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FAE Centro Universitário Revista Justiça e Sistema Criminal Modernas Tendências do Sistema Criminal Rev. Justiça e Sistema Criminal Curitiba v. 5 n. 8 p. 1 - 248 2013

Revista Justiça e Sistema Criminal n.8

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Revista Justiça e Sistema CriminalModernas Tendências do Sistema Criminal

Rev. Justiça e Sistema Criminal Curitiba v. 5 n. 8 p. 1 - 248 2013

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Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus

PresidenteFrei Guido Moacir Scheidt, ofm

Diretor-GeralJorge Apóstolos Siarcos

FAE Centro Universitário

Reitor da FAE Centro UniversitárioDiretor-Geral da FAE São José dos Pinhais

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Gilberto Oliveira SouzaCoordenador dos Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu

José Henrique de FariaSecretário-Geral

Eros Pacheco NetoDiretor do Instituto de Ciências Jurídicas

Sérgio Luiz da Rocha PomboOuvidoria

Samar Merheb JordãoDiretor de Relações Corporativas

Paulo Roberto Araújo Cruz

EditorPaulo César Busato

Editoração FAEAna Maria Oleniki (Diagramação)Braulio Maia Junior (Diagramação)Débora Cristina Gipiela Kochani (Diagramação)Edith Dias (Normalização)Eliel Fortes Barbosa (Diagramação)Karina Quadrado (Revisão de texto)Luiz Henrique Bezerra (Revisão de texto)Marcos Fernando Justino da Silva (Revisão de texto)Maristela Ferreira de Andrade da Silva (Coordenação)Marcela Narvaéz Botero (Revisão de linguagem espanhol)Priscilla Zimmermann Fernandes (Revisão de texto)

Coordenador do curso de DireitoEduardo Saldanha

Coordenador do Grupo de Estudos Modernas Tendências do Sistema Criminal

Paulo César Busato

Pesquisadores do Grupo de Estudos Modernas Tendências do Sistema Criminal

Airto Chaves Junior Alex Wilson Duarte FerreiraAlexandre Ramalho de Farias Alexey Choi Caruncho Almério Vieira de Carvalho Júnior Ana Maria Lumi Kamimura Murata Anne Carolina Stipp Amador

Revista Justiça e Sistema Criminal. v. 1, n. 1, jul./dez. 2009 - Curitiba: FAE Centro Universitário, 2009 - v. ilust.

Semestral ISSN 2177 - 4811

1. Direito penal - Periódicos. I. FAE Centro Universitário

CDD 341.5

Os artigos publicados na Revista Justiça e Sistema Criminal são de inteira responsabilidade de seus autores. As opiniões neles emitidas não representam, necessariamente, pontos de vista da FAE Centro Universitário.

A Revista Justiça e Sistema Criminal tem periodicidade semestral e está disponível em www.sistemacriminal.org.Endereço para correspondência:

FAE Centro Universitário Rua 24 de Maio, 135 – 800230-080 – Curitiba – PR – Tel.: (41) 2105-4098.

Bibiana Caroline Fontella Camila Rodrigues Forigo Carolina de Freitas Paladino Clara Moura Masiero Danyelle da Silva Galvão Décio Franco David Denise Luz Emília Merlini Giuliani Fábio André Guaragni Fábio da Silva Bozza Fernando Antônio Carvalho Alves de Souza Gabriel Ribeiro de Souza Lima Jacson Luiz Zilio João Paulo Arrosi José Roberto Wanderley de CastroJúlia Flores SchüttLarissa Horn ZambiaziLeandro Ayres FrançaMárcio Soares BerclazMaria Fernanda LoureiroMariana Andreola de Carvalho SilvaMarlus Heriberto Arns de OliveiraMichelangelo Cervi CorsettiOdoné Serrano JúniorPaulo César BusatoRegina Lúcia Alves CarneiroRodrigo Jacob CavagnariRodrigo Leite Ferreira CabralRodrigo Régnier Chemim GuimarãesSandra Regina Sbizera da Silva BusatoSilvia de Freitas MendesStella Maris PiegelStephan Nascimento BassoTahena Vidal AndradeTatiana Sovek Oyarzabal

Conselho Editorial e ConsultivoAlexey Choi Caruncho (FEMPAR)Alfonso Galán Muñoz, Dr. (Universidad Pablo de Olavide)Carlos Roberto Bacila, Dr. (UFPR)Carmen Gomez Rivero, Dra. (Universidad de Sevilla)Cezar Roberto Bitencourt, Dr. (PUC - Porto Alegre)Diego Araque (Universidad de Medellín, Colômbia)Edgar Hernán Fuentes Contreras (Universidad Jorge Tadeo Lozano, Colômbia)Elena Nuñez Castaño, Dra. (Universidad de Sevilla)Fábio André Guaragni (Unicuritiba)Fernando Antonio Carvalho Alves de Souza (Universidade Maurício de Nassau)Francisco Muñoz Conde, Dr. (Universidad Pablo de Olavide)Jacinto Nélson de Miranda Coutinho (UFPR)Leandro Gornicki Nunes (Univille)Marcus Alan de Melo Gomes, Dr. (UFPA)Mauricio Stegemann Dieter, Msc (FAMEC)Nilo Batista (UFRJ)Paulo César Busato, Dr. (FAE, UFPR)Pricilla Placha Sá (UFPR, PUC-PR)Ricardo Rabinovich-Berkmann (UBA, Argentina)Rodrigo Régnier Chemim Guimarães, Msc (FAE, Unicuritiba)Rodrigo Sánchez Rios (PUC-PR)Salo de Carvalho (UFRGS)Sérgio Cuarezma Terán, Dr. (Universidad Politécnica de Nicaragua)Vera Malaguti Batista (ICC)

DistribuiçãoComunidade científica: 300 exemplares

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Apresentação

A Revista Justiça e Sistema Criminal já é uma marca consistente. Não apenas em relação à longevidade da publicação, mas também pela sua inclusão no Sistema Qualis.

Este é o primeiro número que vem à luz após nossa inclusão nesse mecanismo de avaliação. Embora se saiba que a inclusão se dá sempre pela qualificação inicial C, é bastante claro, seguindo os critérios públicos divulgados pelo sistema, que certamente são cumpridos, desde o primeiro número, os requisitos para que as avaliações subsequentes sejam progressivamente muito melhores.

Neste número, persiste o perfil que já configura tradição, isto é, de publicação bilíngue, contando com artigos em espanhol e em português. Persiste, também, a internacionalização dos textos e das avaliações pelo sistema double blind review.

Também ampliamos o quadro de membros do Conselho Editorial e do Conselho Consultivo. O Grupo de Pesquisas Modernas Tendências do Sistema Criminal, responsável pela produção, cresce a cada dia. Nossa publicação conta com autores externos ao Grupo, como também dos autores pertencentes ao próprio Grupo de Pesquisas, além de apresentarmos a resenha de obra clássica de Direito Penal.

Como abertura deste volume, apresentamos a publicação de nosso colaborador internacional mais assíduo, o Doutor Francisco Muñoz Conde, catedrático da Universidad Pablo de Olavide, de Sevilha – Espanha. O texto apresentado fez parte do curso que ditou na Escola de Altos Estudos da Universidade Federal do Paraná, em Curitiba, nos meses de julho e agosto, sob o título As duas faces de Edmund Mezger, o qual compara a vida de Mezger como cientista/penalista e sua vida política/pessoal de envolvimento com o regime nacional-socialista.

O segundo trabalho, da autora Dalia Carreño Dueñas, professora da Universidad Santo Tomás de Aquino, em Bogotá, Colômbia, é uma profunda análise das bases da teoria da ação significativa, apresentando a filosofia da linguagem como paradigma de superação humanista para orientação da teoria do delito.

Ainda no plano internacional, o terceiro trabalho, de Manuel Jesús Mateo Romero, traz uma crítica à legislação espanhola a respeito do Direito Penal Viário. Sabe-se que este âmbito é um dos que mais têm sofrido reformas penais também no Brasil, quase sempre com avanços de barreiras de imputação e recortes de garantias. Daí a importância do trabalho crítico de Mateo Romero, mediante a exploração de um problema prático.

O quarto artigo também trata de um tema atualíssimo: a internação compulsória em casos de envolvimentos com drogas. A medida certamente é bastante polêmica e merecedora de severa crítica da consagrada professora Doutora Maria Lucia Karam, quem,

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com os habituais brilhantismo e lucidez, aponta a falácia da promessa da medida e, ao mesmo tempo, seus efeitos colaterais deletérios, tudo dentro de um panorama revelador da política criminal equivocada que o Brasil tem empreendido nesta área.

No quinto texto, de minha autoria, enfrenta-se um problema de parte especial de Direito Penal relativo à combinação de qualificadoras e privilégio no homicídio, em que se procura revelar uma face relativamente inexplorada de um aparente paradoxo legal.

Em seguida, recebemos, agradecidos, a primeira contribuição do Doutor Daniel Laufer para nossa Revista. Trata-se de um cuidadoso trabalho a respeito da política criminal brasileira, orientando a crítica a respeito de um Direito e de um Processo Penal de emergência às suas bases sociológicas, apontando para as suas conexões com o fenômeno da globalização. Analisa-se como essa interferência gera incongruências, fazendo com que o sistema punitivo se volte a uma mera postura simbólica de gerenciamento de consequências em prejuízo do enfrentamento das causas da criminalidade, produzindo ainda, neste caminho, recortes de garantias individuais.

Também iniciando sua colaboração com nossa Revista, o Doutor Luiz Henrique Urqhardt Cademartori, da Univali, de Santa Catarina, apresenta um trabalho no qual se estabelece uma ponte entre a realidade brasileira e os argumentos expendidos por Ronald Dworkin a respeito da polêmica questão do aborto.

O oitavo trabalho retoma o viés epistemológico. O Mestre Fábio da Silva Bozza propõe um repensar dos fundamentos do poder punitivo a partir de uma análise dos fenômenos do delito e da pena a partir de um inovador viés de economia política, demonstrando como o Direito Penal fracassa como instrumento de controle da criminalidade nas sociedades neoliberais contemporâneas.

O penúltimo artigo é uma produção coletiva que bem demonstra a atividade do Grupo de Pesquisas que edita a Revista. À raiz de um projeto de iniciação científica na Universidade Federal do Paraná, Dener Rocha Bebiano, Evandro Vinícius Leonel dos Santos, Gabrielle Stricker do Vall e Giselle Mota Fylyk efetuaram importante levantamento bibliográfico a partir do qual foi composto, sob minha coordenação e revisão, uma concreta proposta dogmática de redução de danos derivados da intervenção penal, associada ao uso de mecanismos inovadores no campo da justificação (permissões) que pode ser usada em distintos setores da política criminal moderna.

Finalmente, o décimo artigo também faz parte da produção científica curitibana, em um trabalho orientado por mim e realizado por Luísa Isfer Ravanello, no qual é abordada a questão dos princípios constitucionais violados – em especial a legalidade – no emprego do Regime Disciplinar Diferenciado no âmbito da execução penal.

Fechamos o volume, como sempre, com outro precioso trabalho de Michelangelo

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Corsetti, com a Resenha dos Clássicos, apresentando as quatro partes do trabalho de Karl Binding: A culpabilidade em Direito Penal, o qual constitui marco importantíssimo na compreensão da evolução deste elemento central da teoria do delito.

Nossa oitava Revista preserva as razões que lhe deram origem e a motivação do seu crescimento. Isto é, a mescla entre autores consagrados e jovens pesquisadores entre perspectivas epistemológicas, políticas, criminológicas, dogmáticas, técnicas e práticas voltadas para o nosso objeto de estudo: o Direito Penal.

Esse ecletismo e visão democrática que se revela neste volume é o produto natural da postura que inspira todas as atividades do Grupo de Pesquisas Modernas Tendências do Sistema Criminal, a cujos membros agradeço sinceramente por termos chegado até aqui.

Curitiba, dezembro de 2013.

Paulo César Busato

Editor e Coordenador do Grupo de Pesquisas Modernas

Tendências do Sistema Criminal

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Índice

As Duas Faces de Edmund Mezger(Francisco Muñoz Conde) _________________________________________________________________ 9

La Epistemología del Concepto de Acción Significativa(Dália Carreño Dueñas) ___________________________________________________________________ 25

El Delito de Conducción con Exceso de Velocidad. Algunos Problemas Prácticos(D. Manuel Jesús Mateo Romero) ___________________________________________________________ 49

Internação Compulsória: Liberdade é Escravidão?(Maria Lucia Karam) ______________________________________________________________________ 103

Homicídio Mercenário e Causas Especiais de Diminuição de Pena: um Paradoxo Dogmático(Paulo César Busato) ______________________________________________________________________ 117

Direito Penal e Processual Penal de Emergência: Conceituação, Compreensão e Enfrentamento(Daniel Laufer) __________________________________________________________________________ 137

O Problema do Aborto Face ao Direito, Moral e Religião(Luiz Henrique Urquhart Cademartori) _______________________________________________________ 161

Fundamentos Epistemológicos do Poder Punitivo: a Influência do Neoliberalismo na Política Criminal Contemporânea(Fábio da Silva Bozza) _____________________________________________________________________ 173

Justificação Procedimental como Opção de Desenvolvimento de um Direito Penal Minimalista(Dener Rocha Bebiano, Gabrielle Stricker do Valle, Giselle Mota Fylyk, Evandro Vinícius Leonel dos Santos, Orientador: Paulo César Busato) ____________________________________________________________ 191

O Regime Disciplinar Diferenciado e o Princípio da Legalidade(Luiza Isfer Ravanello, Paulo César Busato) ____________________________________________________ 213

Resenha dos ClássicosA Culpabilidade em Direito Penal (Karl Binding)(Michelangelo Corsetti) ___________________________________________________________________ 237

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9Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 5, n. 8, p. 9-24, jan./jun. 2013

Resumo

O artigo apresenta a vida dupla mantida por Edmund Mezger, refletida em seu trabalho como penalista. Explora-se detalhadamente a fórmula excelente de seu Tratado de Direito Penal, um verdadeiro marco na evolução do estudo dogmático do Direito Penal, de desenho claramente democrático, devido ao contexto de sua época. Apresenta-se, em seguida, a guinada transformadora do autor coincidente com a ascensão ao poder dos governantes nacional-socialistas. Nesta segunda etapa, o autor, ao mesmo tempo, abandonou seu Tratado, publicou um livro de Criminologia e, em diversos artigos esparsos, foi progressivamente revisando seus pontos de vista, mostrando-se ajustado às perspectivas raciais e totalitárias do Regime. Finalmente, demonstra que, no pós-guerra, derrotado o nacional-socialismo, cinicamente o autor retomou o estudo dogmático, apartando-se da política criminal que até então professara.

