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1 REVISTA HISTÓRIA HOJE, SÃO PAULO, N 1, 2003. ISSN 1806.3993 Sob um céu nem sempre estrelado Festa, aparição pública e a construção de imagens femininas em Campina Grande- Pb nas décadas de 40 e 50 Antonio Clarindo Barbosa de Souza * Universidade Federal de Campina Grande Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar algumas formas de diversão dos moradores da cidade de Campina Grande-Pb durante as festas de Natal e Ano Novo, nas décadas de 40 e 50 do século XX, mostrando como estes moradores, das mais diferentes classes sociais, ocupavam diferentes espaços da cidade nos momentos de festa e como através dos discursos elaborados sobre tais festejos é possível detectar a construção de uma imagem feminina marcada por preconceitos de gênero e cor. 1. A festa: espaço de todos consumido por alguns Último dia do ano. Fim das festas natalinas e das novenas para N.S. da Conceição. A cidade estava em festa desde o último dia 24 de dezembro 1 . No ano de 1944, a novidade fôra a construção de um coreto maior no centro do Pátio da festa para o passeio da população, ficando o menor para a Banda de Música. 2 As elites e o povo circulavam pela rua da Matriz, cada uma por um lado da rua, pois mesmo nos momentos de festa também era preciso manter as diferenças de status, ou do que os letrados consideravam “qualidades e dignidades”. Enquanto as moças da alta sociedade serviam às mesas dos pavilhões centrais, os rapazes desfilavam com suas vestimentas baseadas nos modelos das fitas hollywoodianas. Uns lépidos e faceiros como Gene Kelly e Fred Astaire, outros sérios e taciturnos como Clark Gable e Humphrey Bogart. Todos esperançosos de conquistar um par romântico para fechar com chave de * O presente texto, com algumas modificações, é parte da tese de doutorado do autor intitulada: Lazeres permitidos, prazeres proibidos: sociedade, cultura e lazer em Campina Grande (1945- 1965),defendida em julho de 2002, junto ao Programa de Pós-Graduação em História da UFPE, com o apoio financeiro do CNPq. 1 A METRALHA – 25.12.1944 – Ano II – nº 2 – Este jornal de festa circulou a partir de 1943. A maior parte deste tópico foi composta com a ajuda dos jornais de festa, que me foram gentilmente cedidos pelo prof.dr. Fábio Gutemberg R.B de Souza, a quem agradeço profundamente as indicações deste tipo de fonte. 2 A TESOURA – 25.12.1944 – Ano III – nº 2;p.3 – Este Jornal circulou a partir de 1942.

REVISTA HISTÓRIA HOJE, SÃO PAULO N 1, 2003. ISSN 1806 · de dois abnegados religiosos, São Luiz Gonzaga e São Francisco de Assis. Os altares da sagrada família e a pia batismal

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REVISTA HISTÓRIA HOJE, SÃO PAULO, N 1, 2003. ISSN 1806.3993

Sob um céu nem sempre estrelado

Festa, aparição pública e a construção de imagens femininas em Campina Grande-Pb nas décadas de 40 e 50

Antonio Clarindo Barbosa de Souza*

Universidade Federal de Campina Grande

Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar algumas formas de diversão dos moradores da cidade de Campina Grande-Pb durante as festas de Natal e Ano Novo, nas décadas de 40 e 50 do século XX, mostrando como estes moradores, das mais diferentes classes sociais, ocupavam diferentes espaços da cidade nos momentos de festa e como através dos discursos elaborados sobre tais festejos é possível detectar a construção de uma imagem feminina marcada por preconceitos de gênero e cor.

1. A festa: espaço de todos consumido por alguns

Último dia do ano. Fim das festas natalinas e das novenas para N.S. da

Conceição. A cidade estava em festa desde o último dia 24 de dezembro1. No ano de

1944, a novidade fôra a construção de um coreto maior no centro do Pátio da festa para o

passeio da população, ficando o menor para a Banda de Música.2

As elites e o povo circulavam pela rua da Matriz, cada uma por um lado da rua,

pois mesmo nos momentos de festa também era preciso manter as diferenças de status,

ou do que os letrados consideravam “qualidades e dignidades”. Enquanto as moças da

alta sociedade serviam às mesas dos pavilhões centrais, os rapazes desfilavam com suas

vestimentas baseadas nos modelos das fitas hollywoodianas. Uns lépidos e faceiros como

Gene Kelly e Fred Astaire, outros sérios e taciturnos como Clark Gable e Humphrey

Bogart. Todos esperançosos de conquistar um par romântico para fechar com chave de

* O presente texto, com algumas modificações, é parte da tese de doutorado do autor intitulada: Lazeres permitidos, prazeres proibidos: sociedade, cultura e lazer em Campina Grande (1945-1965),defendida em julho de 2002, junto ao Programa de Pós-Graduação em História da UFPE, com o apoio financeiro do CNPq. 1 A METRALHA – 25.12.1944 – Ano II – nº 2 – Este jornal de festa circulou a partir de 1943. A maior parte deste tópico foi composta com a ajuda dos jornais de festa, que me foram gentilmente cedidos pelo prof.dr. Fábio Gutemberg R.B de Souza, a quem agradeço profundamente as indicações deste tipo de fonte. 2 A TESOURA – 25.12.1944 – Ano III – nº 2;p.3 – Este Jornal circulou a partir de 1942.

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ouro aquela última noite do ano e de festejos. Do contrário, só no próximo ano, ou talvez,

nunca.

O vai e vem incansável das pessoas no passeio que se estabelecia na rua da

Matriz seguia um trajeto pré-determinado pelas autoridades civis e eclesiásticas.

Estendia-se a festa, desde a frente da Matriz até parte da rua Maciel Pinheiro, dobrando

pela casa da esquina, que era a residência de Monsenhor Sales, e ia até a esquina da

Simeão Leal.3

Pela rua parcamente iluminada, que sempre era alvo dos chistes e brincadeiras

dos jornaizinhos de festas, os caminhantes iam passando por entre barracas de prendas,

palanques para as bandas de músicas e outras atrações populares como carrosséis,

balanços e barquinhos que divertiam a meninada. O footing nem sempre era animado.4

Às vezes faltavam as moças que serviam de chamariz para os rapazes, noutras faltava a

banda de música, que mesmo canhestramente dava um toque mais alegre à festa. Mas

os boêmios, estavam sempre lá, estendendo até não mais poder aquelas últimas noites

do ano.

A ornamentação da rua principal era geralmente branca, da mesma forma que o

interior da Matriz, na qual salientavam-se as duas naves laterais, os corredores com as

arcadas abertas para o corpo da Igreja, os altares principais e a espaçosa sacristia. Os

altares laterais eram em número de dezoito, distribuídos simetricamente pelo corpo da

Igreja, afora o imponentíssimo altar-mór, cujo nicho guardava, na serenidade dos

silêncios, a imagem encantadora e riquíssima de N.S. da Conceição, ladeada pelos vultos

de dois abnegados religiosos, São Luiz Gonzaga e São Francisco de Assis.

Os altares da sagrada família e a pia batismal salientavam-se menos pela sua

ornamentação do que pela pintura dos seus quadros. Os altares do Nosso Senhor e

Nossa Senhora dos Mortos eram ricos e perfeitos. Os campinenses se orgulhavam de sua

Matriz ser considerada um dos mais belos templos católicos da Paraíba. Em 1949, com a

elevação de Campina à Diocese a Matriz seria transformada em Catedral.5

Algumas das memórias construídas sobre as festas natalinas nos contam que,

tanto em sua parte religiosa quanto nos momentos profanos, elas tinham inicio no dia 23

3 MORAES, Antonio Pereira de – Vi, ouvi, senti – Crônicas da vida campinense e outras narrativas; Campina Grande; 1985;s/e 4 A METRALHA – 27.12.1944 – Ano II – nº 4 5 DESIGN – Revista Informativa – Campina Grande – Outubro de 1995;p.37 – citando o Anuário de Campina Grande de 1980.

3

de dezembro e se estendiam até os primeiros raios de sol do dia 1º de janeiro do ano

entrante.

A Festa de Fim de Ano era um acontecimento. Ocorria na frente da Catedral. Naquele circuito tinha os pavilhões, onde a juventude marcava encontro com as namoradas. O ambiente, as barracas, os pavilhões eram servidos pelas moças da sociedade. Era uma coisa espetacular. O camarada tinha que ter a tal roupa de fim de ano. Olha, era muito bom!6

A separação das classes sociais já era notada por alguns memorialistas enquanto

outros viam isto como um detalhe inexpressivo que não chegava a macular a beleza da

festa.

A elite da cidade freqüentava os pavilhões localizados no centro da rua principal, aquém da Matriz, feitos a capricho, forrados de tábuas, cercado de gradis e bem cobertos com serviço de bufê e dezenas de mesas para servir bebidas e tira-gostos.

