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RESUMO Há muito que se identifica a excessiva participação do modal rodoviário na matriz de transportes nacional como uma fonte de custos extrafábrica acima dos padrões mundiais (“Custo-Brasil”). Em um país como o Brasil, a opção pela multimodalidade nos transportes configura-se como a mais racional. Mas por que isso não ocorre? Este artigo apresenta os maiores desafios colocados para o modal ferroviário, que se constitui no principal elo faltante ao surgimento de uma oferta adequada de serviços de transporte multimodal. A quase totalidade das soluções disponíveis exige uma nova moldura institucional, a ser definida conjuntamente com a criação de um órgão regulador, a Agência Nacional dos Transportes, ou delegando-lhe poderes para tal. Esta instituição terá a responsabilidade de rever os marcos definidos no processo de privatização, estabelecendo normas pró-competitivas para as concessionárias e permissionárias de infra-estrutura (ferrovias, portos, rodovias, navegação marítima e hidroviária) que efetivamente beneficiem a sociedade e as empresas brasileiras com a retirada dos transportes do conjunto de fontes do “Custo-Brasil”. ABSTRACT Economics studies use to identify the high share of total transport represented by a road transport as a source of competitive inefficience to the Brazilian products in the international markets (“Brasil Cost”). In a large country such as Brazil, the choice of multiple transport alternatives would appear to be the most rational. Why then, has it not occurred? This article presents the main challenges of a railroad-based mode, which represents the principal missing link of a solution that offers adequate multiple transport alternatives. Almost all available solutions require a new institutional structure, to be defined together with the creation of a regulatory agency, the Agência Nacional dos Transportes, and the delegation of powers to achieve this. This agency will have the responsibility of reviewing defined stages of the privatization process and establishing pro-competition regulations for concessionaires and infrastructure license holders (railroads, ports, roads, river and maritime navigation), that benefit Brazilian society and companies in a real way by removing transport from the group of factors that give rise to “Brazil Cost”. * Economistas do BNDES. Regulação no Brasil: Colocando a Competitividade nos Trilhos Regulação no Brasil: Colocando a Competitividade nos Trilhos ERIKSOM TEIXEIRA LIMA JORGE ANTONIO BOZOTI PASIN* REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 6, N. 12, P. 169-194, DEZ. 1999

REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 6, N. 12, P. 169-194 ... no Brasil...– 297 km de malhas com diversas bitolas na Amazônia, como as Estradas de Ferro Amapá, Rio do Norte e Jari,

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RESUMO Há muito que seidentifica a excessiva participação domodal rodoviário na matriz detransportes nacional como uma fontede custos extrafábrica acima dospadrões mundiais (“Custo-Brasil”).Em um país como o Brasil, a opçãopela multimodalidade nos transportesconfigura-se como a mais racional.Mas por que isso não ocorre?

Este artigo apresenta os maioresdesafios colocados para o modalferroviário, que se constitui no principalelo faltante ao surgimento de uma ofertaadequada de serviços de transportemultimodal. A quase totalidade dassoluções disponíveis exige uma novamoldura institucional, a ser definidaconjuntamente com a criação de umórgão regulador, a Agência Nacionaldos Transportes, ou delegando-lhepoderes para tal. Esta instituição terá aresponsabilidade de rever os marcosdefinidos no processo de privatização,estabelecendo normas pró-competitivaspara as concessionárias epermissionárias de infra-estrutura(ferrovias, portos, rodovias, navegaçãomarítima e hidroviária) queefetivamente beneficiem a sociedade eas empresas brasileiras com a retiradados transportes do conjunto de fontesdo “Custo-Brasil”.

ABSTRACT Economics studiesuse to identify the high share of totaltransport represented by a roadtransport as a source of competitiveinefficience to the Brazilian productsin the international markets (“BrasilCost”). In a large country such asBrazil, the choice of multipletransport alternatives would appearto be the most rational. Why then, hasit not occurred?

This article presents the mainchallenges of a railroad-based mode,which represents the principal missinglink of a solution that offers adequatemultiple transport alternatives. Almostall available solutions require a newinstitutional structure, to be definedtogether with the creation of aregulatory agency, the AgênciaNacional dos Transportes, and thedelegation of powers to achieve this.This agency will have the responsibilityof reviewing defined stages of theprivatization process and establishingpro-competition regulations forconcessionaires and infrastructurelicense holders (railroads, ports, roads,river and maritime navigation), thatbenefit Brazilian society and companiesin a real way by removing transportfrom the group of factors that give riseto “Brazil Cost”.

* Economistas do BNDES.

Regulação no Brasil: Colocandoa Competitividade nos TrilhosRegulação no Brasil: Colocandoa Competitividade nos Trilhos

ERIKSOM TEIXEIRA LIMAJORGE ANTONIO BOZOTI PASIN*

REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 6, N. 12, P. 169-194, DEZ. 1999

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1. Histórico

implantação das ferrovias no Brasil foi iniciada em meados do século19 pelo Barão de Mauá. O primeiro trecho ligava o Rio de Janeiro a

Petrópolis, através de uma operação multimodal. A linha iniciava em Magé,cidade localizada nos fundos da baía da Guanabara e, portanto, alcançadapela navegação interior, predominante à época. Apesar de seu tamanhodiminuto (apenas 16 km), o Barão de Mauá realizou uma grande mobiliza-ção de recursos nacionais e internacionais, que seriam garantidos com osucesso do empreendimento, numa operação similar ao que hoje se conven-ciona chamar de project finance.

A expansão da atividade cafeeira esteve intimamente associada ao cresci-mento da malha ferroviária, o que explica o porquê de sua maior amplitudee capilaridade na região Sudeste, em especial no Estado de São Paulo.

Observando-se com atenção, percebe-se que existem quatro pontos deconvergência na malha ferroviária brasileira, sendo três no Sul/Sudeste (SãoPaulo/Santos, Rio de Janeiro e Curitiba/Paranaguá) e um no Nordeste(Recife). Essa convergência não é fortuita. Ela revela o elevado grau deconhecimento da geografia e, principalmente, da economia regional brasi-leiras do século 19, o que permitiu aos concessionários privados otimizarrotas,1 aumentando a área de influência de seus investimentos. A cidade deSão Paulo é o exemplo mais notável dessa convergência geográfica, pois ajusante encontra-se o porto de Santos e a montante uma grande malhaferroviária que, além de São Paulo, alcança os Estados do Paraná, de Goiáse de Minas Gerais.2

REGULAÇÃO NO BRASIL: COLOCANDO A COMPETITIVIDADE NOS TRILHOS170

1 Os concessionários necessitavam obter o máximo de capilaridade para suas redes, ao mesmo tempoem que buscavam minimizar os custos de construção e de operação. Deve-se reconhecer que ageografia brasileira não é das mais propícias à implantação de redes de transportes, devido às inúmerasserras, vales e outros acidentes geográficos. Da mesma forma que os portos foram locados nos melhorespontos do litoral (identificados há 500 anos pelos colonizadores portugueses), as ferrovias foramconstruídas aproveitando os tabuleiros de planaltos e de vales para assentamento das linhas. Outroponto a destacar é o fato de ser apenas aparente a irracionalidade de construir ferrovias paralelas aosrios, pois estes, com exceção do São Francisco e de alguns na Amazônia, ou não apresentamnavegabilidade plena (com cachoeiras, corredeiras e baixo calado, como o Doce, o Araguaia e oTocantins), ou não atingem o mar (Bacia do Paraná), ou correm paralelo à costa (Paraíba do Sul).