Palavras-chave: Direito Penal. Edmund Mezger. Política Criminal. Dogmática Jurídico-Penal.

ABsTRACT

The article shows the double life maintained by Edmund Mezger, reflected in his work as a Criminal Law Professor. It explores in detail the excellent formula of its criminal law treaty, a milestone in the evolution of the dogmatic study of criminal law, clearly drawing democratic, seen in the context of his time. After that, the article presents, the author’s transformative yaw coincident with the rise to power of the rulers national socialism. In this second step the author at the same time abandoned his treatise, published a book of Criminology and, in several articles, sparse was progressively reviewing its views, showing racial perspectives adjusted to the totalitarian regime. Finally, demonstrates that, in the post-war years, defeated national socialism, cynically resumed the dogmatic study author, the author return to dogmatic discussion, breaking up the criminal policy which until then defends.

Keywords: Criminal Law. Edmund Mezger. Criminal Policy. Criminal Law Dogmatics.

As DuAs FACes De eDmuND meZGeR1

The Both sides of edmund mezger

Francisco Muñoz Conde2

1 Este texto foi publicado inicialmente como prólogo para Edmund Mezger, em “Tratado de derecho penal”. Tradução e notas de José Arturo Rodríguez Muñoz, reimpressão da edição espanhola de 1935, dois tomos. Buenos Aires: Editorial Hammurabi, 2010. Tradução para o português de Paulo César Busato.

2 O autor é Catedrático de Direito Penal da Universidade Pablo de Olavide, de Sevilha, Espanha.

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Em 24 de março de 1962, morreu em um hospital de Göppingen, com 79 anos, aquele que foi o mais importante penalista alemão da primeira metade do século XX: o autor deste Tratado de Direito Penal, o Catedrático da Universidade de Munique, Edmund Mezger.

Com esse autor, chegou ao cume uma forma de entender e explicar o Direito Penal, a chamada Dogmática jurídico-penal, a qual surgiu com esplendor na Alemanha pujante e avassaladora tanto econômica como tecnológica e culturalmente do fim do século XIX. Com ela, tratava-se de elaborar fundamentalmente uma Teoria Jurídica do Delito que servisse como uma espécie de gramática comum a todos os delitos em particular. Destes se extrai elementos relativamente constantes e se constrói um edifício conceitual em forma piramidal, cuja base é a ação, à qual logo se acrescenta, degrau a degrau, uma série de categorias, tipicidade, antijuricidade, culpabilidade e determinadas condições objetivas de punibilidade, que progressivamente vão delimitando os diferentes níveis de imputação da responsabilidade penal. O caráter sequencial dessa construção, em princípio puramente sistemática e que já tinha sido exposta em suas características essenciais por quem foi mestre e orientador da tese de Mezger – Ernst Beling, em sua fundamental obra “Die lehre vom verbrechen” (A teoria do delito), em 1907, e foi continuada por Max Ernst Mayer, em seu Tratado de 1922 –, adquiriu no Tratado de Mezger uma dimensão material valorativa ao relacionar cada uma dessas categorias com determinados valores e princípios jurídicos, seguindo os padrões do movimento neokantiano, que a partir da escola do sudeste alemão havia se introduzido também na Filosofia do Direito em virtude dos trabalhos de Rickert.

Para o penalista alemão, a conduta humana, voluntariamente realizada, é o substrato comum tanto à ação em sentido estrito quanto à omissão própria e imprópria (comissão por omissão) (Cf. § 12, 13 e 14). Entre ela e o resultado (nos delitos de lesão), é requerida uma determinada relação de causalidade, na qual, partindo da teoria da equivalência das condições e assumindo as restrições que a teoria da causalidade adequada fazia a ela, limitam-se às causas que podem considerar-se juridicamente relevantes (Cf. § 15).

Com essa concepção jurídica da causalidade, o autor estabelece as bases do que depois ficou conhecido como Teoria da Imputação Objetiva, na forma em que a elaborou e desenvolveu posteriormente Claus Roxin. Contudo, diferentemente do que fez Roxin, Mezger não ofereceu critérios claros sobre o que deve ser entendido no plano causal como juridicamente relevante, deixando a solução desse problema para a interpretação do sentido dos correspondentes tipos penais.

Para fundamentar a comissão por omissão ou omissão imprópria, ou seja, a imputação de um determinado resultado a um simples não atuar, Mezger exige, além da posição de garantidor de quem omite, uma ação esperada que deveria realizar o sujeito

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com base em uma obrigação legal, assumida voluntariamente ou a criação precedente de uma situação de perigo (ideia da ingerência) (Cf. § 16).

A essa base, Mezger acrescentou a antijuricidade, entendida como a contradição entre a ação exteriorizada e as normas objetivas valorativas do Direito. Para o autor, a diferença entre antijuricidade e culpabilidade deriva da diferença entre normas objetivas de valoração, que constituem o fundamento da antijuricidade, e normas subjetivas de determinação, que servem de fundamento à culpabilidade. As primeiras correspondem à ordenação objetiva da vida, tarefa que corresponde ao Direito e se dirige a todos os cidadãos; enquanto as segundas derivam das primeiras e se dirigem somente àquele que está pessoalmente obrigado. Disso deriva a separação entre antijuricidade objetiva e a culpabilidade subjetiva (§ 19). Porém, essa separação entre antijuricidade e culpabilidade, que corresponde à separação entre o objetivo e o subjetivo, não é tão taxativa em Mezger como em seus predecessores: von Liszt, Beling ou Marx Ernst Mayer. Pois, como já havia destacado em um trabalho anterior que constituiu a base de seu Tratado, “Die subjektiven Unrechtselemente” (Os elementos subjetivos do injusto), publicado em 1924 na Revista Gerichtssaal, às vezes a constatação da antijuricidade de uma conduta requer a presença de determinados elementos subjetivos, intenções, tendências, móveis etc., sem os quais a ação carece de relevância penal. Isso sucede em alguns delitos, como o furto, no qual é necessário que a apropriação da coisa móvel alheia se dê com ânimo de assenhoramento e não de mero uso: os abusos sexuais, que requerem um particular ânimo lascivo, o ânimo de injuriar na injúria etc. (§ 20). Com isto, Mezger abriu a porta a uma subjetivização parcial e excepcional da antijuricidade entendida de um modo predominantemente objetivo.

A antijuricidade somente adquire relevância penal, segundo esse autor, na medida em que o legislador a converta no pressuposto de fato de uma norma penal, ou seja, converta-a em uma conduta antijurídica tipificada na lei penal como delito. Na construção do penalista, a tipicidade, cuja autonomia na teoria do delito tinha cunhado Beling como uma categoria meramente descritiva, não é uma mera descrição neutra do evento delitivo objetivo externo, nem sequer, como pretendia Max Ernst Mayer, um indício da antijuricidade do fato, mas a própria essência (ratio essendi) da antijuricidade. O delito não é a conduta típica e antijurídica, mas a conduta “tipicamente antijurídica”. Portanto, aquele que atua tipicamente atua também antijuridicamente, contanto que não exista uma causa de exclusão do injusto (§ 22).

Quiçá, o mais relevante dessa concepção da antijuricidade em Mezger como injusto típico ou conduta humana tipicamente antijurídica é o conteúdo material que lhe atribui como lesão ou colocação em perigo de um bem jurídico. Com isto, introduz como elemento fundamental da teoria do delito o conceito de bem jurídico, o qual já havia sido elaborado próximo do século XIX por Birmbaum como critério que serve de

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fundamento à intervenção do Direito Penal. A missão do Direito Penal não seria outra além da proteção de bens jurídicos, entendida como a participação da vontade individual ou social na manutenção de um determinado Estado (§ 25).

Para Mezger, o bem jurídico é, além disso, a diretriz na interpretação do tipo delitivo, dando lugar à forma de interpretação que se denomina interpretação teleológica. Mezger resolve o círculo vicioso que se produz ao entender que a determinação e o conhecimento do bem jurídico se logra mediante a interpretação da lei e, ao mesmo tempo, é o critério que serve para sua interpretação. Ele o faz considerando que o conceito de bem jurídico se deduz dos fundamentos últimos do Direito, do total complexo de cultura e da ideia racional do próprio Direito que consiste em criar um equilíbrio justo entre os interesses da coletividade e do indivíduo (§ 26).

Da concepção da antijuricidade material como lesão de bens jurídicos, deduz Mezger que esta fica excluída quando desaparece o interesse por vontade de seu titular nos casos em que este pode dispor validamente do bem jurídico, ou quando se trata de salvar um interesse preponderante de valor superior ao que se sacrifica. Com esse critério dualista, as causas de exclusão da antijuridicidade ou causas de justificação são classificadas entre as que supõem ausência de interesse (consentimento) e as que supõem um interesse preponderante (exercício de direitos e deveres preponderantes, legítima defesa, estado de necessidade – Cf. a exposição de cada uma delas nos § 27 a 31). A tais princípios, Mezger acrescenta um princípio geral de justificação derivado da avaliação de bens jurídicos, o que, ante à estreiteza com que se regulava no Código Penal alemão o estado de necessidade, permitia uma causa geral de exclusão da antijuridicidade de caráter supralegal que já fora admitida no Tribunal Supremo alemão para justificar o aborto realizado para salvar a vida da mãe, e que Mezger estendeu ao tratamento médico curativo (§ 32).

Quiçá, onde Mezger melhor reflita o ponto culminante da Dogmática Jurídico-Penal alemã imediatamente anterior à elaboração de seu Tratado é na construção do conceito de culpabilidade (§ 34-49). A concepção clássica dessa categoria era meramente psicológica, a qual se esgotava na constatação da imputabilidade, maioridade penal e normalidade mental do autor do delito, como também na relação psíquica existente entre o autor e seu ato, fosse este atribuível ao dolo ou à culpa ou à imprudência. Esta era, por exemplo, a concepção da culpabilidade que Franz von Liszt mantinha em seu Tratado de Direito Penal no final do século XIX. Enquanto isso, elaborava-se uma construção mais refinada e ajustada à realidade desde que Reinhard Frank, em 1907, tinha publicado uma breve monografia – “Der Aufbau des Schuldbegriffs” (A estrutura do conceito de culpabilidade) –, na qual considerava a culpabilidade como uma reprovação que se fazia ao autor do delito, também leva em conta, junto com a imputabilidade e o dolo e a culpa, suas circunstâncias pessoais. Isso deu lugar para que Mezger admitisse umas causas específicas de exclusão

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da culpabilidade nos casos de excesso na legítima defesa, de força ou coação, estado de necessidade em caso de perigo para a vida e a saúde e de obediência devida (§ 48). Essa concepção da culpabilidade chamada normativa foi culminada pela introdução da teoria da não exigibilidade, elaborada por Goldschmidt e Freudenthal, que, em uma época de crise econômica e social, como foi a da República de Weimar, depois da derrota da Alemanha na Primeira Guerra Mundial e nas condições humilhantes que lhe foram impostas pelas potências vencedoras no Tratado de Versalles, propunha a absolvição de quem, em circunstâncias extremas, por medo, por exemplo, de perder seu emprego, se via obrigado a cometer um fato delitivo. Mezger assume em seu Tratado esta proposta como culminação de seu conceito de culpabilidade (§ 49), entendendo que o pensamento jurídico-penal como pensamento individualizador não pode utilizar somente critérios formais e rígidos, mas demanda formas que tornem possível uma adaptação às necessidades da vida concreta.

Em todo caso, Mezger considera que a culpabilidade é culpabilidade pelo ato isolado: uma reprovação que se faz ao autor do fato tipicamente antijurídico que pode atuar de uma maneira distinta de como fez, e rechaça expressamente que possa haver uma culpabilidade pelo caráter ou uma culpabilidade em si na qual o fato delitivo apenas seja um sintoma dela. No centro do conceito de culpabilidade situa a personalidade do sujeito consciente do fim e suscetível de ser motivado por normas jurídicas (§ 34 e 35), considerando a imputabilidade do autor do delito, ou seja, sua capacidade para ser considerado culpável, como o pressuposto e porta de entrada do conceito de culpabilidade. Nesta matéria, destacam suas reflexões sobre as alterações das faculdades intelectivas e volitivas que determinam a ausência ou diminuição da capacidade de culpabilidade, nas quais inclui profundos conhecimentos psicológicos e psiquiátricos em consonância com o nível de desenvolvimento da Psiquiatria daquela época (§ 39).

A relação psicológica entre o autor e seu ato se configura juridicamente de duas formas: por um lado, como dolo, caracterizado por um elemento intelectual, o conhecimento das circunstâncias do fato e o significado de sua ação, e outro volitivo, consistente na admissão do resultado na vontade (§ 42); e, por outro, como culpa, entendida como infração de um dever de cuidado que pessoalmente incumbe ao autor da ação, podendo ou devendo prever a aparição de um resultado (§ 46).

Ambas as formas de culpabilidade, do mesmo modo que a ação, requerem um querer, mas enquanto a ação pertence a tudo o que é efeito do querer, no dolo e na culpa essa vontade tem um determinado conteúdo, que é expressão juridicamente desaprovada da personalidade do autor. Nisso reside a diferença fundamental entre a construção sistemática de Mezger e a que Hans Welzel propôs anos mais tarde com sua teoria finalista da ação, na qual, como é sabido, o dolo (e em parte a culpa) passa a fazer parte do tipo de injusto. Enquanto em Welzel o dolo é apenas o conhecimento (e vontade) dos elementos

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da tipicidade e dele se separa o conhecimento da antijuricidade que segue mantido na culpabilidade (teoria da culpabilidade), em Mezger, ambas as classes de conhecimento são elementos integrantes do dolo, e requerem um conhecimento atual, que no caso do conhecimento da significação antijurídica somente requer um conhecimento “paralelo na esfera do profano”. Por conseguinte, para este último autor, tanto o erro sobre o tipo como o erro sobre a antijuricidade tem as mesmas consequências: excluir a imputação a título de dolo e manter a imputação, se está legalmente prevista e se dão os pressupostos da mesma, a título de culpa (teoria do dolo – Cf. § 44). Em todo caso, a redução das duas fontes de imputação subjetiva do fato delitivo ao dolo ou à culpa, leva, na construção de Mezger, à exclusão do Direito Penal da pura responsabilidade objetiva e outras formas arcaicas de responsabilidade pelo resultado derivado da construção medieval do versari in re illicita.