Ao lado do Palace Hotel (Grande Hotel), na rua da Matriz, soltavam balões, em intervalos, e estes subiam, dando colorido e graça à festa da Padroeira. Os fogos de artifício com os desenhos de sua pirotécnica, paralisavam toda a festa para assisti-los.

Afora as barracas de prendas e jogos havia pequenas toldas enfeitadas de papel de seda colorido, que vendiam cestinhas contendo bolinhos e doces que faziam a alegria da meninada.

Findo o passeio, os pavilhões iam se esvaziando e ficando desertos. Somente a bagaceira, como se chamava, ficava curtindo nas barracas da Lagoa de Roça, até alta da madrugada, onde os boêmios cantando suas serestas, matavam a saudade dos amores, saboreando a cachaça com caju e abacaxi, cujo cheiro era característico do ambiente. 7

O povo participava de tudo, atraído pela alegria dos pavilhões ou

ofertas dos bazares que, em fila eram montados do lado direito da Rua da Matriz.8

A festa teria uma função social que era tentar diminuir as diferenças sócio-

econômicas existentes entre as classes sociais e buscar a confluência de interesses que,

possivelmente, não havia no cotidiano da cidade. Por isto, tanto para os memorialistas

quanto para os autores dos jornais de festa era preciso desenhar este momento como de 6 Depoimento do Sr. José Tavares, representante comercial, 70 anos, concedido ao autor no dia 04.09.2000. 7 MORAES, Antonio Pereira de – op.cit.. Há que se notar aqui que o depoimento do sr. Tavares se refere basicamente aos anos 40 e 50, enquanto que o do escritor MORAES, se reporta aos anos 20 e 30. Acreditamos todavia, que não houve muita mudança na localização, distribuição das barracas e formas de circulação das pessoas pela área da festa, pois mesmo quando se refere aos anos 50 o sr. Tavares usa a mesma indicação de lugares e trajetos. Talvez o comportamento das pessoas estivesse passado por transformações, mas não muito acentuadas. 8 Depoimento de D.Esmeraldina Agra Ramos (Passinha Agra) para DESIGN – Revista Informativa; op.cit.;p.28-29.

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congraçamento entre todas as classes, embora os seus discursos falem dos populares

como um complemento da festa e não como mais um dos sujeitos que interagiam nela.

No fundo os autores dos jornais de festa sabiam para quem estavam escrevendo e

consideravam a festa com “um antídoto contra o desespero” e “um verdadeiro calmante

para os... nervos quando estes se acham atordoados pelo excessivo labutar rotineiro do

dia-a-dia”. É claro, que nem todos os membros das elites labutavam rotineiramente todos

os dias, mas o importante era passar a imagem que trabalhadores e patrões, ricos e

pobres, burgueses e proletários eram todos iguais e precisavam da festa para esquecer o

cansaço e as fadigas diárias. Através de uma construção discursiva includente os jornais

de festa tentavam explicitar a “real” função das festas.

É na festa onde encontramos as portas dos nossos prazeres abertas e, por assim dizer uma ‘válvula de segurança’ a amenizar os desesperos.

Nesta festa, por exemplo, quantas mentes chacinadas pelos irritantes trabalhos que fez ou que tem a fazer, quantas martirizadas de dívidas, quantas chaqualhadas de esperarem o dia todo por estas curtas, porém deliciosas horas que este pátio nos oferece? Quantas tantas outras mentes também não procuram este ambiente que constituem um sossego para seus espíritos desesperados.

As variedades de diversões satisfazem os mais requintados gostos. Assim, há pavilhões para quem veio acompanhado de muitos cobres...Há os bazares que nos oferecem suas portas e onde Fulano com apenas Cr$ 5,00 já conseguiu todas as peças de uma bateria...; roda gigante que a meninada tanto gosta...Temos também nas paredes dos jardins o refugio dos namorados que é um verdadeiro ornato para dar maior alacridade ao ambiente, e que é fruto do passeio. Ah! O passeio sim! Este é que é o ponto primordial da festa...9

Para os jornais de festa, em geral escritos por membros das elites letradas e

endinheiradas, que circulavam durante as nove noites comemorativas, se constituindo nos

olhos, ouvidos e bocas das elites, o que interessava eram os gracejos, as fofocas e os

buchichos praticados por seus membros. Satirizar seus pares era também uma forma de

chamar atenção sobre si mesmo, além de delinear um conjunto de regras de conduta que

deveriam ser seguidas por todos, inclusive por aqueles que não faziam parte de tais

elites. Os acontecimentos nos quais o “zé povinho” tomava parte deveriam ficar relegados

às paginas policiais dos jornais ditos sérios ou aos autos dos processos crime. Os

redatores destes jornais de festa tinham clareza sobre o que e para quem escreviam.

9 A LÍNGUA – 30.12.1950; Ano V – nº 7;p.1

5

Não nos guardem rancor aqueles que foram vítimas da nossa afiadíssima língua, porque, afinal de contas jornal de festa é isso mesmo: vive às custas de vossas vidas. Afinal, tudo se passa na vida como se esse todo fosse parte da própria existência.... Aparecer nas páginas dos jornais de festa é sinal de que se goza de conceito e popularidade, pois que interessa ao público os mexericos acerca da vida das pessoas perdidas no anonimato da existência?10 (grifos nossos)

O “povo” ou “zé povinho” como era normalmente designado pelos memorialistas e

por alguns cronistas da época, só despertava a curiosidade dos abastados por seus trajes

mal-ajambrados, amarrotados e confeccionados com tecidos de menor qualidade ou

pelos seus modos tidos como pouco civilizados. Ia-se à festa não apenas para ser visto,

mas também ver e, se possível, “mangar da feiúra dos outros!”11

Este “povo”, que aparentemente participava de tudo, não ousava entrar nos

grandes Pavilhões que dominavam a festa. “Havia dois ou três pavilhões grandes: Deus e

Caridade, Pedro I e Pavilhão dos Artistas”. A disputa entre o Azul e o Encarnado todavia,

era entre os pavilhões “Deus e Caridade” e o “Pedro I”, que procuravam, cada um a seu

modo, angariar fundos para suas obras assistenciais, sendo que o segundo pertencia à

Maçonaria e revertia sua renda em prol do hospital do mesmo nome.

A partir das lembranças dos memorialistas é possível detectar que o “povo” ou

público em geral não participava dos comes e bebes que as “formosas garçonetes, moças

da nossa melhor sociedade...” serviam aos convidados que pudessem pagar pelas

“...bebidas, doces e deliciosas iguarias preparadas pelas famílias locais.”12

O importante nos relatos dos memorialistas e dos jornais de festa é que eles nos

permitem visualizar diferentes níveis ou aspectos do cotidiano daquela população: seus

costumes, divertimentos, valores e, principalmente, conflitos e disputas pelos (e nos)

espaços de lazer. Além disto, ao organizar metaforicamente o seu mundo, a memória

prescreve regras de conduta, de ascensão e fixação social.

Ao descrever a festa os autores o fazem com o intuito de mostrar a função social

que ela teria de irmanar os grupos sociais...

...este empreendimento social que tem o fito de assegurar inda mais

fortemente os liames de amizade do homem para com o próprio Homem, parece ser imprescindível nos acontecimentos humanos. A humanidade precisa de festa, etiquetas, etc, porque é movimenteira (sic). Aliás, é no

10 A LÍNGUA – 1º de janeiro de 1951 – nº 9 - Último dia da festa. 11 VENENO – 28.12.1944; p.2 12 Depoimento de D.Esmeraldina Agra Ramos (Passinha Agra) para DESIGN – Revista Informativa; op.cit;p.29

6

movimento onde está a virtude da vida...devemos viver à nossa maneira, amar as mulheres e o vinho sobre todas as coisas...13

Todavia, ao nomear os pobres e forasteiros é possível visualizar a exclusão de

certos grupos sociais que talvez não estivessem bem inseridos na cidade. Alguns jornais

da época atribuíam o aumento da violência, das brigas e das desavenças ao fato de a

cidade ter crescido muito, com a chegada de um grande contingente populacional a partir

do início dos anos 40, vindo dos mais diferentes pontos do estado e mesmo do país. Para

estes meios de comunicação eram estas pessoas, os forasteiros, os desconhecidos, os

que não sabiam quais os padrões de comportamento aceitáveis e que não faziam parte

das famílias locais, que causavam tais arruaças e desmandos, quebrando a desejável

placidez reinante na cidade e, conseqüentemente, nas festividades.

A cidade assistiu nos últimos dias mais dois crimes de morte, que

vieram pôr em sobressalto a população, fazendo sentir a todos a volta à intranqüilidade que meses atrás foi provocada por uma onda de crimes praticados dentro das mais bárbaras circunstâncias...

