim atribuídas ou, na falta de valor nominal, do seu valor contabilístico”. Cf. artigo 4.º, n.º1 da Diretiva 2011/35 e da Terceira Diretiva.36 Cf. artigo 98.º, n.º1 do CSC.

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comercial de cada uma das sociedades, bem como a sede e a fi rma da socie-dade resultante da fusão, (c) a participação que alguma das sociedades tenha no capital de outra, (d) o balanço de cada uma das sociedades intervenientes, (e) as partes, ações ou quotas a atribuir aos sócios da sociedade a incorporar e, se as houver, as quantias em dinheiro a atribuir aos mesmos sócios, especifi cando-se a relação de troca das participações sociais, (f) o projeto de alteração a introduzir no contrato da sociedade incorporante ou o projeto de contrato de sociedade da nova sociedade, conforme o caso, (g) as medidas de proteção dos direitos de terceiros não sócios a participar nos lucros da sociedade e de proteção dos direitos dos credores, (h) a data a partir da qual as operações da sociedade incorporada ou das sociedades a fundir são consideradas como efetuadas por conta da sociedade incorporante ou da nova sociedade, conforme o caso, (i) os direitos assegurados pela sociedade incorporante ou pela nova sociedade a sócios da sociedade incorporada ou das sociedade a fundir que possuem direitos especiais, (j) quaisquer vantagens especiais atribuídas aos peritos que interve-nham na fusão e aos membros dos órgãos de administração ou de fi scalização das sociedades participantes na fusão, e (l) as modalidades de entrega das ações dessas sociedades e a data a partir da qual estas ações dão direito a lucros, bem como as modalidades desse direito, quando a sociedade incorporante ou a nova sociedade seja uma sociedade anónima.

Depois de elaborado com este teor, o projeto de fusão é fi scalizado pelos órgãos de fi scalização das sociedades ou por um revisor ofi cial de contas ou por uma sociedade de revisores independente de todas as sociedades interve-nientes37. Não existindo nenhum obstáculo, o projeto de fusão é registado, procedendo-se à sua imediata publicação38.

Posteriormente, o projeto de fusão deve ser submetido a deliberação dos sócios de cada uma das sociedades intervenientes, em assembleia-geral convo-cada39 para reunir, com esse propósito, no prazo de um mês sobre a data da publicação da convocatória40. Verifi cando-se a aprovação do projeto de fusão pelas sociedades visadas, procede-se ao seu registo defi nitivo, ocorrendo a sua imediata publicação.

No entanto, os credores das sociedades alvo de fusão têm um mês a contar da publicação do registo do projeto de fusão para deduzirem oposição judicial à fusão, alegando créditos anteriores à publicação do projeto de fusão e que esta consubstancia um prejuízo para a satisfação dos seus créditos, desde que tenham

37 Cf. artigo 99.º do CSC.38 Cf. artigo 100.º, n.º1 do CSC e artigo 3.º, alínea p) do CRC.39 Sobre a convocatória, vd. artigo 100.º, n.ºs 3 e 4 do CSC.40 Cf. artigo 100.º, n.º2 do CSC.

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solicitado a satisfação destes mesmos créditos à sociedade há pelo menos 15 dias e tal não tenha sido atendido41.

2.4. Efeitos

Posto isto, não ocorrendo entraves42 e decorrendo todo o processo nor-malmente, é deliberada a fusão pelas assembleias gerais das sociedades interve-nientes, sendo posteriormente promovido o seu registo43.

Desta forma, de acordo com o artigo 112.º do Código das Sociedades Comerciais, concluído o registo constitutivo da fusão por incorporação produ-zem-se os seguintes efeitos44:

(1) a extinção das sociedades incorporadas, transmitindo-se os seus direitos e obrigações para a sociedade incorporante45; e

(2) os sócios das sociedades extintas tornam-se sócios da sociedade incorpo-rante ou da nova sociedade46-47.

No plano do Direito da União Europeia, o número 1 do artigo 19.º da Diretiva 2011/35 e da Terceira Diretiva estabelece que, em específi co, a fusão por incorporação origina essencialmente a produção de três efeitos:

41 Cf. artigo 101.º-A do CSC. Vd. efeitos da oposição, artigo 101.º-B do CSC.42 Nomeadamente, preenchidos os requisitos do artigo 103.º, n.º2 do CSC, no sentido de que tenha sido obtido o consentimento dos sócios prejudicados, para que se possa registar a fusão, quando esta: “a) aumentar as obrigações de todos ou alguns dos sócios; b) afetar direitos especiais de que sejam titulares alguns sócios; c) alterar a proporção das suas participações sociais em face dos restantes sócios da mesma sociedade, salvo na medida em que tal alteração resulte de pagamentos que lhes sejam exigidos para respeitar disposições legais que imponham valor mínimo ou certo de cada unidade de participação”. Para maior aprofundamento desta matéria, vd. o nosso, Os Direitos Especiais dos Sócios, cit., pp. 356 – 373.43 Cf. artigo 111.º do CSC.44 Para desenvolvimento sobre o fenómeno económico subjacente à fusão de empresas e sobre os efeitos da fusão nos direitos dos acionistas em geral, vd. Fernando Augusto Reis Dias, A Protecção do Accionista na Fusão de Sociedades, Universidade Católica Portuguesa, (2003), pp. 6-14 e 142-223.45 Caso se trate de uma fusão por concentração, as sociedades fundidas são extintas e os direitos e obrigações transmitem-se para a nova sociedade. Cf. artigo 112.º, alínea a) do CSC.46 Cf. artigo 112.º, alínea b) do CSC.47 A inscrição do registo da fusão na Conservatória do Registo Comercial produz ainda outros efeitos, nomeadamente, a possibilidade de os sócios que votaram contra a fusão exercerem o seu direito de exoneração, obrigando a sociedade a adquirir ou fazer adquirir a sua participação social, no prazo de um mês a contar da deliberação da fusão. Cf. artigo 105.º do CSC.

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(1) A transmissão universal do conjunto do património ativo e passivo da sociedade incorporada para a sociedade incorporante, tanto no que a estas respeita, como relativamente a terceiros;

(2) acionistas da sociedade incorporada tornam-se acionistas da sociedade incorporante48; e

(3) sociedade incorporada extingue-se.

3. Do pedido de decisão prejudicial49

Conforme foi referido acima, perante a factualidade apresentada, o Tribunal de Trabalho de Leiria teve dúvidas se, num cenário de fusão por incorporação, a transmissão universal do património ativo e passivo da sociedade incorporada para a sociedade incorporante, inclui a transmissão da responsabilidade pelo pagamento de coimas emergentes de infrações de natureza contraordenacional cometidas pela sociedade incorporada antes dessa fusão.

Em função disto, o Tribunal de Trabalho de Leiria deduziu ao Tribunal de Justiça da União Europeia, em 24 de julho de 2013, um pedido de decisão prejudicial50 composto pelas seguintes questões51:

(1) À luz do Direito da União Europeia, nomeadamente do artigo 19.°, número 1, alínea a), da Diretiva 2011/35, a fusão de sociedades implica um regime de transmissão da responsabilidade contraordenacional para a sociedade incorporante por factos cometidos pela sociedade incorpo-rada anteriormente ao registo da fusão?

(2) Poderá uma sanção de natureza contraordenacional ser considerada cré-dito de terceiros (neste caso o Estado por infração das normas do regime das contraordenações) para efeitos de aplicação da Diretiva 2011/35 transferindo-se o alegado crédito (coima) por sanção contraordenacio-nal e de que será credor o Estado para a sociedade incorporante?

48 Sem prejuízo disto, o número 2 do mesmo artigo estabelece que: “Nenhuma acção da sociedade incorporante é dada em troca de acções da sociedade incorporada que sejam possuídas: a) Quer pela própria sociedade incorporante, quer por uma pessoa que actue em nome próprio, mas por conta da sociedade; b) Quer pela própria sociedade incorporada, quer por pessoa que actue em nome próprio, mas por conta da sociedade.”49 Para maior desenvolvimento sobre este tema, vd. Maria José Rangel de Mesquita, Introdução ao Contencioso da União Europeia, cit., pp. 124-131.50 Para além da Modelo-Continente e do Governo português, os Governos alemão, húngaro e austríaco e a Comissão Europeia apresentaram observações escritas, conforme se poderá ver melhor abaixo. Vd. ponto 28 das Conclusões do Advogado-Geral.51 Vd. ponto 15 do Acórdão.

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(3) Não será o entendimento de que o artigo 112.° do CSC não implica a extinção do procedimento por contraordenação praticada anterior-mente à fusão nem da coima que lhe tenha/venha a ser aplicada, con-trária à Diretiva 2011/35 que estabelece os efeitos da fusão de socie-dades estabelecendo-se assim uma interpretação extensiva do preceito contrária aos princípios do Direito da União Europeia, nomeadamente o artigo 19.° da Diretiva?

(4) Não será este entendimento uma violação do princípio de que não pode existir contraordenação sem responsabilidade objetiva (mitigada) ou culposa da entidade incorporante?

Sem prejuízo de ter considerado a quarta questão inadmissível, em virtude de ter por objeto a interpretação de princípios do direito português e ser des-provida de qualquer referência ao Direito da União Europeia, o Tribunal de Justiça da União Europeia acabou por apreciar as restantes questões52.

Enunciado o teor do pedido de decisão prejudicial, vejamos então os ter-mos da decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia.

52 A admissibilidade de certas questões foi colocada em causa, por um lado, pelo Governo alemão que considerou que tanto a terceira como a quarta questão tinham por objeto a interpretação do direito português, e por outro lado, pelo Governo austríaco que considerou que a segunda questão era meramente hipotética, pois retrata uma situação em que a coima foi aplicada antes da fusão, ao contrário do que aconteceu no processo em causa, e ainda que a quarta questão, por se rela-cionar com a responsabilidade penal, não é regulada pela Diretiva 2011/35 e, por isso, não tem nexo com o Direito da União Europeia conforme é exigido pelo artigo 51.º da Carta dos Direi-tos Fundamentais da União Europeia. No entanto, o Tribunal de Justiça da União Europeia, na esteira do que já tinha sido a opinião do Advogado-Geral, não considerou que a segunda questão fosse meramente hipotética, pois entende que não se depreende da segunda questão que esta vise uma situação em que a coima tenha sido aplicada antes da fusão. Por outro lado, a terceira questão visa obter a interpretação do artigo 19.º da Diretiva 2011/35 de forma a aferir se a interpretação do artigo 112.º do Código das Sociedades Comerciais é contrária ou não ao Direito da União Europeia, pelo que também em relação a esta o Tribunal de Justiça da União Europeia, bem como o Advogado-Geral, entenderam que a questão era admissível. O Tribunal de Justiça da União Europeia e o Advogado-Geral apenas vieram dar razão a estas críticas no que concerne à quarta questão, por entender que esta tem por objeto a interpretação de princípios do direito português e é desprovida de qualquer referência ao direito da União Europeia, pelo que não competindo ao Tribunal de Justiça da União Europeia pronunciar-se sobre a interpretação de regras do direito nacional ou sobre a interpretação dada pelos tribunais portugueses, a quarta questão tem de ser considerada inadmissível e excluída de qualquer apreciação. Vd. pontos 16 a 20 do Acórdão e pontos 31 a 34 das Conclusões do Advogado-Geral.

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4. Da decisão do Tribunal de Justiça

No entender do Tribunal de Justiça da União Europeia, para que se possa dar respostas às questões prejudiciais levantadas pelo Tribunal de Trabalho de Leiria é preciso determinar se a responsabilidade contraordenacional de uma sociedade deve ser considerada parte do património passivo dessa sociedade, sendo que, neste caso, se trata da obrigação de pagamento de uma coima fi xada, em defi nitivo, após a fusão por incorporação da sociedade incorporada relativa-mente a infrações cometidas por esta antes da fusão53.

Conforme refere o Tribunal de Justiça da União Europeia54, na esteira do defendido pelos intervenientes do processo, é pacífi co que uma coima fi xada por decisão defi nitiva antes da fusão por incorporação de duas sociedades que não tenha sido ainda paga seja considerada como parte integrante do patrimó-nio passivo da sociedade que é incorporada.

Outra questão é a de saber se, tal como acontece neste caso, numa situação em que a coima é apenas fi xada de forma defi nitiva depois da fusão por incor-poração das sociedades, o não pagamento da coima consubstancia património passivo da sociedade que é incorporada. Os Governos português e húngaro e a Comissão Europeia55 entenderam que também neste caso o não pagamento da coima é parte do património passivo da sociedade, enquanto que a Modelo--Continente e o Governo alemão entenderam o contrário.

Perante esta questão, o Tribunal de Justiça da União Europeia entendeu, com recurso ao artigo 19.º, número 1 da Terceira Diretiva, que a respon-sabilidade contraordenacional deveria ser considerada património passivo da sociedade incorporada, conduzindo necessariamente à sua transmissão para a sociedade incorporante em virtude da fusão. Aliás, o Tribunal de Justiça da União Europeia considerou que se a responsabilidade não fosse transmitida da sociedade incorporada para a sociedade incorporante, enquanto parte do património passivo da sociedade incorporada, então a responsabilidade extin-guia-se56, o que não seria admissível.

Por isso, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que a “fusão por incorporação implica a transmissão, para a sociedade incorporante, da obrigação de pagar

53 Vd. ponto 24 do Acórdão.54 Vd. ponto 25 do Acórdão.55 Para maior desenvolvimento sobre a Comissão Europeia, vd. Fausto de Quadros, Direito da União Europeia, cit., pp. 342-359; e Miguel Gorjão-Henriques, Direito da União Europeia – His-tória, Direito, Cidadania, Mercado Interno e Concorrência, cit., pp. 180-197.56 Vd. ponto 28 do Acórdão.

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uma coima aplicada por decisão defi nitiva, depois da referida fusão, por infrações ao direito do trabalho cometidas pela sociedade incorporada antes da referida fusão”57.

5. Apreciação crítica

5.1. Delimitação do objeto

O ponto central deste caso prende-se com a questão de se saber se a fusão de duas sociedades com recurso à modalidade de fusão por incorporação implica ou não a transmissão da sociedade incorporada para a sociedade incorporante da obrigação de pagamento de uma coima aplicada depois de registada a fusão mas que se refere a infrações emergentes de condutas praticadas pela sociedade incorporada antes da fusão.

No caso concreto, importa determinar se a fusão por incorporação da Good and Cheap na Modelo-Continente origina uma transmissão da obrigação pelo pagamento das Coimas da primeira para a segunda, quando o Estado-Portu-guês, na qualidade de credor e através da ACT, apenas fi xou, em defi nitivo, o pagamento dessas Coimas depois da fusão, apesar de os factos que geraram as Coimas terem ocorrido antes da fusão.

Como vimos acima, o Tribunal de Justiça da União Europeia, no segui-mento do defendido pelo Advogado-Geral, entendeu que, em geral, a res-ponsabilidade contraordenacional da sociedade incorporada transmite-se para a sociedade incorporante por efeito da fusão por incorporação e, em especial, que a responsabilidade por pagamento das Coimas da Good and Cheap trans-mitiu-se para a Modelo-Continente por efeito da fusão por incorporação, ape-sar de os factos que geraram as Coimas terem ocorrido antes da fusão.

No nosso entendimento, a análise desta questão implica que se aborde indi-vidualmente os seguintes pontos: (1) o conceito de “património passivo” para efeitos da alínea a) do número 1 do artigo 19.º da Diretiva 2011/3558, (2) se a sociedade incorporante é responsável pelo pagamento de coimas que emergem de infrações cometidas pela sociedade incorporada antes da fusão por incorpo-ração, mas que só foram aplicadas em defi nitivo após essa mesma fusão, e (3) o âmbito de tutela dos terceiros conferido pelo regime de fusão de sociedades.

57 Vd. ponto 35 do Acórdão.58 Recorde-se que, como dito acima, quando se refere ao artigo 19.º da Diretiva 2011/35, tal engloba também uma referência ao antigo regime incluído na Terceira Diretiva, uma vez que as disposições são iguais.

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5.2. Património passivo e responsabilidade contraordenacional

Como vimos acima, resulta do artigo 19.º, número 1, alíneas a) e c) da Diretiva 2011/35 e da anterior Terceira Diretiva que a fusão por incorporação conduz necessariamente à transmissão universal do conjunto de património ativo e passivo da sociedade incorporada para a sociedade incorporante, bem como a extinção da sociedade incorporada59.

Perante isto, importa, desde logo, determinar o que se entende por patrimó-nio passivo para efeitos do artigo 19.º, número 1, alínea a) da Diretiva 2011/35 e da anterior Terceira Diretiva. Em concreto, importa determinar se uma res-ponsabilidade contraordenacional fundada na obrigação de pagamento de uma coima deve ser tida em conta como parte do património passivo da sociedade incorporada.

De facto, a Diretiva 2011/35 não consagra uma defi nição de “patrimó-nio passivo”, nem estabelece uma remissão expressa para o direito interno dos Estados-Membros tendo em vista a sua defi nição60. Tal como não acontecia na Terceira Diretiva61.

Para o Governo austríaco, a responsabilidade contraordenacional está excluída do conceito de património passivo, uma vez que o artigo 19.º, número 1, alínea a) da Diretiva 2011/35 apenas é aplicável à responsabilidade civil, pelo que tendo as Coimas uma natureza de responsabilidade contraordenacional com carácter penal estão necessariamente fora do âmbito de aplicação deste regime62.

59 Vd. Eduardo Fondevila Roca, Fusiones y Adquisiciones como instrumentos estratégicos del empre-sario, cit., p. 131.60 Não obstante, conforme refere o ponto 27 do Acórdão, “decorre tanto das exigências da aplica-ção uniforme do direito da União como do princípio da igualdade que os termos de uma disposição do direito da União que não contenha uma remissão expressa para o direito dos Estados-Membros para determinar o seu sentido e o seu alcance devem normalmente ser objeto, em toda a União Europeia, de uma interpretação autónoma e uniforme, que deve ser procurada tendo em conta o contexto da disposição e do objetivo prosse-guido pela regulamentação em causa”. Para maior desenvolvimento, vd. notas 8 e 9 das Conclusões do Advogado-Geral.61 Vd. a Quarta Diretiva 78/660/CEE do Conselho, de 25 de julho de 1978, baseada no artigo 54.º, n.º 3, alínea g), do Tratado e relativa às contas anuais de certas formas de sociedades, entretanto revogada pela Diretiva 2013/34/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de junho de 2013, relativa às demonstrações fi nanceiras anuais, às demonstrações fi nanceiras consolidadas e aos relatórios conexos de certas formas de empresas, que altera a Diretiva 2006/43/CE do Par-lamento Europeu e do Conselho. Para maior desenvolvimento, vd. pontos 55 a 59 e nota 15 das Conclusões do Advogado-Geral.62 Vd. ponto 38 e 46 das Conclusões do Advogado-Geral.

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Para a Modelo-Continente e para o Governo alemão, a “transmissão uni-versal, no momento de uma fusão por incorporação, do conjunto do património ativo e passivo da sociedade incorporada à sociedade incorporante, como previsto pelo artigo 19.°, n.º 1, alínea a), da Diretiva 2011/35, inclui a transmissão das dívidas da sociedade incorporada” 63. Ou seja, é transmitida todo o tipo de responsabilidade da socie-dade incorporada para a sociedade incorporante, sendo que a responsabilidade contraordenacional é tida como património passivo.

Para os Governos português e húngaro e para a Comissão Europeia, a trans-missão prevista na alínea a) do número 1 do artigo 19.º da Diretiva 2011/35 tem um carácter universal pelo que implica que inclua todo o tipo de respon-sabilidade da sociedade incorporada, ou seja, “uma coima deve ser considerada um crédito do Estado, que esta diretiva visa proteger enquanto credor. A referida coima faz, portanto, parte do passivo de uma sociedade incorporada por fusão e, nesse sentido, é transmitida à sociedade incorporante.”64.

Para o Advogado-Geral, o património passivo corresponde “ao conjunto das dívidas que oneram o conjunto dos bens e das obrigações de uma mesma pessoa, entendido no sentido de que forma uma universalidade de direito”65. Razão pela qual, no seu entender, o âmbito de aplicação deste artigo abrange “qualquer dívida possível, independentemente da sua origem e da natureza da responsabilidade civil, penal ou quase penal, desde que se trate da responsabilidade da própria sociedade incorporada e que a mesma se possa traduzir num valor monetário”66. Por estas razões, o Advogado--Geral entende que “todas as dívidas que oneram uma sociedade participante numa fusão, incluindo dívidas a favor do Estado, fazem parte do seu património passivo e são, portanto, automaticamente e sem quaisquer outras condições, transmitidas à sociedade que resulta da fusão”67.

Na nossa opinião, apesar de a Diretiva 2011/35 e a anterior Terceira Dire-tiva não defi nirem, expressamente, o que se deve entender por “património passivo” da sociedade incorporada para efeitos do artigo 19.º, não nos parece que exista margem para levantar grandes dúvidas que este conceito inclui a responsabilidade contraordenacional68.

63 Vd. ponto 36 das Conclusões do Advogado-Geral.64 Vd. ponto 40 das Conclusões do Advogado-Geral.65 Vd. ponto 48 das Conclusões do Advogado-Geral.66 Vd. ponto 49 das Conclusões do Advogado-Geral.67 Vd. ponto 52 das Conclusões do Advogado-Geral.68 Atualmente, o regime geral das contraordenações encontra-se previsto Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, que no seu artigo 1.º estabelece que “constitui contra-ordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima”. Ou seja, constitui uma contraor-denação qualquer facto para o qual esteja prevista na lei a aplicação de uma coima. Para maior desenvolvimento, vd. Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, Contra-Ordenações, Ano-

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Da transmissão da responsabilidade contraordenacional na fusão por incorporação 657

Não podemos aceitar a posição do Governo austríaco no sentido de que a Diretiva 2011/35 quando, no seu artigo 19.º, número 1, alínea a), se refere à transmissão universal do passivo da sociedade incorporada trata-se apenas da responsabilidade civil da sociedade incorporada, deixando de fora a responsabi-lidade contraordenacional69. Essa interpretação não tem correspondência com a letra da lei, nem com a ratio da disposição em causa. Ora vejamos.

A alínea a) do número 1 do artigo 19.º da Diretiva 2011/35 e da anterior Terceira Diretiva refere expressamente “transmissão universal do património passivo” da sociedade incorporada. Ora, se se utiliza a expressão “transmissão universal do património passivo”, então isto só pode signifi car que a fusão por incorporação implica a transmissão de todo e qualquer passivo, pelo que terá de incluir todo o tipo de responsabilidades da sociedade incorporada.

Desta forma, não existe margem, nem fundamento para alegar que está ape-nas em causa a transmissão da responsabilidade civil e não também a transmissão da responsabilidade penal e contraordenacional. Esta distinção nem é defendida pela Modelo-Continente nas suas observações escritas, onde, conforme consta acima, refere que, por via da alínea a) do número 1 do artigo 19.º ocorre uma transmissão das dívidas da Good and Cheap para a Modelo-Continente, devido à fusão por incorporação.

De facto, fazer essa distinção, conforme o Governo austríaco o faz, seria incoerente e desprovido de sentido, uma vez que estar-se-ia a fazer uma dis-tinção quando a própria lei não a faz. Se a ratio da disposição fosse a de estabe-lecer apenas a transmissão da responsabilidade civil, por certo que a redação do artigo seria diferente e conteria expressamente que a fusão por incorporação implica a transmissão da responsabilidade civil da sociedade incorporada para a sociedade incorporante. O que não acontece neste caso e mesmo que acon-tecesse não seria possível destrinçar as razões subjacentes a essa distinção, pois, conforme veremos abaixo, se a sociedade incorporada se extingue, a não trans-missão das suas responsabilidades implica necessariamente que estas igualmente se extingam.

Outro argumento que demonstra que a “transmissão universal do patrimó-nio passivo” engloba todo o tipo de passivo e de responsabilidade da sociedade incorporada é a versão inglesa do artigo 19.º, número 1, alínea a) da Diretiva 2011/35 que estabelece que “A merger shall have the following consequences ipso

tações ao Regime Geral, 6.ª edição, Áreas Editora, 2011, pp. 47 a 84; e Sérgio Passos, Contra-Or-denações, Anotações ao Regime Geral, 3.º edição (Revista e Atualizada), Almedina, Coimbra, 2009.69 Vd. neste sentido, sobre o teor do artigo 112.º do CSC, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de junho de 2002 (Processo n.º 0035024 – Relator: Sarmento Botelho), dispo-nível em http://www.dgsi.pt.

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jure and simultaneously: (a) the transfer, both as between the company being acquired and the acquiring company and as regards third parties, to the acquiring company of all the assets and liabilities of the company being acquired; (…)”70.

O recurso à expressão “all liabilities” demonstra que não existem margem para dúvidas que a responsabilidade contraordenacional corresponde indiscuti-velmente a uma “liability”71 da sociedade incorporada72.

Em sentido idêntico, a alínea a) do artigo 112.º do Código das Sociedades Comerciais consagra igualmente a transmissão dos direitos e obrigações para a sociedade incorporante, bem como a extinção da sociedade que é incorporada.

Apesar de não ter prevalência sobre o disposto na Diretiva 2011/35, o artigo 112.º do Código das Sociedades Comerciais também não prevê qualquer distinção sobre as responsabilidades que são ou não transmitidas para a socie-dade incorporante, uma vez que a alínea a) do artigo refere apenas a transmis-são73 dos direitos e obrigações74 da sociedade incorporada para a incorporante. Razão pela qual se deve entender que se transmitem todos os direitos, todas as obrigações, todas as responsabilidades da sociedade incorporada para a socie-dade incorporante por efeito da fusão por incorporação75.

Em Portugal, esta questão já foi também bastante discutida tendo sido alvo de um acórdão uniformizador de jurisprudência: o Acórdão n.º 5/2004 (Pro-cesso n.º 4208/2003) de 2 de junho de 2004 (“Acórdão Uniformizador”)76.

70 Negrito nosso.71 Note-se que o termo “liability” signifi ca “o estado de alguém ser legalmente responsável por algo” (“the state of being legally responsible for something”). Vd. Oxford Advanced Learner’s Diction-nary, 9th Edition, Oxford University Press, 2015, p. 896.72 No mesmo sentido, vd. pontos 50 e nota 13 das Conclusões do Advogado-Geral.73 Sobre a infeliz utilização da expressão “transmissão” pelo artigo 112.º do CSC e a teoria da sucessão universal e a teoria do ato modifi cativo, vd. Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades I – Parte geral, cit., pp. 1131-1135; e Diogo Costa Gonçalves, Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2.ª edição (Coordenação: António Menezes Cordeiro), cit., pp. 413-414 e 416, e do mesmo autor, Fusão, Cisão e Transformação de Sociedades Comerciais – A Posição Jurídica dos Sócios e a Delimitação do Statuo Viae, cit., pp. 117-133.74 Conforme refere Diogo Costa Gonçalves, “direitos e obrigações” correspondem a “(…) todas as situações jurídicas anteriormente tituladas pelas sociedades incorporadas ou fundidas, seja qual for a sua classifi cação técnico-formal”. Vd. Diogo Costa Gonçalves, Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2.ª edição (Coordenação: António Menezes Cordeiro), cit., p. 413.75 Vd. neste sentido o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de outubro de 2011 (Processo n.º 32/05.2TAPCV.C2.S1 - Relator: Armindo Monteiro) e o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 10 de fevereiro de 2010 (Processo n.º 0925/09 - Relator: Alfredo Madu-reira), ambos disponíveis em http://www.dgsi.pt.76 Vd. Diário da República - I Série-A, n.º144, de 21 de junho de 2004, pp. 3786-3796.

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O objeto da discussão prendia-se com a questão de saber se a extinção da sociedade incorporada por efeito da fusão extingue a responsabilidade contraor-denacional da sociedade incorporada por infrações cometidas antes da fusão.

O principal argumento utilizado no sentido da extinção da responsabili-dade contraordenacional da sociedade incorporada prendia-se com o facto de o artigo 32.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro (“Regime Geral das Contraordenações”)77 estabelecer que são subsidiariamente aplicáveis as normas do Código Penal, e, por conseguinte, o artigo 128.º do Código Penal estabe-lecer que a morte do agente extingue o procedimento criminal78. Desta forma, defendia-se, com recurso à analogia, que a extinção da sociedade incorporada extingue também os procedimentos contraordenacionais que lhe sejam impu-tados equiparando-se a extinção da pessoa coletiva à morte da pessoa física, uma vez que a responsabilidade penal é intransmissível segundo o artigo 30.º, número 3 da Constituição da República Portuguesa79.

O Acórdão Uniformizador veio desmontar a ideia segundo a qual a “extin-ção” de uma pessoa colectiva pode ser equiparada à “morte” de uma pessoa física. Segundo o Acórdão Uniformizador, a “morte, que faz cessar a personalidade da pessoa singular, faz também, natural e necessariamente, extinguir a responsabilidade criminal e por contra-ordenações, porque esta é inerente à pessoa e à sua capacidade de acção, de vontade e de culpa e não pode transmitir-se para além da vida, como se transmi-tem para os sucessores responsabilidades de outra natureza que integrem o complexo dos direitos e deveres jurídicos de uma pessoa”, por outro lado a “extinção de uma pessoa colectiva, diversamente, por ser uma criação instrumental do direito, pode não determi-nar, por si mesma, que nada de si permaneça, continuando alguma substância afecta ao desempenho, ainda, sob uma outra perspectiva jurídico-funcional, das fi nalidades da pessoa colectiva que foram a sua razão de ser”, pelo que a “morte, relevante no sentido normativo e especifi camente no campo penal, não é, como se salientou, pensável senão em relação aos seres humanos”.

Ainda na mesma perspetiva, o Acórdão Uniformizador refere que a “fusão signifi ca, pois, ao contrário da «morte», perspectiva de melhor e mais sustentada continui-dade económica, por redução de riscos, obtenção de economias de escala e racionalização, obtenção de complementaridade tecnológica, redução da ameaça competitiva, superação

77 “Em tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fi xação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal.”78 “A morte do agente extingue tanto o procedimento criminal como a pena ou a medida de segurança.”79 Vd. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19 de junho de 2002 (Processo n.º 0035024 – Relator: Sarmento Botelho), disponível em http://www.dgsi.pt.

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de barreiras de ingresso no caso de internacionalização e benefício dos conhecimentos das empresas incorporadas”80.

Perante isto, por entender que não estavam reunidos os pressupostos neces-sários para se considerar a analogia das soluções, pois a morte da pessoa física não é equiparável à extinção da pessoa coletiva81, o Supremo Tribunal de Jus-tiça fi xou a jurisprudência no sentido de que “A extinção, por fusão, de uma socie-dade comercial, com os efeitos do artigo 112.º, alíneas a) e b), do Código das Sociedades Comerciais, não extingue o procedimento por contra-ordenação praticada anteriormente à fusão, nem a coima que lhe tenha sido aplicada”.

No entanto, ainda antes do Acórdão Uniformizador82, já a maioria da jurisprudência nacional era do entendimento de que, com base no disposto no artigo 112.º do Código das Sociedades Comerciais, a responsabilidade con-traordenacional da sociedade incorporada não se extingue por efeito da fusão por incorporação, mas transmite-se à sociedade incorporante.

A título de exemplo, refi ra-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17 de novembro de 2003 (Processo n.º 0210458 – Relator: Machado da Silva)83 que corroborou o entendimento do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 31 de janeiro de 200284, no sentido de que “tendo uma socie-dade bancária sido incorporada, por fusão, numa outra, esta é responsável pelos ilícitos contraordenacionais cometidos pela primeira, não se extinguindo com o acto da fusão o procedimento contraordenacional que seja devido”, pois “o art. 112.º, alínea a), do

80 O Supremo Tribunal de Justiça refere ainda no Acórdão Uniformizador que “Já se deixou avan-çado que a transmissão da responsabilidade por contra-ordenações, no caso de fusão de sociedades, não estando excluída pela natureza das coisas, também não está impedida pela dimensão relevante do princípio da intrans-missibilidade da responsabilidade penal (e, por aplicação derivada, por contra-ordenação), que está construído para as pessoas físicas. O princípio tem aplicação quando puder dizer-se como é o caso da pessoa física – que nada fi ca de si mesma para além da morte e que, consequentemente, a transmissão da responsabilidade só poderia eventualmente ocorrer (sucessão) para outra pessoa física e juridicamente diversa; poderá dizer-se, em linguagem marcada num registo antejurídico, que a pessoa transporta, leva consigo, suporta, a responsabilidade sem que possa transferir um tal ónus para outrem. Diverso é, porém, quer pela imediata confi guração material quer pela racionalidade intrínseca ao princípio, o plano em que opera fusão das sociedades: aqui a sociedade que (instrumentalmente) se extingue, constituída por corpus (património) e sócios, permanece com todos estes elementos de substância que continua a transportar e a levar consigo para o novo «lugar jurídico» em que toda a sua substância (realidade material e pessoal) vai instalar-se.”81 Vd. neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4 de fevereiro de 2004 (Processo n.º 9963/2002-4 – Relator: Paula Sá Fernandes), disponível em http://www.dgsi.pt.82 Vd. no mesmo sentido e posteriormente ao Acórdão Uniformizador, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18 de abril de 2005 (Processo n.º 0446183 – Relator: Fernandes Isidoro), disponível em http://www.dgsi.pt.83 Disponível em http://www.dgsi.pt.84 Vd. Coletânea de Jurisprudência de 2002, Tomo I, pp. 62-63.

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C.S.C., ao determinar a extinção das sociedades fundidas, não deixa de transmitir para a sociedade incorporante (ou para a nova sociedade resultante da fusão) todos os direitos e obrigações da(s) sociedade(s) extinta(s). O que signifi ca que, praticada uma infracção por esta, é aquela responsável, como se a infracção tivesse sido por si cometida. A aludida responsabilidade, por força da lei, passa da sociedade que fundou para aquela em que se incorporou (ou que de novo nasceu)”.

Ainda no mesmo sentido, refi ra-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4 de fevereiro de 2004 (Processo n.º 9963/2002-4 – Relator: Paula Sá Fernandes)85 que decidiu no sentido de que “quando uma sociedade, que é arguida num processo de contra-ordenação, é incorporada, por fusão, numa outra, não se extingue a responsabilidade contra-ordenacional, que, através da fusão é assumida pela sociedade incorporante”, uma vez que “não estando a responsabilidade contra--ordenacional dependente da personalidade jurídica, mas antes da existência do ente colectivo, e que aquela realidade permanece viva na sociedade incorporante, concluímos que não houve uma verdadeira extinção do ente colectivo no âmbito da actividade do qual foi detectada a infracção, tendo apenas sido incorporada numa outra sociedade, e permanecendo assim vivo o ente colectivo a quem foi aplicada coima, a responsabilidade é agora da sociedade incorporante, porque a ela se transmitiu toda a realidade sociológica que aquele pressupunha, ou seja, a sociedade incorporante ao assumir toda a realidade da sociedade incorporada assumiu igualmente todas as suas responsabilidades, caso assim não se entenda, seria permitir toda a espécie de fraude e de impunidade, decorrente da fusão das empresas, o que não foi certamente a intenção do legislador, com o regime da fusão das sociedade comerciais”.

Desta forma e retomando ao caso em apreço, somos da opinião que, para efeitos do artigo 19.º da Diretiva 2011/35, a responsabilidade contraordena-cional, tal como todas as demais responsabilidades da sociedade incorporada, encontra-se incluída no conceito de património passivo, pelo que essa respon-sabilidade é necessariamente transmitida para a sociedade incorporante. Não existe, por isso, qualquer incompatibilidade entre o artigo 19.º da Diretiva 2011/35 e o artigo 112.º do Código das Sociedades Comerciais, daí que a res-posta à terceira questão do pedido prejudicial tenha de ser negativa. Por outro lado, a resposta às duas primeiras questões, pelas razões já enunciadas e pelo que será melhor explicitado abaixo, terá de ser positiva.

Assim, sem prejuízo da análise seguinte, no que se refere ao âmbito do património passivo conforme estabelecido na alínea a) do número 1 do artigo 19.º da Diretiva 2011/35, a obrigação de pagamento das Coimas transmitiu-

85 Disponível em http://www.dgsi.pt.

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-se da Good and Cheap para a Modelo-Continente por efeito da fusão por incorporação.

5.3. Da transmissão do património passivo

Como vimos, parece-nos ponto assente que o património passivo referido na alínea a) do número 1 do artigo 19.º da Diretiva 2011/35 inclui todo o tipo de responsabilidade que a sociedade incorporada tenha e, por isso, essa responsabilidade é transmitida à sociedade incorporante por efeito da fusão por incorporação.

Posto isto, importa agora determinar se a transmissão da responsabilidade contraordenacional da sociedade incorporada para a sociedade incorporante ocorre quando a fi xação defi nitiva da responsabilidade surge num momento posterior à fusão por incorporação, apesar de ter por base infrações cometidas pela sociedade incorporada antes da fusão.

Ou seja, importa saber se é abrangida pelo artigo 19.º da Diretiva 2011/35 uma coima emergente de factos anteriores à fusão por incorporação, mas fi xada de forma defi nitiva depois ao registo da fusão.

Recorde-se que, no presente caso, a ACT apenas aplicou as Coimas à Modelo-Continente a 24 de setembro de 2012, tendo a fusão por incorpora-ção da Good and Cheap na Modelo-Continente ocorrido em 31 de março de 2011 e os factos originadores da aplicação das Coimas ocorrido em dezembro de 2010 e janeiro de 2011.

Apesar de ter aceitado, como vimos acima, que a responsabilidade con-traordenacional faz parte do conceito de património passivo para os efeitos previstos na alínea a) do número 1 do artigo 19.º da Diretiva 2011/35 sendo, por isso, transmitida da sociedade incorporada para a sociedade incorporante por efeito da fusão por incorporação, a Modelo-Continente alegou que “uma coima contraordenacional aplicada a esta última [sociedade incorporada] só pode ser considerada um crédito do Estado – e, por conseguinte, uma dívida da sociedade incor-porada – a partir do momento em que o Estado dispõe de uma decisão, administrativa ou judicial, defi nitiva, no sentido de que tem força executória. Ora, no caso vertente, a fusão ocorreu antes da adoção desta decisão e, por conseguinte, a responsabilidade con-traordenacional da Good and Cheap pelas infrações ao direito do trabalho em causa não se transmitiu à MCH”86.

86 O Governo alemão adotou este mesmo entendimento. Vd. ponto 36 das Conclusões do Advogado-Geral.

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Da transmissão da responsabilidade contraordenacional na fusão por incorporação 663

No entender da Modelo-Continente, o facto de a decisão defi nitiva sobre a aplicação das Coimas ter ocorrido depois da fusão por incorporação implica necessariamente que a obrigação pelo pagamento das Coimas não se tenha transmitido para a Modelo-Continente. Para a Modelo-Continente, só existe uma responsabilidade contraordenacional depois de serem aplicadas as Coimas através de decisão defi nitiva, tendo esta ocorrido depois da fusão, não é possí-vel que haja uma transmissão da responsabilidade para a Modelo-Continente. Pelo que, no seu entendimento, a Modelo-Continente não é responsável pelo pagamento das Coimas.

Já o Advogado-Geral entende que as dívidas emergentes de factos ocorridos antes da fusão fazem parte do património passivo da sociedade que é incorpo-rada e, por conseguinte, são transmitidas para a sociedade incorporante87. Pelo que se encontra plenamente preenchida a alínea a) do número 1 do artigo 19.º da Diretiva 2011/35.

Não concordamos com o entendimento defendido pela Modelo-Conti-nente, segundo o qual não existe uma transmissão da responsabilidade pelo pagamento das Coimas da Good and Cheap para a Modelo-Continente porque a aplicação defi nitiva das Coimas ocorreu depois da fusão por incorporação.

Este entendimento é desprovido de qualquer sentido, pelo que não o pode-mos acompanhar. Ora vejamos.

Como vimos acima, a fusão por incorporação implica que uma sociedade se incorpore noutra sociedade, originando uma transmissão universal do conjunto do seu ativo e passivo, bem como os sócios da sociedade incorporada passa-rem a integrar-se no universo acionista da sociedade incorporante. Tanto o artigo 19.º, número 1 da Diretiva 2011/35 como o artigo 112.º do Código das Sociedades Comerciais estabelecem que, além disso, a fusão por incorporação implica necessariamente a extinção da sociedade incorporada.

Desta forma, a partir de 31 de março de 2011 (data do registo da fusão) o património ativo e passivo da Good and Cheap transmitiu-se universalmente para a Modelo-Continente. Isto signifi ca (i) a transmissão de todos os bens e de todas as dívidas, bem como (ii) a extinção da Good and Cheap que deixou de existir como pessoa coletiva. Ou seja, quando a 24 de setembro de 2012, a ACT aplicou as Coimas à Modelo-Continente, fê-lo porque houve uma fusão por incorporação e porque a Good and Cheap já não existia, mas toda a sua realidade foi transmitida para a Modelo-Continente.

87 Vd. ponto 54 das Conclusões do Advogado-Geral.

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Ora, o facto da aplicação defi nitiva das Coimas apenas ter ocorrido depois da fusão, não pode implicar que a exoneração da responsabilidade da Modelo--Continente pelo pagamento das Coimas ao Estado português.

Em primeiro lugar, a aplicação das Coimas teve como origem infrações cometidas pela Good and Cheap antes da fusão e até já existia um procedi-mento aberto pela ACT contra a Good and Cheap antes do registo da fusão, em virtude da inspeção da ACT que ocorreu em 15 de fevereiro de 2011.

Perante esta factualidade, não se pode afi rmar que estamos perante uma situação completamente desconhecida da Good and Cheap e que poderia (se é que não foi) ter sido perfeitamente transmitida à Modelo-Continente, para que esta se pudesse, caso assim o entendesse, salvaguardar de alguma forma, tendo em vista não ser eventualmente responsabilizada pelo pagamento das Coimas88.

Por outro lado, se a responsabilidade não se transmitisse da sociedade incor-porada para a sociedade incorporante, isto signifi caria que a responsabilidade se extinguiria, pois a sociedade incorporada por efeito da fusão extinguiu-se.

Tal situação não se compagina com o regime da fusão por incorporação, uma vez que, se perante a fusão as eventuais responsabilidades da sociedade incorporada não se transmitissem para a sociedade incorporante e fossem extin-tas, então isso signifi caria que a fusão por incorporação seria um mecanismo que permitiria à sociedade incorporada ver-se exonerada de todas as responsa-bilidades que emergissem de infrações cometidas anteriormente à fusão89. Esta solução perverteria todo o sistema da fusão por incorporação e seria altamente lesivo aos interesses do Estado em causa90, que devido à fusão por incorporação realizada pela sociedade incorporada, veria a responsabilidade pelo pagamento das coimas extinguir-se91.

88 Perante a realidade que existia ao tempo da fusão e tendo em consideração que tinha sido rea-lizada uma inspeção da ACT na Good and Cheap, não se pode defender que não existiria o risco de a qualquer altura a Good and Cheap poder ser, porventura, condenada ao pagamento de Coi-mas. Desta forma, não nos parece que se poderá também negar a transmissibilidade da respon-sabilidade pelo pagamento das Coimas com base no facto de ser um evento imprevisível para a Modelo-Continente.89 Vd. neste sentido ponto 33 do Acórdão.90 Conforme refere o Ministério Público no recurso que deu origem ao Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18 de abril de 2005 (Processo n.º 0446183 – Relator: Fernandes Isidoro): “Esta solução não é a mais adequada, pois deixa na mão da sociedade arguida a faculdade de legitimamente, mediante uma operação de engenharia jurídica, frustrar a pretensão punitiva do Estado, continuando, porém, o seu corpus a existir e a poder gerar lucros, posto que sobre outro nome e nova identidade”.91 Vejam-se os exemplos elencados pelo Advogado-Geral no ponto 60 das suas Conclusões: (1) “na véspera da fusão de duas sociedades petrolíferas, uma delas provoca uma catástrofe ambiental devido a um derramamento de petróleo no mar. Se aceitássemos a interpretação segundo a qual, para poder ser transferida para a sociedade incorporante, uma dívida da sociedade devedora deve existir, ser certa e exigível antes da fusão,

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Da transmissão da responsabilidade contraordenacional na fusão por incorporação 665

Conforme refere o Advogado-Geral92, a extinção da responsabilidade seria contrária à natureza própria da fusão por incorporação, conforme defi nida no artigo 3.º, número 1 da Diretiva 2011/35, pois nesse contexto a fusão consiste na transferência global do património da sociedade incorporada para a socie-dade incorporante.

O Governo alemão considera que a data de referência para a determinação do montante do património ativo e passivo a transmitir é a data em que a fusão se torna efetiva93. Esta posição não pode ser seguida, uma vez que ignora o facto de o património passivo não se algo automático que se obtém com uns simples cálculos. Em geral, é sempre difícil de determinar com toda a segu-rança que uma determinada sociedade não tem dívidas para com terceiros94, pois podem surgir contingências que se reportem a factos antigos mas que se manifestem muito tempo depois, como é o caso em apreço. A forma de pro-teção dos novos proprietários da sociedade não é excluindo a responsabilidade da sociedade incorporada, mas salvaguardar os seus interesses em acordos que limitem a sua responsabilidade, como veremos melhor abaixo.

Desta forma, a data de registo da fusão não pode ser a data de referência para determinação do património activo e do passivo da sociedade incorpo-rada. Essa data de referência em concreto não existe, pois as dívidas conhecidas e as dívidas não conhecidas na data de registo da fusão transmitem-se para a sociedade incorporante, sem prejuízo de esta e os seus acionistas se protegerem previamente quanto a essas dívidas não conhecidas.

Outra questão que se poderia discutir seria se a fi nalidade inerente à con-denação da sociedade incorporada, na qualidade de entidade empregadora, ao pagamento de uma coima por infração das regras laborais em causa não deixa de se extinguir em virtude da fusão por incorporação. A existência da res-ponsabilidade contraordenacional baseia-se no facto de a Good and Cheap ter infringido as regras sobre o intervalo de descanso e o descanso diário dos seus trabalhadores, sendo que a fi nalidade da condenação ao pagamento das Coimas é preventiva, ou seja, transmitir ao agente que cometeu a infração a ideia de que não deve voltar a cometê-la. Ora, a questão que se coloca é se o facto de as

a Administração não teria nenhum meio de aplicar as coimas previstas pelo seu direito do ambiente, e as par-tes lesadas não poderiam ser indemnizadas;” e (2) “na sequência de uma fusão como a que está em causa no processo principal, a Administração Fiscal descobre que a sociedade incorporada praticou durante vários anos um plano de otimização fi scal abusivo. Caso a mesma interpretação fosse aplicável, a Administração Fiscal não teria nenhum meio de cobrar o imposto não pago”.92 Vd. ponto 61 das Conclusões do Advogado-Geral.93 Vd. ponto 37 das Conclusões do Advogado-Geral.94 Como é óbvio, não nos referimos às dívidas fi scais em que é possível obter certidões de ine-xistência de dívidas.

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coimas terem sido aplicadas à Modelo-Continente (entidade que não cometeu as infrações) e, presumindo-se, que esta não comete nenhuma destas infrações, podendo até os trabalhadores que transitaram de uma sociedade para a outra estarem agora em melhores condições laborais, ainda faz sentido o pagamento das Coimas?

Entendemos que sim. Em virtude da fusão por incorporação, a atividade da Good and Cheap passou a ser desenvolvida pela Modelo-Continente, porém, tal como acontece nestes casos, toda a complexa organização e gestão da socie-dade permanece com contornos idênticos, nomeadamente os trabalhadores mantêm-se.

Ora, se o substrato pessoal que formavam a sociedade incorporada se man-tém, tal como o seu património, não é pelo facto de ter ocorrido uma alteração societária com a fusão por incorporação que desaparece a necessidade de adver-tir a sociedade para o cumprimento das regras laborais em causa. De facto, uma vez que a estrutura ainda que com diferenças se mantém, a aplicação da coima não se torna inócua, pois a sociedade poderá cometer o mesmo tipo de infra-ções, pelo que continua presente e justifi cável a fi nalidade preventiva associada à condenação ao pagamento das Coimas95.

Perante isto, somos da opinião de que a obrigação de pagar as Coimas transmitiu-se da sociedade incorporada (Good and Cheap) para a sociedade incorporante (Modelo-Continente) por efeito da fusão por incorporação, sendo que o facto de a aplicação defi nitiva das Coimas ter ocorrido após a fusão nada altera, na medida em que os factos que originaram as Coimas foram pra-ticados antes da fusão96.

Caso assim não fosse, a fi nalidade da Diretiva 2011/35 estaria de certa forma desvirtuada, na medida em que a coordenação do instituto da fusão de sociedades entre o direito dos Estados-Membros visa a proteção dos interesses dos sócios e dos terceiros aquando de uma fusão por incorporação.

95 Vd. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 4 de fevereiro de 2004 (Processo n.º 9963/2002-4 – Relator: PAULA SÁ FERNANDES), disponível em http://www.dgsi.pt.96 Outra questão que se pode colocar é: e se estivéssemos perante uma fusão por constituição de nova sociedade? Na nossa opinião, a solução apresentada seria a mesma, pois as contingências, direitos e obrigações das sociedades fundidas, em virtude da sua dissolução, são absorvidas pela nova sociedade e é sobre esta que recaem todas as responsabilidades, conforme resulta da alínea a) do artigo 112.º do Código das Sociedades Comerciais. Vd. Eduardo Fondevila Roca, Fusiones y Adquisiciones como instrumentos estratégicos del empresario, cit., p. 134.

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Da transmissão da responsabilidade contraordenacional na fusão por incorporação 667

5.4. Proteção de terceiros

Decorre dos Considerandos 497, 598 e 799 da Diretiva 2011/35100 que a coordenação do regime da fusão de sociedades entre as várias legislações dos Estados-Membros visa essencialmente a proteção dos interesses dos sócios e dos terceiros aquando de uma fusão. Desta forma, a fi nalidade inerente ao regime da fusão de sociedades estabelecido na Diretiva 2011/35 visa sobretudo a pro-teção dos sócios das sociedades em causa, bem como dos terceiros.

Se não existem dúvidas sobre quem são os sócios101 das sociedades interve-nientes, o mesmo já não se poderá dizer sobre quem são estes “terceiros” que merecem uma tutela no âmbito da fusão das sociedades comerciais.

Em regra, nesta matéria os “terceiros” costumam corresponder essencial-mente aos “credores” e aos “portadores de outros títulos das sociedades par-ticipantes na fusão”. São estes terceiros que merecem uma tutela específi ca no âmbito da Diretiva e também do Código das Sociedades Comerciais em matéria de fusão de sociedades.

Além do exposto nos Considerandos acima mencionados, a Diretiva 2011/35 estabelece que a “legislação dos Estados-Membros deve prever um sistema adequado de proteção dos interesses dos credores das sociedades participantes na fusão relativamente aos créditos anteriores à publicação do projeto de fusão e ainda não vencidos no momento desta publicação102”, sendo que “para esse efeito, a legislação dos Estados--Membros deve prever, pelo menos, que os credores em causa tenham o direito de obter garantias adequadas caso a situação fi nanceira das sociedades participantes numa fusão torne essa proteção necessária e esses credores não disponham já de tais garantias”103.

97 “A proteção dos interesses dos sócios e de terceiros requer uma coordenação da legislação dos Estados-Mem-bros a respeito da fusão das sociedades anónimas, e é conveniente introduzir na legislação de todos os Estados--Membros o instituto da fusão.”98 “No quadro dessa coordenação, é particularmente importante assegurar aos acionistas das sociedades parti-cipantes na fusão uma informação adequada, e tanto quanto possível objetiva, e garantir uma proteção apro-priada dos seus direitos. Contudo, não é necessário exigir uma análise do projeto das condições da concentração por um perito independente para os acionistas se todos os acionistas concordarem em prescindir dessa análise.”99 “Os credores, incluindo os obrigacionistas, e os portadores de outros títulos das sociedades participantes na fusão deverão ser protegidos de modo a evitar que a realização da fusão prejudique os seus interesses.”100 Tal como já decorria de forma semelhante dos Considerandos da Terceira Diretiva.101 Cf. artigo 11.º da Diretiva 2011/35.102 Cf. artigo 13.º, número 1 da Diretiva 2011/35. Vd. ainda artigo 13.º, número 1 da Terceira Diretiva.103 Cf. artigo 13.º, número 2 da Diretiva 2011/35. Vd. ainda artigo 13.º, número 2 da Terceira Diretiva.

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Em sentido idêntico, o Código das Sociedades Comerciais também consa-gra algumas disposições específi cas quanto aos credores no âmbito da fusão de sociedades.

Em especial, os credores das sociedades participantes na fusão cujos créditos sejam anteriores à publicação da fusão podem deduzir uma oposição judicial à fusão, no prazo de um mês após a publicação do registo do projeto de fusão, com fundamento no prejuízo que dela derive para a realização dos seus direitos, desde que tenham solicitado à sociedade a satisfação do seu crédito ou a pres-tação de garantia adequada há pelo menos 15 dias sem que o seu pedido tenha sido atendido104-105.

Encontramos também referências aos “portadores de outros títulos das sociedades participantes na fusão” na Diretiva 2011/35, que estabelece que “os portadores de títulos que não sejam ações, dotados de direitos especiais, devem benefi ciar, na sociedade incorporante, de direitos, pelo menos, equivalentes àqueles de que benefi cia-vam na sociedade incorporada, salvo se a modifi cação destes direitos tiver sido aprovada por uma assembleia dos portadores desses títulos, quando a lei nacional preveja uma tal assembleia, ou pelos portadores dos títulos individualmente, ou ainda se esses portadores tiverem o direito de obter da sociedade incorporante o resgate dos seus títulos”106.

Por outro lado, o Código das Sociedades Comerciais estabelece que “os portadores de títulos que não sejam ações, mas aos quais sejam inerentes direitos especiais, devem continuar a gozar de direitos pelo menos equivalentes na sociedade incorporante ou na nova sociedade, salvo se: (a) For deliberado em assembleia especial dos portadores de títulos e por maioria absoluta do número de cada espécie de títulos que os referidos direitos podem ser alterados; (b) Todos os portadores de cada espécie de títulos consentirem individualmente na modifi cação dos seus direitos, caso não esteja prevista, na lei ou no contrato social, a existência de assembleia especial; (c) O projeto de fusão previr a aquisi-ção desses títulos pela sociedade incorporante ou pela nova sociedade e as condições dessa

104 Cf. artigo 101.º-A do CSC. 105 Recorde-se ainda que esta oposição judicial deduzida por qualquer credor impede a inscri-ção defi nitiva da fusão na Conservatória do Registo Comercial até que se verifi que algum dos seguintes factos: (a) haver sido julgada improcedente, por decisão com trânsito em julgado, ou, no caso de absolvição da instância, não ter o oponente intentado nova ação no prazo de 30 dias; (b) ter havido desistência do oponente; (c) ter a sociedade satisfeito o oponente ou prestado a caução fi xada por acordo ou por decisão judicial; (d) haver o oponente consentido na inscrição; e (e) ter sido consignada em depósito a importância devida ao oponente. Sendo que se o tribunal julgar procedente a oposição judicial, o oponente tem direito ao reembolso do seu crédito, não sendo possível exigir-se a prestação de caução. Cf. artigo 101.º-B, números 1 e 2 do CSC.106 Vd. artigo 15.º da Diretiva 2011/35, bem como o mesmo artigo na Terceira Diretiva.

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aquisição forem aprovadas, em assembleia especial, pela maioria dos portadores presentes e representados”107.

Posto isto, a questão que se coloca é a de saber se para além destes credores e portadores de outros títulos a quem, como vimos, é reconhecida uma tutela legal, é ainda possível confi gurar outros terceiros que mereçam a tutela no âmbito do regime da fusão de sociedades comerciais.

Para o Tribunal de Justiça da União Europeia, existem mais terceiros cujos interesses merecem tutela jurídica numa situação de fusão de sociedades comer-ciais. Razão pela qual o Tribunal de Justiça da União Europeia considerou que nos “terceiros” protegidos pela Terceira Diretiva (leia-se: igualmente pela Diretiva 2011/35) devem também constar todas aquelas entidades que “à data da fusão, ainda não são suscetíveis de ser qualifi cadas de credores ou de portadores de outros títulos, mas que podem ser qualifi cadas depois dessa fusão, devido a situações que nasceram antes da mesma, como a prática de infrações ao direito do trabalho, mas que só são constatadas por decisão depois da referida fusão. Caso a responsabilidade contraordenacional, que consiste no pagamento de uma coima pelas referidas infrações, não se transmitisse da sociedade incorporada para a sociedade incorporante, o interesse do Estado-Membro cujas autoridades competentes tivessem aplicado esta coima não estaria protegido”108.

Concordamos com este entendimento do Tribunal de Justiça da União Europeia. De facto, antes e aquando da fusão por incorporação, o Estado por-tuguês não confi gura nem um “credor” nem um “portador de outro título” e, por isso, se fossemos demasiado literais, o Estado português não mereceria qualquer proteção com a fusão das sociedades visadas.

Ainda que a decisão de aplicação das Coimas tenha ocorrido depois da fusão por incorporação, os factos originadores dessa decisão ocorreram antes da fusão, logo têm de ser igualmente protegidas todas aquelas entidades que, por diver-sas razões, só adquirem a qualidade de credor da sociedade incorporada após a fusão por incorporação, sendo-lhes reconhecido o pleno direito de reclamar o seu crédito perante a sociedade incorporante para quem, como vimos acima, foram transmitidos todos os ativos e passivos da sociedade incorporada109.

Como acima referimos, se procedesse o entendimento contrário no sen-tido de que como a aplicação em defi nitivo das Coimas só ocorreu depois da fusão por incorporação, a responsabilidade do seu pagamento não se transmitiu da Good and Cheap para a Modelo-Continente, tendo-se extinguido, então o Estado português, enquanto entidade que só adquire o estatuto de credor

107 Cf. artigo 101.º-D do CSC.108 Vd. ponto 32 do Acórdão.109 Cf. artigo 19.º, número 1 da Diretiva 2011/35 e da anterior Terceira Diretiva.

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depois da fusão por incorporação, estaria a ser injustifi cadamente prejudicado, o que não se compagina com a legislação enunciada nesta matéria, que como podemos ver tem como um dos seus propósitos proteger os terceiros envolvi-dos na fusão, nomeadamente os credores, para que não possam ser afetados com a fusão e para que a fusão não seja utilizada como um mecanismo de exonerar as responsabilidades dos intervenientes envolvidos.

Por outro lado, segundo a mesma ideia de proteção dos terceiros envolvi-dos na fusão, a Modelo-Continente alegou que a “transmissão da responsabilidade contraordenacional de uma sociedade incorporada através de uma fusão não poderia acon-tecer na medida em que seria contrária aos interesses dos credores e dos acionistas da sociedade incorporante, uma vez que estes últimos não estariam em condições de avalizar as consequências económicas e patrimoniais desta fusão”110.

Seguindo de perto a posição do Tribunal de Justiça da União Europeia, parece-nos que este entendimento da Modelo-Continente não pode ser seguido, uma vez que os acionistas e os credores da sociedade incorporante podem, conforme fomos referindo ao longo do artigo, ser protegidos de outras formas.

Desde logo, conforme vimos acima, o artigo 13.º, número 2 da Diretiva 2011/35, estabelece que os credores têm direito a obter garantias adequadas sempre que a situação fi nanceira das sociedades participantes na fusão tome a proteção necessária, seja através de ações administrativas ou judiciais.

Por outro lado, é comum nesta situações que, antes de se avançar para a fusão de sociedades, a sociedade incorporante proceda a uma auditoria jurídica, fi nanceira e legal da sociedade incorporada de forma a obter uma visão mais correta e completa do espectro geral da sociedade a incorporar, na medida em que terá acesso a documentos e informações internas da própria sociedade111.

Perante isto, a sociedade incorporante terá um maior conhecimento da sociedade incorporada, das suas responsabilidades e dos riscos inerentes à fusão, sendo que desta forma os seus acionistas poderão estabelecer os mecanismos que entenderem para salvaguardarem os seus interesses e os interesses da socie-dade incorporante.

Desta forma, os acionistas das sociedades incorporantes usualmente prote-gem os seus direitos, bem como a si mesmos, de situações de risco que podem originar a responsabilidade das sociedades incorporantes por factos cometidos pelas sociedades incorporadas, através da previsão destas situações no acordo de fusão, seja através da inserção de cláusulas de limitação ou exclusão de respon-

110 Vd. ponto 34 do Acórdão.111 Vd. Idem.

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sabilidades, seja através da inserção de cláusulas de declarações de garantias112. Desta forma, os acionistas das sociedades incorporantes podem (e devem) pro-teger-se perante estas situações.

5.5. Conclusões

Posto isto, esteve bem o Tribunal de Justiça da União Europeia neste caso, pois parece-nos que a resposta não pode ser outra: em virtude da fusão por incor-poração, transmitem-se da sociedade incorporada para a sociedade incorporante todo o tipo de responsabilidades, seja civil, penal ou contraordenacional113.

Desta forma, a Modelo-Continente é necessariamente responsável pelo pagamento das Coimas que emergiram de factos praticados pela Good and Cheap anteriormente à fusão.

De facto, a transmissão universal do conjunto de património passivo da sociedade incorporada para a sociedade incorporante prevista na alínea a) do número 1 do artigo 19.º da Diretiva 2011/35 e da anterior Terceira Diretiva inclui todo o tipo de responsabilidades da sociedade incorporada, nomeada-mente a responsabilidade contraordenacional. Caso contrário, não se trataria de uma “transmissão universal do conjunto de património passivo” e estar-se-ia a distinguir quando a lei não distingue.

Além disso, o facto de a aplicação defi nitiva das coimas surgir depois da fusão por incorporação não implica que haja lugar à exoneração da responsabi-lidade, transmitindo-se, por isso, a responsabilidade pelo pagamento das coimas para a sociedade incorporante, caso contrário a fusão por incorporação seria um mecanismo que permitiria à sociedade incorporada ver-se exonerada de todas as responsabilidades que emergissem de infrações praticadas anteriormente à fusão, o que desvirtuaria a natureza própria da fusão por incorporação.

Por último, o regime da fusão tem em consideração a proteção dos interes-ses dos sócios e dos terceiros que possam eventualmente vir a ser afetados nega-tivamente pela fusão. Devem ser considerados como terceiros alvos de proteção do regime da fusão todas as entidades que aquando fusão já sejam credores, bem como todas aquelas entidades que só adquiram essa qualidade posteriormente por factos que tenham tido origem anterior à fusão.

112 Vd. neste sentido, ponto 61 das Conclusões do Advogado-Geral.113 Conforme refere o Advogado-Geral, nos pontos 65 e 66 das suas Conclusões, a sociedade incorporante adquire também da sociedade incorporada todo o seu ativo, bem como créditos que esta tenha perante terceiros.

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Razão pela qual a aceitação de que a responsabilidade da Good and Cheap se teria como extinta em função da fusão por incorporação não se compagina com o regime jurídico nacional e da União Europeia da fusão por incorpora-ção, uma vez que essa solução estaria necessariamente a prejudicar um terceiro//credor, o Estado português.

28 de setembro de 2015

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O tip-pooling nos casinos da Região Administrativa Especial de Macau: (Show me the money?)

DR. HUGO LUZ DOS SANTOS* 1

Sumário: I) Breve descrição da problemática da tip pooling nos casinos da Região Admi-nistrativa Especial de Macau (RAEM): o estado da arte na jurisprudência norte-americana. II) O tip pooling qualifi cado juridicamente como trust? III) A questão do dever de leal-dade dos trustees e o direito à propriedade dos benefi ciários do tip-pooling (artigo 6.º e artigo 103.º, da Lei Básica de Macau). IV) A criação do tip-pooling pelos casinos da Região Administrativa Especial de Macau: apropriação ilegítima (taking)? A temática do enriquecimento sem causa por intervenção (artigo 467.º, n.º 1 e 2, do Código Civil de Macau; artigo 473.º, n.º 1, do Código Civil de Macau) e das regulações do dono: breves notas. V) O tip-pooling e o dano reputacional dos casinos da Região Administrativa Especial de Macau: relação de mútua implicação? – brevíssimas notas.

Abstract: This scientifi c article collimates to the analysis of the legal framework of gaming and betting in Macau, mainly regarding the (pressing) question of “tip-poo-ling”. Based on this doctrinal article some ideas to resolve the issue of “tip-poo-ling” have been pointed out, recommending in particular the mobilization to the legal framework of gaming and betting contracts in casinos of Special Administrative Region of Macau, of the doctrinal categories of unjust enrichment; owner´s regulation; constructive trust; gain based damages of casino employees; and reputational damage.

Keywords: tip pooling; constructive trust; taking; unjust enrichment; owners regulation; restitution; gain based damages; reputational damage; Macau, Special Administrative Region (SAR); casinos.

* Magistrado do Ministério Público.

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I) Breve descrição da temática do tip pooling nos casinos da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM): o estado da arte na jurisprudência norte-americana** 2

Há dois anos, o Supremo Tribunal do Nevada (Wynn Las Vegas, LLC v. Baldonado, 311 P.3d 96 (2013), emitiu um quintessencial aresto jurispruden-cial, no quadrante temático que nos interpela: o tip pooling.

Mas em que consiste o tip pooling?Na esmagadora maioria dos casinos, as tips (gratifi cações) que são dadas aos

dealers são agregadas em pools. Tal prática tem sido justifi cada pelo facto de, desse modo, nenhum gambler (ou casino patron) ter vantagem competitiva sobre os res-tantes. Por conseguinte, as tips são agregadas de modo a que todos os dealers recebam equal shares, e, do mesmo passo, seja derrogado um eventual bias, no que se refere ao favorecimento deste ou daquele high profi le roller.

Deste modo, o tip pooling consiste na divisão das tips, entre todos os emplo-yees do casino, referentes a um dado lapso temporal; a essa divisão das tips, reali-zada pelo casino, preside um critério de redistribuição, que, por sua vez, é precedido de um acordo entre os employees e o employers (pooling arrangement).

A questão (candente) que se coloca neste âmbito, é a de saber se a forma como os casinos dos Estados Unidos da América e de Macau, captam, armaze-nam e redistribuem esses montantes emergentes das gratifi cações (tips), sob a forma de pools, é considerada (ou não) uma apropriação (taking), e, por conseguinte, ilegítima. Retomaremos esta questão adiante.

Subsequentemente, e no caso concreto dos casinos da Região Adminis-trativa Especial de Macau, faz-se mister saber se a redistribuição dessas gratifi cações (tips), realizada pelos casinos, por todos os empregados dos casinos (croupiers, casino table dealers, fl oor managers, pit bosses, fl oor men, box men, cashiers, e os restantes funcionários que enformam a man-power do casino), está recoberta pelo manto diáfano da justiça distributiva; aqui reside a questão nodal que agasalha a questão o tip-pooling: os casinos table dealers, ganham anualmente dezenas de milhares de patacas em gorjetas (tips), além do seu vencimento mensal, e esse é o motivo fundante para trabalhar neste ou naquele casino.

Por conseguinte, deve este dinheiro ser previamente cativado, pelos casinos, em pools, e posteriormente redistribuído pelos restantes funcionários dos casinos da Região Administrativa Especial de Macau?

A doutrina norte-americana, a propósito do Wynn tip-pooling policy, tem referido que “per Nevada Revised Statute (“NRS”) § 608.160, it is illegal for

** Este estudo segue as regras anteriores ao novo acordo ortográfi co.

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employers to “take” tips from employees. A controversial new tip-sharing, or tip pooling, policy at Wynn Las Vegas has attracted much attention, and much debate, to tipping policies and the legal system´s role in enforcing them1. Because of large amounts of money and the controversy surronding tipping in casinos, the Nevada State Gaming Control Control Board and Nevada Gaming Comission should set regulations to govern tip poo-ling, particularly between table dealers and other positions that might be itroduced into tip-pools. Not having these regulations in place could create bad policy by opening up the gaming industry to possible bribery and favoritism amongst casino employees, as well as allowing the possibility of illegitimate and illegal “takings” from casino employees by, their employers, which is banned under § 608.160”2-3.

Neste âmbito, o Supremo Tribunal do Nevada, no acórdão Moen v. Las Vegas International Hotel, Inc, 1975, apesar de considerar que é ilegal a apropriação (taking) das tips pelos proprietários dos casinos, não proibiu, contudo, a prática, realizada pelos employers, de compilação (pools) e ulterior redistribuição das tips pelos employees4.

1 Ver, na doutrina norte-americana, Chris Sieroty, “Wynn Tip Policy Said to Violate the Law”, in: Las Vegas Review Journal, Nevada, (2011), passim; Liz Benston, “Caesars Palace Mulling Change on Dealer Tips”, in: Las Vegas Sun, June 14, (2010); Kevin Blackwood, Casino Gam-bling for Dummies, 76, (2006).2 Neste sentido, na doutrina norte-americana, Kandis Mcclure, “Tip-Pooling at Nevada Casinos – The case at the Wynn and why the Nevada State Gaming Comission should set strict regulations on tip-pooling to protect the rights of dealers, casinos, and the reputation of the Nevada Gaming Industry”, in: UNLV Gaming Law Journal, Vol. 5:81, Spring 2014, (2014), p. 82, que seguiremos de muito perto, mesmo textualmente.3 Nos casinos, há, consabidamente, dois tipos de gratifi cação (tips). A este propósito, a doutrina norte-americana refere que “there are two common ways to tip the dealer. The fi rst is by placing an extra bet in front of or on top of your bet during the game as well. The other give chips directly to the dealer as a gift while sitting at the table or upon leaving the table. There is a process at the end of a game where the player might ask the dealer to “color up” or to change out many chips with smaller dollar values for fewer chips with larger dollar values, which is also a common time to tip the dealer. The book lists a standard tip for a dealer as $ 2-$10 or $25-$100 for high rollers. These are explicitly suggested amounts and players commonly tip as they see fi t. The book also warns new gamblers not to over-tip without realizing it, gamblers sometimes tip more than then win”; Kevin Blackwood, Casino Gambling for Dummies, cit., pp. 76-78; Kandis Mcclure, “Tip-Pooling at Nevada Casinos”, cit., p. 83.4 Afi rmou o Supremo Tribunal do Nevada (Moen v. Las Vegas International Hotel, Inc,1975) que “The court recounted the legislative history behind NRS § 608.160, which made it illegal for employers to take tips from employees to then apply the tips towards the minimum wage requirments” (the court in Moen decided that the purpose of NRS § 608.160 was not to make tip-pooling illegal, but was to make the public and employers aware that tips belonged to the employees who were given the tip and not the management of the casino. The court concluded that the Nevada Legislature passed NRS § 608.160 to put and end to employers taking the tips of employees and found that posting a sign or otherwise was not adequate protection of the public against fraud. Moreover, the court held

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Em Alford v. Harolds Club, 669 P.2d 721, 722 (Nev. 1983), Supremo Tri-bunal do Nevada debateu-se com a questão da obrigatoriedade (imposta pelo casino) de constituição do tip-pooling (mandatory tip-pooling program). A este pro-pósito, o tribunal considerou que a tip-pooling strategy imposta pelo casino aos seus funcionários não consubstanciava uma violação do Nevada Revised Statute (“NRS”) § 608.160, uma vez que o casino não se estava a apropriar (taking) de quaisquer tips pertencentes aos employees5.

Em Wynn Las Vegas, LLC v. Baldonado, 311 P.3d 96 (2013), o Supremo Tribunal do Nevada, seguindo a ratio decidendi e o same reasoning level de Moen e Alford, decidiu que “some level of benefi t to the employer did not necessarily constitute a taking; because the Wynn paid out all the tips to employees in the tip-pool and did not keep any of the tips, therefore, there was no taking whatsoever”.

Todavia, este marcante acórdão Wynn Las Vegas, LLC v. Baldonado, 311 P.3d 96 (2013), não resolveu a questão (acima sinalizada), no sentido de se saber se, atenta a legalidade da criação do (mandatory) tip-pooling, a redistribuição dos montantes emergentes das tips, precedida dos pooling arrangements, pelos restantes funcionários do casino (além dos casino table dealers), está agasalhada pelo manto da justiça distributiva. É essa temática que abordaremos nos próximos hemisférios temáticos.

II) O tip pooling qualifi cado juridicamente como trust?

A sub-questão que se desdobra e autonomiza da que acima se deixou anteci-pada, prende-se com a qualifi cação jurídica a conferir aos tip poolings: serão um trust?

Em qualquer caso, e de forma intercambial, terá de ser burilada, em pri-meiro lugar, a qualifi cação jurídica a conferir ao tip-pooling.

E essa polariza-se, a nosso ver, na qualifi cação jurídica do tip-pooling como trust, que dispensa, inclusive, a exigência de forma escrita para o seu acto consti-

that the legislature had passed NRS § 608.160 to ensure that no tips would be confi scated and applied to meet the employees “minimum wage”).5 Porquanto, o Supremo Tribunal do Nevada em Alford v. Harolds Club, 669 P.2d 721, 722 (Nev. 1983), considerou que “the intention of Nevada Revised Statute (“NRS”) § 608.160 was not to make tip-pools illegal nor to stop employers from making them company policy but, instead, to make sure that employers were not cutting themselves into the tip-pool or taking any of the tips from the employees for the benefi t of the employer”.