Na segunda parte do Tratado (B), Mezger se ocupa do que chama “especiais formas de aparição do delito”: a tentativa, a participação de várias pessoas e o concurso de delitos. A respeito da primeira, Mezger parte de que a resolução de cometer o delito é fundamento conceitual da tentativa, mas exige, coerentemente com sua concepção material da antijuricidade para sua punibilidade, a colocação em perigo do bem jurídico, o que, por sua vez, requer que tenham começado os atos de execução do delito, cujas características objetivas e diferenças com os atos meramente preparatórios deduz formalmente do tipo legal e ao mesmo tempo, materialmente, do bem jurídico protegido (§ 51 e 52). Essa restrição objetiva uma concepção puramente subjetiva do fundamento da tentativa, sobretudo, nota-se na exposição que faz da idoneidade da tentativa (§ 53). Contra a tese subjetiva que mantinha o Tribunal Supremo Imperial alemão, a qual levou, por exemplo, a castigar a tentativa de aborto com meios absolutamente inidôneos ou no caso de mulher que não estava grávida (crendo a autora do fato, obviamente, que estava), Mezger mantém um ponto de vista objetivo, requerendo para sua punibilidade que a tentativa seja perigosa em relação ao bem jurídico material de que se trata, pelo que, nestes casos, não haveria delito por “ausência de tipo”.

Em relação à participação, Mezger parte de um conceito extensivo de autor, segundo o qual sempre e somente é punível aquele que causou o resultado mediante sua ação. Do mesmo modo que a teoria causal da equivalência das condições, a equivalência causal das distintas contribuições pessoais à realização de um delito, não supõe idêntica valoração jurídica; daí que Mezger aceite, seguindo o critério do Código Penal alemão, uma ulterior distinção entre as diversas formas de autoria (direta, coautoria, autoria mediata) e participação (instigação e cumplicidade) (§ 57). Para ele, essa distinção é apenas produto de uma valoração jurídica, já que em essência toda contribuição causal ao delito fundamenta a própria responsabilidade penal, e do fato de que as formas de participação, especialmente a cumplicidade, tenham um tratamento penal de menor gravidade deduz

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que, no fundo, são “causas de restrição da pena”, e, como aceita um setor doutrinário, “causas de extensão da pena”. Essa forma de entender a participação é o que o leva, por exemplo, também a rechaçar aqui a teoria subjetiva que, para diferenciar entre coautoria e cumplicidade, recorreria ao ânimo do sujeito, se atuava com ânimo de autor (animus auctoris) era tal, mas se o fazia com ânimo apenas de ajudar (animus socii) era cúmplice.

Para Mezger, a distinção deve basear-se em uma teoria objetiva formal, segundo a qual o cúmplice não executa a ação típica, mas apenas ajuda a sua realização (§ 62); tanto a cumplicidade como a instigação ou indução são acessórias da autoria, e, em consequência, se o ato principal do autor não é antijurídico e culpável, não podem ser castigadas como tais, sem prejuízo de que se possa exigir uma responsabilidade penal com base em outras figuras (autoria mediata, tentativa etc. – princípio da acessoriedade máxima da participação) (§ 63).

A teoria do concurso de delitos se ocupa de três questões fundamentais: 1. Quando existe uma só ação, e quando várias? 2. Como se deve julgar uma ação quando corresponde a vários tipos penais? 3. Como se deve julgar a pluralidade de ações? Nessas três questões, discute-se as diferenças entre as diversas classes de concurso de delitos, ideal e real, e entre o concurso de delitos e o de leis. Para a delimitação do conceito de unidade de ação, básico para delimitar as distintas classes de concurso de delitos, Mezger, depois de adotar como ponto de partida um conceito de unidade natural de ação baseado em um único ato de vontade (§ 66), atende à interpretação dos respectivos tipos penais e introduz também elementos valorativos baseados na experiência diária, a continuidade temporal etc. Disso, deduz que pode haver também uma unidade jurídica de ação no caso de uma pluralidade de ações naturais. Quando esta unidade de ação jurídica dá lugar à realização de vários tipos delitivos, deve ser tratada como um concurso ideal, salvo que por aplicação das regras do concurso de leis (subsunção, absorção, especialidade e alternatividade), apenas um deles entra em consideração, excluindo a aplicação dos demais (§ 67 a 69).

A exposição da Teoria do Delito, que constitui a segunda parte do Tratado, vai precedida, como é lógico, da primeira parte, a qual trata da Teoria da Lei Penal. Essa Teoria, além do conceito e história do Direito Penal (§ 1 a 3) e de uma exaustiva exposição da bibliografia e do Direito Penal comparado existente naquele momento (§ 4 a 6), ocupa-se da esfera de validade espacial, temporal e pessoal da lei penal (§ 7 a 9), do princípio de legalidade penal, com uma interessante reflexão sobre o caráter de Direito fundamental que tem o mesmo na Constituição alemã de 1919 e sua diferente enunciação no Código Penal de então (§ 10), e da interpretação da lei penal, na qual dá grande importância à interpretação teleológica, conforme aos fins do Direito Penal, o que o leva a introduzir logo na Teoria do Delito princípios gerais, como a valoração de bens jurídicos ou a teoria da não exigibilidade (anteriormente mencionado), mas rechaça, em todo caso, sua aplicação analógica, ainda que destaque as dificuldades que há para diferenciar interpretação de analogia (§ 11).

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O Tratado termina com uma terceira parte dedicada à Teoria da Pena, mais breve que as duas precedentes. Nela, parte de um conceito retributivo de pena entendido como privação de bens jurídicos que recai sobre o autor em razão do fato culpável. Mas isso não é incompatível com assinalar à pena o cumprimento de finalidades de caráter preventivo geral e preventivo especial, além de garantir de maneira justa os interesses do indivíduo, respeitando sua personalidade (§ 75). Desse modo, Mezger se situa em uma posição eclética que naquela época já se impunha frente à anterior “Luta de Escolas”, que dividiu a ciência alemã do Direito Penal em final do século XIX entre os partidários da retribuição (Binding) e os partidários da prevenção especial (von Liszt). Não deixa de ser destacável, porém, que se acrescente o respeito à personalidade do delinquente como um fim independente que exige que o indivíduo não seja castigado são pelo que valem seus atos: “Aqui – diz – constitui o pensamento da retribuição, ao qual não é imanente, na verdade, nada ‘místico’, o firme baluarte contra ataques injustificados na esfera jurídica do particular”. Em consequência, atribui escassa relevância às medidas de segurança, como privação da liberdade adicional à pena, baseadas na periculosidade, e ainda que não descarte de lege ferenda uma espécie de pena de segurança que cumpra as funções de ambas, considera que à consciência jurídica do presente corresponde melhor um sistema dualista, ou seja, a separação estrutural entre pena e medida de segurança (§ 76).

2

Até aqui, esses são os aspectos que me parecem mais importantes desta completa exposição sistemática da Parte Geral do Direito Penal que constitui o Tratado de Direito Penal de Edmund Mezger. Desde sua primeira edição alemã, em 1931, causou um grande impacto não só na Alemanha, mas em muitos outros países, particularmente na Espanha, onde o mais importante e prestigiado penalista, o catedrático de Direito Penal da Universidade de Madrid, Luís Jiménez de Asúa, discípulo direto de Von Liszt e cotradutor de seu Tratado de Direito Penal para o espanhol, tinha realizado conscientemente um giro desde suas posições originais, mais afins à Política criminal e inclusive à Criminologia, para a proposta dogmática representada ao seu máximo nível nesse momento pelo Tratado de Direito Penal de Mezger. Já em 1931, Jiménez de Asúa dedicou-se à teoria Jurídica do Delito, de acordo com essas propostas dogmáticas, sua lição inaugural do curso na Universidade de Madrid, logo encarregou seu discípulo José Arturo Rodríguez Muñoz da tradução ao espanhol do Tratado de Mezger, do qual, em pouco mais de um ano, tinha saído na Alemanha uma segunda edição (1933), que foi finalmente a que se verteu ao espanhol, aparecendo em dois tomos publicados pela editorial “Revista de Derecho Privado”, Madrid, 1935.

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Logo, essa tradução se converteu em um texto de referência obrigatória para todos os penalistas de fala espanhola, e isso, não apenas pelos valores da própria obra, mas também pela excelente tradução que levou a cabo Rodríguez Muñoz. Nela, não só conseguiu verter claramente e em bom castelhano o texto alemão, mas também cunhou os termos técnicos que expressavam com fidelidade e elegância os equivalentes alemães. O exemplo mais conhecido e representativo é a tradução do termo alemão Tatbestand, literalmente traduzível como “pressuposto de fato”, pelo termo espanhol de “tipo”; e o de Tatbestandsmässigkeit, literalmente traduzível como “adequação ao pressuposto de fato”, como “tipicidade”, com o que a definição do delito como ação “típica”, antijurídica e culpável, ficava linguisticamente perfeita sem perder nada de sua fidelidade ao texto original.

Mas não foi este o único mérito de Rodríguez Muñoz. Tanto ou mais relevante que a tradução, foi a adição de umas agudas e inteligentes notas, nas quais não só às vezes completava, comentava ou criticava com observações próprias algumas das teses que Mezger expunha em seu Tratado, mas também o que foi fundamental para o nascimento do interesse pela Dogmática Jurídico-Penal nos países de fala espanhola, aplicando tais teses para resolver problemas interpretativos do Direito Penal vigente na Espanha, demonstrando a necessidade e conveniência de seu conhecimento tanto no âmbito da docência como no da praxis do Direito Penal. A partir desta tradução, praticamente não houve na Espanha Tratado ou exposição do Direito Penal que não seguisse quase literalmente os parâmetros do Tratado de Mezger e os critérios que com base nele propunha Rodríguez Muñoz para a interpretação do Direito Penal espanhol.

Mas também logo sucedeu o mesmo na maioria dos países latino-americanos, ainda que isso se devesse principalmente a uma trágica e desgraçada coincidência, pois pouco tempo depois da publicação do Tratado de Mezger se desencadeou na Espanha uma pavorosa Guerra Civil (1936-1939), que determinou o exílio de um grande número de penalistas, encabeçados por quem naquele momento era o mais importante e prestigiado e mestre de muitos deles: o catedrático da Universidade de Madrid e político relevante durante a Segunda República, Luís Jiménez de Asúa. Praticamente, todos levaram em sua bagagem como valiosa mercadoria: o Tratado de Mezger. Isso, unido ao próprio prestígio dos que seguiram dedicando-se em sua maioria ao ensino do Direito Penal em diversos países e instituições acadêmicas latino-americanas, determinou que esse Tratado se convertesse no livro de cabeceira também dos penalistas do outro lado do Oceano, que, igualmente aos espanhóis que se exilaram ou ficaram na Espanha, utilizaram-no como base de seus próprios Tratados e exposições doutrinárias.

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Depois de todo o dito, pensa-se que o Tratado de Mezger deveria ter seguido uma trajetória triunfante similar, sobretudo, na própria Alemanha, na qual em pouco mais de um ano já tinha chegado a ter duas edições, especialmente tendo em conta que no início de 1933, o ano da aparição da segunda edição do Tratado, Edmund Mezger chegava triunfante e em pleno apogeu acadêmico, procedente da Universidade de Marburgo, onde havia sido catedrático por vários anos, à Universidade de Munique, como sucessor de seu mestre Ernst Beling. Porém, não foi assim. Por razões que agora tratarei de explicar brevemente, Mezger nunca mais voltou a revisar seu Tratado, do qual só fez uma reedição inalterada, em 1949, e, em vez disso, pôs-se imediatamente a trabalhar em outras questões que aparentemente lhe interessavam muito mais ou lhe eram politicamente mais afins. Quase ao mesmo tempo em que Mezger tomava posse de sua cátedra em Munique, Adolf Hitler, tomava posse de seu cargo de Primeiro Ministro do governo que tinha surgido depois de umas eleições nas quais não conseguiu a maioria, mas que logo depois do incêndio do Reichstag, provavelmente provocado pelos próprios nazistas, assumiu o poder absoluto. É evidente que um evento desse tipo, que em pouco tempo comoveria a política e a sociedade alemã e a paz e a estabilidade em todo o mundo, não podia deixar de ter consequências para o Direito Penal e para as pessoas que se dedicavam ao seu estudo. No caso de Mezger, logo se dedicou à renovação de sua concepção do Direito Penal de acordo com os postulados ideológicos propugnados pelo regime nacional-socialista.

Já no Prólogo, datado de 15 de outubro de 1933, no dia em que cumpria 50 anos, a sua “Kriminalpolitik auf kriminologischer Grundlage” (Política criminal em seu fundamento criminológico, traduzida ao espanhol em 1941, também por Rodríguez Muñoz, mas desta vez sem mais notas nem comentários do tradutor), refletia claramente quais deviam ser as finalidades do Direito Penal do novo regime, tendo em conta que “o novo Estado total se constrói sobre as duas idéias básicas de povo e raça”. Em consequência, assinalava à pena a tarefa de “exterminar (Ausmerzung) os elementos daninhos ou parasitas (schädlichen) da raça […]. Pois a raça e qualquer outra peculiaridade condicionada hereditariamente determina não só diretamente a forma de delinquir do indivíduo, mas também toda sua atitude social dentro da comunidade”.

Essa afinidade ideológica com o novo regime e seu próprio prestígio como autor do mais importante Tratado de Direito Penal daquela época, levaram-no imediatamente a ser nomeado membro da Comissão para a Reforma do Direito Penal, que logo aprovou os principais textos do novo Direito Penal: a lei para o tratamento do delinquente habitual, que introduzia no Código Penal a medida de internamento em custódia de segurança por tempo indeterminado e inclusive a pena de morte para os reincidentes; a admissão

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da analogia como fonte do Direito Penal “conforme ao são sentimento do povo”; e a esterilização coercitiva dos portadores de enfermidades hereditárias, que Mezger propunha também para os associais e determinados tipos de delinquentes3

Paralelamente ao seu trabalho como assessor dessas reformas legais, Mezger continuou com seu trabalho como professor universitário e publicou diversos trabalhos, nos quais, pouco a pouco, foi abandonando os princípios acolhidos em seu Tratado, adaptando-os à nova concepção do Direito Penal.

Durante todos aqueles anos, Mezger se converteu no grande penalista teórico do novo regime, curiosamente sem mencionar sequer seu Tratado, mas fazendo manuais de divulgação para jovens estudantes de Direito, como o “Leifaden” (Deutsches Strafrecht, 1936) ou o “Grundriss” (Deutsches Strafrecht, 1938), nos quais expunha os princípios básicos do novo Direito Penal; ou publicando trabalhos mais profundos e extensos nos quais revisava as concepções básicas mantidas em seu Tratado e as substituía por outras mais em consonância com a ideologia do regime nacional-socialista. Assim, por exemplo, como fonte última do Direito Penal, em lugar do princípio de legalidade já soterrado pela admissão da analogia, invocava a “vontade do Führer”, que também servia para determinar o conteúdo material da antijuricidade, considerando que no futuro o Direito Penal será

um instrumento chamado especialmente nas mãos do Führer a configurar e conformar a vontade política alemã. A ele se transmitiu a formação consciente das sãs concepções do povo como uma missão especial e com isto é um fator decisivo para determinar o que se entende por antijuricidade material (cf. seu artigo “Die materielle Rechtswidrigkeit im kommenden Strafrecht” – A antijuricidade material no Direito Penal futuro –, in “Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft”, 1936).