É de se esperar, no entanto, que a ação enérgica da polícia, como das vezes anteriores, ponha um paradeiro à onda de crimes que se prenuncia, como resultado, talvez, do aparecimento nesta cidade, de uma verdadeira malta de desordeiros, vindo de cidades e estados vizinhos, fato este acontecido à cerca de vinte dias.14.(grifos nossos).

Todavia, como deixam entrever os próprios memorialistas, muitas vezes, eram os

próprios membros das elites que saiam da área “nobre” da festa para adentrar o conjunto

de ruas adjacentes onde existia uma quantidade significativa de barracões, bares,

cabarés e casas de pasto. Era a famosa Lagoa de Roça15. Quando estes homens,

rapazes e senhores da elite, desciam até lá era para encontrar mulheres pobres que eram

13 A LÍNGUA – 30.12.1950;p.1 – Ano V – nº 7 – Órgão de Combate à Tristeza 14 Jornal Diário da Borborema – 04.02.1958;p.8 – Os dois crimes a que o Jornal se refere tratam das mortes de Antonio Izidro, que havia sido morto numa emboscada e de Manoel Martins que tinha sido morto por seu próprio sobrinho João de “Tal”. Mais dois “homens infames” que não mereceram ter seus nomes completos registrados para a história. Somente nos boletins de ocorrência policiais. 15 Lagoa de Roça era o nome dado à área que ficava por trás da Igreja Matriz e onde se reuniam homens e mulheres pobres para aproveitar as comemorações natalinas. Contudo, nem todos eram boêmios ou prostitutas como queriam fazer crer os jornaizinhos de festa e os memorialistas que escreveram sobre esta área muitos anos depois. Eram barracas feitas de palha, onde serviam comidas e bebidas. Os freqüentadores eram, na maioria, boêmios e gente de menor nível econômico. Quando se via gente importante em Lagoa de Roça, era para o encontro de algum amor clandestino. Cf in: MORAES, Antonio Pereira de – op.cit.p.42

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quase sempre tachadas de prostitutas ou “mulheres de vida fácil”. Às vezes, dando-se

uma volta por Lagoa de Roça, poder-se-ia encontrar “mais vida” do que no pátio da festa.

Apesar das críticas e chistes dos jornaizinhos, inúmeros rapazes da elite

endinheirada e intelectual circulavam por lá. Não sendo nada difícil encontrar um sujeito

bebendo “gin do brejo” (cachaça) com “uma moreninha sentada à perna”; outro, se

fazendo de inocente; outro gritando: “sujeito!”; outro “roendo” por ter perdido um emprego

dos bons e ainda um último, tão “santinho” conversando com uma “flor de carvão” 16 em

“colóquio a meia luz, por trás da Casa Branca da Serra”.17

Naquele local se reuniam todos aqueles considerados como desviantes sociais:

homens e mulheres pobres, bêbados, poetas, boêmios, prostitutas, malandros, jogadores

e demais desocupados que a festa “oficial” não conseguia ou não queria incorporar. Mas,

além destes personagens o local também era freqüentado por vários tipos de

trabalhadores e até mesmo por membros da elite letrada, que, às vezes, versejavam

homenageando Lagoa de Roça, criando uma imagem idílica do local. “Sou o

célebre.../das negrinhas e das troças/namoro, conto anedotas/bebo em Lagoa de Roça”18.

Todavia, em referências quase sempre pejorativas, demonstravam um forte preconceito

contra as mulheres de cor, mesmo quando diziam preferir às “pretas” de Lagoa de Roça:

“Uns gostam de moça branca/cabelo louro, estirado/Eu só gosto dessas pretas/ de

cabelinho enroscado”.19

Aquela área da cidade, permitia um outro tipo de sociabilidade aos membros das

elites que não apenas a de ficar observando “centenas de elegantes moças trajadas com

requintado luxo” e que davam ao ambiente da festa oficial “um cunho de apreciável

distinção.”20 O ambiente de Lagoa de Roça, marcado por outros tipos de músicas, danças

e bebidas, fazia crescer as possibilidades de sexo e violência, mas também propiciava

outras formas de encontros.

16 Todas as vezes que os jornais de festa se referem às mulheres da área de Lagoa de Roça eles utilizam o epíteto pejorativo “pretas” ou outros simulacros como: Loirinhas d’África; Navio Negreiro; Elementos d’África, como se todas as prostitutas e mulheres em geral que por lá circulassem fossem negras. O que parece demonstrar não só a existência de um forte preconceito econômico-social, como principalmente, de cor.Ver especialmente: A LÍNGUA, 30.12.1950; 31.12.1951, além de outras referências a poetas e boêmios que “gostavam das pretas”, como em A TESOURA – 25.12.1944 17 GILLETTE – 28.12.1952;p.6 18 Quadra publicada n’ A LÍNGUA – 30.12.1950 – nº 7 – Mais uma vez reforçando o preconceito de que lá só existiriam e circulariam mulheres negras. 19 O DETETIVE – 25.12.1951 – Ano I – nº 3 20 A LÍNGUA – 25.12.1950;p.1

8

Durante os nove dias de festas os dois espaços, se encostavam, se mediam, se

tocavam e, por vezes, se roçavam, se cruzando, se entrechocando, se imiscuindo,

penetrando um no outro. Embora no dia seguinte ninguém fizesse referência a isto como

algo importante. Se os membros de uma classe adentravam o espaço da outra era

somente para marcar a sua diferença e afirmar a impossibilidade de ambas conviverem

harmoniosamente no cotidiano da cidade.

Os dois mundos que formavam o espaço da festa conviviam ali. Um bem vizinho

ao outro. Contudo, era preciso ultrapassar os muros do “respeito” e do “preconceito” para

adentrar a área designada como promíscua, suja, fétida, miserável e moralmente

decadente, ainda que, às vezes, reconhecidamente, mais “cheia de vida”.

A Igreja Matriz, que naquela época do ano se configurava no centro das

festividades, era mais que uma construção arquitetônica. Era o umbral que separava o

mundo do lazer permitido do mundo dos prazeres desregrados. Atravessar este limiar era

cair na perdição pessoal e contribuir para a perdição coletiva.

Para além dela, entrando pela rua Bento Viana, virando à esquerda até alcançar

a Dr. Antonio de Sá, chegava-se ao quadrilátero do prazer. Este era formado por esta

rua, além da Marcílio Dias, ao norte, a Cristóvão Colombo ao sul e, finalmente, a Manoel

Pereira de Araújo à leste, sintomaticamente nomeada como “rua proibida.” 21

Vaguear por ali era caminhar para o pecado. Sair do paraíso, no qual reinava a

ordem e a harmonia e cair direto nas mãos, nos braços e, quem sabe, nas pernas de

Satanás, metamorfoseado em mundanas e barregãs. Era entregar-se à gula, à vaidade,

aos excessos da carne, enfim, à luxúria. Ao ócio, um dos sete pecados definidos pela

Igreja católica, juntavam-se estes outros crimes capitais. Abandonar o paraíso era deixar

os divertimentos sadios que se concentravam na grande avenida, que cortava o coração

da cidade, para adentrar aquelas veias entupidas de barracas e bares infectos, nos quais

pululavam pessoas do mais baixo calão. Aqueles homens e mulheres miseráveis e os que

“se misturavam” com eles, mereceriam perder este Éden.

Já os que passeavam pelo passeio oficial mereceriam ser nomeados, elogiados e

destacados, mesmo que fosse de forma jocosa ou repreensiva. Era sobre o passeio

“decente” que os cronistas e articulistas dos jornaizinhos de festas centravam sua

atenção, pois era ali que desfilavam os modelos de comportamento aceitáveis. Moças e

rapazes. Homens e mulheres.

21 A LÍNGUA – 29.12.1950; s/p; nº 6 – Este tipo de trocadilho era feito com nomes de filmes que já haviam sido apresentados em Campina Grande.

9

2. Modelos femininos inventados por discursos masculinos

O passeio, como já frisamos anteriormente, era o principal local de encontro de

moças e rapazes. Elas, “lindas girls que de um modo divino iluminavam corações, muitas

vezes em pandarecos, dos marmanjos que ficavam parados com olhos pidão” 22 ou as

“balzaquianas”, que eram o objeto de troça de todos os jornaizinhos. Segundo estes

jornais, as moças freqüentavam a festa, prioritariamente, em busca de um bom

casamento.

Os rapazes, por sua vez, fugiam desta possibilidade como o diabo fugia da cruz.

Tanto o casamento como o adultério eram temas constantes das piadas dos jornais.