2 Toda essa malha ferroviária encontrava apenas um caminho para atingir o porto de Santos: a antigaEstrada de Ferro Santos-Jundiaí, também projetada e construída pelo Barão de Mauá. É bemverdade que essa convergência por São Paulo deveu-se a décadas de situação monopolista daSantos-Jundiaí (obtida como contrapartida pela assunção integral pelos acionistas privados dosriscos do empreendimento). Após a liberação do mercado para outros empreendedores, estesoptaram pela construção de uma linha quase paralela para o porto de Santos, trecho pertencente àFerrovia Paulista S.A. (Fepasa), que corre em paralelo ao rio Pinheiros, na cidade de São Paulo,possui linha dupla para a descida da serra e cruza a cidade de Santos para atingir a zona portuária.

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As concessionárias ferroviárias, que eram basicamente controladas pelocapital privado internacional, foram objeto de processo de encampaçãoconcluído em 1957 na esfera federal, com a criação da Rede FerroviáriaFederal S.A. (RFFSA). Já a malha paulista, composta de cinco empresasprivadas, foi estatizada em 1971, transformando-se na Fepasa. Esse processode estatização ocorreu paralelamente ao declínio da atividade ferroviáriaface à expansão acelerada do modal rodoviário desde o início dos anos 50,o que reduzia a lucratividade e afetava negativamente a qualidade dosserviços oferecidos.

Entretanto, a intervenção estatal não foi coroada de êxito, pois as condiçõesprevalecentes nos anos 60 e 703 terminaram por delimitar para a atividadeferroviária um reduzido espaço de mercado: minérios, combustíveis, cimen-to e alguns fluxos cativos de grãos. As empresas estatais RFFSA e Fepasanão possuíam capacidade para formular e implementar estratégias agres-sivas para atrair clientes com a oferta de serviços novos ou de melhorqualidade, quer por ausência de quadros de pessoal ou dificuldades ins-titucionais, quer por incapacidade para cumprir contratos, na medida em quecortes orçamentários impediam a manutenção adequada das vias e domaterial rodante. Como a atividade ferroviária é intensiva em capital e astarifas eram fixadas abaixo do custo operacional, criou-se um círculo viciosode autofagia do capital fixo. Como decorrência, as estatais viram-se obriga-das a estabelecer privilégios para o atendimento dos grandes usuários, deforma a, pelo menos, gerar receita para tentar fazer face às despesas depessoal, ficando os prejuízos operacionais para serem cobertos pelo contro-lador (no caso, o erário público). Tal modelo de operação deficitária,assegurando prioridades aos grandes e poucos usuários, significou umaapropriação de recursos do conjunto da sociedade (subsídios implícitos) poralguns poucos através das rubricas de coberturas para déficits dessas es-tatais.4

Desse modo, a opção por privatizar a operação de transporte ferroviário,com o preço mínimo do leilão calculado com base no fluxo de caixadescontado, deve ser entendida como a forma possível para buscar a reati-vação do setor sem gerar maiores pressões sobre as finanças públicas. Foi

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3 Os baixos preços do petróleo predominaram no período, apesar do choque de 1973, possibilitando,entre outros fatores, a expansão da fronteira agrícola em direção ao Centro-Oeste, o que só foipossível pelo uso intensivo do caminhão. Note-se inclusive que houve um perfeito casamento entrea necessidade de ampliar a ocupação e a integração econômica do país (meta definida nos anos 60e 70) e a preferência pelo caminhão, na medida em que a ampliação da malha ferroviária eramuitíssimo mais cara do que a penetração rodoviária, pois o caminhão “fazia” sua própria estrada.

4 O termo “apropriação” expressa a concessão de subsídios a setores econômicos específicos semque haja uma discussão ampla e transparente por toda a sociedade sobre a oportunidade (ounecessidade) desses subsídios.

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a forma possível porque a ideal compreenderia o estabelecimento prévio deum marco regulador adequado e pró-competitivo que efetivamente es-timulasse o ressurgimento do transporte ferroviário. Tal modelagem, nãotendo sido possível então, terá de ser feita agora, juntamente com a criaçãoda agência reguladora dos transportes, o que exigirá um esforço extraordi-nário para contornar eventuais restrições legais e fazer prevalecer o interessenacional.

2. Os Novos Concessionários

A malha integrada e de abrangência nacional da RFFSA foi dividida emcinco lotes para a privatização: Sul, Oeste, Leste e Nordeste, todas de bitolamétrica, e Sudeste, de bitola larga (1,6 m).5 Além desses, houve um leilãoespecífico para o trecho isolado Tereza Cristina, em Santa Catarina. AFepasa foi leiloada integralmente, tendo o concessionário arrematado asmalhas de bitola larga, métrica e mista, eletrificadas ou não. Os demaistrechos e malhas ferroviárias do Brasil são:

• Ferrovias da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD):

– Vitória-Minas (EFVM), 898 km de bitola métrica ligando o quadriláteroferrífero de Minas Gerais e a Ferrovia Centro-Atlântica (FCA) – malhaleste da RFFSA – aos portos do Espírito Santo; e

– Estrada de Ferro Carajás, 1.089 km de bitola larga ligando a provínciamineral de Carajás ao porto de Itaqui e ao Terminal da Ponta da Madeira,em São Luís, no Maranhão.

• Em construção:

– Ferrovia Norte-Sul, 95 km de bitola larga, no Maranhão, assemelha-semuito mais a um ramal da Estrada de Ferro Carajás do que a uma ferroviaindependente; e

– Ferronorte, 957 km de bitola larga ligando São Paulo a Mato Grosso, temseu controle acionário constituído por fundos de pensão de empresasestatais, sendo também a principal controladora da Fepasa privatizada.

REGULAÇÃO NO BRASIL: COLOCANDO A COMPETITIVIDADE NOS TRILHOS172

5 É bastante comum ouvir afirmações sobre a diferença de bitolas como um obstáculo ao transporteferroviário no Brasil. Trata-se de uma afirmação absolutamente falsa, uma vez que é possível (coma malha em bom estado) deslocar-se de Uruguaiana, na fronteira do Rio Grande do Sul com aArgentina, até a capital maranhense de São Luís, passando por todas as capitais brasileiras servidaspor ferrovias (exceto Cuiabá e as capitais da região Norte), sem necessidade de qualquer transbordo.A malha de bitola larga foi implantada nos anos 70 e compreende trechos e rotas específicas: Carajáse Norte-Sul; Ferrovia do Aço; novos ramais da Fepasa; e Ferronorte.

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• Trechos urbanos aproveitados para transporte misto de passageiros e decargas:

– Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU), 249 km de bitolamétrica distribuídos em várias capitais do Nordeste e Sudeste;

– Flumitrens, 264 km de bitola métrica na região metropolitana do Rio deJaneiro; e

– Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), 270 km de bitolamétrica na Grande São Paulo e na cidade de Santos.

• Outras ferrovias privadas, destacando-se:

– 297 km de malhas com diversas bitolas na Amazônia, como as Estradasde Ferro Amapá, Rio do Norte e Jari, construídas para atender a empreen-dimentos específicos de mineração ou produção de celulose; e

– Votorantim, no Estado de São Paulo.