Pouco a pouco foi substituindo a concepção da culpabilidade pelo ato isolado mantida em seu Tratado, por uma “culpabilidade pela condução de vida”, que servia para fundamentar a culpabilidade de quem, ainda que no momento de cometer o delito não fosse culpável, era responsável pela forma com que tinha conduzido sua vida anteriormente. Em seu importante artigo “Die Straftat als Ganzes” (o fato punível como totalidade), publicado na revista mais importante do Direito Penal alemão, “Zeitschrift für die gesamte Strafrechtswissenschaft”, 1938, propugnava também uma consideração totalizadora que superasse sua anterior tripartição do conceito de delito. Para terminar modificando sua teoria do dolo, a qual exigia o conhecimento atual da antijuricidade do

3 “Inwieweit werden durch Steriliseirungsmassnahmen Asoziale erfasst?”, publicado no tomo V das Mitteilungen der kriminologischen Gessellschaft, Graz 1938, e traduzido por mim e incluído como Apêndice no meu livro Edmund Mezger y el Derecho penal de su tiempo, 4. ed., Valencia, 2004.

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fato substituindo-a por uma teoria da “cegueira ou inimizade jurídica”, a qual permitia aplicar a pena do delito doloso (que podia ser inclusive a de morte), nos casos nos quais o sujeito certamente não conhecia a antijuricidade do seu fato, mas devido à sua atitude de inimizade ou cegueira jurídica derivada de sua forma de condução de vida ou de sua falta de pertencimento à “comunidade do povo”, deveria ser castigado como se a conhecesse, sobretudo, se se tratava de “crimes odiosos como o aborto, a realização de ações homossexuais ou o ultraje à raça” (Cf. artigo “Rechtsirrutm und Rechtsblindheit” – Erro de Direito e cegueira de Direito –, publicado no “Fetschrift für Kohlrausch”, 1944).

Por tudo isso, não é estranho que quando o regime nacional-socialista começou a cair, sobretudo depois da derrota em Stalingrado e a queda da frente russa, em 1943, e o desembarque das tropas das potências ocidentais na Normandia, em 1944, aumentando os conflitos, a oposição, o desgosto e a desordem social na população, perturbada pelos constantes bombardeios aéreos, o Ministro do Interior e Chefe das SS, Heinrich Himmler, e o de Justiça, Thierack, pensaram em Mezger – cuja afinidade e fidelidade com o regime nazista estava fora de toda dúvida – para dar aparência de juridicidade a uma das criações jurídicas mais monstruosas do final do regime nacional-socialista: a lei para o tratamento dos “estranhos à comunidade”, um eufemismo que inventou o próprio Mezger para possibilitar o internamento em campos de concentração junto a vagabundos, mendigos avessos ao trabalho, autores de delitos de pouca gravidade com inclinação delitiva, reincidentes etc., também dos dissidentes e opositores ao regime; sua esterilização “para prevenir uma herança indesejável”, ou a castração dos delinquentes sexuais, incluindo neles também aos homossexuais. Nessa tarefa, ajudou-o seu colega de Munique, o criminólogo Franz Exner, cuja “Biologia criminal” tinha sido traduzida ao espanhol por Juan del Rosal, e que logo foi advogado defensor de vários criminosos de guerra acusados nos Processos de Nuremberg.

Contudo, Mezger foi muito mais longe, depois de defender esse Projeto de Lei ante à Academia de Direito alemão, solicitou ao Chefe da Seção das SS encarregadas do controle dos Campos de Concentração, em março de 1944, uma visita aos campos de concentração “para observar in situ os tipos de sujeitos, queixosos e similares, que ali se encontravam”, deixando registro documental de que ao menos visitou o campo de concentração de Dachau, um dos mais importantes e mais severo entre muitos que houve durante o regime nacional-socialista.

Depois de tudo isso, compreende-se que Mezger pudesse ter alguns problemas depois da queda do regime nacional-socialista. Por certo, foi separado temporariamente de sua cátedra e submetido a um processo de desnazificação e, inclusive, esteve algum tempo detido em Nuremberg, mas saiu praticamente incólume. A Guerra Fria tinha começado e às potências ocidentais, especialmente aos Estados Unidos, interessava manter em seus postos os antigos nazistas que obviamente não eram suspeitos de nenhuma veleidade nem concomitância com os comunistas dos países do Pacto de Varsóvia.

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Assim, Mezger voltou à sua cátedra de Munique, recebendo, em 1953, um livro-homenagem por sua aposentadoria, sendo nomeado pelo governo de Konrad Adenauer, vice-presidente de uma nova Comissão de Reforma do Direito Penal, a qual teve uma participação importante na redação do Projeto de Código penal de 1957. Enquanto isso, publicou em 1950, como Apêndice da terceira edição de seu Tratado que tinha sido reeditado em 1949, uma breve monografia “Moderne Wege der Strafrechtsdogmatik” (Modernas orientações da Dogmática jurídico-penal, traduzida por mim no começo dos anos 1970, mas não publicada até 2000), na qual com grande cinismo dizia que teria de retomar o estudo mais profundo da Dogmática Jurídico-Penal que “nos últimos anos tinha ficado obscurecida por sua mais mundana irmã a Política criminal”, iniciando una polêmica com seu colega Hans Welzel, a quem não tinha praticamente citado nos anos anteriores, sobre o conceito ontológico de ação e a posição sistemática do dolo no sistema da teoria do Delito.

Suas propostas dogmáticas, porém, já não tinham a agudeza e profundidade das que tinha feito gala em seu Tratado. Tampouco devia importar-lhe muito isso. Durante os anos nos que esteve separado de sua cátedra à espera de ser “desnazificado”, redigiu um “Strafrecht, Kurz-Lehrbuch” (1948), uma espécie de Manual resumido de seu Tratado, e outro volume mais dedicado à Parte Especial (1949). Esse manual logo se converteu no mais difundido entre os estudantes de Direito dos anos de 1950 e de 1960 do século passado, continuado ainda uma década mais depois de sua morte por um discípulo seu Hermann Blei, professor na Universidade Livre de Berlim, e que foi traduzido ao espanhol na Argentina por Conrado Finzi, professor da Universidade de Córdoba, filho de um penalista italiano Marcello Finzi, que teve que se exilar da Itália por aplicação da Lei anti-hebraica, introduzida, em 1938, por Mussolini, na Itália, à imagem e semelhança do que Hitler havia feito na Alemanha com as tristemente famosas Leis de Nuremberg, em 1935. Por certo que, como a própria filha de Conrazo Finzi teve ocasião de manifestar-me pessoalmente, seu pai jamais soube nem pode suspeitar das vinculações de Mezger com o regime nacional-socialista.

Essas vinculações foram provavelmente o segredo mais bem guardado dos quais soube a Ciência do Direito Penal de todos os tempos. Por isso, quando, pouco a pouco, fui descobrindo os documentos e dados que demonstravam de modo fiável a vinculação de Mezger com o regime nacional-socialista e com as construções jurídicas mais aberrantes do mesmo (Cf. Francisco Muñoz Conde, “Edmund Mezger y el Derecho Penal de su Tiempo”), também me surpreendi e, até certo ponto, decepcionado, porque como muitos penalistas de minha geração e das duas precedentes, foi em seu Tratado que aprendi minhas primeiras e melhores noções da Dogmática do Direito Penal e o livro ao qual naquela época recorria para resolver as muitas dúvidas que me assaltavam quando pouco a pouco ia me introduzindo nos complicados meandros da Teoria do Delito.

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Ainda hoje, manejo para redigir essa introdução no caderno onde, pacientemente, há mais de 40 anos, fui escrevendo um resumo e as anotações que a leitura deste Tratado ia me sugerindo. Tal Tratado foi o primeiro livro importante de Direito Penal que comprei de meu próprio bolso na livraria madrilenha de Marcial Pons. E foi esse livro que me impulsionou a estudar em profundidade o idioma alemão, inclusive a traduzir a monografia “Moderne Wege der Strafrechtsdogmatik”, a formar-me naquele país, e, posteriormente, a traduzir outros livros, tratados e monografias de outros prestigiados autores alemães, só ou junto com outros colegas, que, como eu, admiravam e conheciam perfeitamente o Tratado de Mezger. Esse Tratado seguia sendo nosso livro de referência, por mais que já naquela época houvesse outras propostas, principalmente baseadas nos postulados sistemáticos da teoria final da ação e começava a considerar-se antiquado o causalismo de Mezger frente à mais moderna concepção finalista da Teoria do Delito.

Depois, chegaram as propostas funcionalistas dos Tratados de Roxin e Jakobs, ressalvando as diferenças entre um e outro, nos quais de algum modo esta polêmica se considera superada. Mas ainda hoje o Tratado de Direito Penal de Edmund Mezger segue sendo um livro de referência obrigatória e, desde então, de leitura e estudo absolutamente recomendáveis, porque nele se pode encontrar ainda muitas questões que a Dogmática Jurídico-Penal atual segue resolvendo do mesmo modo que, em seu tempo, resolvia Edmund Mezger em seu Tratado.

Mas apesar de muito que devo ao estudo deste Tratado em minha formação como penalista, creio que foi também minha obrigação ter revelado, quando a descobri e voltar a fazê-lo agora, a “outra cara de Edmund Mezger”, que praticamente tinha ficado oculta durante mais de 50 anos. Sua colaboração vergonhosa e entusiasta com um dos regimes políticos mais cruéis, desumanos e repugnantes dos que houve nas nações civilizadas nos últimos séculos. Ao trazê-la à luz, não descubro na realidade nada de novo; só destaco uma vez mais que, como a Historia da Humanidade mostra, nem nesta nem em nenhuma outra matéria científica, a mais refinada técnica, dogmática, gramatical ou artística, é incompatível com a barbárie e a desumanidade. Disso deve ser consciente também o leitor deste por demais excelente Tratado de Direito Penal, cuja reedição me parece um acerto pelo que felicito à editora Hammurabi e a seu diretor José Luís Depalma.

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ReFeRÊNCIAs

BILING, Ernst. Die lehre vom verbrechen. Tubingen: Mohr, 1906.

EXNER, Franz. Biologia criminal en sus rasgos fundamentales. Tradução de Juan del Rosal. Barcelona: Bosch, 1946.

METZER, Edmund. Criminologia. Tradução de José Arturo Rodríguez Muñoz. Madrid: Revista de Derecho Privado [1942]

______. Die subjektiven Unrechtselement, Gerichtssaal, v. 89, p. 205-314, 1924.

______. Tratado de derecho penal. Tradução de José Arturo Rodriguez Muñoz. Madrid: Revista de Derecho Privado [c1935]. 2 v.

MUÑOZ CONDE, Francisco. edmundo metzger e o direito penal de seu tempo. Tradução de Paulo César Busato. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.

______. edmundo mezger y el derecho penal de su tiempo: estúdios sobre el derecho penal em el nacionalsocialismo. 2. ed. Valencia: Tirant lo Blanc, 2003.

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RESUMEN

Este trabajo aborda, una propuesta epistemológica hermenéutica de la Teoría de la Acción Significativa en el contexto de un derecho penal humanista, desde una perspectiva fuerte, como quiera que se configura en un giro, en un cambio del pensar del derecho contemporáneo o posmoderno. Esta Teoría de la Acción Significativa (TAS) se construye a partir de estructuras conceptuales básicas, que provienen de pensadores que son referencia en los nuevos paradigmas del pensamiento actual. Filósofos como Wittgenstein, Gadamer y Habermas han abierto la explicación y comprensión de los fenómenos complejos del hombre del siglo XXI, ás allá de las explicaciones positivistas.

Palabras-clave: Epistemología. Hermenéutica. Acción Significativa. Simbólico.

ABSTRAC

This paper addresses a possible proposal hermeneutics epistemological theory meaningful action in criminal law, from a strong, however it is set in a turn, a change in the thinking of contemporary law or postmodern. This theory of meaningful action (TAS) is built from basic conceptual structures, which come from thinkers that are referenced in the new paradigms of current thinking. Philosophers like Wittgenstein, Gadamer and Habermas have opened the explanation and understanding of complex phenomena XXI century man beyond the explanations given by positivism.

Keywords: Epistemology. Hermeneutics. Meaningful Action. Symbolic.

LA EPISTEMOLOGÍA DEL CONCEPTO DE ACCIÓN SIGNIFICATIVA

EPISTEMOLOGY OF SIGNIFICANT ACTION THEORY

Dalia Carreño Dueñas1

1 Licenciada en Filosofía y Letras, Licenciada en Filosofía y Ciencias Religiosas, Abogada, Especialista en Derecho Penal, Magister en Educación, estudiante cursos de Doctorado Intensivo en Derecho, Universidad de Buenos Aires. Docente Universidad Santo Tomás Colombia. Universidad Catolica de Colombia. Miembro del grupo de Investigación Social y Humanística, clasificado COLCIENCIAS C. E-mail: [email protected].

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INTRODUCCIÓN

El concepto de acción, es una de las nociones surgidas en el siglo XIX2, sin la cual no se podría estructurar el sistema del Delito actual, de ahí que una re- conceptualización en este orden, es fundamental y definitiva para el derecho penal posmoderno, como el característico del siglo XXI. La teoría de la Acción Significativa (TAS) en el orden jurídico punitivo contemporáneo, emerge como quiebre3 dentro del contexto de las grandes rupturas epistemológicas o cambios de paradigmas4 del siglo XX. Estos modelos son aportados por Wittgenstein5, Gadamer6 y Habermas7 entre los más relevantes, que llevaron a re-pensar los conceptos y las construcciones del lenguaje, el pensamiento y el sentido mismo de la vida humana en relación, en sociedad y como proceso.

2 Según Roxin, “aparece el concepto de acción por primera vez en el manual de Albert Friedrich Berner (1857) como piedra básica del sistema del delito”. ROXIN, Claus. Derecho penal: parte general; fundamentos. La estructura de la teoría del delito. Madrid: Civitas, 1997. v 1, p. 137.

3 La TAS, se configura también en ruptura epistemológica porque entraña una nueva forma de entender, la problemática y compleja teoría de la acción “El Prof. Vives va mostrando cómo los conceptos más adecuados cuando tratamos de definir qué queremos decir con acción, hacen sistemáticamente referencias al ámbito del sentido y de la interpretación […] La destrucción de una concepción objetivante de la acción, al igual que la destrucción de una concepción subjetivista de la acción, pues ése es el carácter de las teorías causales de la acción, por un lado, y de las teorías finalista de la acción, por otro, cunado además se las lleva a cabo casi a la par, para desembocar en una teoría significativa de la acción, esas dos destrucciones paralelas […] producen una especie de vértigo”. VIVES ANTÓN, Tomás. Fundamentos del sistema penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1996. p. 51-52.