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tutivo6: a esta luz se compreende a importância precípua dos constructive trusts7, que não carece de formalidades especiais e é criado por exigências sistémicas8-9, cuja mobilização preconizamos no caso do tip-pooling, e que infra se abordará de forma mais detida.

Quanto aos interesses dos benefi ciários sobre os bens constituídos em trust, o tip-pooling deve ser qualifi cado juridicamente como um fi xed trust10.

Tradicionalmente, o trust tem uma estrutura interna tripartida: 1) setlor, 2) trustee; 3) benefi ciário. Em termos gerais, o setlor (gamblers) é o titular original do direito de propriedade do bem a constituir em trust; os trustees (casinos de Macau) são o actual depositário do bem constituído em trust; e os casino table dealers são os benefi ciários últimos do bem e dos direitos que lhe estão associados11.

De tal facto se infere que, no tip-pooling, entendido como fi xed trust, ao trustee apenas é exigido que, preenchidas as condições objectivas estabelecidas no acto constitutivo (pooling agreement), distribua os bens constituídos em trust pelos benefi ciários indicados; os interesses dos benefi ciários são totalmente determinados pelo setlor12, que pretende, em primeira linha, a gratifi car os casino table dealers.

A signifi car, reversamente, que os trustees estão juridicamente impedidos de retirar qualquer benefício da posição (de mero depositário) assumida perante o setlor e os benefi ciários, salvo se devidamente autorizados13; nesta asserção, o tip-pooling

6 Neste sentido, Randall v Morgan (1805) 12 Jun 67-75, (W.Grant Mr) 74: “it is not necessary, that the trust shall be constituted by writing.”; no mesmo sentido, António Barreto Menezes Cordeiro, Do Trust no Direito Civil, colecção teses, dissertação de doutoramento, Almedina, Coimbra, (2014), p. 430, que seguiremos de muito perto.7 Que encontra a sua legitimação teleológica, na no profi t rule dos trustees, e na ideia reitora de que “todos os lucros e benefícios obtidos, directa ou indirectamente, em violação da no profi t rule, pertencem aos bene-fi ciários”; neste sentido, António Barreto Menezes Cordeiro, Do Trust no Direito Civil, cit., p. 536.8 É esta, também, a linha jurisprudencial dos tribunais ingleses; neste sentido, Carl Zeizz Stiftung v Herbert Smith (No 2) (1969) 2 Ch, 281-296; Nino Battery Manufacturing Co v Milestone Trading Ltd (2002) 2 All ER (Common) 711-735.9 Neste sentido, na doutrina inglesa, A. J. Oakley, Constructive Trusts, Sweet & Maxwell, Lon-don, (1999), passim.10 Neste sentido, na doutrina norte-americana, George P. Costigan, J.R., “The Date and Authorship of the Statute of Frauds”, in: Harvard Law Review, (1913), 329-346, Crawford D. Hening, The Original Drafts of the Statute of Frauds (29. Car. II c. 3), and Their Authors, 61 U Pa L Ver, (1913), 283-316.11 Neste sentido, António Barreto Menezes Cordeiro, Do Trust no Direito Civil, cit., p. 430; na doutrina alemã, Manfred Wolf/Jörg Neuner, Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, 10. Aufl age, Beck, München, (2012), passim; na doutrina anglo-saxónica, Stephen N. Subrin, How Equity Conquered Common Law. The Federal Urles of Civil Procedure in Historical Perspective, in: U Pa Law Review, (1987), 926-952.12 Neste sentido, António Barreto Menezes Cordeiro, Do Trust no Direito Civil, cit., p. 423.13 Neste sentido, António Barreto Menezes Cordeiro, Do Trust no Direito Civil, cit., p. 420.

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é entendido como um passive trust, na medida em que apenas é exigível ao trus-tee a manutenção dos bens constituídos em trust14; o que, no fundo, é uma decor-rência do dever de lealdade que perpassa todo o estatuto jurídico do trustee.

A esta luz se compreende, pois, que o dever de lealdade, enquanto expressão de um dever fi duciário, núcleo da posição jurídica dos trustees, esteja estruturado, como, de resto, no direito inglês, em torno desses dois grandes princípios: a no confl ict rule e a no profi t rule15. A no profi t rule veda, ao trustee, todo o tipo de actua-ção da qual possa originar um confl ito entre os interesses dos benefi ciários e os seus inte-resses pessoais16-17; enquanto que a no profi t rule impede, esses mesmos trustees, de obterem lucros ou proveitos através da posição fi duciária que ocupam18, salvo se pre-vistos no pooling arrangement ou devidamente autorizados pelos benefi ciários19-20.

O que, na realidade, bem se compreende.Na verdade, os fi duciary duties21, rectius, os deveres fi duciários dos trustees22-23

encontram-se, a montante, umbilicalmente ligados à role responsability, ao agir

14 Neste sentido, António Barreto Menezes Cordeiro, Do Trust no Direito Civil, cit., p. 421.15 Por essa razão, afi rma a jurisprudência dos tribunais ingleses, que “the “no confl ict rule” and “no profi t rule” to which fi duciaries such as directors are subject”; O Donnel v Shanahan (2008) EWHC 1973 (Ch), (RIMER LJ) (37); sendo que existem, mais recuadamente, duas decisões que alçaprema-ram, neste âmbito, os fi duciary duties dos administradores (directors), Parker v McKenna (1874) LR 10 Ch App 96-127, (Sir W. M. James LJ), 124; Bray v Ford (1896) AC 44-56 (Lord Herschell); no mesmo sentido, Re, Macadam Dallow (1945), 2 All ER 664-679, (Lord Cohen), 672; Guiness v Saunders (1990) 1 All ER 652-668 (Lord Templeman).16 António Barreto Menezes Cordeiro, “Doutrina das Oportunidades Societárias (Corporate Opportunities Doctrine). Parte I”, in: Revista de Direito das Sociedades (RDS), Ano V (2013), Alme-dina, Coimbra, (2014), número 3, p. 623, que seguiremos de muito perto, mesmo textualmente.17 Industrial Development Consultants v Cooley (1972) 2 All ER 162-176 (Roskill J), 171 e ss; Bhul-lar v Bhullar (2003), EWCA Civ 424, ( Jonathan Parker LJ), 27-42.18 Neste sentido, António Barreto Menezes Cordeiro, Do Trust no Direito Civil, cit., p. 420.19 Boardman v Phipps (1966), 3 All ER , 721-762 (Lord Hodson).20 O princípio no confl ict rule, ao contrário do no profi t rule, encontra-se hoje vertido no Companies Act 2006 (CA 2006), na section 175 (1) que reza assim: “A director of a company must avoid a situation in which he has, or can have, a direct or indirect interest that confl icts, or possibly may confl ict, with the inter-ests of the company”; sobre a Companies Act 2006 e os deveres fi duciários nela inseridos, na doutrina inglesa, Andrew Keay, Directors’Duties, Jordans, Bristol, (2009), pp. 264-278.21 Na jurisprudência norte – americana, sobre o dever de lealdade inserido nos fi duciary duties, o Acórdão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos da América (Us Supreme Court), Kmmg Llp v. Robert Cochi et alii, de 07 de Novembro de 2011, disponível em http://www.supremecourt.gov. 22 Sobre a densifi cação dogmática dos fi duciary duties, cruzando a sua leitura à luz da jurisprudên-cia do Supremo Tribunal do Delaware, Mohsen Manesh, “What is the pratical importance of default rules under Delaware LLC and LP Law”, in: Harvard Business Law Review (HBLR), Volume 2, (2012), pp. 121-129.23 Neste sentido, António Barreto Menezes Cordeiro, “Dever de não concorrência e dever de não utilização de bens pertencentes à sociedade”, in: Revista de Direito das Sociedades (RDS),

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social 24, que se caracteriza pela atribuição, a quem ocupa um determinado lugar numa organização social (casino), a que estão ligados deveres especiais de prover ao bem-estar dos outros, da responsabilidade pelo cumprimento desses mesmos deve-res25, sendo essa role responsability cunhada como responsabilidade como virtude ou responsabilidade – virtude26, como dever – ser (Sollen), traduzindo-se a sua violação como um “facto condição”27 da consequência jurídica (a consequência de um acto ilícito), i. e., na constituição, por imperativos de justiça distributiva, de um constructive trust.

Mas em que consiste o constructive trust?Como acima se apontou, todos os bens adquiridos pelo trustee em violação do

princípio da no profi t rule são constituídos em trust a favor dos benefi ciários28-29.Por conseguinte, o constructive trust resulta da aplicação dos princípios basi-

lares da Equity Law. No fundo, consubstancia uma solução decorrente do espí-rito do sistema30; uma resposta a um comportamento (o do trustee) contrário ao sistema31.

Ano VII (2015), Número 1, Centro de Investigação de Direito Privado (CIDP), Director: António Menezes Cordeiro, Almedina, Coimbra, (2015), p. 184.24 Sobre o agir social, na doutrina alemã, Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft. Grundriss der ver-stehenden Soziologie, 5. Aufl age, Tübingen, (2002), pp. 11 e ss.25 Sobre a densifi cação dogmática da “role responsibility”, H. L. Hart, “Varieties of Responsibil-ity”, in The Law Quarterly Review, Volume 83, (1967), pp. 346-364.26 Na doutrina italiana, Guido Gorgoni, “La Responsabilitá come progetto. Primi Elementi per un’Analisi dell’Idea Giuridica di Responsabilità Prospettica”, in: Diritto e Società, Volume 2, (2009), pp. 243-292.27 Neste sentido, aludindo à categoria da imputação normativa como possibilidade de conexão entre um “ facto – condição” e uma “consequência jurídica”; na doutrina austríaca, Hans Kelsen, Hauptpro-bleme der Staatslehre entwickelt aus der Lehre vom Rechtssatze, Tübingen, (1911), pp. 7 e ss.28 Neste sentido, António Barreto Menezes Cordeiro, Do Trust no Direito Civil, cit., p. 420.29 É paradigmática, neste âmbito, a decisão A-G for Hong Kong v Reid (1994), 1 AC 324-329; no mesmo sentido, mas no plano dos trustees de non sort, Mara v Browne (1896), 1 Ch 199-214, (Smith LJ) 209: “if one, not being a trustee and not having authority from a trustee, takes upon himself with trust matters or to do acts characteristic of offi ce of trustee, he may therefore make himself what is called in law trus-tee of his own wrong-ie a trustee de son tort, or, as i tis also termed, a constructive trust”; Neste sentido, António Barreto Menezes Cordeiro, Do Trust no Direito Civil, cit., p. 421, notas 1566 e 1567.30 Neste sentido, António Barreto Menezes Cordeiro, Do Trust no Direito Civil, cit., p. 418.31 Neste sentido, António Barreto Menezes Cordeiro, Do Trust no Direito Civil, cit., p. 419.

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Esta interpretação normativa, como interpretation step zero32, é, all-things--considered 33, pensamos, ainda que sujeita ao teste do falibilismo jurídico34-35, a consagração da prioridade do justo na aplicação jurisdicional.36

III) A questão do dever de lealdade dos trustees e o direito à propriedade dos benefi ciários do tip-pooling

O dever de lealdade corporiza um conceito jurídico indeterminado que possibilita a recepção de normas éticas no direito, através da atribuição aos juízes do poder de conformação do direito37.

No espaço jurídico macaense, o dever de lealdade dos trustees (administra-dores dos casinos da Região Administrativa Especial de Macau), para com os benefi ciários do tip-pooling, deve caracterizado como um dever fi duciário. Os deveres fi duciários estão associados ao surgimento e ao desenvolvimento do trust. No trust é operada uma transmissão de propriedade pelo settlor (gamblers) para o trustee (administradores dos casinos), mas em favor de um benefi ciário (os funcionários dos casinos de Macau)38. Nos primórdios da fi gura, o regime de common law não

32 Sobre este conceito, na doutrina norte – americana, Andrew Trutt, “Interpretation Step Zero: A Limit on Methodology as “Law”, in: Yale Law Journal, (2013), pp. 2055-2067.33 Sobre os juízos práticos all-things-considered, Aleksander Peczenick, On Law and Reason, Klu-wer, Dordrecht, (1989), pp. 76-77.34 Na doutrina portuguesa, manifestando fundadas reservas na aplicação da teoria da falsifi cação poppe-riana ao âmbito jurídico, Alexandre Mota Pinto, “Falibilismo” Jurídico? Ensaio de aplicação ao direito do modelo metódico da falsifi cação proposto por Karl Popper”, in: Estudos em Home-nagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, Ars Ivdicandi, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Stvdia Ivridica, Ad Honorem – 3, Volume I: Filosofi a, Teoria e Metodologia, Coimbra, Coimbra Editora, (2008), pp. 919 e ss/963/966.35 Sobre a transposição para o âmbito jurídico da teoria da falsifi cação de Karl Popper, na doutrina alemã, Claus Wilhelm Canaris, “Funktion, Struktur und Falsifi kation juristischer Theorien”, in: Juristischen Zeitung ( JZ), (1993), pp. 378 e ss.36 Jürgen Habermas, “Between Facts and Norms: an Author’s Refl ections”, in: Denver University Law Review (DULR), Volume 76, (1999), p. 939.37 Tradicionalmente são apontadas três funções às cláusulas-gerais ou conceitos jurídicos indeterminados, a saber, a recepção de normas sociais, a transformação de normas sociais e a delegação do poder de conformação do direito nos juízes; Ver Gunther Teubner, Standards und Directiven in Generalklau-seln: Möglickeit und Grenzen der empirischen Sozialforschung bei der Präzisierung der Gute-Sitten-Klauseln im Privatrecht, Frankfurt am Main, (1971), pp. 89-110; Anne Röthel, Normkonkretisierung im Pri-vatrecht, Tübingen, Mohr Siebeck, (2004), pp. 23-27; Franz Bydlinski, Juristische Methodenlehre und Rechtsbegriff , 2. Aufl age, Wien/New York, Springer, (1991), p. 581.38 Pedro Caetano Nunes, “Jurisprudência sobre o dever de lealdade dos administradores”, in: II Congresso de Direito das Sociedades (DSR), Almedina, Coimbra, (2013), p. 184, que seguimos de

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oferecia a devida proteção legal ao benefi ciário, o que levou os tribunais da equity a imporem ao trustee deveres fi duciários perante o benefi ciário39. A analogia com o trust levou à aplicação dos deveres fi duciários a outro tipo de relações – as relações fi duciárias (fi duciary relations) - tais como a agency e a partnership40. A esta luz se compreende que a jurisprudência norte-americana tenha passado a aplicar os deveres fi duciários também aos trustees41-42-43-44-45.

A signifi car que o deveres de lealdade e de cuidado são devidos aos benefi ciá-rios do tip-pooling46; são deveres fi duciários para com os mesmos47-48, entendidos enquanto responsabilidade ética49-50; pela incolumidade do acervo patrimonial inte-grante do tip-pooling.

muito perto, mesmo textualmente.39 Pedro Caetano Nunes, “Jurisprudência sobre o dever de lealdade dos administradores”, cit., p. 185.40 Pedro Caetano Nunes, “Jurisprudência sobre o dever de lealdade dos administradores”, cit., p. 185.41 Neste sentido, na doutrina norte-americana, John C. Shepherd, The Law of Fiduciaries, The Carswell Company, Toronto, (1981), passim; John C. Shepherd, “Towards a Unifi ed Concept of Fiduciary Relationships, in: 97 LQR, (1813), 51-79.42 Neste sentido, James Sheedy, “Civil Law Jurisdictions and the English Trust Idea: Lost in Translation”, in: 20 Denning Law Journal, (2008), pp. 175 e ss.43 Neste sentido, Magdolna Sic, “Fiducia and Pignus in Sources of Post-Classical Roman Law – Synonyms or Terms Utilized for Diff erent Kinds of Pledges?”, in: 42 Zb Radova, (2008), pp. 483-491.44 Steven L. Schwarcz, “The Commercial Trusts as Business as Business Organisations: an Invi-tation to Comparatists”, in: 13 Duke J Comp & Int’L, (2003), pp. 325-331.45 Na doutrina inglesa, Stuart Ritchie/Andrew Stafford, Fiduciary Duties: Directors and Employ-ees, Jordans, Bristol, (2008), passim.46 Na doutrina portuguesa, Maria Elisabete Gomes Ramos, O Seguro de Responsabilidade Civil dos Administradores, Colecção Teses, dissertação de doutoramento, Almedina, Coimbra, (2011), p. 116.47 Na doutrina espanhola, V. J. Alfaro Águila-Real, “La llamada acción individual de respon-sabilidade contra los administradores sociales”, in: RDS, 18, (2002/1), p. 59; na doutrina alemã, W. GROSS, “Deliktische Aussenhaftung des GmbH-Geschäftsführers”, in: ZGR, 3, (1999), pp. 553-557; na doutrina portuguesa, Vânia Filipe Magalhães, “A conduta dos administradores das sociedades anónimas: deveres gerais e interesse social”, in: Revista de Direito das Sociedades (RDS), 1, Almedina, Coimbra, (2009), pp. 399-400.48 Ver, na doutrina anglo-saxónica, Larry E. Ribstein, “Fiduciary Duty Contracts in Unincor-porated Firms”, in: 54 Wash & Lee Law Review, (1997), pp. 566-572.49 Na doutrina portuguesa, M. Nogueira Serens, “Corporate Social Responsability: “Vinho velho em odres novos”, cit., p. 87; na doutrina alemã, Clausdieter Schott, Kindesannhme – Adoption--Wahlkindsschaft: Rechtsgeschichte und Rechtsgeschichten, Metzner, Frankfurt, (2009), passim.50 Neste sentido, na doutrina australiana, Charles E. F. Rickett, “Equitable Compensation: towards a Blueprint, in: 25 Sydney Law Review, (2003), pp. 43-51.

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De tal facto se infere que, na esteira do Tribunal Constitucional Fede-ral Alemão (BVerfGE)51, os benefi ciários do tip-pooling estão investidos de um direito à propriedade, entendido como garantia de instituto52, no sentido de que ela não garante apenas as posições jurídicas de direito privado atualmente existentes, mas também (e sobretudo) a possibilidade (presente ou futura) de aceder a elas53.

Assim, existe um direito subjetivo dos benefi ciários do trust (tip-pooling) de poder usufruir da propriedade respeitante ao dinheiro constante do tip-pooling (artigo 1229.º, do Código Civil de Macau).

Esse direito à propriedade - que não se confunde com o direito de propriedade (artigos 6.º e 103.º, da Lei Básica de Macau, artigo 1226.º, n.º 1, do Código Civil de Macau), confi gurado como um direito subjetivo à manutenção de posi-ções jurídicas subjetivas e pressuposto na designada garantia de permanência54 – é um direito subjetivo dos benefi ciários do tip-pooling, entendido enquanto um conjunto de expectativas e oportunidades de fruição55-56; visto enquanto corporização

51 Cfr. Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, Vol. 93, p. 137 (Einheitswertbeschluss).52 “A garantia de instituto proíbe que sejam suprimidos aqueles domínios da ordem jurídico-privada que per-tencem a partes elementares da actividade no domínio jurídico-patrimonial protegida em termos de direitos fundamentais e, consequentemente, que seja suprimido ou essencialmente reduzido o domínio de liberdade protegido pelo direito fundamental”; na doutrina alemã, Jochen Rozek, Die Unterscheidung von Eigen-tumsbindung und Enteignung,: Eine Bestandaufnahme zur dogmatishen Struktur des Art. 14 GG nach 15 Jahren «Nassauskiesung», Mohr Siebeck, (1998), p. 29.53 Na doutrina alemã, Michael Kloepfer, Grundrechte als Entstehenssicherung und Bestandsschutz, C. H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, München, (1970), pp. 24-50.54 Na doutrina portuguesa, Miguel Nogueira De Brito, A Justifi cação da Propriedade Privada numa Democracia Constitucional, Colecção Teses, dissertação de doutoramento, Almedina, Coim-bra, (2012), pp. 734-800.55 V., na doutrina alemã, Markus Appel, Entstehungsschäche und Bestandsstärke des verfassungsrechtli-chen Eigentums. Eine Untersuchung des Spannungsverhältnisses zwischen Art. 14 Abs. 1 Satz 1 GG und Art. 14 Abs. 1 Satz 2 GG auf Basis der Eigentumsrechtsprechung des Bundesverfassungsgerichts, Duncker & Humblot, Berlim, (2004), p. 218.56 “A expectativa legítima de ver realizada a pretensão merece a protecção do artigo 1.º, do Protocolo Adicional n.º 1 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem (….) e engloba o direito ao respeito dos seus bens, que não implica somente o respeito pela titularidade do direito de propriedade. Para além disto, ao proprietário é assegurado o exercício das faculdades inerentes a este direito, como sejam as de usar, dispor ou retirar dela os seus frutos”; V. Tiago Macieirinha, “O direito de propriedade na Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, in: Revista O Direito, Ano 146.º, (2014), I, Almedina, Coimbra, (2014), pp. 76-77; no mesmo sentido, Acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), Pressos Compania Naviera S. A., n.º 31; Gratzinger e Gratzingerova, n.º 73, Jantner, n.º 29-33, Marckx, n.º 63, Kotov, n.º 90, Stran Greek Refi neries and Straits Andreadis, n.º 61.

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de uma possibilidade jurídico-factual de usufruir da propriedade57, emergente da integridade patrimonial do tip-pooling (artigo 1229.º, do Código Civil de Macau).

Porquanto, enquanto espaço de liberdade económica, o direito à propriedade dos benefi ciários do tip-pooling protege uma esfera de domínio que é deixada ao seu (livre alvedrio) e para a sua (exclusiva) disponibilidade e aproveitamento económico58.

Com efeito, o direito à propriedade dos benefi ciários do tip-pooling subsume-se ao conceito jurídico-constitucional de propriedade como domínio fáctico, pois ela materializa a identifi cação entre uma garantia de instituto (o direito à propriedade) e uma garantia de domínio (do dinheiro que integra o tip-pooling).

Sendo isto certo, essa garantia de domínio fáctico-jurídico que é conferida (em exclusivo) aos benefi ciários do tip-pooling é exercida, consabidamente, através dos administradores dos casinos de Macau (trustees) que, atenta a relação fi duciária – e a confi ança especial que lhe subjaz- que se estabelece entre os benefi ciários e o trustee, gera na esfera jurídica deste o imperativo de prosseguir (como regra e em primeira linha) o fi m (de conservação), enquanto instrumento que este é para a consecução desse fi m e correspondente satisfação do interesse comum dos benefi ciários do tip-pooling.

Por conseguinte, a garantia de domínio fáctico-jurídico dos benefi ciários do tip--pooling (os funcionários dos casinos de Macau), constitui uma zona de infl uência exclusiva, ainda que “manobrada” pelo trustee; a esta luz se compreende que a incolumidade do tip-pooling simbolize (objetivamente), por um lado, o carácter modelar da gestão do trust – polarizada (sempre) no interesse dos benefi ciários -; e, por outro lado, padronize (subjetivamente) o paradigma de um gestor criterioso e ordenado, dos trustees – administradores dos casinos de Macau.

IV) A criação do tip-pooling pelos casinos da Região Administrativa Especial de Macau: apropriação ilegítima (taking)? A temática do enriquecimento sem causa por intervenção (artigo 467.º, n.º 1 e 2, do Código Civil de Macau; artigo 473.º, n.º 1, do Código Civil de Macau) e a teoria do conteúdo da destinação: breves notas

Esclarecido o horizonte teleológico-funcional em que se move o tip-poo-ling, emerge uma outra sub-questão que se entrelaça com a questão do tip-poo-

57 V. na doutrina alemã, Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, Suhrkamp, (1994), p. 178, nota 170; no mesmo sentido, Frank Raue, Die Zwangsvollstreckung als Nagelprobe für der modernen Ent-eignungsbegriff . Die enteignungsdefi nition des Bundesverfassungsgerichts, kritisch hinterfragt anhand der Eigentumsübertraggung nach § 817 abs. 2 ZPO – Ein Beitrag zur Auslegung des Art. 14 GG, Duncker & Humblot, Berlin, (2006), p. 104.58 Cfr. Entscheidungen des Bundesverfassungsgerichts, Vol. 24, p. 389-390 (Einheitswertbeschluss).

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ling, que é a de saber se a criação dos tip-poolings materializa (ou não) uma apro-priação ilegítima (taking), por parte dos casinos da Região Administrativa Especial de Macau.

A esta luz, é indissociável a ligação umbilical entre a questão da (possível) apropriação ilegítima (taking), e a qualifi cação jurídica do tip-pooling como trust.

Com efeito, se se considerar que o tip pooling confi gura um trust, a questão fi ca completamente esvaziada (e não confi gura um taking), na medida em que, a essa luz, os casinos da Região Administrativa Especial de Macau, actuam na qualidade de meros depositários do dinheiro constante do tip-pooling (artigo 1111.º, do Código Civil de Macau), e estão, pois, investidos na obrigação de guardar a coisa depositada (as tips) [artigo 1113.º, alínea a), do Código Civil de Macau] e de a restituir aos benefi ciários do tip-pooling [artigo 1113.º, alínea c), do Código Civil de Macau].

Reversamente, se se entender que o tip-pooling não confi gura um trust, emerge (vicejante) a questão do enriquecimento sem causa, na modalidade de enri-quecimento por intervenção (artigo 467.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil de Macau; artigo 473.º, n.º 1, do Código Civil de Macau).

Porquanto, os montantes emergentes das tips são propriedade (exclusiva) dos benefi ciários, e, por isso, são parte integrante do tip-pooling; pertencem a todos os empregados dos casinos (croupiers, casino table dealers, fl oor managers, pit bosses, fl oor men, box men, cashiers, e os restantes funcionários que enformam a man-power do casino); na medida em que eles constituem uma parte da estrutura social, da organização, que surge como uma compenetração de meios materiais e imateriais59 afectos à prossecução de um determinado fi m60: o escopo lucrativo que perpassa a actividade social dos casinos da Região Administrativa Especial de Macau.

Todavia, apesar de existir, em geral, uma relação de simbiose perfeita entre os funcionários dos casinos e a organização-casino, na prossecução do referido escopo lucrativo, essa sinergia não se estende ao ponto de diluir o animus donandi que preside à atribuição/entrega das tips [artigo 948.º, alínea a), do Código

59 A este propósito, a doutrina alemã, referindo-se à estrutura organizativa, aduz que “os inúmeros interesses humanos não são apenas interesses individuais; a sua satisfação exige a reunião e a colaboração, de vários sujeitos; (…..) existe, pois, uma reunião de vontades e de faculdades individuais, através do fi m que a organização prossegue”; Ludwig Enneccerus/Theodor Kipp/Martin Wollf, Lehrbuch des Bür-gerlichen Rechts, (1926), § 926; na doutrina italiana, Antonio Tarantino, La Teoria della necessità nell’ordinamento giuridico – Interpretazione della dottrina di Santi Romano, 2.ª edição, (1980), passim.60 Neste sentido, na doutrina portuguesa, Diogo Costa Gonçalves, Pessoa Colectiva e Sociedades Comerciais, Dimensão Problemática e Coordenadas Sistemáticas da Personifi cação Jurídico-Privada, Colec-ção Teses, dissertação de doutoramento, Almedina, Coimbra, (2015), p. 312.

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Civil de Macau], por exemplo, aos casino table dealers, que lidam de perto com os casino patron e com alguns high profi le rollers dos casinos de Macau61-62-63.

Por conseguinte, a essas gratifi cações (tips) preside, em particular, uma especí-fi ca intenção dos casino patrons de gratifi car o serviço prestado, por um lado, pelo casino table dealers e, por outro lado, por todos os empregados dos casinos (croupiers, casino table dealers, fl oor managers, “pit bosses”, fl oor men, box men, cashiers, casino service team lead)64; uma vez que é este conglomerado de pessoas altamente qualifi -cadas que prestam o serviço e, inerentemente, concretizam o animus ludendi, em vista do qual os casino patrons frequentam os casinos da Região Administrativa Especial de Macau65.

Reversamente, se os casinos, como por vezes acontece, congelam o minimum wage dos casino table dealers, croupiers, fl oor managers, “pit bosses”, fl oor men, box men, cashiers, casino service team lead) e, posteriormente, redistribuem artifi ciosa-mente por aqueles, o dinheiro integrante desse tip-pooling, como forma de com-

61 Sobre os high profi le rollers da mainland China, X. Gu, G. Li & P. S. Tam, “Casino Tourism, Social Costs and Tax Eff ects”, in: International Gambling Studies, Volume 13, number 2, 222 e ff ., (2013).62 Ainda sobre os high profi le rollers da mainland China, com mais detalhe, Z. Zeng & D. Forrest, “High Profi le Rollers from Mainland China: A Profi le Based on 99 cases”, in: UNLV Gaming Research & Rev. Journal, Volume 13, number 1, pp. 33-37, (2009).63 Sobre os VIP-Room Contractors, C. Wang, “ Licensing VIP-Room Contractors or Gaming Promoters in Macao; The Status Quo Improvement,”, in: UNLV Gaming Research & Rev. Journal, Volume 18, number 2, pp. 107-108, (2014).64 O que, obviamente, não signifi ca que todas as posições dos trabalhadores dos casinos (por exem-plo, os fl oor supervisors e os pit managers), possam receber gratifi cações (tips) directamente dos casino patrons, e que, coerentemente, sejam eliminados do tip-pooling. O que facilmente se entende, à luz da prevenção de ilegalidades e de um eventual favorecimento em relação a alguns high profi le rollers que poderiam, dessa forma, “comprar” a “simpatia” dos “pit bosses”, de modo a que estes “ fechem os olhos” a eventuais ilegalidades cometidas por aqueles. Foi exactamente isso que aconteceu, na tip--pooling policy do Wynn Las Vegas LLC, que, em virtude da qual, eliminou essas posições (as de pit managers e de fl oor supervisors), e introduziu a posição de casino service team lead (CSTL). A este propósito, a doutrina norte-americana refere que “the traditional of fl oor supervisor is to watch for cheat-ing or any sign of problems, to handle altercations or disputes with customers, and to generally keep the fl oor running smoothly. If the fl oors supervisor’s job is to watch the dealers, then the “pit bosses”, are the heads of the casino fl oors and are called into action when major disputes or allegations arise. These have institutional, quintessential casino positions and are na integral part of the operation-they are not to be tipped. It is easy to see why tipping the supervisors of the casino fl oor could become na illegitimate pratice because of the possible perception that the tip was a bribe or a payment for turning a blind eye to some less-favorable behavior on the fl oor. These issues can explain why in the Wynn’s handbook, these are two of the positions barred from receiv-ing tips”; Kandis Mcclure, “Tip-Pooling at Nevada Casinos”, cit., p. 88.65 Neste sentido, Hugo Luz dos Santos, “The contracts for gaming and betting in Macau and the credit for gaming: the issue of “walking”, in: Gaming Law Review and Economics (GLR&E), Vol. 19, n.º 8, October 2015, (2015), passim.

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plemento salarial, não deixa de constituir uma forma encapotada de apropriação ilegítima (taking).

Porquanto, nestes casos, o casino mantém indefi nidamente congelado o minimum wage dos benefi ciários do tip-polling (averbando, desse jeito, avultadas poupanças emergentes dessa desactualização salarial, que lhe convém), e com-plementa essa desactualização salarial com a redistribuição do (muito) dinheiro constante do tip-polling: a medida do empobrecimento dos benefi ciários do tip-poo-ling, é directamente proporcional à medida do enriquecimento sem causa dos casinos.

É aqui que recobra sentido hermenêutico falar-se do enriquecimento sem causa (unjust enrichment), na modalidade de enriquecimento por intervenção (Ein-griff skondiktion), uma vez que, neste caso, existe uma ingerência, dos casinos de Macau, nos bens alheios dos benefi ciários do tip-pooling.

Este enriquecimento, designado na doutrina como enriquecimento por inter-venção, constitui uma categoria autónoma do enriquecimento, no qual pode não existir um dano patrimonial do “empobrecido”66-67, designadamente nas situações de utilização de bens alheios, já que mesmo que o seu dono68 nenhum proveito

66 Neste sentido, na doutrina portuguesa, monografi camente, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, O Enriquecimento sem Causa no Direito Civil, Estudo Dogmático sobre a Viabilidade da Con-fi guração Unitária do Instituto, face à Contraposição entre as Diferentes Categoriais de Enriquecimento sem Causa, Colecção Teses, dissertação de doutoramento, Almedina, Coimbra, (2005), pp. 740-741.67 O que, na aparência, acaba por acontecer com os benefi ciários do tip-pooling, uma vez que estes (as mais das vezes), nem sequer se apercebem (directamente) da medida do seu empobrecimento patri-monial; o que se explica pelo facto de, em regra, a esse empobrecimento patrimonial – que, como vimos, é real, quanto à sua incidência na esfera jurídica dos benefi ciários do tip-pooling; mas que é realizado, pelos casinos, de forma puramente velada -, não presidir uma (directa e imediata) des-locação patrimonial da esfera patrimonial do enriquecido (casinos), para a esfera jurídica do empo-brecido (os benefi ciários do tip-pooling). Essa deslocação patrimonial é realizada de forma maviosa, em três passos sucessivos: i) a criação do tip-pooling (que, em si mesmo tomada, prossegue, até, objectivos de transparência, acima elencados); ii) o congelamento “sine die” do minimum wage, e, por fi m, iii) pela redistribuição dos montantes constantes do tip-pooling, pelos seus benefi ciários, como forma de complemento salarial daquela (indefi nida, no tempo) desactualização salarial: nisto consiste o taking dos casinos.68 A doutrina portuguesa, tem-se referido, neste âmbito, às regulações do dono, “que ultrapassam, porém, a propriedade, abrangendo quaisquer direitos de exclusivo, direitos que conferem ao seu titular o monopólio o aproveitamento de certo bem, com afastamento de terceiros. Por isso, se usa a palavra “dono”, que deve ser entendida muito amplamente (…..) as regulações do dono mais simples são a proibição e a autorização. O dono tem o poder de proibir a actuação de terceiros sobre o seu bem”; neste sentido, Pedro Múrias, “Regula-ções do dono”, in: Estudos em Homenagem à Professora Doutora Isabel Magalhães Collaço, Volume II, Almedina, Coimbra, (2002), p. 270.

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tirasse desses bens, o “intrometido” benefi ciou indevidamente deles69, razão porque está obrigado a indemnizá-lo, restituindo-lhe o “valor da expropriação”70.

A intervenção ou ingerência na esfera jurídica alheia, a dos benefi ciários do tip--pooling, pode ser facto constitutivo de responsabilidade civil, segundo os cri-térios gerais do artigo 477.º do Código Civil de Macau. O enriquecimento por intervenção, que constitui uma categoria autónoma do enriquecimento sem causa, surge quando alguém obtém um enriquecimento através de uma ingerência em bens alheios, traduzida, designadamente, no uso, fruição, consumo, e disposição dos mesmos71. Mesmo que o proprietário, se acaso não tivesse ocorrido tal intromissão ou interferência, nenhum proveito tirasse dos bens, sempre o intrometido estará obrigado a indemnizá-lo do valor dos frutos72 que obteve à custa desses bens73

69 Sobre o unjust-enrichment, na doutrina norte-americana, Dan B. Dobbs, Law of Remedies: Dam-ages-Equity-Restitution, ch 4, 2nd edition, (1993), pp. 550-776; Goff & Jones, The Law of Unjust Enrichment, 8 th edition, (2011), pp. 3-54; sobre a restituição, rege o princípio que subjaz à dout-rina norte – americana do gain –based damages, ou seja, «the wrondoer is left back where he started», na doutrina norte – americana Andrew Kull, “Restitution’s Outlaws”, in: Chicago-Kent Law Review, Volume 87, (2003), p. 19, princípio que surge intrinsecamente ligado com a moral haz-ard, que estipula que “What moral hazard means is that, if you cushion the consequences of bad behav-ior, then you encourage that bad behavior”; Tom Baker, “On the Genealogy of Moral Hazard”, in: Texas Law Review, Volume 75, Number 2, December 1996, (1996), p. 238; Reiner H. Kraak-man, “Corporate Liability Strategies and the Costs of Legal Controls”, in: Yale Law Journal, 857, 873-874, (1984), (business law and moral hazard); Howell E. Jackson, “The Expanding Obligations of Financial Holding Companie”, in: Harvard Law Review, 509, 512, (1994) (bank-ing regulation and moral hazard); por essa razão, autorizada doutrina norte-americana, faz referência, no âmbito do direito dos contratos, a um “minimum moral virtue”; Seana Valentine Shiffrin, “The divergence of contract and promise”, in: Harvard Law Review, N.º 3, Volume 120, January 2007, (2007), p. 718.70 Neste sentido, na doutrina portuguesa, Joel Timóteo, “Enriquecimento sem causa: exige sempre empobrecimento?” in: Revista «O Advogado», n.º 35 - Setembro de 2003, (2003), passim.71 Neste sentido, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, O Enriquecimento sem Causa no Direito Civil, cit., p. 662.72 Aproximadamente neste sentido, na doutrina norte-americana, George P. Roach, “How Restitution and Unjust Enrichment Can Improve Your Corporate Claim”, in: Re. Litig., Volume 26, 265 e ff , (2007).73 Neste sentido, na doutrina portuguesa, Júlio Gomes, O Conceito de Enriquecimento, o Enrique-cimento Forçado e os Vários Paradigmas do Enriquecimento sem Causa, dissertação de doutoramento, Universidade Católica Editora, Porto, (1998), pp. 759 e ss; Manuel Carneiro da Frada, Direito Civil- Responsabilidade Civil. O Método do Caso, Almedina, Coimbra, (2005), pp. 69 e ss.

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ou do valor do uso74 que deles fez, restituindo-lhe75-76-77, pois, o valor de explo-ração78-79.

É a esta luz cinérea, a da exclusividade da fruição do dinheiro integrante do tip pooling (por parte dos seus benefi ciários), que se enquadra a teoria do conteúdo da destinação, que assenta essencialmente na tese de que qualquer direito subjectivo absoluto atribui ao seu titular a exclusividade80 (ius excludendi alios) do gozo e da fruição da utilidade económica do bem81. Essa exclusividade implica uma ordenação jurídica dos bens, que se vier a ser desrespeitada através da intervenção de outrem no âmbito exclusivamente destinado aos titulares do direito permite-lhes inten-

74 Na doutrina italiana, Rodolfo Sacco, L’arrichimento ottenuto mediante fatto ingiusto, Torino, UTET, (1959), pp. 32 e ss.75 Neste sentido, na doutrina norte-americana, Jack Beatson, “Restitution and Contract: Non-Cumul”, in: Theoretical Inquiries in Law, Vol. 1, (2000), pp. 89-91.76 Neste sentido, na doutrina norte-americana, David Dittfurth, “Restitution in Texas: Civil Liability for Unjust Enrichment”, in: Texas Law Review, Vol. 54, (2012), pp. 266-274.77 Na doutrina norte-americana, Eric J. Konopka, “Hey, That’s Cheating! The Misuse of the Irreparable Injury as a Shortcut to Preclude Unjust Enrichment Claims”, in: Columbia Law Review, Vol. 114, (2014), p. 2049.78 Neste sentido, na doutrina alemã, no âmbito do consumo de bens imateriais, Bolze, “Gibt es einen Anspruch auf Schadensersatz oder Herausgabe der gezogenen Nutzung wegen einer Patentverletzung, die weder wissentlich noch grobfahrlässig begangen ist?”, in: AcP 92, (1902), pp. 324 e ss.79 Joel Timóteo, “Enriquecimento sem causa: exige sempre empobrecimento?”, cit., 80 A doutrina salienta, a este propósito, a necessidade de tutelar a liberdade contratual, ou seja, proteger o direito do titular de um bem de utilização em seu próprio benefício, e bem assim, a expec-tativa de utilização nos termos por si concebidos; Neste sentido, ainda que no quadro dos punitive damages, Allan Schwartz, “The Myth That Promises Prefer Supracompensatoty Remedies: An Analysis of Contracting for Damages Measures”, in: Yale Law Journal (YLJ), Vol. 100, n.º 2, November 1990, pp. 375 e ss; na doutrina francesa, Catherine Thibierge, “Libres propôs sur l’evolution du droit de la responsabilité (vers un élargissment de la fonction de la responsabilité civile?”, in: Revue Trimestrielle de Droit Civil (RTDC), n.º 3, Juillet-Septembre, (1999), pp. 574-579; na doutrina italiana, Giulio Ponzanelli, “I Punitive Damages Nell’esperienza Nordamericana, in: Rivista di Diritto Civile (RDC), Anno XXIX, Parte Prima, (1992), pp. 365-472; na doutrina portuguesa, neste preciso sentido, Paula Meira Lourenço, A função Punitiva da Responsabilidade Civil, dissertação de mestrado, Coimbra Editora, Coimbra, (2006), p. 181.81 Aproximadamente no mesmo sentido, na doutrina norte-americana, Eric J. Konopka, “Hey, That’s Cheating! The Misuse of the Irreparable Injury as a Shortcut to Preclude Unjust Enrich-ment Claims”, cit.,2045 e ss.

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tar a acção de enriquecimento sem causa (artigo 467.º, n.º 1, do Código Civil de Macau)82-83-84-85.

V) O tip-pooling e o dano reputacional dos casinos da Região Adminis-trativa Especial de Macau: relação de mútua implicação? – brevíssimas notas

É consabido que a Região Administrativa Especial de Macau, tal como o Estado do Nevada, e, em particular, Las Vegas, depende (quase exclusiva-mente), da indústria do jogo e dos seus elevados proventos fi nanceiros86-87.

82 Neste sentido, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, O Enriquecimento sem Causa no Direito Civil, cit., p. 772.83 É a consagração da ideia reitora de que o autor de um comportamento ilegítimo não deve benefi ciar dessa conduta torpe; a este respeito, a doutrina norte-americana, refere que “Favoring gain-based awards are strong ethical intuitions that promises should be kept and those who breach their contracts should not profi t from their wrongs”, Ernest W. Weinrib, “Punishment and Disgorgement as Contract Remedies”, in: Chicago-Kent Law Review, Vol. 78, (2003), pp. 70-74; William S. Dodge, “The Case for Punitive Damages in Contracts”, in: Duke Law Journal, Vol. 48, (1999), pp. 629 e ss; neste preciso sentido, na doutrina portuguesa, Henrique Sousa Antunes, Da Inclusão do Lucro Ilícito e de Efeitos Punitivos entre as consequências da Responsabilidade Civil Extracontrual: a sua Legitimação pelo Dano, dissertação de doutoramento, Coimbra Editora, Grupo Wolters Kluwer, (2011), pp. 287-288.84 A jurisprudência norte-americana, mostra-se cada vez mais restritiva na admissibilidade da unjust-enrichment claims, mobilizando, com esse escopo restritivo o requisito da “irreparable injury rule”; neste sentido, United States v. Bame, 2012-2 U.S. Tax Cas. (CCH) §50, 528, at 86, 491 (D. Minn. 2012).85 Quanto ao requisito de subsidiariedade dos meios judiciais que possibilitem a restituição do enri-quecimento sem causa, (artigo 468.º, do Código Civil de Macau), na jurisprudência norte-ame-ricana, tendo como pano de fundo o requisito da “irreparable injury rule”; ver Kelley v. Coll. of St. Benedict, 901 F. Supp. 2d 1123, 1132 (D. Minn) (denying unjust-enrichment claim when plaintiff could have obtained relief under fraudulent-transfer statute).86 Como refere abalizada doutrina, “In 2014, Macau’s Hospitality Industry contributed almost 90 % of its gross domestic product (GDP). This contribution, in turn, came almost entirely from Macau’s gaming indus-try”; neste sentido, Glenn Mccartney, “When the Eggs in One Basket All Cracked: Address-ing the Downturn in Macau’s Casino VIP Junket System”, in: Gaming Law Review and Economics (GLR&E), Volume 19, Number 7, September 2015, (2015), p. 527.87 Aproximadamente no mesmo sentido da nota anterior, na doutrina norte-americana, Kate O’Keefe, “Macau Gambling Revenue Suff ers First Full-Year Fall: China’s Antigraft Campaign Blamed for Macau’s First Recorded Full-Year Decline in Gambling Revenue”, in: Wall Street Journal (WSJ), (2015), passim.

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De tal facto se infere que, essa dependência económico-fi nanceira da indús-tria do jogo88, faz impender, sobre o Estado-Colectividade da Região Administra-tiva Especial de Macau, uma responsabilidade acrescida no sentido de prover à (boa) imagem social da referida indústria do jogo.

Reversamente, a indefi nição em torno da regulação/regulamentação do tip-pooling, faz perigar os alicerces em que se estriba essa (almejada) imagem social da indústria do jogo (que, consabidamente, é um privilégio e não um direito…), na medida em que fomenta a litigância judicial entre os casinos da Região Admi-nistrativa Especial de Macau e os seus funcionários, emergindo, refl examente, um (indesejado) dano reputacional da indústria do jogo de Macau.

Por conseguinte, denota-se uma mútua implicação entre a ausência de regu-lamentação do tip-pooling e o dano reputacional da indústria de jogo de Macau.

Mas o que signifi ca o dano reputacional 89?Signifi ca, em rectas contas, um dano à imagem social da indústria do jogo90

que vê seriamente afectada a sua imagem social, de produtor de ambientes de cariz eminentemente lúdico, e, por conseguinte, de penhor seguro do interesse comu-nitário nessa produção.

Talvez por essa razão, autorizada doutrina considere que estamos perante “danos à nacão”91; e, quiçá pela mesma razão, abalizada doutrina alemã se refi ra a um “dano patrimonial indirecto”92, e, entre nós, a um “dano indirecto ou refl exo”93.

A referência ao dano patrimonial indirecto, é dizer, ao dano reputacional da indústria do jogo94 prende-se, essencialmente, como acima se deixou anteci-

88 Ver, Glenn Mccartney, “When the Eggs in One Basket All Cracked: Addressing the Down-turn in Macau’s Casino VIP Junket System”, cit., p. 529.89 Seguiremos de muito perto, o que escrevemos em Hugo Luz dos Santos, “Credit for Gaming in the Casinos of the Special Administrative Region of Macau. Contribution for the Resolution of the issue of “Side-Betting”, passim.90 Kandis Mcclure, “Tip-Pooling at Nevada Casinos”, cit., p. 96.91 Referindo, no que respeita ao dano reputacional do Estado, que “cremos, na verdade, que o Estado, enquanto forma de organização de uma nação, pode efectivamente sofrer danos de imagem (…) ao menos os danos à “nação””; Manuel Carneiro da Frada, “Danos societários e governação de sociedades (corporate governance)” in: Cadernos de Direito Privado (CDP), n.º especial-II Seminário dos Cader-nos de direito privado – Responsabilidade Civil, Cejur, Braga, Dezembro de 2012, (2012), pp. 17-29.92 Na doutrina alemã, Wolfgang Grunsky, Aktuell probleme zum begriff des vermogensschadens, Beck, München, 2. Aufl age, (2008), p. 10.93 Adelaide Menezes Leitão, “Responsabilidade dos Administradores para com a sociedade e os credores sociais por violação de normas de protecção”, in: Revista de Direito das Sociedades (RDS), Ano I, Número I, Director: António Menezes Cordeiro, Almedina, Coimbra, (2009), pp. 647-679.94 Na doutrina italiana, sobre o dano patrimonial indirecto, Renato Scognamiglio, “Il dano morale. Contributo alla teoria del danno extracontrattuale”, in: Rivista de Diritto Civile, Cedam, Padova, (1957), pp. 283-285.

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pado, com a reputação95-96, com a credibilidade97, com a projecção social 98-99-100 da indústria do jogo da Região Administrativa Especial de Macau; e esse dano repu-tacional do indústria do jogo, ainda que contenha em si considerações de natureza patrimonial, tem muito mais que ver com o facto de que, com a sua produção, contrariar-se decisivamente os fi ns do titular do património101-102: a produção de ambientes lúdicos, para os casino patrons, e não uma fonte de desestabilização social.

Funchal, (Madeira, com um relance do olhar para as Desertas), 9 de Outu-bro de 2015.

95 Procedendo, ainda que noutro âmbito temático, a densifi cação da medida de signifi cado fun-cional que funda os danos não patrimoniais infl igidos à pessoa colectiva, Maria Manuel Veloso, “Danos não patrimoniais a sociedade comercial? – Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20.4.2004, Apelação n.º 430/04”, in: Cadernos de Direito Privado (CDP) n.º 18, Director: Luís Couto Gonçalves, Cejur, Braga, (2007), referindo, para o efeito que, “a expressão dano não patri-monial apresenta-se como mais ampla do que a do dano moral, não tendo de cingir-se a circunstâncias do foro ético-afectivo”, pp. 34-35.96 No mesmo sentido da nota anterior, Maria Manuel Veloso, “Danos não patrimoniais”, in: Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977, Volume III, Direito das Obrigações, Coimbra, Coimbra Editora, (2007), passim.97 Jónatas Machado, “A Glória, a Honra e o Poder – Observações sobre a liberdade de imprensa em democracia”, in: Revista de Legislação e Jurisprudência (RLJ), Ano 143.º, N.º 3984, Janeiro-Fe-vereiro de 2014, Director: António Pinto Monteiro, Coimbra Editora, Coimbra, (2014), p. 179.98 Neste sentido, monografi camente, Filipe Miguel Cruz de Albuquerque Matos, Responsa-bilidade Civil por ofensa ao Crédito ou ao Bom Nome, Colecção Teses, tese de doutoramento, Alme-dina, Coimbra, (2011), p. 380.99 Na doutrina norte-americana, Toni Massaro/Robin Stryker, “Political Discourse, Civil-ity, and Harm: Freedom of Speech, Liberal Democracy, and Emerging Evidence on Civility and Eff ective Democratic Engagement”, in: Arizona Law Review, Volume 54, (2012), p. 374.100 No mesmo registo, alguma da mais abalizada doutrina nacional refere-se, no quadro das pessoas colectivas, à “aparência social”, Jorge Sinde Monteiro/Almeno de Sá, “A Responsabilidade da pessoa colectiva pelos actos dos seus representantes – Anotação ao Acórdão do Supremo Tribu-nal de Justiça, de 25 de Junho de 1998”, in: Revista de Legislação e Jurisprudência (RLJ), Ano 140.º, n.º 3956.º ( Janeiro-Fevereiro de 2011), Director: António Pinto Monteiro, Coimbra Editora, Coimbra, (2011), pp. 188-199.101 Na doutrina alemã, MERTENS, Köllner Kommentar zum Aktiengesetz, 2/1, 3.Aufl age, (2010), § 93, nota 59.102 Uma vez que, enquanto expressão de “(….) um fi m primário; ela visa também a protecção dos indi-víduos”, Jorge Sinde Monteiro, A Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, Colecção Teses, dissertação de doutoramento, Almedina, Coimbra, (1989), p. 249.

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O papel do revisor ofi cial de contas na avaliação das entradas em espécie

BRUNO JOSÉ MACHADO DE ALMEIDA* CARLOS ALBERTO DA SILVA E CUNHA**

Sumário: Introdução. 1. Obrigação de entrada. 2. Finalidade da avaliação das entradas em espécie por um Revisor Ofi cial de Contas. 3. Conteúdo do relatório e avaliação dos bens. 4. Alguns tipos de entradas: 4.1. Bens imóveis; 4.2. Know-How (saber-fazer); 4.3. Entradas com créditos; 4.4. Entradas com o mero gozo de bens. 5. As entradas em espécie e o contrato da sociedade. 6. Erro na avaliação: a responsabilidade do revisor ofi cial de contas. Conclusão. Referências bibliográfi cas.

Introdução

Este trabalho pretende analisar as entradas em espécie das sociedades anóni-mas e das sociedades por quotas, não abrangendo as contribuições de indústria1 referentes às sociedades em nome coletivo. Abordando a componente legal – Código das Sociedades Comerciais – e a componente normativa de auditoria – DRA 841 – procuramos dar a conhecer a fi nalidade do trabalho do revisor ofi cial de contas, os interesses que deve proteger, as difi culdades com que se depara na avaliação das entradas em espécie, nomeadamente na aplicação do justo valor, e as responsabilidades que podem resultar de erro na avaliação.

* Revisor Ofi cial de Contas. Professor Coordenador na Coimbra Business School – ISCAC.** Revisor Ofi cial de Contas. Professor Convidado da Universidade do Minho.1 O artigo 179.º do CSC autoriza que nestas sociedades seja dispensada a avaliação do revisor ofi -cial de contas.

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1. Obrigação de entrada

A obrigação de entrada constitui, a par da obrigação de quinhoar nas per-das, uma das obrigações principais dos sócios de uma sociedade [al. a) do artigo 20.º do CSC]. Ou seja, a contribuição de bens ou de serviços é uma das con-dições essenciais para que um sócio se possa designar como tal. Como refere Tarso Domingues (2013a)), “Trata-se de uma obrigação originária (no sentido de que está na origem da atribuição da qualidade de sócio), fundacional (uma vez que sem ela não é possível a constituição, a fundação de uma sociedade; só há sociedade se os sócios se obrigarem a realizar contribuições para a mesma) e até funcional (porquanto, em muitas situações, os direitos e os deveres dos sócios fi cam determinados em função da entrada que cada um realiza)”.

As entradas dos sócios correspondem a uma contribuição para o património da sociedade, necessário à persecução dos fi ns a que se propõe. Estas podem ser realizadas em dinheiro ou em espécie, no entanto o seu valor tem que obedecer ao princípio da exata formação do capital social e ao princípio da igualdade de tratamento dos sócios. Estes princípios estão consubstanciados na redação do n.º 1 do artigo 25.º do CSC “O valor nominal da parte, da quota ou das ações atribuídas a um sócio no contrato de sociedade não pode exceder o valor da sua entrada, como tal se considerando ou a respetiva entrada em dinheiro ou o valor atribuído aos bens no relatório do revisor ofi cial de contas, exigido pelo artigo 28.º”2 (negrito nosso). Signifi ca que um sócio não pode entrar com um valor de 50 para subscrever uma participação de valor nominal de 100, no entanto, já nada o impede, sendo expressamente admitido, que um sócio entre com um valor de 100 para subscrever uma participação de valor nominal de 50, ou seja, o valor da entrada constitui o limite máximo do valor nominal da participação social, podendo este ter um valor inferior ao da contribuição do sócio (Coutinho de Abreu, 2015; Tarso Domingues, 2013b)). Podemos assim concluir que a deter-minação de um valor nominal da participação mais baixo que o efetivo valor da contribuição é uma opção que pode ser livremente tomada pelos sócios, assim se conseguindo que o valor do património inicial seja pelo menos idêntico ao capital social (também inicial), como é referido por Coutinho de Abreu (2015).

As entradas em espécie são constituídas por créditos e outros bens ou valo-res realizáveis em dinheiro. Olavo Cunha (2012), elenca os seguintes exemplos de entradas em espécie: valores mobiliários, letras de câmbio e outros títulos de crédito, cedência de créditos, garantias transmissíveis, ouro ou metais pre-ciosos, quaisquer bens móveis, patentes, marcas, direitos de autor, Know-how,

2 Quer no momento da constituição da sociedade, quer num momento ulterior de aumento do capital social (artigo 89.º, n.º1).

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estabelecimento comercial, imóveis, cedência de posição contratual, gozo de bens3, etc.

A regra, consagrada no n.º 1 do artigo 26.º do CSC, refere que “As entradas dos sócios devem ser realizadas até ao momento da celebração do contrato, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.”. As entradas em dinheiro podem ser diferidas por um período até 5 anos4, no entanto as entradas em espécie necessitam de ser realizadas no momento da constituição da sociedade, uma vez que existindo os bens não se vislumbra nenhum interesse em especial no diferimento da sua entrega (Olavo Cunha, 2012).

2. Finalidade da avaliação das entradas em espécie por um Revisor Ofi cial de Contas

Face à limitação da inadmissibilidade do valor da entrada ser inferior ao valor nominal da participação social, a avaliação de uma entrada em espécie ganha uma particular relevância. O n.º 1 do artigo 28.º do CSC requer que as entradas em espécie sejam objeto de um relatório elaborado por um revisor ofi cial de contas, sem interesses na sociedade5.

A principal razão para que haja a intervenção de um revisor ofi cial de con-tas independente na credibilização6 da avaliação de um bem, está relacionada com a função rainha que é imputada ao capital social – a garantia dos credores (Menezes Cordeiro, 2009). Como refere Triunfante (2014) “todo e qualquer bem que se pretenda integrar na entrada de um sócio…deve ser suscetível de expropria-ção forçada por parte dos credores.” Assim, as entradas integram o património da

3 “Se a sociedade for privada, por ato legítimo de terceiro, do bem prestado pelo sócio ou se tor-nar impossível a sua prestação, bem como se for inefi caz a estipulação relativa a uma entrada em espécie, nos termos do n.º 2 do artigo 9.º, deve o sócio realizar em dinheiro a sua participação…” – n.º 4, artigo 25.º do CSC.4 Nas sociedades anónimas só pode ser diferido 70% do valor nominal das ações (n.º 2 do artigo 277.º do CSC), não podendo o diferimento exceder o prazo de 5 anos (n.º 1 do artigo 285.º do CSC), ou seja, no momento da celebração do contrato deverá ser realizado um mínimo de 30% do valor nominal das ações. Nas sociedades por quotas o n.º 1 do artigo 203.º do CSC, refere que o diferimento não pode ultrapassar os 5 anos.5 “A vaguidade deste preceito permite afastar os que se encontrem ligados afetiva ou patrimoni-almente a interesses na sociedade e neles incluímos os que, de algum modo, se relacionem eco-nomicamente com a sociedade” (Olavo Cunha, 2012).6 Muitas vezes o revisor ofi cial de contas recorre a trabalho de um perito para proceder à avaliação económica do bem em causa; no entanto, a responsabilidade última por essa avaliação será sempre do revisor ofi cial de contas. Ver ISA 620 – Usar o Trabalho de um perito do auditor.

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sociedade, constituindo a garantia dos credores (só através da penhora7 é que o credor obtém uma garantia efetiva sobre o património do devedor), bem como permitem o arranque e o desenvolvimento da atividade da sociedade. Como refere Menezes Cordeiro (2014) “O direito comunitário preocupou-se muito com as entradas em espécie: ao passo que as entradas em dinheiro são facilmente confrontáveis através do seu valor nominal, as entradas em espécie têm um valor objetivo discutível. Os particulares interessados podem ser levados a empolá-lo, em detrimento dos credores.

A avaliação efetuada pelo revisor ofi cial de contas tem como fi nalidade obter uma garantia razoável de que o bem com que o sócio realiza a sua entrada não é inferior ao valor nominal dessa entrada, podendo, no entanto, ser superior.

O legislador, ao referir que a designação do revisor ofi cial de contas deve ser efetuada por deliberação tomada pelos sócios, na qual estão impedidos de votar os sócios que efetuam tais entradas, pretende evitar o confl ito de interes-ses entre os sócios: o sócio que efetua a entrada em espécie pretende valorizá-la ao máximo, enquanto os restantes sócios, a sociedade e os credores (estes de uma forma indireta), querem evitar eventuais prejuízos decorrentes de uma sobreavaliação. A contratação do revisor ofi cial de contas para a avaliação dos bens deve ser imputada à sociedade e não ao sócio que efetua a entrada, estabe-lecendo-se assim uma relação contratual entre ambos.

O revisor ofi cial de contas, designado em assembleia-geral, não poderá, durante dois anos contados da data de registo do contrato de sociedade, exercer quaisquer cargos ou funções profi ssionais nessa sociedade ou em sociedades que com ela se encontrem em relação de domínio ou de grupo8. Assim, a avaliação das entradas em espécie não pode ser atribuída ao revisor da própria sociedade, ou seja, tem que ser um revisor diferente do revisor responsável pela emissão da certifi cação legal das contas. Salienta-se o disposto na al. a) do artigo 133.º e no artigo 134.º do Estatuto da Ordem dos Revisores Ofi ciais de Contas (EOROC)9, nos quais é referido que um sócio de uma SROC con-

7 Saliente-se que Coutinho de Abreu (2015) refere que a expressão “bens suscetíveis de penhora”, contida na al. a) do artigo 20.º do CSC, deve ser interpretada de acordo com o direito comunitário (artigo 7.º da Diretiva 2012/30/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de outubro de 2012 – aplicável somente às sociedades anónimas) como só sendo possível realizar o capital social com elementos do ativo suscetíveis de avaliação económica.8 Ver acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte – processo 01410/04.0BEBRG “Está impedida de exercer funções como revisor ofi cial de contas de uma sociedade,…., a SROC que tiver elaborado o relatório de avaliação das respetivas entradas em espécie. Um ROC, sócio dessa SROC, nunca poderá exercer as suas funções a título individual, seja quando elabora o relatório de avaliação, seja quando desempenha funções de revisão legal.”.9 Lei n.º 140/2015 de 7 de setembro.

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sagra a essa sociedade toda a sua atividade profi ssional, não podendo exercer a título individual as funções contempladas no referido estatuto, com a exceção da docência. No entanto, tal não é a situação verifi cada na maioria dos países da União Europeia; com efeito o § 5 da DRA 841 – Verifi cação das entradas em espécie para a realização de capital das sociedades – refere que “Com exceção da França, que tem um sistema idêntico ao nosso, nos restantes países da União Europeia tal perito pode ser o revisor da própria empresa.”

3. Conteúdo do relatório e avaliação dos bens

O relatório a elaborar pelo revisor ofi cial de contas deve ser datado de uma data compreendida entre 90 e 15 dias antes da celebração do contrato da socie-dade (n.º 4 e n.º 5 do artigo 28.º do CSC), dando assim possibilidade aos sócios de conhecer o conteúdo do relatório, nomeadamente a avaliação e os critérios utilizados, e se esta é ou não sufi ciente para cumprir com o disposto no n.º 1 do artigo 25.º do CSC. Quaisquer alterações relevantes no valor dos bens que tenham acontecido até à celebração do contrato devem ser comunicadas aos sócios.

Conforme mencionado no n.º 6 do artigo 28.º do CSC, o relatório está sujeito às formalidades de publicidade, uma vez que também estão em causa os interesses dos credores. Conforme mencionado por Tarso Domingues (2013c)):”O regime dessa publicidade é o que resulta do artigo 167.º, e ainda, por força da remissão do artigo 166.º, o previsto no CRCom. (nomeadamente nos artigo 70.º a 72.º deste diploma)”.

Conforme é mencionado no n.º 3 do artigo 28.º do CSC, e no § 12 da DRA 841, o relatório do revisor deverá conter, pelo menos, os seguintes elementos:

a. Descrever os bens;b. Identifi car os seus titulares;c. Avaliar os bens, indicando os critérios utilizados para a sua avaliação;d. Declarar se os valores encontrados atingem ou não o valor nominal da

parte, quota ou ações atribuídas aos sócios que efetuaram tais entradas, acrescido dos prémios de emissão, se for caso disso, ou a contrapartida a pagar pela sociedade;

e. No caso de ações sem valor nominal, declarar se os valores atingem ou não o montante do capital social correspondentemente emitido.

Conforme é referido na DRA 841, nos § 11 e 13, o revisor ofi cial de con-tas deve verifi car se os bens estão em condições de poderem ser utilizados na

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realização de capital, ou seja, se são bens operacionais, úteis ou facilmente tran-sacionáveis pela sociedade. O revisor ofi cial de contas deve, designadamente, confi rmar a titularidade dos bens ou direitos em causa, bem como eventuais ónus, encargos ou quaisquer condicionamentos que sobre eles possam existir, através da obtenção de certidões da respetiva conservatória ou de confi rmações obtidas diretamente das entidades respetivas ou da execução de procedimentos alternativos.

Em relação à avaliação dos bens, nem o normativo legal, nem a referida DRA, dizem quais são os critérios de avaliação que devem ser utilizados. Como refere Triunfante (2014),“a ausência de previsão legal sobre os critérios a utilizar deve-se, no entender da doutrina, a duas razões: impossibilidade de prever critérios para entradas tão diferentes e permitir a discricionariedade técnica dos peritos.”

O § 14 da DRA 841 salienta que o critério mais adequado para valorizar as entradas em espécie é o critério do justo valor. Parece-nos plausível que possam ser os sócios a determinar qual o valor das entradas, aliás tal entendimento está patente no § 5 da DRA 841: “Na maioria dos países da União Europeia, entende--se que a função do revisor ofi cial de contas é a de emitir uma opinião sobre a avaliação efetuada por terceiros, que podem ser os próprios interessados e/ou peritos especialistas”. Em consonância com esta posição encontramos Coimbra Henriques (2014), ao salientar que certifi car o valor da participação é diferente de avaliar, pois aquele que certifi ca unicamente afi rma, ou comprova, que a avaliação efetuada está correta.

Havendo acordo entre os sócios, fará sentido ainda a intervenção do revisor ofi cial de contas? Claro que sim, uma vez que a principal função do revisor ofi cial de contas na avaliação dos bens nas entradas em espécie é a proteção dos credores (Menezes Cordeiro, 2015; Coutinho de Abreu, 2015; Triun-fante, 2014; Tarso Domingues, 2013b); e Menezes Cordeiro, 2009). Refi ra-se que apesar do relatório ter que ser disponibilizado aos sócios até 15 dias antes do contrato de sociedade, o valor atribuído ao bem e o respetivo contrato já podem estar negociados entre as partes, ou seja, o relatório elaborado pelo revisor ofi cial de contas pode ser efetuado depois das partes terem acordado os termos das respetivas entradas (Olavo Cunha, 2012). Como refere Triunfante (2014),“O próprio léxico legal reconhece essa realidade. O revisor deve declarar se o valor das entradas em espécie atingem ou não o valor nominal da parte, quota ou ações atribuídas aos sócios que efetuaram tais entradas. Isto implica que o valor da entrada em espécie tenha já sido sugerido pelo sócio responsável pela entrada e que já tenham sido estabelecidas, pelo menos ao nível de negociação prévia¸ as percentagens de capital que caberão a todos os sócios” (negrito nosso).

Ao verifi car o resultado da avaliação por si efetuada, ou por um terceiro, o revisor ofi cial de contas pode deparar-se com três tipos de situações: a) o valor

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da avaliação é inferior ao valor nominal da entrada; b) o valor da avaliação é superior ao valor nominal da entrada; e c) o valor da avaliação é igual ao valor nominal da entrada.

Na primeira situação está em causa o princípio da exata formação do capi-tal, tal como consagrado no n.º 1 do artigo 25.º do CSC, pelo que o sócio será obrigado a reforçar a sua entrada, realizando o remanescente em dinheiro ou com a entrega de bens em espécie.

Como vimos o segundo caso é admitido pela lei, podendo de facto o sócio entregar um bem de valor superior ao valor nominal da parte de capital que subscreve. No entanto, a diferença positiva entre o valor do bem e o valor nomi-nal da parte de capital, poderá ser considerada como um prémio de emissão, ou então o sócio poderá fi car credor da sociedade. Caso a intenção seja benefi ciar a sociedade, a diferença é considerada como um prémio de emissão10 (ágio), sendo o valor contabilizado no capital próprio da sociedade, fi cando sujeito ao regime da reserva legal [al. d) do n.º 3 e al. a) do n.º 2, ambos do artigo 295.º do CSC]. Assim, o prémio de emissão apenas poderá ser utilizado: para cobrir a parte do prejuízo acusado no balanço do exercício que não possa ser coberto pela utilização de outras reservas; ii) para cobrir a parte dos prejuízos transitados do exercício anterior que não possa ser coberto pelo lucro do exercício nem pela utilização de outras reservas; ou iii) para incorporação no capital. Caso a intenção seja a de compensar o sócio, a diferença será contabilizada como um crédito do sócio sobre a sociedade.

No entanto, quer o prémio de emissão, quer a devolução do excesso têm que, obrigatoriamente, estar previstos no contrato de sociedade.

De facto, o n.º 2 do artigo 277.º11 do CSC refere “…não podendo ser diferido o prémio de emissão, quando previsto.” (negrito nosso) e a al. d) do n.º3 do artigo 28.º salienta que “…acrescidos dos prémios de emissão, se for caso disso,..”(negrito nosso). Não sendo esta a vontade dos envolvidos, ou porque o bem pode não ser divisível, ou porque as partes não querem alterar a relação de forças prevista entre eles, ou porque o sócio pode não pretender conceder nenhum prémio de emissão, não será a sociedade a fi car com o excesso, devendo ser pago ao sócio o valor correspondente (Triunfante, 2014). A doutrina, Coutinho de Abreu (2015), Triunfante (2014), Tarso Domingues (2013b)) e Ramos e Costa (2013), reconhece que a devolução do excesso deve estar prevista no contrato de sociedade. Assim, podemos concluir que o excesso da avaliação apenas pode ser reconhecido como um crédito se for expressamente previsto no contrato

10 De referir que o prémio de emissão não respeita a um sócio em particular, ou seja, ao sócio que “pagou” esse prémio, mas sim a todos os sócios.11 Conjugado com a al. g), n.º 1 do artigo 9.º do CSC e com o artigo 199.º do CSC.

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de sociedade (como acontece com o prémio). Conforme é explanado no n.º 4, do artigo 19.º do CSC “a sociedade não pode assumir obrigações derivadas de negó-cios jurídicos não mencionados no contrato social que versem sobre vantagens especiais, despesas de constituição, entradas em espécie ou aquisição de bens” (negrito nosso). Assim, caso o ROC avalie um bem, ativo fi xo tangível, num montante supe-rior ao valor nominal da participação, mas se o contrato de sociedade não prevê a atribuição de qualquer prémio de emissão, nem o pagamento do excesso ao sócio, a diferença entre o valor nominal da participação e o valor da avaliação, no nosso entender, deve ser considerada como uma reserva de reavaliação, podendo ser utilizada para aumento do capital social, quando a mesma for rea-lizada (através da venda ou pela utilização do bem).

Por último, poderemos estar perante uma situação em que o valor do bem é igual ao valor nominal da parte de capital atribuída ao sócio, que pode ser originada pelo facto de a avaliação ser efetivamente igual ao valor nominal do capital, ou porque no relatório do revisor ofi cial de contas o bem foi avaliado apenas pelo valor nominal do capital a subscrever, apesar de ter um valor supe-rior. Tal facto é reconhecido por Mota Pinto (2002) “Por vezes sucede que o revisor ofi cial de contas nada declara sobre o excesso do valor de entrada, em contramão com o disposto no artigo 28.º, n.º 3, al. d). Se este excesso for então impercetível, teremos uma reserva oculta”. Assim, se o “valor real” do bem não constar na contabilidade (pelo facto de no contrato de sociedade não estar previsto qualquer prémio de emissão nem qualquer contrapartida a pagar ao sócio, ou pelo facto do revisor ofi cial de contas ter avaliado o imóvel pelo valor do capital a subscrever), esta não refl ete esse “valor real”. A subvalorização do ativo está relacionada com a utilização de critérios de valorização (custo histórico vs revalorização), com uma valorização do bem, ou com a prática de depreciações superiores ao seu desgaste real. Quando as reservas ocultas resultam de alguma destas situações são designadas de lícitas12.Saliente-se, no entanto, que esta situação não preju-dica os credores, porque a empresa tem um património superior ao que está refl etido na contabilidade, nem os sócios, estes porque não veem alterada a sua percentagem no capital social (no pressuposto de que as contribuições conti-nuam a ser equitativas).13

12 Em sentido contrário temos as reservas ocultas ilícitas, quando resultam de uma omissão numa verba do ativo ou de uma inclusão de uma verba fi ctícia no passivo.13 Qual é a diferença entre ter 20% no capital social de uma sociedade que tem um ativo cont-abilizado por 14.000 mas que vale 200.000 ou ter 20% no capital de uma sociedade que tem um ativo contabilizado por 200.000 que vale 200.000? Nenhuma, em ambas tem 20% de 200.000!

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Na nossa opinião, apesar dos sócios não poderem evitar a solicitação dos serviços de um revisor ofi cial de contas, já que é obrigatória a apresentação do relatório junto da conservatória do registo comercial, a avaliação por este efe-tuada não é vinculativa; assim, se os sócios entenderem que a avaliação peca por excesso ou por defeito (não sendo este o caso mais provável), podem requerer uma nova avaliação por parte de um outro revisor ofi cial de contas.

Como refere Triunfante (2014), “todas estas regras…têm em vista um único resultado: garantir que a avaliação seja a mais fi dedigna possível, encontrando-se o justo valor do bem em causa. Só deste modo se asseguram todos os interesses envolvidos, nomeadamente dos sócios (manter a paridade previamente negociada entre eles), da socie-dade, e, não menos importante, dos credores.”

Assim sendo, uma excessiva subvalorização da entrada em espécie poderá conduzir a um enriquecimento ilícito, conforme previsto no artigo 473º do Código Civil, se a intenção inicial dos sócios não for a de benefi ciar a socie-dade, ou se a relação de forças não estiver previamente acordada entre os sócios, sendo defi nida pelo relatório de avaliação da entrada em espécie elaborado pelo revisor ofi cial de contas.