Enquanto alguns indivíduos afirmavam que: “Casamento neste mundo/não admito, não

quero/prefiro enganar as moças/com o mesmo lero-lero”; outros ainda o comparavam

com o ato (ruim) de pagar impostos. Nos discursos dos jornais as moças apareciam como

casadoiras permanentes, sempre em busca de um esposo que pudesse lhes dar um

nome e um bom nível social. Nos anos de guerra (1939-1945) e nos imediatamente

posteriores, os namorados preferenciais passaram a ser os oficiais das forças armadas

acantonados na cidade ou os que retornaram da Itália com a Força Expedicionária

Brasileira.23

Apesar das moças, quase sempre serem apresentadas como namoradeiras,

revanchistas e ciumentas, disputando o mesmo namorado, elas também surgiam como

figuras “simpáticas e prendadas”, símbolos da “beleza e graça da mulher campinense”,

numa generalização que, possivelmente, excluía as “pretas”. Outras ainda eram tidas

como “doces e encantadoras”, além de “santa, cândida e pura personificação da beleza,

da ingenuidade e da graça e da sedução.” 24 Talvez, estes valores não fossem tidos como

obrigatórios pelas moças, nem sempre desejados pelos rapazes, mas eram estimulados,

insuflados e defendidos pelos articulistas dos jornais.

Contudo, as mesmas moças recatadas que eram alvo de tantos poemas

lacrimosos e discursos eloqüentes de seus admiradores podiam receber versos 22 O OIÃO – 30.12.1951 – Nº 7 23 A TESOURA –27.12.1944 – Ano III – nº 4 – embora possa parecer forçoso imputar às moças o desejo de só se casar com oficiais das forças armadas, é possível que nos anos de guerra (39-45) e no imediato pós-guerra, a preferência pelos membros das forças armadas tenha aumentado e muitos namoros possam ter começado na Noite dos Militares, uma vez que os poucos rapazes que foram à guerra eram muito admirados e exaltados pelos jornaizinhos de festa. Além do que se instalou na cidade o Grupamento de Obuzes do Exército. 24 Ver A METRALHA – 25,27 e 28 12.1944; respectivamente, sempre primeira página.

10

escandalosos, numa explicita referência aos beijos hollywoodianos que já podiam ser

vistos nas telas de um dos sete cinemas da cidade: “Colei minha boca à tua/colaste tua

boca na minha/deu uma coisa tão certa/ que só faca em bainha.” 25

Apesar do gosto duvidoso dos versos anteriormente citados, pode-se perceber que

os desejos que as moças despertavam nos homens nem sempre eram tão pueris como

poderiam parecer à primeira vista. Embora, é claro, sempre pudessem ser encontrados

alguns poetas “bem intencionados”, que não pensavam somente em beijos escandalosos

ou outros atos mais libidinosos, preferindo idealizar o romance à distância: “Ontem, no

baile. Olhaste-me furtivamente. Entretanto, aquele frio olhar, dar-me-á doravante,

aquecimento e paz.” Ou ainda: “Fulano de Tal convida a senhorita a enviar-lhe um olhar.

Pelo Correio, é claro, pois o rapaz é tímido”.26

Os discursos dos jornais de festa classificavam as mulheres em dois tipos,

segundo a idade e os atributos físicos. Elas seriam “brotinhos” ou “balzaquianas” que

disputavam espaço no pátio da festa e, bem ou mal, eram observadas pelos homens.

Contudo, esse “probleminha” de idade (acima dos 30 anos) parecia não incomodar alguns

deles, havendo sempre um lugar para todas elas em seus “corações despedaçados” ou

em seus “carros rabo-de-peixe”.

Para os rapazes da época talvez valesse a pena parar em pleno passeio e ficar

olhando o desfile das garotas, pois ali passava o “brotinho” toda faceira, toda risonha, “tal

e qual um lindo botão de rosa exalando fragrância por todo o pátio”, mas também passava

uma “eleita de Balzac” sem deixar transparecer um indício qualquer de tristeza pelo

“despetalar seqüente da rosa da sua mocidade”. A “balzaquiana”, ao deixar escapar um

sorriso esperançoso, fazia o possível para rivalizar com os privilegiados “brotinhos”. Num

juízo de valor globalizante alguns cronistas dos jornais de festa afirmavam que “as

mulheres são assim...sempre escondendo a idade. E vejam que nisto se constitui sua

grande virtude...” 27

Sempre que se referem às mulheres com mais de trinta anos os jornais o fazem

de forma pejorativa e comparativa com as mais jovens, chegando a afirmar que alguns

25 A METRALHA – 25.12.1944 p.4 – A quadra era assinada sob pseudônimo de Dante e oferecida a um certo Barrão 70, um louco que perambulava pelas ruas de Campina nos anos 50. O problema é que muitos “poetas” dos jornaizinhos usavam pseudônimos para se declararem às suas amadas, sem despertar a vigilância dos pais. 26 A LÍNGUA – 25.12.1950;p.1 e VENENO – 31.12.1950;p.2, respectivamente 27 Este parágrafo se baseia na descrição do editorial de O OIÃO – 30.12.1950;p.1 – Ano V – nº 8

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“brotões só estão solteiras porque não encontraram oportunidade e (há) as que continuam

solteirinhas, unicamente por questão de ‘gênio’ ou por ‘capricho’”.28

Por capricho ou por falta de oportunidade as mulheres se constituíam no assunto

preferido dos homens e, conseqüentemente, dos jornaizinhos. Em muitos deles há a

construção de um amor idealizado que também ajudava a moldar a imagem da mulher

ideal. “Quando te vejo morena/ toda de branco envolvida/ na gaze do teu vestido/ eu me

sinto extasiado/ pelas setas de cupido” ou ainda “...que lindo rosto moreno! O teu porte

doce e ameno me prende toda a atenção. E se bonita te vejo. Eu sinto na alma o desejo,

de dar-te o meu coração.” 29

Estes boletins informativos faziam questão também de opor a área do pátio ao

setor de Lagoa de Roça. Se na área central do passeio podiam estar louras e morenas:

“Gosto muito de brotinho/ que seja morena ou loura/ já ontem dei um saltinho/ no Pavilhão

Dr. João Moura”, em Lagoa de Roça só poderiam circular “as pretas”, pois somente lá

seria o “seu lugar”, de trabalho e lazer, e do qual não deveriam se afastar. E mesmo

quando elas se apaixonassem por algum moço branco, da parte de cima da festa, os seus

sentimentos deveriam ridicularizados, como sendo impossíveis de se realizar: “Sem ilusão

nem poroca/sem pagode nem rumor/a preta da tapioca/consagra-te eterno amor.” 30

Para os redatores dos jornaizinhos campinenses “as pretas” não despertariam

sentimentos elevados, como aqueles proporcionados pelas moças brancas, puras e ricas,

servindo apenas para irem “ao campo de aviação” nos carros dos rapazes abastados.

Todavia, apesar do encantamento ou deslumbramento que as moças poderiam produzir

nos rapazes a maioria deles buscava sempre terminar a noite entre os braços (ou pernas)

de uma “preta”: “Fulano de Tal ganha/ prá qualquer um na mentira/ e toda noite suspira/

nos braços de uma preta.” 31

As moças “brancas, jovens, diáfanas, santas, simpáticas e educadas” de “nossa

melhor sociedade”, talvez até tivessem vontade de entrar nos carros dos rapazes para ir

28 No dia 31.12.1950, último dia da festa, quando as balzaquianas pensavam que tinham escapado do olhar matreiro d’OIÃO, ele fez uma “retrospectiva cinematográfica” afirmando que nos sete cinemas da cidade estava sendo apresentado o mesmo filme: “Solteira por capricho”, sempre “estrelado” por uma solteirona da conhecida no pátio da festa. É necessário nomeá-las, embora correndo o risco de estar ampliando o preconceito, porque entendemos que elas eram as mulheres mais citadas nos dias de festa: Zefinha Gigilim, Didita Venâncio, Carmelita Maquilagem, Maria Rita da fábrica de cintos, Dalila Medeiros, Dulce Leão, Maria Lopes, Avany e Eurídice. Se algumas destas senhoras ainda estiver viva, pedimo-lhes imensas desculpas, mas ao historiador cabe também nomear seus personagens. 29 VENENO – 31.12.1951;p.1 – Ano VIII – nº 5 30 A ONÇA – 24.12.1950 – Ano II – nº 2 e 25.12.1950 – Ano II - nº3, respectivamente. 31 VENENO – 31.12.1951; p.2 – nº 6

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dar um passeio no “campo de aviação”32, mas teriam medo de confessar, preferindo ficar

zanzando pela área da festa, até seus tornozelos incharem e terem que ir para casa com

os pais. Mas para isto, os encantos que a Natureza lhes deu, podiam não ser suficientes.

Era quando entrava em cena todo um arsenal de produtos que ajudava a realçar seus

atributos naturais ou revelar a beleza que esteve sempre ali escondida, mas que algumas

delas talvez nunca tivessem notado.