4 El cambio de Paradigmas, en el sentido expresado por Kuhn, esta cimentado en las crisis como causa de las revoluciones científicas: “rompen la tradición a la que está ligada la actividad de la ciencia normal” KUHN, T. S. La estructura de las revoluciones científicas. Santafé de Bogotá: Fondo de Cultura Económica, 2000. p. 27.

5 Wittgenstein entroniza la filosofía analítica, cuya intención y propósito es explicar el mundo a través del juego del lenguaje como forma de vida, como expresión de sentido de la misma “La expresión <<Juego del lenguaje>> debe poner de relieve aquí que hablar el lenguaje forma parte de una actividad o de una forma de vida”. WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigaciones filosóficas. Barcelona: Instituto de Investigaciones Filosóficas UNAM, Grijalbo, 1988. p. 10.

6 Gadamer, afirma que el problema de la comprensión, es centro de la reflexión actual “El problema de la compresión ha ido adquiriendo actualidad en los últimos años, en parte al compás de las situación política y social del mundo y de la agravación de las tensiones que caracterizan nuestro presente”. GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método II. 10. ed. Salamanca: Sígueme, 1998. p.181.

7 Comenta Habermas de su intención de ruptura frente al conocimiento hegemónico “Si queremos seguir el proceso de disolución de la teoría del conocimiento, cuyo lugar ha sido ocupado por la teoría de la ciencia, tenemos que remontarnos a través de fases abandonadas de la reflexión. Volver a recorrer este camino desde un horizonte que apunta hacia su punto de partida puede ayudarnos a recuperar la perdida experiencia de la reflexión. Porque el positivismo es eso: el renegar de la reflexión”. HABERMAS, Jürgen. Conocimiento e interés. Madrid: Altea, Taurus, Alfaguara, 1989. p. 9.

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La TAS, estructura su base teórica en un modelo de Acción, dentro del horizonte hermenéutico de comprensión, apartándose del modelo positivista que justifica teorías de la acción causalista, finalista, entre otras. Así mismo está inscrita en el giro interpretativo que trajo la crítica fuerte al mundo moderno positivo. La TAS permite superar la mirada de algunos teóricos (objetivistas y subjetivistas) del derecho penal, que entendieron el hecho como manifestación nuda y concreta8. La TAS, supera esta perspectiva y ubica la acción en el derecho penal como sentido e interpretación. Como señala Busato9 de esta manera la TAS, se enmarca en un derecho penal de corte humanista.

1 LA TAS COMO SÍMBOLO Y CONOCIMIENTO

La acción en la TAS, se configura en una respuesta epistemológica y en una opción al positivismo, al concebirla como dinámica inscrita en lo simbólico10, como forma de conocimiento y manera de conocer. Lo simbólico acciona el pensar, porque frente a él, siempre se añade interpretación11, algo más allá de él mismo. Los símbolos son signos, entendidos como expresiones que nacen mediante la palabra, en la vida social. El símbolo es profundo12, lo que hace que este sea opaco, que exija interpretación para dar claridad,

8 Señala Vives, la diferencia entre acciones y hechos, advirtiendo como los hechos nudos sin relevancia, no están como receptáculos para inocularles sentido, ellos sólo acaecen “trazarse la diferencia enre acciones y hechos, entre lo que hacemos y lo que, simplemente, nos sucede: los hechos acaecen, las acciones tienen sentido (esto es significan); los hechos pueden ser descritos; las acciones han de ser entendidas”. VIVES ANTÓN, Tomás. Op. cit., p. 205.

9 Busato, considera que este concepto significativo de acción, es coherente con las corrientes críticas del derecho y las tendencias de actualización del derecho “su perspectiva metodológica se presenta más de acuerdo con un planteamiento humanista del derecho penal, sus propuestas político criminales son permeables a la crítica del propio sistema y a su expresión dogmática” BUSATO, Paulo César. Derecho penal y acción significativa: un análisis de la función negativa del concepto significativo de acción en derecho penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 2007. p. 76.

10 La instauración de lo simbólico, está inscrito en una epistemología o forma de conocimiento, que desarrolla Gadamer, como un concepto con arrastre histórico y de portentoso contenido. Lo simbólico, el símbolo está unidos a la tradición filosófica, con trasfondo gnóstico y metafísico: “El símbolo aparece como aquello que, debido a su indeterminación, puede interpretarse inagotablemente, en oposición a lo que se encuentra en una referencia de significado más precisa y que por lo tanto se agota en ella”. GADAMER, Hans-Georg. Op. cit., p.112.

11 “Subraya Ricoeur que el símbolo da que pensar sólo en la medida en que somos capaces de añadirle una interpretación que, aprovechando su enigma original, promueva un sentido que vaya más allá de él” PICONTÓ NOVALES, Teresa. Hermenéutica, argumentación y justicia en Paul Ricoeur. Madrid: Dykinson, 2005.

12 Ídem, p. 218.

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para poder incorporar ponderación. El símbolo es analógico, se mueve como péndulo entre la univocidad y la plurivocidad de intenciones y significaciones de los intérpretes.

La Teoría de la Acción Significativa, se constituye en postura epistemológica en el marco jurídico penal, por las mediaciones dinámicas y complejas entre el pensar, el lenguaje y lo simbólico mismo. De ahí que la TAS, conlleve valiosas consecuencias, en el tratamiento y conceptualización del sistema penal punitivo en un Estado Social de Derecho.

Las repercusiones que pone de relieve esta teoría para la función del operador judicial, para su labor de juzgamiento, es definitiva. El eje de su juzgar, de su saber, de su tarea es ante todo interpretar, entendida ésta como forma de conocer13 lo simbólico. El juez, al interpretar funda sentido, porque en el escenario simbólico judicial y aún más en el penal, se está creando y recuperando la compresión del mismo. Esta labor judicial de discernimiento de lo simbólico, no puede ser espontánea y confusa, debe ser racional, para lo cual el lenguaje sale al encuentro en su forma más elaborada: la argumentación como contacto intelectual14.

El operador judicial interpreta, no ya fenómenos nudos sino comprensiones, ha de desentrañar el sentido de un sustrato15. La pregunta oportuna es ¿a qué se dirige la intención de sentido del intérprete al enunciar un sustrato? La TAS, da respuesta en términos de cambio epistémico, se dirige a una consideración y apreciación de las expresiones de vida; apartándose de los postulados del positivismo en sus formas más fuertes, y adentrándose en las corrientes que llevan a replantear incluso el derecho en términos holísticos.

13 No puede entenderse la interpretación como una actividad en la cual no exista conocimiento, por el contrario es exigencia, porque implica “La interpretación es en cierto sentido una recreación, pero ésta no se guía por un acto creador precedente, sino por la figura de la obra ya creada, que cada cual debe representar del modo como él encuentra en ella algún sentido”. GADAMER, Hans-Georg. Op. cit., p.165.

14 En el redescubrimiento de la Retórica, Perelman concibe que “toda argumentación pretende la adhesión de los individuos y, por tanto, supone la existencia de un contacto intelectual […] Lo más indispensable para la argumentación es, al parecer, la existencia de un lenguaje común” PERELMAN Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado de la argumentación: la nueva retórica. Madrid: Gredos, 1989. p. 48-49.

15 Llama la atención Vives Antón, acerca del nuevo paradigma que encarna la TAS, “giro copernicano en la Acción significativa: ya no es el sustrato de un sentido; sino a la inversa, el sentido de un sentido”. VIVES ANTÓN, Tomás. Op. cit., p. 205.

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La tarea contemporánea la adelantan teóricos como Hart, Dworkin16, Alexy, Norberto Bobbio, Boaventura de Sousa Santos17, Manuel Atienza18y Zaffaroni19 entre otros. Se han vuelto a preguntar, como hijos de su tiempo ¿qué es el derecho?, ¿qué se debe interpretar y a qué se le debe dar significación en la órbita penal? dentro de las realidades de lo humano en una sociedad posmoderna, en búsqueda de sentido, porque lo simbólico del derecho aún debe ser pensado y edificado como parte de la Argumentación, de la Razonabilidad legal y de la TAS.

Retomando a Nietzsche, para ir apuntalando la estructura interpretativa de la TAS, es necesario asumir que cuando se entroniza la interpretación, como contrapostura al positivismo, se abre un nuevo universo de comprensión y de interrelaciones sociales e institucionales. Afirma que no hay hechos sino interpretaciones20. Con ello supera de manera fuerte el subjetivismo presente en las explicaciones de los fenómenos humanos objeto del derecho penal21, para dar contenido más allá, de una empresa subjetiva.

16 Parte básica de la discusión entre Hart y Dworkin es el enfoque mismo de su teoría del derecho, Hart en el Postscriptum establece: “La teoría del Derecho así concebida, como descriptiva y general a la vez, es un proyecto que difiere radicalmente de la concepción de Dworkin […] parcialmente valorativa y justificativa”. RODRÍGUEZ, César. La Decisión Judicial. Santafé de Bogotá: Siglo del Hombre, Universidad de los Andes. Facultad de Derecho, 1997. p. 92.

17 Señala Boaventura de Santos “concibo el derecho como un cuerpo de procedimientos y estándares normativos regulados, que se considera exigible ante un juez o un tercero que imparte justicia y que contribuye a la creación y la prevención de disputas, así como a su solución mediante un discurso argumentativo acompañado de la amenaza de la fuerza. Esta concepción del derecho está compuesta por retórica, burocracia y violencia”. SANTOS, Boaventura de Sousa. La globalización del derecho. Bogotá, D.C.: Universidad Nacional de Colombia, 1998. p. 20. Bogotá por decreto en este año se denominaba Santafé de Bogotá, y las editoriales tenían que registralo por esto no es un error, sino es el registro que aparece por eso encuentran libros con Bogotá, Santafé de Bogotá y Santa fe de Bogotá.

18 Para Manuel Atienza, el Derecho ha de ser argumentación “El derecho puede verse por ello (aunque esa no sea la única perspectiva posible) como una compleja institución volcada hacia la resolución (o el tratamiento) de conflictos por medios argumentativos y en las diversas instancias de la vida jurídica […] ¿no parece inevitable que la teoría del Derecho tenga que construirse en muy buena medida como una teoría de la argumentación jurídica?”. ATIENZA, Manuel. El Derecho como argumentación. México, D.F.: Fontamara, 2004. p. 130-131.

19 “[…] son muchas las opiniones acerca del carácter del derecho, por lo cual es preferible entenderlo como un saber que –al igual que todos- debe establecer sus límites (definir su horizonte de proyección) en forma que le permita distinguir el universo de antes que abarca y, por ende, el de los que quedan excluidos […] ensayar su horizonte de comprensión (o de explicación)”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Derecho penal: parte general. Buenos Aires: Ediar, 2011. p. 3.

20 “En un fragmento póstumo sostuvo Nietzsche hace ya más de ciento quince años que <<Contra el positivismo que se detiene ante el fenómeno sólo hay hechos, yo diría: no, justamente no hay hechos, sólo interpretaciones>>” GUTIERREZ, Carlos B. No hay hechos sólo interpretaciones. Bogotá: Universidad de los Andes, 2004. p.93. Falta el cierre de las comillas angulares.

21 “Sale del centro de atención la perspectiva del impenetrable aspecto subjetivo, residente en la mente del hombre para poner de relieve la dimensión social de la actuación humana”. BUSATO, Paulo César, Op. cit., p. 178.

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Lo subjetivo con gran dificultad, podría estar en perspectiva histórica social como lo necesario para configurar una sólida TAS. La TAS, se enfrenta al reto de poder dar respuesta a la labor, como intérprete que desempeña el juez, el operador judicial, que no puede ser de índole contable del estado de cosas, a la manera de inventario de hechos que acaecen, y a los que sólo tiene que relacionar. Lo acaecido, los hechos nudos no han de ser el centro de examen, de una categoría de Acción desde la TAS, sólo las acciones cargadas de sentido, sin fracturas o superposiciones entre hechos físicos y mentales22. Entender y construir la Acción como interpretable (teniendo en cuenta que desde Heidegger la interpretación por sí misma, no le arroja significado, ni tampoco otorga valor) como preexistente, como compareciente ante el mundo23, ante el mundo jurídico penal. La acción significativa para la esfera del derecho penal, es una acción surgida en el contexto de las intersubjetividades24, es decir en el plano de lo social con la mediación del lenguaje25.

2 LA TAS COMO COMPRENSIÓN HERMENÉUTICA JURÍDICA PENAL

La TAS, tiene una configuración hermenéutica, como parte de su epistemología porque tiene una teleología que instituye la comprensión de su horizonte Develar el sentido, se configura en el objeto dinámico de la TAS. Comprender26, como tarea Hermenéutica

22 Busato, comentando a Martínez- Buján, refiere como la tradición dualista del Descartes, incide en la teoría de la acción para el derecho penal “la adopción del soporte de una concepción cartesiana de la mente como sustancia llevaba la ciencia tradicional hacia un concepto de acción <<como un hecho compuesto, es decir, como la reunión de un hecho físico (el movimiento corporal) y otro mental (la volición)>>”. Idem, p. 180. Falta el cierre de las comillas angulares.

23 Heidegger señala “La interpretación no arroja cierto “significado” sobre el nudo ente que está-ahí, ni lo reviste con un valor, sino que lo comparece dentro del mundo, ya tiene siempre, en cuanto tal, una condición respectiva abierta en la comprensión del mundo, ya tiene siempre, en cuanto tal, una condición respectiva abierta en la comprensión del mundo, y esta condición queda expuesta por medio de la interpretación”. HEIDEGGER, Martin. Ser y tiempo. Madrid: Trotta, 2003. p.173.

24 Habermas considera el rol fundante de la intersubjetividad “Sobre la base de la intersubjetividad pueden las personas ponerse de acuerdo sobre algo general que les permite identificarse a unos con otros, conocerse y reconocerse recíprocamente como sujetos similares (…) la comunidad que se basa en la validez intersubjetiva de los símbolos lingüísticos permite tanto la identificación recíproca como el mantenimiento de la no identidad de uno con otro”. HABERMAS, Jürgen, Op. cit., p. 161.

25 BUSATO, Paulo César, Op. cit., p. 181. 26 Heidegger, en Ser y tiempo, ubica al Dasein, en tanto comprender para señalar que “El proyectarse del

comprender tiene su propia posibilidad de desarrollo. A este desarrollo del comprender lo llamamos interpretación {Auslegung} […] En la interpretación el comprender no se convierte en otra cosa, sino que llega a ser él mismo […] La interpretación no consiste en tomar conocimiento de lo comprendido, sino en la elaboración de las posibilidades proyectadas en el comprender.” HEIDEGGER, Martín, Op. cit., p. 172.