TABELA 1

Composição Societária dos Novos ConcessionáriosFerroviários PrivadosMalha da RFFSA

Estrada de Ferro Minas-Rio-São Paulo (MRS) –1.674 km, bitola larga (1,6 m): Malha Sudeste (MinasGerais, Rio de Janeiro e São Paulo)

CSN, MBR, Usiminas, Gerdau, Ferteco,Ultrafértil, Cilato Multimodal e ABSEmpreendimentos Imobiliários

Ferrovia Centro-Atlântica (FCA) – 7.080 km, bitolamétrica: Malha Leste (Minas Gerais, Goiás, DistritoFederal, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Bahia eSergipe)

CSN, Mineradora Tacumã, Interférrea,Tupinambarana, Railtex, Gruçaí, Ralph Partnerse Judori Participações

Ferrovia Sul-Atlântica (FSA) – 6.586 km, bitolamétrica: Malha Sul (Paraná, Santa Catarina e RioGrande do Sul)

Interférrea, Gruçaí, Judori, Ralph Partners eRailtex International

Companhia Ferroviária do Nordeste (CFN) – 4.535km, bitola métrica: Malha Nordeste (Alagoas,Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará,Piauí e Maranhão)

CSN, CVRD e Taquari

Novoeste – 1.621 km, bitola métrica: Malha Oeste(São Paulo e Mato Grosso do Sul)

Noel Brazil Inc., Brazil Rail, Western Rail

Tereza Cristina – 164 km, bitola métrica: trechoisolado (Santa Catarina)

Gemon, Interfinance Participações e Santa Lúcia

Malha da Fepasa

Ferrovia Bandeirantes (Ferroban) – 4.186 km, bitolalarga (1.463 km), métrica (2.427 km) e mista (296km), abrangendo São Paulo, Paraná e Minas Gerais

Previ, Funcef, União Comércio e Participações,Chase Latin, Capmelissa, Logística Bandeirante

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As Cargas

O escopo das cargas movimentadas pelas ferrovias brasileiras é bastantereduzido, com quase todas elas apresentando mais de 50% de seu movimen-to concentrado em um único produto (Tabela 2). Por exemplo, na malha daMRS predomina o minério de ferro, produto quase exclusivo também emCarajás e na Vitória-Minas, essas últimas pertencentes à CVRD. A Fepasaobteve, em 1997, 31% de sua movimentação com combustíveis, 28% comminérios e 18% com grãos.

Considerando que os valores dos fretes ferroviários são bastante inferioresaos rodoviários (em R$/t.km), conforme dados do Sistema de Informaçõesde Fretes para Cargas Agrícolas (Sifreca),6 como explicar por que é tãoreduzida a utilização do transporte ferroviário no Brasil? Por que os proprie-

TABELA 2

Principais Cargas Movimentadas por Ferrovia – 1997 GRÃOS COM-

BUSTÍ-VEIS

CIMENTO CELU-LOSE

MINÉ-RIOS

OUTROS TOTAL

Carajás Mil TUMilhão de TKU

Distância Média (km)

– 420285,26

679

– – 48.00541.097,95

856

832393,80

473

49.25741.777,00

848

FCA Mil TUMilhão de TKU

Distância Média (km)

1.081873,42

808

2.2971.231,66

536

6.2141.861,91

300

– 5.687490,84

86

1.601882,31

551

16.8805.340,14

316

EFVM Mil TUMilhão de TKU

Distância Média (km)

– – 2.035689,06

339

696254,81

366

98.53853.127,58

539

5.5912.527,39

452

106.86056.598,84

530

MRS Mil TUMilhão de TKU

Distância Média (km)

– – 3.2621.269,48

389

– 43.59818.628,72

427

3.878424,89

110

50.73820.323,09

401

Fepasa Mil TUMilhão de TKU

Distância Média (km)

2.4211.005,94

416

4.9811.675,13

336

1.586421,26

266

2410,35

431

3.0821.541,75

500

985377,68

383

13.0795.032,10

385

FSA Mil TUMilhão de TKU

Distância Média (km)

2.4371.662,42

682

2.3241.059,67

456

724454,62

628

3.9491.824,81

462

– 2.0111.189,47

591

11.4456.190,99

541

Outras Mil TUMilhão de TKU

Distância Média (km)

27743,59

157

– 29420,22

69

87411,02

13

12.469566,55

45

47396,51

204

14.387737,89

51

Total Mil TUMilhão de TKU

Distância Média (km)

6.2163.585,38

577

10.0224.251,72

424

14.1154.716,55

334

5.5432.100,99

379

211.379115.453,39

546

15.3715.892,04

383

262.646136.000,05

518

Nota: Para facilitar a identificação dos trechos ferroviários foram usados os nomes dos novos conces-sionários privados, embora em alguns deles a operação em 1997 ainda fosse de responsabilidade dooperador ferroviário estatal. Esta tabela deve ser usada apenas para a análise da composição das cargase comprimento dos deslocamentos e para realizar comparações com parâmetros internacionais.

REGULAÇÃO NO BRASIL: COLOCANDO A COMPETITIVIDADE NOS TRILHOS174

6 O Sifreca é produzido pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidadede São Paulo (USP) (ver http://sifreca.esalq.usp.br).

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tários de cargas não optam por realizar suas operações de transportes usandoos modais que apresentam melhores tarifas? Porque as tarifas unitárias portonelada/quilômetro para a movimentação de cargas são apenas um dosvários aspectos considerados na escolha do modal de transporte em deter-minada rota ou operação.7

Outro aspecto fundamental é a confiabilidade no tipo de operação a serescolhida com relação à preservação da integridade das cargas e à previsi-bilidade e adequação dos tempos despendidos para a realização do trans-porte relativamente às exigências comerciais.

Para corroborar essa tese, pode-se usar um trabalho recente do Banco Mundial(1998, p. 11), no qual se demonstra a baixa correlação entre custos logísticos eparticipação do modal ferroviário no mercado brasileiro de transportes. Noscasos específicos da soja e do farelo de soja, os valores dos fretes rodoviáriossão, em média, 175% superiores aos das tarifas ferroviárias. Quando compara-dos os custos logísticos totais – que computam, além das tarifas, os tempostotais de operação, o volume dos carregamentos e suas dimensões, o númerode operações por unidade de tempo etc. –, aquela relação é reduzida para 49%,em média. Entretanto, apesar dessas diferenças, apenas 17% da soja e 50% dofarelo de soja são movimentados por ferrovias no país. Os motivos identificadospara essa suposta preferência pela rodovia estão basicamente centrados nobinômio qualidade/confiabilidade na plena execução dos serviços pelo modalrodoviário vis-à-vis a insegurança observada nos contratos ferroviários.

Assim, restou para as empresas ferroviárias estatais transformarem-se emprestadoras de serviços a clientes preferenciais, ou, mais precisamente, emcentros de custos dos seus maiores clientes, sempre grandes empresas comoa mineradora privada Caemi, ou estatais recém-privatizadas como as side-rúrgicas CSN e Usiminas, entre outras.

3. Performance dos Novos Concessionários Privados

Para realizar uma avaliação precisa do desempenho das concessionáriasferroviárias privadas, deve-se analisar inicialmente os indicadores básicosde performance das ferrovias vis-à-vis o período anterior à privatização:8

REVISTA DO BNDES, RIO DE JANEIRO, V. 6, N. 12, P. 169-194, DEZ. 1999 175

7 Está implícita a possibilidade de opção por uma operação multimodal, envolvendo dois ou maismodos: marítimo, hidroviário, ferroviário, rodoviário ou aéreo.

8 Os dados completos podem ser obtidos nos relatórios trimestrais produzidos pela RFFSA [verMinistério dos Transportes (1998)]. Foram examinadas as estatísticas das Ferrovias Centro-Atlân-tica, Sul-Atlântica, Vitória-Minas, MRS e Carajás, sendo as quatro primeiras as estradas de ferroprivatizadas que possuem o maior volume de movimentação de cargas, receitas e número deempregados, enquanto a última é destacada por sua importância e para possibilitar abordagenscomparativas.

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• As metas estabelecidas nos contratos de concessão não foram atingidas,apesar de a produção da FCA, MRS, FSA e Tereza Cristina, medida emTKU,9 ter recuperado os níveis médios observados entre 1993 e 1995,período de pico de movimentação da estatal (Tabela 3). A Novoesteapresentou queda expressiva de 9%, e a performance negativa da CFN(-22%) deve ser relevada, uma vez que a assunção da concessão se deuem 1998. De forma geral, as concessionárias privadas alegam que asmetas foram estabelecidas tomando-se por base os picos de movimenta-ção, mas isso era de amplo conhecimento por ocasião do leilão. Alémdisso, apontam que os problemas gerenciais e os investimentos emrecuperação da malha e do material rodante eram bastante superiores aosque efetivamente puderam ser identificados durante as visitas préviaspreparadas para os candidatos, o que se configuraria uma assimetria deinformações e justificaria a concessão de um “período de graça” para ocumprimento das metas contratadas, o que foi efetivamente conseguido.