4. Alguns tipos de entradas

4.1. Bens imóveis

Um dos bens mais usuais para a realização das entradas em espécie é a entrega de bens imóveis, constituindo a sua avaliação, ou a credibilização da avaliação, a tarefa do auditor.

Existe uma série de metodologias que permitem a avaliação de imóveis: método comparativo, método do rendimento, método do valor residual, método do custo de reposição; no entanto salientamos que nem a legislação, nem a DRA 841 preveem qualquer metodologia, podendo, no nosso entender, o revisor ofi cial de contas utilizar qualquer método de avaliação que considere mais adequado. Além disso, não temos quaisquer dúvidas de que se fosse pedida uma avaliação de um imóvel a dez avaliadores iríamos obter dez resultados diferentes, sendo algumas delas bastante díspares, uma vez que cada um utiliza os seus parâmetros que têm sempre presente uma componente subjetiva14, difi -

14 A diretriz contabilística 16, na redação do ponto 2.3., reconhecia este facto: “A reavaliação dos ativos imobilizados tangíveis também pode ser efetuada com base no justo valor (vide diretriz contabilística 13). Neste caso, os avaliadores procederão de acordo com parâmetros próprios de cada um; a quantia atingida será naturalmente subjetiva e difi cilmente verifi cável (no sentido em

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cultando a tarefa do revisor ofi cial de contas, já que a legislação exige um valor concreto, não sendo possível balizar o valor.

A regra de avaliação é o justo valor. Entende-se por justo valor “a quantia pela qual um ativo pode ser trocado ou um passivo liquidado, entre partes conhecedoras e dispostas a isso, numa transação em que não exista relacionamento entre elas”. Como se pode constatar trata-se de um conceito vago, subjetivo, em relação ao qual entendemos que apela a um entendimento/acordo entre as partes, pois mesmo o valor do justo valor pode variar consoante a transação seja feita entre A e B ou A e C (Cunha Guimarães, 2006). Face a esta subjetividade no apuramento do justo valor, não é difícil encontrar opiniões (Cunha Guimarães, 2006; Cam-pos Amorim, 2012) que argumentam que o valor patrimonial tributário (VPT) pode ser utilizado como um critério de apuramento do justo valor, uma vez que “assegura” que o valor de mercado não dependa do poder negocial dos intervenientes, ou seja, o valor patrimonial do imóvel é o mesmo quaisquer que sejam os intervenientes. A este respeito Cunha Guimarães (2006) refere: “Colocando de lado questões de índole concetual,…, é caso para dizer que o VPT é mais justo que o próprio justo valor, ou por outras palavras, o VPT é objetivo e o justo valor é subjetivo.”. Na mesma linha de raciocínio encontramos Campos Amorim (2012), ao afi rmar que: “Este valor patrimonial defi nitivo do imóvel, que é o valor a considerar pelo alienante e adquirente para efeitos de determinação do lucro tributável, constitui o justo valor do imóvel.”

Face à subjetividade do conceito de justo valor, à objetividade do VPT e ao facto da avaliação do revisor ofi cial de contas dever ser uma avaliação prudente, para assim evitar incorrer no erro do revisor elencado no n.º 3 do artigo 25.º do CSC, não vemos qualquer razão para que o VPT não possa ser utilizado para apurar o valor de mercado do imóvel, especialmente se for superior ao valor nominal da parte de capital a subscrever pelo sócio. Sempre se pode argumentar que o VPT não está previsto nas normas de contabilidade15, o que é verdade, no entanto, face ao casamento que há entre a contabilidade e a fi scalidade16

que cada um obterá outra quantia, dado o uso de parâmetros pessoais) e só por exceção coincidirá com a do avaliador inicial.”15 Recentemente o SNC-AP (Decreto-Lei n.º 192/2015 de 11 de setembro) transpôs para a con-tabilidade o valor patrimonial tributário (VPT), ao prever, na NCP 5 – Ativos fi xos tangíveis, ponto 19, que um ativo fi xo tangível possa ser mensurado ao seu VPT, caso tenha sido adquirido através de uma transação sem contraprestação. 16 Outra razão que leva as empresas a utilizarem o VPT está relacionada com o IMT. Conforme está patente no ponto 12, do n.º4 do artigo 12.º do CMIT, o IMT vai incidir sobre o valor patri-monial tributário ou sobre o valor com que os bens entram para o ativo das sociedades, consoante o que for maior. Por razões de índole fi scal, os sócios tendem a defi nir o capital social em virtude do VPT, aliviando a carga fi scal que a sociedade tem que suportar.

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(n.º 1 do artigo 17.º do CIRC), muitas são as empresas, senão a grande maio-ria, que aplicam diretamente normas fi scais na contabilidade. Senão vejamos: a NCRF 7 refere que os ativos fi xos tangíveis devem ser depreciados ao longo da sua vida útil. Como é, na generalidade, estimada essa vida útil? Com base do Decreto Regulamentar 25/2009; a NCRF 12 nada refere sobre como é que deve ser calculada a imparidade de dívidas de clientes. Como é, na generali-dade, estimada essa imparidade? Com base nos critérios defi nidos nos artigos 28.º-A e 28.º-B do CIRC. A adoção destes critérios fi scais pela contabilidade coloca em causa a imagem verdadeira e apropriada das demonstrações fi nancei-ras? Colocará a adoção do VPT em causa a imagem verdadeira e apropriada das demonstrações fi nanceiras?

4.2. Know-How (saber-fazer)

Em relação às entradas de saber-fazer a questão que se coloca é a da admis-sibilidade do saber-fazer não patenteado, como uma entrada em espécie, uma vez que em relação ao saber-fazer patenteado não se levantam dúvidas de que se trata de uma entrada em espécie.

O regulamento CE n.º 772/2004 de 27 de abril de 2004, no seu artigo 1.º, n.º 1, al. i) defi ne saber-fazer como: “um conjunto de informações práticas não patenteadas, decorrentes da experiência e de ensaios, que é: i) secreto17, ou seja, que não é geralmente conhecido nem de fácil obtenção, ii) substancial, ou seja, importante e útil para o fabrico dos produtos contratuais, e iii) identifi cado, ou seja, descrito de forma sufi cientemente completa, de maneira a permitir concluir que o saber-fazer preenche os critérios de carácter secreto e substancial.”.

Como refere Tarso Domingues (2013b)): “A especifi cidade desta entrada jus-tifi ca e impõe, particulares cautelas, precisamente para evitar a constituição de sociedades com um capital fi ctício….Assim, desde logo, apenas deverá ser admissível a entrada com saber-fazer, quando os conhecimentos técnicos se encontrem incorporados e materializados num qualquer suporte, permitindo, dessa forma a sua autonomia do sócio que a realiza.”.

De facto, a prudência leva a que se deva desconsiderar este tipo de entradas que, se utilizadas, podem iludir terceiros, não constituindo qualquer garantia para credores, pondo em causa a função rainha do capital social.

17 Deve ser entendido como uma situação em que se verifi que difi culdade ou onerosidade no acesso àquela informação por parte do potencial adquirente.

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4.3. Entradas com créditos

As entradas com créditos podem revestir-se de dois tipos: entradas atra-vés da cessão de créditos à sociedade e entradas com créditos sobre a própria sociedade.

Se em relação à primeira não há qualquer dúvida de que se trata de uma entrada diferente de dinheiro, cuja avaliação deverá ser efetuada por um revisor ofi cial de contas, uma vez que o valor nominal do crédito poderá não cor-responder ao seu valor económico (risco de incobrabilidade, prazo médio de recebimento, eventuais garantias associadas a esse crédito, etc.), em relação à segunda importa referir que o n.º 5 do artigo 27.º do CSC prevê a impossibi-lidade da obrigação de entrada se extinguir com compensação. No entanto, é reconhecido que um sócio pode realizar a sua entrada, num aumento de capital, com o crédito de que seja titular perante a sociedade, o que determina que a obrigação de entrada se extinga, não por compensação mas por confusão18. Tal como acontece no primeiro caso, este tipo de entrada deve igualmente ser objeto do relatório de um revisor ofi cial de contas, uma vez que, pelas razões atrás elencadas, o valor nominal do crédito pode não ser o seu valor económico.

Como refere Tarso Domingues (2013b)): “O sócio não sairá benefi ciado, uma vez que o valor da sua participação corresponderá efetivamente ao valor que realizou e, por outro lado, os terceiros credores não fi cam prejudicados, antes pelo contrário fi cam mais acautelados, na medida em que o sócio já não pode executar a sociedade por aquele crédito….”.

4.4. Entradas com o mero gozo de bens

O mero gozo de bens, ao contrário do que acontece com a transferência de propriedade, não constituiu um direito real da sociedade, mas sim um direito obrigacional. A propriedade do bem continua a ser do sócio, no entanto este permite à sociedade a utilização desse bem durante um determinado prazo que estará convencionado no contrato de sociedade.

Assim, o risco que o sócio incorre neste tipo de entradas é substancialmente inferior ao risco que corre quando transfere a propriedade. Vejamos o caso da dissolução da sociedade: se o sócio realizou a sua entrada com a transferência de propriedade, este corre o risco de perder o bem entregue à sociedade, bem como o seu contra-valor em dinheiro; se o sócio realizou a sua entrada com

18 Ver acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 18 de novembro de 1997 e artigo 847.º do Código Civil.

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o gozo de bens terá sempre o direito a reaver o bem que entregou, podendo ainda vir a ser indemnizado pelo prejuízo sofrido no caso de perda ou dete-rioramento do bem, caso este seja imputável à sociedade, perdendo, apenas, a utilização do bem enquanto a sua utilização esteve a cargo da sociedade.

Uma vez que o artigo 20.º do CSC só permite que seja entregue pelos sócios à sociedade bens suscetíveis de penhora, bem como pelo facto do n.º 1 do artigo 26.º do CSC referir que as entradas devem ser realizadas até ao momento da celebração do contrato, poderíamos pensar que as entradas com mero gozo de bens não seriam admissíveis à luz da nossa legislação. Porém, deve enten-der-se que as entradas com mero gozo de bens fi cam integralmente liberadas quando o sócio assume, no contrato de sociedade, a obrigatoriedade de ceder o gozo do bem (Tarso Domingues, 2006), por outro lado a menção “bens sus-cetíveis de penhora” deve ser lida, com base no artigo 7.º da diretiva 2012/30//EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 25/10/12, como bens susce-tíveis de avaliação económica19 (Coutinho de Abreu, 2015). Além do mais, se a sociedade for privada de um bem prestado pelo sócio, a entrada desse sócio deve ser realizada em dinheiro (n.º 4 do artigo 25.º do CSC). Conforme refere Coutinho de Abreu (2015) “a hipótese de a sociedade ser privada, por ato legítimo de terceiro, do bem prestado pelo sócio, não se verifi ca quando os bens são transmitidos em propriedade para a sociedade; verifi ca-se, isso sim, quando é transmitido o simples gozo dos bens...”. Assim, podemos concluir que a entrada com mero gozo de bens é admissível à luz do direito societário.

5. As entradas em espécie e o contrato da sociedade

As entradas em espécie devem obrigatoriamente constar do contrato de sociedade, ou seja, no contrato deve constar como é que os sócios realizam as suas entradas, se em dinheiro, se em espécie [al. g), n.º 1, do artigo 9.º do CSC).

De acordo com a al. h), n.º 1 do artigo 9.º do CSC, no caso das entradas serem efetuadas por intermédio da entrega de bens diferentes de dinheiro (onde se incluem as entradas em espécie), também deve constar do contrato a descri-ção dos bens e a especifi cação dos respetivos valores, permitindo assim que os interessados tenham “um conhecimento o mais completo possível do estado patrimonial com que a sociedade nasce.” (Ramos, 2013)20.

19 Valor atual do rendimento futuro.20 Referindo-se à obra de Ferrer Correia, Lobo Xavier, Ângela Coelho e António Caeiro, “Socie-dades por quotas de responsabilidade limitada. Anteprojeto de lei – 2.ª redação e exposição de motivos, RDE.

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Verifi ca-se assim que no contrato de sociedade não é necessário constar a identifi cação dos critérios de avaliação nem quem são os titulares dos bens. Só no caso de, no contrato de sociedade, não constar a descrição dos bens e a especifi cação dos respetivos valores é que estamos perante uma estipulação esta-tutária inefi caz, resultando numa desoneração do sócio referente à obrigação de contribuir com um bem em espécie para a sociedade (n.º 2 do artigo 9.º do CSC). Como refere Tarso Domingues (2013c)) “se a realização da entrada em espécie não cumprir os requisitos legalmente exigidos pelo artigo 9.º, o sócio será – nos ter-mos do artigo 25.º, n.º 4 – obrigado a realizar o valor da sua participação em dinheiro.”. No entanto, os sócios também podem deliberar a dissolução da sociedade ou pode ser requerida uma dissolução administrativa ao abrigo da al. b), n.º 1 do artigo 142.º do CSC.

6. Erro na avaliação: a responsabilidade do revisor ofi cial de contas

Caso se venha a apurar que, em resultado da avaliação do revisor ofi cial de contas, o valor real do bem é inferior ao valor nominal da quota subscrita, ou seja, quando o revisor ofi cial de contas sobreavalia a entrada em espécie, o sócio fi ca responsável por repor a diferença (n.º 3, do artigo 25.º do CSC).

Uma vez que a fi nalidade primordial do capital social é servir de garantia aos credores, uma sobreavaliação do bem com que o sócio entra para a socie-dade coloca em causa este princípio, já que estes são levados a crer que a socie-dade tem um determinado património que de facto não existe; já uma subvalo-rização não coloca em causa esse princípio, porque, pelo menos, o património da sociedade é igual ao capital social, podendo até ser superior (reserva oculta). A sociedade também é prejudicada em caso de uma sobreavaliação, uma vez que não é “detentora” de um património equivalente ao que existe nas contas. Se porventura o sócio não puder repor a diferença21, o revisor ofi cial de contas poderá ser chamado à responsabilidade pelos danos causados à sociedade e/ou aos credores pelo seu incorreto juízo.

Assim, somos da opinião que o auditor deverá ter uma atitude prudente na avaliação dos bens, já que apenas uma avaliação demasiado otimista, sem

21 Triunfante (2014) chama a atenção para os mecanismos aplicáveis ao incumprimento das obriga-ções de entrada – perda a favor da sociedade das ações ou quotas (n.º 4 do artigo 285.º do CSC e n.º 2 do artigo 204.º do CSC), referindo que uma eventual responsabilidade do revisor ofi cial de contas se pode aplicar quando o sócio já saiu da sociedade. O citado autor refere igualmente que a responsabilidade perante a sociedade será enquadrada na relação contratual estabelecida entre o revisor ofi cial de contas e a sociedade, ao abrigo do artigo 798.º do Código Civil.

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correspondência com a realidade, poderá fazer desencadear todo o processo mencionado no n.º 3 do artigo 25.º do CSC.

Caso se verifi que uma situação de subvalorização do valor do bem, e desde que o sócio não seja obrigado a reforçar as suas entradas e mantenha a sua rela-ção de paridade no capital social, não nos parece que possam ser imputadas res-ponsabilidades ao revisor ofi cial de contas. Situação contrária é a que se verifi ca quando, em virtude da subvalorização do bem, o sócio é obrigado a reforçar as suas entradas (para manter a mesma percentagem no capital social), ou se vê a percentagem no capital social reduzida. Neste caso, apesar do CSC não ter previsto nenhum regime em concreto, pensamos que podem ser imputadas responsabilidades ao revisor ofi cial de contas e à sociedade. Em relação ao pri-meiro por uma eventual responsabilidade extra-contratual, em virtude da ava-liação do revisor ofi cial de contas ter lesado os sócios (artigo 485.º do Código Civil), em relação à segunda pela prática de enriquecimento sem causa (artigo 473.º do Código Civil).

Conforme refere Triunfante (2014)”, a diferença de regimes prevista na lei para os dois lapsos possíveis de ocorrer na avaliação de uma entrada em espécie mostra inequi-vocamente as prioridades do legislador societário. Em momento nenhum se pode afrouxar a pressão sobre a efetiva constituição do património social e nesta medida foi consagrada esta fi gura” (referindo-se ao previsto no n.º 3 do artigo 25.º do CSC).

Conclusão

Podemos assim concluir que o revisor ofi cial de contas ao avaliar as entradas em espécie tem dois objetivos: proteger os credores e zelar para que a propor-ção que cada sócio detém no capital social corresponda ao valor efetivo com que o sócio contribuiu para a sociedade (se não houver acordo entre os sócios em relação à participação de cada um no capital social).

Não é função do revisor ofi cial de contas determinar qual o capital social com que a sociedade deverá ser constituída ou qual o caminho a dar ao excesso da avaliação face ao valor nominal do capital a subscrever, sendo estas matérias do foro da exclusiva competência dos sócios e que deverão estar explanadas no contrato de sociedade, tal como é referido no artigo 9.º do CSC. O papel do revisor ofi cial de contas consiste em emitir um parecer sobre se o valor da entrada atinge ou não o valor nominal do capital subscrito, zelando assim pela aplicação do princípio da exata formação do capital social, protegendo, em primeira instância, os interesses dos credores.

Somos igualmente da opinião que o revisor deverá ter um papel de media-dor quando os sócios não tenham defi nido previamente qual a percentagem a

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atribuir a cada um deles no capital social, servindo neste caso a avaliação do revisor ofi cial de contas para defi nir essa percentagem. No entanto, na prática, muitas vezes os revisores ofi ciais de contas deparam-se com participações já acordadas entre os sócios a priori, ou seja, com o contributo que cada um efe-tivamente aporta à sociedade, o que relega esta função para a dispensabilidade.

De acordo com o CSC o erro do revisor ofi cial de contas está relacio-nado única e exclusivamente com a situação de sobreavaliação do bem face ao valor nominal da entrada de capital, ou seja, quando o revisor ofi cial de contas menciona no seu relatório que o valor do bem é sufi ciente para atingir o valor nominal, quando, na realidade, não o é.

Contudo, também se deve ter em atenção que uma subvalorização excessiva poderá conduzir ao enriquecimento sem causa, se o sócio vir a sua alteração de força modifi cada para menos, ou se no contrato de sociedade estiver previsto o pagamento da diferença e a mesma não ser realizada, caso em que poderá con-duzir ao dever de restituição (artigo 473º do Código Civil).

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comentário (Coordenação de Jorge M. Coutinho de Abreu), volume I, Almedina.Tarso Domingues, P., 2013c), “artigo 28.º” em Código das sociedades comerciais em

comentário (Coordenação de Jorge M. Coutinho de Abreu), volume I, Almedina.

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A responsabilidade civil dos administradores assente em deliberações dos sócios *

DR.ª CATARINA BAPTISTA GOMES

Sumário: § 1 .º Delimitação do objeto de estudo. § 2.º A situação jurídica de adminis-tração: 2.1. Os deveres fundamentais dos administradores: 2.1.1. Deveres de cuidado; 2.1.2. Deveres de lealdade. § 3.º A business judgment rule no direito português. § 4.º O dever de executar deliberações sociais: 4.1. Deliberações válidas; 4.2. Deliberações inválidas: 4.2.1. Deliberações nulas; 4.2.2. Deliberações sociais contrárias aos bons costu-mes vs. deliberações abusivas; 4.2.3. Deliberações anuláveis; 4.3. Suspensão de deliberação social e pendência de ação de anulação; 4.4. A alteração das circunstâncias em que assentou a deliberação; 4.5. Os deveres fundamentais como limite imanente do dever de executar deliberações sociais. § 5.º A “desresponsabilização” dos administradores assente em delibe-rações dos sócios. Interpretação do artigo 72.º, n.º 5, do CSC: 5.1. Alcance da expressão “assente em deliberação dos sócios, ainda que anulável”: 5.1.1. Articulação com a business judgment rule; 5.1.2. Da natureza da “desresponsabilização” do artigo 72.º, n.º 5, e articulação com o artigo 72.º, n.º 1, do CSC. § 6.º Conclusões.

§ 1.º Delimitação do objeto de estudo

O artigo 72.º, n.º 5, do Código das Sociedades Comerciais (CSC)1, ao pre-ver que a responsabilidade dos gerentes ou administradores2 para com a socie-

* O presente estudo corresponde ao Relatório de Mestrado Científi co de Direito Comercial ela-borado no âmbito da disciplina de Direito das Sociedades Comerciais no ano letivo 2014/2015, sob a regência da Professora Doutora Adelaide Menezes Leitão e da Professora Doutora Ana Perestrelo de Oliveira.1 Daqui por diante, sempre que não referirmos concretamente a fonte do preceito, deverá consi-derar-se a referência feita ao CSC.2 Por facilidades de exposição, sempre que nos referirmos a administradores para efeitos de inter-pretação desta norma, queremos referir-nos indistintamente a gerentes e administradores, e não limitar a análise à responsabilidade dos administradores das sociedades anónimas.

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dade não tem lugar quando o ato ou omissão assente em deliberação dos sócios, ainda que anulável3, pauta-se a dúvidas interpretativas, desde logo quanto ao signifi cado da expressão “assente em deliberação dos sócios”, mas também no que concerne ao tipo de invalidade especifi camente concebida.

Por um lado, as deliberações sociais cuja execução está a ser equacionada pelos gerentes e administradores poderão ser válidas ou, pelo contrário, invá-lidas (nulas ou anuláveis), pelo que haverá que determinar, aqui, em que ter-mos existirá, ou não, um dever de as executar, e se se justifi ca uma destrinça de soluções perante os vários cenários possíveis. Por outro lado, pode suceder que, nuns casos, as deliberações sejam sufi cientemente determinadas sem dei-xar margem de discricionariedade quanto à sua execução e, noutros, deixar um espaço de “discricionariedade empresarial” – o que implicará um esforço acrescido de ponderação casuística. Importa precisar se o artigo 72.º, n.º 5, tem aplicação nestas situações.

Com o presente estudo, pretende-se fazer uma análise em torno do artigo 72.º, n.º 5, com vista a esclarecer o real alcance normativo da “desresponsa-bilização”4 aí prevista e apurar os termos em que a mesma terá lugar. Para tal, importa analisar qual a relação existente entre os gerentes/administradores e a sociedade à qual estão ligados, concretizar o conteúdo do dever de administrar – sobretudo tendo em atenção os deveres fundamentais de cuidado e lealdade –, estudar o mecanismo da business judgement rule (BJR), fazendo-se depois a devida ponte problematizando-se acerca da existência (ou não) de um dever de executar deliberações sociais – devendo distinguir-se aqui as deliberações válidas das inválidas e, dentro destas, as nulas das anuláveis. As considerações tecidas sobre a existência ou não de um dever de executar deliberações sociais serão determinantes para concretizar o teor dessa “desresponsabilização”, pois a existência ou não de responsabilidade depende do incumprimento ou cumpri-mento prévio de um dever.

3 Esta redação, introduzida pelo Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março, corresponde subs-tancialmente ao preceituado no artigo 72.º, n.º 4, da versão anteriormente vigente – redação dada pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de setembro – o qual dispunha que “A responsabilidade dos gerentes, administradores ou directores para com a sociedade não tem lugar quando o acto ou omissão assente em deliberação dos sócios, ainda que anulável”. 4 Por ora, preferimos aludir a “desresponsabilização” para evitar juízos antecipados sobre a natu-reza jurídica deste mecanismo, a que aludiremos infra, em devida ocasião.

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§ 2.º A situação jurídica de administração

A responsabilidade dos gerentes ou administradores chama à colação o tema da situação jurídica de administração, dado que é daqui que prolifera todo um conjunto de direitos e deveres que lhe são próprios.

Partindo do panorama legal existente, verifi ca-se que, nos termos do artigo 252.º, aplicável às sociedades por quotas, a sociedade é administrada por um ou mais gerentes5 designados no contrato de sociedade ou eleitos posteriormente por deliberação dos sócios, se não estiver prevista no contrato outra forma de deliberação. Mais se dispõe que os gerentes devem praticar os atos que forem necessários ou convenientes para a realização do objeto social, com respeito pelas deliberações dos sócios.

Por sua vez, os artigos 390.º e 391.º, aplicáveis às sociedades anónimas, determinam, respetivamente, que o conselho de administração é composto pelo número de administradores fi xado no contrato de sociedade6, podendo ser designados no contrato de sociedade ou eleitos pela assembleia geral cons-titutiva, prevendo-se depois, no artigo 405.º, que compete ao conselho de administração gerir as atividades da sociedade, devendo subordinar-se às deli-berações dos acionistas ou às intervenções do conselho fi scal ou da comissão de auditoria apenas nos casos em que a lei ou o contrato de sociedade o deter-minarem (n.º 1) e que o conselho de administração tem exclusivos e plenos poderes de representação da sociedade (n.º 2)7.

Estas normas referem-se, por um lado, ao ato constitutivo da situação de administrador, e, por outro, à competência que lhes cabe nesse domínio. É sobretudo em relação ao ato constitutivo que têm proliferado diversas teorias a respeito da natureza jurídica da situação de administração, desde as teses con-tratualistas, passando pelas orientações unilaterais, até às construções analíticas8.

Nas teses contratualistas9 começou por se defender o mandato. Verifi ca-se, no entanto, a existência de diferenças estruturais entre este e a administração

5 Que podem ser escolhidos de entre estranhos à sociedade e devem ser pessoas singulares com capacidade jurídica plena.6 Devendo ser pessoas jurídicas com capacidade jurídica plena, podendo ou não os administra-dores ser acionistas. 7 De forma semelhante, o artigo 431.º do CSC, relativamente ao conselho de administração exe-cutivo, dispõe que a este compete gerir as atividades da sociedade.8 Para uma enunciação das várias teorias vide Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, Parte Geral, Almedina, 2011, pp. 903 e ss. 9 A favor da tese contratualista vide Diogo Lemos e Cunha, “A destituição de administradores de sociedades anónimas: em particular o alcance e o sentido da justa causa de destituição”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 74, vol. 2, 2014, pp. 579 e 580. Raúl Ventura, Sociedades por Quotas,

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das sociedades, pelo que é de rejeitar a sua recondução ao mandato10, desde logo porque no mandato civil o mandatário está sujeito às instruções do man-dante, o que não sucede com os administradores, que não estão subordinados a qualquer outro órgão, exercendo as suas funções com autonomia11. Além disso, enquanto o mandato só pode dirigir-se à prática de atos jurídicos, a adminis-tração das sociedades compreende sempre a prática de operações puramente materiais, que não podem enquadrar-se no esquema daquela fi gura negocial, tal como a lei a delimita12. Poderá ainda apontar-se o facto de, diferentemente da relação de mandato, a relação de administração envolver sempre a obriga-ção, a cargo dos administradores, de cumprimento de deveres legais “e que não se conectam com um mandato comum”13. Por outro lado, o mandato não envolve necessariamente representação – é hoje amplamente reconhecida a fi gura do mandato sem representação – artigos 1180.º e ss. do Código Civil (CC)14.

Posto que está afastada a tese do mandato, foram sendo desenvolvidas outras variantes do contratualismo, defendendo-se a existência de um contrato seme-lhante a um contrato de trabalho mas que, dadas as especifi cidades da relação de administração, seria antes um “contrato de administração”, e não um contrato de trabalho propriamente dito15.

Vol. III, Almedina, 1996, pp. 28-33, é do entendimento de que a nomeação dos gerentes constitui um ato jurídico unilateral, de natureza societária, pela qual é atribuída a uma pessoa a qualidade de órgão (ou, mais precisamente, de titular de órgão), fi cando investida na competência legal deste, especialmente o poder de representação, e sujeita aos respetivos deveres. O “contrato de emprego”, por sua vez, tem natureza obrigacional e cobre as relações pessoais entre o gerente e a sociedade. “Pelos seus sujeitos e pelos seus objectos, nomeação e contrato de emprego estão inter-relacionados, mas não deixam de ter criado relações jurídicas separadas.. Refere o autor, com a aceitação, “o nomeado obriga-se (…) a ser titular do órgão e o resto decorre da própria lei ou, complementarmente, do carácter da sociedade”, devendo entender-se que, da existência de um ato de nomeação e de um ato de aceitação emerge uma relação contratual, e duas relações distintas. 10 Cf. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Vol. II, Universidade de Coimbra, 1968, pp. 325 e 326.11 Cf. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial…, cit., p. 327. Como afi rma o autor, “a ideia (clássica) de que à assembleia geral, como órgão supremo da corporação, cabe dirigir a actividade dos administra-dores, está hoje abandonada, por não corresponder à melhor interpretação da lei, nem às necessidades da prática”.12 Cf. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial…, cit., pp. 327 e ss., concluindo, assim, que a relação de administração é uma relação de organicidade. De facto, o artigo 1157.º do Código Civil prevê que o mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais atos jurídicos por conta da outra.13 Cf. Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, Parte Geral…, cit., p. 906.14 Cf. Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, Parte Geral…, cit., p, 906. Sobre este tema vide, em especial, Fernando Pessoa Jorge, Do mandato sem representação, 1963. 15 Havendo também quem propusesse, por isso, a noção de contrato de trabalho em sentido amplo – cf. Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, Parte Geral…, cit., p. 908. De facto, como afi rma,

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As conceções unilaterais, como a própria expressão indica, rejeitam a exis-tência de qualquer relação contratual e radicam no facto de a escolha dos admi-nistradores poder residir em deliberação social – como os atos deliberativos não têm natureza contratual, seria antes de fazer apelo a uma relação “instituciona-lista” ou “orgânica”16.

Das “construções analíticas”17, por sua vez, resulta que a relação de admi-nistração tem origem num ato duplo, na medida em que temos, por um lado, o ato de nomeação, pela sociedade, do administrador e, por outro, a celebração, por essa pessoa, de um contrato de emprego18.

Face ao quadro normativo vigente, deve rejeitar-se, com Menezes Cor-deiro, o contratualismo puro, na medida em que a situação jurídica da adminis-tração pode emergir de uma multiplicidade de factos constitutivos que podem ou não ter natureza contratual19 – essa multiplicidade, no entanto, não deve afastar o seu caráter unitário20. Conclui, assim, o autor que “a natureza da situa-ção jurídica da administração há-de (…) ser fi xada pelo conteúdo e não pela forma da sua constituição”21.

Entrando agora no conteúdo da situação de administração, das normas aca-badas de expor resulta que aos gerentes e administradores compete a gestão ou administração da sociedade. Segundo alguma doutrina, estas normas, sendo normas de competência, comportam também uma dimensão obrigacional tra-duzida num dever genérico ou abstrato de gerir ou administrar a sociedade22.

a defender-se o contratualismo o mesmo terá de fundar-se num “contrato de administração” sui generis, atentas as impossibilidades de recondução a uma fi gura contratual preexistente. 16 Cf. Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, Parte Geral…, cit., pp. 909-912. 17 A expressão é de Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, Parte Geral…, cit., p. 912.18 Cf. Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, Parte Geral…, cit., pp. 912 e ss., que rejeita, no entanto, a designação desta orientação como “construção mista”, “construção eclética” ou “teoria dualista”, por entender que não constitui um “misto” das orientações contratualistas e unilaterais, no sentido de proceder ao somatório, à justaposição ou mesmo à síntese, das duas, derivando antes de uma análise mais aprofundada da posição jurídica do administrador. 19 Cf. Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, Parte Geral…, cit., pp. 926 e ss.. Assim, como refere, a situação jurídica de administração pode ter origem numa das seguintes fontes: imanência à qualidade de sócio, designação inter partes no contrato de sociedade, designação a favor de ter-ceiro nesse mesmo contrato, designação pelos sócios ou por minorias especiais, designação pelo Estado, substituição automática, cooptação, designação pelo conselho fi scal ou designação judicial.20 Cf. Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, Parte Geral …, cit., p. 927. 21 Cf. Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, Parte Geral…, cit., p. 928.22 Aludindo a uma dupla dimensão do termo “compete” utilizado pelo legislador, bem como à dimensão da gestão/tomada de decisão e dimensão executória, vide Hugo Moredo Santos e Orlando Vogler Guiné, “Deveres fi duciários dos administradores: algumas considerações (passado, presente e futuro)”, in Revista de Direito das Sociedades, Ano V, 2013, número 4, pp. 692 e 693. Carneiro da Frada, “A business judgement rule no quadro dos deveres gerais dos admi-

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Por outras palavras, a gestão ou administração da sociedade não representa, nesta ordem de pensamento, apenas um poder reconhecido aos gerentes e administradores no seio das suas competências, tratando-se, outrossim, de um verdadeiro poder-dever – o poder-dever de administrar23.

Para Menezes Cordeiro, a situação jurídica de administração é complexa e compreensiva e, estruturalmente, absoluta – por contraposição a relativa – no sentido de o administrador ter, no essencial, os poderes de representar e de gerir que são, tecnicamente, posições potestativas, não corporizando o binómio de direitos-deveres – embora a partir dela nasçam, depois, específi cas realidades relacionais24 que emergem de fontes diversas: como a lei, os estatutos, o con-trato, ou deliberação social. E, por isso, o conjunto de direitos e deveres daqui advenientes apresentam diversas naturezas: deveres legais, estatutários, con-tratuais ou deliberativos, conforme advenham diretamente de normas legais, dos estatutos, de contrato ou de deliberações dos sócios ou do conselho de administração25.

Dada a formulação legal, pensamos ser de seguir este entendimento. O facto de existirem específi cas realidades relacionais entre o administrador e a socie-dade não compromete o caráter absoluto-potestativo da situação jurídica de administração. Não há, portanto, um “dever genérico de administrar”, havendo antes específi cos deveres emergentes de diversas fontes as quais têm precisa-mente por base a situação jurídica de administração26.

nistradores”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 67, Vol. I, 2007, pp. 164-166 e 175, refere-se à existência de uma “obrigação de administrar” como aquela onde se integram o conjunto dos deveres próprios dos administradores, que visa a maximização da realização do interesse social. Por sua vez, Gabriel Freire Silva Ramos, “A business judgement rule e a diligência do administrador criterioso e ordenado antes da reforma do Código das Sociedades Comerciais”, Revista de Direito das Sociedades, Ano V, Número 4, 2013, pp. 846 e 847, refere-se ao “dever de administrar” ou a uma “verdadeira obrigação de administrar” como o elemento mais elementar da situação jurídica de administração, defi nindo-o como o dever de promover a realização do objeto social e que tem origem na relação obrigacional que se estabelece entre o administrador e a sociedade, que, no seu entender, deriva de um contrato. 23 Referindo-se ao dever de administrar como o principal dever dos administradores e entendendo que a atividade de administração constitui um poder-dever, vide António Pereira de Almeida, “A business judgment rule”, I Congresso Direito das Sociedades em Revista, 2011, p. 368.24 Cf. Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, Parte Geral…cit., pp. 928 e 929. Vide, também, no mesmo sentido, Adelaide Menezes Leitão, “Responsabilidade dos administradores para com a sociedade e os credores sociais por violação de normas de protecção”, Revista de Direito das Socie-dades, Ano I, Número 1, 2009, pp. 659 e ss. (em especial pp. 661 e 662).25 Cf. Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, Parte Geral…, cit., p. 937.26 Em sentido contrário parece ir Carneiro da Frada, “A business judgement rule...”, cit., pp. 164-166 e 175, quando se refere à existência de uma “obrigação de administrar” como aquela onde

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Em todo o caso, sempre se diga que, independentemente da natureza da situação de administração, o certo é que a partir dela emergem direitos e deveres dos administradores que têm origem em diversas fontes, sendo também certo que, independentemente da sua fonte, em caso de responsabilidade decorrente da sua violação, o regime aplicável será sempre o da responsabilidade obriga-cional, pois a responsabilidade dos administradores tem natureza obrigacio-nal e não aquiliana27 – e, como é sabido, a responsabilidade obrigacional não se aplica apenas à violação de deveres contratuais, mas antes abarca no seu âmbito a violação de qualquer dever, seja ele contratual, legal, deliberativo ou estatutário.

2.1. Os deveres fundamentais dos administradores

Para o tema que ora nos ocupa, importa especialmente atentar na distinção entre deveres genéricos e específi cos, sendo os primeiros deveres de conteúdo indeterminado por envolverem, a posteriori, um processo de concretização – como os deveres fundamentais de cuidado e de lealdade28 –, diferentemente dos segundos que resultam diretamente de obrigações legais, estatutárias ou convencionais de forma precisa e determinada29.

se integram o conjunto dos deveres próprios dos administradores, que visa a maximização da realização do interesse social. 27 Assim, vide, v.g., Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, Parte Geral,…cit., pp. 980 e ss..Não seguimos aqui a posição de Pedro Pais de Vasconcelos in “Responsabilidade civil dos gestores das sociedades comerciais”, Direito das Sociedades em Revista, 2009, p. 21, e de Nuno Calaim Lourenço, Os deveres de administração e a business judgment rule, Almedina, 2011, pp. 29 e 30, quando consideram que esta responsabilidade tem natureza contratual por decorrer do “contrato de sociedade” e do “contrato de gestão”. No mesmo sentido, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) tem também apelidado esta responsabilidade de “contratual” com base na exis-tência de um (suposto) “contrato de administração” – vide, v.g., o Ac. do STJ de 28 de fevereiro de 2013 (Processo n.º 189/11.3TBCBR.C1.S1) e o Ac. do STJ de 31 de março de 2011 (Processo n.º 242/09.3YRLSB.S1). Diversamente, e em coerência com a posição por nós defendida sobre a natureza da situação de administração ser complexa e compreensiva – dela emergindo deveres que podem ter, ou não, origem contratual – deve entender-se, em termos mais rigorosos, tratar-se de uma responsabilidade obrigacional. Em todo o caso, sempre será de aplicar, seguindo-se uma ou outra posição, a presunção de culpa em termos semelhantes ao previsto no artigo 799.º, n.º 1, do CC.28 Paulo Olavo Cunha, Direito das Sociedades Comerciais, 5.ª ed., Almedina, 2014, pp. 770 e 771, refere-se aos deveres fundamentais dos administradores como constituindo um critério geral de atuação da administração, que corresponde tecnicamente a uma cláusula geral que consiste na imposição do desempenho de funções da administração de acordo com esses deveres.29 Cf. Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, Parte Geral…, cit., p. 937, Gabriel Freire Silva Ramos, “A business judgement rule…”, cit., pp. 839 e 840.

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A responsabilidade dos administradores é subjetiva – assente num ato ilícito e culposo –, pelo que só tem lugar quando haja o incumprimento de deveres por parte do agente responsável. Mas a sua responsabilização poderá ter origem quer na violação de deveres específi cos para com a sociedade, quer por violação de deveres fundamentais – os deveres de lealdade e de cuidado – traduzida em atuações danosas para a sociedade.

Sobre estes últimos, o artigo 64.º, n.º 130, sob a epígrafe “Deveres funda-mentais” prevê que os gerentes ou administradores da sociedade devem obser-var: (i) deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, a competência téc-nica e o conhecimento da atividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado; e (ii) deveres de lealdade, no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores, clientes e credores31.

Note-se que, estes deveres, concebidos embora de forma genérica, são ver-dadeiras normas de conduta32 e, por isso, quando violados, dão azo a ilicitude, mostrando-se essencial atentar no seu conteúdo. Tentemos então uma densifi -cação dos mesmos.

2.1.1. Deveres de cuidado

Os deveres de cuidado são especifi cados pelo legislador no sentido de aí se integrar (i) a disponibilidade, (ii) a competência técnica e (iii) o conhecimento da atividade da sociedade adequados às suas funções. A referência a estas três

30 Na versão introduzida pelo artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março. A versão anterior do preceito, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 280/87, de 8 de julho, sob a epígrafe “Dever de diligência”, dispunha antes que “Os gerentes, administradores ou directores de uma sociedade devem actuar com a diligência de um gestor criterioso e ordenado, no interesse da sociedade, tendo em conta os interesses dos sócios e dos trabalhadores”.31 Segundo Menezes Cordeiro, “Os deveres fundamentais dos administradores das sociedades”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 66, Vol. II, 2006, disponível em http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=50879&ida=50925, para a interpretação dessa norma pode-mos decompô-la em diversas parcelas que devem depois ser devidamente articuladas, a saber: (i) a diligência de um gestor criterioso e ordenado; (ii) os interesses da sociedade, dos sócios e dos tra-balhadores; (iii) os deveres de lealdade; (iv) os deveres de cuidado; e (v) o governo das sociedades. 32 Cf. Menezes Cordeiro, “Os deveres fundamentais dos administradores…”, cit..

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componentes não esgota o universo deste dever, devendo entender-se que a sua menção é feita a título exemplifi cativo33.

No seu cumprimento, deve empregar-se, nas palavras do legislador, “a dili-gência de um gestor criterioso e ordenado”. Poderia parecer que esta “diligência” dissesse apenas respeito a este dever, mas não é assim. Esta bitola impõe-se em relação a todos os deveres dos administradores34.

Em sentido normativo, a diligência equivale ao grau de esforço exigível para determinar e executar a conduta que integra o cumprimento de um dever. Neste sentido, a mesma não constitui um critério aferidor da culpa mas antes um elemento a ter em conta no juízo de ilicitude35. Simplesmente, como refere Menezes Cordeiro, a bitola de diligência, sendo uma regra de conduta, é uma regra incompleta, pois só em conjunto com outras normas se poderá determinar com precisão o seu conteúdo útil, havendo que aferir, in concreto, se, relativamente a determinada conduta, alguém agiu ou não diligentemente, i.e., com a diligência de um gestor criterioso e ordenado36. Neste sentido, o dever de diligência constitui o esforço normativamente exigível aos gerentes e administradores no cumprimento dos seus deveres, sem ser apenas o dever de cuidado37.

Sobre o dever de cuidado, Carneiro da Frada interpreta-o sob o prisma de um dever genérico qualifi cativo da obrigação de administrar, cabendo ao administrador não um simples dever de cuidado mas o dever de cuidar da sociedade, ou seja, o dever de tomar conta, de assumir o interesse social, pelo que o cuidado que a lei manda ao administrador observar equivale a impor--lhe uma boa administração, uma administração cuidada38. Nesta opinião, o dever de cuidado emerge diretamente do ato constitutivo da situação jurídica

33 Nas palavras de Menezes Cordeiro, “Os deveres fundamentais dos administradores…”, cit.,“os administradores devem gerir com cuidado, o que implica, designadamente, a disponibilidade, a competência e o conhecimento”. No mesmo sentido, vide Paulo Câmara, “O governo das sociedades e a reforma do Código das Sociedades Comerciais”, Código das Sociedades Comerciais e Governo das Sociedades, Almedina, 2008, p. 30, e Nuno Calaim Lourenço, Os deveres de administração …, cit., p. 16. 34 Vide, neste sentido, Menezes Cordeiro, “Os deveres fundamentais dos administradores…”, cit., criticando fortemente a solução.35 Cf. Menezes Cordeiro, “Os deveres fundamentais dos administradores…”, cit..36 Cf. Menezes Cordeiro, “Os deveres fundamentais dos administradores…”, cit., e, do mesmo autor, A responsabilidade civil dos administradores das sociedades comerciais, Lex, 1997, pp. 496 – 497, dizendo por isso que só por si o dever de cuidado não é suscetível de violação e, daí, não deve ser tomado como fonte de obrigação de indemnizar. Vide, no mesmo sentido, Gabriel Freire Silva Ramos, “A business judgement rule…”, cit., pp. 839 e ss.37 Cf. Menezes Cordeiro, “Os deveres fundamentais dos administradores...”, cit.. No mesmo sentido, vide Carneiro da Frada, “A business judgement rule...”, cit., p. 163.38 Cf. Carneiro da Frada, “A business judgement jule...”, cit., pp. 166 e 167.

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de administração – que, para o autor, se funda na vontade, na medida em que a deliberação da designação do administrador representa um negócio jurídico, e a aceitação também39. Daqui parece decorrer o entendimento que identifi ca o dever de cuidado com a existência de um (suposto) dever genérico de admi-nistrar. Esta interpretação pressupõe a consideração, que rejeitamos, de que a situação jurídica de administração é relativa. Além disso, como vimos, o dever de cuidado é um dever incompleto que só atua em conjunto com outros deve-res e, por isso, não pode conceber-se como sinónimo do dever de administrar.

A densifi cação do que seja o dever de cuidado tem sido agrupada por alguma doutrina em três grandes grupos de casos, onde é possível conceber (i) o dever de vigilância40; (ii) o dever de preparar adequadamente as decisões de gestão41; (iii) e o dever de tomar decisões substancialmente razoáveis42.

Este último merece particular atenção, dada a sua importância em sede de business judgment rule43. Efetivamente, é no dever de tomar decisões substancial-mente razoáveis que a temática a discricionariedade opera – em que, perante várias alternativas possíveis de ação, o administrador deve optar por uma que não fi ra os interesses da sociedade e, por isso, por uma decisão substancialmente razoável – o interesse social surge, aqui, como bitola a seguir44. A “competência técnica” a que alude o artigo 64.º, n.º 1, al. a) assim o obriga45.

39 Cf. Carneiro da Frada, “A business judgement rule…”, cit., pp. 168 e 169. 40 De onde decorre a obrigação dos gestores se informarem relativamente à evolução económi-co-fi nanceira da sociedade e de acompanharem o desempenho daqueles que exercem funções de gestão – cf. Coutinho de Abreu, Responsabilidade civil dos administradores de sociedades, Almedina, 2010, p. 20 e Nuno Calaim Lourenço, Os deveres de administração…, cit., p. 17.41 Que implica que o gestor proceda à recolha e ao tratamento da informação em que assentará a futura decisão empresarial – cf. Coutinho de Abreu, Responsabilidade civil dos administradores…, cit., p. 21 e Nuno Calaim Lourenço, Os deveres de administração…, cit., p. 18.42 Cf. Coutinho de Abreu, Responsabilidade civil dos administradores…, cit., p. 19 e Nuno Calaim Lourenço, Os deveres de administração…, cit., pp. 16 e ss.. 43 Assunto do qual nos ocuparemos mais à frente.44 Como refere Nuno Calaim Lourenço, Os deveres de administração…, cit., p. 21, “Num cenário de múltiplas alternativas possíveis a decisão razoável será, por excelência, aquela que melhor satisfi zer o inte-resse da sociedade. Não se pense, contudo, que o gestor será responsabilizado sempre que não opte pela melhor solução: ele será responsabilizado quando essa solução não for de todo compatível com os interesses societários”.45 Cf. Nuno Calaim Lourenço, Os deveres de administração…, cit., pp. 21 e 22. Assim, decorre deste sub-dever que, v.g., o decisor não deva tomar decisões que ponham em causa a subsistência fi nanceira ou o património social.

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2.1.2. Deveres de lealdade

O dever de lealdade apenas foi expressamente positivado no Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março, embora o mesmo já decorresse, em nossa opi-nião, do princípio da boa fé – que, sendo um princípio geral no ordenamento, impõe-se com particular acuidade no direito das sociedades comerciais por respeito à prossecução do interesse social.

Os deveres de lealdade podem assumir diversas confi gurações no direito das sociedades – lealdade da maioria quanto à minoria e vice-versa, dos acionistas para com a sociedade e gerentes ou administradores para com a sociedade46, sendo esta última a que interessa para o tema objeto do presente estudo visto que o dever fundamental de lealdade dos gerentes e administradores é-o, nos termos do artigo 64.º, n.º 1, al. b), para com a sociedade, embora se deva aten-der a outros interesses.

Alude a doutrina, por um lado, ao facto deste dever consubstanciar uma concretização do princípio da boa fé e, por outro, de ser uma decorrência da atuação dos administradores por gestão de bens alheios – as duas comple-mentam-se47, residindo a sua base na boa fé e no facto de estarmos perante a gestão de bens alheios48. São, por isso, deveres de natureza fi duciária, onde o elemento “confi ança” prepondera49.

No cumprimento do dever de lealdade, refere o legislador, os administra-dores estão obrigados a agir “no interesse da sociedade”, mas, além disso, devem atender aos “interesses de longo prazo dos sócios” e ponderar os “interesses dos outros sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, tais como os seus trabalhadores,

46 Cf. Menezes Cordeiro, “Os deveres fundamentais dos administradores…”, cit..47 A este respeito, Menezes Cordeiro, não se opondo a nenhuma das teorias, vê-as como com-plementares, referindo que “precisamente por estarmos perante uma gestão de bens alheios, a boa fé (...) impõe uma actuação que transcenda os valores do próprio” – cf. “Os deveres fundamentais dos admi-nistradores …”, cit..48 Cf. Menezes Cordeiro, “Os deveres fundamentais dos administradores …”, cit..49 Cf. Menezes Cordeiro, “Os deveres fundamentais dos administradores …”, cit., e Carneiro da Frada, “A business judgement rule...”, cit., p. 168., referindo-se ao dever de atuação segundo uma “lealdade qualifi cada”, por estar precisamente em causa a gestão de bens alheios. Perante essa lealdade qualifi cada, o autor afi rma que o dever de lealdade do administrador perante a sociedade ultrapassa a medida de conduta do artigo 762.º, n.º 2, do CC, a respeito do princípio da boa fé nas obrigações, pois entre o administrador e a sociedade o primeiro está a administrar os interesses da segunda – não se visando, portanto, estabelecer limites à prossecução de interesses próprios, mas, ao invés, garantir a supremacia dos interesses da sociedade e as condições da sua prossecução (ibidem, pp. 169 e 170).

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clientes e credores”50. Esta pretensão de “simbiose” de interesses tem merecido algumas críticas, e com razão. Em primeiro lugar, diga-se que o dever de leal-dade dos administradores é-o em relação à sociedade, embora se faça referência a esta “miscelânea” de interesses51.

Na eventualidade de existir um confl ito de interesses entre o interesse da sociedade e restantes interesses mencionados no preceito, deve dar-se prevalên-cia ao primeiro52 em cumprimento deste dever, pois o dever de lealdade ape-nas a ele diz respeito. A tomada de consideração dos outros interesses não é, em si, decorrência deste dever, sendo antes uma espécie de advertência do legisla-dor para que, na medida do possível, estes não sejam também descurados e para que o administrador possa prevenir a existência de confl itos53. Mas atenção: mesmo que se deva dar prevalência ao interesse social, nem por isso a violação dos outros interesses desresponsabiliza o administrador, pois este poderá ter de responder perante os terceiros atingidos nos termos dos artigos 78.º e 79.º, se esse confl ito resultar, precisamente, de violação do dever de cuidado que deve nortear toda a atuação do administrador54.

A doutrina e a jurisprudência têm vindo a fazer construções casuísticas para a densifi cação deste dever, sendo possível identifi car diversos casos tipo, onde

50 Pretendendo fazer uma simbiose entre todos os interesses, os riscos de incumprimento deste dever são evidentes, sendo esta norma alvo de críticas, nomeadamente, por Menezes Cordeiro, que afi rma expressamente a este respeito que “Quem é leal a todos, particularmente havendo sujeitos em confl ito, acaba desleal perante toda a gente” – cf. “Os deveres fundamentais dos administradores…”, cit. Sobre o tema, vide, também, Catarina Serra, “Entre corporate governance e corporate responsability. Deveres fi duciários e «interesse social iluminado»”, I Congresso das Sociedades em Revista, Almedina, 2011, pp. 211 e ss.. 51 Criticando a expressão utilizada pelo legislador, Carneiro da Frada, “A business judgement rule…”, cit., pp. 172 e 173, chama a atenção para o facto de os deveres de lealdade não terem sido adequadamente referenciados, pois a lealdade aí referida não existe por ordem a prosseguir e maximizar todos os interesses aí referidos e que, “na verdade, a lealdade qualifi cada do administrador existe, propriamente, em relação à sociedade que serve. Tal não signifi ca, porém, dispensa alguma de lealdade para com outros sujeitos com os quais o administrador entrou em relação (...) Os administradores devem por-tanto ser leais a todos: à sociedade, aos sócios, aos credores, aos trabalhadores e aos clientes (...). Tudo se entende destrinçado (...) entre a lealdade qualifi cada e a lealdade comum. A primeira não iliba da segunda. Quaisquer confl itos devem prevenir-se”. 52 Cf., v.g., Carneiro da Frada, “A business judgement rule...”, cit., pp. 174 e 175, e Nuno Calaim Lourenço, Os deveres de administração…, cit., p. 23.53 Cf. Carneiro da Frada, “A business judgement rule...”, cit., pp. 174 e 175, que dá como exemplo o facto de o legislador não dever comprometer-se perante esses sujeitos em detrimento do interesse social. 54 Neste sentido, a consideração desses outros interesses situa-se, antes, no plano do dever de cui-dado e não já no dever de lealdade – Carneiro da Frada, “A business judgement rule...”, cit., pp. 174-176.

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se incluem, v.g., o dever de não concorrência55; o dever de não apropriação de oportunidades de negócio societárias;56 ou o dever de não atuação em confl itos de interesses.

§ 3.º A business judgment rule no direito português

A atividade de gerência ou administração comporta o exercício de deveres discricionários ou dotados de margem de livre decisão. A autonomia conferida aos gerentes e administradores nesse âmbito exige que, em sede de responsa-bilidade civil, se tenha em conta os referidos deveres de forma a não se com-prometer o dinamismo da atividade empresarial. Daí que o artigo 72.º, n.º 2, determine que a responsabilidade dos gerentes ou administradores seja excluída se os mesmos provarem que atuaram em termos informados, livres de qualquer interesse pessoal e segundo critérios de racionalidade empresarial57.

Com inspiração no mecanismo da business judgement rule de origem norte--americana58, pretende-se que os gerentes ou administradores não deixem de atuar devido aos riscos associados a determinada conduta ou decisão, evitan-do-se assim uma gestão demasiado preventiva ou defensiva em prol de uma maior atividade59. Neste sentido, ainda que a atividade de gestão não tenha conduzido a resultados positivos e se revele danosa para a sociedade, há deter-minadas circunstâncias que eximem os administradores de responsabilidade60.

55 Este expressamente previsto no artigo 254.º, n.º 1, para os gerentes das sociedades por quotas, e no artigo 398.º, n.º 3 e 428.º, para os administradores das sociedades anónimas.56 Cf. Menezes Cordeiro, “Os deveres fundamentais dos administradores …”, cit.. Assim, vide, v.g., o Ac. do STJ de 30 de setembro de 2014 (Processo n.º 1195/08.0TYLSB.L1.S1), o Ac. do STJ de 28 de fevereiro de 2013 (Processo n.º 189/11.3TBCBR.C1.S1) e o Ac. do STJ de 31 de março de 2011 (Processo n.º 242/09.3YRLSB.S1). 57 Esta norma foi introduzida com a reforma de 2006, operada com o Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março.58 Sobre a origem da business judgment rule e infl uência norte americana, vide, v.g., António Pereira de Almeida, “A business judgment rule”…, cit., pp. 359-363, Ricardo Costa, “Responsabilidade dos administradores e business judgment rule”, Reformas do Código das Sociedades, Almedina, 2007, pp. 51 e ss..59 Cf. António Pereira de Almeida, “A business judgment rule”..., cit., pp. 363 e 364, Paulo Câmara, “O governo das sociedades…”, cit., p. 45 e Nuno Calaim Lourenço, Os deveres de administração…, cit., pp. 33 e 34.60 Cf. Carneiro da Frada, “A business judgement rule...”, cit., p. 179. De facto, “O dever de (boa) administração implica a harmonização, às vezes difícil, entre a necessidade de preservar a integridade do patri-mónio social e a de o fazer frutifi car em ordem à criação de riqueza para distribuir pelos sócios. O que reclama corresponder com dinamismo aos impulsos de evolução da vida societária e empresarial. A actividade de admi-

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O valor que visa aqui proteger-se é a autonomia do administrador61 que, como é sabido, atua sob a denominada “discricionariedade empresarial”.

Para que haja lugar à aplicação do mecanismo da BJR, a violação do dever que se equacione não pode ter natureza específi ca ou vinculada. Tem, ao invés, de existir um espaço de discricionariedade empresarial ou de gestão62. Perante o incumprimento de deveres especifi camente vinculados – quer sejam legais, estatutários ou deliberativos – destituídos de qualquer margem de livre aprecia-ção no que toca à sua observância, a responsabilidade deve ser examinada, nos termos gerais, à luz do n.º 1 do artigo 72.º, n.º 163.

Percebe-se, assim, a importância dos deveres fundamentais nesta sede, pois, sendo estes deveres genéricos por natureza, as probabilidades de atuação da regra da BJR são, neste campo, evidentes64. É, pois, perante situações de “dis-cricionariedade empresarial” que estes deveres se impõem com particular acui-dade, exigindo-se um esforço de ponderação acrescido e devendo a decisão tomada ter sempre em vista o interesse social. Neste sentido, os deveres fun-damentais dos administradores mostram-se como limites imanentes à atividade de administração – e bem assim, à atuação dos administradores com vista à execução de deliberações sociais65.

São diversas as doutrinas que têm proliferado a respeito da natureza jurídica deste artigo 72.º, n.º 2. Se é certo haver uma aceitação consensual no sentido de se considerar que tal corresponde a uma transposição para o direito português da

nistração é arriscada, exerce-se ordinariamente em cenários de incerteza. Dependendo o seu êxito também de múltiplos factores a ela mesma externos, não pode, como regra, implicar responsabilidade pelo resultado” (ibidem, p. 181). Por isso, na distinção acolhida pelo autor, para a lei a má administração não representa um ilícito de resultado, mas tão só de comportamento. Vide, no mesmo sentido, Nuno Calaim Lourenço, Os deveres de administração…, cit., p. 34. 61 Cf. Carneiro da Frada, A business judgement rule...”, cit., pp. 181 e 182.62 Vide, neste sentido, v.g., Ricardo Costa, “Responsabilidade dos administradores…”, cit., pp. 67 e 68, Hugo Moredo Santos e Orlando Vogler Guiné, “Deveres fi duciários dos adminis-tradores...”, cit., p. 708 e Nuno Calaim Lourenço, Os deveres de administração…, cit., pp. 35 e 36.63 Cf. Carneiro da Frada, “A business judgement rule...”, cit., pp. 182-183 e 190, afi rmando a este respeito que “Fora porém do campo de incidência de deveres legais e estatutários concretos que requerem uma observância incondicional, os administradores gozam de autonomia, dispondo de espaços amplos de livre apreciação. É imprescindível, como se referiu, que gozem dessa autonomia, sem a qual uma adequada gestão, que tem de tomar diversos factores em conta, não seria possível. O dever de dirigir a sociedade implica liberdade decisória. Importa que a ordem jurídica a reconheça. Mas ela, reitera-se, não se apresenta irrestrita”. 64 Para António Pereira de Almeida, “A business judgment rule”..., cit., pp. 368-370, este preceito apresenta uma função delimitadora ou concretizadora do conteúdo dos deveres fundamentais dos administradores presentes no artigo 64.º do CSC.65 Mais à frente daremos particular atenção a este tema, onde vai ser discutido se existe um dever de executar deliberações sociais e se existem limites à sua execução por decorrência destes deve-res fundamentais.

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business judgement rule, não há um consenso quanto à sua natureza. As posições variam entre as teorias da causa de exclusão da ilicitude66, da causa de exclusão da culpa67, da causa de exclusão da ilicitude e da culpa simultaneamente68, da causa de exclusão da responsabilidade69, de uma norma de “recorte” da cau-salidade”70, de uma norma que afasta a violação dos deveres de cuidado71 ou uma norma relacionada com a tensão entre os deveres de cuidado e diligência72, havendo ainda quem defenda tratar-se de uma presunção de ilicitude73.

Em nossa opinião, esta norma constitui um parâmetro para aferir a licitude ou ilicitude da conduta, e sem que haja qualquer presunção desta. A atuação em termos informados, livre de qualquer interesse pessoal e segundo critérios de racionalidade empresarial permite, pois, excluir a ilicitude do comportamento mesmo que exista uma atuação danosa para a sociedade. Mas, mesmo não ope-rando esta causa de exclusão de ilicitude, poderá ainda assim o administrador eximir-se de responsabilidade se, nos termos do n.º 1, provar que não teve

66 Neste sentido, Gabriela Figueiredo Dias, Fiscalização de sociedades e responsabilidade civil, Coim-bra Editora, 2006, p. 75 e Paulo Câmara, “O governo das dociedades…”, cit., pp. 52 e 53.67 Vide, neste sentido, Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, Parte Geral…, cit., pp. 982 - 985. 68 Neste sentido, Ricardo Costa, “Responsabilidade dos administradores…”, cit., pp. 63 e ss..69 Cf. Carneiro da Frada, “A business judgement rule…”, cit., pp. 183 e ss, o que signifi ca, segundo o autor, que no direito português, “a boa administração se apresenta, por princípio, como ques-tão judicialmente sindicável”, estando “aberta a um controlo jurisdicional ao abrigo do art. 64, n.º 1, a)”, apenas se excluindo a responsabilidade do administrador se ele lograr fazer a prova da verifi ca-ção das exigências do artigo 72, n.º 2, caso em que não poderá ser responsabilizado pelos danos resultantes da sua atuação. 70 Vide, neste sentido, Adelaide Menezes Leitão, “Responsabilidade dos administradores …”, cit., pp. 671-673, afi rmando tratar-se de uma regra “que não visa delimitar a ilicitude, mas sim, na for-mulação positiva portuguesa, delimitar a responsabilidade, pelo que melhor se insere em sede de causalidade, funcionando de forma paralela à relevância negativa da causa virtual”. A autora entende, assim, que, não se afastando por esta via a ilicitude, apenas se contempla uma regra do sistema de responsabilidade – a ilicitude existe na mesma, simplesmente não opera a responsabilidade. 71 Vide, neste sentido, Coutinho de Abreu, Responsabilidade civil dos administradores…, cit, pp. 37 e ss., e Nuno Calaim Lourenço, Os deveres de administração…, cit., pp. 39-42.72 Vide, neste sentido, João Calvão da Silva, “Responsabilidade civil dos administradores não executivos da Comissão de Auditoria e do Conselho Geral e de Supervisão”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 67, Vol. I, 2007, disponível em http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=59032&ida=59049. 73 Vide, neste sentido, Pedro Pais de Vasconcelos, “Business judgment rule, deveres de cuidado e de lealdade, ilicitude e culpa e o artigo 64.º do Código das Sociedades Comerciais”, Direito das Sociedades em Revista, Ano 1, Vol. 2, 2009, pp. 54 e ss..

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culpa74. A racionalidade empresarial há de ser aferida tomando por base um juízo de razoabilidade decisória ex ante e não ex post75.

§ 4.º O dever de executar deliberações sociais

Cabe, neste particular, indagar sobre a existência de um dever dos admi-nistradores executarem deliberações da assembleia geral. Naturalmente, como afi rmam Raúl Ventura e Luís Brito Correia, esta questão só se coloca relativa-mente às deliberações sociais que carecem de atos que lhes deem execução, e não quanto às que sejam autossufi cientes, i.e., aquelas que não careçam de atos de execução posteriores para terem plena efetividade76.

Como nota Lobo Xavier, as deliberações sociais, para além de poderem infl uir e condicionar o processo formativo de deliberações subsequentes77, têm também infl uência na esfera dos titulares de órgãos sociais – mormente os gerentes e administradores –, constituindo um parâmetro de conduta que estes terão de ter em conta quando intervenham ao abrigo de tais deliberações, sob pena de responsabilidade pela infração dos respetivos deveres funcionais, por esta forma concretizados78.

74 Vide, neste sentido, Paulo Câmara, “O governo das sociedades…”, cit., pp. 52 e 53. Conforme afi rma, “O administrador pode actuar em termos não informados, por lhe ter sido transmitida ardilosamente informação falsa pelos seus colaboradores; ou pode ter actuado em termos inatacáveis num assunto que interferia com algum interesse pessoal (em que não haveria confl ito mas convergência entre o interesse pessoal e social). Em todas estas situações, parece que a solução adequada reside no n.º 1 do art. 72.º, que assume agora vocação aplicativa residual ante o art. 72.º/2”. Vide, ainda, no mesmo sentido, Nuno Calaim Lourenço, Os deveres de administração…, cit., pp. 43-49, aludindo à necessidade de articulação da BJR com o n.º 1 do artigo 72.º, pois este apenas opera no plano da ilicitude e não no plano da culpa.75 Hugo Moredo Santos e Orlando Vogler Guiné, “Deveres fi duciários dos administrado-res...”, cit., pp. 709 e 710, dão-nos nota de um caso do Reino Unido (Case no. HQ12X03155) que permite documentar um exemplo de que a razoabilidade decisória deve ser aferida ex ante. Tratava-se de um imóvel que foi vendido por um valor e pouco depois revendido por mais do dobro do valor, tendo nesta sequência sido alegadas uma série de irracionalidades, designada-mente quanto ao preço da venda, e tendo o tribunal decidido que esta foi razoavelmente decidida.76 Cf. Raúl Ventura e Luís Brito Correia, Responsabilidade civil dos administradores de sociedades anónimas e dos gerentes de sociedades por quotas, Lisboa, 1970, p. 71. 77 Sobre a deliberação anulada e a sua conexão com o processo formativo de deliberações pos-teriores, vide Vasco da Gama Lobo Xavier, Anulação de deliberação social e deliberações conexas, Almedina, 1998, pp. 263 e ss.. 78 Cf. Vasco da Gama Lobo Xavier, Anulação de deliberação social…, cit., pp. 314 a 316. Vide, tam-bém, Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial…, cit., p. 365, referindo que uma deliberação social determinada pode servir de ponto de apoio necessário a toda uma série de atos jurídicos ulteriormente realizados.

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O administrador não deve, todavia, fazer uma “aplicação cega” de tais deli-berações, especialmente se tivermos em conta que as mesmas podem padecer de vícios que entrem em confronto com outros deveres ou princípios. Por outro lado, as deliberações podem, também, elas próprias, deixar uma margem de “discricionariedade empresarial” – embora aqui possa conceber-se o dever de as executar, no plano da sua execução exige-se uma concretização aten-dendo, também, a outros deveres que devem nortear a atuação dos administra-dores, como os deveres de cuidado e lealdade, pois a discricionariedade não se compadece com a arbitrariedade.

Pergunta-se, desde logo, se existirá algum apoio legal que nos permita res-ponder a esta questão. Para as sociedades anónimas, o artigo 405.º prevê um dever de subordinação destas às deliberações dos acionistas apenas quando a lei ou o contrato de sociedade o determinarem. Por sua vez, para as sociedades por quotas, o artigo 259.º determina que os gerentes devem praticar os atos que forem necessários ou convenientes para a realização do objeto social, com respeito pelas deliberações dos sócios.

Embora, à primeira vista, pareça decorrer daqui uma solução, estas normas identifi cam-se, apenas, com a competência do órgão para aprovar deliberações, não resolvendo o problema. Daqui apenas se retira que o leque de matérias da competência da assembleia geral é muito mais vasto nas sociedades por quotas do que nas sociedades anónimas – naquelas, por regra, os sócios deliberam sobre todos os assuntos da sociedade; nestas, geralmente, o conselho de admi-nistração delibera sobre os assuntos da sociedade. Naquelas, “não há matérias onde os sócios não possam interferir, emitindo directrizes e instruções que os administra-dores deverão acatar. Mas, não se podem substituir, na função de gestão e de represen-tação da sociedade, aos gerentes” pelo que “seria nula uma deliberação que pretendesse atribuir as funções de gestão ou de representação da sociedade à Assembleia geral”79. Nas sociedades anónimas, o leque de competências da assembleia geral é mais restrito, sendo que os acionistas só podem deliberar sobre matérias de gestão da sociedade a pedido do órgão de administração e tal deliberação só vincula os administradores caso tal venha previsto nos estatutos. Neste sentido, uma deliberação dos acionistas será nula se versar sobre matérias de gestão, a menos que seja solicitado pelo órgão de administração80.

79 Cf. artigos 252.º, n.º 1, e 259.º do CSC e António Fernandes de Oliveira, “Responsabili-dade civil dos administradores”, Código das Sociedades Comerciais e Governo das Sociedades, Alme-dina, 2008, p. 300.80 Cf. António Fernandes de Oliveira, “Responsabilidade civil dos administradores”… cit., p. 301.

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Portanto, partindo do pressuposto que a assembleia geral tem efetivamente competência para a aprovação de determinados atos ao abrigo destas normas de competência, estão os gerentes ou administradores obrigados à sua execução – no pressuposto de elas carecem de atos que lhes deem efetividade? A resposta a esta questão não deve ser afi rmada de forma unitária, havendo que distinguir consoante as deliberações sejam válidas ou inválidas e, neste último caso, con-soante o vício seja o da nulidade ou o da mera anulabilidade81.

4.1. Deliberações válidas

Deve entender-se que as deliberações válidas, não padecendo de qualquer vício, obrigam o administrador82. Neste caso, existindo uma deliberação social válida com necessidade de um ou vários atos executórios, surge um dever de a executar que se impõe aos administradores – e que tem precisamente natureza deliberativa.

As difi culdades que neste campo podem surgir dizem respeito ao con-teúdo da deliberação em si, que poderá estar mais ou menos determinado83. Poderá suceder, por um lado, que a mesma tenha um conteúdo que vincule, em termos específi cos, a atuação dos gerentes e administradores, sem margem de discricionariedade empresarial, ou, por outro lado, que a mesma tenha um conteúdo amplo que confi ra espaço de discricionariedade empresarial – i.e., uma imposição que deixe um espaço aberto na execução da deliberação.

Nos dois casos deverá entender-se que os administradores têm o dever de executá-las. Simplesmente, se as deliberações forem válidas mas não impuserem deveres específi cos vinculados, deixa-se aos administradores uma margem de decisão ou “discricionariedade empresarial” quanto aos termos da sua execu-ção, dentro dos limites especifi camente moldados pelas deliberações. Nestas hipóteses, o elemento “fi m” deve, pois, surgir como critério norteador da con-

81 Vide, neste sentido, Raúl Ventura e Luís Brito Correia, Responsabilidade civil dos adminis-tradores…, cit., p. 74. 82 Neste sentido, Raúl Ventura e Luís Brito Correia, Responsabilidade civil dos administradores…, cit., pp. 74-76, que referem, ainda, a este respeito, deverem equipar-se a estas, para este efeito, as deliberações anuláveis depois de sanado o vício ou ratifi cadas. 83 Como afi rma Pessoa Jorge, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, Almedina, 1995, pp. 72 e ss.., a determinação exata dos atos a que o devedor se acha vinculado não está formulada com a mesma precisão em todas as obrigações: o comportamento devido encontra-se mais defi nido numas do que noutras, podendo existir prestações de conteúdo defi nido e indefi nido – devendo preponderar nestas o elemento “fi m” como critério norteador da conduta devida.

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duta, devendo o administrador executá-las por forma a dar cumprimento aos deveres fundamentais de cuidado e lealdade, sob pena de responsabilidade civil.

Efetivamente, no que concerne especifi camente à atividade de adminis-tração, aos gerentes e administradores cabe a concretização do interesse ou fi m social, com os inerentes limites legais, estatutários e deliberativos, devendo também para o efeito adotar os meios necessários à sua prossecução84.

Importa, então, precisar o conceito de discricionariedade. Nas palavras de José Ferreira Gomes “Quando a norma de conduta no caso concreto admita apenas uma conduta, não há discricionariedade, há uma obrigação de conteúdo especifi cado em função das circunstâncias do caso. Sendo admitidas duas ou mais alternativas de ação, há discricionariedade, podendo o devedor escolher qualquer uma das alternativas” 85 (…) “A específi ca competência atribuída a cada órgão social determina diferentes níveis de discricionariedade”86.

O processo decisório envolve incertezas, mas a margem que lhe confere a deliberação não isenta o administrador do dever de decidir. A sua concretização deve ser feita atendendo ao fi m ou resultado defi nidor da prestação – toman-do-se em devida linha de conta um conjunto de fatores, a saber, o interesse da sociedade e, com ele, o objeto social estatutariamente defi nido e as deliberações sociais87.

Assim, “quem seja chamado a controlar ex post a conduta do devedor deverá ana-lisar: se, no caso concreto, o devedor determinou adequadamente as alternativas de ação normativamente admissíveis, em função da bitola de diligência normativa; em caso afi r-mativo, sendo admissível apenas uma alternativa, se a conduta do devedor foi conforme à norma de conduta; sendo admissível mais do que uma alternativa, se a conduta do deve-dor se enquadra dentro do espaço de discricionariedade normativamente delimitado”88.

Independentemente da concreta confi guração da deliberação social em causa – i.e., quer o seu conteúdo se apresente em termos específi cos ou defi -nidos ou em termos indeterminados ou indefi nidos –, deverá concluir-se, tal como começámos por introduzir este tema, que sempre que uma delibera-ção careça de execução, desde que seja válida, dela emergem deveres que se

84 Cf. José Ferreira Gomes, Da administração à fi scalização das sociedades – da obrigação de vigilância dos órgãos da sociedade anónima, Almedina, 2015, p. 807. Conforme afi rma, o seu processo de deci-são assenta num vasto leque de variáveis e, sobretudo, num juízo de prognose sobre a evolução do mercado – desde o mercado dos produtos comercializados ou serviços prestados pela sociedade, aos mercados fi nanceiro e laboral de que depende a captação dos recursos fi nanceiros e humanos para o desenvolvimento da sua atividade.85 Cf. José Ferreira Gomes, Da administração à fi scalização das sociedades …, cit., p. 805.86 Cf. José Ferreira Gomes, Da administração à fi scalização das sociedades…, cit., p. 806.87 Cf. José Ferreira Gomes, Da administração à fi scalização das sociedades…, cit., pp. 807 e 808.88 Cf. José Ferreira Gomes, Da administração à fi scalização das sociedades…, cit., p. 812.