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de lo significativo de la acción humana, es el reto para las instituciones punitivas, para la dinámica de protección de los bienes jurídicos tutelados, en últimas para un derecho penal humanista. Caracterizado porque ha de incorporar, a parte de su capacidad para juzgar, comprensión comunitaria27, ética pública28 y responsabilidad ciudadana desde una moral pluralista.29Dentro de la TAS, la pretensión jurídica de corte positivista30, no logra asirse, porque la epistemología que define a la Acción Significativa, la precisa como lugar de expresión de sentido. La Acción significativa se reactualiza en la medida en que entra en contacto, en diálogo con las reglas sociales31, entra en los juegos del lenguaje32, y con la interpretación, diseña una arquitectura para la comprensión de los fenómenos jurídico penales.

La epistemología y la estructura interpretativa de la TAS, adhiere reglas en su articulación, reglas que gobiernan, que facilitan y posibilitan la función de comprensión de las formas de vida33, que integran el objeto de análisis del derecho penal. No es posible una interpretación sin reglas que develen el sentido, y conduzcan desde la razonabilidad, a una auténtica comprensión de la expresión de los fenómenos sociales, atinentes al sistema punitivo34.

27 Señala Gadamer “Todo el mundo tiene tanto <<sentido común>>, es decir, capacidad de juzgar, como para que se le pueda pedir muestra de su <<sentido comunitario>> de una auténtica solidaridad ética y ciudadana, lo que quiere decir tanto como que se le pueda atribuir la capacidad de juzgar sobre lo justo e injusto, y la preocupación por el <<provecho común>> […] El sensus communis es un momento del ser ciudadano y ético”. GADAMER, Hans-Georg, Op cit., p. 63.

28 Define Adela Cortina, desde las consideraciones Habermasianas la ética pública como “aquel conjunto de valores y normas que comparte una sociedad moralmente pluralista y que permite a los distintos grupos, no sólo coexistir, no sólo convivir, sino también construir su vida juntos a través de proyectos compartidos y descubrir respuestas comunes a los desafíos a los que se enfrentan”. CORTINA, Adela. Hasta un Pueblo de Demonios: ética pública y sociedad. Madrid: Taurus, 1998. p. 109.

29 “Cuando Ronald Dworkin publicó su ya célebre libro Los derechos en serio no vino sino a poner sobre el tapete algo sobradamente sabido, y es que conviene pensar en serio una buena cantidad de asuntos públicos, porque mucho nos jugamos en enfocarlos bien o mal”. Idem, p. 111.

30 Considera Vives Antón que incluso para la arquitectura de la TAS, el positivismo analítico es insuficiente, por la reducción del significado a mera sintaxis y experiencia: “Es la perspectivadel sentido-no la del ser-la que hemos de adoptar para trazar la línea de demarcación entre el derecho positivo y los ideales éticos de la comunidad”. VIVES ANTÓN, Tomás, Op. cit., p. 397.

31 La Acción significativa pasa a ser comprendida como “una expresión de sentido que, puesta en relación con reglas sociales adquiere un sentido o significado” BUSATO, Paulo César, Op. cit., p. 192.

32 Wittgenstein define juego del lenguaje como “al todo formado por el lenguaje y las acciones con las que está entretejido”. WITTGENSTEIN, Ludwig. Op. cit., p. 6.

33 Señala Vives Antón “Las reglas rigen el uso del lenguaje y el sentido de las acciones, esto es, el entramado total de los juegos de lenguaje en que se manifiesta una forma de vida: sirven, por ello, para instruir en un determinado modo de actuar, para explicar la acción, para evaluarla, para justificarla y para definirla e interpretarla”. VIVES ANTÓN, Tomás, Op. cit., p. 213.

34 “Más que <<definir>> lo que sea acción en el campo del Derecho penal, se debe <<interpretar>>su significado”. BUSATO, Paulo César, Op. cit., p.199.

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La interpretación como centro de la fuerza de la TAS, se configura en categoría universal35, porque dada la intersubjetividad, la vida misma se pone en perspectiva, en horizonte de significación. De ahí que para Nietzsche, quien desde muy temprano en su pensamiento asumió que la historia de la humanidad es en definitiva, más que la suma de verdades absolutas y dadas, es una cadena de interpretaciones, con dirección de ciertas voluntades que generan nuevas interpretaciones.

La cultura y la historia, han tenido la tarea de recoger y actualizar las interpretaciones36, que como cultura transitan en todos los órdenes de la vida en sociedad, como la moral, la filosofía, la justicia y sin duda las interpretaciones que configuran y constituyen el Derecho Penal.

Por lo anterior, la Acción significativa para el derecho penal, es interpretación y su epistemología se construye a partir del conjunto de hechos significativos, seleccionados37 e interpretaciones38 que los intérpretes desde su horizonte decomprensión, perciben e integran del mundo, de las normas39, de las formas de vida. En las cuales están resumidas la filosofía, la religión, la política y de manera contundente para el derecho penal, el ejercicio del poder40.

La hermenéutica de la TAS, está inscrita dentro de las conceptualizaciones de la hermenéutica jurídica, en la cual se evidencia una tirantez41 entre el texto normativo y la labor del intérprete en el momento de argumentar e interpretar, es decir, al momento de dar significación de aportar, de actualizarcomprensiones. Una ley señala Gadamer, no

35 El carácter de universal de la interpretación está dado “porque la vida con su carácter perspectivo es justamente el proceso de interpretación de sí misma, es decir, de su esquematización en perspectivas y horizontes en interés de su conservación y de su escalación […] El devenir de la humanidad no es así otra cosa que toda una sucesión de interpretaciones”. GUTIERREZ, Carlos B., Op. cit., p. 95.

36 “[…] y la genealogía es justamente la memoria crítica del surgimiento de las diversas interpretaciones de las morales, de las nociones metafísicas, como las de verdad y libertad, y de los saberes socialmente sancionados”. Idem, p. 95.

37 “Los hechos son siempre, por tanto, hechos interpretados que llevan consigo su horizonte interpretativo interno y externo” Idem p. 98.

38 Comenta Busato: “Reconocer que una acción como significativa implica en aportación de una cualidad de la acción que no proviene de su existencia ontológica, ni de la norma y ni siquiera del que actúa, sino que es mejor, producto, sentido y significado de todo ello”. BUSATO, Op. cit., p.201.

39 “La acción significativa no es un producto exclusivamente normativo, pero es indudable que se nutre de componentes con tales características”. BUSATO, Paulo César, Op. cit., p.201.

40 Considera Zaffaroni la incidencia definitiva del poder en el despliegue de la práctica jurídico penal “Por ello, es claro que el derecho no es objeto de interpretación sino fruto de ella, o sea, de una variable que no depende sólo de la legislación sino sobre todo de la actividad doctrinal y jurisprudencial, que nunca es inocente ni aséptica respecto del poder”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl, Op. cit., p.79.

41 Señala Gadamer que entre la hermenéutica teológica y la jurídica, existen una tensión común: “Tanto para la hermenéutica jurídica como para la teológica es constitutiva la tensión que existe entre el texto-de la ley o la revelación – por una parte, y el sentido que alcanza su aplicación al momento concreto de la interpretación, en el juicio o en la predicación, por la otra”. GADAMER, Hans-Georg, Op. cit., p. 381.

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reclama ser concebida como producto, o explicada históricamente42, ha de ser entendida como un entramado de sentidos, como nicho simbólico en el que han confluido diversas interpretaciones e intereses.

El intérprete, como es el caso del operador judicial, está abocado a la exigencia de entender y leer adecuadamente los hechos significativos, lo simbólico del mundo social y aplicar la ley como una forma también del comprender43. La comprensión es también aplicación. La interpretación lleva a que el juez comprenda de manera distinta y para cada caso en concreto. La labor del juez desde la TAS, afirma que su ejercicio comprensivo-interpretativo no puede ser entendido como una artilugio mecánico en donde se alimenta de hechos por un lado y por otro produce sentencias; a la manera cómo funciona un ordenador44. Ferrajoli admite que ni siquiera cumpliendo la ilusión metafísica45 de lograr un perfecto silogismo judicial, logra el juez hacer verificación absoluta de las acciones significativas o de los hechos relevantes entendidos como infracción. Puede él comprensivamente como hermeneuta llegar a entrever una razonabilidad, una justificación46 en su respuesta, para lograr cierta pretensión de corrección. De esta manera la TAS, se incorpora también en la discusión actual de la Teoría de la Argumentación Jurídica, como enfoque nuevo en el debate contemporáneo del Derecho.

42 “Una ley no pide ser entendida históricamente sino que la interpretación debe concretarse en su validez jurídica”. Idem, p. 380.

43 La ley como el texto religioso, señala Gadamer han de ser entendidos adecuadamente “esto es, de acuerdo con las pretensiones que él mismo mantiene, debe ser comprendido en cada momento y en cada situación concreta de una manera nueva y distinta. Comprender es siempre también aplicar”. Idem, p. 380.

44 Ferrajoli, en las cuatro dimensiones del poder judicial, deja en claro como el juez “no es una máquina automática en la que por arriba se insertan los hechos y por abajo se sacan las sentencias, acaso con la ayuda de algún empujón cuando los hechos no se adaptan perfectamente a ella”. FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón: teoria del garantismo penal. Madrid: Trotta, 2009. p. 33.

45 “La idea de un perfecto silogismo judicial que permita la verificación absoluta de los hechos legalmente punibles corresponde […] a una ilusión metafísica: en efecto, tanto las condiciones de uso del término <<verdadero>> como los criterios de aceptación de la <<verdad>> en el proceso exigen inevitablemente decisiones dotadas de márgenes más o menos amplios de discrecionalidad. Idem, p. 33.

46 “En los discursos jurídicos se trata de la justificación de un caso especial de proposiciones normativas, las decisiones jurídicas. Pueden distinguirse dos aspectos de la justificación: la justificación interna (internal justification) y la justificación externa (external justification)”. ALEXY, Robert. Teoría de la argumentación jurídica. Lima: Palestra, 2010. p. 306.

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Una teoría de la Acción Significativa, llevará a la actualización y recreación de un derecho penal, que en su práctica punitiva, debe configurarse ante todo como un ejercicio de interpretación47, en cada momento y en toda su dimensión. El derecho penal es interpretación y ejercicio de selectividad48 de sentidos y signos como manera de frenar49 la irracionalidad del poder punitivo, cuando se impone un Estado policivo en sacrificio de una Estado Social de Derecho, con teleología garantista. La TAS, ha de ser holística, pluralista e integradora. Y si logra permear toda la labor del derecho penal como una actividad general, no suigeneris50, y si emparenta su interpretación a la del literato, logrará su optimización y cambio epistemológico, en perspectiva fuerte. La interpretación hace posible el rol fundamental del derecho penal, en el ejercicio de los derechos fundamentales de la vida común51. La interpretación jurídico penal desde la TAS, no se agota en la manera de interpretar la ley por parte de los operadores judiciales, es sólo una parte de la arquitectónica comprensiva-interpretativa. Interpreta todo aquel que vive la norma,52 y más aún aquel, que en el caso del sistema punitivo, a quien va dirigida la norma. De esta forma se conforma una comunidad intersubjetiva de intérpretes, de cointérpretes, que participan en una sociedad pluralista y con una tradición histórico-cultural, que también configuran un sistema punitivo dinámico, con un concepto significativo de acción, como

47 Dworkin, señala como “la práctica jurídica es un ejercicio de interpretación y esto no sólo cuando un abogado interpreta un documento, una ley o un código especifico sino de manera general”. RODRÍGUEZ, César, Op. cit., p. 143.

48 Señala Zaffaroni que la manera de poner límites al estado de policía en ejercicio del su poder punitivo, es mediante la labor del derecho penal que “debe ceder paso a una cantidad de poder punitivo, haciéndolo de modo selectivo, filtrando sólo el caudal menos irracional y reduciendo su turbulencia, mediante un complicado sistema de compuertas que impidan la perforación de cualquiera de ellas y que, en caso de producirse, disponga de otras que la reaseguren”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl, Op. cit., p. 83.

49 “El derecho penal debe programar el ejercicio del poder jurídico como un dique que contenga el estado de policía, impidiendo que anegue el estado de derecho. Sin embargo, las aguas del estadode policía se hallan siempre en un nivel superior, de modo que tiende a sobrepasar el dique por rebalsamiento”. Idem, p. 83.

50 “Los abogados no deben seguir tratando la interpretación jurídica como una actividad sui generis. Debemos estudiar la interpretación como una actividad general, como un modo de conocer, ocupándose de otros contextos que dicha actividad conlleva”. RODRÍGUEZ, César, Op. cit., p. 147.

51 “Numerosas normas de Derecho penal hacen posible en principio el ejercicio de los derechos fundamentales. Si la libertad del individuo no estuviese jurídico-penalmente protegida frente al abuso de la libertad de terceros que la amenazan, no se podría hablar ya más de una significación, de la libertad “para la vida social en su conjunto”. HÁBERLE, Peter. La garantía del contenido esencial de los derechos fundamentales en la Ley Fundamental de Bonn. Madrid: Dykinson, 2003. p. 17.

52 Häberle señala que “Todo el que vive en y con el supuesto de hecho regulado por la norma es, indirectamente, y dado el caso también directamente, intérprete de la norma. El destinatario de las normas participa más intensamente en el proceso interpretativo de lo que se admite generalmente.” HÁBERLE, Peter. Sociedad abierta de los interpretes constitucionales: una contribución para la interpretación pluralista y “procesal” de la Constitución. Buenos Aires: Documento PDF, 2009.

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reflejo de los cambios que se viven en su interacción53. La TAS, exige que se integre una actitud de crítica, frente a la forma como se construyen la política criminal y los discursos penales, pues estos son fruto de los procesos sociales. No son estáticos ni inamovibles sino que conllevan, cambios de mentalidades y de sensibilidad54 del conjunto social, integrado por historias interpretables e interpretadas. El peso de las construcciones de los imaginarios que conforman la cultura, es definitivo cuando se trata de la interpretación y comprensión del castigo y la práctica penal. Desde una comprensión amplia y pluralista, el castigo es significación cultural está fundado en la acción social55.