• O aumento das quantidades transportadas foi simultâneo à redução donúmero de trabalhadores empregados (queda da ordem de 40%). Essasquedas foram observadas somente nos concessionários da malha daRFFSA, pois os indicadores comportaram-se de forma diferente no casoda Estrada de Ferro Carajás, construída e operada pela CVRD. Nesta,após uma redução na quantidade de postos de trabalho, a situação foirevertida e o número de empregos voltou a níveis próximos aos de 1995.

TABELA 3

Quantidade Média Transportada por Trecho Ferroviário(Em Milhões de TKU)

NOME DA CONCESSÃO RFFSA(Média 1993/95)

CONCESSIONÁRIO PRIVADO(1998)

Novoeste 1.786 1.578FCA 6.645 7.019MRS 20.534 21.204Tereza Cristina 93 166FSA 8.323 8.347CFN 825 640Fonte: RFFSA.

REGULAÇÃO NO BRASIL: COLOCANDO A COMPETITIVIDADE NOS TRILHOS176

9 Toneladas úteis, ou TU, de uma dada malha ferroviária (trecho, concessão, empresa, região etc.) éa quantidade de toneladas úteis de transporte remunerado realizado, ou seja, a soma das cargasoriginadas no interior da própria malha com as recebidas de outras por tráfego mútuo e/ou direitosde passagem. TKU é o resultado da multiplicação das TU pela distância transportada dentro damalha e representa um indicador do nível de produção da malha.

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A queda do número de empregos com manutenção dos níveis de produçãoexplica o crescimento acelerado dos níveis de produtividade desde aprivatização, que são medidos em TKU por empregado.

• O indicador de segurança, medido em acidentes por trem.km,10 apresen-tou forte redução na maioria das concessionárias analisadas, mas aindaestá pior do que as metas estabelecidas nos contratos.

• As taxas de imobilização das locomotivas e vagões,11 que indicam osníveis de ociosidade do material rodante, apresentaram melhoras sensí-veis nos casos da FSA e da MRS, comportamento também observado naCarajás, mas se mantiveram no mesmo patamar na FCA e na Vitória-Mi-nas.

• As receitas operacionais com transporte mantiveram-se sem alteraçõessignificativas na FSA e na Vitória-Minas, enquanto na MRS houveelevação da ordem de 20% e na FCA, após uma queda inicial, as receitasforam equivalentes aos níveis máximos obtidos anteriormente.

• Com relação à participação relativa dos produtos transportados, nãohouve mudanças significativas. Em outras palavras, não se notou altera-ção marcante na matriz de transportes brasileira, com aumento da parti-cipação relativa ou mudanças no escopo das cargas transportadas porferrovias. A MRS, a Vitória-Minas e a Carajás continuam sendo ferroviasespecializadas no transporte de minérios; a FCA, em cimento e combus-tíveis; a Fepasa, em combustíveis, minérios e grãos; e a FSA, em celulose,grãos, produtos diversos e combustíveis (Tabela 2).

A manutenção do escopo de produtos transportados nas diversas malhas éprovavelmente a característica mais marcante a assinalar nesse breve exameda evolução dos principais indicadores do transporte ferroviário após aprivatização. A análise das causas do insucesso na tentativa de modificar operfil de suas cargas e aumentar a participação das ferrovias na matriz detransportes do Brasil será realizada na Seção 4.

Antes disso, convém analisar detalhadamente quais as implicações micro emacroeconômicas do crescimento da produtividade (TKU por empregado)obtido pelos novos concessionários. Para tanto, é fundamental a inves-

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10 Trem.km é o somatório das distâncias percorridas pelos trens na malha.11 A taxa de imobilização das locomotivas é dada pela razão entre o somatório dos tempos imobilizados

das locomotivas e o total dos tempos disponíveis de todas as locomotivas operando na malha. A taxados vagões é obtida de forma análoga.

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tigação sobre o comportamento das funções de produção (TKU por númerode trabalhadores) e dos fatores que afetariam a posição da mesma (introdu-ção de inovações tecnológicas e novos investimentos em capital fixo).

A Função de Produção

Definição

O espaço no qual se situa a função de produção das ferrovias é o planocartesiano definido pelos eixos TKU (ordenada) e L (abscissa), que medemo nível de TKU produzido e a quantidade de trabalhadores empregada. Nessaabordagem, trata-se TKU como a variável dependente e L como a variávelde controle.

Considerando-se que em cada período de tempo a tecnologia disponível éestática e a quantidade de capital é fixa, variando o número de trabalhadoresempregados em uma malha ferroviária (L), obtém-se uma quantidade cres-cente da capacidade de transporte de TKU possível de ser realizada em umdado período.12

As combinações de L (insumo) e TKU (produto) possíveis de serem reali-zadas sob uma certa tecnologia compõem o conjunto de possibilidades deprodução. A curva formada pelos pontos extremos desse conjunto é afronteira de possibilidades de produção, ou, nesse caso específico, a própriafunção de produção. Em qualquer ponto sobre a curva da função de produçãoexiste plena utilização dos recursos. Essa é uma situação desejável, porémnão necessariamente obrigatória.

Formato

Admitindo-se que o nível de produção esteja em um ponto além de umahipotética fase inicial de ganho de escala, o crescimento de TKU diante deaumentos marginais do número de trabalhadores será cada vez menor.13 A

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12 Nesse modelo, por simplificação, trata-se o salário como exógeno. Caso o salário fosse consideradouma variável endógena, as funções de produção precisariam ser traçadas para cada nível salariale, admitindo-se um modelo de salário-eficiência, chegar-se-ia a uma curva ótima para a firma. Essasofisticação, entretanto, não alteraria os resultados de curto prazo do modelo, nem seu poderexplicativo para as investigações a serem empreendidas neste artigo.

13 Expandindo-se o modelo para abranger um campo inicial em que houvesse ganhos de escala, seriapossível encontrar o ponto p da função f de produção tal que a reta que passasse pela origem e porp seria tangente a f. A tangente dessa reta seria o nível de produtividade máxima. Como, contudo,tal refinamento da modelagem teórica não traria ganhos para a capacidade explicativa do modelo,e uma vez que o caminho seguido não acarreta perda de generalidade nos resultados encontrados,optou-se por trabalhá-lo considerando-se a produtividade marginal decrescente ao longo de f.

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produtividade marginal decrescente confere um formato côncavo em rela-ção à origem para a função de produção.

Em conseqüência, a produtividade por trabalhador, TKU/L, onde L é onúmero total de trabalhadores, será decrescente ao longo de toda a funçãode produção f. No Gráfico 1, a produtividade média por trabalhador em umdado ponto p de operação é dada pela inclinação da reta que passa pelaorigem e por este ponto p.14 Em uma função de produção com esse formato,qualquer ponto sobre sua fronteira constitui-se em um ponto de operaçãoeficiente.

Fatores que Influenciam o Ponto de Operação

Existem dois tipos possíveis de movimentação de um ponto p (L, TKU) deoperação no plano cartesiano L x TKU: mudanças dentro de um dadoconjunto de possibilidades de produção (em seu interior ou ao longo dafunção de produção) e mudanças em resposta a deslocamentos da própriafunção de produção.

Os fatores que provocam deslocamentos ao longo da função de produção ouno interior do conjunto de possibilidades de produção são simples alteraçõesna quantidade de trabalho empregado (L) e de TKU produzido.

Já deslocamentos da própria função de produção são resultado de mudançasna tecnologia disponível. Assim, choques de produtividade decorrentes de

TKU

0 L

GRÁFICO 1

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14 Para detalhes relativos à função de produção, ver Varian (1993, Caps. 17 e 18) e, para umaabordagem mais avançada, ver Mas-Colell, Whinston e Green (1995).