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impõem aos administradores. O que poderá, depois, suceder, é que o com-portamento subsequente traduzido em atos executórios seja ilícito por violar o espaço de discricionariedade admissível. Mas, aí, já não é a validade da deli-beração social que está em causa – ela continua destituída de qualquer vício, embora os atos que lhes deem execução possam ser ilícitos por extravasarem o espaço de discricionariedade admissível à luz dos deveres de cuidado e lealdade que impendem sobre os administradores.

4.2. Deliberações inválidas

Para aferir se existe ou não um dever de executar deliberações sociais inváli-das, é determinante atentar na causa de invalidade que inquina especifi camente determinada deliberação social, pois a nulidade ou anulabilidade distinguem-se no plano da produção de efeitos e da possibilidade, ou não, de convalidação.

4.2.1. Deliberações nulas

Os casos de deliberações nulas vêm especifi cados no artigo 56.º, n.º 1, cominando-se com o vício de nulidade as deliberações dos sócios (i) tomadas em assembleia geral não convocada, salvo se todos os sócios tiverem estado presentes ou representados; (ii) tomadas mediante voto escrito em que todos os sócios com direito de voto tenham sido convidados a exercer esse direito, a não ser que todos eles tenham dado por escrito o seu voto; (iii) cujo conteúdo esteja, por natureza, sujeito a deliberação dos sócios; (iv) cujo conteúdo, dire-tamente ou por atos de outros órgãos que determine ou permita, seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios.

Estão aqui compreendidos vícios de procedimento (ou de forma) e de subs-tância. As duas primeiras referem-se a vícios de procedimento, pois está em causa não o conteúdo da deliberação social, mas a falta de convocatória da assembleia geral ou a falta de convite a exercer o voto por escrito quando a deliberação seja tomada por voto escrito – sendo sanáveis nos termos do n.º 3 do mesmo artigo 56.º, já que se os sócios ausentes e não representados ou não participantes na deliberação por escrito tiverem dado posteriormente o seu assentimento por escrito à deliberação não pode a nulidade ser invocada89; as

89 Refere, por isso, Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, Parte Geral…, cit., pp. 773 e 774, que a grande diferença entre os vícios de procedimento e de substância reside na natureza sanável

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duas últimas, entrando já no conteúdo da deliberação, compreendem vícios de substância – por um lado, está em causa o conteúdo que, por natureza, não esteja sujeito a deliberação dos sócios; por outro, estão em causa deliberações ofensivas dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam ser derro-gados nem sequer por vontade unânime dos sócios. Os casos de nulidade são taxativos – não há, pois, nenhum critério residual que determine a nulidade de determinada deliberação – embora deva reconhecer-se que os preceitos sejam dotados de uma grande amplitude90.

A nulidade prevista no artigo 56.º, n.º 1, al. c) – onde se refere que são nulas as deliberações cujo conteúdo, por natureza, não esteja sujeito a deliberação dos sócios – tem desembocado diversas interpretações. São principalmente duas as teorias que têm dividido a doutrina: (i) de um lado, a teoria da incompetência, no sentido de neste preceito estarem compreendidas situações de violação de regras imperativas de distribuição de competências91; (ii) do outro, a teoria da impossibilidade. Surge, depois, uma outra posição que pode designar-se por “teoria da incapacidade” e que tem como percursor Menezes Cordeiro, segundo a qual será nula a deliberação que, pelo seu teor, não caiba na capaci-dade da pessoa coletiva considerada92.

O teor do artigo 56.º, n.º 1, al. d), justifi ca uma análise mais aprofundada, o que será feito infra num ponto autónomo. Para já, cabe tomar posição sobre a questão por nós levantada. O vício da nulidade, como é sabido, distingue-se do da anulabilidade por naquele o ato não produzir efeitos nem se convalidar, diferentemente deste em que, enquanto não for o ato anulado, o mesmo pro-duz efeitos, podendo sanar-se a invalidade se não for arguido o vício93.

Ora, visando-se com a nulidade a não produção de quaisquer efeitos nem se admitindo a possibilidade de sanação do vício, terá de considerar-se que, perante uma deliberação nula, a sua eventual execução frustraria esta fi nalidade

dos primeiros e que a nulidade dos vícios de procedimento tem especialidades que levam a consi-derá-la como atípica. Existe, ainda, a possibilidade de renovação nos termos do artigo 62.º, n.º 1, do CSC, o qual dispõe que estas deliberações podem ser renovadas por outra deliberação e a esta pode ser atribuída efi cácia retroativa, ressalvados os direitos de terceiros.90 Cf. Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, Parte Geral…, cit., p. 771. A regra é, pois, a da anulabilidade, na falta de disposição especial.91 Cf., por todos, António Fernandes de Oliveira, “Responsabilidade civil dos administra-dores”…, cit., p. 300.92 Aliás, como refere, os próprios negócios celebrados fora da capacidade “natural” ou “legal” da sociedade são nulos, por impossibilidade legal e, portanto, devem as deliberações que lhes estejam na origem ser, também, nulas – cf. Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, Parte Geral…, cit., p. 778. 93 Cf. artigos 286.º a 288.º do CC.

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e a ratio das disposições que cominam a deliberação com este vício. Deverá, portanto, entender-se que, se as deliberações forem nulas, não só os administra-dores não têm de as executar, como têm um dever de não as executar94.

Entendemos justifi car-se, aqui, a aplicação analógica do artigo 412.º, com a confi guração de um dever específi co vinculado. O preceito determina que os administradores não devem executar ou consentir que sejam executadas deliberações nulas – ele refere-se, é certo, às deliberações do conselho de administração, mas não pode descurar-se pura e simplesmente esta norma só por não abordar diretamente as deliberações da assembleia geral. Em ambos os casos, é preciso não esquecer, estão em causa atos deliberativos. Também nas deliberações da assembleia geral, se as mesmas não forem autossufi cientes e carecerem de algum ou mais atos de execução, se poderá, precisamente, deparar o administrador com a existência de um vício de nulidade que a afete. A analogia das situações é evidente, o que nos leva a defender a necessidade de integração desta lacuna legal com recurso a esta norma. O legislador não quis que as deliberações nulas do conselho de administrador produzissem quaisquer efeitos ao ponto de se equacionar sequer a hipótese da sua execução. Seria incoerente pensar que, ao invés, pretendeu a execução das deliberações nulas da assembleia geral.

Importa sobretudo precisar o alcance do artigo 56.º, n.º 1, al. d) – o que faremos de seguida –, dado que terá de se adotar um critério que permita dis-tinguir este caso do previsto no artigo 58.º, n.º 1, al. a) (que diz respeito a um caso de anulabilidade), bem como do artigo 58.º, n.º 1, al. b) – em especial, a necessidade de distinguir deliberações contrárias aos bons costumes de deli-berações abusivas é imperiosa, ainda para mais não havendo unanimidade na doutrina e na jurisprudência relativamente a determinados casos concretos que se têm colocado. Como veremos, as conclusões que devam retirar-se a respeito do dever de executar determinada deliberação são distintas consoante o vício que a afete seja o da nulidade ou da anulabilidade.

Quanto ao signifi cado da expressão “que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios” deverá entender-se que tal vontade unânime poderá manifestar-se quer aquando da elaboração ou alteração dos estatutos, quer no âmbito do exercício de funções por parte dos sócios, seja pela partici-pação nas assembleias gerais ou por outra forma legalmente admitida95.

94 Vide, neste sentido, Raúl Ventura e Luís Brito Correia, Responsabilidade civil dos adminis-tradores…, cit., p. 76. 95 Cf. António Fernandes de Oliveira, “Responsabilidade civil dos administradores”…, cit., p. 296.

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Por isso, a expressão “preceitos legais inderrogáveis” compreende aqueles pre-ceitos que não possam sequer ser derrogados pelo pacto social96, não se abran-gendo, portanto, os que podiam ou possam ser derrogados pelo pacto social ou uma sua alteração posterior, sendo este o critério que deve presidir à deli-mitação face ao artigo 58.º, n.º 1, al. a), do CSC97. Como exemplos, podem apontar-se os preceitos relativos à constituição, reforço ou utilização da reserva legal, bem como os que têm por fi nalidade, exclusiva ou principal, a proteção dos credores ou do interesse público98 – v.g., as deliberações que afetem a intangibilidade do capital social99.

Numa palavra: não podem derrogar-se, por via deliberativa, preceitos imperativos – i.e., quando integrem a ordem pública, quando concretizem princípios injuntivos ou quando institua ou defenda posições de terceiros100.

4.2.2. Deliberações sociais contrárias aos bons costumes vs. deliberações abusivas

As deliberações cujo conteúdo seja ofensivo dos bons costumes merecem uma referência autónoma. Tais deliberações são nulas. As deliberações abusivas, por sua vez, são anuláveis. No plano dos efeitos, as consequências de uma e de outra são distintas, desde logo porque, nestas, há possibilidade de sanação ou convalidação, diferentemente do que naquelas sucede. Mas também por-que, como veremos, as consequências no plano da executoriedade são também distintas. O interesse em delimitar ambas as fi guras é por demais evidente pois a qualifi cação como deliberação abusiva ou contrária aos bons costumes acar-retará consequências mais ou menos gravosas, consoante o caso – entre essas

96 Cf. José de Oliveira Ascensão, “Invalidades das deliberações dos sócios”, Problemas de Direito das Sociedades, Almedina, 2002, pp. 376 e ss.. e António Fernandes de Oliveira, “Responsa-bilidade civil dos administradores”…, cit., p. 297. 97 Cf. António Fernandes de Oliveira, “Responsabilidade civil dos administradores”…, cit., pp. 296 e 297.98 Cf. artigo 69.º, n.º 3 do CSC. Como refere António Fernandes de Oliveira, “Responsa-bilidade civil dos administradores”…, cit., p. 297, a grande maioria dos casos subsumíveis a esta disposição cabe, também, sem esforço, na previsão da al. d) do n.º 1 do artigo 56.º do CSC.99 Cf. António Fernandes de Oliveira, “Responsabilidade civil dos administradores”…, cit., p. 297, que enuncia outros exemplos. 100 Cf. Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, Parte Geral…, cit., pp.782-784. Note-se que, conforme afi rma, para além das normas gerais de ordem pública deverá ter-se presente especifi -camente a existência de uma ordem pública societária – que integra, entre outros, os elementos necessários do contrato e os factos integrativos dos tipos de sociedades. Do mesmo modo, tam-bém há princípios especifi camente societários (v.g., a não disponibilidade do voto nas sociedades em nome coletivo).

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consequências, está também a relacionada com a existência, ou não, do dever dos administradores as executarem, o que, naturalmente, terá efeitos em termos de responsabilidade civil.

Importa partir do conceito de bons costumes do direito civil – em par-ticular o previsto no artigo 280.º, n.º 2, do CC, onde se determina a nulidade do negócio contrário à ordem pública ou ofensivo dos bons costumes. Tem-se entendido caberem aqui sobretudo regras de conduta sexual e familiar bem como regras de deontologia profi ssional101. O CSC prevê uma norma espe-cífi ca. Terá o artigo 56.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, especifi cidades em relação ao alcance previsto no artigo 280.º do CC?

A jurisprudência tem agrupado no conceito de deliberações sociais contrá-rias aos bons costumes principalmente três grandes grupos de casos – parecendo decorrer daqui especifi cidades em relação ao conceito de bons costumes em geral –, a saber: (i) deliberações de não distribuição de lucros aos sócios durante vários anos102; (ii) deliberações de trespasse/venda de bens sociais por preço muito inferior ao oferecido pelo sócio minoritário103; e, (iii) venda ou trespasse de bens da sociedade por um preço muito inferior ao real104-105.

Verifi ca-se, todavia, uma oscilação jurisprudencial em que, para casos idên-ticos, se decide aplicar umas vezes o artigo 56, n.º 1, al. d), 1.ª parte – a respeito das deliberações contrárias aos bons costumes –, e outras o artigo 58.º, n.º 1, al. b) – a respeito das deliberações abusivas106.

101 Cf. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, 3.ª ed., Alme-dina, 2007, p. 709. 102 Vide, v.g., o Ac. do STJ de 7 de janeiro de 1993, BMJ 423, 1993, pp. 539-553. 103 Vide, v.g., o Ac. do STJ de 3 de fevereiro de 2000, CJ/Supremo VIII, 2000, 1, pp. 59-63. 104 Vide, v.g., o Ac. do TRP de 13 de abril de 1999, CJ XXIV, 1999, 2, pp. 196-202, e o Ac. do STJ de 15 de dezembro de 2005.105 Para uma descrição de vários casos jurisprudenciais vide Coutinho de Abreu, “Deliberações dos sócios abusivas e contrárias aos bons costumes”, Direito das Sociedades em Revista, Ano I, Vol. 1, 2009, pp. 33 e ss..106 Vide, v.g., o Ac. do STJ de 28 de março de 2000, CJ/Supremo, 2000, 1, p. 59. Neste Acórdão, dois dos sócios votaram a favor da proposta de trespasse do estabelecimento comercial por 85 000 contos e de venda de imóvel (onde estava a sede da sociedade) por 205 000 contos. O sócio minoritário, que havia proposto comprar por 466 000 e 250 000 contos, respetivamente, votou contra. O tribunal não considerou haver contrariedade aos bons costumes, diferentemente do Ac. do STJ de 3 de fevereiro de 2000 a que aludimos supra. No entanto, a deliberação não era anu-lável por aplicação da prova de resistência, pois na petição inicial apenas se alegou como abusivo o voto de um dos sócios.

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Menezes Cordeiro, na senda desta jurisprudência, parece enquadrar estes grupos de casos numa específi ca deontologia comercial107. Pelo contrário, Coutinho de Abreu integra-os no seio dos das deliberações abusivas e não entre as contrárias aos costumes108. Entende, ao invés, que deve fazer-se uma interpretação extensiva do artigo 56, n.º 1, al. d), 1.ª parte, apenas quando este-jam em causa posições de terceiros (que se visem com a deliberação prejudicar) – aí sim deverá, segundo o autor, defender-se a nulidade por violação dos bons costumes, admitindo-se nestes casos o alargamento do conceito de “conteúdo” de bons costumes para aí se incluir também a “fi nalidade de prejudicar terceiro(s) contrária aos bons costumes”109.

Para uma adequada tomada de posição, importa ter presente, em primeiro lugar, a temática da capacidade das sociedades comerciais, e o classicamente discutido princípio da especialidade que tradicionalmente vem sendo apon-tado pela doutrina como limitando a capacidade da pessoa coletiva, atento o disposto no artigo 6.º, n.º 1, no qual se dispõe que a capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prosse-cução do seu fi m, excetuados aqueles que lhe sejam vedados por lei ou sejam inseparáveis da personalidade singular.

Seguimos, aqui, a posição de Menezes Cordeiro, no sentido da superação do princípio da especialidade com fundamento no facto de as razões históri-co-dogmáticas em que assentava o referido princípio já não se verifi carem, a saber (i) a doutrina ultra vires anglo-saxónica; e, (ii) as restrições continentais aos bens de mão morta110. Daqui decorre que a capacidade de gozo das sociedades comerciais não é limitada por este preceito e que, portanto, não está limitada, nomeadamente, por qualquer escopo lucrativo. Como fundamento da supe-

107 Cf. Menezes Cordeiro Direito das Sociedades, I, Parte Geral…, cit., pp. 778 e ss., afi rmando que “Essa deontologia impõe-se quando estejam em jogo violações grosseiras, em termos a determinar in concreto”.108 Cf. Coutinho de Abreu, “Deliberações dos sócios abusivas…”, cit., pp. 37 e ss.. O autor con-sidera que estas deliberações, pelo seu conteúdo, não são contrárias aos bons costumes. Quanto muito, poderia o fi m ser contrário (e não o seu conteúdo), hipótese subtraída do art. 56.º, n.º 1, al. d). Acrescenta ainda que estes casos afetam, sobretudo, a posição do sócio minoritário, que tem legitimidade para recorrer à ação anulatória. 109 Cf. Coutinho de Abreu, “Deliberações dos sócios abusivas…”, cit., p. 40. Caso assim não fosse, o autor entende que teria de se considerar a existência de uma “doação mista” fora da capa-cidade da sociedade, nula por via da 2.ª parte do artigo 56, n.º 1, al. d), por contrariedade a precei-tos inderrogáveis. Esta alternativa vai contra a posição por nós defendida (na esteira de Menezes Cordeiro): (i) primeiro porque as doações nem sequer são inválidas por escaparem à capacidade da sociedade, dada a superação do princípio da especialidade; (ii) segundo porque mesmo que assim fosse sempre seria de integrar esta situação na al. c) do artigo 56.º, por ser um ato que, por natureza, não está sujeito a deliberação dos sócios.110 Cf. Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, Parte Geral…, cit., pp. 375 e ss..

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ração deste princípio aponte-se, fundamentalmente, o princípio da autonomia privada – atentos os artigos 217.º e 294.º, terá de reconhecer-se a disponibili-dade do fi m social (lucrativo ou não lucrativo)111.

Daqui decorre a necessidade de repensar o estabelecido no artigo 6.º, n.º 2, quando se afi rma “as liberalidades que possam ser consideradas usuais, segundo as circunstâncias da época e as condições da própria sociedade”, à luz da superação do princípio da especialidade. Deverá, neste sentido, entender-se que mesmo as verdadeiras e próprias doações que não possam ser consideradas usuais “segundo as circunstâncias da época e da própria sociedade” – que não tenham, sequer, ainda que indiretamente, um fi to lucrativo – são válidas e não limitam a capacidade das sociedades112.

Também as garantias prestadas gratuitamente a terceiros são válidas, havendo que repensar o disposto no artigo 6.º, n.º 3 – ao prever que consi-dera-se contrária ao fi m da sociedade a prestação de garantias reais ou pessoais a dívidas de outras entidades, salvo se existir justifi cado interesse próprio da sociedade garante ou se se tratar de sociedade em relação de domínio ou de grupo. Desde logo, “o interesse próprio” cabe à sociedade defi nir, sendo “facílimo invocar o interesse próprio justifi cado”, e sendo também fácil invocar situações de grupo sobretudo perante a hipótese de grupos de facto – só perante situações escandalosas e de má fé dos benefi ciários parece ser possível travar a prestação de garantias113.

Em suma, a capacidade de gozo das pessoas coletivas não está limitada pelo princípio da especialidade, que se encontra hoje superado. Mas a sua capaci-dade, naturalmente, não é ilimitada havendo que distinguir (i) limitações ditadas pela natureza das coisas – aqui se incluindo precisamente situações “inseparáveis da personalidade singular”, como situações jurídicas familiares ou sucessórias ou, v.g., o direito à vida, à integridade física, à saúde ou ao sono, situações patrimoniais que pressupõem a intervenção de uma pessoa singular (v.g. traba-

111 Estas normas preveem, para as sociedades por quotas e anónimas, respetivamente, que salvo diferente cláusula contratual ou deliberação tomada por maioria de três quartos dos votos cor-respondentes ao capital social em assembleia geral para o efeito convocada, não pode deixar de ser distribuído aos sócios metade do lucro do exercício que, nos termos desta lei, seja distribuí-vel; e que, salvo diferente cláusula contratual ou deliberação tomada por maioria de três quartos dos votos correspondentes ao capital social em assembleia geral para o efeito convocada, não pode deixar de ser distribuída aos acionistas metade do lucro do exercício que, nos termos desta lei, seja distribuível. A menção a “salvo diferente cláusula contratual ou deliberação” faz preponderar, em matéria de direito aos lucros, a autonomia privada, podendo, no limite, acordar-se na sua não distribuição. 112 Cf. Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, Parte Geral…, cit., pp. 381 e 382.113 Cf. Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, Parte Geral…, cit., p. 382-384.

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lhador subordinado), e diversas situações de direito público, como o direito de voto; (ii) limitações legais – decorrentes de normas imperativas; (iii) limitações estatutárias; e, (iv) limitações deliberativas. Só as primeiras representam, em si, uma verdadeira limitação da capacidade das pessoas coletivas. Assim, no caso das “limitações legais”, não se está perante um problema de incapacidade, mas antes de violação de normas legais imperativas, que acarretará a nulidade ao abrigo dos artigos 280.º ou 294.º do CC. Por sua vez, as limitações estatutá-rias e deliberativas não se apresentam também como limites à capacidade – o primeiro caso poderá conduzir à invalidade das deliberações sociais; o segundo poderá dar azo a responsabilidade114.

Ora, como já referido, o 56.º, n.º 1, al. c), contempla a teoria da incapaci-dade. Os casos de incapacidade são aqueles que, pela sua natureza, são “insepa-ráveis da personalidade singular” – e que, como vimos, são escassos. Logo, perante um ato gratuito (v.g., doação ou garantia), e atendendo à superação do prin-cípio da especialidade, deve considerar-se que a deliberação social que a tanto consinta não é nula por via do aludido artigo 56.º, n.º 1, al. c). Se os negócios jurídicos concretizados em atos gratuitos não são nulos devido à superação do princípio da especialidade, terá de considerar-se, para sermos coerentes, que, na eventualidade de ser aprovada uma deliberação social que preveja a prática de tais negócios jurídicos, é também ela válida.

Neste contexto, a questão sobre a qual importa refl etir para a delimitação das deliberações contrários aos bons costumes face às abusivas é a seguinte: se um negócio jurídico gratuito em que a sociedade fi gura como doadora ou garante a título gratuito é válido, porquê considerar, v.g., que a venda de um bem por um preço muito inferior ao real será nula por contrariedade aos bons costumes – quando, ainda por cima, este é menos prejudicial para a sociedade do que aquele? A maiori ad minus, também aqui deverá considerar-se que o ato não é nulo, sendo perfeitamente válido atendendo à superação do princípio da especialidade.

Propomos, assim, face aos casos paradigmáticos apontados como con-trários aos bons costumes e como consagrando uma específi ca “deontologia comercial”, o seguinte: as deliberações de não distribuição de lucros aos sócios, de venda de bens sociais por preço inferior ao oferecido pelo sócio minoritário e de venda de bens da sociedade por um preço muito inferior ao real não são nulas por contrariedade aos bons costumes – por identidade de razão com a não nulidade dos atos gratuitos – estão em causa direitos disponíveis, pois existe disponibilidade do fi m social (lucrativo ou não lucrativo), não se afetando com

114 Cf. Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, I, Parte Geral…, cit., pp. 388-389.

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isso qualquer específi ca “deontologia comercial”. Poderão ser anuláveis, por abusivas, se estiverem preenchidos os requisitos do artigo 58.º, n.º 1, al. b) – i.e. – se forem apropriadas para satisfazer o propósito de um dos sócios de con-seguir, através do exercício do direito de voto, vantagens especiais para si ou para terceiros, em prejuízo da sociedade ou de outros sócios ou simplesmente de prejudicar aquela ou estes, a menos que se prove que as deliberações teriam sido tomadas mesmo sem os votos abusivos115.

Chegados aqui, pergunta-se como tutelar os credores prejudicados em vir-tude de tais deliberações, tendo em conta que os mesmos não têm legitimidade para arguir o vício da anulabilidade116.

Com o devido respeito, a proposta de Coutinho de Abreu não parece ade-quar-se. Vimos com difi culdade integrar no conceito de contrariedade aos bons costumes (ainda que atendendo à fi nalidade) as deliberações que prejudiquem os terceiros.

No caso de os sócios adquirirem vantagens patrimoniais, ainda que a título indireto (v.g., venda de um imóvel a irmã de um sócio por um preço muito inferior ao real), podemos considerar que estamos perante distribuições aos sócios indiretas, sujeitas ao princípio da conservação do capital social (artigo 32.º), sendo possível fazer-se uma interpretação extensiva. Neste sentido, a deliberação em causa não poderá levar a que o capital próprio da sociedade, incluindo o resultado líquido do exercício, tal como resulta das contas ela-boradas e aprovadas nos termos legais, seja inferior à soma do capital social e das reservas que a lei ou o contrato não permitem distribuir aos sócios ou se tornasse inferior a esta soma em consequência da distribuição. Se o património da sociedade fi car, em virtude da deliberação aprovada, abaixo destes valores, a mesma será nula por violação da conservação do capital social117. Mas, mesmo que se entenda que esta via não é adequada, sempre se diga que, se a deliberação prejudicar os terceiros, o mesmo poderá ser tutelado pelo instituto do abuso de

115 Este preceito, como refere Coutinho de Abreu, “Deliberações dos sócios abusivas…”, cit., pp. 40 e 41, confi gura duas espécies de deliberações abusivas: (i) as apropriadas para satisfazer o propósito de alcançar vantagens especiais em prejuízo da sociedade ou de sócios; (ii) as apropriadas para satisfazer o propósito tão-só de prejudicar a sociedade ou os sócios (deliberações emulativas). Em comum têm o “propósito” e “a aptidão objetiva para satisfazer o propósito”. De diferente têm o facto de a primeira ter como propósito alcançar vantagens especiais, enquanto a segunda tem apenas como propósito causar prejuízos.116 Cf. artigo 59.º. 117 Ainda que a distribuição não seja feita diretamente aos sócios, entendemos ser defensável um conceito de distribuição aos sócios indireta para este efeito.

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direito, previsto no artigo 334.º CC118. Repare-se que, nestes dois casos, terá lugar a aplicação do artigo 56.º, n.º 1, al. d), mas desta feita a segunda parte, quando consagra a nulidade de deliberação contrária a preceitos inderrogáveis – rectius, imperativos.

Em conclusão, não parece que exista uma específi ca “deontologia comer-cial” que determine a nulidade da deliberação por contrariedade aos bons cos-tumes – pelo menos nos moldes que têm sido concretizados pela jurisprudên-cia. A existência dessa específi ca “deontologia comercial” só faz sentido em virtude de um apego ao princípio da especialidade, que, em nosso entender e na esteira de Menezes Cordeiro, se encontra, hoje, ultrapassado. Os bons costumes a ser respeitados pelas deliberações sociais correspondem, antes, ao conceito geral vigente no direito civil – não vislumbramos outras situações que possam enquadrar-se no específi co meio societário.

4.2.3. Deliberações anuláveis

Pergunta-se, perante uma deliberação anulável – em que é incerta a conso-lidação dos seus efeitos –, como deverão agir os administradores, cuja conduta a deliberação anulável possa infl uenciar. A doutrina não tem oferecido uma resposta unânime a esta questão.

A dependência da verifi cação ou não de efetiva anulação é, desde logo, de rejeitar. Assim, não deve a apreciação da existência de dever de executar ou de não executar fi car dependente de a deliberação ser ou não anulada. É certo que, segundo os princípios gerais da anulabilidade, e no período em que a deliberação é anulável, os seus efeitos se mantêm, tendo uma eventual anulação efeitos retroativos. Mas a determinação dos deveres de atuação dos administra-dores, em dado momento, não pode obviamente resultar de um facto futuro e incerto, como é a existência de eventual sentença anulatória119.

Tal como na BJR, em que a racionalidade empresarial há de ser aferida tomando por base um juízo de razoabilidade decisória ex ante e não ex post – não sendo em função do resultado que deve fazer-se tal juízo –, a aferição da

118 Esta norma constitui uma decorrência do princípio geral da boa fé, proibindo atuações abu-sivas, sendo manifesta a sua natureza imperativa. Como tal, uma deliberação social que atente contra o instituto do abuso de direito será nula ao abrigo do artigo 56.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte. Não deve, por isso, confundir-se deliberação contrária à proibição do abuso de direito/ao princípio da boa fé com deliberação abusiva como tal especifi camente concebida no artigo 58.º, n.º 1, al. b). 119 Vide, neste sentido, Vasco da Gama Lobo Xavier, Anulação de deliberação social…, cit., pp. 330-332.

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existência ou não de dever de executar deliberação anulável tem de ser feita atendendo ao tempo em que o administrador deve ou não agir – i.e., antes do momento da eventual anulação ou sanação do vício, consoante o caso. É, pois, por referência a esse momento que deve ser feito um juízo para aferir se o administrador tomou uma decisão (de agir ou não agir, de executar ou não a deliberação) com base em critérios de racionalidade empresarial – no fundo, se ele, decidindo executar ou não executar a deliberação anulável, cumpriu os deveres fundamentais que lhe competia, mormente os deveres de cuidado e lealdade.

Numa primeira abordagem superfi cial, poderia pensar-se, sem mais, deve-rem os administradores estarem obrigados, em quaisquer circunstâncias, a pau-tar o seu comportamento de acordo com a deliberação anulável, visto que esta mantém a plenitude dos seus efeitos enquanto não for anulada. Assim, há quem defenda que os administradores devem executar a deliberação, ainda que anu-lável, pois os efeitos da mesma produzem-se e têm de respeitar-se até sobrevir uma sentença anulatória120. Do lado oposto, defende-se que os administradores não devem executar as deliberações anuláveis enquanto o vício não for sanado pelo decurso do prazo para o exercício da ação de anulação, ou, na hipótese de esta ter sido instaurada, enquanto não for proferida uma decisão desfavorável ao demandante.

Face ao quadro normativo vigente, parece possível adotar uma tese inter-média, como defendido por Lobo Xavier, quando refere que “o problema da situação dos administradores perante uma deliberação anulável da assembleia geral não pode cingir-se a uma escolha entre duas soluções, rigidamente entendidas”. Neste sen-tido, entende que os administradores são responsáveis perante a sociedade e os sócios, quando, em face de uma deliberação anulável da assembleia geral, não adotem aquele comportamento que seria de esperar de “um gestor criterioso e ordenado”121.

Assim, se, à partida, a deliberação anulável – produzindo os seus efeitos enquanto não existir anulação – vincula o comportamento dos gerentes ou administradores, que devem em princípio executá-la, poderá suceder que, pon-deradas as circunstâncias em jogo e perante as probabilidades de uma futura

120 Para Raúl Ventura e Luís Brito Correia, Responsabilidade civil dos administradores…, cit., pp. 83 e ss., existe um dever de executar as deliberações anuláveis porque a deliberação vale enquanto não for anulada e essa validade inclui a executoriedade – do regime geral da anulabilidade dos atos jurídicos retira-se a existência do dever de executar. Assim, se executa deliberação social anulável, não pode o administrador por esse facto ser responsabilizado (a deliberação justifi ca a execução, mesmo que posteriormente tal deliberação venha a ser impugnada e anulada). Ao invés, se viola a deliberação, é responsável pelos prejuízos que daí resultem até à anulação dela.121 Cf. Vasco da Gama Lobo Xavier, Anulação de deliberação social…, cit., pp. 334 e 335.

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anulação e os inconvenientes da execução em tal hipótese, seja lícito aos admi-nistradores neste caso abster-se de executá-la, precisamente em nome do inte-resse da sociedade e dos sócios122.

Rejeita-se, neste sentido, uma solução baseada numa derivação lógica do conceito de anulabilidade para justifi car a posição dos administradores perante deliberações anuláveis, devendo antes apelar-se à necessidade de ponderação das circunstâncias em presença123. Podendo, então, considerar-se que em cer-tas circunstâncias é lícito aos administradores não executar deliberações sociais anuláveis124, pergunta-se se tal constituirá um dever. Ou seja, não duvidando da licitude de tal comportamento, existirá um dever de não as executar nestes casos?

Resulta do artigo 72.º, n.º 5, do CSC, que os gerentes ou administrado-res não são responsáveis quando o ato ou omissão assente em deliberação dos sócios, ainda que anulável. Daqui parece resultar a ausência deste dever, pois se os seus atos assentarem em deliberações, ainda que anuláveis, os mesmos não serão responsáveis. Simplesmente, na senda de Lobo Xavier, este preceito tem de ser interpretado em termos restritivos na parte em que se refere à deliberação anulável125.

Em primeiro lugar, os gerentes ou administradores não poderão benefi ciar desta “isenção” de responsabilidade quando tenham consciência das fortes pro-babilidades de anulação e que a execução pode trazer para a sociedade prejuí-zos irreversíveis. Neste sentido, deve entender-se que o conhecimento destas circunstâncias constitui os gerentes e administradores num verdadeiro dever de não executar as deliberações em causa. Uma interpretação contrária só poderia basear-se num raciocínio puramente lógico decorrente da regra geral da ple-

122 Cf. Vasco da Gama Lobo Xavier, Anulação de deliberação social…, cit., pp. 347-352.123 Vide, neste sentido, Vasco da Gama Lobo Xavier, Anulação de deliberação social…, cit., p. 369.124 Neste sentido, Marques Estaca, na linha de Pessoa Jorge, defende que é lícito aos gerentes e administradores, no quadro do dever legal de diligência a que se encontram vinculados, abste-rem-se de executar deliberações sociais quando as deliberações sejam eventualmente passíveis de anulação por violação do interesse da sociedade – cf. José Nuno Marques Estaca, O Interesse da sociedade nas deliberações sociais, Almedina, 2003, p. 166.125 Cf. Vasco da Gama Lobo Xavier, Anulação de deliberação social…, cit., pp. 367 e 368. Con-forme afi rma, parece que, à primeira vista, terá de negar-se a existência de um dever nesses termos, dada a redação do (então) n.º 4 do artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 49 381, que (de forma idêntica ao atual artigo 72.º, n.º 5, do CSC), dispunha que a responsabilidade dos administradores para com a sociedade não tem lugar quando o ato ou omissão assente em deliberação da assembleia geral, ainda que anulável. Mas, prossegue o autor, “este preceito, se bem pensarmos, tem de interpre-tar-se restritamente, na parte que se refere à deliberação anulável. Desde logo, parece-nos muito claro que não há lugar à isenção da responsabilidade que o texto prevê, quando os administradores tiveram consciência da situação a que nos reportámos”.

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nitude dos efeitos característica dos atos anuláveis enquanto não houver uma efetiva anulação, que rejeitamos.

De forma idêntica, Coutinho de Abreu sustenta que, perante uma delibe-ração dos sócios anulável (v.g. abusiva), os administradores, verifi cando que é provável a anulação e relevante o dano derivado de execução, irremovível por sentença anulatória, não devem executá-la enquanto puder ser anulada e, assim, se a executarem e a deliberação vier a ser anulada, podem vir a ser responsa-bilizados. Por outro lado, prossegue, resulta às vezes da própria lei o dever de não cumprirem deliberações anuláveis, por exemplo se extravasarem o objeto da sociedade (artigo 6.º, n.º 4, do CSC)126.

Parece-nos que a solução não pode ser afi rmada em abstrato e de forma unitária perante todas as deliberações sociais anuláveis. Também no seio da anulabilidade é necessário distinguir, podendo suceder que nuns casos haja o dever de executar e noutros não. Desde logo, sustentamos um dever de não executar deliberações sociais quando as mesmas sejam eventualmente passíveis de anulação por violação do interesse da sociedade. Assim, se uma deliberação social é anulável porque abusiva, daí advindo prejuízo para a sociedade, muito difi cilmente se pode conceber que haja dever de executar, sob pena de violação do dever de lealdade previsto no artigo 64.º do CSC.

Quanto às deliberações já anuladas, refere Raúl Ventura que “a situação é mais clara, por não haver necessidade de nova impugnação, mas o administrador tem o dever de actuar de tal forma que, na medida do possível, sejam destruídos os efeitos resultantes de actos seus praticados antes da anulação e em execução legítima (se puder ser considerada como tal) da deliberação anulada”127. Pensamos que, também aqui, este esforço de atenuar, na medida do possível, os efeitos da deliberação que foi entretanto anulada resulta do dever de cuidado e de lealdade que impende sobre os administradores, pois a não ser assim poderá afetar-se o interesse social. Com a sanação do vício, “Apenas há a notar que o administrador deve procurar corri-gir as situações criadas em consequência dos vícios anteriores à ratifi cação ou sanação”128.

Dado que é o interesse social o critério decisivo na determinação da exis-tência do dever de executar determinada deliberação social anulável, é em relação às deliberações abusivas previstas no artigo 58.º, n.º 1, al. b), que os administradores devem dedicar particular atenção, dada a afetação do interesse social subjacente.

126 Cf. Coutinho de Abreu, Responsabilidade civil dos administradores…, cit., pp. 52 e 53. 127 Cf. Raúl Ventura e Luís Brito Correia, A responsabilidade civil dos administradores…cit., pp. 76 e 77. 128 Cf. Raúl Ventura e Luís Brito Correia, A responsabilidade civil dos administradores…, cit., p. 76.

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Como nota Pinto Furtado, a noção do que seja o interesse social é fun-damental para determinar quando é que uma determinada deliberação social é inválida por estar em contrariedade com este – destacamos aqui as delibe-rações abusivas – ou quando poderão os administradores ser responsáveis por agirem também em contrariedade a esse interesse. Para o autor, o interesse social impõe-se duplamente: aos sócios e acionistas e, bem assim, aos gerentes e administradores. Neste sentido, o “interesse social”, considerado este obje-tiva e tipicamente, designa uma realidade objetiva e funcional de determinada deliberação129. A deliberação em si, tal como o voto, não dispensa uma causa objetiva, imediata e típica, independente da causa dos simples votos que leva-ram à sua formação, sendo essencial atentar na análise da causa de anulabilidade prevista para as deliberações sociais abusivas – que, para o autor, representam uma hipótese de disfunção da causa objetiva da deliberação130.

4.3. Suspensão de deliberação social e pendência de ação de anulação

Pense-se agora na hipótese em que é requerida uma providência cautelar de suspensão de deliberação social anulável que careça de execução para ter efetividade.

O Código de Processo Civil (CPC) prevê um procedimento cautelar espe-cifi cado de suspensão de deliberações sociais131. Segundo o disposto no artigo 380.º do CPC, se alguma associação ou sociedade, seja qual for a sua espécie, tomar deliberações contrárias à lei, aos estatutos ou ao contrato, qualquer sócio pode requerer, no prazo de 10 dias, que a execução dessas deliberações seja suspensa, justifi cando a qualidade de sócio e mostrando que essa execução pode causar dano apreciável. Esta providência é instrumental em relação à ação prin-cipal de anulação que deve ser proposta contra a sociedade132.

De fora está a possibilidade de o administrador requerer o decretamento desta providência. Situamo-nos, aqui, no plano processual, o que não deixa de ter consequências em sede de conduta a adotar pelos administradores. Com

129 Cf. Pinto Furtado, Deliberações de sociedades comerciais, Almedina, 2005, p. 259.130 Cf. Pinto Furtado, Deliberações de sociedades comerciais …, cit., pp. 228-230, considerando que “É a divergência entre os motivos e a causa que precisamente inquina a deliberação, tornando-a inválida”.131 Cf. artigos 380.º a 383.º do CPC. Sobre o tema vide Vasco da Gama Lobo Xavier, “O con-teúdo da providência de suspensão de deliberações sociais”, Separata da Revista de Direito e de Estudos Sociais, Ano XXII, 1978 e, numa perspetiva mais atual atendendo à “inversão do contencioso” introduzida com a reforma do CPC em 2013, Rita Lobo Xavier, “Suspensão de deliberações sociais e inversão do contencioso”, Direito das Sociedades em Revista, Ano 6, Vol. 11, 2014, pp. 77 e ss..132 Cf. artigo 59.º do CSC.

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efeito, visa-se, por esta via, paralisar os efeitos das deliberações sociais inválidas por contrariedade à lei, aos estatutos ou ao contrato. O sentido útil da provi-dência imporá, precisamente, o dever de os administradores não executarem tais deliberações – tal dever decorre, diretamente, da decisão que decretar a providência.

Mas, na hipótese de não ser decretada tal providência mas estar pendente uma ação de anulação (principal), como deverá o administrador agir? Perante as probabilidades de anulação, deve o administrador fazer um juízo e verifi car se o concreto fundamento invocado na ação se verifi ca e, no pressuposto de se verifi car, deverá não a executar, sob pena de se comprometer o efeito útil da decisão que determine, a fi nal, a anulação.

Assim, independentemente de ser ou não contrária ao interesse social a deliberação objeto da ação de anulação, impõe-se um dever de não execu-ção de toda e qualquer deliberação anulável – para lá das abusivas, portanto – por, nestes casos, as probabilidades de anulação serem muito elevadas, atenta a existência de fundamento de anulabilidade. Assim o impõe o dever de cui-dado. Ponderadas as alternativas, será de prevalecer o dever de não execução, pois, como se sabe, na hipótese de anulação os seus efeitos são retroativos133. Na verdade, a execução da deliberação poderá comprometer esta máxima da retroatividade dos efeitos no plano da anulação, podendo suceder que já não seja possível reconstruir a situação como se não tivesse havido deliberação.

4.4. A alteração das circunstâncias em que assentou a deliberação

A alteração das circunstâncias em que assentou a deliberação tem também relevo em matéria do dever de executar deliberações sociais. É necessário equa-cionar a aplicação deste instituto, pois podem entretanto terem-se alterado as circunstâncias em que os sócios ou acionistas fundaram a decisão constante da deliberação – i.e., a decisão concretizada na aprovação de uma determinada deliberação social não teria sido tomada à luz do circunstancialismo presente, o que não pode deixar de se tomar em consideração por parte dos órgãos sociais responsáveis pela execução de tais deliberações.

Neste particular, defende-se que, por força da alteração do circunstancia-lismo em que assentou a deliberação, pode haver situações em que, a priori, exista dever de a executar, mas em que, com a alteração das circunstâncias, passe a existir o dever de não executar – e portanto, devendo responsabilizar-se

133 Cf. artigo 289.º, n.º 1, do CC.

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os administradores que executem deliberações sociais assentes em circunstâncias que se tenham entretanto alterado, e presumir-se que a deliberação social não teria sido tomada (ou tomada naqueles moldes), se tomadas em consideração as circunstâncias atuais134.

A nosso ver, mesmo neste específi co campo, tudo passa pela análise do cum-primento dos deveres fundamentais dos administradores. Perante uma situação em que haja alteração das circunstâncias em que se fundou a decisão constante da deliberação social em causa – em relação à qual está naquele momento a ser equacionada a sua execução –, os gerentes ou administradores devem, à luz dos deveres de cuidado e lealdade que sobre eles impendem, ponderar as circunstâncias atuais de modo a apurar se a deliberação social teria sido tomada nesse cenário. O recurso ao dever de cuidado e ao critério do “gestor criterioso e ordenado” afi gura-se indispensável – um “gestor criterioso e ordenado” não agirá de forma cega e estritamente formalista desconsiderando as circunstâncias em que a deliberação foi tomada (i.e., as circunstâncias consideradas para efeitos da sua aprovação).

Neste sentido, somos do entendimento que será de exigir aos administra-dores uma atuação traduzida num juízo comparativo entre as circunstâncias que se verifi cavam no momento da aprovação da deliberação e as circunstâncias que se verifi cam no momento em que se pondere a sua execução, para daí se con-cluir se a mesma deve ou não ser executada, sob pena de responsabilização por violação do dever de cuidado ou do dever de lealdade – pois pode a deliberação em causa comprometer o interesse social.

4.5. Os deveres fundamentais como limite imanente do dever de executar deli-berações sociais

Chegados aqui, verifi ca-se que todo o nosso raciocínio assenta num pressu-posto base: os deveres fundamentais constituem um limite imanente do dever de executar deliberações sociais – sejam estas válidas ou inválidas. Fora das hipóteses da nulidade – em que é relativamente pacífi co a sustentação de que existe um dever de não as executar – e de validade da deliberação da qual emer-jam deveres específi cos – em que é também comummente aceite o dever de as executar sem que se coloquem quaisquer difi culdades de concretização –, os casos de anulabilidade e validade da deliberação que confi ra “discricionariedade

134 Vide, neste sentido, Raúl Ventura e Luís Brito Correia, A responsabilidade civil dos administra-dores…cit., pp. 87 e 88, e Coutinho de Abreu, responsabilidade civil dos administradores…, cit., p. 52.

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empresarial” devem ser resolvidos com recurso ao critério do cumprimento dos deveres fundamentais dos administradores.

Numa primeira hipótese, poderá suceder que uma determinada deliberação social colida com deveres específi cos dos gerentes ou administradores. Numa segunda hipótese – e é esta que mais difi culdades de harmonização gera, dado o esforço acrescido de ponderação casuística –, poderá uma determinada deli-beração social, ainda que não colida com deveres específi cos, ser incompatível com o cumprimento dos deveres fundamentais de cuidado e lealdade por parte dos administradores. Nestas situações, deverão, pura e simplesmente, numa interpretação estritamente formalista, ser desresponsabilizados os gerentes ou administradores que decidam executar tais deliberações? A aferição da ratio da norma não parece apontar nesse sentido.

Sendo verdadeiras normas de conduta, entendemos que o dever de execu-tar deliberações sociais tem por limite estes deveres fundamentais, tornando-se necessário fazer, in concreto e em caso de confl ito, uma ponderação entre a deli-beração em causa e o interesse social – assim o exigem os deveres de cuidado e lealdade.

Por outro lado, se a deliberação social conferir margem de discricionarie-dade ao administrador, haverá que executá-la em consonância com estes dois deveres. No fundo, a licitude do comportamento do administrador depende de o mesmo visar, ou não, o interesse da sociedade, o qual só será devidamente prosseguido com o cumprimento destes deveres.

Numa palavra: estes deveres são transversais a toda a atuação dos adminis-tradores aos quais não escapam, evidentemente, os atos que deem execução a deliberações sociais.

§ 5.º A “desresponsabilização” dos administradores assente em deli-berações dos sócios. Interpretação do artigo 72.º, n.º 5, do CSC

A interpretação do artigo 72.º, n.º 5, deve ser feita de forma sistemática. Das considerações precedentes sobre os deveres fundamentais dos administra-dores, a BJR, e o dever de executar ou não executar deliberações sociais devem retirar-se os devidos ensinamentos para determinar corretamente o alcance e signifi cado da norma sob análise.

5.1. Alcance da expressão “assente em deliberação dos sócios, ainda que anulável”

Depois de termos defi nido os critérios para a determinação da existência de um dever dos administradores executarem deliberações sociais, importa agora,

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com base nessas premissas, descortinar o signifi cado da expressão “assente em deliberação dos sócios, ainda que anulável”.

Com António Fernandes de Oliveira, deve entender-se, em primeiro lugar, que a omissão ou ação “assente em deliberação dos sócios” pressupõe um comando prévio – i.e., “uma resolução para que se proceda de determinada maneira”, e que, além disso, é necessário que os mesmos se encontrem vinculados a obedecer à deliberação dos sócios135.

O comando pode ser mais ou menos genérico, impondo deveres mais ou menos específi cos – numa palavra: deixando ou não ao administrador margem de “discricionariedade empresarial”. Certo é que tem de haver um comando.

Terão, então, de se adotar critérios que permitam descortinar quando é que uma determinada deliberação vincula o comportamento dos administradores – ou, por outras palavras, lhes imponham um determinado dever de atuação. As considerações tecidas supra sobre o dever de executar deliberações sociais dão-nos uma resposta à questão, que aqui damos por reproduzidas.

O artigo 72.º, n.º 5, utiliza a expressão “ainda que anulável”. A contrario senso, poderá dizer-se que se pretendeu restringir as situações de “desrespon-sabilização” dos administradores assente em deliberações dos sócios válidas ou anuláveis, e que se as mesmas forem nulas não tem, pois, lugar esta “desrespon-sabilização”136. Se não se exclui a responsabilidade se o ato assentar em delibera-ção nula, ter-se-á de concluir que há o dever de não executar uma deliberação social nula e que, portanto, se um administrador a executar, será responsável nos termos gerais do artigo 72.º, n.º 1.

Nos casos em que uma deliberação social de uma sociedade anónima verse sobre matérias de gestão a pedido do órgão de administração, deverá entender--se que a sua execução ulterior pelos administradores assenta em tal delibera-ção? Pensamos que sim137. O facto de o órgão de administração fazer tal pedido não signifi ca que a sua atuação não deva na deliberação assentar, dado que é esta que vai servir de base à atuação subsequente – ou, por outras palavras, a fonte do dever concretizado na sua execução é, pois, deliberativa. Pelo contrário, se

135 Cf. António Fernandes de Oliveira, “Responsabilidade civil dos administradores”…, cit., pp. 301 e 302.136 Vide, neste sentido, António Fernandes de Oliveira, “Responsabilidade civil dos admi-nistradores”…, cit., p. 296. Na jurisprudência, vide o Ac. do STJ de 3 de fevereiro de 2009 (pro-cesso n.º 08A3991), e Ac. do STJ de 10 de janeiro de 2002 (Agravo de n.º 3623/01-7.ª, Sumários 1/2002), onde se considerou que relativamente a esta causa de exclusão da responsabilidade, a mesma contém uma causa de justifi cação do ato praticado pelos gerentes em cumprimento de um dever imposto por uma deliberação anulável, mas já não de deliberação nula.137 Vide, neste sentido, António Fernandes de Oliveira, “Responsabilidade civil dos admi-nistradores”…, cit., p. 301.

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os estatutos não previrem essa possibilidade, a atuação do órgão de administra-ção não assenta em deliberação social, pois nesta hipótese será nula138.

Clarifi cado o facto de a expressão “assente em deliberações dos sócios, ainda que anulável” dever restringir-se às deliberações válidas e anuláveis, cabe indagar, dentro destas, quais as que se integram nesse âmbito para efeitos de “desresponsabilização”.

Vimos que, quanto estejam em causa deliberações anuláveis, poderá, ou não, consoante o tipo de anulabilidade em causa, existir da parte do gerente ou administrador um dever de a executar. Daqui devem retirar-se as necessárias ilações à interpretação do artigo 72.º, n.º 5, no sentido de o administrador só poder invocar que o seu comportamento assentou em deliberação social para efeitos de “desresponsabilização” caso haja, da sua parte, o dever de a executar – pois, em certos casos, ainda que anulável, ele terá o dever de a executar139.

Como vimos, o administrador nem sequer pode arguir o vício da anulabi-lidade, como decorre do artigo 59.º do CSC, que, no atinente à ação de anu-lação, refere que a anulabilidade pode ser arguida pelo órgão de fi scalização ou por qualquer sócio que não tenha votado no sentido que fez vencimento nem posteriormente tenha aprovado a deliberação, expressa ou tacitamente.

Se, embora tendo em vista a execução de uma deliberação social, a ação ou omissão do administrador for desrespeitadora dos deveres de cuidado ou leal-dade que lhe incumbem, o administrador será responsável, não havendo lugar à desresponsabilização prevista no artigo 72.º, n.º 5, do CSC – estes casos não se integram, nesta medida, na expressão “assente em deliberação dos sócios” para efeitos de “desresponsabilização”140.

138 Vide António Fernandes de Oliveira, “Responsabilidade civil dos administradores”…, cit., pp. 302 e 303. 139 Assim, como refere António Fernandes de Oliveira, “Responsabilidade civil dos adminis-tradores”…, cit., p. 302, o facto de a deliberação ser anulável não a torna, em princípio, por si só, não vinculativa para os administradores, uma vez que, ao contrário da nulidade, a anulabilidade não opera ipso iure.140 Acompanhamos o entendimento do STJ no aludido Ac. de 3 de fevereiro de 2009 quando afi rma que o artigo 72.º, n.º 5, não exclui a responsabilidade por atuação ilícita por violação do interesse social na execução de uma deliberação da qual emergiu o dever de os gerentes procede-rem à venda de um bem de uma sociedade, tendo os mesmos procedido à sua venda a um preço muito inferior ao real e tendo depois este bem sido revendido por mais do dobro. Mas não acom-panhamos a parte relativa à natureza jurídica desta responsabilidade por violação do interesse social – que, no entender do tribunal, dá azo a responsabilidade nos termos do artigo 483.º do CC. É certo que este caso não pode levar à exclusão da responsabilidade “assente em deliberação social”; mas a sua responsabilidade é de natureza obrigacional e deverá ser apurada nos termos do artigo 72.º, n.º 1, e não pela via aquiliana.

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5.1.1. Articulação com a business judgment rule

A leitura do artigo 72.º, n.º 5, do CSC, deve ser feita também atendendo à norma da BJR a que aludimos infra, por forma a interpretar corretamente o alcance da expressão “assente em deliberação dos sócios”. Como vimos, a respon-sabilidade dos gerentes ou administradores “é excluída se os mesmos provarem que atuaram em termos informados, livres de qualquer interesse pessoal e segundo critérios de racionalidade empresarial”141.

Não é, pois, qualquer ato ou omissão do administrador que vise dar exe-cução a uma deliberação social que determina a sua “desresponsabilização”. Desde logo, quando uma deliberação seja válida e confi ra espaço de discricio-nariedade empresarial”, tal “desresponsabilização” só opera se os administradores provarem que atuarem em termos informados, livres de qualquer interesse pessoal e segundo critérios de racionalidade empresarial.

Deve, pois, entender-se que, no que aos atos ou omissões dos administra-dores assentes em deliberações sociais válidas que confi ram margem de discri-cionariedade empresarial diz respeito, o artigo 72.º, n.º 5, apenas permite a des-responsabilização assente em deliberação social mediante o cumprimento das condições impostas pelo mecanismo da BJR. Nestas hipóteses, o apelo às duas normas é fundamental.

O teor da BJR surge, assim, como concretizador do alcance da expressão “assente em deliberação dos sócios”142. Pense-se, por exemplo, em deliberações que, embora contenham um comando específi co no sentido de deverem os administradores celebrar determinado negócio jurídico, deixa-se em aberto os termos da contratação – deverá, também aqui, operar a BJR.

5.1.2. Da natureza da “desresponsabilização” do artigo 72.º, n.º 5, e articulação com o artigo 72.º, n.º 1, do CSC

Pergunta-se, por fi m, apresentadas as soluções interpretativas que devem

ser dadas ao teor do artigo 72.º, n.º 5, do CSC, qual a natureza da “desrespon-

141 Cf. artigo 72.º, n.º 2, do CSC. 142 Ricardo Costa, “Responsabilidade dos administradores…”, cit., p. 68, parece defender que, perante a hipótese de deveres especiais fundados em deliberação a que se deve execução, desde que impliquem a tomada de uma decisão com autonomia – v.g., ordenar à gerência de uma sociedade por quotas a alienação de imóveis e estabelecimentos comerciais, sem especifi car condições, ou a aquisição de uma participação signifi cativa em sociedade fornecedora de matérias-primas – deve ponderar-se a aplicação da BJR.

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sabilização” aí prevista. Note-se que, até aqui, aludimos a “desresponsabiliza-ção” para não comprometer considerações acerca da sua natureza jurídica, de que só agora nos ocupamos.

Várias hipóteses são confi guráveis. À semelhança das doutrinas defendidas a respeito da natureza da BJR, cabe indagar se o preceito veio consagrar uma causa de exclusão da responsabilidade, uma causa de exclusão da ilicitude, uma causa de exclusão da culpa, uma causa de exclusão de responsabilidade e da culpa simultaneamente, ou mesmo se não terá tido o legislador a intenção de criar um mecanismo de presunção da licitude do comportamento nestes casos.

Afastada está, desde já, esta última hipótese. Nos casos em que os gerentes ou administradores atuem (ou não atuem) em virtude do prescrito por uma determinada deliberação social – i.e., assentando o seu comportamento em deliberações dos sócios – não deverá, pois, presumir-se a licitude do seu com-portamento. A lei não estabeleceu aqui nenhum mecanismo de inversão do ónus da prova, tal como não o estabeleceu também em sede de BJR, como vimos.

Somos da opinião de que o artigo 72.º, n.º 5 contempla uma causa de exclusão da ilicitude143. O legislador quis dizer que é lícita a atuação do admi-nistrador quando assente em deliberações sociais, ainda que, em determinados casos, anuláveis.

Não se pense que, na tese por nós defendida, a execução de uma delibe-ração social nula determinará, automaticamente, a responsabilização dos admi-nistradores, por existir o dever de não as executar. Se é certo que essa atuação determinará a ilicitude do comportamento, não operando aqui o artigo 72.º, n.º 5, poderá ainda ter lugar uma causa de exclusão da culpa que, ao abrigo do artigo 72.º, n.º 1, impeça a sua responsabilidade.

Assim, por exemplo, quando se refere ao dever vinculado de não executar deliberações nulas, Pedro Pais de Vasconcelos refere que a nulidade pode ser duvidosa, controvertida e até surpreendente e que, se assim for, os gestores podem livrar-se da responsabilidade provando não ter culpa, por exemplo, por terem obtido pareceres jurídicos credíveis no sentido da validade, podendo ilidir-se a presunção de culpa nos termos gerais do artigo 72.º, n.º 1144, que consagra uma responsabilidade de tipo obrigacional145. Numa palavra: a norma do artigo 72.º, n.º 5, determina na mesma que o comportamento nesses casos

143 Vide, neste sentido, António Fernandes de Oliveira, “Responsabilidade civil dos adminis-tradores”…cit., p. 296 e 302, referindo-se também a “causa de justifi cação do facto”. 144 Cf. Pedro Pais de Vasconcelos, “Business judgment rule …”, cit., p.68145 Cf. Menezes Cordeiro, Da responsabilidade civil dos administradores das sociedades comerciais, Lex, 1997, pp. 493 e 494.

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é ilícito, mas poderá o administrador ilidir a presunção de culpa ao abrigo do n.º 1 do mesmo preceito.

Do que precede, resulta que do artigo 72.º, n.º 5, não é uma norma geral de responsabilidade civil. A norma geral de responsabilidade civil dos adminis-tradores é-nos dada pelo n.º 1 – é ela que faz menção a todos os pressupostos. O artigo 72.º, n.º 5 deve ser encarado numa perspetiva complementar da norma geral – ela visa densifi car ou concretizar o conceito de ilicitude para efeitos de responsabilização dos administradores.

§ 6.º Conclusões

I. A interpretação do artigo 72.º, n.º 5, do CSC – ao prever que a respon-sabilidade dos gerentes ou administradores para com a sociedade não tem lugar quando o ato ou omissão assente em deliberação dos sócios – pressupõe uma análise prévia sobre o dever de executar deliberações sociais, pois a existência ou não de responsabilidade depende do incumprimento ou cumprimento pré-vio de um dever, havendo que distinguir as deliberações válidas das inválidas e, dentro destas, as nulas das anuláveis.

II.  Se uma deliberação social válida carecer de execução e impuser um comando aos administradores, independentemente da concreta confi guração da deliberação social em causa – i.e., quer o seu conteúdo se apresente em ter-mos específi cos ou defi nidos ou em termos que confi ram “discricionariedade empresarial” –, os administradores têm o dever de a executar.

III. No caso das deliberações sociais válidas que confi ram espaço de “dis-crionariedade empresarial”, poderá suceder que os atos dos administradores que lhes deem execução sejam ilícitos por violarem o espaço de discricionariedade admissível. Mas, nessa eventualidade, já não é a validade da deliberação social que está em causa – ela continua destituída de qualquer vício, embora os atos que lhes deem execução possam ser ilícitos por extravasarem o espaço de discri-cionariedade admissível à luz dos deveres de cuidado e lealdade que impendem sobre os administradores.

IV.  Perante uma deliberação social nula, não só os administradores não têm o dever de as executar como têm o dever de não as executar, sob pena da frustração da ratio inerente ao vício da nulidade – que visa a não produção de quaisquer efeitos e não permite qualquer tipo de convalidação.

V. Não existe uma específi ca “deontologia comercial” que determine a nulidade da deliberação por contrariedade aos bons costumes – pelo menos nos moldes que têm sido concretizados pela jurisprudência. Os bons costumes a ser

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respeitados pelas deliberações sociais correspondem, antes, ao conceito geral vigente no direito civil.

VI.  Nas deliberações sociais anuláveis, é necessário distinguir, podendo suceder que nuns casos haja o dever de as executar e noutros não, tudo depen-dendo do cumprimento dos deveres fundamentais de cuidado e lealdade dos administradores – em especial, não devem ser executadas as deliberações sociais que atentem contra o interesse da sociedade (v.g., deliberações abusivas), sob pena de incumprimento do dever de lealdade.

VII. Embora válida, a alteração das circunstâncias em que assentou a delibe-ração social poderá determinar o dever dos administradores não a executarem, sendo de exigir aos administradores – em cumprimento dos deveres de cuidado e lealdade – um juízo comparativo entre as circunstâncias que se verifi cavam no momento da aprovação da deliberação e as circunstâncias que se verifi cam no momento em que se pondere a sua execução, para daí se concluir se a mesma deve ou não ser executada.

VIII. O deveres fundamentais de cuidado e lealdade constituem, nesta linha de pensamento, um limite imanente ao dever de executar deliberações sociais.

IX. Daqui devem retirar-se as necessárias ilações à interpretação do artigo 72.º, n.º 5 no sentido de o administrador só poder invocar que o seu compor-tamento assentou em deliberação social para efeitos de “desresponsabilização” caso haja, da sua parte, o dever de a executar – pois, em certos casos, ainda que anulável, ele terá o dever de a executar.

X. No que aos atos ou omissões dos administradores assentes em delibera-ções sociais válidas que confi ram margem de “discricionariedade empresarial” diz respeito, o artigo 72.º, n.º 5 apenas permite a desresponsabilização assente em deliberação social mediante o cumprimento das condições impostas pelo mecanismo da BJR no artigo 72.º, n.º 2.

XI.  O artigo 72.º, n.º 5 contempla uma causa de exclusão da ilicitude – o legislador quis dizer que é lícita a atuação do administrador quando assente em deliberações sociais, ainda que, em determinados casos, anuláveis.

XII. O artigo 72.º, n.º 5 não é uma norma geral de responsabilidade civil. A norma geral de responsabilidade civil dos administradores é-nos dada pelo n.º 1 – é ela que faz menção a todos os pressupostos. O artigo 72.º, n.º 5 deve ser encarado numa perspetiva complementar da norma geral – ela visa densifi -car ou concretizar o conceito de ilicitude para efeitos de responsabilização dos administradores.

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Project fi nance e projectos de infra-estruturas de transporte rodoviário em Portugal

DR.ª. ELSA P IZARRO PARDAL

[email protected]

“Money makes the World go round.”

Sumário: I – Introdução. II – Project Finance – Características chave. III – Project Finance e Parcerias Público Privadas. IV – Estrutura contratual. V – Matriz de alocação de risco. VI – Transferência de risco.

I – Introdução

Um dos factores determinantes na vida empresarial consiste no acesso das sociedades às fontes de fi nanciamento.

No I Curso Pós-Graduado em Corporate Finance foram analisados, sob várias perspectivas, nomeadamente jurídica, económica e contabilística, aspec-tos essenciais relativos às diversas formas através das quais os fundos necessários para empreender e manter um labor empresarial podem ser obtidos.

Do mesmo modo, foram tratados com especial interesse os impactos que os aspectos fi nanceiros das sociedades têm ao nível da governação societária, ou seja, dos princípios, modelos e regras que pautam a gestão, a organização e o controlo das sociedades.

De entre as diversas matérias estudadas, uma se destaca pela sua comple-xidade e associação a projectos de grande envergadura. Falamos do Project Finance.

Com este trabalho propomo-nos realizar uma análise prática do complexo de contratos que subjaz à estruturação de empreendimentos sob o modelo do Pro-

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ject Finance no sector das infra-estruturas rodoviárias, aproveitando a experiência adquirida, ao longo de mais de uma década, na assessoria jurídica à negociação, contratação e renegociação de (sub)concessões de auto-estradas.

II – Project Finance – Características chave

1. O Project Finance é um modelo de fi nanciamento que encerra um con-junto de características próprias, das quais se destacam as seguintes1:

(i) incide, normalmente, no desenvolvimento, a longo prazo, de projec-tos de grandes infra-estruturas em vários sectores, incluindo rodoviá-rias, ferroviárias, hospitalares, ambiente (águas, saneamento e resíduos) e energia, incluindo no âmbito das energias renováveis, envolvendo investimentos de montantes elevados e, numa perspectiva fi nanceira, fortemente alavancados;

(ii) a devedora do fi nanciamento, i.e. a entidade que desenvolve o pro-jecto em causa, é uma sociedade veículo, especialmente constituída para esse efeito, não raras vezes contendo um objecto social exclusivo2 e/ou sujeita a um forte espartilho no que respeita à prática de actos e negócios jurídicos que sejam susceptíveis de incrementar a sua exposi-ção face ao risco do projecto;

(iii) o fi nanciamento bancário de médio-longo prazo3 (“senior debt”) consti-tui a principal fonte de fi nanciamento da operação, para a qual também são alocados fundos próprios, sob a forma de capital, prestações acessó-rias de capital ou empréstimos accionistas4.

O rácio entre fi nanciamento bancário e capitais próprios (i.e. o “deb-t-to-equity ratio”) varia consoante a operação, embora seja habitual encontrar rácios de 70%-90% de dívida sénior para10%-30% de fundos accionistas5.

A percentagem em causa, que tem por referência a totalidade de fun-dos necessários para a estruturação do projecto, depende muitas vezes

1 Cfr. também Bruce Comer in “Project Finance Teaching Note”, 1996, The Wharton School, Uni-versidade da Pennsylvania.2 O qual consiste, justamente, no desenvolvimento das actividades relativas ao projecto.3 E, mais raramente em Portugal, os empréstimos obrigacionistas.4 E, também não raras vezes, fundos comunitários.5 Vide “The European PPP Expertise Centre PPP Guide”, in www.eib.org.

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da análise do risco associado ao mesmo6. Neste âmbito, é feita uma due diligence extensiva e transversal aos vários elementos do empreendi-mento, tendo como primordial objectivo uma ponderada avaliação do risco.

(iv) o reembolso do fi nanciamento7 está baseado nos (e necessariamente dependente dos) fl uxos de caixa gerados8 pelo próprio projecto. Com efeito, no Project Finance os bancos fi nanciadores e os investidores dependem exclusivamente (“non-recourse”) ou essencialmente (“limited recourse”)9 das receitas geradas pela execução do projecto para verem, respectivamente, os seus créditos reembolsados e a remuneração do seu investimento feito10, benefi ciando essencialmente de garantias sobre os activos afectos ao projecto.

Neste contexto, os contratos de fi nanciamento estabelecem uma estru-tura de pagamentos que obedece a uma ordem de prioridades (comum-mente designada “cash fl ow waterfall” ou “cascata de pagamentos”), na qual o serviço da dívida sénior (i.e. a do fi nanciamento a médio-longo prazo concedido pelas entidades fi nanciadoras) deve ser satisfeito antes da realização de pagamentos subordinados e de dividendos e, em geral, de qualquer distribuição a accionistas, a qual fi ca sujeita à verifi cação de rácios mínimos, estabelecidos contratualmente.

(v) tem subjacente um caso base, que consiste num modelo fi nanceiro (ou equação fi nanceira) que contém o conjunto de pressupostos e projec-ções económico-fi nanceiras de ocorrência provável quanto à evolução das variáveis que impactam no desenvolvimento do projecto, seja no que respeita aos custos envolvidos, quer no que se refere às receitas que dele provêm, ao longo de todo o período da sua duração.

6 Conforme escreve Richard Tinsley, in “Advanced Project Financing. Structuring Risk”, First Edi-tion, Euromoney Books, 2000, p. 67, “Risk identifi cation will be readily seen as the fi rst step in a project fi nancing. A systematic approach to risk classifi cation greatly aids identifi cation itself. By refi ning an approach to risk identifi cation and quantifi cation, one can progress to assessment of risk trade off and risk structuring.”7 Assim como a rentabilidade do projecto para os investidores.8 Por isso se usa, neste âmbito, o conceito de “cashfl ow lending”.9 Para Willie Tan, “This special non-recourse or limited recourse feature makes project fi nance attractive to sponsors because fi nancing is off -balance sheet. It does not jeopardize the parent company’s ability to borrow funds for other purposes or investors’ assessment of its liabilities in the balance sheet.”, in “Principles of Project and Infrastructure Finance”, Taylor & Francis, London/New York, 2007, p. 2.10 Vide “The European PPP Expertise Centre PPP Guide”, in www.eib.org.

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O caso base constitui, num momento pré-contratual, um importante ins-trumento para aferir o risco do negócio, na medida em que o mesmo visa pro-jectar o equilíbrio fi nanceiro em que o empreendimento se baseia.

Já na fase da execução do contrato, o caso base confere às partes equação fi nanceira com base na qual é realizada a reposição do equilíbrio económico--fi nanceiro do contrato11.

Esta estrutura de fi nanciamento, de descrição aparentemente simples, encerra uma complexa e sofi sticada teia contratual e, consequentemente, a intervenção de um alargado e especializado conjunto de intervenientes.

No capítulo IV deste trabalho, propomo-nos analisar, de forma inevitavel-mente sumária, a estrutura contratual comummente utilizada em Portugal, nas últimas décadas, relativamente a projectos de infra-estruturas rodoviárias.

III – Project Finance e Parcerias Público Privadas

2. Não obstante abrangerem realidades distintas, os conceitos de Project Finance e de Parcerias Público Privadas (“PPP”) são, não raras vezes, utilizados de forma indiferenciada, muitas vezes se confundindo entre si.

Como acima se deixou dito, o Project Finance é uma técnica de estrutura-ção de fi nanciamento que normalmente incide sobre grandes projectos. Trata--se de um conceito económico que, como abaixo melhor se verá, é implemen-tado através de uma complexa estrutura jurídica.

Por outro lado, a PPP é um conceito jurídico, defi nido no direito cons-tituído: conforme dispõe o artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 111/2012, de 23 de Maio, “entende-se por parceria público-privada (…) o contrato ou a união de contra-tos por via dos quais entidades privadas, designadas por parceiros privados, se obrigam, de forma duradoura, perante um parceiro público, a assegurar, mediante contra-partida, o desenvolvimento de uma actividade tendente à satisfação de uma neces-sidade colectiva, em que a responsabilidade pelo investimento, fi nanciamento, exploração, e riscos associados, incumbem, no todo ou em parte, ao parceiro privado” (negritos nossos).

Como se depreende desta defi nição, existe um conjunto de elementos comuns entre os dois conceitos em análise: em ambos os casos estamos perante o desenvolvimento, por parte de uma entidade privada e de forma prolongada

11 Abordaremos esta questão no ponto 9 infra.

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Project fi nance e projectos de infra-estruturas de transporte rodoviário em Portugal 757

no tempo, de uma actividade em domínio do sector público, sendo o fi nancia-mento do projecto “assegurado em parte pelo sector privado”12.

Embora se confi gure a concretização (i) de uma PPP sem recurso ao Project Finance (por exemplo, numa situação em que o reembolso do fi nanciamento seja assegurado através de prestação de garantias reais ou pessoais pelos sócios da mutuária) ou (ii) de Project Finance fora do âmbito das PPP (em projectos que envolvam tão só entidades privadas), a verdade é que existe um conjunto muito signifi cativo13 de PPP em Portugal, estruturadas em regime de Project Finance.

3. Existe em Portugal um historial de parcerias fi nanciadas com recurso a esta técnica. Considerando apenas o passado mais recente, o primeiro grande projecto implementado foi o da Concessão das Travessias Rodoviárias do Tejo em Lisboa, cujas bases foram aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 168/94, de 15 de Junho, atribuída à Lusoponte – Concessionária para a Travessia do Tejo em Lisboa, S.A., para a concepção, projecto, construção, fi nanciamento, explo-ração e conservação da Ponte Vasco da Gama e, bem assim, a exploração e conservação da ponte sobre o Tejo, entre Alcântara e Almada.

Com base nos dados públicos14 recolhidos, as PPP adjudicadas em Portugal, apenas no que se refere ao sector das infra-estruturas rodoviárias15, desde meados da década de 90 do séc. XX foram as seguintes:

Até 2007 tínhamos catorze projectos adjudicados: Lusoponte (1995), Con-cessões Oeste e Norte (1999), Brisa, Litoral Centro (2004), (ex-)Scuts Beira Interior (1999), Costa de Prata, Algarve, Interior Norte (2000), Beiras Litoral//Alta e Norte Litoral (2001), Grande Porto (2002), e Concessões Grande Lis-boa e Douro Litoral (2007).

Em 2008 foram adjudicadas mais três PPP no sector rodoviário: a Con-cessão do Túnel do Marão e as Subconcessões Douro Interior e Auto-Estrada Transmontana.

12 Vide Livro Verde sobre as Parcerias Público-Privadas e o Direito Comunitário em Matéria de Contratos Públicos e Concessões, apresentado pela Comissão, Comissão das Comunidades Euro-peias, Bruxelas, 30.4.2004, p. 3.13 Tanto em termos de número de operações, como de valores de investimento envolvidos.14 Fonte: Boletim Informativo PPP e Concessões – 4.º trimestre de 2010, da Direcção-Geral do Tesouro e Finanças.15 Segundo a mesma fonte, em 2007 havia duas PPP do sector ferroviário adjudicadas: o Trans-porte Ferroviário Eixo Norte/Sul – Fertagus (1999) e o Metro Sul Tejo (2002).