Antes de sair de casa elas tinham por obrigação tomar banho e, se possível, com

o “sabonete das estrelas”, pois se banhar com ele faria com que ela reunisse em si os

atributos das grandes “deusas” do cinema como Hedly Lammar, Lana Turner, Dorothy

Lamour, Ann Sheridan, Judy Garland, Gene Tierney, Rita Hayworth, Veronika Lake,

Elisabeth Taylor, Ava Gardner, Grace Kelly, Joan Crawford, Gina Lollobrigida e Kim

Novak, entre outras.33

Os cabelos poderiam ser lavados tanto com o “Champú Halo” (sic), pois só ele

“poderia revelar a beleza oculta dos cabelos” ou com o “Mulsifield”, não só porque ele era

“perfumado”, mas também porque removia a caspa, a gordura, dando “aquela limpeza

total, indispensável à vida e à beleza dos cabelos.”34 Afinal de contas, uma garota

moderna e bem informada deveria saber que lavar os cabelos com sabonete deixava-os

opacos e sem vida.

Se não estivesse satisfeita com seus cabelos lisos demais ou se o seu rosto

ficasse escondido sob fios escorridos, o que impediria de mostrar seu belo “look” diante

da fraca luz que iluminava a festa, ela poderia ondulá-los com TONI – o ondulador

permanente à frio, o único que podia ser feito em seu próprio lar35, sem ir ao cabeleireiro,

que naqueles dias de festa poderiam estar com seus salões lotados.

Ondulando os seus cabelos como os de Ava Gardner ou Jane Russel, a moça

poderia passar a ser mais admirada, como era, por exemplo, Sonia Maria, morena

32 Numa piada visual publicada no VENENO de 31.12.1950;p.1 – uma moça, possivelmente, já intuindo as más intenções do rapaz, diz-lhe que não iria passear com ele pois o seu carro era do “tipo campo de aviação”. 33 O sabonete Lux sempre estampou em suas embalagens rostos das estrelas de Hollywood e em seus encartes publicitários a Revista O Cruzeiro, trazia reproduzidos tais rostos sempre atribuindo a eles um poder da beleza e sedução. Sobre esta identificação dos produtos com as imagens das estrelas hollywoodianas ver MENEGUELLO, Cristina – Poeira de Estrelas: O cinema Hollywoodiano na mídia brasileira das décadas de 40 e 50; Campinas – SP Editora da Unicamp, 1996. 34 Revista O CRUZEIRO - 04.12.1954s/p e 13.11.1954p.74-f. Na constituição dos modelos estéticos femininos a Revista O CRUZEIRO exerceu um papel preponderante, sendo uma revista de circulação nacional bastante lida por moças de todo o país. Os exemplares aqui citados podem ser encontrados no Museu Histórico de Campina Grande. 35 Revista O CRUZEIRO - 04.09.1954,p.89

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vistosa, de olhar sedutor, talvez de voz maviosa, pois era cantora da Rádio Borborema,

que no ano de 52 apresentou-se muito bela, com seu vestido de alças decotadas que lhe

realçavam os ombros, destacando o pescoço firme de jovem e o cabelo com ondulações

laterais.36

Depois do banho a moça podia passar uma loção suavizante nos pés, escolhendo

uma que não deixasse resíduo gorduroso na pele. Poderia usar ainda um talco bem fino

nos mesmos, colocando entre os dedos e pondo um pouco também nos sapatos.37

Podendo escolher para isto o talco Palmolive testado por “608 mulheres exigentes” que

teriam “criado” as suas qualidades. Usando este talco especificamente ele “perfumaria,

protegeria, refrescaria e desodorizaria” os lindos pezinhos, criando uma sensação de

frescor muitas horas depois do banho e evitando o malfadado “chulé”.

Também após o banho era necessário fazer a higiene bucal, pois a aquisição

deste hábito, além de trazer mais saúde, poderia lhe permitir obter mais namorados.

Assim, era preciso “colgatizar” a boca e os dentes, tornando o sorriso limpo e higiênico. O

simples uso de um creme dental teria o poder de transformar as pessoas, dando-lhes,

“mais encanto.” 38

Se a moça já estivesse listada pelos jornaizinhos de festa no rol da “eleitas de

Balzac” ela poderia, caso pensasse que sua pele já não tinha mais a mesma plasticidade,

usar o creme RUGOL, porque só ele “conseguia disfarçar 20-30-40 primaveras, deixando-

a apta a conquistar corações”. Era uma forma de manter “a cútis impecável” e obter “o

segredo mágico da eterna juventude” que elas tanto buscavam. Se ela usasse o creme

RUGOL poderia realizar “este ideal de beleza e mocidade, que tanto seduz(ia) os

corações.” 39

Caso o creme RUGOL não desse muito resultado, ou se o estrago que o tempo

faz já tivesse sido muito grande, ele poderia ser usado apenas como base para a

maquiagem definitiva e sobre o mesmo ser aplicado o Pan-cake, de Max-factor, que seria

“o preferido pelas mais lindas estrelas de Hollywood, (tanto) nos momentos de filmagem 36 O DETETIVE – 25.12.1952; p.1 – Este jornal trazia em sua primeira página, assim como A METRALHA (de 1944) o “clichê” de algumas moças escolhidas na noite anterior para participar do concurso da mais bela da festa. Clichê este que poderia depois ser disputado, junto aos jornais, pelos pretendentes das moças. 37 Revista O CRUZEIRO - 16.10.1954 – “Coluna Elegância e Beleza” e sobre o Talco Palmolive ver: O CRUZEIRO de 09.10.1954;p.72. 38 Revista O CRUZEIRO - 04.09.1954;p.89. MENEGUELLO, Cristina – op.cit. usa o mesmo informe publicitário e informa que teria sido publicado na Revista Cinelândia de 1952, mas na mesma nota cita O CRUZEIRO. Também é possível que o mesmo encarte tenha saído nas duas revistas, com dois anos de diferença o que poderia indicar a longevidade de certos anúncios publicitários. 39 Revista O CRUZEIRO – 27.11.1954;P.82-k

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quanto na vida social”. Esta “mistura mágica” garantiria uma “aparência sempre correta,

atraente e natural” que todos admirariam e invejariam. Era “a mais perfeita cobertura para

igualar as diferentes tonalidades da pele, fazendo desaparecer todas as pequenas

imperfeições.”40

No caso das balzaquianas que já tivessem perdido as esperanças de conquistar

um rapaz mais jovem, ai não havia RUGOL que desse jeito, sendo necessário apelar para

o REJUVENESCEDOR TESTEX, que, com seus “dois mil pontos de toque produziriam

revitalizante massagem técnica inteiramente nova, efetuada sem deslocamento da pele”.

Firmando progressivamente a cútis e dando-lhe viço e frescor a cada aplicação que

poderia ser feita antes de cada uma das nove noites de festa sem prejuízo para a sua

sensível e amada pele. Mas não era só isto.

Com um pequeno complemento de trinta e cinco cruzeiros a moça poderia obter a

PINÇA MÁGICA, com ajuste automático e tirador de cravos JUSTEX e, se ela dispusesse

de mais alguns recursos, por apenas cinqüenta e cinco cruzeiros ela poderia adquirir o

CURVEX, que recurvava os sílios e embelezava “a olhos vistos”.41 Talvez fosse o “novo”

CURVEX que provocasse arroubos poéticos em alguns rapazes que declamavam através

dos jornais de festa: “Neste prazer me secundo/sem conter os meus refolhos/a melhor

festa do mundo/ é a festa dos teus olhos”.42

Caso a moça não tivesse muitas posses ou já tivesse gasto toda sua “suada

mesada” com todos os produtos anteriores, poderia optar pelo “pote” médio de Pan-cake,

que custava apenas (?) trinta e cinco cruzeiros, um pouco menos do que o grande, que

custava 50. Não havia potes pequenos. Talvez para que as moças de Lagoa de Roça

não se aventurassem ou ousassem “ser ainda mais linda” do que os brotinhos da elite.

Já no caso das moças mais pobres, talvez “as pretas” de Lagoa de Roça, se

quisessem conquistar alguém, teriam que se contentar com um bom banho, usando o

Sabonete VALE QUANTO PESA, que era “grande, bom e barato – com novo formato

retangular de preço mais econômico que o oval” e dar um tom ardente à sua pele com o

“pó de arroz ECLÁT”, formando sobre a “cútis um véu transparente...muito sutil que

embeleza e oculta as imperfeições”. Além disto, o pó de arroz Éclat, possuía um “perfume

insinuante e evocador...que com certeza ‘ele’ iria gostar”.43

40 Revista O CRUZEIRO – 16.10.1954;p.74-g – A atriz (star) que ilustrava esta propaganda era Pier Angeli, “fascinante” estrela da MGM. 41 Revista O CRUZEIRO - 02.07.1954;p.28 42 LÍNGUA 30.12.1950;p.1 – nº 7 43 Revista O CRUZEIRO – 16.10.1954 e 01.03.1952;p.92, respectivamente.