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inovação tecnológica e/ou aumento na quantidade de capital (K) empregadomovem a função para cima, pois para cada nível de L se produz maiorquantidade de TKU. Por outro lado, a depreciação continuada e o desgastee obsolescência da malha ferroviária empurram a função de produção parabaixo, pois para cada nível de L se produz menos TKU.

No Gráfico 2, tem-se um deslocamento de f para f ’ em resposta à realizaçãode investimentos (∆I) na malha ferroviária.

Estática Comparativa

Para se identificar o comportamento da função de produção após o processode privatização, imagine-se um conjunto de possibilidades de produçãoqualquer que represente a situação válida no primeiro instante. Do primeiropara o segundo momento, o comportamento das variáveis relevantes para omodelo foi de queda sensível em L e de pequeno aumento em TKUproduzidos.

Isso se reflete em um deslocamento do ponto de operação de um dado p(TKU, L) em um conjunto de possibilidades de produção inicial para umnovo ponto p’ (TKU’, L’ ), onde TKU’ > TKU e L’ < L.

No novo ponto p’, a tangente da reta que liga o ponto à origem, equivalenteà produtividade da ferrovia, é superior à anterior (isto é, TKU’/L’ > TKU/L).A nova quantidade L’ de trabalhadores empregados é significativamentemenor e a nova quantidade TKU’ é pouco superior à inicial.

f 'TKU

∆I

f

0 L

GRÁFICO 2

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A mudança de p para p’ poderia ser explicada tanto como resultado demovimentos ao longo do conjunto de possibilidades de produção anteriorquanto por movimentos da própria função de produção. Para que se possaentender os determinantes do movimento observado, é preciso consideraros dados analisados anteriormente e os fatores que provocam deslocamentosda função de produção.

As bruscas reduções das quantidades de trabalhadores empregados sugeremque havia uma situação de grande ociosidade relativa de mão-de-obra, poisos investimentos e as inovações implementados pelas concessionárias forampouco relevantes, especialmente devido ao reduzido tempo em que asoperações estão sob sua responsabilidade. Assim, o que parece ter ocorridosob a gestão privada é um ligeiro deslocamento para cima das funções deprodução da maioria das concessionárias e um sensível deslocamento dentrodo conjunto de possibilidades de produção.

Considerações sobre a forma como o governo federal ou as concessionáriasvisualizam o espaço de utilidades dentro do plano cartesiano da malhaferroviária reforçam as evidências de ter efetivamente ocorrido um movi-mento similar ao descrito e ajudam a explicar por que isso aconteceu.

Por mais que haja limitações no espaço de iniciativas das concessionárias,estabelecidas pelas cláusulas dos contratos de concessão, o objetivo de cadauma delas é maximizar seus lucros. Dessa forma, as empresas conces-sionárias sempre buscarão atingir um ponto ótimo de operação, observadasas metas de performance estabelecidas.

TKU

x p’x p

0 L

GRÁFICO 3

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As concessionárias têm em suas isolucros suas curvas de indiferença ope-racionais (ci). Uma isolucro típica é dada pela reta π = TKU – w.L, onde πé o nível de lucro e w o salário médio dos funcionários. Quanto maior π,mais preferível a isolucro ou a curva de indiferença concernente.

Assim, o ponto de operação mais preferível pelas concessionárias na funçãode produção é o ponto hipotético p*, onde a tangente da função de produçãoequivale ao salário w do funcionário da empresa.15

Como anteriormente a administração estatal da malha ferroviária estavasujeita a determinantes políticos, não é forçoso que o ponto p de operaçãoanterior fosse pertencente à região fronteiriça que definia a função deprodução anterior.

Tal evidência também é reforçada caso se admita que as preferências dogoverno federal são quasi-lineares, ou seja, que apenas a quantidade de TKUproduzida tem relevância significativa para o nível de utilidade do governoe que suas diversas curvas de indiferença resultam de deslocamentos para-lelos de uma mesma curva original. O Gráfico 6 mostra curvas típicas deindiferença quasi-lineares degeneradas, em que a quantidade de traba-lhadores empregada é neutra em relação ao nível de utilidade do governo.

TKU ci1 u(ci1) > u(ci2) > u(ci3)ci2

ci3

L

GRÁFICO 4

REGULAÇÃO NO BRASIL: COLOCANDO A COMPETITIVIDADE NOS TRILHOS182

15 Para detalhes e prova, ver Varian (1993, p. 513). Naturalmente, a regulamentação a que asconcessionárias estão sujeitas distorcem suas curvas de indiferença. Embora tal fato não deva sertomado como muito relevante, pelo menos para o espaço atual de operação das concessionárias, omodelo poderia absorver esse efeito pela introdução de uma variável p(TKU, L), que se adicionariaà reta de isolucros e representaria multas à concessionária pelo não-cumprimento de metas.

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O fato de a operação da malha ferroviária ter se deslocado para um ponto commaior nível de TKU não contradiz a hipótese da quasi-linearidade das prefe-rências do governo, pois pode ser explicado pela expansão da função deprodução. Após a privatização foram efetuados investimentos na malha fer-roviária, e qualquer que fosse a função de produção anterior é muito provávelque ela tenha se deslocado para cima, com a expansão do conjunto de pos-sibilidades de produção propiciada por esses novos investimentos. Além disso,os deslocamentos havidos representam um ganho de eficiência por ocorreremem direção à região fronteiriça do conjunto de possibilidades de produção,eliminando a grande ociosidade de recursos anteriormente existente.16

TKU--------------------------------- u(ci3) > u(ci2) > u(ci1)

fci3ci2ci1

L

GRÁFICO 6

TKUTKU = π∗ + w.L

x p’

π∗L

GRÁFICO 5

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16 Para detalhes acerca do conceito de eficiência em funções de produção, ver Mas-Colell, Whinstone Green (1995, p. 159-162).

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Assim, as evidências empíricas quando examinadas à luz das possibilidadesteóricas indicam que o movimento ocorrido no nível de operação deveu-sede fato a uma combinação de deslocamentos de ambos os tipos, ou seja,expansão do conjunto de possibilidades de produção e deslocamento doponto de atuação em direção à fronteira desse conjunto.

Entretanto, é preciso avançar mais, pois, apesar de o setor de transporteferroviário ter registrado intenções de investimento da ordem de US$ 1,8bilhão em 1997, conforme Rodrigues (1998), grande parte das metas es-tabelecidas para as concessionárias não foi atingida. Em outras palavras, asmudanças observadas poderiam ser definidas como um jogo de somapositiva? Há possibilidades de obtenção de ganhos adicionais?

Implicações Micro e Macroeconômicas

Do ponto de vista microeconômico, os movimentos ocorridos após a priva-tização trouxeram ganhos para os operadores de transporte ferroviário, poisp’ é preferível ao ponto p anterior, dado não terem ocorrido mudançassalariais significativas e porque p’ corresponde a uma linha de isolucrosuperior.

Além disso, para os demandantes do serviço de transporte ferroviário houveaumento, ainda que inferior ao esperado, nas quantidades produzidas. Comoo preço do transporte foi mantido relativamente constante, houve aumentona apropriação do excedente econômico pelos produtores de bens (maioreslucros) ou aumento da renda relativa dos consumidores finais (menorespreços), ou ambos os movimentos. De qualquer forma, para os “novosusuários” de transporte ferroviário houve redução no “Custo-Brasil”.

Para o governo, a privatização trouxe receitas extraordinárias como opagamento inicial das concessões pelas empresas vencedoras dos leilões emais um fluxo futuro de pagamentos previamente definidos como contra-partida a um possível fluxo futuro maior de rendimentos variáveis, caso aopção governamental fosse continuar na atividade de transporte ferroviário.Estimar a relevância comparativa dos dois efeitos não é trabalho para esteartigo, porém as evidências são de que tenha havido ganho por parte dogoverno, pois o poder público contava com informações sobre a magnitudedos fluxos de rendimentos possíveis do transporte ferroviário ao fixar ospreços mínimos nos editais de concorrência.