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E em 2009 foram concluídas mais quatro parcerias neste sector (Subconces-sões Baixo Tejo, Baixo Alentejo, Litoral Oeste e Algarve Litoral), tendo apenas uma sido adjudicada em 201016 (a subconcessão Pinhal Interior).

A crise económico-fi nanceira que tem vindo a afectar Portugal desde os primeiros anos do séc. XXI veio estabelecer um travão no estudo, lançamento e contratação de PPP, tendo ainda servido de mote para a renegociação de um conjunto delas. Neste âmbito, temos a destacaras duas fases de renegociação das ex-SCUT:

(i) a primeira que decorreu entre meados de 2007 e 2010, no contexto da defi nição de um novo modelo de gestão e de fi nanciamento para o sec-tor das infra-estruturas rodoviárias, que culminou com a introdução de portagens reais na vias anteriormente operadas no regime SCUT (sem cobrança ao utilizador) e

(ii) a segunda, ainda em curso, encetada após a celebração do Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica17, com o objectivo de alcançar uma redução de encargos para o erário público, advenientes de determinadas parcerias18.

Também está em curso um processo de renegociação dos contratos relativos às subconcessões adjudicadas no período entre 2008 e 201019, também com o objectivo da redução dos encargos públicos no âmbito destes empreendimentos.

4. Nesta fase deste nosso estudo impõe-se deixar uma breve nota sobre o regime jurídico das PPP.

4.1. O Decreto-Lei n.º 86/2003, de 26 de Abril, veio defi nir, pela primeira vez de forma sistemática, um conjunto de normas gerais aplicáveis à interven-ção do Estado na defi nição, concepção, preparação, concurso, adjudicação, fi scalização, alteração e acompanhamento global das PPP.

16 Ao nível da ferrovia, em 2010 foi adjudicada a PPP relativa ao Troço Poceirão-Caia da Rede de Alta Velocidade (PPP1), cujo contrato não chegou a ser executado.17 Celebrado em 17 de Maio de 2011, pelo Estado Português, a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional.18 Nos termos do artigo 143.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro, que aprovou o Orçamento do Estado para 2013, o Governo obrigou-se a realizar todas as diligências necessárias à conclusão da renegociação dos contratos de PPP do sector rodoviário, estimando uma redução de encargos para o erário público de cerca de 30% face ao valor originalmente contratado.19 No que respeita às subconcessões contratadas entre 2008-2010, a entidade (sub)concedente é a Infraestruturas de Portugal, S.A. (anteriormente EP – Estradas de Portugal, S.A.). Vide ponto 7.1 infra.

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O referido diploma foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 141/2006, de 27 de Julho, com o qual o legislador pretendeu perseguir vários objectivos, destacando-se:

– a correcção de algumas defi ciências ou fragilidades da legislação até então vigente;

– o estabelecimento de novas disposições destinadas a (i) reforçar a arti-culação dos vários ministérios envolvidos (o Ministério das Finanças e o ministério da área sectorial de cada parceria em questão) e (ii) incrementar o controlo fi nanceiro nas várias etapas da vida das parcerias.

Neste contexto, a intervenção legislativa de 2006 consagrou regras de relevo, visando o aperfeiçoamento deste modelo de contratação pública.

Uma das novas regras que, nessa revisão, mereceu maior destaque foi a que determinou que o lançamento e contratação das PPP passassem a depender da prévia obtenção da declaração de impacte ambiental (DIA), quando esta fosse exigível nos termos da lei aplicável. Desta feita, a matéria ambiental, essencial em muitos projectos de infra-estruturas, passou a ter que fi car defi nida antes do lançamento da parceria, limitando-se, assim, a responsabilidade do parceiro público perante o privado decorrente desta vertente da realização do projecto, muitas vezes traduzida no pagamento de compensações. Na mesma linha, em caso de apresentação de propostas com variantes assentes em pressupostos dis-tintos dos que serviram de base à DIA, os inerentes riscos passariam a ser assu-midos exclusivamente pelo parceiro privado.

Quanto às regras procedimentais aplicáveis às fases da preparação e estudo e da contratação das PPP, a reforma de 2006 refl ectiu a preocupação do legisla-dor no sentido de reforçar a articulação dos vários ministérios envolvidos e de estabelecer prazos para a realização das suas diferentes etapas. Por outro lado, passou a prever-se a possibilidade da designação de comissões de acompanha-mento da fase inicial da execução dos contratos, sempre que a complexidade, o valor ou o interesse público da parceria o justifi cassem.

Outro aspecto relevante foi o estabelecimento, em benefício do parceiro privado, do princípio da reposição do equilíbrio fi nanceiro do contrato em caso de alteração signifi cativa das condições fi nanceiras de desenvolvimento da parceria, nomeadamente nos casos de modifi cação unilateral, imposta pelo parceiro público, do conteúdo das obrigações contratuais do parceiro privado ou das condições essenciais de desenvolvimento da parceria20.

20 Quando comparada a formulação dada pelo legislador ao texto do novo preceito legal com as cláusulas de determinados contratos já na altura em execução, é possível detectar-se uma maior

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No que se refere ao parceiro público, foi bastante mais vasto o leque dos direitos legalmente consagrados com a intervenção legislativa de 2006, a saber:

– o parceiro público passou a dispor do direito a partilhar (equitativamente com o parceiro privado) os benefícios fi nanceiros que para este resultem do desenvolvimento da parceria, nomeadamente os que decorram dos processos de refi nanciamento;

– o parceiro privado não pode ser autorizado a exercer actividade fora do âmbito previsto no contrato de parceria quando as respectivas propos-tas não contenham a devida projecção económico-fi nanceira e a partilha da receita gerada pelo desenvolvimento da nova actividade com a enti-dade pública relevante. Tal partilha passaria, pois, a revestir a natureza de moeda de troca da atribuição da autorização de que o parceiro privado carece para o desenvolvimento dessa actividade.

Para além dos demais (e importantes) objectivos pretendidos alcançar com a revisão de 2006, como o de um maior rigor e transparência, a mesma refl ectiu uma preocupação do legislador de dar uma maior celeridade aos procedimentos de lançamento e contratação das PPP.

4.2. Em cumprimento dos compromissos assumidos pelo Estado Portu-guês, em matéria do quadro legal das PPP, no Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades de Política Económica, foi publicado o Decreto--Lei n.º 111/2012, de 23 de Maio, que estabelece as normas gerais aplicáveis à intervenção do Estado na defi nição, concepção, preparação, lançamento, adju-dicação, alteração, fi scalização e acompanhamento global das PPP e criou a Unidade Técnica de Acompanhamento de Projectos (“UTAP”).

Embora o quadro jurídico previsto no Decreto-Lei n.º 111/2012 tenha mantido, em muitos e importantes aspectos, aquele que se encontrava refl ec-tido no decreto de 2003, tal como alterado em 2006, foi clara a intenção do Governo de apresentar o novo diploma como marco de “uma modifi cação signi-fi cativa do regime jurídico aplicável às PPP“ previsto no Decreto-Lei n.º 86/2003, o qual foi revogado pelo diploma de 2012.

Na esteira do previsto no Memorando, o “novo” regime das PPP visou, numa primeira linha, intensifi car o reforço (já prosseguido, sem sucesso, na

exigência dos pressupostos legalmente previstos para a invocação do direito à reposição do equi-líbrio fi nanceiro. Com a intervenção legislativa de 2006 impôs-se a ocorrência de uma alteração signifi cativa do equilíbrio fi nanceiro contratual, requisito que nem sempre se encontra vertido com tanta exigência nos contratos em execução.

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revisão de 2006) da intervenção do Ministério das Finanças no desenvolvi-mento dos projectos de parcerias.

Neste âmbito, a grande novidade do referido regime é a da criação da UTAP, entidade dotada de autonomia administrativa, directamente depen-dente do Ministério das Finanças21, a quem foi conferido um vasto conjunto de atribuições ao nível da preparação, desenvolvimento, execução e acompa-nhamento global dos processos das PPP, mas também na gestão de contratos de parceria e na prestação de apoio técnico ao Executivo, especialmente ao Ministério das Finanças, em matérias de natureza económico-fi nanceira.

Recorrendo-se ao ensinamento de outros países da Europa, a criação da UTAP parece conter a génese do modelo institucionalizado de grupo trabalho no sector público, especializado na área das PPP, que congrega o know how, meios humanos e técnicos e a experiência necessários para desenvolver e acom-panhar os projectos, em todas as suas fases, aproveitando as sinergias daí resul-tantes e criando competências próprias, com o objectivo de reduzir a utilização de consultoria externa.

A criação desta task force constituiu, na nossa opinião, a reação do legislador ao pouco acolhimento que, na prática, foi dado ao reforço da actuação e dos poderes de coordenação do Ministério das Finanças, instituído pela revisão da Lei das PPP de 200622, e que se traduziu em inefi ciências várias dos projectos, desde as fases mais preliminares do estudo, preparação e lançamento das PPP, com impactos visíveis ao nível da negociação e da contratação das parcerias e, não raras vezes, da sua renegociação.

Na presente conjuntura, em que não ocorre o lançamento de quaisquer novos projectos, a UTAP tem desempenhado um papel determinante na rene-gociação das PPP, designadamente as do sector das infra-estruturas rodoviárias, a que acima se aludiu.

Em matéria procedimental, as alterações instituídas pelo Decreto-Lei n.º 111/2012 resultaram da intervenção da UTAP em todas as fases do processo.

É de ressaltar que o novo regime deixou de conter alguns mecanismos, previstos na lei revogada, destinados a imprimir celeridade ao procedimento de estudo, lançamento e contratação de PPP. Para além de ter deixado de estabe-lecer prazos para a prática de actos relevantes (ex. a apresentação de relatórios

21 Vide “Portugal – PPP Units and Related Institutional Framework” – European PPP Expertise Cen-tre, January 2014.22 Como refere o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 111/2012, de 23 de Maio, “o Decreto-Lei n.º 141/2006, de 27 de Julho, veio introduzir diversas alterações ao regime então vigente, designadamente ao nível da preparação de processos de parceria e da execução dos respectivos contratos, com vista a um pretendido, mas não demonstrado, reforço da tutela do interesse fi nanceiro público.”

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por parte das várias equipas intervenientes do processo), a nova lei já não con-sidera tacitamente emitidos os despachos ministeriais relativos à aprovação dos processos de alteração das parcerias quando a sua emissão expressa não se faça dentro do prazo estabelecido na lei.

O legislador anunciou também – em paralelo com as medidas destinadas a reforçar o controlo de encargos e dos riscos associados às PPP (sublinhando-se, relativamente a estas, a exigência de uma matriz de risco do projecto como anexo ao contrato de parceria ou a avaliação prévia do impacto fi nanceiro das determinações unilaterais susceptíveis de dar lugar à reposição do equilíbrio fi nanceiro) –, uma preocupação de transparência nos procedimentos, designa-damente tornando obrigatória a publicitação, no site da UTAP, de documentos (ex. instrumentos contratuais) que até então não eram do domínio público.

No âmbito do procedimento de contratação das parcerias, o novo regime passou a prever a possibilidade de autonomização da componente de fi nancia-mento do projecto. Esta alteração parece colocar na esfera do parceiro público a responsabilidade (mas, também, o controlo do processo da contratação) do fi nanciamento dos projectos, o que, nalguns cenários, poderá trazer vantagens ao nível das condições aplicáveis ao mesmo. Contudo, admite-se que, na prá-tica, se verifi quem algumas difi culdades operacionais na contratação autonomi-zada de uma parceria e do respectivo fi nanciamento.

5. Para fi nalizar este capítulo do nosso estudo, fazemos uma breve análise das várias razões que, durante cerca de duas décadas, foram invocadas para justi-fi car o recurso, em Portugal, à fi gura das PPP como modelo “preferencial” para o desenvolvimento de importantes projectos do domínio da competência do sector público. As principais razões apontadas neste âmbito são as seguintes23:

– Necessidade de investimentos em infra-estruturas básicas – tal neces-sidade, sentida de forma muito premente no nosso País, foi-se avolu-mando, justamente, por falta de fi nanciamento público para a respectiva concretização;

– Restrições orçamentais – considerando as restrições orçamentais com que Portugal se confrontou, as PPP constituíram uma forma de captação de fi nanciamento privado para o investimento em bens públicos ou de inte-resse público;

– Factores técnico-políticos – neste âmbito, as PPP permitiram colocar na esfera do parceiro privado, enquanto agente económico dotado do

23 Estas encontram refl exo no Decreto-Lei n.º 111/2012, de 23 de Maio, não apenas no seu preâm-bulo mas também no articulado (vide, por exemplo, os repectivos artigos 4.º e 5.º).

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necessário know how e de efi cientes estruturas de gestão privada, o desen-volvimento de actividades para as quais a máquina pública e o respectivo sistema de gestão não se afi gura o mais adequado ou efi caz; nesta medida, foi sensível a evolução das funções desempenhadas pelo Estado na eco-nomia, fortalecendo-se as vertentes regulatória e fi scalizadora, em detri-mento da de executor directo;

– Transferência de risco – outra razão que foi determinante24 é a da trans-ferência para o sector privado de uma parte relevante dos riscos associados ao projecto e que, num modo clássico de gestão pública, fi cariam na esfera do parceiro público.

Sintetizando o referido, através de uma análise SWOT, ressaltamos o seguinte:

Strengths Partilha de risco, com a transferência para o sector privado de uma parte sig-nifi cativa do risco do projecto Incremento da qualidade dos serviços prestados pelos privados

Weaknesses Modelo de contratação de grande complexidade a nível técnico, fi -nanceiro e negocial

Opportunities Dinamização do sector privado com projectos do domíno do sector público Realização investimentos estruturantes

Threats Recurso às PPP para contenção do defi cit público a curto prazo mas com impacto incontornável nas contas públicas

IV – Estrutura contratual

6. Conforme acima se referiu, considerando a dimensão dos projectos em que é utilizado, o Project Finance envolve uma complexa estrutura contratual e a intervenção de um conjunto de entidades, a cada uma delas cabendo um papel específi co na estruturação e desenvolvimento da operação.

Essa estrutura contratual é criada em torno de uma relação jurídica nuclear, que é a que se estabelece entre o parceiro público e o parceiro privado. O Decreto-Lei n.º 111/2012 apresenta uma lista exemplifi cativa de “instru-

24 A importância deste factor refl ecte-se, desde logo, na defi nição legal de PPP, na qual se estabe-lece, como regra, que a responsabilidade pelo investimento, fi nanciamento, exploração, e riscos associados, incumbem, no todo ou em parte, ao parceiro privado.

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mentos de regulação jurídica das relações de colaboração” entre os parceiros públicos e privados ao nível das PPP, a saber os contratos de:

i) (sub)concessão de obras públicas;ii) (sub)concessão de serviço público;iii) fornecimento contínuo;iv) prestação de serviços;v) gestão;vi) colaboração, quando se tratar de uma infra-estrutura ou um estabeleci-

mento já existentes, pertencentes a outra entidade que não o parceiro público.

7. Considerando o vasto conjunto de projectos de infra-estruturas rodoviárias implementado em Portugal entre 1990 e 2010, torna-se possível esquematizar a respectiva estrutura contratual standard da seguinte forma:

ParceiroPúblico

Bancos

Contratos deFinanciamento

AcordoFundos Próprios

Contratode concepção,

projecto e construção

Contratode O&M

EntidadeConstrutora Operadora

AccionistasSociedadeVeículo

Contratode concessão

Os contratos celebrados entre a sociedade veículo, a entidade concedente, os bancos fi nanciadores, os accionistas da sociedade veículo, a entidade cons-trutora e a operadora e os bancos são, normalmente, designados por contratos do projecto.

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7.1. Conforme decorre do esquema supra, o contrato nuclear é o estabelecido entre o parceiro público e a Sociedade Veículo (ou SPV), através do qual esta fi ca habilitada a realizar o projecto.

Nas situações que nos propusemos analisar, os contratos nucleares são, essencialmente, contratos de concessão de obra pública, nos termos dos quais o Estado Português (na sua qualidade de concedente)25-26 atribui ao parceiro pri-vado (a Concessionária, representada no diagrama pela SPV) a concessão para a concepção, projecto, construção, fi nanciamento, exploração e conservação, em regime de portagem ou em regime de disponibilidade, de determinados lanços de auto-estrada.

7.2. Como acima se viu, existem outros contratos essenciais para a realiza-ção do projecto. No que se refere à vertente técnica dos empreendimentos que ora nos ocupam, destacamos os seguintes:

i. o contrato de empreitada para a concepção, projecto e construção da infra-estrutura – o qual normalmente tem como particularidade essencial ser um contrato chave na mão, ou seja, com preço fi xo e data de con-clusão certa;

ii. o contrato de operação e manutenção, habitualmente com um termo de vigência equivalente à fase da operação de cada projecto.

25 No que respeita às subconcessões contratadas entre 2008-2010, a entidade (sub)concedente é a Infraestruturas de Portugal, S.A. (anteriormente EP – Estradas de Portugal, S.A.), a quem o Estado Português atribuiu a concessão para o fi nanciamento, a conservação, a exploração, a requalifi cação e o alargamento das vias que integram a Rede Rodoviária Nacional e para a concepção, projecto, construção, fi nanciamento, conservação, exploração, requalifi cação e alargamento das vias que integram a Rede Rodoviária Nacional Futura (vide n.ºs 1 e 2 da Base 2 das bases desta concessão (”Concessão IP”), aprovadas em anexo ao Decreto-Lei n.º 380/2007, de 13 de Novembro, alte-radas pela Lei n.º 13/2008, de 29 de Fevereiro, pelo Decreto-Lei n.º 110/2009, de 18 de Maio e pelo Decreto-Lei n.º 44-A/2010, de 5 de Maio). A Rede Rodoviária Nacional e a Rede Rodo-viária Nacional Futura são constituídas pelos Itinerários Principais, Itinerários Complementares, estradas nacionais e estradas regionais previstos no PRN 2000 (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 222/98, de 17 de Julho, tal como alterado) já em serviço, ou em construção, na data da celebração do contrato da Concessão ou os que não estando construídos àquela data se encontrem previstos no PRN 2000 ou nos diplomas que o modifi quem ou substituam.26 A Rede Concessionada (i.e. as vias que integram a Rede Rodoviária Nacional que, na data da celebração do contrato da Concessão IP, são objecto de concessões outorgadas pelo Estado Portu-guês) integrar-se-á na concessão atribuída à Infraestruturas de Portugal, S.A. às 24 horas da data em que ocorra o termo, por qualquer motivo, dos contratos de concessão celebrados do Estado ou em que ocorra a transformação destes em contratos de subconcessão (vide n.º 5 da Base 2 das bases da Concessão IP).

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Através da celebração destes contratos, as actividades de (i) concepção, pro-jecto e construção das novas vias, no âmbito de cada (sub)concessão e de (ii) operação e manutenção das infra-estruturas (sub)concessionadas são contrata-das pela SPV a entidades especialmente constituídas para as desenvolver. Com efeito, as entidades que executam estas actividades são, à semelhança da SPV, especialmente constituídas para esse efeito e têm, normalmente, como sócios ou membros27 as entidades que fi guram como accionistas da concessionária e que se dedicam à construção de obras públicas.

Como melhor se explicará no ponto 10. deste trabalho, os contratos acima referidos refl ectem, de forma mais ou menos ampla, consoante os casos, uma transferência, pela SPV para a respectiva contraparte, de riscos específi cos ine-rentes a cada uma das actividades que constituem o seu objecto.

iii. um outro instrumento que passou a ser utilizado com a introdução de cobrança de taxas de portagem nas antigas concessões SCUT é o con-trato de prestação de serviços de cobrança de taxas de portagens, cele-brado entre a concessionária da infra-estrutura onde as taxas passaram a ser cobradas e a Infraestruturas de Portugal, S.A., na qualidade de titular das referidas receitas28.

7.3. Para além dos contratos sobre a execução das actividades “técnicas”, encontramos outros especifi camente destinados a regular a complexa vertente fi nanceira de cada projecto, não só no que se refere à realização dos capitais próprios mas também, e de forma preponderante, os que regulam a concessão do fi nanciamento sénior, normalmente a principal fonte dos fundos a alocar ao projecto.

7.3.1. Assim, por um lado encontramos o chamado “acordo de subscrição e realização de capital”, celebrado entre a SPV e os seus accionistas29, através do qual estes se obrigam a dotar aquela com os fundos próprios necessários para o desenvolvimento do projecto.

27 Nos casos dos ACEs (agrupamentos complementares de empresas) normalmente constituídos para executar os contratos de concepção, projecto e construção.28 A Infraestruturas de Portugal, S.A. tem competência para desenvolver a actividade de cobrança de taxas de portagem aos utilizadores da rede concessionada, nos casos em que a mesma lhe seja expressamente atribuída nas bases de concessões integradas na referida rede; as receitas e as des-pesas associadas à referida actividade pertencem à Infraestruturas de Portugal, S.A. (vide n.ºs 9 e 10 da Base 2 das bases da Concessão IP).29 Normalmente o chamado “banco agente” também intervém como parte no acordo, em repre-sentação do sindicato bancário.

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Como acima se deixou referido, no “debt-to-equity ratio” a preponderância recai sobre a dívida sénior, embora não seja dispensada uma determinada per-centagem de fundos próprios para a realização do projecto. Ora, o designado “acordo de subscrição e realização de capital” regula o conjunto de obrigações dos accionistas perante a SPV relativamente à sua capitalização, nomeadamente no que se refere aos montantes envolvidos, instrumentos utilizados (capital social, prestações acessórias ou empréstimos accionistas) e calendarização das aporta-ções. O mesmo instrumento contratual também tem sido utilizado para prever quais as condições (jurídicas, económicas e fi nanceiras) que devem ser verifi ca-das para que a SPV possa restituir prestações acessórias ou reembolsar emprésti-mos accionistas e, bem assim, deliberar distribuições de dividendos.

7.3.2. Em paralelo são celebrados, entre a SPV (que fi gura como a deve-dora) e instituições fi nanceiras os contratos de fi nanciamento30, com vista à obtenção, pela SPV, dos fundos necessários ao desenvolvimento das actividades objecto do projecto31.

Neste âmbito, existe, por norma, recurso a empréstimos concedidos por um conjunto de bancos comerciais (“commercial loans”32), que compõem um sindicato bancário. Trata-se de empréstimos de longo prazo (sendo habituais prazos entre 15 a 20 anos33), cuja maturidade não ultrapassa a data do termo do projecto.

Em empreendimentos de especial relevo, parte da dívida é obtida junto de instituições fi nanceiras internacionais, tais como o Banco Europeu de Investimento34.

Os termos e condições destes empréstimos variam consoante o projecto, o risco envolvido e a conjuntura que enquadra a montagem do empreendimento.

Não obstante, como acima se referiu, estes empréstimos gozam, relativa-mente às demais fontes de fi nanciamento, de um “estatuto de senioridade”, que

30 A outra forma tradicional de obtenção de fundos é através da emissão, pela sociedade veículo, de empréstimos obrigacionistas (vide E.R. Yescombe, “Principles of Project Finance”, Second Edi-tion, Elsevier, 2014, p. 61 e ss.). A emissão de obrigações como forma de fi nanciamento é utilizada num número reduzido de projectos de concessões de infra-estruturas rodoviárias em Portugal.31 Aos quais se somam os fundos próprios e os cash-fl ows gerados pelo negócio.32 Vide “A Guidebook on Public-Private Partnership in Infrastructure”, United Nations Economical and Social Commission for Asia and the Pacifi c, Bangkok, 2011, p. 41.33 Vide “Project Finance Teaching Note”, Comer, Bruce, 1996, The Wharton School, Universidade da Pennsylvania.34 Em Portugal existem inúmeros empreendimentos de (sub)concessões de auto-estradas parcial-mente fi nanciadas pelo Banco Europeu de Investimento (“BEI”). O único projecto listado no web.site do BEI é o da Subconcessão Pinhal Interior.

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se refl ecte na prioridade do seu reembolso em relação aos demais, em função de uma cascata de pagamentos permitida, que se convenciona contratualmente.

É relevante referir que existe uma adaptação entre as necessidades de fi nan-ciamento próprias do empreendimento e a estrutura dos contratos de fi nan-ciamento. Exemplo claro do que se acaba de referir, é a habitual existência de várias facilidades de crédito cujas fi nalidades respeitam as que se encontram especifi camente previstas para cada operação, podendo num só contrato coe-xistir (entre muitas outras):

i. facilidades destinadas à fazer face aos investimentos de capital necessários para a realização do empreendimento e aos custos operacionais (ambos em função de rigorosos orçamentos), aos custos fi nanceiros e impostos;

ii. uma linha de crédito relacionada com a emissão da caução contratual (normalmente sob a forma de garantia bancária) a favor do (sub)conce-dente, para garantia do cumprimento das obrigações das (sub)conces-sionárias nos termos efeitos dos contratos de (sub)concessão (“bonding facility”);

iii. facilidades para fi nanciar algumas das chamadas “contas do projecto”, as quais, em determinadas datas, fi xadas contratualmente, devem estar pro-vidas de fundos em conformidade com os valores e rácios convenciona-dos, seja para fazer face aos custos a despender no âmbito da actividade da SPV ou para dar conforto aos bancos relativamente a determinados parâmetros fi nanceiros estipulados (falamos, por exemplo, das Debt Ser-vice Reserve Account, Major Maintenance Reserve Account, O&M Reserve Account, a Working Capital Account (capital circulante), entre outras;

iv. facilidades para garantia do reembolso de empréstimos concedidos pelo Banco Europeu de Investimentos;

v. “equity bridge facility”, cujo reembolso é feito com a injeção de fundos próprios dos accionistas na devedora.

Por vezes são contratadas “standby facilities” para serem utilizadas caso se verifi quem certas circunstâncias inicialmente imprevistas, como sendo a exis-tência de custos (designadamente de construção) que excedam os valores orçamentados35.

35 Considerando a fi nalidade que permite a utilização das “standby facilities”, não raras vezes é exigido, pelas entidades fi nanciadoras, um compromisso por parte dos accionistas de garantir o cumprimento das obrigações da devedora ao abrigo destas linhas de “standby”. A obrigação de pagamento (ou de injeção de fundos na devedora) assumida pelos accionistas é, normalmente, conjunta e não solidária e pode ser garantida mediante a entrega de uma garantia bancária autó-noma e à primeira solicitação.

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Cada uma destas facilidades envolve valores diversos, prazos de vencimento distintos, podendo ser remunerados de forma diferenciada entre si.

Estes contratos de empréstimo contêm cláusulas usualmente utilizadas num contexto de “corporate fi nance” (incluindo, entre outras, as declarações e garan-tias36, os típicos “covenants” e “undertakings” relativos a “negative pledge”, “cross default” e “pari passu ranking”, a habitual cláusula de “material adverse change”, entre outras). Prevêem, ainda, outras disposições contratuais determinadas pelas especifi cidades de cada projecto.

De uma forma geral, os contratos de fi nanciamento regulam as seguintes matérias:

– Condições precedentes (umas genéricas e outras aplicáveis a cada desembolso);

– Período de disponibilidade, durante o qual os desembolsos devem ser realizados;

– Formalidades a observar nas utilizações;– Juros, respectivo cálculo e pagamento;– Reembolso do crédito (voluntário e obrigatório);– “Financial covenants”, relativos ao estabelecimento e cálculo de rácios

fi nanceiros37 e de outros elementos fi nanceiros chave que a devedora deve cumprir;

– Limitação/proibição da prática de determinados actos pela devedora, nomeadamente ao nível das distribuições;

– Incumprimento e vencimento antecipado.

No que respeita à remuneração dos empréstimos, a doutrina diverge quanto à questão de ser saber se o Project Finance propicia um custo do dinheiro mais elevado ou, pelo contrário, mais atractivo para o investidor.

Por um lado, nas palavras de E.R. Yescombe, “Besides being slow, complex, and leading to some loss of control of the project, project fi nance is also an expensive method of fi nancing. The lenders’ margin over cost of funds may be 2–3 times that of corporate fi nance; the lenders’ due diligence and control processes, and the advisors emplo-yed for this purpose (cf. §5.5), also add signifi cantly to costs.”38

36 As “Representations and Warranties”.37 O chamado “Calculation and Forecasting Agreement” é um instrumento que normalmente integra o conjunto dos contratos fi nanceiros, destinando-se a regular, em detalhe, a forma e datas de cál-culo dos rácios e a realização dos vários “ forecasts”, que refl ectem esse cálculo reportado às datas contratualmente convencionadas. Este é um instrumento ao dispor das entidades fi nanceiras para monitorizar o desempenho do projecto.38 Vide E.R. Yescombe, “Principles of Project Finance”, Second Edition, Elsevier, 2014, p. 20 e ss.

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Opinião distinta é defendida por Scott L. Hoff man, segundo o qual “A pro-ject fi nancing is selected in many circumstances because more attractive interest rates and credit enhancement are available to the project than are otherwise available to the project sponsor. A credit appraisal of an individual project is sometimes more favorable than a credit appraisal of the project sponsor. Thus, a more attractive risk profi le can result in more favorable interest rates and lower credit enhancement costs.”39.

7.3.3. Integra também o pacote dos contratos fi nanceiros um conjunto de acordos, celebrados pela devedora e as entidades fi nanciadoras, estabelecendo, de forma compreensiva, direitos e obrigações das partes no tocante a aspectos particulares da execução do projecto, em geral, e da operação de fi nancia-mento, em particular. De seguida vamos dar nota de alguns desses contratos40.

Common Terms AgreementTrata-se de um contrato celebrado pelos bancos fi nanciadores e a devedora,

que estabelece os termos e condições que são comuns a todos os empréstimos e aos contratos que os titulam (nomeadamente, as defi nições, pedidos de utili-zações, as “project accounts” (ou contas de projecto), situações de incumprimento (ou “events of default”), alterações contratuais).

Intercreditor agreementO chamado “Intercreditor Agreement” é celebrado pelos principais credo-

res da devedora, designadamente pelos bancos fi nanciadores, os “hedging ban-ques” quando for o caso, e pelos accionistas da devedora (titulares de créditos subordinados), com o objectivo de regular as suas relações, enquanto credores da devedora, relativamente a matérias de interesse geral dos intervenientes, nomeadamente:

– a já mencionada “cash-fl ow waterfall”, que determina a prioridade dos paga-mentos realizados pela devedora, com as receitas geradas pelo projecto;

– formalidades e maiorias de votos pelos bancos fi nanciadores para efeitos da concessão de waivers41;

39 Vide Scott L. Hoffman in “The Law and Business of International Project Finance”, Second Edi-tion, Kluwer Law International, 2001, p. 16.40 Na prática portuguesa de projectos de infra-estruturas rodoviárias, de um modo geral os con-tratos de fi nanciamento e os demais contratos fi nanceiros estão redigidos em inglês e são sujeitos à lei inglesa.41 Em termos gerais, os waivers consistem na renúncia, por parte das entidades fi nanciadoras, de invocarem mora, cumprimento defeituoso ou incumprimento de determinados termos e condi-ções dos contratos fi nanceiros, resultantes de qualquer acção ou omissão pretendida pela devedora

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– notifi cação de situações de incumprimento por parte da devedora;– termos e condições da subordinação dos credores subordinados e os

“senior creditors”.

Nas palavras de Graham Vinter, “An intercreditor agreement will usually address issues such as whether all of the categories of lenders have to agree before any of them can accelerate their loans or take enforcement action and whether or not any category of lenders is to have the right to veto any proposed exercise of a discretion under any other lenders’ credit documentation. For example, should each set of lenders have to give its consent to a proposed major variation order under the construction contract (providing each set of lenders with a veto) or are decisions to be taken by polling all of the lenders “across the board”, with all lenders being bound by a decision of the majority?”42.

Acordos DirectosNo âmbito do Project Finance, é fundamental a celebração de acordos

tripartidos, em que intervêm, sempre, os bancos fi nanciadores, a devedora e a contraparte desta em cada um dos contratos de projecto, visando estabele-cer uma relação contractual directa entre os bancos fi nanciadores e a referidas contrapartes.

Usando a estrutura contratual acima gizada (vide ponto 7 supra), são comuns Acordos Directos com o (sub)concedente, relativos ao contrato de (sub)con-cessão, com a entidade construtora, no que se refere ao contrato de empreitada e, bem assim, com a operadora visando o contrato de O&M.

Nestes acordos, as entidades fi nanciadoras obtêm o reconhecimento (directo) das mencionadas contrapartes sobre determinados direitos dos fi nan-ciadores sobre a devedora ou mesmo sobre as contrapartes, tornando oponíveis tais direitos às mencionadas entidades.

Um dos direitos chave, neste âmbito, é o “step in”43, ou seja, a possibi-lidade de os bancos fi nanciadores substituírem a devedora nos contratos prin-cipais do projecto, caso esta esteja em situação de incumprimento, justamente com vista à respectiva sanação44.

e que seja contrária (ou possa ter consequências contrárias relativamente) a obrigações a que se acha vinculada perante os bancos.42 Graham Vinter, in “Project Finance – A Legal Guide”, Second Edition, London, Sweet & Max-well, 1998, Section 5.9, p. 146.43 A matéria do “step in” e do “step out” encontra-se regulada no artigo 322.º do Código dos Contratos Públicos.44 Conforme escreve Graham Vinter, “The objective of a direct agreement is basically to enable the banks to “step into the shoes” of the project company if it defaults in its loan obligations. The extent to which direct agreements are required in any particular project fi nancing will be dictated by the terms of the underlying

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Através dos Acordos Directos, as entidades fi nanciadoras vinculam as contrapartes na obrigação de (i) notifi carem o banco agente de situações de incumprimento pela devedora e (ii) não resolverem o respectivo contrato antes de notifi car, por escrito e com um determinado pré-aviso, o agente dos fi nanciadores.

Outro aspecto de relevo é o reconhecimento, pelas mencionadas contra-partes, da constituição de garantias, pela devedora a favor dos bancos fi nancia-dores, relacionadas com os respectivos contratos de projecto (por exemplo, a cessão, com escopo de garantia, de determinados créditos da devedora perante a entidade construtora ou operadora, resultantes da execução dos respectivos contratos).

Accounts AgreementComo já se referiu, o Project Finance implica a abertura e manutenção,

por parte da devedora, de várias contas bancárias, cada uma das quais contendo fundos destinados a propósitos específi cos (ex. proceeds account, petty cash account, insurance/compensation account, debt service reserve account45, distributions account, investment reserve account, unexpected costs funding account, etc., em conjunto desig-nadas por Project Accounts).

Através do Accounts Agreement, celebrado pela devedora, o Accounts Bank e o banco agente, a devedora assume um importante conjunto de obrigações relativamente à abertura e manutenção das Project Accounts, aos movimentos que pode realizar e aos valores que nalgumas delas deve ter depositados em determinadas datas chave, nomeadamente para cumprir com os rácios fi nan-ceiros acordados.

De um modo geral, a devedora não pode ser titular de outras contas ban-cárias para além das previstas do referido contrato.

O “security package”46

Como já se deixou referido, no âmbito do Project Finance as garantias de que as entidades fi nanciadoras benefi ciam são, essencialmente, constituídas sobre os activos afectos ao projecto.

contracts, the extent to which the banks’ security carries with it management powers (…) and the scope of the proposed security package”, in “Project Finance – A Legal Guide”, Second Edition, London, Sweet & Maxwell, 1998, Section 6.4, p. 159.45 O objectivo desta conta é o de constituir uma “almofada fi nanceira” para períodos em que os fundos disponíveis para fazer face ao serviço da dívida são inferiores ao valor dos pagamentos calendarizados.46 Incidindo normalmente sobre bens existentes em Portugal, os contratos que compõem o security package são, ao contrário dos demais contratos fi nanceiros, regidos pela lei portuguesa.

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É neste contexto que falamos no “security package”, ou seja, no conjunto de garantias que são constituídas a favor das entidades fi nanciadoras para segurança do cumprimento, pela devedora, das obrigações que sobre a mesma impende nos termos do conjunto dos contratos fi nanceiros.

Um dos instrumentos contratuais de maior relevância no pacote de garan-tias é o “Security Agreement”47, através do qual são constituídas determinadas garantias pela devedora e as suas accionistas a favor das entidades fi nanciadoras.

No que toca à devedora, o conjunto de garantias habitualmente conside-rado passa pela:

i. constituição de penhor sobre os valores depositados nas Project Accounts e sobre outros activos relacionados com o projecto que possam ser dados de penhor, nos termos da lei e do contrato de (sub)concessão;

ii. cessão de créditos, com escopo de garantia, com incidência em quais-quer créditos (designadamente resultantes de indemnizações ou outras compensação) de que a devedora seja titular e que advenham:

ii.i. do contrato de construção48, do contrato de O&M, do Acordo de Subscrição e Realização de Capital, do próprio contrato de (sub)con-cessão e de outros contratos de projecto, ou

ii.ii. das apólices de seguro que venha a contratar, nos termos do contrato de (sub)concessão e dos contratos de fi nanciamento;

iii. penhor de acções representativas do capital social da sociedade ope-radora, quando esta é participada pela concessionária e, bem assim, penhor sobre créditos accionistas detidos por esta sobre aquela.

Já no que respeita aos accionistas da devedora, estes constituem a favor das entidades fi nanciadoras penhor (i) sobre as acções49 representativas do capital social da devedora e (ii) sobre os créditos accionistas resultantes dos fundos próprios realizados ao abrigo do já referido Acordo de Subscrição e Realização de Capital.

Associado ao Security Agreement surge, habitualmente, um Call Option Agree-ment, de que são partes a devedora, os seus accionistas e as entidades fi nanceiras.

O Call Option Agreement destina-se a regular, essencialmente, os termos e condições da opção de compra de acções representativas do capital social da devedora, atribuída pelos accionistas da devedora em benefício das entidades

47 Ou contrato de garantias.48 Nomeadamente os valores cobrados por execução da caução de bom cumprimento do contrato, prestada pela entidade construtora a favor da concessionária.49 E prometem dar de penhor qualquer nova acção que venham a deter na devedora.

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fi nanciadoras, direito exercível quando ocorrer um incumprimento dos con-tratos fi nanceiros que conduza a uma situação de vencimento antecipado dos empréstimos. Este é um mecanismo que permite a implementação do direito de “step in” a que acima se aludiu.

Neste contexto, o preço de exercício do direito de compra das acções é meramente simbólico, sendo que, durante o período em que o direito de “step in” se mantém, quaisquer dividendos distribuíveis pela devedora devem ser uti-lizados pelas entidades fi nanciadoras para cumprimentos das obrigações daquela no âmbito dos contratos fi nanceiros.

Para além destes contratos de garantias, é comum as entidades fi nanciadoras exigirem a outorga, tanto pela devedora como pelos seus accionistas, de procu-rações irrevogáveis, através dos quais o Security Agent50 é constituído mandatá-rio da entidade outorgante, sendo-lhe conferidos poderes para executar os actos necessários à perfeição das garantias constituídas (ou prometidas constituir) no Security Agreement e, bem assim, à execução das mesmas, nos termos admitidos no referido contrato.

7.3.4. Uma teia contratual complexa como a que se acabou de descrever51 envolve a participação de um conjunto de entidades que desempenham um papel específi co nas várias vertentes do projecto.

Por um lado, no que se refere às entidades fi nanciadoras que compõem o sindicato bancário, vemos que algumas delas assumem o papel de “bancos agentes” em vários dos contratos fi nanceiros, actuando como “facility agent”, “security agent”, “intercreditor agent”, “forecasting agent”, “technical bank” ou “account bank”. De um modo geral, cada um destes bancos é nomeado pelas entidades fi nanciadoras para actuar como agente das mesmas ao abrigo dos respectivos contratos fi nanceiros52.

Para além disso, tanto a devedora como as entidades fi nanciadoras dispõem, desde o início da montagem da operação e, pelo menos, até ao momento do total cumprimento das obrigações resultantes dos contratos fi nanceiros, de assessoria nas várias áreas de relevância do projecto. Falamos, entre outros53, nos “fi nancial”, “legal”, “fi nancial modeler”, “technical”, “O&M”, “traffi c”, “envi-ronmental” e“insurance advisors”, os quais desempenham um papel determinante

50 Ver no ponto 7.3.4 infra o papel desempenhado pelo Security Agent.51 Ainda que de forma muito sumária e simplifi cada.52 Ou seja, no âmbito do “Facility Agreement”, “Security Agreement”, “Intercreditor Agreement”, “Fore-casting Agreement”, “Accounts Agreement”, etc.53 Cfr. E.R. Yescombe, “Principles of Project Finance”, Second Edition, Elsevier, 2014, p. 34 e ss.

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de aconselhamento e monitorização das vertentes do projecto da respectiva especialidade.

V – Matriz de alocação de risco

8. Distribuição do risco entre parceiros públicos e privados

Um dos factores críticos para o (in)sucesso de um fi nanciamento estru-turado com recurso ao Project Finance resulta da (in)correcta alocação, pelos vários intervenientes, dos múltiplos riscos54 identifi cados em cada projecto e, bem assim, a transposição dessa alocação para os instrumentos contratuais que corporizam o mesmo.

Nas palavras de Fabozzi e Nahilik, “For a project to be successfully achieved, these risks must be properly considered, monitored and avoided throughout the life of the project.”55

Recorrendo às regras vigentes sobre as parcerias público-privadas, a partilha de riscos entre os parceiros públicos e privados deve obedecer aos seguintes princípios (vide artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 111/2012, de 23 de Maio):

– A repartição dos riscos entre as partes deve ser feita de acordo com a res-pectiva capacidade para os gerir;

– A criação da PPP deverá implicar uma signifi cativa e efectiva transferên-cia de risco para o sector privado56;

– Deve ser evitada a criação de riscos que não tenham adequada justifi cação na redução signifi cativa de outros riscos já existentes;

– O risco de insustentabilidade fi nanceira da parceria deve ser transferido para o parceiro privado (sempre que resulte de causa não imputável a incumprimento ou modifi cação unilateral do contrato pelo parceiro público, ou a situação de força maior).

A partilha de riscos entre as entidades públicas e privadas deve estar clara-mente identifi cada contratualmente, sendo que n.º 2 do artigo 7.º do Decre-

54 De acordo com o ensinamento de Richard Tinsley, no Project Finance “risk is any factor which will change the expected/projected project cash fl ow.” (vide “Advanced Project Financing. Structuring Risk”, First Edition, Euromoney Books, 2000, p. 67).55 Frank J. Fabozzi & Carmel F. de Nahlik, in “Project Financing“, Eighth Edition, Euromoney Books, 2012, p. 4.56 Este princípio encontra-se refl ectido no artigo 413.º do CCP, especifi camente aplicável ao con-trato de concessão.

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to-Lei n.º 111/2012 impõe que todos os contratos disponham de “um anexo com a matriz de riscos, em formato de tabela (…), de onde conste uma descrição sumária daqueles, que permita a clara identifi cação da tipologia de riscos assumidos por cada um dos parceiros.”

Tanto quanto nos foi possível apurar, no sector das (sub)concessões de infra-estruturas rodoviárias ainda não foi celebrado um contrato de (sub)con-cessão que observe a norma legal citada.

A formulação que, ao longo de décadas, tem vindo a ser inserida nos con-tratos é a de que a responsabilidade por todos os riscos inerentes à (sub)conces-são é, por regra, assumida pela (sub)concessionária: “A Concessionária expressa-mente assume integral responsabilidade por todos os riscos inerentes à Concessão, excepto nos casos em que o contrário resulte do Contrato de Concessão.”57.

Fazendo um percurso analítico dos contratos de concessão de auto-estra-das (incluindo as versões resultantes dos processos negociais encetados pelo Estado e por algumas concessionárias), podemos sintetizar alguns aspectos rele-vantes relativamente aos principais elementos da matriz de risco deste tipo de projectos.

8.2 Principais elementos da matriz de risco

8.2.1. Risco da procura

Considerando a actividade que temos vindo a analisar, o risco de procura equivale ao chamado risco de tráfego. Nas concessões de infra-estruturas rodo-viárias adjudicadas até 2007 o risco de tráfego foi, de um modo geral, assumido pelo parceiro privado, com algumas particularidades.

Com efeito, tanto nas concessões operadas em regime de portagem real, como nas SCUTs, a formulação usada nos respectivos contratos (e nas bases das concessões)58:

57 Vide, por todas, a Base LXXXIII das Bases da Concessão Oeste, aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 393-A/98, de 4 de Dezembro, e a Base LXXXII das Bases da Concessão Norte, cuja versão revista foi recentemente aprovada pelo Decreto-Lei 109/2015, de 18 de Junho.58 Vide, por todas, a Base LIV das Bases da Concessão Oeste, aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 393-A/98, de 4 de Dezembro, a Base LIV das Bases da Concessão Norte, na sua versão origi-nária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 248-A/99, de 6 de Julho. Redacção semelhante podia ser encontrada na Base LXXXII das Bases da Concessão do Norte Litoral, na sua versão originária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 224/2001, de 28 de Agosto.

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– Colocava na esfera jurídica da Concessionária “integralmente o risco de trá-fego inerente à exploração das Auto-Estradas, neste se incluindo o risco emergente de qualquer causa que possa dar origem à redução de tráfego ou à transferência de tráfego das Auto-Estradas para outros meios de transporte ou outras vias da rede nacional”;

– Identifi cava as vias rodoviárias alternativas às auto-estradas concessiona-das, como “as constantes do PRN 2000, com a redacção que lhe foi dada à data da sua publicação, competindo ao Concedente assegurar-lhes níveis de serviço compatíveis com as fi nalidades implícitas na sua classifi cação”;

– Estabelecia a obrigação de o Concedente a não conferir a quaisquer vias rodoviárias alternativas nível de serviço superior ao nível de serviço B, relativamente aos Itinerários Principais, e ao nível de serviço C quanto aos Itinerários Complementares e Estradas Nacionais, sendo a determina-ção feita pela metodologia constante do Highway Capacity Manual;

– Determinava que o incumprimento pelo Concedente da referida obriga-ção, “do qual comprovadamente resulte desvio de tráfego, conferirá à Concessio-nária o direito à reposição do equilíbrio fi nanceiro da Concessão”.

Este paradigma sofreu uma modifi cação radical no contexto da estruturação de um novo modelo de gestão e de fi nanciamento para o sector das infra-es-truturas rodoviárias, o qual teve como expressão mais notória a introdução da cobrança de taxas de portagem aos utentes das vias anteriormente operadas no regime SCUT, sendo que as respectivas receitas passaram a pertencer à (agora) denominada Infraestruturas de Portugal, S.A..

Com efeito, com o processo negocial que conduziu, em Julho de 2010, à celebração de um conjunto de contratos de concessão renegociados, o modo de remuneração das concessionárias envolvidas deixou de ser a cobrança das portagens reais ou das chamadas “portagens SCUT”59, passando as mesmas a ser remuneradas em função da disponibilidade da via.

Ora, com esta alteração, e nas concessões abrangidas pela renegociação em causa, o risco de tráfego passou para a esfera jurídica do parceiro público, pas-sando o parceiro privado a fi car com o risco da disponibilidade, cuja natureza é substancialmente distinta daquele.

59 Portagens SCUTS eram defi nidas como os valores que a concessionária tem direito a receber do concedente em função dos valores de tráfego registados e nos demais termos do contrato de concessão.

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8.2.2. Alterações legislativas

A experiência tem ditado que o parceiro privado assume, em regra, o risco das alterações à lei geral, designadamente às leis fi scais e ambientais.

No entanto, ocorrendo alterações legislativas de carácter específi co60, com impacto directo e signifi cativo nas receitas/custos das actividades (sub)conces-sionadas, as mesmas podem dar ligar à reposição do equilíbrio fi nanceiro.

8.2.3. Modifi cações unilaterais pelo parceiro público

A modifi cação unilateral, imposta pelo parceiro público, das condições de desenvolvimento das actividades integradas no contrato confere o direito à reposição do equilíbrio fi nanceiro desde que, em resultado directo da mesma, se verifi que um aumento de custos e/ou perda de receitas.

Estamos perante uma manifestação de ius variandi ou poder de modifi cação unilateral, o qual pressupõe sempre (i) “a prática de um acto emanado no exercício do poder administrativo, mesmo que sob a forma e com força de lei (…)”; (ii) “um acto individual concreto, visando uma categoria delimitada de situações e uma pessoa ou um conjunto determinado ou determinável de pessoas (…)” e, bem assim, “visa afectar o conteúdo do contrato adaptando-o à mutação ou à superveniência do interesse público”61.

O cumprimento destas determinações do Concedente confere, de um modo geral, o direito à reposição do equilíbrio fi nanceiro.

8.2.4. Financiamento

A regra geral, habitualmente refl ectida nos contratos, é a de que a Con-cessionária é responsável (única) pela obtenção do fi nanciamento necessário ao desenvolvimento de todas as actividades que integram o objecto da Con-

60 Estamos em face da concretização contratual da teoria francesa do “ fait du prince” que, diver-samente do poder de modifi cação unilateral, constitui uma actuação normativa do ente público que, não se dirigindo directamente à regulação da relação contratual, isto é, não tendo por objecto a relação jurídico-administrativa conformada pelo contrato, tem nele um impacto signifi cativo.61 Cfr. Lourenço Vilhena de Freitas, O Poder de Modifi cação Unilateral do Contrato Administrativo pela Administração; as Garantias Contenciosas do seu Co-Contratante perante esse exercício, AAFDL, 2007, p. 115 e seg.; do mesmo Autor e mais recentemente, Direito dos Contratos Públicos e Administrativos, AAFDL, 2014, p. 462 e seg..

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cessão62. Como já se deixou referido, de uma forma geral os fundos em causa provêm de empréstimos da banca comercial (e, em certos projectos, do Banco Europeu de Investimentos), de fundos accionistas (em percentagem mais redu-zida), e pelo cash fl ow líquido gerado pelo projecto.

Por outro lado, o Concedente apenas assume as obrigações, responsabilida-des ou riscos que estejam expressamente previstos no contrato, tal como a obri-gação de pagamento da remuneração da Concessionária, a garantia da entrega à Concessionária de fundos comunitários alocados ao projecto ou a assunção de obrigações nos Contratos de Financiamento nalguns casos de cessação anteci-pada da Concessão.

Mais recentemente, no âmbito da renegociação das parcerias, o Conce-dente tem vindo a assumir a responsabilidade pelo pagamento dos custos resul-tantes dos alargamentos das vias e, bem assim, das chamadas grandes reparações de pavimentos.

A remuneração por disponibilidade das vias devida à parte privada deve ser paga pelo Estado e/ou por outras entidades (de direito público ou pri-vado) sujeitas ao seu controlo/domínio, designadamente a Infraestruturas de Portugal, S.A. É importante frisar que é o parceiro privado que corre o risco de solvabilidade da entidade pagadora, já que o Estado não concede quaisquer garantias relativamente aos pagamentos devidos.

8.2.5. Expropriações

No domínio das expropriações, verifi cou-se uma evolução no que respeita à assunção dos respectivos encargos e riscos.

Nas concessões mais antigas [como é o caso da Concessão Oeste (1998) e da Concessão Norte (1999)] compete ao Concedente a realização e con-dução dos processos expropriativos e suportar todos os custos resultantes das expropriações.

Numa fase intermédia, o Concedente e a Concessionária partilham os cus-tos expropriativos, o que acontece nas Concessões Costa de Prata (2000), Beira Litoral/Beira Alta (2001) e Grande Porto (2002).

Nas Concessões mais recentes [designadamente na Concessão Litoral Cen-tro (2004) e Grande Lisboa (2007)], e nas subconcessões adjudicadas a partir de 2007, (sub)concessionária é responsável pela condução e realização dos proces-

62 Excepcionalmente, o Concedente comparticipou no investimento necessário à concessão, situa-ção que ocorreu, por exemplo, na Concessão Norte.

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sos expropriativos, como entidade expropriante em nome do Estado, cabendo--lhe ainda suportar todos os custos inerentes.

No entanto, não obstante esta evolução, manteve-se a regra que determina que atrasos imputáveis ao Concedente, superiores a um determinado período fi xado contratualmente, na emissão e publicação das Declarações de Utilidade Pública conferem o direito à reposição do equilíbrio fi nanceiro.

8.2.6. Preço e prazo da construção

O aumento de preço de construção das infra-estrutura concessionada pode:

– ser refl exo da ocorrência de factos abrangidos por outras categorias de ris-cos (ex. sobrecustos resultantes de atrasos nas expropriações ou aumento de preço de construção decorrente da imposição, pelo parceiro público, de modifi cações ao projecto); ou

– resultar de outros motivos autónomos, como seja o aumento dos custos de produção.

O risco do projecto relativo ao aumento do preço da actividade de constru-ção recai sobre o parceiro privado, sem prejuízo das situações que lhe conferem o direito à reposição do equilíbrio fi nanceiro (i.e. quando o facto que provocou o aumento corresponda a um risco contratualmente assumido pelo parceiro público, o que, de uma forma geral, se reconduz a situações excepcionais).

Importa sublinhar que as empreitadas de concepção, projecto e construção são contratadas em regime de preço global (fi xo e não revisível)63, como forma de transferir (pelo menos parcialmente) o risco da concessionária para a esfera jurídica da entidade construtora.

O risco do prazo de conclusão da construção corre pelo parceiro privado, sendo transferível para a entidade construtora, designadamente através da impo-sição de obrigação de conclusão da obra em data certa. Com efeito, regra geral, os contratos de empreitada estabelecem prazos de conclusão da obra não pror-rogáveis, estabelecendo regras sobre a implementação de planos de recuperação de atrasos e a possibilidade de alteração do programa de trabalhos, desde que sem prejuízo das datas chave de conclusão das obras.

63 Embora estes termos de contratação se tenham mantido na prática portuguesa, os mesmos passaram a ser formalmente exigidos no contexto dos procedimentos adjudicatórios das PPP nos concursos para a adjudicação das Concessões da Linha de Alta Velocidade (Poceirão-Caia e Lis-boa-Poceirão), em cujos cadernos de encargos se prevê, expressamente, a obrigação da contratação da empreitada de construção em regime de preço global, fi xo e não revisível.

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O atraso na entrada em serviço das infra-estruturas a construir, quando decorrente de incumprimento do parceiro privado, constitui fundamento para a aplicação de multas contratuais, pelo contratante público, podendo, ainda, em casos limite, conduzir ao sequestro da concessão ou à resolução do contrato64.

Acresce, ainda, que os atrasos na conclusão da construção estão, igualmente, associados a quebras de receita do parceiro privado (ex. durante o período em que se verifi ca o atraso a concessionária não está a arrecadar receitas de por-tagem ou pagamentos por disponibilidade da infra-estrutura). Ora, este factor reveste a maior importância no âmbito do Project Finance, no qual são pre-ponderantes as receitas geradas pelo projecto para fazer face às obrigações con-tratuais da devedora perante as entidades fi nanciadoras.

Nos contratos relativos às concessões mais antigas prevê-se o direito da Concessionária à reposição do equilíbrio fi nanceiro sempre que o atraso no cumprimento do plano de trabalhos seja imputável ao Concedente (vide Con-cessão Oeste, do Algarve, do Norte Litoral, e Litoral Centro).

Nos contratos mais recentes, em especial nas subconcessões contratadas pela Infraestruturas de Portugal, S.A., o direito ao reequilíbrio fi nanceiro em casos de atraso no plano de trabalhos imputáveis ao concedente passou a não fi car previsto no clausulado, tendo-se abandonado a tradicional conexão entre os atrasos no programa de trabalhos imputáveis ao concedente e o direito à reposição do equilíbrio fi nanceiro, o qual, na nova arquitectura contratual, é invocável apenas no âmbito de uma alteração unilateral das condições de desenvolvimento das actividades (sub)concessionadas.

8.2.7. Operação e manutenção

Os riscos inerentes às actividades de operação e manutenção são tipica-mente assumidos pelo parceiro privado, sendo susceptível de transferência para a operadora, caso exista.

Nas concessões anteriormente operadas em regime de portagem (real ou SCUT) e que passaram a ser remuneradas em função da disponibilidade da via, o risco de operação das concessionárias fi cou substancialmente reduzido, dada a transferência do risco de tráfego para o parceiro público. Verifi ca-se, da mesma forma, uma redução do risco relativamente à actividade de manutenção (pesada), nas parcerias em que o Concedente passou a assumir parte dos custos com as grandes reparações de pavimentos (vide ponto 8.2.4 supra).

64 Vide o sucedido na concessão do Túnel do Marão, adjudicada em 2008, cujo contrato foi resol-vido pelo Concedente.

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8.2.8. Responsabilidade perante terceiros

A fórmula tradicionalmente inserta nos contratos de PPP de infra-estruturas rodoviárias em Portugal determina que Concessionária responde, nos termos da lei geral, pelos prejuízos causados no exercício das actividades que constituem o objecto da Concessão, pela culpa ou pelo risco, prevendo-se, expressamente, que não é assumido “pelo Concedente qualquer tipo de responsabilidade neste âmbito”65.

Este paradigma sofreu uma modifi cação com a entrada em vigor do CCP66, cujo artigo 424.º estabelece que o concedente responde:

– por danos causados pelo concessionário a terceiros, no desenvolvimento das actividades concessionadas, por facto imputável ao concedente;

– por facto que não lhe seja imputável, mas apenas após de exercidos direi-tos resultantes de eventuais contratos de seguro e de excutidos os bens do património do concessionário.

Outra alteração de relevo foi a recentemente introduzida nas bases das Concessões Costa de Prata, Norte, Grande Porto, Beira Litoral/Beira Alta, e Grande Lisboa: na Base LXXIII das bases destas concessões, na redacção que lhes foi dada, respectivamente, pelo Decreto-Lei n.º 105/2015, de 16 de Junho, Decretos-Lei n.º 109/2015, 110/2015 e 111/2015, de 18 de Junho, e Decreto-Lei n.º 112/2015, de 19 de Junho, mantém-se o princípio da respon-sabilidade da Concessionária nos termos da lei, pela culpa e pelo risco, aditan-do-se, porém, duas importantes regras:

(i) a medida da responsabilidade da Concessionária, pela culpa ou pelo risco, deve aferir-se pelo grau do cumprimento das obrigações que, para a Concessionária, emergem do Contrato de Concessão, incluindo do plano de controlo de qualidade e do manual de operação e manutenção que integram o contrato de concessão, constituindo causa de exclusão de responsabilidade o seu comprovado cumprimento; e

(ii) o Concedente responde pelos danos causados a terceiros no desenvolvi-mento das actividades que constituem o objecto da Concessão por facto que lhe seja imputável, designadamente por qualquer atraso na realiza-ção de uma grande reparação de pavimento cuja necessidade tenha sido

65 Vide, por todas, a Base LXXIII das Bases da Concessão Oeste, aprovadas pelo Decreto-Lei n.º 393-A/98, de 4 de Dezembro. Idêntica redacção consta da Base LXXIII das Bases da Concessão do Norte Litoral, na sua versão originária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 224/2001, de 28 de Agosto, a qual não foi alterada pelo Decreto-Lei n.º 44-B/2010, de 5 de Maio.66 O qual, por regra, não se aplica aos contratos já existentes à data da sua entrada em vigor.

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determinada nos termos estipulados no contrato de concessão e cujos encargos sejam da sua responsabilidade.

Verifi ca-se, pois, um ajustamento das regras da responsabilidade às novas obrigações contratuais, que diferem das inicialmente estipuladas, seja ao nível da operação e manutenção, seja no que se refere à execução de grandes repa-rações do pavimento.

8.2.9. Risco ambiental

Em Portugal, durante muitos anos e ao contrário do que acontecia nou-tros países, as aprovações necessárias para efeitos do cumprimento da lei ambiental (ex. a aprovação do corredor de uma auto-estrada a construir) eram requeridas já no âmbito da execução do contrato de concessão, pretendendo com isto o Estado transferir para a Concessionária os inerentes riscos (ou par-tilhá-los com ela).

Esta matéria sofreu uma modifi cação sensível com a primeira revisão ao regime jurídico das PPP (Decreto-Lei n.º 86/2003, de 26 de Abril, alterado pelo Decreto-Lei n.º 141/2006, de 27 de Julho): a partir de 2006, o lança-mento e a contratação das PPP passaram a depender da prévia obtenção da declaração de impacte ambiental (sempre que legalmente exigível).

O princípio foi transposto para o regime jurídico das PPP actualmente vigente (i.e. para o Decreto-Lei n.º 111/2012, de 23 de Maio), no qual tam-bém se estabelece que, em caso de apresentação de propostas com variantes assentes em pressupostos distintos dos que serviram de base à declaração de impacte ambiental, os inerentes riscos são assumidos exclusivamente pelo par-ceiro privado.

No que respeita às demais vertentes, o risco ambiental é assumido pelo parceiro privado, sendo as alterações legislativas neste domínio tipicamente excluídas das situações que podem conferir direito à reposição do equilíbrio fi nanceiro.

8.2.10. Risco arqueológico

No contexto das infra-estruturas rodoviárias67, este risco tem sido tradicio-nalmente assumido pelo Concedente, sendo típico o seguinte clausulado:

67 Contudo, os cadernos de encargos dos concursos para a adjudicação das Concessões da Linha de Alta Velocidade (Poceirão-Caia e Lisboa-Poceirão) previram o princípio contrário (“A desco-

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– “Qualquer património histórico ou arqueológico que seja descoberto no curso das obras de construção da Auto-Estrada será pertença exclusiva do Concedente, devendo a Concessionária notifi cá-lo imediatamente da sua descoberta, não podendo efectuar quaisquer trabalhos que possam afectar ou pôr em perigo aquele património sem obter indicações do Concedente relativamente à sua forma de preservação;

– A verifi cação de qualquer das situações previstas no presente artigo confere à Con-cessionária o direito à reposição do equilíbrio fi nanceiro da Concessão, nos termos do artigo […]”.

8.2.11. Força maior

Com algumas variações relativamente ténues, o conceito de força maior tem-se mantido nos vários contratos de concessão de auto-estradas celebrados desde meados da década de 1990. A formulação típica estabelece que casos de força maior são os acontecimentos, imprevisíveis e irresistíveis, exteriores à Concessionária, cujos efeitos se produzam independentemente da vontade ou das circunstâncias pessoais da mesma. Este conceito é densifi cado contra-tualmente, de forma não taxativa, abrangendo actos de guerra ou subversão, hostilidades ou invasão, tumultos, rebelião ou terrorismo, epidemias, radia-ções atómicas, fogo, explosão, raio, ciclones, tremores de terra e outros cata-clismos naturais68 que directamente afectem as actividades compreendidas na Concessão.

Considerando a experiência contratual nos projectos que nos têm vindo a ocupar, podemos sublinhar os seguintes aspectos, ocorrendo um caso de força maior:

– A Concessionária pode fi car exonerada de responsabilidade pelo incum-primento das obrigações contratuais que sejam directamente por ele afec-tadas, na estrita medida em que o respectivo cumprimento, pontual e atempado, tenha sido efectivamente impedido;

– Pode haver lugar à reposição do equilíbrio fi nanceiro da Concessão a favor da Concessionária ou à resolução do contrato de concessão, caso a impossibilidade de cumprimento do mesmo se torne defi nitiva ou caso

berta de qualquer património histórico ou arqueológico no decurso das obras de construção da Concessão não confere à Concessionária o direito à reposição do equilíbrio fi nanceiro da Concessão”) tendo sido uma das alterações da matriz de risco mais signifi cativa e que fez gerar mais polémica.68 De notar que tratando-se de condições climatéricas com impacto nas actividades contratuais, o risco decorrente corre pelo parceiro privado, salvo na medida em que a situação em concreto seja subsumível a um caso de força maior.

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a reposição do equilíbrio fi nanceiro seja excessivamente onerosa para o Concedente.

A aplicabilidade destas regras (e a inerente repartição de risco) depende de o caso de força maior corresponder (ou não) a um risco segurável em praças da União Europeia, através de apólices comercialmente aceitáveis, desde, pelo menos, uma determinada data anterior à sua ocorrência (geralmente 6 meses antes). Se corresponder a um risco segurável nos moldes acima referidos, e independentemente da efectiva contratação do seguro, o regime contratual é, em regra, o seguinte:

– A Concessionária não fi cará exonerada do cumprimento, pontual e atem-pado, das obrigações contratuais;

– A reposição do equilíbrio fi nanceiro é feita apenas na medida da perda de receitas/do aumento de custos sofridos, pela Concessionária, que seja superior à indemnização (i) efectivamente recebida ou (ii) que seria apli-cável ao risco em causa.

8.2.12. Partilha de benefícios e desenvolvimento de outras actividades

Dispõe o artigo 45.º do Decreto-Lei n.º 111/2012, de 23 de Maio, que regime previsto nos artigos 341.º e 412.º do CCP, relativo à partilha de bene-fícios e ao exercício de actividades não previstas em contratos celebrados, se aplica a todas as parcerias realizadas pelas entidades pública listadas no n.º 2 do artigo 2.º, independentemente de se encontrarem abrangidas pelo âmbito de aplicação do mencionado código.

Neste contexto, importa destacar:

– a partilha equitativa69 de benefícios entre as partes, quando, durante a execução de uma parceria, se verifi que um acréscimo anormal e imprevi-sível dos benefícios fi nanceiros para o parceiro privado que não resulte da sua efi ciente gestão e das oportunidades por si criadas (vide artigo 341.º, n.º 1, do CCP); e

– o parceiro privado pode exercer actividades não previstas no contrato (desde que complementares ou acessórias das que constituem o objecto

69 “Na falta de estipulação contratual, a partilha equitativa dos benefícios fi nanceiros deve ser efectuada através da revisão de preços ou da assunção, por parte do co-contratante, do dever de prestar ao contraente público o valor correspondente ao acréscimo das receitas ou ao decréscimo dos encargos previstos com a execução do con-trato.” (vide artigo 341.º, n.º 2, do CCP).

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principal do mesmo), mediante a autorização prévia do concedente e a partilha70 da correspondente receita entre as partes (vide artigo 412.º, n.ºs 1 e 2, do CCP).

9. Assunção de riscos e Reposição do Equilíbrio Financeiro71

Atentemos nas seguintes regras, retiradas das bases da Concessão Oeste72-73:

“Base LXXXIII

A Concessionária expressamente assume integral responsabilidade por todos os riscos inerentes à Concessão, excepto nos casos em que o contrário resulte do Contrato de Concessão.

Base LXXXIV

1 – O Concedente e a Concessionária acordam que o Caso Base representa a equação fi nanceira com base na qual se procederá à reposição do equilíbrio fi nanceiro da Concessão, nos termos estabelecidos na base LXXXV.

2 – O Caso Base apenas poderá ser alertado quando haja lugar, nos termos da base LXXXV, à reposição do equilíbrio fi nanceiro da Concessão, e exclusivamente para refl ectir a reposição efectuada.

Base LXXXV

1 – Tendo em atenção a distribuição de riscos estipulada na base LXXXIII, a Conces-sionária terá direito à reposição do equilíbrio fi nanceiro da Concessão, nos termos dispostos nesta base, nos seguintes casos:

a) Modifi cação unilateral, imposta pelo Concedente, das condições desenvolvimento das actividades integradas na Concessão, desde que, em resultado directo da mesma, se verifi que, para a Concessionária, um aumento de custos ou uma perda de receitas;

70 A “partilha de receita entre as partes pode ser substituída, total ou parcialmente, pela redução do valor das tarifas aplicadas pelo concessionário ou por outras contrapartidas, com expressão fi nanceira, que benefi ciem os utilizadores da obra ou dos serviços concedidos ou o próprio concedente” (vide artigo 412.º, n.º 3, do CCP).71 O CCP veio codifi car as regras de reposição do equilíbrio fi nanceiro nos artigos 282.º e 314.º, os quais não são aplicáveis aos contratos de concessão existentes à data de entrada em vigor do CCP.72 Nas demais concessões analisadas o clausulado é idêntico ou varia em aspectos não substanciais.73 É de notar que as bases replicam, quase na íntegra, o clausulado do respectivo contrato de concessão.

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b) Ocorrência de casos de força maior nos termos da base LXXVI, excepto se, em resul-tado dos mesmos, se verifi car a resolução do Contrato de Concessão nos termos do número 7 daquela base;

c) Alterações legislativas de carácter específi co, que tenham um impacte signifi cativo e directo sobre as receitas ou custos respeitantes às actividades integradas na Concessão;

d) Casos em que o direito de aceder à reposição do equilíbrio fi nanceiro é expressamente previsto nas presentes bases.”

2 – As alterações à lei geral, designadamente à lei fi scal e à lei ambiental, fi cam expressamente excluídas da previsão da alínea c) do número anterior. (…)”

Da leitura conjugada das bases supra referidas decorre que (i) a base LXXXV identifi ca riscos cuja responsabilidade recai sobre o Concedente e (ii) da ocor-rência de factos abrangidos por esses riscos pode resultar, na esfera jurídica da Concessionária, o direito à reposição do equilíbrio fi nanceiro, designadamente se todas as condições a que tal direito se encontra sujeito se verifi carem.

É relevante sublinhar que a reposição do equilíbrio fi nanceiro da concessão apenas deverá ter lugar na medida em que, como consequência do impacto indi-vidual ou cumulativo dos eventos elegíveis, os critérios-chave acordados entre as partes refl ictam uma determinada variação (também fi xada contratualmente).

Os critérios-chave tipicamente considerados para este efeito são o Rácio de Cobertura Anual do Serviço da Dívida, o Rácio de Cobertura da Vida do Empréstimo e a Taxa Interna de Rentabilidade para os accionistas.

Como refere o Prof. António Martins74, no que se refere à rentabilidade accionista de um projecto desta natureza “a TIR accionista é de central importância pois ela resulta do confronto entre o fi nanciamento desembolsado e os cash fl ows que fl uem para os accionistas. Estes cash fl ows são residual claims, ou sejam fl uxos de caixa que apenas se recebem após a satisfação dos pagamentos contratualizados com todos os restantes fi nanciadores. Caso se verifi quem desvios desfavoráveis e sendo tais desvios – numa concessão – considerados contratualmente como atribuíveis ao concedente, eles implicarão a reposição da TIR previamente estimada.”

O processo de reposição do equilíbrio fi nanceiro segue as regras conven-cionadas pelas partes, as quais preveem uma fase negocial. Findo um deter-minado prazo sem que as partes cheguem a acordo sobre os termos em que a reposição do equilíbrio fi nanceiro deve ocorrer, a reposição terá lugar com referência ao Caso Base, sendo constituída pela reposição de dois dos três valo-res dos critérios-chave a que acima se aludiu.

74 Cfr. António Martins, “Project Finance e medidas de reequilíbrio fi nanceiro: uma nota analítica”, in Revista de contratos públicos, n.º 8 (Maio-Agosto 2013), p. 24.

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VI – Transferência de risco

10. Para fi nalizar a análise que nos propusemos realizar, importa abordar a questão dos mecanismos tradicionalmente utilizados nestes projectos para miti-gar o risco assumido pela sociedade veículo e, consequentemente, pelas entida-des fi nanciadoras do projecto.

Nos concursos públicos que visam a atribuição de concessões, um dos cri-térios de avaliação das propostas respeita à capacidade da Concessionária na absorção e gestão dos riscos do projecto. Neste âmbito é avaliada a forma como as Concessionárias são (em maior ou menor grau) resguardadas dos riscos ine-rentes às actividades concessionadas. Esta análise é feita com base na forma como cada uma das partes envolvidas no desenvolvimento dessas actividades assume os riscos e a respectiva partilha em cada uma das fases do empreendi-mento. Esta arquitectura deve estar devidamente codifi cada nos contratos que dão corpo ao projecto.

Existem vários riscos que a Concessionária pode transferir, através dos con-tratos de projecto, a outras partes intervenientes (designadamente à entidade construtora e à operadora) ou a outras entidades fi nanceiras ou seguradoras.

10.1. O “back-to-back”

Existe “back-to-back” quando as condições e consequências resultantes da execução, cumprimento ou incumprimento do contrato de concessão se encontram refl ectidas, em termos idênticos, nos contratos de projecto, designa-damente no contrato de empreitada para a concepção, projecto e construção da infra-estrutura e/ou no contrato de O&M. Dito de outra forma, as partes nos referidos contratos de projecto fazem espelhar neles as condições contratuais que, para uma determinada matéria, estão previstas no contrato de concessão.

Assim, através do “back-to-back” opera-se a transferência para a entidade construtora/operadora de riscos da Concessionária perante o Concedente (ex. riscos relativos à obtenção de licenças, aos custos expropriativos, ao preço e prazo75 de construção, à responsabilidade pelo projecto e execução das obra, o risco ambiental, o arqueológico e os riscos referentes às actividades de conser-vação e manutenção das infra-estruturas).

75 Através de aplicação de multas por atrasos.

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Neste contexto, a entidade construtora/operadora assume contratualmente (em parte ou na totalidade) obrigações76, riscos e responsabilidades previstos para a Concessionária no Contrato de Concessão e que se relacionem com o objecto do Contrato de Projecto.

Como forma de salvaguarda das entidades construtora/operadora, estas terão, perante a Concessionária, o direito às compensações ou indemnizações que esta possa reclamar perante o Concedente, por factos que decorram da execução dos repectivos contratos.