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Quase sempre, as propagandas das revistas recorrem ao fato de ser “ele” o

destinatário dos cuidados que a mulher deveria ter. Não era apenas a aquisição de novos

hábitos de estética e higiene que estavam em jogo, mas a própria obtenção do amor

verdadeiro estaria vinculada ao uso dos produtos.

E era esta busca do amor verdadeiro que fazia a mulher de estilo tratar melhor as

unhas antes de sair de casa, pois no mundo do amor idealizado, as mãos, depois dos

olhos e da boca, eram as partes mais admiradas pelos homens. Para surpreendê-los, ela

poderia escolher “uma das cores harmonizantes de Peggy Sage”, realçando a sedução

que já lhe era um atributo natural. Os homens, por mais distraídos que fossem, não

resistiriam à “magia das cores”, às “tonalidades provocantes” e às “nuances

perturbadoras”.44 Esta combinação, tornaria quase impossível um homem que estivesse

nos pavilhões da festa não olhar para aquelas jovens e delicadas mãos. Porém, não eram

apenas as mãos, que em gestos largos e dissimulados convidariam os rapazes a um

olhar mais demorado. As moças precisavam chamar a atenção, se possível destacando

algo que tinham de melhor: A boca.

Se nem sempre ela era carnuda e sensual como a de Marylin Monroe ou fina e

delicada como a de Joan Crawford, tornava-se preciso identificar que tipo de lábios eram

os dela. Aristocráticos, sensuais, sinceros ou quentes? A boca era por onde sairia o sim e

o não para o namoro. Ela era que se alongaria num sorriso quando recebesse um elogio

ou se contorceria quando recebesse uma pilhéria “indecente”. Era a boca que precisava

estar bem tratada para receber o beijo “dele”. Assim, a moça poderia optar por uma das

nove excitantes cores do batom TANGEE e usá-lo à noite toda, pois o batom TANGEE, com permacromo e lanolina, uma vez aplicado permaneceria nos lábios por muito tempo,

conservando-se inalterado, mesmo quando a moça comesse, fumasse, mordesse os

lábios ou...beijasse. Com certeza a moça e seu pretendente iriam “gostar do novo

TANGEE”.45

Pronta? Ainda não! Como sair para o passeio sem colocar algumas gotas de

EMBRUJO DE SEVILLA, da Myrugia46? Perfume forte, envolvente, insinuante, capaz de

afetar até os olfatos mais exigentes, quem dirá daqueles homens acostumados a uma

água de colônia qualquer, comprada na Feira. O perfume, quando bem escolhido, poderia

44 Revista O CRUZEIRO - 02.07.1955;p.58. 45 Revista O CRUZEIRO - 09.10.1954 – sobre quase todos os produtos incidia a característica de ser “novo”. Ou era um novo modelo, nova fórmula ou novo tamanho, procurando dar a sensação que as mulheres estavam sempre usando as últimas novidades. 46 Revista O CRUZEIRO - 04.12.1954; p.75

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enfeitiçar os rapazes e criar neles a lembrança e a vontade de vê-la todos os dias da

festa.

Antes, porém, de preparar o corpo, os cabelos, os pés, as unhas, o rosto, os olhos,

a pele do rosto e do corpo, a moça deveria ter feito alguns exercícios físicos. Pois no

processo de constituição física da mulher, a ginástica rítmica era sugerida para reforçar os

valores estéticos que já eram dados como “traços característicos e predominantes”. Fazer

ginástica era colocar “o corpo e o espírito a serviço da beleza e da graça...e tornar mais

nítidas na mulher as particularidades de seu sexo”.47

A beleza e os valores morais das mulheres como juventude, saúde e inteligência,

eram realçados através de outros atrativos e identificados com o “fluxo renovador do

progresso mundial”. Assim, no mundo moderno do pós-guerra, as mulheres que estavam

saindo de casa para trabalhar fora eram consideradas mulheres modernas, mas, ao

mesmo tempo, vistas como uma fraude, uma competidora em potencial do homem e uma

mãe desnaturada que largava os filhos para se aventurar “no mundo masculino”. Mas as

comemorações de Natal e Ano Bom não eram momentos de trabalho e sim de festa e a

mulher precisava estar bem “equipada” para conseguir seu lugar ao sol ou sob os

holofotes.

Depois de toda a preparação do corpo, que poderia durar horas, era necessário

ainda escolher o vestido comprado nos Armazéns Guarany – O Caboclo Gigante dos

Tecidos, localizado na rua Maciel Pinheiro, colocar o sapato chiquito, última moda no Rio

de Janeiro, com estampas de relógios, pontos cardeais, conchas, frutas e flores ou

desenhos de pegadas descalças, comprados na Casa Cruz48, localizada na mesma rua,

no número 171 e, pronto, ela já podia se dirigir para o pátio da festa. Contudo, ela não

poderia esquecer que a maquiagem feita em casa tenderia, com o passar do tempo

esmaecer-se (menos o batom TANGEE, é claro!), o que poderia causar prejuízos

irreparáveis na sua acirrada disputa pelos olhares dos galãs campinenses.

Por isto era preciso se prevenir, levando para a festa um refil do pó facial

ATKINSONS que dava um “impecável encanto e segurança” à mulher “envolvendo-a num

suave véu de juventude e encantamento” fazendo “desabrochar nos seus rostos uma

nova beleza”.49

47 Revista O CRUZEIRO - 02.07.1955; p.35-36 48 O GILLETTE – 25.12.1952; O CRUZEIRO 09.10.1954;p.56 e O OIÃO – 28.12.1950 nº 6 49 Revista O CRUZEIRO - 16.10.1954 s/p

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Como algumas moças e senhoras poderiam estar naqueles dias em que “a

mulher era mais mulher”, não deveria descuidar de suas partes mais intimas. Era para isto

que existia o protetor sanitário MADAME X, modelo Liliput “de tamanho normal que a

senhora (ou senhorita) recebia dobrado e comprimido, no tamanho de uma caixa de

fósforos, podendo levá-lo facilmente e sem fazer volume em sua bolsa...para o passeio”.50

Todos estes produtos ofereciam a possibilidade de realçar atributos ou fazer com

que as moças descobrissem a beleza que estava escondida em si. Para tanto, ajudava

sobremaneira a “comparação, a identificação e mesmo a imitação” com as “as estrelas

hollywoodinas.”51 Na medida em que uma grande atriz dos filmes americanos era

apresentada às moças de todo o Brasil como um modelo de beleza e comportamento

feminino, dizendo-lhes como preparar sua maquiagem e como se tornar mais bela e

atraente, estava também dizendo como “agarrar um marido”.

Gina Lollobrigida “uma das mulheres mais lindas do mundo” dava conselhos à

mulher brasileira para que ela adotasse também seu “cuidado de beleza. Usando

regularmente o perfumadíssimo sabonete Lever”52, a “star” convidava também as moças

campinenses a uma “cinematografização do cotidiano”

Se muitas vezes os conselhos das colunas de beleza das revistas vinham de

forma suave, noutras eles surgiam de forma bem mais agressiva e direta.

Vista-se com extravagância. Pinte-se exageradamente. Seja

perdulária. Não lhe dê um minuto de sossego. Não ligue importância às suas conversas. Brigue sempre que uma mulher olhar para ele. Trate muitíssimo bem os amigos dele. Quando ele lhe fizer um convite para jantar, escolha o restaurante mais caro.53

Desde a hora do banho, a moça deveria se preparar para a conquista do amor

eterno. Assim, na medida em que os meios de comunicação produziam as estrelas de

cinema, também produziam todo um conjunto de comportamentos nos seus espectadores

e fãs. Todavia, esta relação sempre presente entre as pessoas comuns e os astros e

estrelas hollywoodianas não era necessariamente uma relação de identificação simplória,

50 Idem.Ibidem; p.109 51 Cf. MENEGUELLO, Cristina – op.cit.;p.130 52 Revista O CRUZEIRO – 04.12.1954; s/p – Sobre o processo de “cinematografização do cotidiano” - Ver MENEGUELLO, Cristina – op.cit.p.130 53 Revista O CRUZEIRO – 08.05.1954 – “Coluna Elegância e Beleza”. Ao que MENEGUELLO, Cristina – op.cit. complementa dizendo: “os conselhos dados pelo avesso fixam comportamentos aceitáveis e os possíveis”;p.131

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alienada ou alienante, mas sim de imitação vivenciada num processo mais profundo de

subjetivação.

Aquelas moças campinenses, ao usarem os produtos “indicados”, sentiam-se

parte do glamour e da beleza daquelas lindas atrizes. Não estavam apenas sendo ávidas

consumidoras de novidades ou garotas tolas querendo parecer bonitas a qualquer preço

ou sacrifício. Estavam, sobretudo, compartilhando com seus “ídolos” o que eles

aparentemente tinham de melhor. Ao copiarem as suas maneiras de vestir, de andar,

gesticular, falar, fumar, beber e amar, não estavam buscando uma identificação pura e

simples, mas sim a possibilidade de viver momentos, horas de star, em meio a sua

comunidade, no seu micro mundo cotidiano.