Entretanto, esse ainda não é um jogo de soma positiva para todos osparticipantes, na medida em que grande parte do processo de ajuste foi feitaem cima do nível de emprego. Para os ferroviários que mantiveram seus

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postos de trabalho, não houve alterações significativas, pois os salários reaispor ocupação mantiveram-se praticamente estáveis; para os demais, a situa-ção tornou-se bastante dramática, uma vez que as perspectivas de se obteruma nova colocação são bastante reduzidas na atual conjuntura econômica.

Finalmente, considerando-se que parcela expressiva dos ajustes que estãosendo feitos resume-se à reorganização gerencial e de pessoal e aos inves-timentos de recuperação de trechos de malha física e de material rodante,então por que as empresas ferroviárias estatais não os fizeram há maistempo? Em outras palavras, até que ponto a RFFSA e a Fepasa seriam asresponsáveis pela baixa participação do modal ferroviário na matriz detransportes brasileira?

As respostas a essas perguntas não são tão simples. Em primeiro lugar, asempresas estatais sofriam restrições orçamentárias que as impediam derealizar os dispêndios necessários ao seu bom funcionamento, além, é claro,de estarem sujeitas a condicionantes políticos. Por outro lado, a simplespassagem do setor ferroviário para a iniciativa privada não assegura asuperação de todas as dificuldades, pois a maior agilidade comercial do setorprivado para gerir empresas em um ambiente competitivo não é condiçãosuficiente para garantir que os novos concessionários assegurem o aumentodo transporte ferroviário no Brasil.17 Existem inúmeras questões a seremresolvidas para que isso ocorra e, como se procurará demonstrar, grandeparte das soluções envolve ações de regulação e de reforma institucional.

4. Alterar a Matriz de Transportes

Considerando-se que o processo de privatização encontra-se concluído e osganhos resultantes já foram realizados, deve-se procurar o caminho para quea operação das concessionárias privadas possa ser mais vantajosa para oconjunto da sociedade brasileira. Esse tema não pode ficar circunscrito acomo fazer as concessionárias cumprirem os contratos, nem ao estabeleci-mento de regras que as obriguem a realizar tal ou qual ação. É precisoidentificar os obstáculos para o florescimento de um mercado de cargas queestimule os investimentos dos concessionários e encaminhar propostas desoluções para sua superação.

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17 Por maior flexibilidade comercial entende-se: estabelecimento de contratos de serviços diferencia-dos para vários clientes; condições especiais para recebimento pelos serviços prestados; autonomiaadministrativo-financeira para remanejar fundos e/ou trabalho para priorizar a conquista oumanutenção de mercados; etc. Conforme apresentado anteriormente, a operação de transporteferroviário se dá em um ambiente extremamente competitivo, sendo que o transporte rodoviáriocompensa suas maiores tarifas com qualidade e confiabilidade na realização dos serviços.

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Rejeição das Cargas nos Centros Urbanos

A orientação oeste-leste (interior-porto) e a convergência das malhas físicaspara os quatro portos de exportação citados anteriormente (Santos, Parana-guá, Rio de Janeiro e Recife) têm grande correlação com o perfil da maiorparte das cargas transportadas pelas ferrovias: produtos da pauta de comér-cio exterior com menor valor agregado (minérios, carvão, produtos siderúr-gicos, grãos e seus subprodutos, fertilizantes, entre outros). Todos esses benstêm uma característica comum: pontos de carregamento, trechos a serempercorridos e pontos de descarregamento predeterminados.18

Apesar de vários desses produtos serem operados em instalações industriaisou de comercialização (unidades de armazenagem ou de processamento,terminais portuários especializados) conectadas diretamente à malha fer-roviária, com seus proprietários, muitas vezes, usando material rodantepróprio para suas operações de transporte, a movimentação ferroviáriaencontra inúmeros problemas, sendo o principal as dificuldades impostaspor prefeituras e/ou governos estaduais para o cruzamento das composiçõespelas cidades e regiões metropolitanas. Dois são os casos exemplares dessasdificuldades:

• Corredor de Paranaguá/safras paranaenses. A FSA detém uma malhade mais de 6 mil km, possuindo acesso direto ao porto de Paranaguá, omaior exportador de grãos do Brasil, aparelhado com a melhor rede dearmazenagem. Entretanto, apesar de sua área de influência abranger aregião oeste do Paraná e possuir capilaridade e capacidade operacionalpara transportar a maior parte das safras estaduais e dos estados vizinhos,sua participação é bastante reduzida – cerca de 20% da movimentaçãototal de Paranaguá – em decorrência de dois cerceamentos: a travessia deCuritiba, que apresenta dezenas de passagens de nível, e a descida da serraaté o porto. Ou seja, o concessionário está submetido a restrições externaspara a expansão de suas atividades, o que termina por assegurar maiscompetitividade ao transportador rodoviário e, conseqüentemente, maiorparcela do mercado. Essas restrições à expansão do transporte ferroviáriogeram, ironicamente, maiores custos macroeconômicos e ambientais àscidades envolvidas e ao próprio país.

• Corredor de Santos/safras do Centro-Oeste. A Fepasa possui uma malhade mais de 4 mil km, que se somam aos 2,6 mil km de suas controladoras– Novoeste (1,6 mil km) e Ferronorte (1 mil km, quando concluída) –,

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18 O mesmo raciocínio vale para os outros dois importantes produtos domésticos transportados pelasferrovias: combustíveis e cimento.

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podendo ainda atrair cargas da área de influência da FCA em Goiás,Minas Gerais e Distrito Federal, através de operações conjuntas. Essecomplexo ferroviário tem potencial para se transformar no maior trans-portador de grãos do hemisfério Sul. Entretanto, além das intensas evariadas restrições ao cruzamento de cidades no interior paulista, atravessia da cidade de São Paulo é o maior obstáculo a essa transformaçãona composição da matriz de transportes brasileira, pois toda a malhaurbana da Fepasa foi colocada sob a gestão da Companhia Paulista deTrens Metropolitanos (CPTM), que pretende usá-la exclusivamente paratransporte de passageiros. Dessa forma, mais de 15 milhões de toneladasde granéis alimentares, computadas somente as cargas de exportação,seriam obrigadas a fazer um périplo no entorno da região metropolitanapaulista para poder atingir o trecho onde se realiza a descida da serra parao porto de Santos, o qual, destaque-se, apresenta excepcionais condiçõesoperacionais – descida em linha dupla somente com o uso de locomotivaspara realizar a tração.19 Devido às dificuldades operacionais, apenasparcela reduzida dessas cargas é transportada atualmente pela Fepasa,com graves prejuízos para novas operações que poderiam atender a outrasregiões e cargas, em especial o noroeste do Paraná ou o sul do MatoGrosso do Sul (grãos) e a própria região Sudeste (transporte de contêi-neres).

Dessa forma, a ferrovia, mesmo contando com condições competitivassuperiores às do modal rodoviário, torna-se incapaz de concorrer, o quereforça os malefícios derivados do excesso de tráfego para as condiçõesambientais e os ônus impostos para a contínua e inesgotável demanda porexpansão da malhas rodoviárias interurbanas e locais (novas estradas,autopistas, avenidas etc.)