Tratando-se de um “back-to-back” integral, as partes convencionam que o direito a tais compensações77 ou indemnizações apenas existe se, quando e na medida (“if and when”) em que a Concessionária aos mesmos tenha direito, ao abrigo do Contrato de Concessão.

10.2. Cobertura por seguros

Tanto os contratos de concessão como os contratos de fi nanciamento obri-gam à contratação, e à manutenção em vigor, das apólices de seguro necessárias para garantir uma efectiva e compreensiva cobertura dos riscos inerentes ao desenvolvimento das actividades integradas na Concessão.

Assim, a Concessionária terá que observar o programa de seguros acor-dado no âmbito do projecto, o qual habitualmente abrange os seguintes seguros (além de outros legalmente obrigatórios):

• CAR (Construction All Risks) – incide sobre as infra-estruturas a construir e visa cobrir danos à obra (contratado na fase de construção);

• Danos materiais e perdas de exploração (fase de exploração);• Responsabilidade civil extra-contratual por danos a terceiros.

10.3. Os Hedging Agreements

“Hedging is the protection of a borrower from adverse movements in currency exchange rates, interest rates and commodity prices”78.

76 Um exemplo simples é a obrigação de ressarcir a Concessionária do valor de multas por atrasos na conclusão da empreitada que lhe venham a ser aplicadas pelo Concedente.77 Designadamente compensações devidas pelo Concedente à Concessionária por alterações aos projectos/obras (i.e. “trabalhos a mais”/“variations”) que, nos termos convencionados pelos mes-mos, possam dar lugar à reposição do equilíbrio fi nanceiro.78 Graham Vinter, in “Project Finance – A Legal Guide”, Second Edition, London, Sweet & Max-well, 1998, Section 5.7 , p. 127.

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O recurso a mecanismos de “hedging” permite a cobertura da exposição ao risco de variação da taxa de juros (ex. alteração do indexante) e, quando exis-tente, ao risco cambial, sendo utilizados, para o efeito, instrumentos fi nanceiros derivados, cujo paradigma é o contrato de swap.

11. Que riscos são assumidos pelos fi nanciadores?

Podemos retirar da descrição (necessariamente sumária) acima feita sobre a complexa estrutura do Project Finance que, não obstante existam muitas maté-rias tratadas de forma tendencialmente harmonizada nas várias operações por nós consideradas, cada projecto tem um conjunto de características próprias e irrepetíveis, implicando uma trabalho “tailor made” para cada um deles.

De uma maneira geral, no longo e difícil processo negocial que antecede o “fi nancial closing” de uma operação desta natureza, as instituições fi nanceiras posicionam-se no sentido de evitar a assunção de riscos específi cos do projecto.

A fase prévia de análise e de “due diligence” destina-se, justamente, para que os bancos, com o auxílio dos seus “advisors”, façam uma “radiografi a” integral às várias vertentes que têm associado um risco, sendo que ao nível negocial, recorrem sistematicamente aos instrumentos contratuais para reduzir ao máximo a sua exposição (directa ou indirecta) aos mesmos.

Recorrendo ao ensinamento de Fabozzi e Nahilik, “there are certain tran-saction risks which lenders may feel comfortable in assuming in some instances. Such exposure is usually in the form of providing additional fi nancing in certain circumstances. Such exposure may also carry a higher cost to the borrower.”79

Os citados autores referem o “country risk” (refl ectido nos constrangimentos à exportação de fundos para fazer face ao serviço da dívida) e o chamado risco político (que, em termo práticos, pode conduzir a uma situação de expro-priação), como sendo aqueles que as instituições fi nanceiras, em casos limite, admitem partilhar.

A nossa experiência dita que, não obstante as vicissitudes próprias de cada operação, as instituições fi nanceiras recorrem a múltiplos mecanismos e instru-mentos para se assegurarem que, no fi nal do dia, recuperam os seus créditos, cobram a respectiva remuneração e comissões. Certo é que correcta e efi caz gestão das várias actividades inerentes ao empreendimento e a boa “saúde” das que fazem gerar as receitas acabam por ser, indubitavelmente, factores determi-nantes para o sucesso de um project fi nancing.

79 Frank J. Fabozzi & Carmel F. de Nahlik, in “Project Financing“, Eighth Edition, Euromoney Books, 2012, p. 58.

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Financiamento Societário, Covenants e Responsabilidade dos Credores – Qual o papel da Teoria da Agência aplicada aos Covenants na responsabilidade dos Credores-Financiadores?

DR. DIOGO COELHO* 1

Sumário: Introdução. Covenants. Lealdade no Direito das Sociedades. Possíveis soluções de responsabilização do credor fi nanciador pelos comportamentos abusivos. Posição adoptada.

Introdução

“There is no easier way for a company to escape the burden of a debt than to pay out all of its assets in the form of a dividend, and leave the creditors holding an empty shell”

black (1976)

Neste artigo visaremos, sobretudo, estudar uma das matérias que mais importância tem para a corporate fi nance e que maior complexidade reveste, sobretudo devido à circunstância de ser um tema de intersecção clara e pro-funda dos conhecimentos de corporate governance e corporate fi nance.

Pretendemos explorar a teoria da agência aplicada aos covenants, bem como o regime destes últimos e a que título deverão ser responsabilizados os credores que os exijam, caso criem danos à sociedade fi nanciada.

1 Este trabalho foi realizado pelo autor no decorrer do 4.º ano do Curso de Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

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De facto, como refere Ana Perestrelo de Oliveira, para o estudo da corpo-rate fi nance tem especial interesse o tema dos possíveis confl itos entre os inte-resses dos insiders face aos interesses dos outsiders1, na medida em que os outsiders têm claras assimetrias informativas face aos insiders, sendo que estes dispõem de informação privada sobre assuntos exógenos na altura da contratação e não dispõem de meios para monitorizarem comportamentos potencialmente capa-zes de afectar o respectivo investimento. Deve reconhecer-se, como aconselha a citada autora, que os insiders não agem, necessariamente, no melhor interesse dos investidores2-3-4. Simplesmente, os credores antecipam tais comportamen-

1 Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Corporate Finance, Almedina, 2015, pp. 19-20.2 Ana Perestrelo de Oliveira, Manual …, p. 20. Avança a autora que o incentivo dos insiders para actuar em desconformidade com os interesses dos fi nanciadores pode advir de diversos fac-tores: esforço insufi ciente (os administradores, muitas vezes, não se empenham satisfatoriamente na redução de custos, além de que, não raro, estão envolvidos em múltiplas actividades, que não permitem que se dediquem às actividades para que foram designados), investimentos excessivos (em detrimento dos accionistas), estratégias de perpetuação no cargo (exemplo disso é a utiliza-ção, pelos administradores, de manipulação de resultados, utilização de contabilidade criativa, a assunção de riscos excessivos para procurar a recuperação da empresa a todo o custo, a resistência a tomadas de controlo que poderiam ser benéfi cas, etc.) e a procura de benefícios privados (isto é, de vantagens que não são partilhadas pelos accionistas, o que se traduz, no fundo, no desvio indirecto de bens societários em favor dos administradores).3 Quanto à teoria da agência, Paulo Câmara, refere que esta apresenta maior relevo heurístico que hermenêutico, mostrando-se a teoria operante na detecção de situações em que o confl ito de interesses apresenta probabilidade intensa, mas a valia aplicativa para a concreta descoberta de soluções aplicativas dos problemas de agência revela-se, afi nal, limitada; ver: Paulo Câmara, “Confl ito de Interesses no Direito Financeiro e Societário: Um Retrato Anatómico”, in Confl ito de Interesses no Direito Societário e Financeiro: Um Balanço a partir da Crise Financeira, Almedina, 2010, p. 39. O autor considera que para haver um verdadeiro confl ito de interesses se torna necessário existir relevo material, no sentido da existência de dano para uma das partes que seja provocado pela situação de confl ito. Ora, nos nossos casos, como veremos adiante, se pode ser verdadeira a asserção de que poderão existir danos, não deixa de ser menos verdade que os “danos alternati-vos” poderão ser bastante superiores.4 João Sousa Gião, “Confl itos de Interesses entre Administradores e os Accionistas na Sociedade Anónima: Os Negócios com a Sociedade e a Remuneração dos Administradores”, in Confl ito de Interesses no Direito Societário e Financeiro: Um Balanço a partir da Crise Financeira, Almedina, 2010, pp. 223-227. Defende o autor que, por via de regra, fala-se de risco moral quando, no decorrer de uma relação contratual duradoura, uma das partes, abusando da sua vantagem informativa, não cumpre ou cumpre defeituosamente, a sua prestação, confi ando que as assimetrias informativas verifi cadas difi cultem a detecção do seu incumprimento. Ora, como realça o autor, entramos no problema de agência quando a obrigação assumida pela parte que benefi cia da vantagem infor-mativa consista na defesa dos interesses da contraparte, que lhe terá sido confi ada. O comitente só conseguirá contrariar esta situação se optar por suportar os custos adicionais de implementação de mecanismos de controlo. Quanto à teoria da agência mais estreitamente ligada à corporate gover-nance, importa notar, com João Cunha Vaz, A Regra de Não Frustração da OPA e a Aquisição do

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tos oportunísticos por parte dos administradores, atribuindo um preço à dívida em conformidade (ou seja os credores, nas suas decisões respeitantes ao crédito, consideram e calculam esta possibilidade), sendo que os accionistas pagam ex ante (quando a dívida é emitida) qualquer expropriação levada a cabo ex post. Na medida em que os accionistas suportam os custos de agência da dívida, têm incentivos para minimizar os custos do fi nanciamento, acordando nas restrições típicas dos covenants.5

Segundo Jensen e Meckling, se ambas as partes dum contrato de fi nancia-mento actuarem com racionalidade económica, existem boas razões para acre-ditar que o agente não irá actuar sempre no interesse do principal, sendo que o principal pode limitar estas situações, estabelecendo incentivos apropriados para o agente e incorrendo em custos de monitorização de forma a limitar a actuação do agente que tenha potencialidade para o prejudicar6. Avançam ainda os autores que, de qualquer das formas, é, em princípio, impossível para o prin-

Controlo, Dissertação de Doutoramento (não publicada; disponível na Internet), Coimbra, 2011, p. 41, que da separação entre propriedade e controlo resulta que os gestores dispõem de muito mais informação que qualquer accionista, o que por sua vez, tem como consequência os deno-minados custos de agência: os custos de monitorização suportados pelo principal para controlar//fi scalizar o agente; os custos realizados pelo agente para assegurar ao principal que a gestão se subordinará aos seus interesses, ou seja, que este não actuará de forma prejudicial e que, se assim for, terá de compensá-lo; e os custos residuais decorrentes das decisões contrárias aos interesses dos principais que não puderem ser evitadas na sua totalidade, isto é, que resultem da diferença entre a decisão tomada pelo agente e aquela que seria maximizadora do bem-estar do principal. Na verdade, devido à assimetria informativa, o principal é incapaz de assegurar que aquele cum-pre integralmente a prestação a que se obrigou, excepto se decidir suportar os custos adicionais de uma implementação de mecanismos de controlo. O autor relembra, contudo, as vantagens da separação entre capital e controlo: se, por um lado, permite aos accionistas participarem nos lucros da actividade da sociedade sem despenderem tempo com a gestão e sem terem aptidão para tal, por outro, permite que profi ssionais da gestão possam concretizar projectos viáveis; permite ainda a repartição dos riscos inerentes à actividade empresarial, permitindo o desenvolvimento dos mercados de capitais e a consequente repartição dos custos de fi nanciamento. Por seu turno, Francisco Pinto da Silva, “A infl uência dos credores bancários na administração das sociedades comerciais e a sua responsabilidade”, in Direito das Sociedades em Revista, Outubro, 2014, ano 6, Vol. 12, Semestral, p. 232, relembra que quando se cava o fosso entre quem investe, seja em capi-tal próprio, seja em capital alheio, e quem gere ou controla a sociedade, a assimetria informativa aumenta, levando não só a custos de monitorização, mas também de ligação, que correspondem aos incentivos que são dados aos próprios administradores para reduzirem os custos de agência e ocorrerão ainda, e provavelmente, perdas residuais resultantes da actuação da administração que, apesar de cobertos os restantes riscos, for contrária aos interesses dos investidores.5 Ana Perestrelo de Oliveira, “Os credores e o governo societário: deveres de lealdade para os credores controladores?”, in Revista de Direito das Sociedades, n.º 1, Almedina, 2009, p. 105.6 Jensen e Meckling, “Theory of fi rm: managerial behavior, agency costs and ownership struc-ture”, in Journal of Financial Economics, vol. 3, n.º 4, p. 5. Disponível em www.ssrn.com

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cipal e para o agente não terem custos para assegurar que o agente vai tomar as decisões óptimas do ponto de vista do principal, ou seja, ambos vão incorrer em custos positivos com monitorização, e existirão, ainda assim, divergências entre as decisões do agente e aquelas decisões que maximizariam o “bem-estar” do principal7.

É nesta sequência de raciocínio que surgiu a teoria do fi nancial contracting, enquanto concepção de um esquema de incentivos para os insiders que melhor alinhe os interesses destes com os dos outsiders8, que podem revestir diversas formas, entre as quais, a da monitorização através de covenants. De tal forma assim é que se tem reconhecido que a distinção entre fi nanciamento interno e fi nanciamento externo já não é tão profunda em resultado das amplas possibili-dades de infl uência que, em virtude dos contratos celebrados, o credor adquire sobre a sociedade9. Assim sendo, importa atender não apenas ao controlo sobre a sociedade adquirido através do capital da própria sociedade (controlo accio-nista), mas também ao controlo que pode surgir através da aquisição da respec-tiva dívida.

Covenants

Desde logo, importa atentar nas diferenças entre credor e sócio. Com Fran-cisco Pinto da Silva poder-se-á dizer que aquele, para além de não ter parti-cipação orgânica como têm os sócios, a sua remuneração é fi xa, ao contrário do que sucede com a posição de sócio, cuja posição faz com que esteja sujeito ao risco da actividade da empresa e é o último a receber o seu investimento em caso de liquidação10. Assim sendo, é natural que ocorram confl itos. Repa-

7 Jensen e Meckling, “Theory of fi rm …”, p. 6.8 Ana Perestrelo de Oliveira, Manual, …, p. 21. É neste contexto que a autora realça a ideia de que os fi nanciadores clássicos, que adoptavam uma postura eminentemente passiva, são, agora, substituídos pelos novos credores que, mesmo que desligados da gestão corrente, podem nela interferir, determinando mudanças nos órgãos de gestão, alterações na estratégia de investimento, entre diversas outras medidas. 9 Ana Perestrelo de Oliveira, Manual …, pp. 24-25. Esta situação é mais usual, como denota a própria autora, nos casos de leveraged fi nance, ou seja, de fi nanciamento com fundos superiores aos considerados normais para a sociedade, gerando uma dívida também superior e implicando um risco elevado, com custos acrescidos. É mais do que evidente que este potencial poder que a dívida de alto risco concede tem bastantes virtualidades. A sociedade precisa de dinheiro, o que cria um universo de oportunidades para o investidor, que encontra nos pedidos de fi nanciamento adicional amplas oportunidades para tomar o controlo de sociedade.10 Francisco Pinto da Silva, “A infl uência dos credores bancários …”, p. 234-235.

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re-se que aos credores, a quem apenas importa a solvabilidade da sociedade, na medida em que a sua remuneração é fi xa, serão mais avessos ao risco do que os accionistas, cuja remuneração varia na medida do valor da empresa, sendo que, por isso mesmo, num momento fi nanceiro complicado, os accionistas terão mais incentivos para tomar decisões de investimento mais arriscadas, uma vez que terão pouco mais a perder em caso de fracasso, mas muito a ganhar em caso de sucesso, colhendo todos os proveitos daí resultantes; já para os credores os resultados elevados que daí possam resultar são indiferentes, na medida em que a sua remuneração é fi xa, enquanto o insucesso dessa decisão representará a perda de parte ou da totalidade do seu investimento11. Percebe-se, desta forma a necessidade de protecção dos credores, sendo uma das vias possíveis a aposição de covenants12.

Note-se que, seguindo a concepção de Joana Pereira Dias, os covenants, ou mais amplamente, as cláusulas de garantia e segurança, ao contrário das tradicio-nais garantias pessoais ou reais que actuam como garantias como um meio ou como objecto de satisfação, este tipo de cláusulas, pelo contrário, integram, ainda assim, a noção ampla de garantia na medida em que funcionam como meios de pressão, porque a satisfação do credor carece da colaboração do devedor13.

Pela importância que a posição recíproca das partes neste tipo de estrutura contratual reveste, cabe referir que na maior parte dos casos os denominados covenants, objecto do presente estudo, apesar de poderem ser celebrados com qualquer credor, por regra, são celebrados com os designados “credores for-tes”14, nomeadamente as instituições de crédito.

11 Francisco Pinto da Silva, “A infl uência dos credores bancários …”, p. 235. Para além de aos credores em nada benefi ciar a distribuição de bens aos accionistas.12 Note-se, contudo, que isto poderá ter como consequência um risco de desaproveitamento de boas oportunidades de valorização da empresa ou mesmo de desvalorização, em dissonância com o interesse dos accionistas em maximizar os seus lucros. 13 Joana Pereira Dias, “Contributo para o estudo dos actuais paradigmas das clausulas de garan-tia e/ou segurança: a pari passu, a negative pledge e a cross default”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, Vol. IV, Novos Estudos de Direito Privado, Almedina, 2003, pp. 1019-1020. Isto é, funcionam, como defende a autora, como importante meio de pres-são para compelir ao seu cumprimento, e isto, sobretudo, pelas gravosas consequências que para o devedor resultam da sua violação, maxime, com a possibilidade de exigibilidade antecipada ou de vencimento imediato, consoante os casos, reforçando-se a tutela do credor. Nisto consiste o seu “plus”. Visa-se, mais do que garantir o cumprimento, prevenir, isso sim, a insolvência do devedor. 14 A doutrina propõe designações diversas, distinguindo, nomeadamente, entre: i) credores fortes, cujos créditos provêm de responsabilidade contratual, e fracos, cujos créditos têm origem no insti-tuto da responsabilidade delitual; e ii) adjusting e non-adjusting creditors, incluindo nos segundos os credores que não alteram, de acordo com o risco inerente ao devedor, os termos nos quais con-cedem crédito. O mais adequado parece ser adoptar o critério de distinção entre credores fortes e

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Poder-se-á começar por referir que o fi nanciamento externo ocorre por contrapartida de uma remuneração fi xa, esperada em determinado momento. Ora, como é facilmente perceptível, este tipo de fi nanciamento tem inerente o risco de crédito, o qual decorre da possibilidade da sociedade fi nanciada se tornar incapaz de fazer face às responsabilidades assumidas, no momento da maturidade das mesmas. Tal circunstância poderá ocorrer, não apenas pela pos-sível ineptidão dos “donos” da sociedade de criar riqueza, mas também pelos confl itos de interesses que estão inerentes à relação entre aqueles e os credores da sociedade15. Importa, por outro lado, referir que quando aumenta o risco de crédito, tal tem como consequência a diminuição do valor do activo, uma vez que se torna necessário, para a entidade credora, constituir provisões, impli-cando tal situação uma perda do valor para o fi nanciador, uma vez que a valia do seu activo diminui pelo facto de o risco que lhe está subjacente aumentar e a remuneração deixar de ser sufi ciente para o compensar. Outro factor, tal como já foi acima referido, é o de a empresa fi nanciada aumentar o risco dos seus investimentos, com a angariação de nova dívida ou com cláusulas apostas aos novos contratos de fi nanciamento. Repare-se, que como nota Illen Malitz, a posição dos credores é tanto mais vantajosa quanto menor o risco que lhe estiver subjacente, uma vez que a sua remuneração é fi xa, não variando em fun-ção dos resultados da empresa, e que um maior risco do investimento implica o aumento do risco do crédito16. Quanto à contracção de dívida, os resultados

fracos que resulta quer do montante do crédito, quer das garantias que cada um detém. Ver, por todos, Maria Fátima Ribeiro, A Tutela dos Credores da Sociedade por Quotas e a Desconsideração da Personalidade Jurídica, Teses, Almedina, Coimbra, 2009, p. 169, nota n.º 152; e Susana Azevedo Duarte, “A responsabilidade dos credores fortes na proximidade da insolvência da empresa: a celebração de acordos extrajudiciais e a tutela dos credores fracos”, in Questões de Tutela de Credores e de Sócios das Sociedades Comerciais, Almedina, 2013, p. 187.15 George Triantis e Ronald Daniels, “The Role of Debt in Interactive Corporate Gover-nance”, in University of California Law Review, Vol. 83, 1995, p. 1077-1080 (acesso através do site www.ssrm.com).16 Illen Malitz, The Modern Role of Bond Covenants, The Research Foundation of the Institute of Charteder Financial Analysts, pp. 4-9. O autor refere de forma mais pormenorizada que os accionistas da empresa terão, em teoria, um maior interesse do que os credores em que a empresa invista em projectos mais arriscados, de modo a que os resultados gerados com os mesmos per-mitam que a sua própria remuneração seja mais elevada, depois de satisfeitos os direitos dos cre-dores da empresa, sendo que, à medida que a empresa se aproxima da insolvência, este confl ito de interesses assume contornos mais gravosos, pois, como resultado da realização de investimentos arriscados, a empresa poderá ter ganhos sufi cientes para se reabilitar e os accionistas poderão vol-tar a ver as suas participações valorizadas e lucros distribuídos e, em caso de perdas, os accionistas não perderão mais do que perderiam em caso de insolvência, pois a sua responsabilidade é limi-tada. Por outro lado, os credores poderão ver a sua expectativa de reaver, parcial ou totalmente,

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gerados pela empresa alvo de fi nanciamento deixarão de servir apenas para reembolsar o credor originário, passando a satisfazer ainda o direito de crédito inerente à dívida angariada, sendo que as repercussões de tal facto são ainda maiores caso a nova dívida tenha um menor grau de subordinação ou mais garantias reais, obrigando a empresa fi nanciada a reembolsar o capital ao novo credor antes de o fazer em relação ao credor originário17. Foram estes factos18 que fi zeram com que se começasse a sentir a necessidade de estipular covenants anexos aos contratos de fi nanciamento, criando, não só, obrigações de prestação de contas, de reporte de informação e inibição de certos comportamentos, mas também o direito de resolução do contrato ou de vencimento antecipado da obrigação de pagamento de capital e juros, em caso de incumprimento de tais obrigações.

Outra situação que poderá criar um confl ito de interesses é a possibili-dade de os credores serem detentores não só de divida, mas também de outras posições em relação à empresa fi nanciada como credit default swaps ou equity short sales, surgindo, de tal forma, interesses contraditórios dentro das posições do mesmo credor face a um mesmo devedor19. Ora, tal circunstância aliada às faculdades conferidas por uma situação de incumprimento e a consequente ameaça de resolução do contrato ou de exigência de vencimento antecipado da obrigação de pagamento, poderá criar situações de perigo para a sociedade fi nanciada, que poderá ver o respectivo credor destruir-lhe valor e levá-la, em ultima instância, à insolvência.

os montantes investidos frustrada, por as perdas com tal investimento deteriorarem ainda mais o valor da empresa.17 Jensen e Meckling, “Theory of fi rm: …”, p. 345-347. Os autores referem que apesar da anga-riação de nova dívida ser prejudicial para os credores, os accionistas e administradores da empresa poderão ser incentivados a fazê-lo por existirem oportunidades de investimento em projectos com um Net Present Value positivo e estes necessitarem de fi nanciamento, além de que tal aumentará os seus resultados, o que implica, à partida, uma maior distribuição de dividendos ou um aumento do valor das participações dos accionistas. Por fi m, o investimento através de capital alheio será mais vantajoso para os accionistas, na medida em que estes não terão que efectuar entradas de capital adicionais. 18 Joana Pereira Dias, “Contributo …”, p. 886, defende ainda que também é motivo da exis-tência deste tipo de cláusulas a tentativa de superação das difi culdades práticas resultantes da plu-rilocalização dos negócios internacionais e o problema, inerente, da lei aplicável. Avança ainda a circunstância de, com este tipo de cláusulas, se visar fl exibilizar o peso do formalismo inerente às tradicionais garantias de cumprimento e sua onerosidade. Além de poder nem sequer existir um terceiro interessado em constituir uma garantia real a favor da entidade que pretende fi nanciar-se.19 Jonathan Lipson, Controlling Creditor Opportunim, 2010, disponível em http://works. bepress.com/Jonathan_lipson/, pp. 21-22.

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De forma sintética, Bradley e Roberts identifi cam cinco fontes de confl itos entre os accionistas/administradores e os credores fi nanciadores: (i) distribui-ção de dividendos, na medida em que, se é atribuído um valor às obrigações assumindo que a empresa vai manter a sua política de dividendos, o seu valor reduz-se devido à inesperada distribuição dos mesmos (ou, então, por redução do investimento ou pela venda de dívida); (ii) constituição de novas garantias: se às obrigações é atribuído um preço assumindo que dívida da mesma prioridade ou superioridade não vai ser gerada, o valor das garantias dos credores fi nancia-dores vai reduzir-se pelo facto de tal dívida ter sido contraída; (iii) substituição de activos: o valor do capital próprio dos accionistas aumenta e o valor das garantias dos credores fi nanciadores diminuem quando a empresa substitui pro-jectos de alto risco por projectos de baixo-risco; (iv) subinvestimento: quando uma porção substancial do valor da empresa é composto por oportunidades de investimento futuro, uma empresa com obrigações de risco pendentes pode ter incentivos para rejeitar projectos com valor líquido presente positivo, se o benefício em aceitar tais projectos aumenta o valor dos credores fi nanciadores; (v) investimento excessivo: retenção de fl uxos de caixa para fi nanciar projectos com um valor presente líquido negativo20-21.

20 Também a este propósito, Ross, Westerfiel e Jaffe referem que, nomeadamente quando a empresa endividada recebe um empréstimo, podem ocorrer incentivos para assumir riscos eleva-dos, sendo motivadas a optar por projectos com maior potencial de lucros, mesmo quando a esses projectos esteja associado um maior risco pois, na medida em que a remuneração dos credores é pré-fi xada, caso o projecto seja bem-sucedido, a maior parte dos lucros reverterá a favor dos accionistas e, caso fosse mal sucedido, tendo como consequência a insolvência da empresa, seriam os credores a assumir esse risco, já que uma parte substancial do dinheiro investido na empresa era proveniente dos credores. Apontam ainda o eventual problema do sub-investimento quando os accionistas da empresa com um alto nível de endividamento se apercebem que a realização de bons projectos de investimento acaba por benefi ciar os credores, uma vez que os retornos aca-barão por ser capturados principalmente pelos credores, sob a forma de pagamento de juros de dívida. Mencionam ainda a já referida estratégia de “esvaziamento da propriedade”, através do pagamento de dividendos extraordinários ou outro tipo de distribuições em situações de difi cul-dade fi nanceira, deixando menos activos na empresa para os credores. Realçam, contudo, que os investidores tendem também a, previamente à decisão de investir/não investir, avaliar a reputa-ção da empresa e dos seus administradores, o seu histórico de pagamentos, sendo tais custos de avaliação da empresa target computados no valor do juro que esta deverá remunerar ao investi-dor externo; ver: Ross, Westerfiel e Jaffe, Corporate Finance, 10th edition, pp. 347-349. Fran-cisco Pinto da Silva, “A infl uência dos credores bancários …”, pp. 235-236, nota de rodapé 16. Também este autor enumera os seguintes riscos: (i) diluição do crédito, pela contracção ulterior de empréstimos por parte da sociedade devedora; (ii) alienação de activos ou a sua transferência para os accionistas, com prejuízo da garantia dos credores; (iii) sub-investimento, nos casos em que a situação líquida da sociedade é negativa e os accionistas não têm, por isso, incentivo para aproveitar oportunidades de investimento cujo retorno potencial não seja sufi ciente para tornar

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21 Estas são as razões pelas quais Jensen e Meckling defendem que, na medida em que os interesses dos accionistas costumam prevalecer na estrutura socie-tária, e que os interesses dos credores serão, normalmente, contrários aos dos accionistas, a empresa acaba por se transformar num palco em que se encontram interesses contraditórios22.

Os covenants surgiram como tentativa de resolução destes problemas23, quer de protecção do credor (em especial dos designados credores “fortes”), quer facilitando, por essa mesma razão, o acesso ao crédito por parte das sociedades fi nanciadas, com uma remuneração menos onerosa24.

positiva a situação líquida da sociedade e reverta, assim, exclusivamente, para os credores; e (iv) substituição de activos e investimentos de risco: a aplicação de proveitos resultantes da alienação de activos em investimentos arriscados. Por seu turno Paulo Câmara, “O regime jurídico das obrigações e a protecção dos credores obrigacionistas”, in Direito dos Valores Mobiliários, Vol. IV, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, p. 325, realça a alteração da política de investimentos ou do objecto social, com maior risco para a sociedade ou deixando de realizar investimentos previstos, endividamento ulterior com garantias especiais sobre o património social e a política de distri-buição de dividendos. 21 Bradley e Roberts, “The structure and pricing of Corporate Debt Covenants”, 2004, pp. 4-5. Uma das formas que é apresentada para reverter parcialmente estes custos de agência é a de estipular dívida convertível, fazendo com que as actividades que aumentam o risco façam aumen-tar, por essa via, o valor da opção de conversão e isto teria como consequência a diminuição dos ganhos dos accionistas/administradores pelo facto de quando enveredam por projectos de alto risco transferirem parte dos ganhos para os convertíveis dos credores fi nanciadores, o que reduz os incentivos para serem escolhidos projectos de alto risco com valor liquido presente negativo. Ver: Jensen e Meckling, “Theory of fi rm …, pp. 30-32.22 Jensen e Meckling, “Theory of fi rm …, pp. 345-358.23 Abordando este problema adoptando uma outra perspectiva do mesmo, Susana Azevedo Duarte, “A responsabilidade dos credores fortes na proximidade da insolvência da empresa: a celebração de acordos extrajudiciais e a tutela dos credores fracos”, in Questões de Tutela de Credo-res e de Sócios das Sociedades Comerciais, Almedina, 2013, p. 192. Entende a autora que os acordos extrajudiciais ou informais visam obter a satisfação do crédito, sem que haja qualquer interven-ção do tribunal, procurando, assim, obstar à declaração de insolvência e garantir a continuidade da empresa, além de evitarem os comportamentos oportunistas dos gerentes/administradores da insolvente. Consubstanciam, ainda, um processo mais célere e menos dispendioso e que, para além disso, evita que a sociedade seja catalogada, perante o mercado, como estando insolvente, o que acarretaria a sua desvalorização e poderia comprometer a sua possibilidade de recuperação24 Importa, no entanto, não esquecer a advertência feita por Jensen e Meckling, “Theory of fi rm: …”, pp. 45-46. Estes autores referem que para que possam proteger os credores, os covenants deveriam ser incrivelmente detalhados e cobrir a maioria dos aspectos da empresa. Contudo, os custos envolvidos na elaboração de tais covenants, de os fazer cumprir e a reduzida rentabilidade (esta última, na medida em que ocasionalmente, os mesmos limitam a margem de manobra dos administradores para tomar opções óptimas quanto a certas questões), não são custos a que pos-samos chamar de “normais”. De facto, na medida em que a gestão é um processo contínuo de tomada de decisões, torna-se quase impossível especifi car completamente todas as condições sem

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Existem diversos tipos de convenants25, a saber26: (i) cláusulas relativas ao fornecimento de informação, que exigem ao devedor a entrega de cópias dos documentos de prestação de contas e outros documentos relevantes para a monitorização da actividade da sociedade, bem como a comunicação de even-tos relevantes; (ii) cláusulas tendentes a garantir a solvência da sociedade, maxime garantindo que esta é capaz de pagar imediatamente a dívida, o que implica que os bens excedam, razoavelmente, as responsabilidades e que exista solvência também em sentido contabilístico; (iii) cláusulas que proíbem a distribuição de bens sociais; (iv) cláusulas que visam preservar a identidade da sociedade deve-dora durante a vigência do empréstimo; (v) cláusulas que proíbem a alteração da estrutura da propriedade da empresa e, bem assim, no caso de recuperação informal da empresa, cláusulas que determinam modifi cações ao nível do órgão de gestão; (vi) cláusulas que impedem a constituição de novas garantias; fi nal-mente (vii) cláusulas que implicam o vencimento da obrigação em caso de incumprimento, incluindo este o não pagamento da dívida ou a violação de outra obrigação contratualmente estabelecida com o credor, valorando-se fre-quentemente também comportamentos das fi liais, no caso da sociedade deve-dora ser uma holding27.

Do ponto de vista empírico, verifi ca-se, após análise do estudo de Bradley e Roberts, que existe uma relação negativa entre a saúde fi nanceira da sociedade e a presença de covenants nos contratos de empréstimo, sendo que quanto pior é a sua situação fi nanceira mais provável será encontrarmos covenants neste tipo de acordos, além de que, quanto menor a dimensão da sociedade e quanto mais elevado o rácio de alavancagem, maior a probabilidade de encontrarmos este tipo de cláusulas contratuais28. Por outro lado, sociedades com maior probabi-lidade de entrarem em insolvência, com menos activos ou menos dinheiro em

que os credores fi nanciadores acabem, na verdade, por exercer funções de gestão. Se bem que, os autores citados acabam por admitir que, na verdade, os credores acabam por não incorrer em tais custos, pois eles são considerados aquando da negociação do preço da dívida, em especial, dos juros. 25 Que poderão ser positivos (obrigar a empresa a praticar determinados actos), ou negativos (obri-gando-a a abster-se da prática de determinados actos).26 Enumeração fornecida por Ana Perestrelo de Oliveira, “Os credores …” pp. 103-104.27 Como refere Ana Perestrelo de Oliveira, “ Os credores …”, p. 104, por vezes atribui-se relevância a situações de incumprimento cruzado, surgindo, assim, hipóteses em que o incum-primento de outras obrigações fi nanceiras da sociedade (perante terceiros) permite considerar que houve incumprimento do covenant (cláusula cross-default). Cabe apenas referir, pela importân-cia que este último tipo de cláusulas tem para o nosso estudo, que o vencimento antecipado não é automático, pelo que, por regra, o credor poderá optar por exigir o pagamento antecipado ou exigir outro tipo de comportamentos por parte da sociedade alvo do fi nanciamento. 28 Bradley e Roberts, “The structure …”, 2004, pp. 15-16.

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caixa, estarão mais aptas ou predispostas a incluir covenants que restrinjam a distribuição de dividendos29.

Ora, o acesso à informação por parte do credor fi nanciador dá-lhe a possi-bilidade de, através da monitorização da empresa, aperceber-se dos incumpri-mentos por parte da sociedade fi nanciada. Perante um incumprimento, poderá ter dois tipos de reacção: ou exige o vencimento antecipado da obrigação ou, por outro lado e como será mais usual, porque também mais benéfi co, ameaça fazê-lo, como forma de interferir na tomada de decisões da empresa e, assim, extrair da situação condições mais vantajosas para a sua posição. Desta forma, a empresa fi nanciada, por norma, cederá, com medo do vencimento antecipado do pagamento, às exigências feitas pelo credor controlador. Até porque, além de poder não ter meios para satisfazer o vencimento antecipado da obrigação, a empresa fi nanciada fi cará prejudicada a nível de mercado devido ao facto de a existência de tal antecipação da obrigação poder levar a que seja emitido um aviso para o mercado, podendo até levar a que os restantes credores exijam, tam-bém, o vencimento antecipado das suas obrigações. Pode, ainda, ocorrer, após esse tipo de situações, que a empresa fi nanciada passe a ter mais difi culdade em fi nanciar-se no mercado30.

A verdade é que, como realça Daniel Fischel, neste tipo de situações, pode-rão ocorrer comportamentos oportunistas por parte do credor31, como é o

29 Bradley e Roberts, “The structure …”, 2004, p. 6. Estes autores realçam, ainda (p. 10) que os credores fi nanciadores racionais vão antecipar o potencial comportamento oportunista por parte dos administradores e atribuir ao preço da dívida o valor correspondente a esse preço, sendo que, quando os accionistas/administradores se apercebem disso vão ter incentivos para minimizar esses custos superiores, e uma maneira de o fazer é, de acordo com a teoria da agência aplicada aos covenants, a de apor covenants aos contratos de fi nanciamento, garantindo, de tal forma, ao credor fi nanciador que não irá ser expropriado dos seus interesses após a emissão da dívida. Con-sequentemente, o credor fi nanciador estará disposto a pagar mais por um contrato de empréstimo que inclua covenants, enquanto, pelo menos (para as sociedades fi nanciadas), os custos das restri-ções impostas pelos covenants forem menores que o aumento dos frutos da emissão de dívida. Os autores (pp. 17-18) referem, por último, que a predisposição de uma sociedade para enveredar por projectos de risco é especialmente grande quando a sociedade espera entrar em incumprimento quanto ao contrato de fi nanciamento, se não fi zer nada para o impedir, sentindo-se a sociedade induzida a enveredar por projectos com valor activo líquido presente negativo se o potencial de ganho/recompensa for grande o sufi ciente. Além do mais, serão, sobretudo, as sociedades peque-nas, muito endividadas, vulneráveis e com signifi cativas assimetrias informativas que incluirão, tendencialmente, mais covenants aquando da celebração de contratos de fi nanciamento. 30 É também imaginável um circunstancialismo em que, devido à especialidade da relação estabe-lecida entre empresa fi nanciada e credor, aquela se sinta desinteressada em obter um novo crédito junto a outro player no mercado. 31 Daniel Fischer, “The Economics of Lender Liability”, in Yale Law Journal, vol. 99, 1989, p. 135 (disponível em: www.ssrn.com). O autor defende o oportunismo como sendo aquele tipo

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caso da nomeação de um administrador, não para supervisionar o processo de decisão da empresa (como possivelmente acordado no covenant), mas sim para pressionar o conselho de administração e emitir instruções para este. Na ver-dade, neste tipo de situações apenas formalmente as decisões seriam da autoria do conselho de administração, na medida em que na prática quem tomaria essas mesmas decisões seria o credor fi nanciador. Neste tipo de situações, tal como se irá referir abaixo, existe o perigo (também apontado aos sócios controlado-res) de se desvirtuar a distribuição de competências dentro da sociedade, o que levará a que o credor, neste caso, tome decisões imputáveis á sociedade sem, contudo, estar vinculado ao seu fi m. Poder-se-á ainda conjecturar uma situação em que, tendo o credor uma carteira de investimentos heterogénea, poderá sen-tir-se motivado a controlar o poder de decisão da empresa alvo do empréstimo de forma a agravar a sua situação fi nanceira, alvejando a deterioração do valor do crédito, maximizando, por essa forma, a rentabilidade das suas outras posi-ções, nomeadamente no que concerne a instrumentos fi nanceiros derivados32. Iremos abordar o modo pelo qual deverá ser responsabilizado o credor fi nan-ciador neste tipo de situações na última parte deste estudo.

Lealdade no Direito das Sociedades

Quanto à lealdade, em geral, pode dizer-se, seguindo Menezes Cordeiro, que há lealdade na actuação de quem aja de acordo com uma bitola correcta e previsível, sendo que, perante uma pessoa leal, o interessado dispensa a sua confi ança33, ou seja, a relação de lealdade envolve uma relação de confi ança na qual, o pólo activo – aquele que suscita a confi ança – é, precisamente, o indi-viduo leal. O autor reconhece, contudo, que a lealdade tem menos potenciali-dade de aplicação nas sociedades anónimas, em especial, porque elas surgiram num ambiente pouco propício à confi ança interindividual, sendo que a própria designação destas sociedades vai, também, nesse sentido34. Neste contexto, Car-

de comportamentos que ocorrem sempre que uma parte pretende obter, às custa da outra, um benefício não contemplado pelo acordo inicial, explicita ou implicitamente, ou quando o cre-dor tenta renegociar para obter melhores termos e condições mas não tem fundamento para tal.32 George Triantis e Ronald Daniels, “The Role of Debt …”, pp. 1097-1098. Poder-se-á ainda pensar numa hipótese em que o credor, sendo-lhe mais vantajoso renegociar o empréstimo, nomeadamente quanto à taxa de juro, faça exigências sem fundamento, sendo tal exigência fruto da mera pressão face a uma empresa vulnerabilizada, implicando, tal situação, uma redução do valor da empresa e, de forma consequente, uma desvalorização dos restantes stakeholders.33 Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades I – Parte Geral, Almedina, 2011, p. 450. 34 Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades I – Parte Geral, Almedina, 2011, p. 454-455.

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neiro da Frada realça que sendo reconduzida a lealdade à boa-fé é exigido, para a aplicação da mesma, que entre os sujeitos exista uma relação especial, sendo que, fora desse contexto, a ordem jurídica somente exige dos membros a neces-sidade de adopção de uma conduta que não seja danosa para as posições alheias que ela protege35.

Além do mais, a lealdade dos sócios está intimamente ligada com o seu pró-prio status enquanto sócios, falando o último autor citado no “exercício de par-ticipações sociais de acordo com a boa-fé”36/37. Coutinho de Abreu acrescenta que nas sociedades comerciais justifi ca-se a existência de um dever de lealdade devido à natureza da sociedade enquanto instrumento para a consecução de determinado fi m ou a satisfação de interesses sociais, salvaguardando, contudo, que o dever é mais intenso nas sociedades de pessoas do que nas de capitais, devido à existência de uma maior autonomia nestas últimas38-39.

No que concerne à importância da boa-fé e, em especial, da lealdade no mundo das sociedades comerciais, surgiu uma interessante concepção da mesma, questionando os fundamentos clássicos e visão tradicional que se tinha do con-ceito, encabeçada por Cassiano Santos. O autor refere que o relevo da boa-fé, ou, ao menos, o seu relevo autónomo, está obviamente associado à relação de proximidade social entre os sujeitos, tendo-se transformado ou perdido a sua

35 Carneiro da Frada, Contrato e Deveres de Protecção, Coimbra, Separata do Boletim da Facul-dade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. 38, 1994, pp. 229-237. Em sentido, aparen-temente, contrário, José Ferreira Gomes, “Confl itos de Interesses entre Accionistas nos negó-cios celebrados entre a Sociedade Anónima e o seu Accionista Controlador”, in in Confl ito de Interesses no Direito Societário e Financeiro: Um Balanço a partir da Crise Financeira, Almedina, 2010, p. 136. Defende o autor que não é necessária uma relação de confi ança, considerando o anonimato accionista que está subjacente às sociedades anónimas, e o facto de não ser por isso que se deixa de aplicar o princípio da lealdade neste tipo de sociedades, salvaguardadas as devidas diferenças para as sociedades de pessoas. 36 Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades I –Parte Geral, Almedina, 2011, p. 469.37 José Ferreira Gomes, “Confl itos …”, in Confl ito de Interesses no Direito Societário e Financeiro: Um Balanço a partir da Crise Financeira, Almedina, 2010, p.129. Este autor também realça que o dever de lealdade decorre da participação social do sócio o que, nos casos por nós apresentados, não ocorre, na medida em que o credor fi nanciador não é detentor de uma participação social. Este ponto é da mais elementar importância para o nosso estudo. 38 Coutinho de Abreu, Curso …, p. 285.39 Pedro Pais de Vasconcelos, A Participação Social nas Sociedades Comerciais, Almedina, 2014, p. 313. Este autor tem, quanto a este aspecto, uma posição mais ecléctica, na medida em que con-sidera que o tipo de sociedade não tem mais do que uma natureza indiciária no que toca à impor-tância dos deveres de lealdade. Deve-se, na visão deste autor, ter em conta o tipo de sociedade, mas também, e sobretudo, o tipo de sócio em causa (se é controlador, maioritário, desinteressado, etc.).

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relevância na transição para a economia mercantil40-41. O autor entende que não faz sentido fundamentar algum dever de boa-fé do sócio na sua posição na estrutura da sociedade, dado que a relação entre os sócios não é directa, mas é, em menor ou maior medida, mediada pela estrutura societária42. Refere ainda que as correntes que defendem dever estar o sócio (em especial, o controla-dor) sujeito a deveres especiais de boa-fé pela potencialidade que a sua posição tem de causar danos à sociedade, estão baseadas numa matriz liberal que vê na sociedade uma espécie de mercado, nos sócios os concorrentes e na situação estável de domínio um monopólio susceptível de pôr em risco o livre jogo do concurso de vontades – no caso, a realização do interesse social. Contudo, na opinião do autor, subjacente está uma desconfi ança relativamente ao grande accionista, presumido suspeito de intentar a instrumentalização da sociedade em seu proveito, com prejuízo para os interesses dos demais sócios, ao contrário do

40 Cassiano Santos, Estrutura Associativa e Participação Societária Capitalística – Contrato de Sociedade, Estrutura Societária e Participação do Sócio nas Sociedades Capitalísticas, Coimbra Editora, 2006, p. 529.41 Em sentido contrário, Ana Perestrelo de Oliveira, “Os credores …”, p. 128, nota de rodapé n.º 73, defendendo que, pelo contrário, a função da boa-fé encontra no Direito Comercial e Socie-tário, um espaço privilegiado de actuação, atendendo à incapacidade das normas juspositivas para enfrentarem, em cada momento, todos os problemas suscitados nestes ramos do Direito. Deve relevar, não a situação de confi ança entre os sujeitos (que, muito provavelmente, não existirá), mas sim, para fundamentar, em especial, o princípio da lealdade (entre os sócios, pelo menos), o dever de prossecução do fi m social ou o poder de infl uência do sócio. Para a autora, a boa-fé releva nas situações em que se relacionam, de modo específi co, duas pessoas, sendo que o status socii, importa, em si e por si, essa relação específi ca, justifi cando que sobre todo o sócio, inde-pendentemente da participação que detenha, recaiam deveres de lealdade que, em concreto, são feitos actuar com vista a balizar o exercício do poder de ingerência que a relação especial cria, daí que seja, sobretudo, perante as hipóteses em que a posição de sócio cria uma relação de controlo que os deveres de lealdade maior relevo obtêm. Afi rma a autora, por último, que não se trata de fundar no contrato a relação social especial, mas sim de colocar esses deveres no âmbito da posi-ção social complexa. Neste sentido, Menezes Cordeiro, Da Boa-Fé no Direito Civil, Almedina, 2015, 6.ª reimpressão, p. 1255. Repare-se que, aludindo à participação social, se seguíssemos este raciocínio até aos seus limites lógicos, a verdade é que um terceiro (no nosso caso, um credor), não sendo detentor de uma participação social (sendo, por essa mesma razão um terceiro), não faria sentido imputar-lhe estes deveres de lealdade. Contudo, como veremos mais à frente, a autora não retira estas conclusões. 42 Cassiano Santos, A Estrutura …, p. 537. Até porque, na concepção do autor, a sociedade é um instrumento de realização de interesses dos sócios relativos à actividade económica – sede na qual não há, em geral, vinculações a atender interesses alheios, salvo no quadro das relações pré--contratuais ou contratuais. Por isto, não é o exercício da actividade, mas o recurso à estrutura colectiva que pode, então, justifi car deveres especiais, e apenas na medida em que desse recurso resultem mais do que meros interesses gerais relativos à intervenção na actividade económica, directamente ou por intermédio de sociedade – mas deveres esses que, em todo o caso, têm como sujeito a própria sociedade.

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pequeno accionista (e sócio), cujos objectivos presumidamente se identifi cam com os interesses da sociedade ou, pelo menos, não colidem, assim, com os interesses (relevantes) dos outros sócios43.

Contra esta concepção, avança o autor que as premissas em que se baseiam tais correntes são manifestamente ideológicas e não jurídicas, nada as demons-trando na realidade, nem sendo claro, na realidade, que o ordenamento socie-tário tenha partido de tais modelos. E, seguramente, ele não vale no Direito português: o CSC não conferiu um relevo específi co à relação de domínio, mesmo quando (situação mais grave à partida, por supor, em potência, uma interpenetração de estruturas similares e de interesses com a mesma natureza) o sócio dominante é uma sociedade44. Ana Perestrelo de Oliveira vem discordar desta posição dizendo que a apontada desconfi ança face ao grande accionista é fundada do ponto de vista jurídico e comprovada jurisdicionalmente, ao menos nos casos em que o sócio dominante é uma empresa prosseguindo interesses próprios, distintos e potencialmente em confl ito com os da sociedade partici-pada45. Quanto ao argumento do autor referente às relações de domínio, avança a autora que a ausência de uma disciplina normativa específi ca para a simples relação de domínio apenas refl ecte a visão do legislador português segundo a qual o poder de infl uência faltaria neste caso, de tal maneira que não haveria que associar ao seu exercício um regime especial de responsabilidade, até por-que, quando o legislador reconhece o referido poder de infl uência, prevê, efec-tivamente, um regime em que a correlação poder-responsabilidade resulta ine-

43 Cassiano Santos, A Estrutura …, p. 538.44 Cassiano Santos, A Estrutura …, p. pp. 539-540. O autor apresenta uma hipótese inversa à pressuposta pelas concepções que se criticam: o sócio dominante terá menos tendência, de facto, a instrumentalizar a sociedade, prejudicando os demais sócios, na medida em que é ele quem arrisca mais nas operações sociais – portanto, a possibilidade de perder o capital investido será um natural factor de compressão de intuitos extrassociais, e hipóteses (extremas) de abuso vão (ou devem) necessariamente cair não em proibições gerais de comportamentos mas em normas específi cas relativas à violação das regras de controlo. Por outro lado, não se pode ignorar o efeito prático-ju-rídico pretendido com a criação da estrutura colectiva e com o particular modo de exercício que se intenta, desconsiderando-os sem mais (isto é, sem que se verifi quem situações excepcionais). O autor realça ainda que uma concepção contrária à por si sustentada levaria a que ou o sócio em geral (excepto o de maioria) fi caria exonerado de qualquer dever ou, então, no mínimo, impõe-se--lhe um dever geral aligeirado relativamente aos demais, sem que se vislumbre o fundamento para tal – o que, de todo o modo, supõe que a boa-fé não é geral ou não se aplica com igual intensidade a todos os sócios, podendo, no limite, alguns fi car praticamente desonerados. Ana Perestrelo de Oliveira não concorda com esta posição, reforçando que devido ao carácter transversal da boa-fé, todo o sócio, pelo simples facto de o ser, vê a sua actuação limitada por deveres de leal-dade, integrando o seu status socii; Ver: Ana Perestrelo de Oliveira, “Os credores …”, p. p. 126.45 Ana Perestrelo de Oliveira, “Os credores …”, pp. 124-125.

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quívoca, concluindo que o legislador andou mal ao ignorar o controlo exercido de facto e traçando, assim, um sistema incoerente, que acaba por desproteger os interesses em jogo46.

Por fi m, o autor realça uma ideia da maior importância dogmática. Refere que o cerne do acordo societário é a constituição de uma estrutura subjectiva colectiva, à qual o contrato assaca determinado fi m ou fi ns – o chamado fi m comum (comum na medida em que é estabelecido no contrato por todos e é transposto para estrutura em que todos participam formalmente). A colabora-ção entre os sócios, tal como se inscreve no contrato, reduz-se a este mesmo momento genético. Os sócios, individualmente considerados, não têm qual-quer dever de cooperação ou colaboração relativamente à prossecução do fi m comum, devendo essa prossecução competir à sociedade e não aos sócios e, assim, é a estrutura daquela que fi ca vinculada a prossegui-lo, ao passo que os sócios têm mesmo aquilo a que alguma doutrina chama direito ao desinteresse: não haveria, sequer um dever de cooperação mínima na estrutura social47. Não obstante, o autor reconhece que o facto de não haver uma relação contratual (ou pré-contratual) susceptível de justifi car tal dever não é obstáculo ao seu reconhecimento. Argumento fundamental é, sim, o de que o sócio não tem uma relação pessoal com os demais sócios (em especial nas sociedades anónimas, em que existe uma forte autonomia sociedade/sócios), mas, têm, antes, uma relação directa com a estrutura, através da qual se estabelece a relação com os demais sócios, pelo que, as expectativas de um sócio apenas serão legítimas se forem relativas ao procedimento no quadro da estrutura (como membros da estrutura) e, portanto, o que cada um pode esperar é um comportamento correcto da organização48-49.

46 Ana Perestrelo de Oliveira, “Os credores …”, pp. 125-12647 Cassiano Santos, A Estrutura …, p. 546. Esta ideia seria reforçada pela circunstância de a san-ção prevista na lei para a violação do aclamado fi m comum ser cominada no plano da sociedade, com a nulidade ou anulabilidade da deliberação. 48 Cassiano Santos, A Estrutura …, pp. 555-557. Avança ainda o autor a ideia de que se o com-promisso directamente assumido pelos sujeitos é apenas o de criar a estrutura subjectiva e de a dotar de capitais, e toda a relação ulterior é mediatizada por essa estrutura, no que concerne à prossecução e concretização dos interesses postos em comum, as vinculações são apenas essas mes-mas: quaisquer outros vínculos não previstos, e que sejam criados por intervenção heterónoma, são susceptíveis de quebrar o equilíbrio suposto pelos indivíduos e impedem, assim, a optimiza-ção da solução societária. 49 Em sentido contrário, Ana Perestrelo de Oliveira, “Os credores …”, p. 130. Refere a autora que, se é verdade que o interesse dos sócios só releva quando tem expressão social, isto é, quando se trata de interesse dos sócios, tal deve-se, contudo, à interferência do modo colectivo, pelo que não existe coincidência entre interesse do sócio individualmente considerado e interesse social.

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Também Coutinho de Abreu parece defender que os sócios não têm o dever de lealdade positivo de prossecução do fi m comum/interesse social. De facto, defende o autor que os direitos dos sócios são-lhes atribuídos no seu próprio interesse – são direitos subjectivos e não direitos-função ou poderes--função50-51. Pedro Pais de Vasconcelos considera que esta visão não é neutra, tendo subjacente uma atitude restritiva e prudente, que considera que o sócio só está obrigado a entrar com o capital e, além disto, àquilo que a lei ou os esta-tutos previrem52. O autor entende, contudo, que também as omissões impostas pela lealdade poderão ser gravosas ou desproporcionadas, sendo que, aquilo que importa é adoptar cautelas gerais (e não só quanto à vertente positiva do dever de lealdade) para evitar concretizações imprevistas e excessivamente onerosas do dever de lealdade53.

É com recurso a este princípio que alguma doutrina considera dever ser responsabilizado o credor que estipulou um covenant com a sociedade fi nan-ciada e, em especial, os sócios controladores (já não terceiros)54.

50 Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, Vol. II, Almedina, 2015, pp. 282-283. O autor especifi ca esta sua ideia realçando que uma coisa é os sócios deverem actuar – procurando satisfazer os seus interesses – dentro do campo delimitado pelo interesse social (ou os interesses dos outros sócios ligados à sociedade), sem poderem, portanto, ultrapassar ou sacrifi car estes outros interesses, outra coisa é os sócios deverem visar tão-só estes outros interesses e procurar satisfazê-los – fun-cionalizando assim o seu comportamento por específi cas e superiores fi nalidades.51 Também Pereira de Almeida vai neste sentido, Sociedades Comerciais, Valores Mobiliários, Ins-trumentos Financeiros e Mercados, Vol. I, 2013, p. 70, referindo que existe, tão-somente um dever negativo de não criar danos ao interesse social/fi m comum da sociedade. Em sentido contrário, Pedro Pais de Vasconcelos, Participação …, pp. 325-333. Contudo, salvaguarda que não se deve exigir do sócio um altruísmo perfeito, concluindo que o interesse social tem ser respeitado, mas sem se esquecer o interesse (pessoal e económico) que levou o sócio a aderir ao projecto socie-tário. O autor realça, posteriormente, que o sócio em causa deve colocar-se na posição típica da sociedade a que pertence e, nessa posição, discernir, encarando-se a si mesmo, qual ou quais são as expectativas que a sociedade razoavelmente pode ter em relação ao seu comportamento enquanto seu sócio, de acordo com a regra de ouro e o imperativo categórico, até porque são os sócios que, em modo deliberativo, concretizam o interesse social; cada um dos sócios, enquanto tal, tem o dever de ser leal ao interesse social assim concretizado.52 Pedro Pais de Vasconcelos, Participação …, p. 333.53 Pedro Pais de Vasconcelos, Participação …, p. 333.54 Também com similitudes com o nosso tema surge a problemática dos administradores de facto (na medida em que poder-se-ia colocar a hipótese de o credor que exigiu um covenant tornar-se, por essa via, administrador de facto da sociedade fi nanciada). Como defende Ricardo Costa, “Responsabilidade civil societária dos administradores de facto”, in Temas Societários, Coimbra, 2006, pp. 25, exige-se, para que se possa considerar alguém como administrador de facto, o exercício de uma infl uência duradoura e intensa sobre a administração por quem não é admi-nistrador de jure, devendo ser possível afi rmar o exercício positivo de funções de gestão similares ou equiparáveis às dos administradores formalmente instituídos, com autonomia decisória e uma

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De facto, este problema coloca-se porque, como salienta Teresa Anselmo Vaz, o interesse social não é susceptível de confundir-se com o interesse indivi-dual de cada um dos sócios, pelo que não deve a sociedade ser instrumentalizada de forma a prosseguir esses interesses individuais e egoísticos de cada um dos sócios, por essa instrumentalização se poder traduzir, na realidade, numa uti-lização não consentida pela fi nalidade da constituição da própria sociedade55. Quanto à defi nição de accionista de controlo poder-se-á dizer que é aquele que, por força de especiais laços que o ligam a uma sociedade dita dependente, estará em condições de exercer sobre esta última uma infl uência dominante,

certa permanência e sistematicidade. Ora, não parece possível afi rmar que alguns dos tipos de covenants anteriormente confi gurados tenham a virtualidade de conceder aos credores fi nancia-dores este tipo de poder pelo que afastamos, por regra, a possibilidade de considerar esse mesmo credor como administrador de facto. E isto mesmo estando de acordo com Ana Perestrelo de Oliveira quanto à desnecessidade da existência de uma aparência da qualidade de administrador, Ana Perestrelo de Oliveira, “Administrador de Facto: do conceito geral à sua aplicação aos grupos de sociedades e outras situações de controlo interempresarial”, in A Designação de Adminis-tradores, Almedina, 2015, p. 229-231. A nossa posição (quanto à insusceptibilidade de convocação da fi gura do administrador de facto para qualifi car o credor fi nanciador) é também sustentada na doutrina da última autora citada quando a mesma refere, e parece-nos que de forma acertada, que “sempre que os administradores de direito conservem a sua margem de liberdade de gestão, não obstante a obediência a determinadas directrizes ou politicas gerais defi nidas por terceiro e a instruções ocasionais, não deve convocar-se a fi gura do administrador de facto”. De facto, não basta a infl uência sobre a administração traduzida na fi xação de parâmetros gerais de actuação, antes se requerendo uma efectiva e intensa compressão da esfera de livre decisão dos administradores de direito”, o que, nos casos típicos por nós retratados não tem potencialidade de ocorrer; ver Ana Perestrelo de Oliveira, “Administrador de Facto …”, p. 230-331. Além do mais, parece ser apenas relevante dar importância, neste tipo de situações e em discordância quanto à posição desta última autora quanto a este particular ponto, aos tipos de controlo tipicamente orgânicos ( jus-societariamente organizados) e não a meros controlos económicos, posição que se justifi ca até por questões de previsibilidade e segurança jurídica. Em sentido aparentemente contrário ao nosso pode ver-se Engrácia Antunes, Os Grupos de Sociedades – Estrutura e Organização Jurídica da Empresa Plurissocietária, 2.ª edição revista e actualizada, Almedina, 2002, p. 508 e 517, quando refere que as participações no capital social, sendo embora o mais importante e utilizado instru-mento de domínio intersocietário, não constitui certamente o único, sendo, igualmente, relevantes para este efeito outro tipo de instrumentos susceptíveis de criar relações de domínio, através da criação de uma situação de dependência económica. 55 Teresa Anselmo Vaz, “A Responsabilidade do Accionista Controlador”, in O Direito, Lisboa, a.128, n.º3-4 (Julho-Dezembro 1996), pp. 333-334. A autora refere também que tal posição de controlo de um dos accionistas pode prejudicar os credores sociais, dada a maior probabilidade de desrespeito da separação patrimonial e de colocação da sociedade em situação de insolvência. Também a este respeito, parece ser de entender que subjacente a estas limitações se encontra o intuito de preservar a autonomia da formação da vontade da sociedade perante infl uências viola-doras das regras de repartição de competências entre os órgãos sociais.

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orientando, com carácter permanente, os negócios societários56. Ora, a principal forma de existir tal infl uência é através do poder dos accionistas elegerem os titulares dos órgãos de administração, o que, no nosso caso, não existe, devido à circunstância de o credor social não ter tal poder57-58.

56 Teresa Anselmo Vaz, “A Responsabilidade …”, pp. 357-358. A autora realça alguns corolários legais do princípio de que os sócios controladores se devem abster de instrumentalizar a sociedade aos seus interesses, como é o caso da proibição de acordos parassociais que visem regular a con-duta dos membros de órgãos sociais, em especial, da administração da sociedade (artigo 17.º/2 do CSC) e o artigo 373.º/3 do CSC que prevê, para as sociedade anónimas uma competência exclu-siva da administração para as matérias de gestão, retirando aos accionistas, a não ser a pedido da administração, competência sobre este tipo de matérias. 57 Paula Costa e Silva, “Sociedade aberta, domínio e infl uência dominante”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, ano 48, 1 e 2, 2007, pp. 47-48. Refere a autora que dominará a sociedade o accionista que, através dos direitos de voto inerentes à sua participação social, determinar a formação da vontade juridicamente relevante da assembleia, seleccionando quem gere a sociedade. 58 Quanto à questão já aludida de os poderes de gestão estarem, nas sociedades anónimas atri-buídos aos administradores, realça Pedro Maia, Função e funcionamento do Conselho de Adminis-tração da sociedade anónima, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, p. 167, nota de rodapé n.º 229, que dessa forma, o legislador procurou satisfazer os interesses dos accionistas empresários em exercer o controlo da empresa societária. Ou seja, visou que o crescimento da empresa não implique a redução do domínio dos sócios empresários na sociedade anónima, além da necessidade de a sociedade anónima dispor de um órgão centralizado, profi ssional e independente dos accionistas, para prosseguir o interesse da sociedade. Contudo, como realça Engrácia Antunes, Os direitos dos sócios da sociedade-mãe e direcção dos grupos societários, Porto: Universidade Católica, 1994, pp. 129-130, no caso das chamadas decisões fundamentais devem as mesmas ser reservadas aos accio-nistas, enquanto credores residuais da sociedade, uma vez que o que está em causa já não é a ges-tão profi ssional do negócio, mas sim decisões fundamentais quanto ao investimento dos sócios, os quais à partida serão os mais bem posicionados para decidir. O problema é que a existência de um accionista de controlo e a existência do seu poder de voto, nomeadamente, quanto à eleição dos membros da administração, poderá subverter esta distribuição legal de competências. Além do mais, existe doutrina que fundamenta a intervenção da Assembleia Geral neste tipo de situa-ções com base numa competência ex bona fi de, remetendo a distribuição de competências para o campo do abuso de direito, no sentido de que, sempre que a marginalização dos accionistas, pela importância do tema em causa, confi gure abuso de direito por absoluta contrariedade ao sistema e às suas valorações, deverá considerar-se (ainda que implicitamente) tal competência entregue à Assembleia Geral. Neste sentido, Menezes Cordeiro, SA: Assembleia Geral e deliberações sociais, Lisboa, Almedina, 2007, p. 234 e Ana Perestrelo de Oliveira, Grupos de Sociedade e Deveres de Lealdade: por um critério unitário de solução do “confl ito de grupo”, Coimbra, Almedina, 2012, pp. 406 e ss.. Esta última autora reforça que são, por norma, actos que podem afectar profundamente a estrutura patrimonial da sociedade e os direitos sociais dos accionistas. Não obstante os óbices a este tipo de acordos (os covenants), como sejam o da independência da Administração, o da proi-bição de acordos parassociais sobre a actuação dos órgãos sociais, a verdade é que parece ser de seguir, com Ana Perestrelo de Oliveira, a ideia de que, atendendo às vantagens económicas deste tipo de acordos já anteriormente sublinhadas, não se vê como defender, em termos pater-

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Possíveis soluções de responsabilização do credor fi nanciador pelos comportamentos abusivos

Ana Perestrelo de Oliveira defende que o controlo excessivo do credor sobre a sociedade aproxima-o, signifi cativamente, do accionista controlador, transformando-o em insider e fazendo-o incorrer em deveres e responsabilida-des equivalentes aos do verdadeiro e próprio controlador59. Nos clássicos cove-nants, avança a autora, aquando das situações de incumprimento, o poder dos credores para renegociar o contrato e, consequentemente, o controlo da socie-dade, faz com que estes ocupem uma posição central no governo societário, até porque as empresas que, por norma, incumprem este tipo de acordos estão já em situação económica difícil60.

O que releva para esta autora é a posição funcional em que fi ca o credor controlador e a intensa susceptibilidade de infl uência sobre a gestão da socie-dade que aquele adquire por via dos covenants61.

Contudo, a autora reconhece que este tipo de controlo exercido pelo cre-dor/fi nanciador não é reconhecido como fonte da relação de domínio à luz do Código das Sociedades Comerciais, pois, mesmo que se encontrasse preen-chida uma das condições legais para que se possa dizer existir domínio, torna-se, suplementarmente necessário que esse domínio seja jus-societariamente orga-nizado, traduzindo o tipo de conexão de que o Direito das Sociedades se ocupa, não relevando, para estes efeitos, o mero controlo económico62.

nalistas, uma genérica ilicitude dos covenants que importem, para o credor, poder de infl uência sobre a sociedade, parecendo, isso sim, dever entender-se que a sociedade deve decidir por si qual o seu melhor interesse e encontrar formas de protecção efi cazes dos diversos interesses em jogo; ver: Ana Perestrelo de Oliveira, “Os credores …”, p. 110. Por seu turno, Francisco Pinto da Silva, “A infl uência dos credores bancários …”, p. 241, refere que só será possível este tipo de interferências (em especial dos covenants) na gestão das sociedades se, paralela à da sociedade, houver uma vinculação dos accionistas, o que pode ser concebível em algumas sociedades anó-nimas com poucos accionistas ou com o capital pouco disperso, como é comum em Portugal.59 Ana Perestrelo de Oliveira, “Os credores …”, p. 97.60 Ana Perestrelo de Oliveira, “Os credores …”, p. 102.61 Ana Perestrelo de Oliveira, “Os credores …”, p. 107.62 Ana Perestrelo de Oliveira, “Os credores …”, pp. 112-113. A autora, por motivos de unidade valorativa defende que, mesmo quando a situação não estivesse prevista na lei, caso existisse um perigo qualitativamente idêntico ao “perigo do grupo”, justifi car-se-ia falar, por vezes, em grupo de facto. Vem, apesar disso, mais à frente, reconhecer que o pouco espaço que a lei deixou aos grupos de facto levaria a que apenas tenham importância ao nível dos princípios jurídico-societá-rios mais gerais em matéria de governo e administração das sociedades independentes, que obriga o intérprete a procurar soluções de tutela e a “não desistir” da protecção dos interesses em causa.

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A autora acaba por recorrer, para solucionar este problema, ao principio da lealdade, impondo-o aos credores nos mesmos termos em que ele existe para os accionistas, devido à circunstância de aqueles estarem funcionalmente na mesma posição que estes63. Defende esta solução não apenas com base numa concepção do princípio da lealdade orientado para a produção de danos, mas também com base no princípio geral de Direito da correlação poder-respon-sabilidade64. Refere, ainda, a autora que o reconhecimento destes deveres de lealdade em nada está dependente da existência de uma relação de confi ança (similar à confi ança que existe entre os sócios em geral), pois falha a sua identifi -cação (da confi ança) nas relações de controlo, não se coadunando a natureza da relação de controlo e o estável confl ito que institui com semelhante presunção ou fi cção de confi ança65. O dever de lealdade justifi ca-se, isso sim, pelo poder de ingerência que a ligação especial entre controladora e controlada gera, com o inerente imperativo de limitação da posição em que se encontra para causar danos à sociedade controlada, isto é, a lealdade deve ter, em geral e neste caso, como fundamento não uma situação de confi ança mas sim a possibilidade de interferência nos interesses dos outros sócios, assentando a lealdade no poder do sócio ou accionista, surgindo, pois, a relação poder-dever como razão de ser e critério de reconhecimento de deveres de lealdade66.

Em suma, identifi cando-se, na realidade, uma ligação especial entre credor controlador e sociedade fi nanciada, equivalente àquela que liga accionista con-trolador e sociedade controlada, fundamentando deveres de lealdade paralelos, caso exista, verdadeiramente, um poder de infl uência, e nos moldes em que ele exista efectivamente, não sendo necessário, na visão da citada autora, para que tais deveres de lealdade se apliquem, que a capacidade do credor para deter-minar a obediência do devedor à sua politica seja de tal forma arrebatadora que tenha existido, em alguma medida, uma fusão de identidades, na medida em que, de tal forma, exigir-se-ia mais ao credor controlador do que nos casos de controlo em geral, bastando reconhecer que, caso o controlo exercido pelo mutuante seja equiparável ao controlo exigido pelos accionistas, não há como recusar a sujeição de uns e outros a deveres de lealdade equivalentes67. Mas a autora vai ainda mais longe, quando refere que o que verdadeiramente distingue o principio da lealdade é o seu conteúdo positivo, consubstanciado no dever de prossecução do fi m ou interesse social, na medida em que se a sociedade é

63 Ana Perestrelo de Oliveira, “Os credores …”, p. 123.64 Ana Perestrelo de Oliveira, “Os credores …”, p. 123.65 Ana Perestrelo de Oliveira, “Os credores …”, pp. 127-129.66 Ana Perestrelo de Oliveira, “Os credores …”, p. 127, nota de rodapé n.º 73.67 Ana Perestrelo de Oliveira, “Os credores …”, p. 131.

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constituída em função da realização de um dado fi m, esse fi m constitui, plausi-velmente, padrão vinculativo de alinhamento do comportamento dos diversos sujeitos envolvidos, sendo a vinculação ao fi m uma componente inalienável do estado de sócio, derivando, em última análise, da natureza da sociedade como associação fi nalística, sendo que a autora realça, por fi m, que esta mesma lógica se aplicará quando o credor assume o controlo da sociedade, ou seja, se o credor actua sobre o governo e as politicas sociais deve fazê-lo em conformidade com o fi m da sociedade controlada, ainda que com as modifi cações determinadas pela situação de estrutural confl ito de interesses em que se encontra68-69.