Ver e ser vista com todos os aperfeiçoamentos e retoques que os produtos de

maquiagem permitiam não era mais uma exclusividade dos artistas do Rádio ou de terras

longínquas, era algo acessível também a elas, lindas “girls” que iluminavam a Broadway

campinense naqueles nove dias. Era ser estrela, naquelas noites de tantas estrelas.

Iluminar mais do que a parca luminosidade elétrica disponível no local. Era ser ela e ao

mesmo tempo outra pessoa. Diferenciar-se das pessoas comuns que vinham dos sítios e

dos distritos com seus modos e modas que, definitivamente, não seguiam os padrões de

ditados por Hollywood.

Homens e mulheres campinenses não imitavam simplesmente os seus “ídolos”,

mas na medida do possível, viviam seus personagens, seus desencantos, suas dores e

seus amores. É sintomático que uma espectadora de cinema do final dos anos 30 tenha

revelado em seu depoimento que: “Eu gostava muito de ‘...E o Vento Levou’ porque era

uma fita assim...que eu vivia aquilo. Gostava muito.” 54 (Grifos nossos)

Desde que o cinema hollywoodiano se instalou no Brasil ele gerou modelos, criou

símbolos, aumentou expectativas, produziu espectadores. Mas foi sobretudo a partir dos

anos 40, que este processo se intensificou, com a ajuda de outros meios de comunicação

de massa como o rádio, os jornais, as revistas de variedades e as de cinema. Todos

esses meios midiáticos ajudaram a moldar os comportamentos, gestos, posturas e auto-

imagens das pessoas daqueles anos.

Em Campina Grande dos anos 40 e 50 não foi diferente. Enquanto uns eram

ridicularizados por quererem se parecer com astros de Hollywood: “Cabelo espichado à

grude/ vasto império de piolho/ quem acaso arrisca um olho/ topará João Hollywood”.

54 Depoimento da Sra. Elza Wanderley, concedido ao autor no dia 24.03.2001. “...E o vento levou...” – 1939, filme estrelado por Vivian Leigh e Clark Gable.

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Outros buscavam de todos os modos possíveis se igualar a seus ídolos, mesmo de

décadas passadas, mostrando que assim como os artistas que teriam vindo “de baixo”,

eles também mereceriam “o estrelato”: “Fui ralé, fui antipático/fui pracista fui

continuo/Porém hoje sou simpático/Sou Rodolfo Valentino.” 55

Claro que esta identificação não era total, mas parecia haver por parte de homens

e mulheres o desejo de possuir o charme, a beleza, a graça, o glamour e sobretudo, os

valores materiais que as estrelas representavam, pois acoplada à caracterização física

havia constantes referências aos símbolos de ostentação, como casas, carros e mulheres

bonitas, sendo estas consideradas por muitos, como mais um objeto a ser exibido na

festa.

Tais símbolos serviam para criar nas pessoas comuns um “poder desejante”. Por

mais pobres que fossem elas queriam ter “casas-palácio” como as dos artistas ou

“corvettes” conversíveis, para “passear” no “campo de aviação”. “Tenho dinheiro,

automóvel e uma mulher”56, teria dito o gerente de um grande hotel de Campina Grande.

Este último personagem expressava em sua curta frase, o que a maioria desejava e

cobiçava nos astros de cinema e como associavam a mulher à condição de mais um

objeto a ser possuído e ostentado.

Na mesma medida que os astros e estrelas hollywoodianas compunham seus

personagens, ajudavam a construir os espectadores. Isto, porque propunham modos de

vida que eram, simultaneamente, inacessíveis e possíveis de realização plena ou parcial,

no mundo das vivências cotidianas.57

A quantidade de produtos colocados à venda e relacionados com nomes e rostos

dos artistas era tão grande e diversificada que serviam de pano de fundo para a criação

de um gestual cinematográfico no cotidiano das pessoas. O uso exagerado ou

inadequado da maquiagem era ridicularizado pelos jornaizinhos campinenses, pois eles

tomavam como modelo as belas atrizes que surgiam nas telas e nas revistas, para criticar

certas “balzaquianas” que iam ao passeio com a maquiagem tão carregada que só

mesmo um “toque mágico”58, para causar nela os mesmo efeitos que o espelho da

madrasta de Branca de Neve conseguira fazer no cinema, ou seja: Milagre!

55 A TESOURA 27.12.1944;p.3 – Ano II nº 4 – ambos os exemplos – Noutra edição de A TESOURA, um certo Geraldo era comparado a Tyrone Power – 25.12.1944 – Ano III, nº 2. Sobre o “merecimento ao estrelato” ver MENEGUELLO, Cristina, op.cit.p.130 e ss. 56 O OIÃO 30.12.1950 – nº 8 57 MENEGUELLO, Cristina – op.cit.130 e ss. Muitas das informações trabalhadas pela autora foram encontradas também nas revistas o Cruzeiro as quais tivemos acesso em nossa pesquisa. 58 A RIPA 30.12.1949 – Ano I- nº 5

20

Na passagem dos anos 40 para os 50, valores como poder, sedução, glamour e

sofisticação eram difundidos pelos mais diferentes meios de comunicação de massa, que

apresentavam os astros e estrelas de Hollywood como seus símbolos máximos. Os

jornaizinhos de festa pareciam, a todo momento, estar divulgando também estes valores,

pois ao nomear pessoas, instituições e atitudes com títulos de filmes, além de brincar

estavam colocando em destaque a importância que o cinema e a propaganda tinham na

vida das pessoas comuns.

Não queremos dizer com isto que todas as pessoas eram espectadoras de cinema

ou que todas as que lessem as revistas nacionais incorporassem automaticamente uma

preocupação em vestir-se, andar, falar ou gesticular como seus ídolos, mas havia casos

em que a identificação era buscada no conjunto de signos que esses atores e atrizes

pareciam representar.59

Pelos discursos propagados pela mídia impressa e pelo cinema os produtos teriam

este poder de transformar as pessoas, dando-lhes “mais encanto”. Sem usar os “produtos

mágicos” as moças teriam mais dificuldade para encontrar um amor eterno e verdadeiro.

Já se os usassem constantemente, quem sabe, elas não atrairiam mais olhares ao seu

redor. Talvez fosse nisto que algumas delas apostavam e era também nesta expectativa

que se baseava toda a propaganda, local e nacional, da venda de produtos de beleza e

estética. Mas e os homens? Será que eles levavam em consideração todo este esforço

feito pelas moças para conquistá-los?

Possivelmente, os homens que freqüentavam o pátio da festa tinham também

suas preocupações estéticas e de elegância. Afinal de contas não era nada fácil concorrer

com o “sorriso cínico” e “olhar apertado” de um Clark Gable; com a sofisticação e o

charme de um Cary Grant ou de um James Stewart, ou ainda saber dançar tão bem como

um Gene Kelly, ídolos hollywoodianos invejados e admirados por suas capacidades de

encantar as mulheres e submetê-las aos seus caprichos.

Os rapazes da elite, os jovens estudantes de Direito da Faculdade do Recife, os

comerciários, os representantes comerciais e jovens militares que freqüentavam o pátio

da festa vestiam-se bem. Com linho, gabardine ou casemira, tecidos que perduraram na

moda por todos os anos 40 e 50. Sem desprezar, é claro, as roupas confeccionadas em

algodão, tecido que no auge da produção algodoeira campinense podia ser encontrado

59 Segundo Cristina Meneguello, os signos divulgados por meio da mídia e especificamente por intermédio da estrela constituem um leque de possibilidades que circulam em torno de questões sempre repetidas e potencializadas a cada repetição. A aparência, o apelo físico ligado à questão da saúde, é um desses feixes de questões. Ver MENEGUELLO, Cristina – op.cit.p.131

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nas NAÇÕES UNIDAS, loja de tecidos localizada na rua Maciel Pinheiro, 301 que vendia

“sedas, linhos, algodão, casemiras e tropicais” para todos os tipos de gostos e cortes.60

Antes de sair de casa poderiam fazer a barba com o creme de barbear “Williams” e

depois, para amaciar o rosto, usar a “Loção Facial Typon”. Passar um pouco de “Petróleo

Juvena”, pois esta brilhantina fixava, tonificava e perfumava os cabelos. Alguns, que já

tivessem hábitos de higiene mais definidos poderiam escovar os dentes com o creme

dental “FORHAN’S”, vestir seus ternos, colocar suas indefectíveis gravatas, os chapéus

Ramezzoni na cabeça e pronto, já podiam ir ao passeio apreciar as lindas girls.61

Lá chegando, poderiam tomar um drink de “Cinzano” junto com os amigos, pois

“nos momentos mais felizes” ele estava presente e porque esta seria “a bebida tradicional

da cordialidade”, sendo “nas festas, nos encontros com os amigos...sempre lembrança

acertada”, pois era “leve, estimulante e aromática” 62. A bebida poderia estimular novas

conquistas e deixar a língua mais solta para declarar seu amor pelas moçoilas casadoiras.