Operação Multimodal

A montagem de uma malha de transportes de abrangência nacional, quesuporte a implantação de eficientes serviços de transportes multimodais,exige a integração dos trechos navegáveis da bacia hidrográfica, das rodo-vias e das ferrovias e pode ser realizada rapidamente, uma vez que osinvestimentos necessários para a construção dos elos faltantes (especial-mente Ferrovia Transnordestina e complementação da Ferronorte) já têm

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19 A outra descida da serra para Santos é feita com o uso de cremalheira pelo trecho pertencente àMRS (antiga Estrada de Ferro Santos-Jundiaí). Adicionalmente, poder-se-iam citar as restriçõesimpostas pela Prefeitura de Santos ao tráfego ferroviário no cruzamento da cidade, que, na prática,eliminam a capacidade da Fepasa de estabelecer uma cadência adequada às suas operações ecompetitiva vis-à-vis o transporte rodoviário.

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parcela expressiva de seus recursos assegurada ou que pode ser mobilizadaem curto prazo.

O maior obstáculo, entretanto, ao florescimento de uma extensa gama deserviços (e de novas rotas de transportes) não parece estar na falta deinfra-estrutura, mas no extenso cipoal jurídico-burocrático, o que pratica-mente impossibilita a criação e o funcionamento dos “operadores de trans-porte multimodal” – previstos em lei recentemente aprovada –, que sãoessenciais para a redução dos gastos em transporte e do próprio “Custo-Bra-sil”. Por exemplo, em uma operação multimodal internacional típica têm-seos seguintes movimentos de transporte e operações burocráticas e fiscais:

Estabele-cimento

Expedidor

Transporte Rodoviário

(1)

UnidadeCentrali-

zadora deCargas

TransporteHidroviário

(2)

Transporte Ferroviário

(3)

Porto(4)

TransporteMarítimo

(5)

Porto noPaís deDestino

• A movimentação das cargas entre o estabelecimento expedidor e ahidrovia (ou diretamente para a ferrovia) normalmente é realizada porcaminhões, na medida em que a maioria dos estabelecimentos expedido-res não está localizada junto às hidrovias ou ferrovias. Para essa movi-mentação, a legislação exige a confecção de um “manifesto de carga”específico para esse par rodoviário de “origem e destino”.

• A transferência intermodal da rodovia para a hidrovia, ou entre quaisquermodais, exige a emissão de um novo manifesto de carga, com as novasorigem e destino, sujeitando os proprietários das cargas – ou seus consigna-tários – ao pagamento de uma série de impostos, em especial ICMS20 e ISS.

• Portanto, em uma operação multimodal típica haveria cinco momentosnos quais seria obrigatória a renovação (nova emissão) dos manifestos decarga e a sujeição à tributação.

Essa é uma descrição sintética de uma hipotética operação multimodal detransportes no Brasil. Obviamente, o que se buscava, quando da aprovaçãoda nova legislação, era realizá-la à semelhança do que ocorre no resto domundo, ou seja, com a emissão de um único manifesto de carga e sem aincidência de impostos em cada movimento intermodal.

REGULAÇÃO NO BRASIL: COLOCANDO A COMPETITIVIDADE NOS TRILHOS188

20 É evidente que o ICMS poderia ser compensado desde que houvesse valores a serem compensadosobtidos em outras transações, mas mesmo nesses casos há custos efetivos impostos às empresas,como aqueles para a organização e manutenção de equipes dedicadas a atender às exigências eobrigações burocráticas e tributárias.

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Assim, apesar de existir amparo legal para a realização de operações detransportes multimodais, os proprietários ou consignatários são levados apreferir que a movimentação de suas cargas seja realizada da forma maisrápida e simplificada possível, isto é, direta e exclusivamente através domodal rodoviário.

Transporte de Carga Geral

No Brasil, o transporte de carga geral por ferrovias é praticamente nulo. Alémdas dificuldades apontadas, como a maior parte das movimentações dessesprodutos (bens manufaturados de maior valor adicionado, produtos alimentaresembalados, veículos, eletrodomésticos, entre outros) ocorre no sentido norte-sul, entre e dentro das regiões Sul e Sudeste, deve-se destacar ainda:

• Inexistência de infra-estrutura de estocagem para recepção, manuseio edistribuição das cargas. A privatização das ferrovias não foi simultâneae coordenada com a venda dos imóveis operacionais da Armazéns Geraisda RFFSA (Agef) e, dessa forma, os novos concessionários têm dificul-dades para oferecer serviços adequados na recepção e distribuição decargas, que incluem serviços de valor adicionado – embalagem, monta-gens e empacotamento, separação de lotes etc. –, como o fazem seuscompetidores, os transportadores rodoviários.

• Além disso, inúmeros pátios de manobras que contavam com extensasáreas para manuseio de cargas, localizados nas áreas urbanas e metropo-litanas, são disputados avidamente pelos poderes locais para a realizaçãode “reformas urbanas” – normalmente criação de áreas de lazer as-sociadas a empreendimentos imobiliários ou comerciais, como centrosde compras (shopping centers). Em que pese a importância de algumasdessas reformas urbanas, rarissimamente é realizada qualquer avaliaçãodo custo-benefício da retirada dessas áreas operacionais das ferrovias, asquais, através de seu uso, poderiam (re)criar centros distribuidores decargas para as áreas onde estão localizadas, gerando inúmeros benefícios,tais como: redução do tráfego urbano de grandes carretas; redução dotamanho do veículo-tipo para distribuição de cargas nas cidades; aumentodo número de empregos urbanos especializados sem prejuízo para pro-prietários das cargas ou consumidores finais etc.

• Direitos de passagem e tráfego mútuo. Finalmente, é importante apontarque, como a carga geral tem seus maiores fluxos no sentido norte-sul eas malhas ferroviárias são orientadas de oeste para leste, haveria neces-sidade do oferecimento de serviços de transportes naquele sentido paraque fosse possível tentar capturar uma parcela desse mercado, atualmente

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cativo do transporte rodoviário. Para tanto, é necessário uma nova regu-lamentação das cláusulas contratuais das concessões ferroviárias sobredireitos de passagem e tráfego mútuo, pois os concessionários atualmentesó podem realizar pequenos deslocamentos no sentido norte-sul dentrode suas áreas de concessão. Por exemplo, o oferecimento de um serviçode distribuição de automóveis e de quaisquer outros produtos manufatu-rados, de Minas Gerais para a região Sul do país, ou no sentido contrário,exigiria a cooperação de três concessionárias (FCA, Fepasa e FSA), oque é quase impossível de ser feito nos atuais marcos de regulação, devidoà não-existência de regras precisas sobre a obrigação de tráfego mútuo,sobre a tarifação pelo uso da infra-estrutura viária (linhas, sinalizaçãoetc.), sobre a definição dos períodos (“janelas”) para utilização das linhaspor terceiros, entre outros. A matriz norte-americana de transportes podeser considerada como paradigma de boa distribuição das cargas pelosdiversos modais. Estatísticas recentes publicadas pela USDA (1999)apontam que o transporte de carga geral passa a ter preferência pelasferrovias nas distâncias superiores a mil quilômetros, o que para serobtido no Brasil nos deslocamentos norte-sul exigiria operações coorde-nadas entre concessionárias similares às descritas nesta subseção.21

Resumidamente, pode-se afirmar que existem grandes obstáculos à expan-são do transporte ferroviário no Brasil, cuja superação não depende apenasda capacidade empreendedora dos novos concessionários privados. A defi-nição precisa de metas e sua exeqüibilidade exigirão a redefinição de novosmarcos reguladores pela futura Agência Nacional de Transportes, poissomente assim será possível aos concessionários atingir novas funções deprodução e obter elevações expressivas na oferta de capacidade de trans-porte (TKU), de forma a ampliar a parcela de mercado das ferrovias (marketshare) na matriz de transportes do Brasil.