Não aceitamos os postulados e as consequências desta tese. Desde logo pelo que já foi referido relativamente ao princípio da lealdade e aos seus corolários. Por outro lado, com Raquel Capa de Brito70 poder-se-ão avançar os seguintes argumentos para rejeitar a referida doutrina: i) é pelo facto de os accionistas de

68 Ana Perestrelo de Oliveira, “Os credores …”, pp. 132-133.69 Com uma posição similar à autora referida podemos identifi car Francisco Pinto da Silva, “A infl uência dos credores bancários …”, p. 255-259. O autor recorre ao artigo 80.º do CSC, referindo que o mesmo não deve ser interpretado como sendo necessário um acto de vontade de alguém (legitimado) que incumbe outrem dessas funções e concluindo, por maioria de razão, que o preceito deve ser aplicado a outras pessoas que tomem tais funções por iniciativa própria, nomeadamente sócios que as assumem espontaneamente, pois dessa forma salvaguardar-se-ia o princípio que impõe a correlação entre poder e responsabilidade e até o princípio da indelegabili-dade e inalienabilidade das competências da administração, assim contribuindo para a coerência do sistema, pois uma sociedade, ao contratar um fi nanciamento, confi a aos bancos algumas funções da sua administração, ou pelo menos uma importante participação no seu exercício, sendo que ainda se torna necessário estarem verifi cados os restantes pressupostos da responsabilidade civil, nomeadamente que a actuação do credor tenha sido determinante da administração da sociedade, sendo-lhe atribuída a autoria da decisão, resultando da mesma consequências gravosas para a sub-sistência da sociedade. Contudo, o autor dá a entender que tal apenas acontece quando o credor assume a posição de insider, fi cando, nessa posição, sujeito a deveres de lealdade. No entanto, para o autor, enquanto que os sócios estão vinculados a deveres de lealdade de carácter essencialmente negativo, os administradores (posição à qual reconduz os credores que adoptam posição de insiders) devem actuar exclusivamente em vista dos interesses da sociedade e procurar satisfazê-los, abs-tendo-se, portanto, de promover o seu próprio interesse ou interesses alheios, ou seja, aos admi-nistradores por disporem dos poderes necessários para o efeito, exigir-se-ia uma conduta positiva no cumprimento do dever de lealdade, de prossecução do interesse social. Conclui referindo que deverão os credores insiders que se assemelham aos administradores fi car sujeitos ao artigo 64.º, 1, al. b), artigo de pendor mais institucionalista, devendo, nomeadamente, ter em conta o interesse da sociedade na medida em que seja comum a todos (neste caso, a sustentabilidade da mesma), não deverão ser obrigados, naturalmente, a prosseguir um interesse social puramente contratualista e tomar aquelas decisões que benefi ciem os sócios em detrimento dos seus próprios interesses, sobretudo em cenários de crise da empresa, em que os confl itos de interesses se agudizam e não deverão sobrepor os seus interesses aos da sociedade.70 Raquel Capa de Brito, A ingerência do credor controlador no governo societário – Consequências e

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determinada sociedade se associarem para prosseguir um fi m comum, razão pela qual se pressupõe que a sua actuação será, à partida, conjunta e confl uente, que lhes é atribuído um conjunto de direitos (associados ao seu estatuto de sócio) que lhes permite participar no processo de decisão e ditar o rumo da sociedade, quer directamente, através do direito de voto, quer indirectamente, através da nomeação de administradores, não assentando esses direitos associados ao seu estatuto de sócio no pressuposto de que os accionistas irão exercê-los de modo a prejudicar a empresa e o seu fi m, mas sim de que os diversos titulares de par-ticipações sociais têm visões diferentes acerca da melhor forma de prossegui--lo71; ii) é precisamente pela circunstância de existir uma especial relação entre os sócios que é expectável existir uma actuação de boa-fé da sua parte, o que implica que omitam comportamentos que possam prejudicar a sociedade, o que não acontece no nosso tipo de casos, na medida em que poderão ser muitos os confl itos de interesses emergentes da relação entre a sociedade fi nanciada e os credores; iii) aliás, essa é a razão pela qual este tipo de instrumentos são con-vencionados, no sentido em que visam, precisamente, alinhar os interesses con-traditórios entre sociedade fi nanciada e credores da mesma, pelo que, a impo-sição aos credores de deveres de lealdade similares aos dos sócios da sociedade fi nanciada criaria uma obrigação em certa medida contrária à natural relação existente entre eles, em vez de se limitar a afastar eventuais comportamentos desviantes em relação aos que seria razoável e expectável da sua parte; iv) tal tor-nar-se-ia ainda mais problemático se atentássemos na vertente positiva do dever de lealdade, na medida em que chocaria, no mínimo, impor aos credores que prosseguissem activamente o interesse social da empresa fi nanciada, sem que este coincidisse necessariamente com o seu, o que levaria, em última instância, a que se exigisse do credor um procedimento altruísta e a não prossecução do seu próprio fi m, o que poderia coloca-lo, desde logo, num confl ito de interesses72; v) tendo em conta este circunstancialismo, se o conselho de administração do cre-dor prosseguisse, de forma activa, o interesse da empresa fi nanciada, não sendo este coincidente com o da credora, não estaria a colocar em causa o próprio interesse social desta última, violando deveres de lealdade em relação aos seus accionistas?; vi) pergunta a autora, por outro lado, quem estaria em condições

mecanismos de restabelecimento do equilíbrio entre as partes, Dissertação de Mestrado Universidade Católica Portuguesa, 2011, pp. 26-29.71 Além do mais, os deveres de lealdade, também como já referido ao longo do texto, encontram-se associados a direitos conferidos aos accionistas, sendo decorrentes do seu estatuto e procurando evitar que estes, ao exercerem-nos, se desviem de uma bitola correcta e previsível de actuação.72 Além de que, como já deixámos claro ao longo da nossa exposição, ao credor não é atribuído, por natureza, o status socii que justifi ca os deveres de lealdade impostos aos sócios que dele participam.

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de avaliar o momento a partir do qual o credor fi caria vinculado a tais deve-res, sendo que, caso devesse ser o juiz a determiná-lo, ex post, poder-se-ia estar, dessa forma, a criar uma fonte de incerteza para ambas as partes, prejudicial ao funcionamento harmonioso dos seus órgãos; vii) adoptar semelhante posição seria considerar existir uma relação de subordinação da sociedade fi nanciada em relação ao credor controlador, não se compreendendo, no entanto, como compatibilizar essa situação com o regime do contrato de subordinação previsto no artigos 493.º e ss do CSC, podendo tal situação potenciar uma forma de contornar os requisitos, forma e formalidades impostos pelo referido regime, subvertendo o mesmo.

Uma segunda corrente considera, segundo William Lawrence, que a melhor solução seria retirar da infl uência exercida pelo credor sobre a sociedade alvo do fi nanciamento uma relação de agência, na medida em que actuaria em nome e no interesse do credor, estando o credor sujeito aos mesmos deveres de leal-dade em que estaria o principal de uma relação de agência73. Não parece ser de aceitar uma solução deste teor considerando que existem diferenças substanciais entre os dois tipos de contratos, não actuando a empresa alvo de fi nanciamento, mesmo que sob infl uência de um credor externo, em nome dos interesses do principal, zelando pela defesa dos seus interesses74, mas sim, e tão-somente, com-portando-se de acordo com o seu próprio fi m ou objecto social75. Para além do mais, com tal posição ignorar-se-ia que neste tipo de relações ora em análise se visa salvaguardar interesses contraditórios e não absorver um dos interesses pelo outro, situação que levaria, ao invés do pretendido, a que o interesse do credor fosse salvaguardado não permitindo evitar as eventuais condutas abusi-vas por parte do credor que potencialmente podem surgir neste tipo de rela-ções76. Além do mais, não deve ser olvidado, no seguimento do entendido por Pedro Pais de Vasconcelos que a prossecução de interesses alheios é algo que está vedado às sociedades, em toda a medida em que não correspondam aos seus próprios interesses77.

73 William Lawrence, “Lender Control Liability: an analytical model illustrated with appli-cations to the relational theory of secured fi nancing”, in Southern California Law Review, n.º 62, 1989, pp. 12-14.74 Para uma caracterização e descrição do contrato de agência ver, por todos, Pinto Monteiro, Contrato de Agência, Anotação, 6.ª ed., Almedina, Coimbra, 2007.75 Raquel Capa de Brito, pp. 23-24.76 Raquel Capa de Brito, pp. 23-24.77 Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2005, pp. 166-169.

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Uma outra corrente78 entende que deve dar-se primazia ao próprio con-trato, no sentido de que negociando as partes o contrato da forma que enten-dem ser mais vantajosa para regular os seus interesses, prevendo, por exemplo, a estipulação de covenants, um comportamento, assim sendo, apenas poderia ser considerado como oportunístico caso violasse o contrato, devendo a boa-fé apenas intervir para evitar que se retirem vantagens abusivas através da utilização de lacunas no contrato, mas nunca para impedir que as partes possam usar as prerrogativas conferidas pelo próprio contrato, aliás, de outra forma, a vanta-gem que se pretende obter com a estipulação de convenants no contexto dos contratos de fi nanciamento deixaria de existir, na medida em que os credores saberiam que o exercício das prerrogativas que lhe foram atribuídas contratual-mente poderiam levar a que fossem responsabilizados judicialmente por com-portamentos alegadamente oportunistas79.

Quanto a esta posição cabe apenas avançar que a boa-fé, no âmbito da execução contratual, de forma a não frustrar a intensa relação de confi ança e colaboração que deve vigorar entre as partes, faz actuar deveres acessórios de conduta, como sejam os casos típicos de deveres de informação, lealdade e pro-tecção80. De facto, a simples contemplação de uma obrigação dá, pela interpre-tação da sua fonte, um esquema de prestação a efectivar, mas isso só é possível com danos para o credor ou com sacrifício desmesurado para o devedor, não permitindo o Direito tais ocorrências e, por essa razão, comina deveres destina-dos a que, na realização da prestação, tudo se passe de modo considerado devido: estão aqui em causa os denominados deveres acessórios, baseados na boa-fé, como explicita Menezes Cordeiro81.

Uma outra posição seria a de recorrer ao regime dos negócios usurários82. No âmbito desta vertente, Raquel Capa de Brito defende que o direito de renegociar está abrangido pelo acordo inicial das partes, como uma forma alter-nativa ao exercício do direito de vencimento antecipado da obrigação, o que não signifi ca que as partes não tenham de respeitar outros deveres de conduta, aquando do exercício desse direito, o que não implica que o credor tenha de prosseguir o interesse da contraparte, obstando apenas a que, atendendo às reais possibilidades de agressão e ingerência provocadas por esta conjuntura, as par-

78 Daniel Fischer, “The Economics of Lender Liability”, in Yale Law Journal, vol. 99, 1989, pp. 7-10.79 Daniel Fischer, “The Economics …”, pp. 11-15. Além de que tal prejudicaria as empresas fi nanciadas enquanto classe. 80 Raquel Capa de Brito, p. 31.81 Menezes Cordeiro, Da Boa-Fé no Direito Civil, Coimbra, Almedina, 1984, Vol. I, p. 591.82 Posição adoptada por Raquel Capa de Brito, pp. 32-39.

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tes se venham a infl igir danos mútuos83. Contudo, a autora faz uma ressalva da maior importância ao referir que a circunstância de a empresa fi nanciada aceitar um novo acordo e a celebração de negócios aparentemente desvantajosos, pode advir do facto de a opção alternativa, isto é, o pagamento integral imediato poder implicar a insolvência da empresa84. Na verdade, nem faria muito sen-tido neste tipo de situações chamar à colação o dever de lealdade atendendo a que este somente deve ser convocado caso existisse uma situação em que se está a falsear o objectivo do negócio e a desequilibrar o jogo das prestações por ele consignado, o que, na visão da autora, não acontece necessariamente neste circunstancialismo, na medida em que, embora as prestações possam parecer, numa primeira análise, desequilibradas, não devemos esquecer que a situação alternativa seria altamente gravosa para a empresa fi nanciada, podendo, mesmo, implicar a insolvência da sociedade que foi alvo do fi nanciamento, além de que o objectivo da boa-fé não é o de impedir que as partes, no âmbito da autonomia privada, celebrem negócios que lhe sejam desvantajosos85. Até porque, na opi-nião da autora, um negócio, apesar de objectivamente injusto, poderá convir ao seu lesado, nomeadamente pela existência de factores externos (como acontece neste tipo de casos por nós analisados), devendo, por isso mesmo, ser dada às par-tes a última palavra relativamente à subsistência do mesmo (regime de anulabili-dade e modifi cabilidade e não da nulidade no regime dos negócios usurários)86.

Na opinião desta autora, apenas devem fi car salvaguardados desta lógica aquele tipo de negócios em que uma das partes, de forma clara, se encontra numa posição de inferioridade contratual, por se encontrar economicamente dependente da outra, no momento em que celebra o negócio, aplicando o regime dos negócios usurários quando o credor decidir, especifi camente e como forma ou condição de não exigir o vencimento antecipado, impor a celebração de negócios à empresa fi nanciada, na medida em que estaria em causa: uma situação de inferioridade, pois existe neste tipo de casos um perigo que ameaça a existência económica do declarante, aliás atendendo a que pode bastar uma situação de necessidade putativa relevante (neste caso, o perigo de entrar em insolvência, como consequência do vencimento antecipado da obri-gação, até porque o facto de ter incumprido alguma das obrigações contratuais a que se encontrava adstrita decorre, em princípio, de se encontrar em situação fi nanceira difícil); a exploração de uma situação de inferioridade, sendo que tal

83 Raquel Capa de Brito, p. 35.84 Raquel Capa de Brito, p. 36.85 Raquel Capa de Brito, p. 36. Sobre o dever acessório de lealdade ver, por todos, Menezes Cordeiro, Da Boa-fé …, pp. 606-607.86 Raquel Capa de Brito, p. 37.

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situação de inferioridade é conhecida por parte do credor neste tipo de casos (aliás, se o credor não tivesse conhecimento da situação de inferioridade que se encontra a explorar, não ameaçaria a sociedade a quem concedeu um emprés-timo de modo a obter tal vantagem); e a obtenção, para si ou para terceiros, da promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustifi cados (o que poderá acontecer se houver uma quebra da equivalência das prestações de tal forma que exceda os limites da normalidade, não devendo esquecer-se, contudo, que a situação em que a empresa fi nanciada se encontraria, caso lhe fosse exigido o pagamento integral de capital e juros, poderia ser de insolvência ou de situação de extrema difi culdade, isto é, os negócios cujas prestações se encontrem apa-rentemente desequilibradas, poderão, ainda assim, ser “justos”) 87.

Apenas concordamos parcialmente com esta posição. Isto porque a autora apenas parece pretender resolver, através do regime dos negócios usurários, as situações em que, por via de directivas do credor, o devedor é levado a celebrar concretos negócios jurídicos88 que preenchem a previsão do respectivo regime dos negócios usurários o que leva a que fi quem sem protecção inúmeras situa-ções em que, por via da renegociação dos termos do contrato de fi nanciamento, o devedor pode fi car numa posição de carência injustifi cada ou proporcionar ao credor benefícios injustifi cados e que desequilibram (injustifi cadamente) a rela-ção estabelecida entre ambos, como é o caso, por exemplo, de uma renegociação de taxas de juro, das politicas gerais a adoptar pela sociedade fi nanciada, no que concerne, por exemplo, à distribuição de dividendos, às relações com outras partes no mercado, ao estabelecimento de novas garantias com outros credores, a alterações na estrutura da sociedade e na composição dos seus órgãos, requisi-tos mais exigentes no que toca ao nível de solvabilidade da sociedade ou maior aprofundamento da obrigação da prestação de informações. Ora, quando incida uma renegociação sobre todo este tipo de situações enumeradas, poderá tam-bém estar em causa uma quebra na equivalência das prestações sem justifi cação atendível e, por outro lado, não tem (e por natureza em muitos dos casos não terá) de estar em causa a imposição pelo credor da celebração de determinados negócios concretos. Coloca-se então a questão de saber como pode o devedor

87 Raquel Capa Brito, A ingerência do credor …, p. 39. Também no sentido de que devem ser ana-lisados, neste tipo de situações em concreto, todos os factores externos e condicionalismos ineren-tes à situação em apreço para concluir pelo desequilíbrio excessivo e injustifi cado das prestações, Francisco Pinto da Silva, “A infl uência dos credores bancários …”, p. 237.88 Aliás, esta posição da autora parece reforçada, para além do que já se descreveu da respectiva posição, quando avança que o negócio em causa poderá implicar benefícios para o usurário ou para terceiros e que poderá ser celebrado com aquele ou com quaisquer outros sujeitos. O que não deixa de estar correcto do ponto de vista técnico, mas insufi ciente, a nosso ver, para proteger todos os tipos de situações potencialmente abusivas.

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proteger-se de eventuais condutas abusivas por parte do credor controlador quando por via da renegociação dos termos do contrato de fi nanciamento não se exija àquele a celebração de determinados negócios jurídicos, quer com o próprio credor, quer com terceiros.

Uma outra alternativa seria equiparar o nosso tipo de situações com o tipo de protecção que é conferido ao franquiado no âmbito de um contrato de franquia. No contrato de franquia, uma pessoa – o franqueador – concede a outra – o franqueado -, dentro de certa área, cumulativamente ou não: a utiliza-ção de marcas, nomes ou insígnias comerciais; a utilização de patentes, técnicas empresariais ou processos de fabrico; assistência, acompanhamento e determi-nados serviços; mercadoria e outros bens, para distribuição89. Pela natureza desta relação, como refere Pestana de Vasconcelos, para que a qualidade dos produtos, serviços e, no geral, a imagem de marca do franquiador não se deteriore, o franquiado tem a obrigação de se subordinar a um apertado controlo e a uma rigorosa fi scalização da sua actividade, pelo que deste ponto de vista esta situa-ção poder-se-ia equiparar às situações em que o credor exerce uma infl uência sobre a sociedade fi nanciada90.

Além do que foi anteriormente referido, é habitual considerar-se que os vínculos decorrentes da relação entre franquiado e franquiador, no âmbito do contrato de franquia, levam a uma subordinação económica do primeiro, que fi ca sobre a dependência económica do segundo91. Não obstante o franquiado poder ter outros meios de subsistência económica e facilmente se adaptar ao insucesso comercial do contrato de franquia, parece que não devem ser tidos em conta eventuais factores externos à relação contratual entre franquiado e franquiador para verifi car se há dependência económica, devendo a dependên-cia económica ser relativizada, isto é, deve ser aferida apenas em função da rela-ção entre as partes decorrente do contrato de franquia e do circuito comercial em que o franquiado actua92. Ora, atendendo à importância que, por norma, o contrato de franquia (até pela frequência com que são estipuladas cláusulas de exclusividade) tem para a subsistência ou existência do franquiado, podem ocorrer abusos por parte do franquiador para os quais cabe precisar limites e formas de responsabilização.

Poderá haver um caso de infl uência dominante? A doutrina divide-se. Pes-tana de Vasconcelos, por exemplo, defende poder existir uma infl uência domi-

89 António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Comercial, 2.ª ed., Almedina, 2007, pp. 682-683.90 Pestana de Vasconcelos, O Contrato de Franquia (Franchising), Almedina, 2010, 2.ª ed., pp. 42-43.91 Pestana de Vasconcelos, O Contrato de Franquia, pp. 89-90.92 Manuel Pereira Barrocas, “O Contrato de “franchising””, in ROA, 1989, p. 152.

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nante sem que haja uma infl uência orgânica93. Por seu turno, Engrácia Antunes afi rma que, por via de regra, uma infl uência externa, à margem dos órgãos da sociedade que não se traduza numa apropriação interna do poder de governo e autodeterminação corporativos ou numa infl uência dominante exercida nos e através destes órgãos não constituirá um domínio jurídico-societariamente rele-vante, já que as relações de dependência fáctico-económicas, nomeadamente entre franquiadores e franquiados, constituem circunstancialismos conaturais da vida empresarial94. Parece ser de adoptar esta ultima posição.

Instrumento interessante de protecção do franquiado poderá ser o regime previsto na Lei da Concorrência de 2012, em especial prevista no seu artigo 12.º, denominado de abuso de posição relativa, que prevê ser “proibida, na medida em que seja susceptível de afectar o funcionamento do mercado ou a estrutura da concorrência, a exploração abusiva, por uma ou mais empresas, do estado de dependência económica em que se encontre relativamente a elas qualquer empresa fornecedora ou cliente, por não dispor de alternativa equi-valente”. O Conselho da Concorrência quando se pronunciou acerca deste tema entendeu que, para se apurar da existência de uma relação de dependência económica, dever-se-ia atentar na notoriedade da marca, na quota de mercado do fornecedor, no peso dos produtos do fornecedor nas vendas do distribuidor e na ausência de solução equivalente, além de que só existirá abuso de depen-dência económica no caso de a conduta ter por objecto ou efeito a restrição da concorrência95.

A nosso ver não se pode equiparar sem mais as situações do contrato de fran-quia à dependência económica em que potencialmente poderá fi car colocado o devedor fi nanciado. Desde logo porque os tipos e fi nalidades dos dois contratos são completamente distintos, não obstante poder existir uma certa aproximação, como já referido, devido ao poder de ingerência que o franquiador e o credor poderão exercer, respectivamente, sobre franquiado e devedor fi nanciado. Por outro lado, do ponto de vista da dependência económica, ela parece existir em ambas as situações mas com “estilos” diferentes. Enquanto que numa situação ela resulta da própria natureza do contrato, no outro caso ela existe devido a

93 Pestana de Vasconcelos, O Contrato de Franquia, p. 92.94 Engrácia Antunes, Os Grupos de Sociedades – Estruturas e Organização Jurídica da Empresa Plu-rissocietária, 2.ª ed., revista e actualizada, Almedina, 2002, pp. 532-533.95 Miguel Moura e Silva, O Abuso de Posição Dominate na Nova Economia, Almedina, 2010, pp. 439-441. O autor avança ainda que está em causa um entendimento essencialmente procedimental do abuso de dependência económica, não sendo a liberdade empresarial que fi ca coarctada mas sim o recurso a meios que acabam por prejudicar não apenas os interesses dos parceiros comer-ciais dependentes, como também implicam o risco de ter implicações ao nível da redução das escolhas dos consumidores.

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uma patologia do acordo fi rmado entre as partes. Isto não obstante, também no contrato de fi nanciamento poder ocorrer uma situação em que devido às cláusulas estipuladas entre as partes ou devido à situação económica difícil em que a empresa fi nanciada se encontra exista uma efectiva restrição da liberdade de escolha da sociedade fi nanciada ao ponto de, de uma perspectiva fáctica, o credor poder ser considerado como “parceiro obrigatório”.

Assim sendo, diremos que por princípio não se aplicará o regime delineado pela doutrina para a protecção do franquiado, não obstante não se descortinar inconveniente em convocar o abuso de dependência económica previsto na Lei da Concorrência para aquele tipo de situações em que, eventualmente, estejam preenchidos os requisitos anteriormente explanados, sendo que, difi cilmente a notoriedade da marca e o requisito da restrição da concorrência, pela natureza do contrato de fi nanciamento, terão a força sufi ciente neste tipo de contrato para que se possa aplicar aquele regime. Contudo, não é uma solução que seja, por princípio, de rejeitar.

Posição adoptada

Desde logo cabe explicitar, com Joana Pereira Dias, que a renegociação dos chamados events of default é um factor determinante do equilíbrio contratual, permitindo ao devedor obter algumas concessões do mutuante, mas também enquanto elemento dinamizador do empréstimo, capaz de permitir ao cre-dor obter condições mais favoráveis para salvaguarda da sua posição, sobretudo quando a própria possibilidade de rescisão é, muitas vezes, ilusória, atendendo, por um lado, às difi culdades e onerosidade inerentes à procura de um novo par-ceiro e/ou, por outro lado, às razões de ordem política ou económica, daí que a renegociação do contrato seja, muitas vezes, mais razoável do que o seu próprio fi m, tanto mais que no comércio internacional a possibilidade de execução especifi ca se acha normalmente excluída96.

96 Joana Pereira Dias, “Contributo para o estudo”, pp. 972-973. Aliás, segundo a mesma autora, a estipulação de outras hipóteses de exigibilidade antecipada do que as previstas na lei mais não representaria do que um reforço da garantia do cumprimento por parte do devedor, pelo que deve entender-se que o artigo 780.º do CC prevê um caso de tutela mínima do interesse do cre-dor e não um caso de sanção ao devedor, pelo que deve ser admitida uma ampliação da tutela do crédito. Também Bruno Ferreira defende que as situações legais de exigibilidade antecipada não têm natureza injuntiva, pelo que podem ser afastadas pelas partes nos contratos de crédito, podendo ainda as partes modelar as suas posições contratuais determinando causas convencionais de exigibilidade antecipada. Ver: Bruno Ferreira, Contratos de Crédito Bancário e Exigibilidade Antecipada, Almedina, 2011, p. 205.

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Ora sendo que, como refere Fernando Pessoa Jorge, o remédio contra-tual habitual para o incumprimento dos covenants é a exigibilidade antecipada, convém fazer uma sucinta referência a esta temática97. De facto, a perda do benefício do prazo ocorre porque a estipulação do prazo tem por pressuposto a confi ança do credor na solvabilidade do devedor98. O artigo 780.º estipula dois casos de exigibilidade antecipada: insolvência do devedor e diminuição de garantias. Segundo Galvão Telles, quando a lei se refere à diminuição de garantias tem em vista apenas as garantias especiais, estando fora da ratio dessa parte do artigo a garantia geral representada pelo património do devedor99, fi cando, na verdade, a diminuição da garantia geral representada pelo patrimó-nio do devedor abrangida pela primeira parte do artigo referente à situação de insolvência. O nosso tipo de situações não pode considerar-se como sendo decorrentes do incumprimento de uma garantia especial, na medida em que, como defende Bruno Ferreira, não há um aumento da probabilidade de satis-fação do crédito através da adstrição de novos patrimónios ou da colocação à disposição dos bens, devendo o conceito de garantia ser reservado apenas para os casos em que existe um aumento quantitativo e/ou qualitativo da massa de bens responsáveis100. Não é, de resto, necessário que as garantias se tornem insufi cientes para assegurar o cumprimento integral da dívida bastando que sofram redução, desde que essa redução apresente aquele mínimo de gravidade que é pressuposto pelo princípio da boa-fé101-102. Já no que concerne à hipótese

97 Fernando Pessoa Jorge, “A garantia contratual da igualdade dos credores nos empréstimos internacionais”, in Estudos do Centro de Estudos Fiscais, 1983, p, 141. Neste sentido também Fran-cisco Pinto da Silva, “A infl uência dos credores bancários …”, p. 237. O autor relembra-nos que os covenants são, quase sempre, acompanhados pela estipulação de que o seu incumprimento é causa de exigibilidade antecipada de todo o empréstimo, e tal ocorrência pode ser sufi ciente para precipitar a sociedade numa situação de insolvência, tanto por si só, como pelo efeito dominó que pode provocar nas restantes obrigações da sociedade. Além do mais, existe o perigo de o incum-primento servir de alerta precoce para os bancos relativamente à situação difícil da sociedade devedora, permitindo-lhes tomar atempadamente as medidas que entenderem.98 Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1982, p. 192.99 Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, p. 192.100 Bruno Ferreira, Contratos de Crédito Bancário, p. 248.101 Inocêncio Galvão Telles, Direito das Obrigações, p. 196. Em sentido contrário, Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, 2.ª ed. revista e actualizada, Coimbra Edi-tora, 1981, p. 26, quando referem que não parece que a simples ideia da boa-fé ou da razoabilidade, em substituição do critério objectivo e prático da diminuição assegurasse uma administração séria da justiça, devido à sua extrema insegurança.102 Deve notar-se que discordamos de Galvão Telles, aliás como já fi cou subentendido em con-siderações anteriores, quanto à exigibilidade automática. Na verdade, no seguimento da doutrina de Nuno Pinto de Oliveira, deverá operar uma interpretação correctiva do preceito no sentido de entender esta exigibilidade não como automática mas sim, e apenas, imediata, fi cando ao cri-

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de insolvência do devedor, quando o mesmo se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas ocorrerá, de igual forma, uma situação de perda do benefício do prazo, não bastando o justo receio da mesma, o que não signifi ca que a situação de insolvência em que se encontra o devedor tenha de ser judicialmente declarada103-104-105.

tério do credor exercer ou não tal faculdade. Ver: Nuno Pinto de Oliveira, Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra Editora, 1.ª ed., 2011, p. 392.103 Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. II, Transmissão e Extinção das Obrigações, Não Cumprimento e Garantias do Crédito, 4.ª ed., Almedina, 2006, p. 162.104 Outra problemática que seria interessante estudar neste contexto, mas que os limites do pre-sente estudo não nos permitem, seria a da responsabilidade dos administradores da sociedade na proximidade da insolvência. De facto, levantam-se especiais problemas neste âmbito devido à circunstância de, como refere Maria Fátima Ribeiro ser mais provável que aqueles que podem controlar a sociedade a exponham a iniciativas excessivamente arriscadas, cujo insucesso será, do ponto de vista fi nanceiro, exclusivamente suportado pelos credores sociais, sendo que, também os administradores sentem-se motivados para a prática de actos que lhes permitam, pelo menos, adiar o fi m da actividade empresarial e, com ele, do exercício das funções que exercem na sociedade, até porque a sua reputação só terá a perder com o início do processo de insolvência da sociedade que administram. Desta perspectiva, para tutelar adequadamente os interesses dos credores sociais neste tipo de situações, o processo de insolvência deve ter início o mais cedo possível. Simplesmente, como refere a autora citada, não se pode ignorar que, a partir do momento de apresentação da sociedade à insolvência ou do pedido de declaração desta, o valor da empresa no mercado baixa, podendo fi car comprometida a possibilidade de recuperação da mesma, tendo como consequên-cia o facto de o valor a repartir pelos credores sociais ser menor. Aliás, esta é uma das razões pelas quais as empresas tentam, à margem de um processo judicial de insolvência, negociar com os seus credores uma qualquer forma de reestruturação que envolva a sua participação. Apenas dar nota de que os comportamentos oportunistas dos administradores são especialmente preocupantes devido à circunstância de terem deixado de responder solidariamente, neste tipo de casos, perante os cre-dores sociais. Sobre este tema, ver, por todos: Maria Fátima Ribeiro, “A responsabilidade de gerentes e administradores pela actuação na proximidade da insolvência de sociedade comercial”, in Estudos em homenagem ao Professor Doutor Carlos Ferreira de Almeida, vol. 4, Coimbra, Almedina, 2011, pp. 293-298. Ficam então sem responsabilização os actos dos administradores neste tipo de situações? Seguindo a doutrina de Carneiro da Frada, na medida em que quer o artigo 18.º, quer o artigo 186.º/3, al. a) do CIRE (o último dos artigos citados presume como gravemente culposa a conduta dos administradores que não tenham cumprido o dever de requerer a decla-ração de insolvência) podem ser qualifi cados como normas de protecção, a sua violação implica necessariamente responsabilidade nos termos do artigo 483.º/1 do CC pelos danos que para os credores resultem da omissão ou do retardamento da apresentação da sociedade à insolvência. Ver: Carneiro da Frada, “A responsabilidade dos administradores na insolvência”, in Revista da Ordem dos Advogados, Lisboa, A 66, n.º2, 2006, pp. 699-702. Outro problema intimamente ligado com este último é o da responsabilidade dos bancos pela concessão de crédito. Devido aos limites do presente estudo também não iremos aprofundar o tema. Apenas daremos nota de que se tem entendido que o facto de o banqueiro ter aceite conceder crédito a uma empresa cujas difi culda-des conhecia não é sufi ciente para considerar que actuou ilicitamente, devendo apenas tal conduta

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105 Contudo, também pode ocorrer que a eventual verifi cação de um event of default possa consubstanciar, se a interpretação da vontade das partes assim o determinar, uma cláusula resolutiva expressa106, não obstante a praxis confi rmar que, na grande maioria dos casos, este tipo de cláusulas corresponde a um aper-feiçoamento dos casos de perda do benefi cio do prazo107. É avançado, contudo, que a liberdade que seja reconhecida às partes para estabelecerem uma cláusula deste tipo não é, nem pode ser, absoluta, isto é, ao ponto de conferir ao credor o direito de resolver o contrato com base num facto desprovido de qualquer sig-nifi cado na economia do contrato108. Nesta temática Joana Pereira Dias defende existirem quatro “bastiões” que se erguem como limites necessários perante a liberdade das partes na estipulação de factos capazes de operar a resolução: o princípio da boa-fé contratual e o critério geral do abuso de direito, os critérios que valoram a gravidade e se acham fi xados em normas imperativas (artigos 934.º e 1093.º/1 do Código Civil), o objectivismo protector que resulta dos artigos 802.º/2 e 808.º/2 do Código Civil, e o princípio que resulta do artigo 809.º do Código Civil109.

ser ilícita quando a sobrevivência da empresa estivesse irremediavelmente comprometida. Aliás, uma excessiva responsabilidade das instituições de crédito poderia paralisar o mercado e frustrar qualquer possibilidade de recuperação e manutenção das empresas. Ver, por todos: Susana Aze-vedo Duarte, “A responsabilidade dos credores”, p. 200.105 Um mecanismo interessante para salvaguardar as empresas em situação económica difícil e que também consubstancia um caso de acordos extrajudiciais é o processo especial de revitalização, visando este regime assumir-se como um mecanismo célere e efi caz para assegurar a recupera-ção dos devedores que se encontram em situação económica difícil ou em situação de insolvên-cia iminente, mas em relação aos quais ainda não se verifi ca uma situação de insolvência actual. Sobre este processo especial de revitalização versa o artigo 17.º-A a I do CIRE. Este processo depende de uma manifestação de vontade do devedor e de, pelo menos, um dos seus credores, de encetarem negociações conducentes à revitalização, por meio da aprovação de um plano de recuperação. Importante neste contexto é reter que as propostas de recuperação devem basear-se num plano de negócios viável e credível. Ver Menezes Cordeiro, “O princípio da boa-fé e o dever de renegociação em contextos de “situação económica difícil””, in II Congresso de Direito da Insolvência, Lisboa, 2014, pp. 65-66.106 Joana Pereira Dias, “Contributo para o estudo”, p. 1005.107 Neste sentido, vai também Bruno Ferreira, Contratos de Crédito Bancário, p. 205, quando refere que na prática bancária tratam-se, na grande maioria de vezes, de verdadeiras cláusulas de exigibilidade antecipada.108 Joana Pereira Dias, “Contributo para o estudo”, p. 1009. Também Helena Brito realça o problema da excessiva desprotecção da parte inadimplente, sempre que o direito de resolução fi que dependente de violações contratuais subjectiva e objectivamente pouco importantes. Ver: Helena Brito, O Contrato de Concessão Comercial, Coimbra, Almedina, 1990, pp. 234-235.109 Joana Pereira Dias, “Contributo para o estudo”, p. 1010.

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Estas considerações servem para demonstrar que neste tipo de situações há que atentar sempre na relevância do eventual incumprimento, não sendo de considerar como possibilidade de exercício do vencimento antecipado qual-quer inadimplemento da outra parte, devendo, segundo nos parece, o principio da boa-fé, aplicável ao grau de diminuição das garantias especiais, ser também aplicável nos casos de exigibilidade antecipada convencionada entre as partes e que não se enquadra directamente no regime legal providenciado pela lei, na medida em que não existe nenhuma particularidade que obste a tal aplicabi-lidade neste tipo de situações. Aliás, como avança Bruno Ferreira, a actividade jurígena das partes terá de se confrontar não apenas com normas imperativas, mas especialmente com a boa-fé objectiva considerada na sua vertente de regra de conduta, no sentido da não admissibilidade de prejuízos desproporcionados, que no entender do autor se consubstancia em, no âmbito das causas conven-cionais de exigibilidade antecipada, estabelecer-se um mínimo de seriedade e de não arbitrariedade, sendo relevantes, neste particular, os princípios de razoa-bilidade, adequação e proporcionalidade como concretizações do princípio da boa-fé110. Aliás, o autor chega mesmo a defender, e a nosso ver com assertivi-dade, que valem neste âmbito os princípios actualmente estabelecidos para a análise das cláusulas resolutivas expressas, onde a doutrina (como já foi por nós explicitado em que termos) tem elaborado critérios retirados principalmente da boa-fé111. O que é coerente na medida em que não existem diferenças substan-ciais entre os dois tipos de situações que justifi que que não se aplique aos casos de exigibilidade antecipada um princípio vital do nosso sistema jurídico112.

Em suma, o que pretendemos demonstrar é que se justifi ca erigir como primeiro limite à eventual actuação abusiva por parte do credor controlador o princípio da boa-fé, no sentido de limitar as hipóteses de exigibilidade anteci-pada (ou do seu accionamento) àquelas situações em que, e atendendo ao cir-cunstancialismo do caso concreto, se justifi car a perda de confi ança do credor na sociedade fi nanciada (aliás, fundamento do regime legal da perda do benefi cio do prazo) e, além do mais, quando o incumprimento de um covenant assuma relevância sufi ciente no contexto daquele concreto contrato de fi nanciamento, ou seja, que fi que prejudicada de forma minimamente séria a “economia do

110 Bruno Ferreira, Contratos de Crédito Bancário, p. 216.111 Bruno Ferreira, Contratos de Crédito Bancário, p. 242.112 Joana Pereira Dias, “Contributo …”, pp. 895-896, Refere a autora que não se trata tanto de um problema de boa-fé no momento da negociação e estipulação da cláusula aqueles que deve preocupar neste tipo de cláusulas, mas sim o de averiguar se, no período contratual e pelo que toca ao exercício do direito pelo credor a que não sejam constituídas garantias reais a favor de terceiros cre-dores, se age de acordo com esse princípio.

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contrato”, pois uma solução de sentido contrário levaria a que fosse postergado o princípio da boa-fé e potenciaria (mais) situações de abuso por parte do cre-dor controlador.

E caso se justifi que o vencimento antecipado da obrigação? Quais os limites a uma eventual renegociação113 dos termos do contrato de fi nanciamento, como alternativa ao vencimento imediato da obrigação?

Devemos começar por referir que na época do liberalismo individualista vingava uma verdadeira mística contratual, isto é, a vontade individual, desde que esclarecida e livre, garantiria automaticamente a justiça do contrato114. Não obstante, a verdade é que posteriormente se veio a reconhecer que o contrato livremente formado não é necessariamente justo, dando, frequentemente, lugar à prevalência do forte sobre o fraco115-116.

Ora, segundo Pedro Pais de Vasconcelos, o regime do negócio usurário per-mite voltar a encarar a justiça interna do contrato comutativo como fundamento (causa) da sua juridicidade, surgindo a usura ligada ao princípio da equivalência

113 Quanto à possibilidade de existir um dever de renegociação dos termos do contrato de fi nan-ciamento, poderemos, com Menezes Cordeiro, defender que um eventual dever de negociar, ou no que nos interessa para o presente estudo, de renegociar, é somente procedimental, no sentido de as partes “obrigadas” a negociar deverem aceitar as comunicações uma da outra, devendo, no limite, encontrar-se e trocar propostas e contrapropostas. De facto, o dever de negociar traduz-se na obrigação de respeitar certos deveres acessórios, ditados pela boa-fé, obrigando tais deveres a uma disponibilidade para ouvir e à troca de informações efectivas quanto aos desejos, objectivos e disponibilidades de cada um. Não existe, verdadeiramente, um dever de contratar ex bona fi de nos casos em que falta qualquer modelo de contrato defi nitivo que possa ser imposto, funcionando apenas deveres de lealdade, que fi xam obrigações de disponibilidade, de atenção e de resposta, perante sugestões que sejam feitas. Refere ainda Menezes Cordeiro que as partes deverão man-ter-se informadas perante situações de difi culdade, iniciando contactos e, até, negociações. Con-tudo, e para o que ora nos interessa, um dever de renegociar apenas poderá ocorrer em situações limite, segundo o mesmo autor, e apenas tem um conteúdo procedimental, como já foi avançado. Ver sobre esta temática: Menezes Cordeiro, “O princípio da boa-fé”, pp. 63-68.114 Pedro Eiró, Do Negócio Usurário, Coimbra, Almedina, 1990, pp. 16-17.115 Pedro Eiró, Do Negócio Usurário, Coimbra, Almedina, 1990, p. 17.116 Também Menezes Cordeiro faz referência a este fenómeno. Na verdade, explicita o autor que o funcionamento livre da autonomia privada sempre conduziu a injustiças potenciais, o que obrigou a perguntar-se pela efectividade da autonomia privada. Segundo o mesmo autor, se, for-malmente, a autonomia privada se contenta com a inexistência de entraves ao seu funcionamento, de facto, ela requer a possibilidade de opção efectiva, aquando da celebração, podendo tal pos-sibilidade ser afectada pela dependência económica do contratante, por exemplo. Assim sendo, exige-se, a título de exemplo, como concretização material da boa-fé, um certo equilíbrio mate-rial entre as vantagens auferidas, não se admitindo prejuízos desproporcionados. Ver: Menezes Cordeiro, Da Boa-Fé, p. 653.

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e à exigência de justiça interna do contrato117. Contudo, importa frisar, não parece ser admissível uma concepção puramente objectiva da usura, devendo, antes, exigir-se também um elemento subjectivo que justifi que a reacção con-tra o negócio, não devendo o ordenamento jurídico impor que nos negócios jurídicos exista uma equivalência objectiva das prestações, não procurando o Direito uma igualdade negocial absoluta como regra118-119. Aliás, de outro modo, esquecer-se-ia que as declarações negociais são normalmente determinadas por considerações subjectivas e circunstanciais, consequentemente variáveis de indi-víduo para indivíduo, podendo um certo negócio jurídico ser justo para uns e injusto para outros, devendo ser os próprios particulares os árbitros dessa justiça ou injustiça e não o legislador120.

Para que este regime se aplique torna-se premente, num primeiro momento, que exista uma situação de inferioridade, que pode advir da inexperiência ou dependência de uma das partes face à outra, por exemplo. No que ora nos interessa, também a dependência económica é razão para a aplicabilidade deste regime. Quanto a este elemento, deve considerar-se, no seguimento de Pedro Eiró, que embora a necessidade económica121 (único tipo de necessidade apli-cável às pessoas colectivas) tenha de ser avaliada casuisticamente, deve sempre respeitar as necessidades mínimas de sustento ou condições de vida condizen-tes com a dignidade da pessoa humana, devendo ser utilizado o critério de o perigo ameaçar a existência económica do declarante122. Quanto ao elenco das situações de inferioridade, deve pugnar-se no sentido de o considerar sufi cien-

117 Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 5.ª ed., Almedina, 2008, p. 626. 118 Pedro Eiró, Do Negócio Usurário, Coimbra, Almedina, 1990, p. 25.119 Menezes Cordeiro, Da Boa-Fé, p. 651. Refere este autor que ainda que exista desequilíbrio, este deve ser esclarecido e livremente querido por quem o deseja.120 Pedro Eiró, Do Negócio Usurário, Coimbra, Almedina, 1990, p. 26.121 No âmbito da responsabilidade do banqueiro pela concessão de crédito, existe doutrina que considera que nos casos de dependência económica do fi nanciado em face do fi nanciador, em que a empresa fi nanciada consente garantias elevadas em virtude de a sua liberdade de agir se encontrar restringida, não determina, só por si, um caso de responsabilidade daquele banqueiro, sendo necessário existir dolo por parte do banqueiro, em especial, em prejudicar outros credores da empresa fi nanciada, devendo, não obstante o que foi dito, ter-se sempre em consideração que a difi culdade do banqueiro na tomada de decisões deve sempre ser um factor que, por si só, deve relevar na avaliação da adequação do comportamento do banqueiro à consciência social. Neste sentido, Margarida Matos Correia Azevedo de Almeida, A responsabilidade civil do banqueiro perante os credores da empresa fi nanciada, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, pp. 146-147.122 Pedro Eiró, Do Negócio Usurário, Coimbra, Almedina, 1990, p. 30. Não se exige, aliás, que a situação de necessidade seja real (neste caso de entrar em insolvência ou fi car numa situação económica por demais comprometedora), bastando um estado imaginário de necessidade que tenha determinado a declaração negocial, ou seja, a situação de necessidade putativa é relevante.

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temente literário para inculcar uma natureza não taxativa, podendo inserir-se aqui, por exemplo, a fi gura que não tem consagração expressa dos negócios concluídos em estado de necessidade, isto é, aqueles negócios celebrados por pessoa que verifi cando a existência de um perigo actual de um grave dano é levada, para o evitar, a concluir um negócio excessivamente oneroso123.

Já quanto à exploração dessa situação de inferioridade, a mesma pode ser objectiva, isto é, pode não implicar o conhecimento da fraqueza da contraparte, pois a supressão na reforma legislativa do adjectivo “consciente” é demasiado impressiva para não ter qualquer signifi cado124. Em sentido contrário, temos Pedro Eiró que defende ser necessária uma consciência de que se está a explorar a situação de inferioridade em que o declarante se encontra, não sendo, con-tudo, necessária intenção de o fazer125. Mesmo adoptando esta última posição, não parecem existir problemas de maior em considerar que o credor terá, na maior parte das vezes, conhecimento da situação de inferioridade em que se encontra o devedor. Importa, contudo, atentar que, como realça Pedro Pais de Vasconcelos, a exploração de inferioridade alheia pode ser aceitável segundo as concepções dominantes no comércio jurídico, existindo sempre, sem que isso seja necessariamente reprovável, algum aproveitamento de uma maior argúcia ou informação, ou capacidade económica de uma parte sobre a menor astúcia, a menor experiência, ou a menor contingência económica da outra, devendo, em último caso, ser aferida atendendo à ética dos negócios vigente e aos padrões éticos da boa-fé, sendo inaceitável a exploração que colida com a exigência de boa-fé na celebração do negócio126.

Cabe, por fi m, analisar o último requisito para que se possa aplicar esta fi gura plasmada no artigo 282.º do CC. Segundo Menezes Cordeiro, devido ao facto de a alteração legislativa de 1983 ter suprimido a exigência da natureza mani-festa da excessividade ou da falta de justifi cação, basta actualmente a constatação de uma não-equivalência apreciável entre as prestações ou uma não-justifi cação para o benefício127. Já Pedro Pais de Vasconcelos, defende que excessivo será o valor que se encontrar para além dos máximos ou mínimos que forem normais ou típicos no mercado, no meio social e económico em que o negócio for celebrado128. Avança ainda que, e este é um aspecto da maior importância para o

123 Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil – II Parte Geral, Negócio Jurídico, p. 498.124 Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil – II Parte Geral, Negócio Jurídico – Formação, Conteúdo e Interpretação, Vícios da Vontade e Inefi cácia e Invalidades, 4.ª ed., Almedina, 2014, p. 498.125 Pedro Eiró, Do Negócio Usurário, Coimbra, Almedina, 1990, p. 51. 126 Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral, p. 628.127 Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil – II Parte Geral, Negócio Jurídico, p. 499128 Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral, p. 627.

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nosso tipo de casos atendendo à sua particular natureza, o benefício, o desequi-líbrio, pode encontrar, ou não, uma justifi cação atendível, pois se a decisão sobre o excesso é um juízo objectivo de normalidade, de tipicidade, já o juízo sobre o carácter injustifi cado do benefício implica uma apreciação individualizada, do caso concreto e das suas circunstâncias, para aferir se existe para ele uma causa justifi cativa129. Ou seja, o requisito objectivo da usura verifi ca-se quando a relação valorativa entre as prestações revelar um desequilíbrio que exceda os limites normais dos padrões típicos de valor vigentes no mercado e quando não haja uma causa justifi cativa atendível para esse desequilíbrio, devendo, para a avaliação deste último elemento, socorrer-se o juiz dos padrões éticos ima-nentes ao sistema, nomeadamente se se deve ter como moralmente aceitável aquele desequilíbrio valorativo.130. Não deve ser esquecido que o nosso sistema jurídico-económico se baseia nos princípios da liberdade de concorrência e de livre contratação, pelo que obrigatoriamente resultam benefícios para uns e prejuízos para outros, não havendo concorrência sem que haja a lesão em des-vantagem de algum ou alguns dos seus intervenientes131. Assim sendo, devemos, como nos aconselha Pedro Eiró, evitar generalizações e analisar o caso concreto, analisando todas as circunstâncias do negócio, pois as circunstâncias próprias de certos negócios podem justifi car prestações que, noutros negócios, seriam con-sideradas excessivas ou injustifi cadas, devendo o juiz determinar se os benefícios prometidos ou concedidos pelo declarante têm uma justifi cação em face das concepções gerais existentes em cada momento acerca da justiça interna dos negócios132.

Após analisados os requisitos de aplicabilidade deste regime, parece fazer sentido adoptarmos a posição de Menezes Cordeiro no que diz respeito a con-siderar as proposições do artigo 282.º do Código Civil como devendo ser inter-pretadas e aplicadas em conjunto, dentro da mecânica de um sistema móvel, ou seja, por exemplo, quando a lesão seja muito grande, a exploração e a fraqueza do prejudicado poderão estar menos caracterizadas, como forma de dinami-zação de um regime que tem tido pouca concretização e aplicação, propondo uma interpretação integrada de forma a que o regime dos negócios usurários seja perspectivado como uma válvula do sistema133.

Já no que concerne à consequência, a opção pela não previsão da nulidade signifi ca que o Direito não se empenha muito na correcção do negócio, pers-

129 Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral, p. 627.130 Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral, p. 627.131 Pedro Eiró, Do Negócio Usurário, Coimbra, Almedina, 1990, p. 61.132 Pedro Eiró, Do Negócio Usurário, Coimbra, Almedina, 1990, p. 63.133 Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil – II Parte Geral, Negócio Jurídico, p. 499.

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pectivando antes a questão como sendo interprivada, deixando à iniciativa do lesado a opção pela anulabilidade ou modifi cação do negócio134, sem olvidar-mos que para o nosso ordenamento jurídico, a modifi cação do negócio usurário é preferível à sua anulação, visando-se, com aquela, restabelecer a justiça do seu projecto interno135. Assim é devido ao facto de ser difi cilmente concebível que alguém celebre um negócio jurídico que não traga qualquer vantagem à vítima das disposições draconianas, pelo que, com a manutenção do contrato, permi-tir-se-á a subsistência, pelo menos, dessas vantagens para o lesado, além de que a justiça interna do negócio não se limita a uma mera equivalência objectiva das prestações, devendo tal justiça ser também aferida pelos próprios intervenientes que o podem considerar justo, exista, ou não, uma perfeita igualdade objectiva das prestações136. Usando os ensinamentos de Castanheira Neves, dir-se-á que sendo o principio da justiça um principio axiológico, consubstancia uma inten-ção predicativa, e, como tal, não subsiste materialmente em si e unicamente mediante o sujeito real de que são predicado, tornando-se necessária a parti-cipação pessoal na defi nição do projecto de justiça própria do ordenamento jurídico137, deste modo permitindo o regime do negócio usurário às partes manterem em vigor um negócio abstractamente injusto, mas que no concreto se não revela como tal138-139.

Assim sendo, atendendo a tudo quanto já foi referido (e, aliás, já se deixou antever), devido à potencialidade deste tipo de situações, sobre que versam o nosso estudo, preencherem os pressupostos do regime dos negócios usurários, defendemos que a forma de proteger o devedor fi nanciado face a eventuais condutas abusivas por parte do credor fi nanciador aquando da renegociação dos covenants deve ser a da necessidade de observância dos limites do regime do negócio usurário. Contudo, não pugnamos apenas pela aplicabilidade deste regime a eventuais negócios que resultem dos termos renegociados do contrato de fi nanciamento mas ao próprio contrato (ao “novo” acordo) que resulte da renegociação entre as partes em causa, podendo, dessa forma, fi car abrangidos

134 Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral, p. 630.135 Pedro Eiró, Do Negócio Usurário, Coimbra, Almedina, 1990, p. 80. De facto o artigo 283.º do CC estipula que: “1. Em lugar da anulação, o lesado pode requerer a modifi cação do negócio segundo juízos de equidade. 2. Requerida a anulação, a parte contrária tem a faculdade de opor--se ao pedido, declarando aceitar a modifi cação do negócio nos termos do número anterior.”.136 Pedro Eiró, Do Negócio Usurário, Coimbra, Almedina, 1990, pp. 87 e 95.137 Castanheira Neves, Lições de introdução ao estudo do direito, Coimbra, 1968, p. 108.138 Pedro Eiró, Do Negócio Usurário, Coimbra, Almedina, 1990, p. 156.139 Na verdade, como refere Menezes Cordeiro, o Direito não quer, contra a vontade das par-tes o equilíbrio, sendo, contudo, relevante que as partes disso estejam sabedoras e desejosas. Ver: Menezes Cordeiro, Da Boa-Fé, p. 659.

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pela tutela do regime retratado quaisquer matérias e conteúdos sobre que verse o novo acordo, desde a celebração de novos negócios, à alteração de políticas da sociedade fi nanciada, como sejam o caso de novas exigências no que concerne à constituição de garantias (ou à impossibilidade de o fazer) com outros agentes do mercado, à renegociação de taxas de juro, à distribuição de dividendos, a alterações na estrutura da sociedade e na composição dos seus órgãos, ou, por exemplo, ao maior acesso a informações da sociedade fi nanciada.

Consideramos que deve ser feito um juízo global sobre o novo acordo resultante da eventual renegociação, e, dentro de um sistema móvel no que diz respeito à verifi cação dos vários requisitos do regime dos negócios usurários, apurar se se encontram preenchidos os seus pressupostos. A este respeito, se no que concerne à situação de inferioridade e exploração dessa situação não existirão grandes difi culdades em verifi carem-se os requisitos legais, o principal óbice, mas, ao mesmo tempo, o principal elemento de dinâmica deste sistema proposto será o da verifi cação do último requisito enunciado (benefícios ou sacrifícios excessivos ou injustifi cados), atendendo sobretudo a que o credor optou por não operar a exigibilidade antecipada, podendo parecer de um ponto de vista precipitado que esta concessão do credor, que possivelmente permite ao devedor continuar a “existir”, justifi caria quaisquer concessões deste último. O que não é verdade, desde logo, pelo que já se referiu anteriormente no sentido de também para o credor poder ser mais vantajoso não operar a exi-gibilidade antecipada e pelos inconvenientes que teria no caso de optar pela exigibilidade, nomeadamente no que concerne à descoberta de um novo par-ceiro negocial, e atendendo a razões de ordem política e económica. Ou seja, como anteriormente se referiu, o normal é existir uma renegociação devido à circunstância de a mesma, por norma, ser o meio que proporciona mais van-tagens a ambas as partes. Ora, principalmente pelas vicissitudes deste tipo de acordos (relembre-se que muito provavelmente uma empresa que incumpre um determinado covenant encontrar-se-á em situação económica difícil e o accionamento da exigibilidade antecipada poderá precipita-la para uma situa-ção de insolvência) dever-se-á ter em conta todos os elementos e circunstâncias envolventes e elaborar um juízo global sobre a idoneidade do novo negócio, sem nunca esquecer, todavia, quer que esta renegociação é uma situação cuja alternativa seria, possivelmente, a insolvência do devedor, quer a natureza e as razões que estão na base deste tipo de acordos.

Aliás esta é uma proposta de solução que acaba por devolver às partes a resolução do problema, pelo já referido funcionamento do regime de conse-quências que a lei estabelece para o negócio usurário.

Por tudo quanto foi dito ao longo do presente estudo parece-nos, em suma, que este é o tipo de solução mais apropriado do ponto de vista dogmático (pelas

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razões aduzidas ao longo do trabalho) e que almeja um maior equilíbrio entre os interesses de ambas as partes, não apenas pela importância e espaço que a nossa lei deixa às circunstâncias e especifi cidades do caso concreto (fulcral no nosso tipo de casos) e à ética vigente dos negócios presente em determinado momento, mas também porque devido ao regime do seu incumprimento, com preferência pela modifi cabilidade (segundo juízos de equidade) do negócio face à sua eventual anulabilidade, acaba por ser uma solução que protege ambas as partes, não desconsiderando os interesses de nenhuma delas e que permite opti-mizar os interesses contraditórios (naturais neste tipo de contratos) da melhor forma possível.

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Capital social, reservas e suprimentos: seu conteúdo, função e papel na cobertura de prejuízos

DR.ª. JOANA FREIRE ALMEIDA* 1

“O comerciante está por natureza sujeito ao risco. Lucro sem risco é parasitismo.”

oliveira ascensão

Sumário: 1. Introdução. 2. Capital próprio e capital alheio. 3. Capital social: Conteúdo; Função. 4. Reservas: 4.1. Reserva legal: Conteúdo; Função; 4.2. Reservas livres; Con-teúdo; Função. 5. Suprimentos: Conteúdo; Função. 6. A cobertura de prejuízos: Capital social; Reservas; Suprimentos. 7. Conclusão.

Nota Prévia

As disposições legais indicadas sem referência específi ca ou por referência a “CSC”, reportam-se ao Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de setembro, com as alterações posteriores (últi-mas alterações introduzidas pela Lei n.º 148/2015, de 9 de setembro).

As citações bibliográfi cas ao longo do texto respeitam a seguinte estrutura: nome dos autores, título do texto, local de publicação (se aplicável), data, edi-tora, página ou páginas de onde consta a citação.

As primeiras citações bibliográfi cas são descritas de forma completa; as seguintes, de forma abreviada.

Todas as fontes na internet citadas foram consultadas no dia 10 de fevereiro de 2016.

* Advogada na sociedade de advogados PLMJ.

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O texto está redigido segundo o acordo ortográfi co e, a favor da harmoni-zação, as citações – todas identifi cadas entre aspas – foram ajustadas em confor-midade, apenas para que não coexistissem, no mesmo texto, redações segundo diferentes regimes de ortografi a.

O presente trabalho refere-se às sociedades por quotas e às sociedades anó-nimas, por serem os tipos de sociedades com maior expressão em Portugal.

Encerramento da pesquisa bibliográfi ca: 10 de fevereiro de 2016.

1. Introdução

Na Europa, os bancos têm historicamente sido a principal fonte de fi nan-ciamento das sociedades, com os mercados de capitais a apresentarem um papel muito secundário: 70% das necessidades de fi nanciamento das empresas euro-peias são asseguradas através de crédito bancário, enquanto nos Estado Unidos da América essa percentagem cai para 30%1.

No entanto, perante difi culdades acrescidas em aceder ao crédito bancário, que se torna cada vez mais escasso e caro, é imperativo procurar outras fontes de fi nanciamento, ainda no âmbito dos capitais alheios – através, por exemplo, de operações em mercado de capitais e com capital de risco – ou optando por fortalecer o capital próprio.

Grande parte do tecido empresarial português enfrenta atualmente difi -culdades fi nanceiras e os fundos procurados destinam-se, muitas vezes, a fazer face a perdas. Nos casos em que as sociedades registam prejuízos acumulados, há mesmo que avaliar a viabilidade fi nanceira da empresa antes de se procurar a sua recapitalização.

A viabilidade fi nanceira, e a capacidade de compensação das perdas sofri-das, passa pela solidez do capital próprio. Neste sentido, encontramos regras no Código das Sociedades Comerciais (CSC) que permitem identifi car as reservas e o capital social como as duas componentes do capital próprio que se destinam à cobertura de prejuízos. Por isso, vamos analisar o capital social (3.) e depois os diversos tipos de reservas que podem ser constituídos (4.). No último capítulo (6.), fazemos também uma alusão à forma como, em concreto, o capital social e as reservas funcionam no contexto da cobertura de prejuízos.

Por outro lado, os sócios podem ainda fazer contribuições para a sociedade, sendo muito comum a prestação de suprimentos, que apresenta um regime de restituição mais vantajoso do que o regime das prestações suplementares, que

1 Fernando Faria de Oliveira, A Banca no Financiamento das Empresas, Inforbanca, n.º 104, abril-junho 2015, p. 20 (disponível em www.ifb.pt).

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faz depender o reembolso de uma deliberação da Assembleia Geral e da veri-fi cação da condição de a situação líquida não fi car inferior à soma do capital e da reserva legal. É certo que as prestações suplementares integram o capital próprio da sociedade, enquanto os suprimentos vão pesar no seu passivo. No entanto, encontrando-se eventualmente a sociedade numa situação fi nanceira desfavorável, poderá ser considerada pelos sócios a renúncia à restituição dos suprimentos prestados, caso em que o valor correspondente passa a fazer parte do património da sociedade2.

Até 2015, em Portugal os suprimentos benefi ciavam de uma isenção de imposto de selo, com exceção dos casos em que o sócio fosse uma entidade domiciliada em território sujeito a regime fi scal privilegiado.

Nos termos da Proposta de Orçamento do Estado para 2016, passam a ser impostas condições adicionais para que os empréstimos dos sócios às sociedades fi quem isentos de imposto de selo: (i) a participação social corresponder a, pelo menos, 10% do capital e (ii) ser detida há, pelo menos, um ano consecutivo (ou desde a constituição da sociedade, se tiver sido constituída há menos tempo, contando que, neste caso, a participação seja mantida durante aquele período).

Parece que se trata de uma medida que visa combater a aquisição de partici-pações minoritárias com vista à prestação de empréstimos ao abrigo da fi gura dos suprimentos com o único propósito de benefi ciar da isenção de imposto de selo, mas que poderá ter por efeito reduzir o número dos suprimentos “reais”. Em todo o caso, só o tempo permitirá avaliar os verdadeiros impactos desta alteração.

Face ao papel dos suprimentos no fi nanciamento societário, pensamos ser útil conhecer o seu conteúdo e regime.

2 “Em termos de desreconhecimento, o parágrafo 33 da NCRF 27 estabelece que os passivos fi nanceiros, tais como as dívidas a fornecedores/sócios, deverão ser retirados do balanço da enti-dade apenas quando este se extinguir, isto é, quando a obrigação estabelecida no contrato seja liquidada, cancelada ou expire. (...) Todavia, também poderão acontecer outras situações mais atípicas que levem ao desreconhecimento das dívidas a fornecedores/sócios, como, por exemplo, (...) através de algum tipo de acordo de perdão de dívida (...). Em termos contabilísticos, o perdão de uma dívida a pagar deverá resultar no desreconhecimento do passivo fi nanceiro por contra-partida do reconhecimento de rendimentos na demonstração de resultados, conforme previsto no parágrafo 90 da estrutura conceptual do SNC.” (O perdão de suprimentos por parte dos sócios, Con-tas & Impostos, Vida Económica, 30-03-2012, Informação elaborada pela Ordem dos Técnicos Ofi ciais de Contas, disponível em http://194.107.127.72/gen.pl?p=stories&op=view&fokey=ve.stories/79590&sid=ve.sections/196047&skin=ve:ve:print). Salientamos que o perdão de dívida de suprimento não equivale a uma prestação suplementar cuja natureza de obrigação que é imposta aos sócios, justifi ca que tenha de constar do contrato de sociedade e, ainda, ser deliberada pela Assembleia Geral. Ora, os suprimentos são prestados voluntariamente e por iniciativa do sócio, pelo que também a sua conversão em património social deve ser livre.

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Mas para compreender estas três fi guras (capital social, reservas e suprimen-tos), é necessário avaliar onde se posicionam face ao capital próprio e ao capital alheio da sociedade. Não se trata de uma mera necessidade inútil de classifi ca-ção em categorias vazias ou de determinar em que lugar do balanço as respeti-vas cifras são registadas – trata-se de uma diferente natureza e de uma diferente signifi cação e função na estrutura fi nanceira da sociedade.

Começamos, então, por tecer algumas considerações entre a distinção entre capital próprio e capital alheio.

2. Capital próprio e capital alheio

Os fundos de que as sociedades dispõem para desenvolver a sua atividade qualifi cam-se ou como capital próprio (equity fi nance) ou como capital alheio (debt fi nance), conceitos que se distinguem, em termos gerais, segundo os seguin-tes três critérios essenciais:

1. Proveniência. Considera-se capital próprio toda a receita obtida mediante contribuição dos sócios para a sociedade. Essas contribuições podem ser feitas diretamente (a título de entradas ou de prestações acessórias ou suplementares) ou indiretamente (através da não distribuição de lucro, que fi ca assim retido na sociedade em resultados transitados ou reservas). O capital alheio provém, como o próprio nome indica, de entidades alheias à sociedade, nomeadamente através de fi nanciamento bancário ou emissão de obrigações.

2. Natureza defi nitiva ou transitória. Enquanto o capital alheio está, por norma, associado à obrigatoriedade de reembolso e a uma retribuição certa através do vencimento de juros a uma taxa predefi nida, o mesmo não acontece com o capital próprio. Assim, o capital próprio é conce-dido com caráter defi nitivo enquanto o capital alheio tem normalmente um prazo certo de reembolso, de curto ou de longo prazo.

3. Função. Os sócios só são reembolsados pelos montantes que atribuem à sociedade como capital próprio após liquidado todo o capital alheio. O capital próprio serve, portanto, de garantia de satisfação do capital alheio.

Sublinhamos que os critérios referidos não permitem, facilmente, enqua-drar todos os casos.

Por exemplo, a qualifi cação dos suprimentos como capital próprio ou alheio não é clara: por um lado, a sua aproximação à fi gura do mútuo leva a que sejam contabilisticamente inscritos no passivo, mas a verdade é que a lei

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determina, em certa medida, a sua responsabilidade pelas dívidas sociais [artigo 245.º, n.º 3, alínea a), do CSC]. Esta dualidade leva Mota Pinto3 a considerar os suprimentos como “capital quase-próprio por força da lei”.

Quanto à sua inscrição no passivo, à primeira vista pode parecer injusto aplicar aos suprimentos o mesmo regime das dívidas da sociedade face a ter-ceiros, uma vez que, para além da assimetria informativa, os sócios estão ainda em condições de infl uenciar as decisões internas da sociedade. No entanto, é preciso não esquecer que, se é importante, no nosso sistema, a proteção dos credores, se procura também atribuir uma ampla liberdade aos sócios quanto às formas de fi nanciamento das sociedades.

Dito isto, convém ter presente que, muitas vezes, certos credores assu-mem uma posição de controlo que lhes permite infl uenciar a própria gestão das sociedades. Já em 2009, A. Perestrelo de Oliveira4 lançava o seguinte alerta: “o controlo «excessivo» do credor sobre a sociedade aproxima-o, signifi cativa-mente, do acionista controlador (quasi-controlling shareholder), transformando-o em insider e fazendo-o incorrer em deveres e responsabilidades (v.g. deveres fi duciários) equivalentes aos do verdadeiro e próprio sócio controlador”.

No âmbito da autonomia privada, e desconsiderando eventuais limitações impostas por contratos celebrados com stakeholders controladores, a lei parece atribuir aos sócios total liberdade para defi nirem a estratégia de fi nanciamento da sociedade, seja através de aumentos de capital ou de outras contribuições para os capitais próprios ou através de uma maior procura de capitais alheios. Ou seja, os sócios têm a faculdade de defi nir, conforme considerarem mais adequado, a estrutura de capital da sociedade.

Neste sentido, não só a lei não impõe uma determinada proporção entre capitais próprios e alheios como também não obriga a que o capital social seja a cifra de maior valor. E não poderia ser de outra forma, uma vez que seria impossível determinar uma estrutura de capital que se adequasse, em abs-trato, a todo o tipo de sociedades comerciais independentemente da atividade prosseguida.

A questão que se impõe é a de saber se a liberdade dos sócios no fi nancia-mento das sociedades é tão ampla como parece, permitindo uma tomada de decisões completamente discricionária, onde os sócios tenham de se preocupar “apenas” com as consequências dos artigos 40.º, 83.º e 84.º do CSC, sem qual-quer outro tipo de parâmetros.

3 Do Contrato de Suprimento, O Financiamento da Sociedade entre Capital Próprio e Capital Alheio, 2002, Almedina, p. 56.4 Os credores e o governo societário: deveres de lealdade para os credores controladores?, Revista de Direito das Sociedades, Ano I (2009) – número I, Almedina, p. 97.

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É que, ao abrigo do princípio da responsabilidade limitada, mesmo um excessivo recurso a capitais alheios gerador de situações de subcapitalização com graves prejuízos para os credores, não permite, em princípio, a responsa-bilização dos sócios para além do montante da sua participação no capital social. Acompanhamos Mota Pinto5 quando escreve que “repugna a um elementar sentido de justiça que alguém possa constituir uma sociedade subcapitalizada, exercer a sua atividade com fi nanciamento de terceiros e, requerendo (ou espe-rando que requeiram) a falência da sociedade, deixar os credores a braços com a quase totalidade dos custos empresariais, enquanto o(s) descuidado(s) empreen-dedor(es) se preparam para constituir uma nova sociedade”.

Sendo certo que a cifra de capital social é publicitada e acessível ao público mediante consulta junto do Registo Comercial, parece-nos que esse meio não serve de proteção aos credores “fracos” que, mesmo conhecendo o montante do capital social da sociedade, encontram-se desprovidos de poder negocial que lhes permita impor garantias adicionais, ao contrário do que acontece com os designados credores fortes6. Além do mais, o conhecimento dessa cifra diz muito pouco sobre a real situação fi nanceira da sociedade.

Assim, “tem-se assistido, em direito comparado e também entre nós, a um movimento no sentido da responsabilização pessoal – subsidiária mas ilimitada – dos próprios sócios, perante os credores sociais, recorrendo-se à aplicação, nesta hipótese, da teoria Durchgriff ou da supressão da personalidade jurídica das sociedades comerciais”7.

No entanto, quer a via da responsabilidade obrigacional quer a via da res-ponsabilidade delitual enfrentam uma difi culdade de princípio no nosso orde-namento jurídico quanto ao respetivo fundamento, face à inexistência de uma obrigação ou de um dever geral legal de os sócios fi nanciarem a sociedade de forma sustentável.

Na Alemanha, tem sido defendido que a subcapitalização manifesta das sociedades constitui uma violação do dever geral de atuação conforme os bons costumes enquanto, em Portugal, a desconsideração da personalidade jurí-dica tem sido reconhecida como um instituto autónomo, não reconduzível a nenhuma fi gura do nosso ordenamento jurídico em particular, mas a um

5 Do Contrato...ob. cit., pp. 123 e 124.6 M. Fátima Ribeiro, O Capital Social das Sociedades por Quotas e o Problema da Subcapitalização Material, Capital Social Livre e Ações sem Valor Nominal, 2011, Almedina, p. 53.7 Tarso Domingues, As diferentes formas de fi nanciamento societário pelos sócios e a transmissibilidade autónoma dos créditos respetivos, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Heinrich Ewald Hors-ter, 2012, Almedina, pp. 757 e 758.

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conjunto integrado de diversas fi guras8. Neste sentido, Menezes Cordeiro qua-lifi ca-o como um instituto de enquadramento, com autonomia dogmática.9

A nosso ver, provocando culposamente uma situação de subcapitaliza-ção manifesta10 da sociedade, para benefício próprio, sem olhar ao interesse

8 Pedro Cordeiro (A desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais, 1989, AAFDL, pp. 132 e ss.) aplica a limitação da responsabilidade aos casos em que o sócio atua a coberto da capa da pessoa coletiva, mas a utiliza meramente como instrumento da sua vontade. Apesar de o A. reconhecer que as situações de unipessoalidade ou de grupo são mais facilmente permeáveis a este tipo de abuso, afi rma que a desconsideração deverá abarcar também os casos de “abuso pelo sócio, ou conjunto de sócios, que estejam em condições de formar de per si a vontade social, desfuncionalizando a sociedade”. Depois de referir – e afastar – os institutos que têm sido apre-sentados para fundamentar a desconsideração da personalidade coletiva (um dever de manuten-ção da segurança nas relações económicas que obrigaria as partes a tomar as medidas adequa-das e sufi cientes para impedir o prejuízo de terceiros; a culpa in contrahendo; a responsabilidade pela declaração concludente; o instituto do venire contra factum proprium; erro na organização e o abuso de direito), o A. defende que a desconsideração é um instituto jurídico autónomo cuja admissibilidade resulta do ordenamento jurídico na sua globalidade e em particular da fi gura do abuso de instituto. Quanto às consequências, o A. afi rma que deverão variar consoante o tipo de abuso. Tarso Domingues (Do Capital Social – Noção, Princípios e Funções, 2.ª ed., 2004, Coimbra Editora, p. 235.) defendeu também que a concessão do privilégio da responsabilidade limitada deve ceder, devendo aplicar-se o regime geral, sempre que os sócios criem uma “organização extremamente fraca e débil em face da atividade que se pretende exercer com a qual se visa única e exclusivamente fugir aos riscos de perda e à responsabilidade decorrente da atividade econó-mica”. Menezes Cordeiro (O Levantamento da Personalidade Coletiva no Direito Civil e Comercial, 2000, Almedina, p. 153) diz que este instituto “traduz uma delimitação negativa da personali-dade coletiva por exigência do sistema ou, se se quiser: ele exprime situações nas quais, mercê de vetores sistemáticos concretamente mais ponderosos, as normas que fi rmam a personalidade coletiva das substituídas por outras normas”. Por seu lado, Mota Pinto (Do Contrato...ob. cit., p. 128) defende a existência de um dever geral de fi nanciamento ordenado da sociedade que, uma vez violado com culpa, geraria a responsabilidade do sócio. Finalmente, A. Perestrelo de Oliveira (Manual de Corporate Finance, 2.ª ed., 2015, Almedina, p. 51) defende que “o prin-cípio da boa fé reclama que a sociedade comercial seja constituída com um capital adequado à sua atividade: no caso contrário poderá verifi car-se uma situação de subcapitalização material, suscetível de determinar a atuação do instituto do levantamento da personalidade (...) [que não é, no entanto,] sufi ciente para a proteção dos credores”.9 O Levantamento...ob. cit., 2000, Almedina, p. 148.10 Encontra-se em situação de subcapitalização a sociedade que dispõe de fundos (próprios ou de capital alheio) insufi cientes para a manutenção do seu funcionamento e prossecução da sua atividade, em particular no que respeita ao cumprimento dos compromissos perante fornecedo-res, trabalhadores e o Estado. A densifi cação do conceito de subcapitalização não pode ser feita de forma geral e abstrata porque a medida dos fundos necessária e adequada para cada sociedade varia em função da estrutura concreta que esteja em causa e do respetivo objeto social. Por isso, pode ser questionável estipular-se um valor fi xo de capital social mínimo por imposição legal (o que atualmente acontece apenas para as sociedades anónimas, pois o capital social mínimo nas sociedades por quotas é livre, nos termos do artigo 201.º do CSC, correspondendo à soma das

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da sociedade e da qual resultem danos para os respetivos credores, deverá ser ponderada, tendo em conta as circunstâncias de cada caso, a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, com vista a garantir que os credores sociais são ressarcidos pelos danos sofridos, através do património dos sócios (desde que o património da sociedade não permita essa compensação em primeiro lugar).

Por outro lado, e conforme refere Pedro Cordeiro11, somos da opinião de que os sócios não respondem, nestes casos, ilimitadamente, pois não se pre-tende uma transferência total do risco dos credores para os sócios abusadores. Os credores deverão ressarcir-se mediante o património do(s) sócio(s) apenas na medida em que encontrariam satisfação no património social se o comporta-mento do(s) sócio(s) tivesse respeitado os padrões normais de diligência.

Notamos que M. Fátima Ribeiro12 considera que a desconsideração da personalidade coletiva não é uma via adequada para a tutela dos credores sociais devido à insegurança e casuísmo do recurso a este instituto e à inexistência de uma regra que imponha a constituição de um capital social adequado ao objeto social, o que faz com que não recaia sobre os sócios qualquer dever de capitali-zação adequada. Em alternativa, propõe a responsabilização dos administradores e gerentes, de direito e de facto, particularmente no que toca à inobservância do dever de apresentação pontual da sociedade à insolvência.