Depois de mais alguns brindes poderia até fazer alguns versos para serem publicados

nos jornaizinhos do dia posterior. “O teu olhar é tão lindo/ o teu sorriso mimoso/ contemplo

sempre sorrindo/ o teu porte gracioso.” 63

Apesar da profusão de poemas apaixonados e dos elogios rasgados às moças de

família, nem sempre era possível namorá-las em paz no trecho dos pavilhões, pois

sempre existia a possibilidade de um pai mais valente aparecer, cobrando do rapaz uma

decisão quanto ao casamento, ou mesmo um ex-namorado querendo tirar satisfações

com um novo pretendente.

Contudo, as questões do coração não eram privilégio apenas dos mais pobres que

se divertiam em Lagoa de Roça. Bebida, brigas e tiroteios não eram exclusividade do

espaço destinado à plebe. De vez em quando algum “arranca rabo” ou “pega-pega” tinha

lugar no espaço chique, levando os jornais a criticá-los suavemente como “costumes

atrasados”, que não deveriam ser mais os da Campina Grande dos anos 50, que se

pretendia moderna e sofisticada. Vez por outra um engraçadinho da própria elite resolvia

60 Informações recolhidas em DINOÁ, Ronaldo – Memórias de Campina Grande; Campina Grande; s/e; 1993;p.380 – Entrevista com o sr. Fausto Luis de Moura, o Fausto Alfaiate. O sr. Fausto acompanhou o vestir das pessoas em Campina Grande de 1935 até pelo menos 1984, o que lhe deu uma visão das modificações pelas quais passou a moda na cidade. Sobre as lojas de tecidos ver jornais de Festa, neste caso específico VENENO – 02.12.1950. 61 Revista O CRUZEIRO – 09.10.1954;p.20 e ss. Sobre o uso dos Chapéus ver MARIA FILHO, Chico – Crônicas; Campina Grande; UNIÃO Companhia Editorial; 1978. 62 Revista O CRUZEIRO – 09.10.1954 – A publicidade insistia: “Peça pelo nome!”, o que denota que outros produtos já vinham imitando aquele famoso Vermouth. 63 A LÍNGUA – 31.12.1950 – Ano V – n] 8;p.2 – Quadra “A alguém”

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fazer uma pilhéria com uma das moças que já tinha pretendente e o “pau rolava solto”

entre os “rapazes de boa família”.

Como uma invocação dos costumes do século passado vimos ontem

um espetáculo anti-teatral onde se estranharam ‘duas delicadezas’: Fulano e Beltrano. O fato do pega-pega, segundo a opinião da massa que os cercava, prende-se a um horóscopo que ambos estão enquadrados nos mesmos ideais amorosos.64

Brigas e desavenças entre os membros elegantes das elites que freqüentavam o

centro da festa não eram raras. Tabefes e tiroteios pareciam comuns, mas os jornais

preferiam sempre acentuar que a culpa por estes destemperos era de pessoas que

vinham de fora e não dos campinenses, sempre nomeados como ordeiros e pacíficos.

Assim, segundo alguns jornaizinhos, quando algum “forasteiro-arruaceiro” deixava as

plagas do Cariri e vinha visitar Campina, sua visita tornava-se motivo de apreensão, pois

o mesmo poderia estragar o bom andamento da festa, podendo-se sempre prever o pior

para o dia seguinte: “Amanhã, na certa haverá um daqueles tiroteiozinhos no pátio da

festa. Desde já ficam convidados o coveiro do cemitério e a polícia” 65

Como podemos ver, namorar, beber e brigar eram ações tão comuns na Rua da

Matriz como em Lagoa de Roça. Quando o passeio se esvaziava cedo e as “moças de

família” iam embora para os seus lares, sempre havia a possibilidade ir à Lagoa de Roça

e tentar “pegar” umas “pretas” para levar para o “campo de aviação”.

Para os poucos que possuíam carro esta aventura tornava-se mais fácil. Para

quem não tinha, o jeito era seguir a pé para a rua Manoel Pereira de Araújo, onde se

enfileirava uma meia dúzia de pensões de “mulher dama”, ir ao bairro de José Pinheiro,

onde também podiam ser encontradas algumas “mulheres da vida”, ou tentar conseguir

companhia para aquela noite na “Esquina do Pecado” (confluência das ruas Severino

Mota com 4 de Outubro). Os rapazes que assim ‘agiam’ eram tidos como espertos e

audazes por entrarem nas zonas de meretrício, em busca de aventuras. Os que não se

aventuravam por estas localidades podiam ser encontrados até altas horas em Lagoa de

64 A TESOURA – 27.12.1944 – Ano III – nº 4;p.1 – Ressalte-se que o segundo “combatente” era tido na cidade como astrólogo. Também A TESOURA –25.12.1944 – Ano III – nº 2;p.3 registrava em suas páginas um pega-pega entre dois rapazes da alta sociedade, que os teria levado ao internamento no Centro de Saúde, mas não revelava os nomes. 65 VENENO –25.12.19(?) – Ano VIII – nº 1;p.2 – este número de VENENO não traz especificado o ano, causando alguma dúvida, mas como ele é do ano VIII deve ser de 1952 e quanto ao dia o editorial faz referência à volta das festas de Natal. O jornal, naquele ano só teria começado a circular no dia 25, por isto era o nº 1. A gozação era com um membro da família Brito, que viria de São João do Cariri.

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Roça “...mordendo uma perna...de galinha ou deixando o caldo preto da pata de um

caranguejo descer pelo bigode, enquanto ‘matavam’ o velho”. Era o que podia se ver “na

alegria contagiante de Lagoa de Roça”.66

A “Rádio Miséria - que transmitia de seus estúdios instalados em Lagoa de Roça

em ondas estreitas e redondas, com suas antenas dirigidas para o recinto da festa” 67,

nada mais era do que o conjunto de boatos tecidos noite após noite e que algum grupo

mais sóbrio se encarregava de espalhar pelo pátio no dia seguinte para que todos

soubessem quem havia estado lá e, pior, fazendo o quê.

Vez por outra os jornais noticiavam que um membro da elite intelectual e

econômica fora encontrado por lá abraçado “com uma bruta garrafa de aguardente,

chorando como uma Madalena” e implorando “clemência às negrinhas que o cercavam”

ou ainda outro bebedor contumaz “ingerindo um bruto copo de gin e enaltecendo a alma

(de um colega), lastimando seu afogamento numa pipa de cerveja...”68

Depois de Lagoa de Roça, da Rua 4 de Outubro e das imediações do Bairro de

José Pinheiro, se o indivíduo não conseguisse nada, só mesmo indo para “o campo de

aviação” que distava pelo menos uns oito quilômetros do recinto da festa. Aparentemente,

o tal “campo” era muito requisitado por rapazes e moças daqueles anos, pois alguns

propunham, de brincadeira, claro, que fossem criados mais dois espaços como aquele só

para abrigar os casais enamorados. Além disto, um dos jornais prometia publicar na sua

última edição daquele ano um “abaixo assinado contendo mil e trezentas assinaturas,

criticando energicamente o patrulhamento policial no campo de aviação”.69

Ao sair de Lagoa de Roça todo amarrotado, embriagado, com fortes olheiras,

olhos injetados e cheirando a cachaça com caju ou abacaxi, os homens iam para casa

talvez pensando nos “brotinhos” tão decantados pelos jornais de festa, produzidos pelo

cinema e pelas revistas, e que eles, infelizmente não conseguiram “pescar”. Todavia, é

quase certo que no dia seguinte eles estariam lá novamente para tentar mais uma vez e,

caso não conseguissem, talvez terminassem mais uma noite nos braços de uma “preta”

no maravilhoso campo de aviação. Como Campina não possui praia nas quais os

amantes pudessem viver tórridas cenas de cinema, o jeito era ficar a um passo da 66 GILLETTE – 28.12.1952;p.6 67 A TESOURA –27.12.1944 – Ano III – nº 4 68 A TESOURA – 25.12.1944 – Ano III – nº 2;p.1, ambas as matérias se referem a dois bebedores conhecidos na cidade, muito bem relacionados com as elites que se divertiam na parte alta da festa. 69 A RIPA – 30.12.1949;p.4 – Claro que esta informação é um chiste, pois não haveria nem espaço para tantas assinaturas. Porém, parece demonstrativo de quanto o campo de aviação era usado para os “namoros ilícitos”.

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eternidade70 ali mesmo, dentro dos automóveis, se possível sem capota, sob um céu nem

sempre estrelado.

70 “A um passo da eternidade” – 1953, filme estrelado por Burt Lancaster, Débora Kerr, Frank Sinatra e Montgomery Clift.