La acción significativa en el derecho penal, pone de presente mediante su epistemología la urgencia de estructurar e incorporar en su teorización principios,56 que han de surgir del universo simbólico del mundo de la vida en su conjunto. Los principios también son interpretaciones, comprensiones y ante todo sentido de las formas de vida. Si la TAS, desde la mirada epistemológica de la interpretación, logra integrar los principios orientadores de la práctica judicial penal, será aceptada de manera contundente (incluso por los actuales finalistas) como fenómeno social, más allá de la voluntad. La TAS, instituye la acción57 de manera amplia, abierta y fuerte, ubicándose de esta manera en perspectiva de comprensión humanista.58

53 Señala Busato: “[…] mientras se busca identificar un concepto de acción jurídico-penalmente relevante, hay que rechazar los conceptos exclusivamente ontológicos o exclusivamente normativos, optando por una idea que se ubique en la relación comunicativa del sujeto con el objeto, del agente del delito con el sistema de control social manipulado por el Estado, y más, estará dotando el concepto de acción de un sentido de realidad social legitimado no por verdades universales ni por determinaciones de las instancias de poder, sino por un filtro interpretativo absolutamente dinámico que es la evolución de la propia sociedad a la cual se refiere”. BUSATO, Paulo César, Op. cit., p. 199.

54 Señala Garland “las formas cambiantes de mentalidad y sensibilidad han conformado las políticas y discursos penales […] los patrones culturales de la sociedad se insertan en sus instituciones penales, de manera que el castigo se vuelve una encarnación práctica de algunos de los temas simbólicos, constelaciones de significados y formas específicas de sentir que constituyen a la cultura en general”. GARLAN David. Castigo y sociedad moderna. México D.F.: Siglo Veintiuno, 2010. p. 290.

55 “Al igual que todas las prácticas sociales, el castigo puede considerarse desde la perspectiva de la acción social o de la significación cultural”. Idem, p. 291.

56 Dworkin considera que los principios no son estáticos y menos aún surgen como las reglas que dominan la creación y uso del lenguaje, para parafrasear los ideales de la Escuela Romántica del Derecho, de Savigny y Puchta “Los principios son discutibles, su peso es importante, son innumerables, y varían y cambian con tal rapidez que el comienzo de nuestra lista estaría anticuado antes de que hubiésemos llegado a la mitad. Aun si lo consiguiéramos, no tendríamos la llave del derecho, porque no quedaría nada que nuestra llave pudiera abrir” DWORKIN, Ronald. Los Derechos en serio. Barcelona: Ariel, 1989. p. 99.

57 “La acción humana debe ser identificada, entonces, por otros factores además de la voluntad […] Así, las acciones son configuradas de acuerdo con su significado social, por el contexto en que se producen”. BUSATO, Paulo César, Op. cit., p. 215-216.

58 “Lo que se hace es intentar una comprensión humanista del fenómeno de la acción a través de la consideración en su ámbito del contexto general donde tiene lugar el hecho que se pone a la apreciación del Derecho penal”, Idem, p. 217.

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Existe una estrecha conexión entre el Derecho penal y la libertad de acción, conexión que proporciona valor, validez y estructura a la Acción significativa59. De esta manera conlleva a que se instaure, en el Derecho penal la esencia del derecho fundamental a la libertad individual, consagrando que el derecho penal, punitivo haga parte del contenido básico de los derechos fundamentales60. La TAS comporta principios y valores, que los integra a su estructura conceptual, introduciéndose en el debate, sobre el rol que desempeña el Estado Social de Derecho en el empleo del ius puniendi61. El ius puniendi62 no escapa a la manifestación de la forma como el Estado concibe sus valores63, en tanto comprensiones de sentido que definen fines esenciales como la democracia y la dignidad de la persona.

Del derecho punitivo también en tanto expresión y orden simbólico, del cual se desprenden y consolidan algunos de los imaginarios sociales, que de manera dinámica y sinérgica facilitan la cohesión del tejido social. Logra así mismo, junto a las demás expresiones de la cultura que una sociedad pueda hacer juicios ético-sociales64 y se comprometa con los simbolos y signos de un derecho como interpretación, que reconstruye acciones significativas.

59 “El Tribunal Constitucional de Baviera ha reconocido claramente la íntima conexión del derecho fundamental y el Derecho penal, en especial para la libertad de acción, cuando agrega el Derecho penal a la esencia (¡) del derecho fundamental a la libertad personal.” HÁBERLE, Peter, Op. cit., p. 29.

60 “El Derecho penal forma parte, por ello, por sorprendente que ello pueda sonar en principio, del contenido esencial de los derechos fundamentales.”Idem,p.29.

61 “Históricamente en efecto, el derecho penal nace no como desarrollo, sino como negación de la venganza; no en continuidad, sino en discontinuidad y conflicto con ella. Y se justifica no con el fin de garantizarla, sino con el de impedirla. Es bien cierto que en los orígenes del derecho penal la pena ha sustituido a la venganza privada […] En este sentido bien se puede decir que la historia del derecho penal y de la pena corresponde a la historia de una larga lucha contra la venganza […] El derecho penal nace precisamente en este momento: cuando la relación bilateral parte ofendida/ofensor es sustituida por una relación trilateral en la que se sitúa en una posición de tercero o imparcial una autoridad judicial”. FERRAJOLI, Luigi, Op. cit., p. 333.

62 Busato considera que el modelo de Estado, se encuentra en de manera coherente con la concepción de ius puniendi, porque este derecho punitivo es a todas luces “instrumento de control social”. BUSATO, Paulo César, Op. cit., p. 194.

63 Señala Häberle “También en el Estado que ejercita el ius puniendi se manifiestan las concepciones dominantes de valores”. HÁBERLE, Peter, Op.cit., p. 28.

64 Señala Peter Häberle “Con Welzel, hay que considerar como la tarea principal del Derecho penal asegurar la vigencia (y la observancia) de los valores de actuación resultado de la reflexión jurídica y asegurar el respecto de la vida, la libertad, la salud y la propiedad ajenas. […] así es como se incorpora el juicio ético-social de los ciudadanos y se fortalece su “permanente sentimiento de lealtad al Derecho”. Idem p. 33.

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El derecho penal en el contexto de la TAS, cumple una función educadora y reeducadora de la cultura65. La función didáctica que ha de desempeñar una TAS, dentro de un marco de referencia de un derecho penal humanista, pretenderá entender y consolidar una política criminal de índole comprensivista. La acción comprensivista comporta, que de manera activa y significativa, las políticas de penalización y todo el escenario punitivo en juego en el Estado Social de derecho, sean construidos y reconstruidos por la misma sociedad que da significado y valor66. Es innegable que desde una TAS, el castigo es una institución como la señala Garland transmisora y pedagógica67, como quiera que el conjunto de la vida en sociedad también hace ponderaciones de principios y valores que son esenciales para discernir su proyecto social común.

3 LA COMPRENSIÓN DE LA TAS Y EL PRINCIPIO DE PROPORCIONALIDAD

En una estructura epistemológica, como la propuesta por la TAS, es valido introducir una reflexión acerca de los principios, como expresión colectiva de significados y comprensiones del conglomerado social. Uno de estos principios es el de proporcionalidad, como ejercicio de razonabilidad e interpretación. Se ha de incorporar una hermenéutica de la ponderación en la Acción Significativa, que contribuya a las discusiones del fundamento mismo del derecho.

65 Comenta Busato que por lo menos desde la perspectiva del funcionalismo sistémico, el derecho penal tiene la función cibernética de autocrítica y autorregulación de la vida en sociedad “Tiene como misión no más la protección de bienes jurídicos sino la manutención de la estructura básica de la sociedad, en su concepción autopoiética.” BUSATO, Paulo César, Op. cit., p. 190.

66 “Las políticas de penalización, discursos e instituciones desempeñan una parte activa en el proceso generador mediante el cual el significado, el valor – y en última instancia la cultura – compartidos son producidos y reproducidos por la sociedad […] Los valores, los conceptos, las sensibilidades y los significados sociales en pocas palabras, la cultura, no sólo existen en forma de atmósfera natural que engloba la acción social y la hace significativa”. GARLAN, David. Op. cit., p. 293.

67 “El castigo es, entre otras cosas, una institución comunicadora y didáctica; por medio de sus políticas y declaraciones pone en efecto – y en circulación cultural – algunas de las categorías y distinciones con las cuales damos significado a nuestro mundo […] el castigo es una de las múltiples instituciones que construye y respalda el mundo social, produciendo las categorías compartidas y las clasificaciones autoritarias por medio de las cuales los individuos se entienden entre sí y a sí mismos. A su modo, la política penal provee un marco cultural organizador”. Idem, p. 293.

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El principio de Proporcionalidad68que a pesar de no encontrarse positivizado69 en el Texto Constitucional70, ha tenido gran desarrollo interpretativo jurisprudencial como en el caso de Alemania, España y Colombia71. En un primer momento fue equiparado a las reivindicaciones del derecho a la igualdad72, con ello se estableció una íntima relación entre este principio y el imperativo de proporcionalidad, o test de razonabilidad73 como se denominó en un primer momento. El principio de proporcionalidad se configura en parámetro iusfundamental74 porque contribuye de manera significativa en la labor hermenéutica,

68 Según Peter Häberle, tiene sus raíces en el derecho de policía y el derecho administrativo pero que hoy, sin duda alguna, cobra “relevancia jurídico-constitucional […] vincula también al legislador”. HÁBERLE, Peter, Op. cit., p. 67, y por lo tanto haciendo que su aplicación y exigibilidad esté presente en todas las esferas del derecho.

69 Lo que no significa que carezca de estirpe y fundamentación Constitucional como en el caso de la Ley Fundamental Alemán (Grundgeserz), que no aparece expresamente “Sin embargo, el rango constitucional de este mandato es reconocido en general, ya que su validez y rango puede ser fundamentada con múltiples argumentos […] Los argumentos parten pues de diferentes premisas, a saber, la justificación a través de la máxima de la igualdad en general (Art. 3 IGG), el argumento del Estado de derecho, de la esencia de los derechos fundamentales, el argumento combinado del Estado de derecho y de la esencia de los derechos fundamentales, de la garantía esencial, del derecho constitucional, de la justicia entre otros”. CLÉRICO, Laura. El Examen de proporcionalidad en el derecho constitucional. Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires Eudeba, 2009. p. 27.

70 La Corte Constitucional Colombiana en sentencia C-916 de 2002 M. P. Manuel José Cepeda Espinosa consagra el estatus Constitucional de este principio, al advertir que su fundamento esta dado “dentro por los principios fundamentales de Estado de derecho (art. 1 C.P), fuerza normativa de la Constitución (art. 4. C.P.) y carácter inalienable de los derechos de la persona humana (art. 5 C.P.)”

71 “El principio de proporcionalidad no aparece consagrado en ninguna disposición de los derechos fundamentales, sino que forma parte de las argumentaciones del Tribunal Constitucional, que en cada caso intentan evidenciar la compatibilidad o la incompatibilidad de la ley con la Constitución” (Bernal Pulido, El principio de proporcionalidad y los derechos fundamentales, 2007, p. 505)

72 Señala Bernal Pulido, como en el caso Colombiano este principio en un primer momento estuvo “vinculado sobre todo con la aplicación del principio de igualdad”. BERNAL PULIDO, Carlos. El Derecho de los derechos. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2005. p. 132.

73 Cfr, Corte Constitucional Colombiana. Sentencia C-022 de 1996, M.P.: Carlos Gaviria Díaz “Dos consecuencias se desprenden con claridad de esta enunciación del principio de igualdad: en primer lugar, la carga argumentativa está inclinada en favor de la igualdad, pues en todo caso la carga de la prueba pesa sobre quien pretende el establecimiento de un trato diferenciado. En otras palabras, quien establece o pretende establecer un trato discriminatorio, debe justificarlo. En segundo lugar, el núcleo del principio de igualdad queda establecido en términos de la razón suficiente que justifique el trato desigual. El problema queda concentrado, entonces, en la justificación del trato desigual. El análisis de esta justificación ha sido decantado por esta Corte mediante la aplicación de un “test de razonabilidad””

74 Denominación de Alexy a las normas de derecho fundamental: “las normas de derecho fundamental son todas aquellas a favor de las cuales es posible aducir una fundamentación iusfundamental correcta”. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2008. p. 55.

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deliberativa y razonada del legislativo y en la labor argumentativa y justificativa del Juez,75 que en los casos difíciles debe afrontar el discernimiento entre principios de igual jerarquía. A esta labor comprensiva- interpretativa, debe recurrir el legislador penal que al estar inserto en una TAS, debe enfrentarse a que mediante el castigo, se limiten derechos y libertades constitucionales y a que mediante la aplicación analítica del juicio de proporcionalidad,76 se esclarezcan categorías y jerarquías político-morales77 compartidas con el conjunto social.

La TAS, debe considerar que el legislador penal tiene una demarcación constitucional, especialmente por los principios de razonabilidad y proporcionalidad, lo que garantiza que no existan desbordamientos ni excesos en materia penal, sino por el contrario que incluso contribuya con el ejercicio de los derechos fundamentales,78 dado el lugar medular ya mencionado del derecho penal en el orden legal. La estrecha relación del derecho punitivo y el derecho constitucional como institutos que preservan de manera real los principios esenciales de los ciudadanos79, trae como consecuencia la necesidad de integrar la TAS, dentro de la reflexión constitucional.

En la esfera penal, desde la perspectiva significativa, la misión de delimitación de los derechos fundamentales, va más allá de esta talanquera negativa o el configurarse exclusivamente en un delimitador negativo80. Se trata de facilitar y propiciar valores sociales81 como la contención del delito, y la resocialización de los infractores, como exigencias frente al Estado democrático. El legislador penal, por su labor hermenéutica interpretativa, y desde las consideraciones epistemológicas, de teorías como la TAS, tiene la exigencia

75 “Según el Derecho vigente en la actualidad […] los jueces están obligados a fundamentar sus decisiones”. ALEXY, Robert, op. cit., p. 298.

76 Argumentaciones fuertes de la Corte Constitucional Colombiana en la sentencia C-822 DE 2005.77 “El castigo enseña, esclarece, dramatiza y pone en vigor […] algunas de las categorías y distinciones

político-morales básicas que conforman nuestro universo simbólico”. GARLAN, David, Op. cit., p. 293. 78 A este respecto afirma Häberle “Sin normas penales para la protección de la seguridad del Estado y para

la protección de la Constitución estaría amenazada la “existencia de la comunidad”, que, a su vez, es también constitutiva para los derechos fundamentales”. HÁBERLE, Peter, op. cit., p. 17.

79 Señala Busato: “El Derecho penal de un Estado social y democrático de Derecho debe percibir la necesidad de preservación de los principios, pero más que ello, debe estar ajustado a la preservación <<real>> de los principios que representan garantías individuales de los ciudadanos”. BUSATO, Paulo César, op. cit., p. 197

80 Böckenförde, al desarrollar la teoría de los derechos fundamentales propia de un Estado Social, como el que caracteriza al colombiano expresa que “los derechos fundamentales ya no tienen sólo un carácter delimitador-negativo, sino que al mismo tiempo facilitan pretensiones de prestación social ante el Estado”. BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Escritos sobre derechos fundamentales. Baden-Baden: Nomos Verlagsgesellschaft, 1993.