Apesar da referida liberdade de decidir a estrutura de fi nanciamento da sociedade, ainda que com as limitações mencionadas, os sócios encontram-se sujeitos à obrigação de dotação de capital próprio, concretizada no princípio da exata formação do capital social e da sua intangibilidade.

quotas, pelo que pode ser de apenas 1€ nas sociedades unipessoais). Quanto aos tipos de subca-pitalização, existe uma situação de subcapitalização formal ou nominal quando a insufi ciência de fundos é colmatada com empréstimos dos sócios que superam signifi cativamente a cifra do capital social; existe uma subcapitalização material sempre que a insufi ciência de fundos não seja compensada com quaisquer contribuições. Adicionalmente, a subcapitalização é originária sempre que já exista no momento de constituição da sociedade e superveniente quando surja apenas posteriormente. Quanto à subcapitalização manifesta, trata-se de uma situação de subca-pitalização qualifi cada, especialmente gravosa, por tornar absolutamente impossível à sociedade realizar o seu objeto. Nestes casos, Coutinho de Abreu (Capital Social Livre e Ações sem Valor Nominal, 2011, Almedina, pp. 38 e 39) e Tarso Domingues (Do capital...ob. cit., pp. 57, 74 e 243 e Variações sobre o capital social, 2009, Almedina, Coimbra, p. 389) defendem a aplicação da desconsideração da personalidade coletiva.11 Ob. cit., pp. 132 e ss..12 O Capital...ob. cit., pp. 57 e 74.

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3. Capital social

Conteúdo

Na determinação do conceito de capital social, é conveniente, em primeiro lugar, distingui-lo do conceito, mais alargado, de património da sociedade.

O capital social corresponde aos montantes que os sócios se obrigam – mediante celebração do contrato de sociedade – a manter na sociedade sob essa qualifi cação e regime13, podendo disponibilizá-lo integralmente até ao

13 O regime aplicável ao capital social integra a obrigação da sua exata formação, a proibição de distribuição/reembolso aos sócios (com vista a manter a respetiva estabilidade) e regras relacionadas com a sua publicidade. A publicidade que é dada ao capital social cria nos terceiros a expectativa de que o património da sociedade contenha, pelo menos, esse valor. A proteção desta expectativa levou a que, na sequencia da 2.ª Diretiva, o legislador nacional tivesse previsto que, verifi cando-se estar perdida mais de metade do capital social, a administração deveria propor aos sócios a disso-lução da sociedade ou a redução do capital, a menos que os sócios se comprometessem a efetuar, e efetuassem, entradas que mantivessem pelo menos em dois terços a cobertura do capital (artigo 35.º do CSC na redação do Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de setembro – que aprovou o CSC – o qual determinou, porém, que a entrada em vigor deste artigo fi caria dependente de posterior regu-lamentação). Este regime, porém, acabou por sofrer uma profunda alteração em 2005 (sem nunca ter chegado a ter implicações práticas, devido a sucessivos diplomas terem adiado a produção dos seus efeitos), tendo passado a prever – na redação atual – que, no caso de perda grave do capital social (sempre que o capital próprio da sociedade for igual ou inferior a metade do capital social), os gerentes/administradores estão obrigados a informar os sócios da situação para que os mesmos ponderem a eventual adoção de medidas de saneamento fi nanceiro da sociedade. Nada impede, porém, que os sócios nada façam. Pupo Correia (Direito Comercial. Direito da Empresa, 10.ª edição, revista e atualizada, 2007, Ediforum, p. 211) vê nesta redação do artigo 35.º a vantagem de ter suprimido o impacto sobre muitas sociedades das consequências draconianas que, na vigência da redação anterior, resultariam da omissão de tomada de medidas de saneamento da situação eco-nómico-fi nanceira da sociedade: qualquer sócio ou credor poderia requerer ao tribunal a disso-lução da sociedade. Adicionalmente, a sociedade passa a estar obrigada a indicar em todos os atos externos o montante do seu capital próprio segundo o último balanço aprovado (artigo 171.º do CSC). Menezes Cordeiro (A Perda de Metade do Capital Social e a Reforma de 2005: Um Repto ao Legislador, ROA, ano 65 (2005), I, disponível em www.oa.pt) criticou fortemente esta imposição de publicitação do capital próprio, uma vez que a situação poderá não ser alarmante, dependendo do setor de atividade em causa e do tempo de vida da sociedade. Também Pais de Vasconcelos (A Participação Social nas Sociedades Comerciais, 2005, Almedina, p. 281) se alinhou com esta crítica dizendo que caberá aos credores sociais informarem-se sobre a situação fi nanceira da sociedade antes de com ela contratarem. Pelo contrário, Mota Pinto (O Artigo 35.º do Código das Sociedades Comerciais na Versão Mais Recente, Temas Societários, IDET, Colóquios, N.º 2, 2006, Almedina, pp. 150 e 151) aplaude a solução legal, embora com dúvidas sobre a sua efi cácia devido ao grande número de sociedades que incumprem os deveres de informação em atos externos e porque, ainda quando cumprem, fazem-no através de textos com tamanho de letra quase invisível e que acaba por passar despercebida. Por outro lado, o A. chama ainda a atenção para a difi culdade que os ter-

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momento da constituição da sociedade ou diferir parte desse montante para momento posterior14.

Já o património social corresponde ao acervo de bens, direitos e obrigações pertencentes à sociedade onde se enquadra, naturalmente, o passivo.

“No momento da constituição da sociedade, capital social e património devem ter valores idênticos: não existem obrigações por liquidar, o passivo é nulo, todos os bens entregues pelos sócios estão aplicados em ativos”15. Só não sucederá desta forma existindo ágio.

O capital social é também um dos elementos do contrato de qualquer tipo de sociedade [artigo 9.º, n.º 1, alínea d), do CSC], e o seu montante é obrigato-riamente identifi cado no balanço. Da perspetiva do fi nanciamento das socieda-des, o capital social é a sua primeira fonte de recursos16, que permite a reunião dos primeiros meios necessários ao início do desenvolvimento do objeto social. Isto porque “os bens postos em comum pelos sócios e dirigidos à cobertura do capital social não se destinam a fi car intocados no cofre, mas antes a serem utilizados na instalação e exploração da atividade societária”17.

O capital social é composto, inicialmente, com as entradas dos sócios (efeti-vadas ou diferidas), efetuadas mediante a atribuição de bens à sociedade. Depois de estar constituído, o capital social pode ser aumentado sem que existam novas entradas, como acontece, designadamente, nos aumentos por incorporação de reservas ou em resultado da reavaliação do ativo da sociedade.

No caso de formação do capital social com entradas em dinheiro, o capital social corresponde à soma do dinheiro transferido; no caso de atribuição de outros bens à sociedade, esses são contabilizados no capital social consoante o valor que lhes seja atribuído por avaliação de revisor ofi cial de contas inde-pendente (artigo 28.º do CSC). Contrariamente, e apesar de ser atribuído,

ceiros teriam em estabelecer um nexo de causalidade entre a falta de menção do capital próprio em atos externos e eventuais danos que tenham sofrido.14 O prazo máximo do diferimento é de 5 anos (artigos 203.º e 285.º do CSC). É de salientar que o artigo 26.º, n.º 2, não é contraditório com este regime, uma vez que prevê o prazo dentro do qual os sócios poderão efetuar as suas entradas para a sociedade, sem que haja diferimento. No caso das sociedades por quotas, a lei não limita a possibilidade de diferimento a qualquer mon-tante máximo do capital social, ao contrário do que acontece com as sociedades anónimas, em que apenas 70% do capital social pode ser diferido.15 António Pita, Apontamentos sobre Capital Social e Património nas Sociedades Comerciais, Estudos em Memória do Prof. Doutor J. L. Saldanha Sanches, Vol. II, 2011, Coimbra Editora, p. 504. 16 O que, como vimos, não implica que seja, ou deva ser, a principal fonte de fi nanciamento.17 Tarso Domingues, As diferentes formas...ob. cit., p. 754.

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mediante convenção das partes, um determinado valor às entradas de indústria18 [artigo 176.º, n.º 1, alínea b), do CSC], as mesmas não são computadas no capi-tal social (artigo 178.º, n.º 1, do CSC).

A entrada de cada um dos sócios fi ca identifi cada no contrato de socie-dade [artigo 9.º, n.º 1, alínea g), do CSC], mas, a partir do momento em que as entradas são efetuadas, os bens que lhes correspondem passam a fazer parte, indistintamente, do acervo de bens que constituem o património da sociedade e o capital social torna-se, então, “um valor ideal”19.

Somos da opinião de que são “entradas” todas as contribuições em dinheiro ou bens dos sócios que se destinam a ser computadas no capital social. Tanto assim é que as contribuições de indústria – as quais não são computadas no capi-tal social – não são qualifi cadas pelo CSC como “entradas”, mas como “con-tribuições”20. Além do mais, note-se que as restantes contribuições dos sócios (prestações suplementares, prestações acessórias e suprimentos) – ainda que de natureza pecuniária – não podem ser convertidas diretamente em capital social, não sendo, portanto, nunca contabilizadas como tal21. Também os aumen-tos do capital social são efetuados mediante “entradas” dos sócios [artigo 35.º, n.º 3, alínea c)22 e artigo 89.º, n.º 1, do CSC].

Além das entradas, no momento da subscrição de ações os sócios podem ainda entregar à sociedade um prémio de subscrição/emissão ou ágio23, que é,

18 Note-se que não são admitidas contribuições de indústria nas sociedades anónimas (artigo 277.º, n.º 1, do CSC).19 A. Perestrelo de Oliveira, Manual de...ob. cit., p. 41. Por este motivo, “a determinação qua-litativa dos elementos que compõe o capital social real apenas se opera num momento: o da cons-tituição da sociedade. (...) A partir daí não se podem determinar quais os bens que constituem o capital social real; têm é que estar quantitativamente determinados, i. e., têm que ser bens cujo valor cubra a cifra do capital social nominal (Tarso Domingues, Do Capital...ob. cit., p. 53.)20 Note-se que as contribuições de indústria não são admitidas nas sociedades por quotas, nas sociedades anónimas nem nas sociedades em comandita por ações (artigos 202.º, n.º 1, e 277.º, n.º 1, do CSC). Em todo o caso, as prestações acessórias podem ter como objeto atos de indústria (prestação de uma atividade), não podem é substituir a obrigação de entrada com bens.21 Tarso Domingues, Financiamento Societário pelos Sócios e Transmissibilidade dos Créditos, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Heirich Ewald Horster, 2012, Almedida, p. 778.22 Tem sido discutido qual a natureza jurídica das entradas efetuadas ao abrigo do artigo 35.º do CSC entre prestações suplementares (Raúl Ventura, Sociedades por Quotas, Vol. I, 2.ª edição, 1993, Almedina, p. 223), entradas a fundo perdido (Pinto Furtado, Curso de Direito das Socieda-des, 5.ª edição revista e atualizada, 2004, Almedina, p. 322) ou contribuições espontâneas (Tarso Domingues, Do Capital...ob. cit., p. 127).23 “Prémio” é a expressão contabilística e “ágio” é a expressão utilizada no âmbito do CSC. Ambas se referem ao excedente entre o valor nominal e o montante efetivamente desembolsado pelos sócios na subscrição de ações, de obrigações com direito a subscrição de ações, de obrigações convertí-veis em ações, na troca destas por ações e em entradas em espécie [artigo 295.º, n.º 2, a) do CSC].

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já não capital social, mas reserva legal24, a qual está sujeita a um regime legal específi co.

Função

O capital social é a medida de referência que faz soar o alarme quanto à situação fi nanceira da sociedade. De facto, as perdas sofridas só se tornam juri-dicamente relevantes, no âmbito do CSC, quando o capital próprio, ou seja, o património líquido da sociedade25 seja igual ou inferior a metade do capital social (artigo 35.º do CSC).

Adicionalmente, nas sociedades de responsabilidade limitada, o capital social é a medida do risco que é assumido pelos sócios. Por um lado, caso não haja previsão estatutária em contrário, o sócio não é obrigado a entregar à sociedade nada para além do valor da entrada a que se obriga no contrato de sociedade e, por outro, o seu património pessoal não responde pelas dívidas da socie-dade26. Por essas, responde, apenas, o património social. Na verdade, como vimos, a tese da desconsideração da personalidade jurídica é de base doutrinária e, a ter aplicação prática, será certamente limitada a casos muito excecionais.

Desta forma, o risco da atividade económica é partilhado entre sócios e credores – as contribuições que aqueles fazem para o capital social da sociedade servem para garantia destes, mas essa garantia é limitada ao valor das respetivas entradas, enquanto também os credores correm o risco de, para além do mon-tante do capital próprio não ser possível a satisfação dos seus créditos. Neste contexto de risco partilhado, se aos sócios é atribuído o privilégio da limitação de responsabilidade, aos credores também deverão ser concedidos determina-dos mecanismos de proteção e garantia.

24 Diferente posição é defendida por Tarso Domingues (O aumento do capital social com créditos, O Direito do Balanço e as Normas Internacionais de Relato Financeiro, 2007, Coimbra Editora, p. 123), para quem “a entrada abrange não apenas os bens entregues pelo sócio cujo valor corres-ponde ao valor nominal das participações sociais, mas também o valor excedente”.25 “Os capitais próprios abrangem, além do capital social, as reservas de ágio, as prestações dos acionistas, a reserva legal, as reservas livres e outras rubricas. Na lógica da lei, haverá que lhe sub-trair o passivo. Todavia, não é pacífi co, entre os peritos, o exato alcance desse capital e, designa-damente, se abrange expectativas de negócio e reavaliações. Em situações de fronteira e no silên-cio do legislador, tudo dependerá das técnicas contabilísticas utilizadas.” (Menezes Cordeiro, Da perda...ob. cit.).26 Este é o princípio geral, embora existam exceções como as previstas, por exemplo, nos artigos 71.º, 83.º, 84.º, 147.º, n.º 2 e 163.º do CSC.

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Historicamente, a proteção dos credores está associada à cifra do capital social, uma vez que esse valor é o único que devendo manter-se imutável responde caso a sociedade incumpra as suas obrigações: o património social vai-se alterando durante a vida da sociedade sem que os credores tenham qualquer controlo sobre ele, ao contrário do capital social, que é tendencial-mente estável e cujo montante pode ser verifi cado, a qualquer momento, mediante consulta do Registo Comercial e das Publicações de Atos Societários (www.publicacoesmj.pt).

Estão associados à proteção dos credores sociais:

1. O princípio da exata formação/obrigação de efetiva realização do capital social, concretizado pela proibição de remição da obrigação de entrada (artigo 27.º, n.º 1) e pela possibilidade de exclusão do sócio remisso (artigos 204.º e 285.º);

2. O princípio da obrigação de conservação do capital social, concretizado pela limitação da distribuição de bens aos sócios (artigo 32.º) e pela proibição da restituição das entradas;

3. A obrigatoriedade de avaliação das entradas em espécie (artigo 28.º) e a limita-ção da aquisição pela sociedade de bens a sócios antes da celebração do contrato de sociedade e no período de dois anos após registo da consti-tuição da sociedade27 (artigo 29.º);

4. O regime da redução do capital (artigo 94.º), que apenas permite a redução com determinadas fi nalidades e apenas se a situação líquida da sociedade fi car a exceder o novo capital em, pelo menos, 20% (artigo 95.º); e

5. A previsão de um montante mínimo legal do capital social – atualmente pre-visto apenas para as sociedades anónimas (artigo 276.º, n.º 5).

Todas estas regras visam garantir que os sócios formam, efetivamente, o capital social e que o mesmo é preservado. Mas perante a livre fi xação do capi-tal social nas sociedades por quotas (artigo 201.º do CSC) e a imposição, nas sociedades anónimas, de um capital mínimo de 50.000€, que nível de prote-ção pode, afi nal, o capital social representar para os terceiros que lidam com a sociedade? Mesmo no caso das sociedades anónimas, e dependendo do negócio em causa, as dívidas aos credores podem facilmente ultrapassar um limiar como o de 50.000€.

27 Regime que visa combater eventuais entradas em espécie sem avaliação, dissimuladas através de aquisições de bens a acionistas por um preço meramente simbólico ou muito inferior ao real valor de mercado.

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A questão é saber se a proteção dos credores deverá ser resolvida contra-tualmente ou no âmbito da lei e, nesse caso, se a solução deve ter um cará-ter preventivo ou corretivo, em particular através do regime da insolvência. Tarso Domingues28 dá conta de que “a generalidade dos ordenamentos jurí-dicos consagra soluções que visam sancionar pessoalmente os administradores que, encontrando-se a sociedade numa situação de subcapitalização manifesta, continuem a desenvolver a atividade empresarial e não requeiram a abertura do respetivo processo de insolvência”.

Perante a pouca relevância que o capital social parece assumir para efeitos de garantia dos credores sociais, os autores têm encontrado vias alternativas aparentemente mais capazes de assegurar essa proteção.

Tarso Domingues29 afi rma que “a tutela dos credores, mais do que do regime do capital social, resulta do «aviamento da empresa, ou seja, da sua produtividade» que é o que assegura a pontualidade dos pagamentos. Por seu turno, esta produtividade da empresa é, antes de mais, conseguida através duma adequação ótima dos meios investidos à atividade desenvolvida pela sociedade”.

Catarina Pontes30, por seu lado, diz que “[a] realidade económico-social tem nos demonstrado que a melhor garantia dos credores sociais reside na pro-priedade/bens da empresa”.

Por outro lado, existem ainda as garantias negociadas, em concreto, pelo designados credores “fortes”, mais capazes de oferecer uma proteção adequada, uma vez que são defi nidas tendo em contas as circunstâncias comerciais espe-cífi cas de cada transação.

A nosso ver, a transparência da informação fi nanceira permitindo decisões de investimento informadas é o mecanismo que maior conforto pode dar aos credores na tomada das suas decisões de investimento.

Considerações práticas à parte, do ponto de vista jurídico também a dou-trina supra mencionada que defende a desconsideração da personalidade cole-tiva e uma penetração no património dos sócios para compensação das dívi-das aos credores pretende constituir-se como uma via alternativa de proteção destes.

28 As diferentes formas...ob. cit., p. 758. 29 Do Capital Social..., ob. cit., p. 222.30 Reservas...ob. cit., p. 245.

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4. Reservas

4.1. Reserva legal

Conteúdo

Embora seja discutível se o intuito lucrativo é um elemento essencial ao tipo contratual de sociedade31, a verdade é que, quer seja um elemento essencial do tipo, quer seja um elemento apenas eventual, na generalidade dos casos os sócios procuram a obtenção de lucro.

Apesar disso, nem todo o lucro que é apurado num determinado exercício é distribuído aos sócios – em parte por imposição legal, e, quanto ao restante (o chamado lucro distribuível) porque, muitas vezes, os sócios pretendem criar provisões que permitam enfrentar cenários futuros desfavoráveis, de apura-mento de perdas ou aumento da necessidade de fundos sem possibilidade de recurso ao fi nanciamento com capitais alheios, sendo que estes montantes que fi cam retidos na sociedade permitem ainda proporcionar aos sócios um certo rendimento mesmo em exercícios em que a atividade da sociedade não gera

31 O CSC não inclui nenhum conceito de sociedade comercial, remetendo, como direito subsi-diário, para as normas do Código Civil sobre o contrato de sociedade no que não seja contrário nem aos princípios gerais do CSC nem aos princípios informadores do tipo de sociedade comercial adotado (artigo 2.º). Ora, o artigo 980.º do Código Civil defi ne o contrato de sociedade como aquele em que duas ou mais pessoas se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercí-cio em comum de certa atividade económica, que não seja de mera fruição, a fi m de repartirem os lucros resultantes dessa atividade. Em face desta disposição legal, parece que o fi m de reparti-ção dos lucros resultantes da atividade é um elemento essencial do contrato de sociedade. E para poder haver repartição de lucros, tem necessariamente de haver lucros. Porém, a doutrina tem optado por outros caminhos, em parte por ser incompatível com esta imposição casos como o das SGPS e de outras sociedades cuja atividade não visa a obtenção de lucro para distribuição aos sócios. Pais de Vasconcelos dá o exemplo das sociedades instrumentais ou veículos especiais, que apenas estruturam partes ou setores determinados de uma ou mais empresas do grupo em que se inserem, “muitas vezes com funções meramente técnicas como a contabilidade, o economato ou a prestação de serviços comuns a outras sociedades do grupo, e das quais se pretende apenas o exercício de funções técnicas, de coordenação ou de obtenção de sinergias funcionais, e não propriamente a formação e distribuição de lucros”. O A. recusa então que a obtenção do lucro seja um elemento essencial do contrato de sociedade (A participação social...ob. cit., p. 27). Além do mais, o A. defende que a defi nição de sociedade inscrita no artigo 980.º do Código Civil é privativa e exclusiva das sociedades civis e que os quatro tipos de sociedades previstos no CSC são taxativos, apesar de terem alguma elasticidade para além das disposições injuntivas de ordem pública e daquelas que delimitam o próprio tipo (A participação social...ob. cit., pp. 44 e ssg). Para uma resenha geral do panorama doutrinário sobre o tema cfr. Fátima Gomes, O Direito aos Lucros e o Dever de Participar nas Perdas nas Sociedades Anónimas, 2011, Almedina, pp. 54 a 60).

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lucro. Estas provisões – designadas reservas – consubstanciam também uma garantia adicional para os credores, na medida em representam um reforço dos capitais próprios da sociedade.

Uma vez que a constituição de reservas se integra numa lógica de gestão sustentável, cuidadosa e diligente da atividade económica, que interessa pro-teger e incentivar, o legislador tornou mesmo obrigatória a retenção de uma quantia equivalente à quinta parte do capital social, desde que não inferior a 2.500 euros32 – reserva legal. Até que esteja devidamente constituída, os sócios estão obrigados a alocar anualmente à reserva legal uma percentagem não infe-rior à vigésima parte dos lucros (o mesmo se aplicando sempre que seja neces-sária a sua reintegração). Por isso se designa esta reserva de “reserva legal de lucros”.

Não é claro se a referida “vigésima parte do capital social” é a contribuição mínima obrigatória ou a contribuição máxima. Em Estudos de Direito das Socie-dades33, os A. defenderam que se não houver cláusula no pacto a permiti-lo, os sócios não podem, por simples deliberação, afetar à reserva legal um mon-tante superior à vigésima parte do capital social, uma vez que a constituição da reserva legal representa uma limitação da liberdade dos sócios quanto ao destino a dar aos lucros. Também Raúl Ventura34 perfi lha a mesma posição. Contrariamente, Catarina Pontes35 diz que os sócios são livres de deliberar afetar à reserva legal um montante superior ao legalmente previsto, através de deliberação da Assembleia Geral (em particular, a de aprovação das contas do exercício).

Dissemos que esta reserva é composta por lucros que fi cam retidos na socie-dade. Importa assim, antes de mais, determinar o conceito de lucro.

32 A quinta parte do capital social só poderá ser inferior a 2.500 € quando esteja em causa uma sociedade por quotas, em que o capital social mínimo é de 2 € (ou 1 € nas sociedades unipes-soais por quotas). Assim, esta ressalva tem efeitos práticos apenas para as sociedades por quotas. 33 Elaborados por Pedro Maia, M. Elisabete Ramos, A. Soveral Martins e P. de Tarso Domingues, sob a coordenação de Coutinho de Abreu, 2008, Almedina, p. 231.34 “Atingida a quinta parte do capital social, a reserva legal fi ca completa e, ressalvado o caso de reintegração, não lhe são destinados outros lucros da sociedade, nem os sócios lhos podem desti-nar em deliberação da assembleia (…).” (Sociedades por...ob. cit., p. 356).35 Nesse caso, coloca-se a questão de saber como tratar o montante de reserva legal que ultrapasse o máximo legalmente exigido. Catarina Pontes defende que o valor excedente relativamente ao limite legal deverá ser tratado como reserva legal, pois seria absurdo e perigoso constituir uma reserva superior ao máximo legal, registá-la no balanço criando uma confi ança dos credores naquele valor e depois os sócios poderem deliberar a sua redução (Reservas…ob. cit., pp. 253 e 254). Assim também Raúl Ventura (Sociedades por...ob. cit., p. 360), justifi cando a sua posição com a con-fi ança que os terceiros põem na rubrica do balanço onde o montante da reserva legal é expresso.

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Para além das vezes a que se refere a lucros indistintamente, o CSC utiliza os seguintes conceitos de lucro:

– lucros do exercício (artigos 33.º, n.os 1 e 2; 217.º; 287.º, n.º 3; 294.º; 296.º; 399.º, n.º 3; 508.º, n.º 2);

– lucros de exercício [artigos 31.º; 33.º, n.º 4; 96.º, n.º 1; 209, n.º 3; 346, n.º 4; 361.º, n.º 1, alínea a); 399.º, n.º 2];

– lucros não distribuíveis (artigo 33.º); – lucros realizados (artigo 360.º, n.º 1); – lucro apurado [artigo 361.º, n.º 1, alínea b)]; – lucros produzidos em cada exercício [artigo 361.º, n.º 1, alínea c)]; – lucros a considerar (artigo 362.º); e – lucro efetivamente realizado (artigo 500.º, n.º 1).

Destes, a lei defi ne apenas os conceitos de lucros não distribuíveis (artigo 33.º) e de lucros a considerar (artigo 362.º).

Dos conceitos utilizados pelo CSC, o legislador apenas esclareceu o que se deveria entender por “lucros não distribuíveis” (artigo 33.º) e “lucros a consi-derar” (artigo 362.º). Em todo o caso, parece-nos que, apesar da prolífera varie-dade de expressões utilizadas, a única distinção a fazer é entre lucro de exercício e lucro do exercício36, sendo que as expressões “lucro apurado”, “lucros produ-zidos em cada exercício” e “lucro efetivamente realizado” utilizados pelo CSC acabam por corresponder ao conceito de lucro do exercício.

O lucro de exercício (também designado por lucro periódico ou de balanço) representa todo o acréscimo patrimonial obtido desde o início da atividade da sociedade. Já o lucro do exercício respeita ao excedente patrimonial obtido no exercício em questão face ao anterior.

Nos termos do artigo 32.º do CSC são desconsiderados para cálculo do lucro distribuível (i) os incrementos decorrentes da aplicação do justo valor através de componentes do capital próprio (salvo se os elementos ou direi-tos que lhes deram origem forem alienados, exercidos, extintos, liquidados ou quando se verifi que o seu uso, no caso de ativos fi xos tangíveis e intangíveis) e (ii) os rendimentos e outras variações patrimoniais positivas reconhecidos em consequência da utilização do método da equivalência patrimonial que não tenham sido realizados.

36 Referimo-nos aqui aos conceitos utilizados pelo CSC. Para além destes, a doutrina distingue ainda entre lucro direto e lucro indireto; entre lucro objetivo e lucro subjetivo e entre lucro do exercício e lucro fi nal (a este propósito, Fátima Gomes, O Direito aos...ob. cit., pp. 33 a 38; João Miguel Ascenso, As Sociedades não lucrativas. Breve análise do direito dos sócios ao Lucro, Revista de Direito das Sociedades, Ano III (2011) – número 3, Almedina, p. 846).

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Segundo o critério do “justo valor”, o ativo/passivo é registado pela quan-tia pela qual poderia ser trocado/liquidado, entre partes conhecedoras e dispos-tas a isso, numa transação em que não exista relacionamento entre elas (artigo 98.º da estrutura conceptual do SNC). Pressupõe, portanto, uma avaliação sub-jetiva, ao contrário do custo histórico, que é objetivo. “Ao passarmos para um sistema contabilístico que, muitas vezes, incentiva a mensuração ao justo valor, reconhece-se não só o património e as variações que ocorrem sobre este e sobre os resultados, mas permite-se também a inclusão de resultados potenciais, que se espera vir a obter no futuro, resultados que ainda não foram realizados.”37

Sempre que, de um exercício para o outro, haja um incremento patri-monial que decorra, não de uma efetiva entrada de fundos, mas da utilização do critério do justo valor, esse incremento não é considerado para efeitos de determinação do lucro distribuível. Só o será, quando a quantia que se tenha previsto realizar seja efetivamente realizada – o princípio de realização encon-tra-se previsto no item 2.4 da Diretriz Contabilística n.º 16 (DC16).

Apesar de o artigo 32.º só mencionar os incrementos gerados pela aplicação do justo valor, excluindo apenas estes do lucro distribuível, salientamos que o preâmbulo do DL 185/2009 referia que “quanto às componentes negativas da aplicação do justo valor, não deixa de ter aplicação o princípio da prudência (…) continuando a afetar, neste caso negativamente, a distribuição de resul-tados, já que, primeiro, terão de ser compensadas estas perdas, e só depois se poderão libertar bens para distribuição.”

Limite semelhante encontra-se previsto para o caso de outras variações patrimoniais positivas resultantes da utilização do método da equivalência patrimonial (MEP). O MEP – que é aplicado aos investimentos em associadas (parágrafo 42 da NCRF 13) e aos investimentos em subsidiárias (parágrafo 8 da NCRF 15) – permite uma contabilização dos resultados que correspondem à percentagem de participação detida noutras sociedades no exercício a que os resultados respeitam, ao contrário do que acontece quando se utiliza o método do custo, em que esses resultados só são reconhecidos após serem efetivamente distribuídos pela sociedade participada38.

37 Janete Fernandes, A adoção do justo valor e a distribuição de bens aos sócios, Revisores e Auditores, outobro_dezembro 2014, p. 30, disponível em www.oroc.pt. 38 Antes da entrada em vigor do n.º 3 do artigo 32.º do CSC, mediante o Decreto-Lei n.º 98/2015, de 2 de junho, colocava-se a questão de saber se a sociedade participante poderia distribuir os lucros inerentes à sua participação sem que os mesmos tivessem ainda sido distribuídos pela sociedade participada. O legislador veio responder negativamente, acolhendo a tese da indisponibilidade. Já anteriormente era defendido por alguma doutrina que a redação do art.º 32.º do CSC não previa expressamente a impossibilidade de distribuição de resultados que não tivessem sido distribuídos pelas participadas porque a questão era resolvida negativamente no foro contabilístico – por se

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Mesmo que seja apurado lucro do exercício, isso não signifi ca que possa haver distribuição dedividendos. O lucro distribuível – conceito determinado a contrario a partir do conceito de lucro não distribuível (artigo 33.º do CSC39) – apura-se subtraindo-se ao lucro do exercício (i) os montantes necessários para cobertura de prejuízos transitados; (ii) uma vigésima parte40 para formação da reserva legal; (iii) os montantes necessários para amortização de despesas de constituição, de investigação e de desenvolvimento (exceto se o montante das reservas livres e dos resultados transitados for, pelo menos, igual ao dessas des-pesas não amortizadas); e (iv) os montantes necessários para constituição/manu-tenção de reservas estatutárias, nos termos previstos no contrato de sociedade.

Para além da reserva legal de lucros, são ainda reservas legais – as denomi-nadas reservas legais especiais [artigo 295.º, n.º 2, alínea a) do CSC] – a reserva de prémios de emissão ou ágios, a reserva de saldos positivos de reavaliações permitidas e a reserva de gratuitidades e subsídios.

Para além da reserva legal, os sócios poderão ainda prever a obrigação de constituir outras reservas mediante previsão no contrato de sociedade (artigo 33.º, n.º 1, in fi ne do CSC) – reservas estatutárias41 – e a sociedade pode também obrigar-se a constituir outras reservas por via de contratos celebrados com terceiros – reservas contratuais. Em cada exercício social pode ainda ser deliberada a constituição de reservas específi cas, com ou sem uma fi nalidade predefi nida – reservas livres. No entanto, em princípio, apenas metade do lucro distribuível poderá deixar de ser distribuído e levado a reservas livres (artigo 217.º e artigo 294.º do CSC).

Tanto a reserva legal de lucros, como as reservas livres, contratuais e esta-tutárias resultam de uma decisão de não distribuição de lucros por parte dos

entender que estes fundos deveriam ser considerados como uma espécie de reserva de reavaliação não realizada, encontrando-se, desse modo, subordinada às respetivas disposições de indisponi-bilidade. ( José Rodrigues de Jesus e Susana Rodrigues de Jesus, Alguns aspetos da aplicação do método da equivalência patrimonial, Revisores e Auditores, pp. 18 e 19, disponível em www.oroc.pt).39 Na verdade, este regime não visa impor aos sócios uma determinada aplicação dos lucros, mas antes expurgar daquele excedente (do património líquido face ao capital social e reservas) aquilo que não é lucro, mas sim verbas que os sócios estão obrigados a reter na sociedade, como se fosse uma quota indisponível (neste sentido, Paulo de Tarso Domingues, Capital e património sociais, lucros e reservas, Estudos de Direito das Sociedades, 2010, Almedina, p. 204). 40 Nos termos da lei, o cálculo de 20% deve fazer-se por relação ao total do lucro do exercício e não ao lucro do exercício deduzido do montante afeto à cobertura de prejuízos transitados, ao contrário do que pode fazer parecer a hierarquia defi nida para o destino a dar ao lucro do exercício.41 “As reservas estatutárias são reservas voluntárias enquanto a sua criação não é consequência de um imperativo legal, mas, por outro lado, não são autênticas reservas livres, já que se forem clau-suladas nos estatutos da sociedade a sua constituição é obrigatória” (Catarina Pontes, Reservas…ob. cit., p. 258.).

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sócios. Mas existe ainda outro tipo de reservas, designadas reservas ocultas, que não são evidenciadas pelo balanço. “A sua constituição resulta de um processo como que «clandestino», que, normalmente, consiste na «subestimação exage-rada, no balanço, dos elementos do ativo (v. g., amortizando, exageradamente, o ativo imobilizado, ou, considerando incobráveis algumas dívidas de clientes), mas que, também, poderá consistir numa sobrevalorização do passivo (v. g. criando provisões exageradas para riscos e encargos pouco prováveis).”42

Nos termos do artigo 33.º, n.º 3, do CSC as reservas cuja existência e cujo montante não fi guram expressamente no balanço não podem ser distribuídas aos sócios.

Havendo incumprimento da obrigação de constituição da reserva legal mediante a distribuição aos sócios dos montantes que deveriam ser aí afetos, esses valores devem ser restituídos à sociedade, nos termos do artigo 34.º do CSC. Salientamos que a distribuição de lucros ou reservas indevidas só gera obrigação de restituição se os sócios conheciam a irregularidade da distribuição ou, tendo em conta as circunstâncias, deviam não a ignorar.

Conforme mencionado supra, a reserva legal integra a reserva legal de lucros e as reservas legais especiais. A reserva legal de lucros encontra-se consti-tuída, nos termos da lei, quando perfaça um quinto do capital social.

Quanto às reservas legais especiais, a doutrina43 tem discutido quando é que se consideram constituídas. Uma vez que o CSC as sujeita ao regime da

42 Alexandre Mota Pinto, A prestação de contas e o fi nanciamento das sociedades comerciais, O Direito do Balanço e as Normas Internacionais de Relato Financeiro, 2007, Coimbra Editora, p. 105. 43 Engrácia Antunes (Cobertura de prejuízos sociais transitados e reserva de prémios de emissão, Bole-tim da Faculdade de Direito, Stvdia Ivridica, 91, Ars Ivdicandi, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, Vol. II: Direito Privado, 2008, Coimbra Editora, p. 78) pronunciando-se em particular sobre a reserva de prémios de emissão, avança o argumento literal segundo o qual a lei manda aplicar às reservas legais, indiscriminadamente, todo o regime da reserva legal de lucros, sem distinguir ou excecionar a defi nição quantitativa do seu limiar máximo. E onde o legislador não distingue, não deve o intérprete fazê-lo. Além do mais, na sua versão original (artigo 363.º do Projeto do Código das Sociedades), a lei previa que a reserva legal fosse constituída, indiscriminadamente, pelos valores que compõe as atuais reserva legal de lucros e reservas legais especiais. Ao ter, na versão que fi cou no CSC de 1986, autonomizado as reser-vas legais especiais, mas aplicando-lhes o regime da reserva legal de lucros, o legislador parece ter mantido a solução inicial, apesar da referida reestruturação da norma em dois níveis. Raúl Ventura (Sociedades por...ob. cit., p. 368) considera incompreensíveis os motivos da autonomiza-ção das reservas legais especiais quando, por um lado, se lhes é, na mesma, aplicável o regime da reserva legal de lucros e, por outro lado, não se lhes notam quaisquer circunstâncias especiais face à reserva legal de lucros. O A. esclarece ainda que “no respeitante ao montante da reserva legal, a separação operada entre esta e as reservas do artigo 295.º, n.º 2, torna estas últimas indiferentes para aquele montante, não podendo supor-se que o montante das reservas separadas vai obrigar a aumentar o montante da reserva legal.” Menezes Cordeiro (Manual de Direito das Sociedades,

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reserva legal de lucros, previsto no artigo 295.º, n.º 1, do CSC, coloca-se a questão de saber se se lhes aplica a obrigação de corresponderem a um quinto do capital social.

A nosso ver, as designadas reservas legais especiais não são verdadeiras reser-vas legais porque a sua constituição não é legalmente obrigatória. O artigo 295.º, n.º 2, dispõe que “fi cam sujeitas ao regime da reserva legal as reservas constituídas pelos valores indicados”. Ou seja, sempre que os sócios decidam levar a reservas montantes correspondentes a prémios de emissão ou ágios, a sal-dos positivos de reavaliações ou a gratuitidades e subsídios, essas reservas fi cam sujeitas ao regime de utilização condicionada previsto no artigo 296.º. Mas isso não signifi ca que os sócios estejam obrigados a, sempre que existam prémios de emissão ou ágios, saldos positivos de reavaliações ou gratuitidades e subsídios, levá-los a reservas. Fá-lo-ão se assim o entenderem.

Por isso, o legislador não impôs nenhum limite máximo ou mínimo de constituição destas reservas – elas não são obrigatórias e, como tal, o seu mon-tante será decidido discricionariamente pelos sócios. Se a própria constituição é livre, também deve ser livre o seu montante.

Todos os valores que sejam levado a reservas e que tenham origem em algum dos factos referidos no 295.º, n.º 2, do CSC têm a sua utilização vincu-lada. Caso os sócios não pretendam limitar a livre disponibilidade destes fundos, deverão deixá-los registados nas respetivas contas: 54 Prémios de emissão; 58

II, Das Sociedades em Especial, 2.ª ed., 2007, Almedina, p. 606) é da opinião que esta é uma falsa questão porque o texto da lei é claro: “se a lei remete para o «regime legal» é obviamente todo. Fazer amputações apenas poderá conduzir a distorções.” Se assim não fosse, todo o valor que estivesse registado sob essas reservas encontrar-se-ia sempre sujeito à referida hierarquia na cobertura de prejuízos, o que redundaria, na opinião de Engrácia Antunes (Cobertura de...ob. cit., pp. 80 e 81), num “regime de indisponibilidade qualitativa e quantitativamente absoluto, bastante mais gravoso do que o previsto para a própria reserva legal geral (a qual (...) está gravada por uma indisponibilidade quantitativamente relativa) – resultado este tanto mais incompreensí-vel quanto é certo que o regime das primeiras foi disciplinado pelo legislador português através de uma remissão expressa para o regime da última (proémio do n.º 2 do artigo 295.º do CSC)”. Já Cassiano dos Santos (A Posição do Acionista Face aos Lucros de Balanço – O Direito do Acionista ao Dividendo no Código das Sociedades Comerciais, 1996, Coimbra Editora, p. 29) defende que, quer o elemento sistemático, quer o gramatical, conduzem à conclusão de que todo o valor correspon-dente às reservas legais especiais deve ser levado a reserva legal, mesmo após o mesmo perfazer já um quinto do capital social. É que, segundo o autor, “o n.º 1 [do artigo 295.º do CSC] trata da constituição da reserva legal – usando esta mesma expressão -, ao passo que o n.º 2 se ocupa da equiparação, para efeitos de regime, dos valores aí descritos às reservas formadas nos termos do n.º 1 – relacionando uns e outras não no plano da constituição, mas tão-só no do regime, com expressa referência apenas a este”.

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Excedentes de revalorização de ativos fi xos tangíveis e intangíveis; 593 Subsí-dios; 594 Doações; 7884 Ganhos em outros instrumentos fi nanceiros.

Função

A reserva legal de lucros não pode ser distribuída aos sócios e só pode ter as aplicações previstas na lei: em primeiro lugar, incorporação no capital social e subsidiariamente cobertura de prejuízos.

Também as restantes reservas podem ter estas aplicações; o que caracteriza a reserva legal é o facto de só poder ter estas aplicações, com exclusão de quais-quer outras e ainda o seu caráter imperativo (enquanto as restantes – estatutá-rias, contratuais e livres – podem ou não ser constituídas).

A reserva legal de lucros desempenha, assim, uma função de “escudo, como uma primeira defesa da integridade do capital social. Com efeito, havendo perdas decorrentes da atividade empresarial da sociedade, elas poderão afetar o capital social. Porém, a existir reserva legal, essas perdas irão ser compensadas e cobertas, em primeira linha, pelos bens que no ativo lhe correspondem, pelo que esta (a reserva legal) serve de «almofada» que apara e amortece os «golpes» que as perdas constituem para o capital social”44. Pinto Furtado utiliza, aliás, a ideia sugestiva de “pára-quedas fi nanceiro” do capital social45.

Apesar desta função de proteção do capital social, não se aplica à reserva legal o regime do capital social, pois são fi guras diferentes. O capital social é a massa patrimonial tendencialmente estável destinada à garantia de credores; a reserva legal, apesar de também não poder ser distribuída – “capital e reserva legal formam o que alguns chamam o património intangível”46 –, distingue-se em tudo o resto do capital social: a sua função só indiretamente é de proteção dos credores pois visa, em primeira linha, reconstituir o capital social e absorver as perdas sofridas pela sociedade; não se lhe aplica um regime de redução como o do capital social e, por fi m, não é constituída com entradas dos sócios, mas com proveitos gerados pela própria atividade da sociedade.

44 Tarso Domingues, Capital e património...ob. cit., p. 227.45 Curso de...ob. cit., p. 325.46 Raúl Ventura, Sociedades por...ob. cit., p. 365.

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4.2. Reservas livres

Conteúdo

Uma vez preparadas as contas do exercício, as mesmas são propostas pela gerência/administração da sociedade à aprovação da Assembleia Geral, que deverá então deliberar a utilização que pretende dar ao resultado líquido apurado.

Os artigos 217.º e 294.º do CSC dispõem que não pode deixar de ser distribuído aos sócios metade do lucro distribuível, salvo (i) diferente cláusula contratual ou (ii) deliberação da Assembleia Geral47 aprovada por uma maioria de ¾ dos votos correspondentes ao capital social48 e que tenha sido convocada para o efeito. Saber em que termos e em que medida estes dois instrumentos podem derrogar aquela regra é questão que tem sido largamente discutida na doutrina portuguesa49.

47 Segundo Cassiano dos Santos (A Posição...ob. cit., p. 91.) esta disposição legal refere-se à Assembleia Geral Anual, até porque, em princípio, só nesse momento é que se sabe se sequer exis-tem lucros a distribuir. Por outro lado, a hipótese de uma Assembleia Geral ad hoc traria grande incerteza, por poder ainda vir a ser revogada até à deliberação de aprovação de contas. 48 Cassiano dos Santos (A Posição...ob. cit., p. 91.) critica esta maioria por ser, em muitos casos, difi cilmente obtida, devido à dispersão do capital. 49 Segundo António Pita (Direito aos Lucros, 1898, Almedina – Coimbra, pp. 149 a 158), uma cláusula do contrato de sociedade que permitisse que, por maioria simples, a Assembleia Geral deliberasse não distribuir qualquer lucro distribuível seria nula. Por um lado, o A. considera que a fi nalidade última do contrato de sociedade é a distribuição dos lucros, pelo que prever a possi-bilidade de afastar, completamente, a distribuição do lucro distribuível descaracterizaria o próprio contrato como um contrato de sociedade. Além do mais, e uma vez que o A. considera que a limitação legal se destina a regular o direito dos sócios ao lucro, diz que a mesma não poderia ser utilizada para negar o próprio direito que pretende acautelar. Segundo o mesmo A., também não pode o contrato de sociedade deixar na disponibilidade da Assembleia Geral, por maioria simples, defi nir anualmente qual a percentagem de lucro a ser distribuído aos sócios, pois, para que possa ser defi nido um quantum inferior a metade do lucro distribuível, a lei exige uma maioria agravada de 3/4. Cassiano dos Santos (A Posição...ob. cit., p. 91) defende que o contrato de sociedade, quer originalmente quer através de alteração estatutária aprovada pela maioria qualifi cada de ¾ dos votos, poderia conferir total liberdade à Assembleia Geral para deliberar quanto aos lucros. Também Brito Correia (Direito Comercial – Deliberações dos Sócios, AAFDL, 3.ª Triagem, 1989, p. 230), defende que, apesar de a lei não ser clara quanto à maioria exigida para uma alteração estatutária que contenda com a previsão dos artigos 217.º e 294.º do CSC, o espírito da lei é mais conforme com a exigência da maioria agravada de ¾ : “de outro modo, o que a lei não permite transitoriamente, a uma maioria de três quartos do capital social (por via de deliberação ordiná-ria), poderia ser conseguido, duradouramente, por uma maioria inferior a essa (por via da altera-ção do contrato) – o que parece absurdo.” Quanto a nós, parece-nos também que a Assembleia Geral não pode, por maioria simples, deliberar distribuir menos de metade do lucro distribuível.

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No que respeita ao montante que não estejam obrigados a distribuir – em princípio, metade do lucro distribuível – os sócios podem decidir transferi-lo para resultados transitados ou constituir reservas livres.

A primeira opção a fazer é entre reter os lucros na sociedade ou distribuí--los. Esta opção é particularmente relevante nas sociedades de duração ilimi-tada, pois os sócios não sabem quando será apurada a sua percentagem.

Neste âmbito, Pais de Vasconcelos50 refere que difi cilmente uma sociedade anónima cotada em bolsa poderá deixar de distribuir lucros, pela repercussão negativa dessa decisão na cotação das suas ações.

Nas restantes sociedades, a decisão de reter os lucros pode servir o propó-sito de fortalecer a situação fi nanceira da sociedade, mas muitas vezes (especial-mente nos casos de sociedades por quotas de pequena dimensão) é ditada por difi culdades práticas em dispor da liquidez necessária para distribuir dividendos. Outras vezes, poderá mesmo estar em causa a intenção de prejudicar a mino-ria acionista. Só casuisticamente pode ser determinada a razoabilidade de uma decisão de retenção de lucros.

Em todo o caso, não nos parece que a mesma seja completamente livre. Salientamos, em primeiro lugar, a proibição do pacto leonino, prevista no

artigo 22.º, n.º 3, do CSC (é nula a cláusula que exclui um sócio da comunhão nos lucros ou que o isente de participar nas perdas da sociedade). - A exclusão do direito aos lucros é diferente de situações em que esse direito se encontre apenas limitado, como no caso das sociedades onde existem ações preferenciais sem voto. Assim, Manuel Triunfante considera que seria válida uma cláusula que derrogasse o critério de distribuição de lucros previsto no artigo 22.º, n.º 1, do CSC51.

Além do mais, e conforme referido por Vaz Serra em comentário ao Acór-dão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de junho de 197952, em conformi-dade com “a mais autorizada doutrina estrangeira”, a deliberação de retenção

Só deliberações aprovadas pela maioria agravada prevista na lei podem derrogar a percentagem mínima de distribuição. O fundamento desta regra é, a nosso ver, de interesse público – a preser-vação de um justo termo de conciliação, de uma composição equilibrada entre o interesse social na manutenção e valorização da empresa e o interesse dos sócios na distribuição periódica de lucros (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de janeiro de 1993, BMJ n.º 423, 1993, p. 539 e ss.). É que “seria naturalmente patológica a constituição exagerada de fundos de reserva eventuais, com o consequente diferimento indefi nido na distribuição dos lucros de cada exercício” (Pinto Furtado, Curso de...ob. cit., p. 145). 50 A Participação...ob. cit., pp. 96 e 97.51 A Tutela das Minorias nas Sociedades Anónimas – Direitos Individuais, 2004, Coimbra Editora, p. 80.52 Revista de Legislação e Jurisprudência, 12.º Ano, 1979-1980, n.os 3634-3657, p. 375.

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de lucros deverá procurar um senso e equilíbrio entre o interesse social e dos sócios, no respeito pelos limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes.

Retendo-se lucros na sociedade, os mesmos podem ser levados a reservas ou a resultados transitados. Se não se pretender atribuir uma fi nalidade concreta aos montantes disponíveis, parece-nos que os mesmos deverão ser registados na conta de resultados transitados e não como reservas livres. Isto porque a conta de resultados transitados não deverá servir apenas para registo de prejuízos; se nela forem sendo registados também valores positivos dá-se, por via da mera transferência para esta conta, uma compensação automática, e sem necessidade de aprovação específi ca pela Assembleia Geral, das perdas com os montantes positivos que aí se encontrem registados.

Função

“As reservas livres, tais como as estatutárias, podem ser constituídas com uma fi nalidade concreta ou sem nenhuma afetação determinada. Porém, na sua maioria, as reservas livres são afetas à compra de material, ampliação de infra--estruturas, aquisição e amortização de ações, gastos e perdas extraordinários, entre outras. Podemos, deste modo, considerar que as reservas livres são afetas ao desenvolvimento do objeto social da empresa.”53

A constituição de reservas livres para determinadas fi nalidades não impede que posteriormente, por deliberação dos sócios, os valores aí registados sejam desafetados dessa fi nalidade específi ca e depois livremente distribuídos aos sócios ou utilizadas para cobertura de prejuízos.

5. Suprimentos

Conteúdo

O regime legal das sociedades por quotas54 prevê que os sócios possam prestar suprimentos às sociedades, mediante celebração de um contrato pelo

53 Catarina Pontes, Reservas...ob. cit., p. 261.54 Apesar de a lei prever os suprimentos apenas para as sociedades por quotas, a maioria da dou-trina, embora com diferentes fundamentos, tem-se pronunciado pela sua aplicabilidade também às sociedades anónimas. Assim, Raúl Ventura, Sociedades por Quotas...ob. cit., p. 87; Pinto Fur-tado, Curso de..., ob. cit., p. 225; João Aveiro Pereira, O Contrato de...ob. cit., p. 115; João Pedro de Oliveira Martins, Os Suprimentos no Financiamento Societário – Uma Abordagem Funcionalista, Temas de Direito das Sociedades, 2011, Coimbra Editora, p. 65; Mota Pinto, Do contrato...ob. cit., p. 294. Também a jurisprudência tem aceite a aplicação do regime dos suprimentos às sociedades

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qual lhes cedam o gozo de dinheiro ou outros bens, durante certo período de tempo, após o qual a sociedade se encontra obrigada a restituir o que lhe tenha sido prestado. O contrato de suprimento não depende de forma escrita, e parece-nos que, na maior parte dos casos, não assume essa forma. Embora sem assumir forma escrita, existem comportamentos concludentes que permitem identifi car a celebração de um contrato de suprimento entre as partes em cada caso concreto.

O contrato de suprimento corresponde, na maior parte das vezes, a um mútuo (embora com características especiais) ou ao diferimento do vencimento de créditos que o sócio tenha sobre a sociedade, quer por convenção expressa nesse sentido quer pelo não exercício, por parte do sócio, do direito à restitui-ção de créditos vencidos. “Na verdade, são diversas as hipóteses que o diferi-mento de créditos assume na prática. Uma das hipóteses mais frequente é a do não levantamento dos lucros distribuídos, sendo estes creditados, ao longo dos anos, em contas de suprimentos dos sócios na sociedade.”55

Por esta via, os sócios prestam contribuições adicionas à sociedade sem aumentarem a sua quota de responsabilidade, como aconteceria se procedessem a um aumento do capital. Além de que um aumento de capital teria de ser apro-vado em assembleia geral por uma maioria qualifi cada, enquanto a realização de suprimentos não exige qualquer deliberação, salvo previsão estatutária em contrário.

Por outro lado, poderá ser preferível a prestação de suprimentos face à con-tribuição com novas entradas para efeitos de aumento de capital, na medida em que os suprimentos são créditos reembolsáveis, embora com determinadas limi-

anónimas: Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-02-2015 (proc. 888/10.7TYLSB-N.L1-1); Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26-06-2012 (proc. 762/09.0T2AVR.C1) e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07-10-2004 (proc. 2503/2004-6), todos dispo-níveis em www.dgsi.pt. Também o Supremo Tribunal de Justiça emitiu decisões favoráveis a este entendimento: Acórdão de 14 de dezembro de 1994 (CJ, 1994, III, p. 175 e ss. e Acórdão de 9 de fevereiro de 1999 (CJ, 1999, I, p. 100). Contrariamente, Pereira de Almeida (Sociedades Comer-ciais, Valores Mobiliários, Instrumentos Financeiros e Mercados, Vol. II, 2013, Almedina, p. 396) res-tringe o âmbito de aplicação dos suprimentos apenas às sociedades por quotas, pois entende que o instituto decorre da natureza das quotas e da forte relação pessoal que liga os sócios às sociedades por quotas e que não existe no caso das sociedades anónimas.55 Mota Pinto, Do contrato... ob. cit., pp. 341 e 342.

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tações56. É que a doutrina tem entendido que não se aplica aos sócios, enquanto credores por suprimentos, o regime do artigo 32.º do CSC57.

Embora seja prática comum os créditos por suprimentos vencerem juros, não é obrigatório que assim seja. S. Gouveia Pereira58 levanta, aliás, a questão de saber se, quando se determina que os suprimentos não vencem juros, os mesmos devem ser considerados prestações suplementares.

Os suprimentos são contabilisticamente registados como passivo. No entanto, e na medida em que, uma vez decretada a falência ou dissolvida a sociedade os suprimentos só podem ser reembolsados aos seus credores depois de inteiramente satisfeitas as dívidas para com terceiros (artigo 245.º, n.º 3, do CSC), os suprimentos são responsáveis pelas dívidas sociais. Desta forma, para além do capital próprio os credores benefi ciam ainda, num cenário de insol-vência ou dissolução, dos suprimentos para garantia dos seus créditos.

Parece-nos essencial olhar aos critérios da permanência e da remuneração (ou ausência dela) para a qualifi cação dos suprimentos enquanto instrumentos de auto ou heterofi nanciamento. Nos termos da lei, o crédito de suprimento deve assumir um caráter de permanência, sendo índice desse caráter de perma-nência a estipulação de um prazo de reembolso superior a um ano. Assim, quer seja contratualmente acordado que o reembolso só será exigível após decorrido mais de um ano da prestação do suprimento, quer, na prática, o sócio só venha a exigir o reembolso depois desse prazo, verifi ca-se o índice de permanência exigido pela lei.

Muitas vezes, dentro de um mesmo grupo de sociedades, os suprimentos são prestados de forma organizada e visam, não satisfazer necessidades concretas de fundos, mas utilizar, de forma sistemática, os excessos de liquidez em certas sociedades para fi nanciar, em condições fi nanceiras mais favoráveis, as socieda-des que dispõem de menor liquidez – cash pooling.

Uma vez que a prestação de suprimentos se enquadra, nesses casos, num sistema amplo de operações de gestão de tesouraria intra-grupo, pode ser discu-tível a própria qualifi cação como suprimentos, uma vez que, se por um lado se tratam de empréstimos efetuados pelos sócios para suprir insufi ciências de tesou-

56 Não pode ser requerida a insolvência da sociedade com base em créditos de suprimentos (artigo 245.º, n.º 2, do CSC); em situação de insolvência, os suprimentos só podem ser reembolsados aos seus credores depois de inteiramente satisfeitas as dívidas daquela para com terceiros (artigo 245.º, n.º 3, alínea a), do CSC); decretada a insolvência ou após dissolução da sociedade, não é admissível compensação de créditos da sociedade com créditos de suprimentos (artigo 245.º, n.º 3, alínea b), do CSC).57 Cfr. por todos, Mota Pinto, Do Contrato...ob. cit., p. 77.58 As Prestações...ob. cit., pp. 215 e 216.

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raria das sociedades, por outro lado não há uma decisão de emprestar autónoma que fundamente cada um dos empréstimos individualmente considerados.

Neste contexto, os empréstimos são automáticos e, considerados por si só, nem sequer dependem de uma declaração de vontade do sócio, o qual presta o seu consentimento à entrada no sistema de cash pooling e não a cada transação individual.

A inexistência do índice de permanência poderá impedir que as transfe-rências patrimoniais, no âmbito de sistemas de cash pooling, sejam qualifi cadas como suprimentos.

Assim, os suprimentos que se enquadrem em sistemas de cash pooling mere-cem análise autónoma, nomeadamente face aos termos e condições estipulados no(s) contrato(s) que sirvam de suporte à implementação desses sistemas.

Função

Na medida em que a restituição de suprimentos pela sociedade aos sócios diminui a massa patrimonial que responde pelas dívidas aos restantes credores, encontram-se aqui em jogo interesses confl ituantes entre sócios, enquanto cre-dores de suprimentos, e os terceiros (uma vez que ambos se fazem pagar pela mesma massa patrimonial).

Em termos gerais, porém, a restituição de suprimentos não se encontra condicionada, como acontece com os instrumentos de capital próprio, ao prin-cípio da intangibilidade do capital social.

Em todo o caso, o sócio credor não pode exigir livremente da sociedade, em qualquer momento, os suprimentos prestados sem prazo de reembolso. Esse regime implicaria graves prejuízos para a sociedade que, tendo investido os fundos emprestados, poderia ver-se, de um momento para o outro, confron-tada com a obrigação de os restituir. Por isso a lei prevê que sócio e sociedade acordem na determinação do prazo de reembolso e tal não sendo possível, que essa fi xação seja determinada pelo tribunal.

Assim, os suprimentos são capital, apenas eventual e potencialmente, vin-culado à proteção de credores – e essa eventualidade depende de os mesmos se encontrarem na sociedade no momento em que a mesma é declarada insol-vente ou é dissolvida.

Por outro lado, os suprimentos são uma forma de os sócios garantirem que a sociedade continua em funcionamento, evitando a maior complexidade pro-cedimental dos aumentos de capital e sem que os sócios tenham que aumentar a medida da sua responsabilidade. No entanto, é uma solução que poderá per-petuar a situação fi nanceira débil da sociedade porque lhe permite efetuar os

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pagamentos devidos, mas não a fortalece de forma a que possa começar a gerar, por si, os fundos necessários à sua atividade.

6. A cobertura de prejuízos

Capital social

Quando a sociedade sofre perdas, as mesmas são primeiramente absorvidas pelas reservas. Acima desse montante, os sócios podem absorver perdas através da redução do capital social – afi nal, uma das fi nalidades da redução de capital é exatamente a cobertura de prejuízos [artigo 94.º, n.º 1, alínea a) do CSC] – mas não são obrigados a fazê-lo. De facto, a lei só prevê consequências para as situações em que o património líquido da sociedade corresponde a menos de metade do capital social (artigo 35.º, n.º 2, do CSC). E mesmo nesse caso, a lei impõe uma obrigação ao órgão de administração, e não aos sócios que, nos termos da lei, podem (uma vez mais) nada fazer.

Face a este regime legal, resta-nos confi ar que o dever de lealdade dos sócios ou a ameaça de que os tribunais apliquem um princípio geral de fi nanciamento ordenado da sociedade, por via do qual os mesmos se tornem pessoalmente res-ponsáveis, os leve a “dotar a sociedade com um capital próprio minimamente adequado ao seu volume de negócios e aos riscos da sua atividade”59

Quanto à redução de capital para absorção de perdas, Tarso Domingues60 considera que não é aplicável o limite previsto no artigo 95.º, n.º 1 (“a redução do capital não pode ser deliberada se a situação líquida da sociedade não fi car a exceder o novo capital em, pelo menos, 20%”) que é apenas aplicável aos casos de redução do capital exuberante. Isto porque o artigo 35.º do CSC, que se refere à possibilidade de redução do capital para cobertura de prejuízos, admite que a situação líquida da sociedade não fi que a exceder o novo capital em, pelo menos, 20% – ela pode, de facto, ser equivalente ao valor do capital [artigo 35.º, n.º 3, alínea b)].

59 Mota Pinto, Do Contrato...ob. cit., pp. 130 e 131.60 Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Coord. de Coutinho de Abreu, Vol. I (comen-tário ao artigo 35.º), 2013, Almedina, p. 531.

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Reservas

Nos termos do artigo 296.º, alínea a) do CSC, uma das utilizações per-mitidas para a reserva legal é a cobertura da parte do prejuízo que não possa ser coberto pela utilização de outras reservas, fi cando, portanto, defi nida uma ordem mediante a qual as reservas podem cobrir prejuízos. Não é, no entanto, resolvida a questão de saber, entre as restantes reservas, qual a ordem pela qual deverão ser reduzidas. Raúl Ventura61 entende que a escolha nessa matéria deve ser deixada à sociedade.

“Outro problema consiste em saber se a compensação de perdas com a reserva legal se produz automaticamente ou se, pelo contrário, depende de deliberação dos sócios”62. Uma vez que a cobertura de prejuízos com reservas não é obrigatória – eles poderão, em alternativa, ser transferidos para a conta de Resultados Transitados – parece-nos que não pode operar automaticamente, mas apenas mediante deliberação. Parece-nos também que, enquanto houver reservas, o capital não poderá ser reduzido com vista à cobertura de prejuízos, dada a prioridade das reservas na proteção da integralidade do capital.

Suprimentos

Não existindo capitais próprios sufi cientes, outra possibilidade é a cobertura de prejuízos com suprimentos, através da conversão dos suprimentos em capital próprio da sociedade.

Para o efeito é necessário, parece-nos, o consentimento do sócio credor dos suprimentos em causa. De facto, a renúncia expressa ao reembolso dos suprimentos – perdão de dívida – só pode ser feita pelo sócio credor; nunca poderia ser decidida pela Assembleia Geral porque não é matéria que esteja na disponibilidade da sociedade. Uma vez perdoada a dívida, o montante corres-pondente é eliminado do passivo e é registado como capital próprio. Muitas vezes, a renúncia ao direito de reembolso dos suprimentos é feita pelo sócio em Assembleia Geral, onde se delibera também a sua transferência para a conta de Resultados Transitados de forma a cobrir o prejuízo aí registado.

Parece-nos que esta operação trata os suprimentos como se fossem entra-das antecipadas de capital, o que não corresponde à sua natureza. “Quaisquer suprimentos, sejam ou não em dinheiro, feitos pelos sócios à sociedade, cons-

61 A Sociedade por...ob. cit., p. 369.62 Raúl Ventura, Sociedades por...ob. cit., p. 367.

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tituem créditos destes sobre aquela”63, o que signifi ca que incorporá-los no capital próprio equivale a fazer uma entrada em espécie para o capital social, a qual, portanto, deverá ser sujeita a avaliação de revisor ofi cial de contas. É que “os suprimentos, sendo créditos, podem valer, em dinheiro, menos, o mesmo, ou até mais do que o montante que representam. Depende da solvabilidade da sociedade, do interesse concreto do sócio, enfi m, de vários fatores.”64

Para não ser assim, a sociedade deverá pagar aos sócios os montantes dos suprimentos e depois estes, com os mesmos montantes, deverão efetuar entra-das em numerário.

A nosso ver, o que fi cou acima dito vale também para os créditos por juros dos suprimentos que sejam abrangidos pela renúncia de reembolso.

7. Conclusão

Vimos como tem sido questionado o papel do capital social na proteção dos credores e como a alteração da lei no sentido da liberdade da sua fi xação pelos sócios nas sociedades por quotas, sem essa liberdade ter sido acompanhada da previsão de um dever geral de dotação dos meios necessários à prossecução dos fi ns sociais, mostra que, cada vez mais, o legislador parece privilegiar a nego-ciação individualizada de garantias aplicáveis a cada caso concreto, tendo em conta as especifi cidades das transações. Os credores fracos deverão, assim, fazer um esforço adicional na obtenção de informação completa sobre a situação fi nanceira das sociedades com as quais contactam.

Já as reservas nos parecem uma fi gura com maior interesse prático. A última grande crise fi nanceira nos EUA e na Europa mostrou como é essencial, nos momentos de crescimento, dispor de fundos que tenham sido reservados para conjunturas desarvoráveis e, cada vez mais, deve ser ponderado como alcançar um equilíbrio entre a distribuição de lucros – tão desejada pelos sócios – e a sustentabilidade das empresas que se pretendem de duração indeterminada. O papel central das reservas na cobertura de prejuízos mostra que podem ser a sustentação das sociedades durante os períodos cíclicos de crise.

Por fi m, os suprimentos apresentam uma certa dualidade. Enquanto presta-ções que podem servir para suprir carências periódicas das sociedades, podem, na prática, fazer as vezes das reservas se elas inexistirem. Mas, na medida em que são registados no passivo das sociedades, e não no capital próprio, se as socie-

63 Conclusões do Parecer aprovado em sessão do Conselho Técnico da Direção-Geral dos Registos e do Notariado de 02.02.1994 no Proc. n.º 64/93 R.P.4, acessível em www.irn.mj.pt.64 Parecer cit. na nota anterior.

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dades forem sendo mantidas com fundos de suprimentos, difi cilmente conse-guirão dotar-se dos meios próprios necessários para garantir a retoma dos bons resultados.

Quanto a sistemas de cash pooling, cada vez mais comuns, parece-nos que poderão ter bastante interesse, uma vez que permitem maximizar os benefícios dos grupos de sociedades. No entanto, face à inexistência de uma regulamen-tação específi ca, poderá ser difícil enquadrar as transferências de fundos que tenham lugar no seu âmbito em institutos típicos, como o dos suprimentos, caso em que os seus termos e condições deverão ser analisados casuisticamente, desencadeando a aplicação de normas jurídicas de diversa natureza, nomeada-mente societária, fi nanceira e fi scal.

Fevereiro de 2016

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ÍNDICE DO ANO VII (2015)

GOVERNO DAS SOCIEDADES

José Ferreira Gomes Novas regras sobre o governo das instituições de crédito: Primeiras impressões (incluindo densifi cação da obrigação de administração de acordo com o “princípio da responsabilidade global” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

Domingos Soares Farinho A sociedade comercial como empresa social – breve ensaio prospetivo a partir do direito positivo português . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 247

Diogo Costa Gon çalves A remuneração dos administradores das instituições de crédito: o comité de remune-rações. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 509

DOUTRINA

Manuel A. Carneiro da Frada/Diogo Costa GonçalvesPerda da qualidade de sociedade aberta (delisting de ações) e tutela dos acionistas mino-ritários. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53

Filipa Nunes PintoA responsabilidade civil dos administradores das sociedades – A concretização dos deve-res legais que origina essa responsabilidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85

Hugo Luz dos SantosOs deveres fi duciários dos gerentes das sociedades comerciais e o Enlightened Sha-reholder Value à luz do acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ n.º 11/2014: mais um capítulo da (falta) de “cooperação dialéctica” entre o Tribunal Constitucional e o Supremo Tribunal de Justiça? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109

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868 Revista de Direito das Sociedades

A. Barreto Menezes CordeiroDireito Europeu dos Valores Mobiliários: evolução e linhas gerais . . . . . . . . . . . . . . 273

Diogo Costa GonçalvesApontamentos sobre a desconsideração da personalidade jurídica no projeto de Código Comercial Brasileiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 297

André FigueiredoNovidades da infraestrutura do mercado de capitais: o Regulamento n.º 909/2014 relativo à melhoria da liquidação de valores mobiliários na União Europeia e às Centrais de Valores Mobiliários . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 325

António Garcia RoloCompleting the freedom of establishment – The case for a Directive on cross-border transfers of registered offi ces of companies in the European Union. Perspectives for legis-lative development . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 359

Inês Palma RamalhoO Mecanismo Único de Supervisão: uma breve análise sobre os desafi os da sua imple-mentação (Parte I) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 403

Madalena Perestrelo de OliveiraDireito de voto nas sociedades cotadas: da admissibilidade de categorias de ações com direito de voto plural às L-shares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 435

Tito CrespoA responsabilidade civil dos administradores para com as sociedades desportivas: o caso Marat Izmaylov . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 471

Bernardo da Gama Lobo XavierAs pensões de reforma e a segurança social dos administradores e doutros membros dos órgãos das sociedades (artigo 402.º do Código das Sociedades Comerciais) . . . . . . . . . 537

Evaristo MendesAval prestado por sócios de sociedades por quotas e anónimas e perda da qualidade de sócio. Apontamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 587

A. Barreto Menezes CordeiroDeveres fi duciários de cuidado: imprecisão linguística, histórica e conceitual . . . . . . . . 617

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Índice do ano VII (2015)

Cristiano DiasDa transmissão da responsabilidade contraordenacional na fusão por incorporação: análise crítica do Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia de 5 de março de 2015 . . . 641

Hugo Luz dos SantosO tip-pooling nos casinos da Região Administrativa Especial de Macau: (show me the money?) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 673

Bruno José Machado de Almeida / Carlos Alberto da Silva e CunhaO papel do revisor ofi cial de contas na avaliação das entradas em espécie . . . . . . . . . . 693

Catarina Baptista GomesA responsabilidade civil dos administradores assente em deliberações dos sócios . . . . . . 711

Elsa Pizarro PardalProject fi nance e projectos de infra-estruturas de transporte rodoviário em Portugal . . . 753

Diogo CoelhoFinanciamento Societário, Covenants e Responsabilidade dos Credores – Qual o papel da Teoria da Agência aplicada aos Covenants na responsabilidade dos Credores--Financiadores? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 793

Joana Freire AlmeidaCapital social, reservas e suprimentos: seu conteúdo, função e papel na cobertura de prejuízos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 835

JURISPRUDÊNCIA ANOTADA

Dever de não concorrência e dever de não utilização de bens pertencentes à sociedadeAcórdão do Supremo Tribunal de Justiça (6.ª Secção) de 30 de setembro de 2014, Processo 1195/08 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161Anotação por A. Barreto Menezes Cordeiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 182

A regulação contratual do risco e a alteração das circunstâncias a propósito dos swaps Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de maio de 2014, Processo 531/11. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189Anotação por Diogo Pereira Duarte. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 212

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DIRETOR: ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO

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ENTIDADE NÚMERO DE AUTORIZAÇÃO

AUTORIZAÇÃO DE DÉBITO EM CONTA PARA DÉBITOS DIRECTOS

NOME

EMAIL

Por débito na nossa/minha conta abaixo indicada queiram proceder ao pagamento das importâncias que lhes forem apresentadas pela empresa EDIÇÕES ALMEDINA SA

IBAN/NIB: PT 50

CONTRIBUINTE FISCAL

DATA – –

(1) REGULARIDADE: MENSAL, TRIMESTRAL, SEMESTRAL, ANUAL

AUTORIZAÇÃO DE DÉBITO DIRECTO (ADC)

PROCEDIMENTOS· Preencher completamente e assinar Autorização de Débito, de acordo com a ficha de assinatura de Banco. No caso de ser empresa carimbar ADC com carimbo da empresa.· Remeter a ADC para: EDIÇÕES ALMEDINA SA, Rua Fernandes Tomás, n.ºs 76, 78, 80, 3000-167 Coimbra, ou via email para [email protected].· Qualquer alteração que pretenda efectuar a esta autorização basta-rá contactar as EDIÇÕES ALMEDINA SA por qualquer forma escrita · Também poderá fazer alterações através do Sistema Multiban-co, conforme se apresenta seguidamente, ou no sistema de home banking, caso tenha essa opção. Também neste caso agradece-mos informação escrita sobre as alterações efectuadas.· Esta autorização destina-se a permitir o pagamento de bens/ser-viços adquiridos à nossa empresa e só poderá ser utilizada para outros efeitos mediante autorização expressa do(s) próprio(s)· Dos pagamentos que vierem a ser efectuados por esta forma serão emitidos os recibos correspondentes.

INFORMAÇÕESAtravés do Sistema Multibanco, relativamente a esta autorização de Débito em Conta, poderá, entre outras, efectuar as seguintes operações:· Visualizar a Autorização Débito em Conta concedida;· Actualizar os Dados Desta Autorização de Débito em Conta;· Cancelar esta Autorização Débito em Conta;

Em cumprimento do aviso 10/2005 do Banco de Portugal, infor-ma-se que é dever do devedor, conferir, através de procedimentos electrónicos, nomeadamente no multibanco, os elementos que compõem as autorizações de débito em conta concedidas.

PARA ESCLARECIMENTOS ADICIONAISTelefone: 239 851 903 Fax: 239 851 901 Email: [email protected]

Na rede Multibanco poderá definir: A Data de expiração da autorização | O montante máximo de débito autorizado

1 0 6 4 4 4

ASSINATURA(S) CONFORME BANCO

BENS/SERVIÇOS REGULARIDADE(1)

INICIA A TERMINA AMÊS ANOVALOR MÊS ANO

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