5. Conclusões

Neste artigo procurou-se apresentar a lógica de cada um dos participantesativos no processo de privatização dos serviços ferroviários: empresas

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21 É importante destacar que, devido às restrições pretendidas pela CPTM ao transporte de cargas naregião metropolitana de São Paulo, em especial para a utilização da Estrada de Ferro Santos-Jun-diaí e da malha urbana da Fepasa (Barra Funda, marginal do rio Pinheiros, Jaguaré, Osasco eEvangelista de Souza), ocorre uma sobreutilização no trecho Campinas-Salto-Engenheiro Acrísio(bitola mista), que é justamente a única ligação entre as malhas ferroviárias das regiões Sul eSudeste, por onde passaria todo o tráfego potencial de longa distância do Brasil. Em outras palavras,predominando as restrições ao tráfego de cargas em zonas urbanas e metropolitanas estariainviabilizada a competitividade da ferrovia para o transporte de carga geral, a não ser quehouvessem pesados investimentos com a participação do setor público para ampliar a capacidadede transporte da malha existente, uma vez que esses investimentos somente apresentam retorno alongo prazo (mais de 25 anos).

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privadas/concessionárias e governo. Uma empresa privada estabelece seusníveis de produção e de investimento buscando maximizar lucros; quandoo governo intervém na economia (sejam quais forem os motivos) e produzbens ou presta serviços, busca a maximização dos resultados macroeconô-micos e/ou dos ganhos políticos.

Com a opção pela privatização de serviços públicos de transporte fer-roviário, o governo brasileiro esperava que as concessionárias privadas, soba lógica do capital privado, aumentassem sua oferta e melhorassem suaqualidade, o que contribuiria para o atendimento do objetivo declarado pelogoverno de maximizar os resultados macroeconômicos. Porém, pode ocor-rer que os níveis de produção preferíveis pela empresa e pelo governo nãocoincidam entre si e, pior ainda, sejam distintos dos níveis que efetivamenteresultariam em maiores benefícios para o conjunto de agentes envolvidos,usuários inclusive.

Entretanto, ao contrário do que se poderia concluir com base na culturaarraigada no país, não é adensando ainda mais o cipoal jurídico que seconseguirá que os novos concessionários movam-se em direção ao ponto desatisfação idealizado pelo governo ou desejado pelos usuários dos serviçosde transportes. Aumentar a oferta de transporte ferroviário exigirá mais quea introdução de elementos coercitivos ao processo produtivo. Requereráuma mudança nas funções de produção praticadas, isto é, exigirá maioresinversões em melhorias da malha básica, em sinalização, em aumento donúmero de pátios de cruzamento, em material rodante, em terminais pararecepção, manuseio e distribuição de cargas etc. Mas para que seja possívela realização desses investimentos é necessário que eles apresentem rentabi-lidade positiva e respaldo creditício, ou seja, que os concessionários priva-dos possam buscar no mercado de capitais os recursos para as inversõesexigidas para atingir as novas funções de produção.

As avaliações econômico-financeiras realizadas pelos possíveis credores einvestidores no setor (bancos, investidores institucionais, orgãos multilate-rais, bancos de desenvolvimento etc.) serão bastante rigorosas e terão porfoco os problemas apontados: restrições burocrático-legais que dificultamo aumento da competitividade da ferrovia vis-à-vis o transporte rodoviário;dificuldades para implementação da multimodalidade; ausência de oferta deserviços de valor adicionado pelos concessionários das ferrovias; inexis-tência de um marco regulador que impeça que decisões sub-nacionaisprejudiquem a abrangência e a competitividade dos serviços ferroviários;inexistência de regras precisas sobre competição e cooperação entre conces-sionários, como regras de tarifação para direito de passagem, normas paratráfego mútuo, possibilidade de novos operadores, coibição de práticasanticompetitivas etc.

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Em outras palavras, há muito o que avançar com relação à reordenação legaldo país, mas, conforme se pôde notar, parte expressiva desses avanços podeser conseguida no processo de criação da Agência Nacional dos Transportes,que começa a ser discutido no Congresso Nacional.

Com relação à atividade reguladora, é inegável que seu desenvolvimentoserá bastante dificultado pela existência de situações de fato criadas noprocesso de privatização. Mas há alternativas interessantes que podem vira facilitar algumas intervenções mais profundas. Por exemplo, conformedescrito anteriormente, os concessionários não estão conseguindo atingir asmetas estabelecidas e alegam que para as projeções de metas foram usadosos picos de movimentação da RFFSA, obtidos em anos muito anteriores àprivatização. Entretanto, a metodologia para as projeções era de pleno eprévio conhecimento público durante o processo de privatização e, portanto,esse argumento não pode ser utilizado para o não-cumprimento das metasque foram aceitas por todos os candidatos no leilão e reconhecidas comoválidas no ato de assinatura dos contratos de concessão pelos consórciosvencedores.

Por outro lado, é válido reconhecer que as dificuldades gerenciais e organi-zacionais enfrentadas pelos concessionários somente podiam ser inferidas,uma vez que é praticamente impossível uma completa avaliação da situaçãoda empresa antes que efetivamente se assuma sua gestão. Apesar disso, seriamais adequado aos interesses da sociedade brasileira que a eventual conces-são de “períodos de graça” pelo não-cumprimento de metas quantitativassomente fosse realizada pela Agência Nacional dos Transportes em umcontexto de reordenamento regulador de todas as concessões privadas deserviços de transportes – ferrovias, rodovias, portos etc. –, de modo a obteros melhores resultados possíveis para todos os participantes – conces-sionários, governo e usuários.

Finalmente, deve-se afirmar que a estrutura econômica brasileira, pelo seuporte, complexidade e grau de integração, exige que o método “caminhosuave”22 para implantação dos serviços de logística seja definitivamente

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22 “Caminho suave” é um método de alfabetização infantil superado há pelo menos 30 anos, emboraainda bastante usado no país, especialmente nas regiões mais carentes. O processo de alfabetizaçãose faz com o adestramento dos estudantes para o reconhecimento e a reprodução dos fonemas, que,associados em fase posterior, formam as palavras. Por exemplo, após identificarem as famílias dasconsoantes, como “b” (ba, be, bi, bo, bu), “c, d, f, g, j”, os alunos são adestrados para formarpalavras por junção de fonemas (gato, bota etc.). Com a analogia aqui proposta, pretende-seressaltar que não é possível para o Brasil nesse início de milênio percorrer um caminho suave paraa identificação dos modais que apresentem a melhor relação custo-benefício, para a descoberta detecnologias para integração intermodal, para metodologias de como otimizar melhores rotas etc.Em outras palavras, há a necessidade de identificar rapidamente os gargalos e estrangulamentosfísicos e institucionais e eliminá-los para viabilizar o surgimento de operadores de transporte

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abandonado e que as reformas necessárias à transformação acelerada daoferta de serviços de transporte e de logística sejam rapidamente implemen-tadas. O aumento da participação do modal ferroviário é condição impera-tiva para a multimodalidade e para a redução do “Custo-Brasil”, e uma ágile eficiente agência reguladora dos transportes é parte essencial para aconsecução desses objetivos.

Mas, para tanto, essa agência não poderá estar submetida às forças políticase deverá operar voltada para a satisfação dos interesses dos usuários detransportes ferroviário, rodoviário e marítimo nacional e internacional e parao provimento das condições básicas à operação das empresas conces-sionárias desses serviços. Essas deveriam ser as diretrizes para a rees-truturação da matriz de transportes do país para que efetivamente se obtenhaa redução do “Custo-Brasil” e a competitividade entre nos trilhos.

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multimodal e de prestadores de serviços de logística que assegurem a eliminação definitiva doselementos da matriz de transportes constitutivos do “Custo-Brasil”. A identificação dos gargalos eelos faltantes, parte expressiva dessa tarefa, já foi realizada e apresentada nos Eixos de Integraçãoe Desenvolvimento, trabalho conduzido pelo BNDES e que subsidiou a elaboração do novo PlanoPlurianual de Investimentos (PPA) do governo federal. Resta agora proceder às mudanças ins-titucionais, à reforma dos procedimentos burocráticos e fiscais e à implantação de um marcoregulador para os transportes, tarefas que exigem a participação de todos os agentes econômicose da sociedade brasileira.

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