81 Para que no quede reducida la órbita de acción de los derechos fundamentales a “cometidos constitucionales”. Idem, p. 71.

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superior de instituir una auténtica política criminal y penitenciaria, razonada, razonable con una función simbolizadora82.

La limitación interpretativa y simbólica al poder del legislador penal, entendida esta como principio, sólo puede desarrollarse mediante el principio de proporcionalidad83, Esta limitación tiene adheridos los fines, los fines propios de un Estado Social de Derecho, como el interés general y el orden social; que repercuten en la razonabilidad del legislador al balancear de manera comprensiva e interpretativa y objetivamente, la gravedad de los ilícitos, la afectación a los bienes jurídicos tutelados y el grado de culpabilidad. El principio de proporcionalidad no puede llevar a sacrificar valores y principios que tengan un mayor peso84 que el principio que se pretende garantizar. Este principio interpretativo-significativo debe poder prever, la decisión más adecuada o correcta a los fines de un Estado Social de Derecho. En aras de la dimensión del peso o de la importancia85 relativa, de un principio frente a otro principio, debe lograr como acción hermenéutica, una ponderación de principios. La simbología interpretativa se ha coligado a iconografías como la balanza, la regla o el equilibrio. La colisión de principios, es una realidad jurídica cercana y no extraña

82 “En cierta medida esta función simbolizadora y expresiva de la política penal se acepta y comprende, no sólo en el pensamiento de filósofos como Joel Feinberg, sino en la práctica de jueces y abogados penalistas, quienes son plenamente conscientes de que sus dictados y acciones llegan al gran público y tienen una significación simbólica para muchos”. GARLAN, David, Op. cit. p. 293.

83 A la limitación de la limitabilidad de los derechos fundamentales, mediante el principio de proporcionalidad manifiesta Böckenförde “sólo puede llevarse a cabo de acuerdo con el principio de proporcionalidad; la limitación de los derechos fundamentales sólo puede llegar hasta donde resulte apropiado, necesario y proporcionado en sentido estricto, en orden a la consecución de un fin justificable de interés público formulado por la ley limitadora”. BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang, Op. cit., p.102.

84 Dworkin, señala que los principios poseen una dimensión que las normas no tienen (las normas están dentro del esquema todo o nada) la dimensión del peso o importancia: “Cuando los principios se interfieren (la política de protección a los consumidores de automóviles interfiere con los principios de libertad de contratación, por ejemplo), quien debe resolver el conflicto tiene que tener en cuenta el peso relativo de cada uno”. DWORKIN, Ronald, Op. cit., p. 77.

85 La importancia de un principio frente a otro, no significa según Alexy “declarar inválido al principio desplazado ni que en el principio desplazado haya que introducir una cláusula de excepción […] bajo ciertas circunstancias, uno de los principios precede al otro […] las colisiones de principios-como quiera que sólo pueden entrar en colisión principios válidos- tienen lugar más allá de la dimensión de la validez, en la dimensión el peso”. ALEXY, Robert, Op. cit., p. 71.

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al espacio que se enfrenta en el escenario del derecho penal86 y en el que el legislador penal cumple su tarea de esclarecer, en medio de este conflicto, una respuesta. Este principio requiere de diadas para su ejercicio, señala la jurisprudencia Colombiana que las diadas son entre otras el supuesto de hecho y la consecuencia jurídica, laafectación y la defensa, el ataque y la reacción. La proporcionalidad y la ponderación como ejercicio interpretativo y por tanto en coherencia con una TAS, como respuesta a un derecho penal actual humanista, establece que este ordenamiento regula dualidades, que se presentan entre las mismas instituciones involucradas en el castigo estatal, pues se enfrentan en un mismo escenario unas punitivas otras de protección. Así mismo, el ejercicio de razonabilidad se ha aplicar y expresar para ponderar, la gravedad de la conducta punible y el castigo a imponer, balancear las causales de justificación y la posible eximente de punibilidad. La ponderación penal significativa debe llevar al Juez, a la labor racional que puede proporcionar la TAS, como tarea de discernir y equilibrar las causales de agravación o atenuación y la graduación de la pena, así como la gradación del daño antijurídico causado y la sanción pecuniaria respectiva fijada él. De esta manera la ponderación no reviste la condición de aleatoriedad87, por el contrario el operador judicial puede atribuir las cargas de argumentación, desde la arquitectura simbólica de la interpretación de las formas de vida. La adhesión al carácter moderno de la pena88 y de todo el sistema de castigo, que gracias al principio de razonabilidad89 y ponderación, instauran como mandato la

86 Para Häberle el Derecho penal juega un papel sobresaliente en cuanto su debate se centra en valoraciones del bienes jurídicos, de ahí la necesidad de introducir el principio de ponderación que lleva al merecido reclamo en jerarquía con el derecho constitucional: “En el derecho penal, para el que lo que importa es la protección de valores de conducta ético-socialmente elementales y la tutela de bienes jurídicos, este principio juega reconocidamente un rol sobresaliente […] Determina la relación de la culpa y la pena. En la teoría de la antijuridicidad se ha impuesto como principio general”. HÁBERLE, Peter, Op. cit., p. 42.

87 “debido a que ya no es necesario considerar la ponderación exigida por la prohibición del exceso en el caso individual como una caja negra teórica, metodológica y dogmática, las cargas de argumentación pueden ser adjudicadas de forma más racional y consiente, más exacta y sencilla”. MONTEALEGRE, Eduardo. La ponderación en el derecho. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2008. p. 85.

88 Para Ferrajoli, la proporcionalidad como principio se adhiere a un “ulterior carácter de la pena moderna: la proporcionalidad de las penas, el ajuste proporcional de la gravedad de los delitos a las medidas de pena establecidas por el legislador sobre la base de la jerarquía de los bienes y de los intereses elegidos por él como merecedores de tutela”. FERRAJOLI, Luigi, Op. cit., p. 392.

89 “La razonabilidad opera como un criterio que permite arribar a una solución justa dentro del derecho, ya sea una solución normativa, una solución en un proceso contencioso, etc. Esta solución justa exige que sea humana, no violenta, no arbitraria: de algún modo conforme a ciertas razones”. SAPAG, Mariano. El principio de proporcionalidad y de razonabilidad como límite constitucional al poder del Estado: Un estudio comparado. Dïkaion Bogotá, v. 22, n. 17, p. 157-198. 2008.

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prohibición del exceso y el defecto. La teleología punitiva guardiana del Estado social de derecho90, como patrimonio común91, expresada en la jerarquía de los derechos humanos y garantías fundamentales protegidos, es y debe ser la racionalidad92, la interpretación y el develamiento del nicho simbólico que constituye la cultura, como esencia del conjunto social, como límite en la coexistencia.

CONCLUSIONES

La ruptura epistemológica surgida de la realidad del hombre del siglo XXI, posmoderno, conlleva una crítica fuerte a la hegemonía positivista, una opción vigorosa es la propuesta hermenéutica gadameriana que desde la comprensión y la interpretación abre un horizonte para un nuevo orden jurídico complejo postpositivista.

La Teoría de la Acción significativa como forma de conocimiento simbólico dentro de las ciencias sociales posee una arquitectura epistemológica, centrada en la labor interpretativa hermenéutica, que tiene como centros medulares el símbolo, el lenguaje y la comprensión de los fenómenos del conjunto social, superando las categorías positivistas de acción como causa efecto o fin.

La TAS, se configura como alternativa y como respuesta a la actualización de un derecho penal humanista inserto en un Estado social de derecho. Que exige una re- simbolización de la función del castigo y del reconocimiento como fenómeno social, cultural y educador de los valores en común.

90 “Un Derecho Penal legítimamente guardián del Estado social y democrático contra los ataques más graves a los bienes esenciales para el desarrollo individual de los ciudadanos, debe tener en cuenta las interrelaciones de los individuos, debe ser un derecho penal dinámico, atento a la comunicación, que es característica de la sociedad moderna. No se puede más admitir una dogmática que, aunque responda a los clamores políticocriminales, no sea, al mismo tiempo, critica con relación a esos mismos valores de referencia”. BUSATO, Paulo César, op. cit., p. 198.

91 “Los derechos fundamentales son así un patrimonio común de los ciudadanos individual y colectivamente, constitutivos del ordenamiento jurídico cuya vigencia a todos atañe por igual”. FERREYRA, Rául Gustavo, op. cit., p. 137.

92 A propósito de la racionalidad en la defensa legitima advierte Zaffaroni: “Si se entiende la racionalidad como la ausencia de una desproporción insólita y grosera, casi indigante, entre el mal que se evita y el que se causa, cabe reconocer que se dispone de un criterio mucho más preciso que los generalmente usados”. ZAFFARONI, Eugenio Raúl, op. cit., p. 613.

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La tarea de los operadores judiciales, especialmente la del juez, está inserta en la práctica comprensiva su labor es construir sentidos dentro del horizonte de la compleja realidad. El operador judicial no se enfrenta a la realidad social entendida como fenómenos nudos sino que juzga las interpretaciones de la vida en conjunto.

El principio de proporcionalidad, como ejercicio interpretativo y de ponderación de los fines y medios que configuran, los derechos fundamentales, entra en cohesión y coherencia con la propuesta de la TAS, y con su teleología de asegurar los fines de un Estado social de Derecho.

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RESUMEN

La Ley Orgánica 15/2007 de 30 de noviembre, modificó el Código Penal en materia de seguridad vial, creando ex novo la figura delictiva de conducción a velocidad excesiva, hasta entonces reprimida sólo administrativamente. Desde la perspectiva de su aplicación práctica, tanto la identificación del delincuente como la misma comprobación del delito, presentan importantes problemas cuando la notitia criminis es obtenida por alguno de los cinemómetros instalados en cabinas fijas, mediante una medición automática de la velocidad de la que el único dato identificativo que se obtiene es el número de la placa de matrícula.

ABSTRACT

Law 15/2007 of November 30th, amended the Criminal Code in road safety, creating first the offense of driving at excessive speed, hitherto repressed only administratively. From the perspective of practical application, both the identification of the offender as the same check crime, have significant problems when crime news are obtained by one of the speed trap in fixed booths installed by automatic measurement of the speed of the unique identifying information you get is the number of the license plate.

EL DELITO DE CONDUCCIÓN CON EXCESO DE VELOCIDAD. ALGUNOS PROBLEMAS PRÁCTICOS1

D. Manuel Jesús Mateo Romero2

1 Estudio presentado, bajo la tutela del Profesor Dr. D. Alfonso Galán Muñoz, como Trabajo Final en el Máster Universitario en Criminología y Ciencias Forenses de la Universidad Pablo de Olavide de Sevilla (España), obteniendo del tribunal la calificación unánime de Sobresaliente.

2 Licenciado en Derecho y Máster en Criminología

ThE CRIME EXCESS SPEED. SOME PRATICAL PROBLEMS

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ABREVIATURAS

ADPCP Anuario Derecho Penal y Ciencias PenalesArt. ArtículoATC Auto del Tribunal ConstitucionalCCir Código de la Circulación de 1934CE Constitución Española de 1978Cfr. ConfrontarCP Código PenalDGT Dirección General de TráficoEd. EdiciónFGE Fiscalía General del EstadoINE Instituto Nacional de EstadísticaITV Inspección Técnica de Vehículoskm/h Kilómetros por horaLECrim Ley de Enjuiciamiento CriminalLSV Ley de Seguridad VialLO Ley Orgánicamph Millas por hora (miles per hour)p.e. Por ejemploRACC Real Automóvil Club de CataluñaRD Real DecretoRDLeg Real Decreto LegislativoRECPC Revista Electrónica de Criminología y Ciencias PenalesRGC Reglamento General de CirculaciónRGDP Revista General de Derecho PenalRGV Reglamento General de VehículosRICAPL Revista Internacional Comunicación Audiovisual, Publicidad y Literatura.SAP Sentencia de la Audiencia Provincialss. SiguientesSTC Sentencia del Tribunal ConstitucionalSTS Sentencia del Tribunal SupremoTC Tribunal ConstitucionalTS Tribunal SupremoUlt. vis. Última visitaVid. Véase

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INTRODUCCIÓN

La consideración de la velocidad como fuente de peligro y origen de innumerables accidentes, es tan antigua como la propia historia del automóvil. Ya en el primer accidente mortal del que se tiene constancia3, ocurrido al sur de Londres el 17 de agosto de 1896, los testigos del mortal atropello a Mrs. Bridget Driscoll de 44 años de edad, destacaron la velocidad a la que el auto de motor de explosión circulaba “a unas 8 mph (12,9 km/h)…tan temeraria como la de un camión de bomberos, y tan rápido como un buen caballo puede galopar”. Su conductor, Mr. Arthur Edsel, en cambio aseguró que no circulaba a más de 4 mph (6,45 km/h), que gritó y tocó la campana del auto para advertir su presencia, y que en cualquier caso, respetó los límites máximos, recientemente elevados a 14 mph (22 km/h).

Tras seis horas de deliberación, el jurado consideró que la muerte de Mrs. Driscoll fue accidental, dictaminándose – en el que puede considerarse el primer juicio criminal en materia de seguridad vial – la absolución del acusado, lo que provocó no poco rechazo entre la población londinense, que parecía adivinar las molestias, los ruidos y la amenaza, que supondría compartir los espacios públicos con el incipiente invento, y que originaría -en esa época- un verdadero sentimiento anti-coche4.

Para mayor indignación, la exposición sobre el nuevo invento del automóvil, de la que formaba parte el automóvil siniestrado, fue posible gracias al reciente giro político -aperturista a la industria del motor- que el nuevo Gobierno conservador, tras un encendido debate en torno a los límites de velocidad, consiguió del Parlamento, y que se plasmó en la aprobación en 1896 de la “Locomotives on Highways Act” la cual derogó, sólo unas semanas antes de la muerte de Mrs. Driscoll, a la “Locomotive Act” que desde 1865 – “haciéndose eco del sentimiento popular que opina que no se puede ir por ahí asustando a los caballos, y haciendo tanto ruido”5 – imponía unos límites muy estrictos de velocidad – 4 mph (6 km/h) en el campo, y 2 mph (3 km/h) en poblados. Tras 31 años de vigencia, la ambición industrial y las infinitas posibilidades de desplazamiento que el automóvil brindaba a la imaginación humana, vencieron a su inveterada resistencia ante cualquier avance tecnológico.6

3 “The history of road safety”; Road Safety Centre, www.roadsafety.cardiff.gov.uk/history, 25/05/12.4 ANDREW MCFARLANE, “How the UK’s first fatal car accident unfolded”. http://www.bbc.co.uk/news/

magazine-10987606. Ult. vis.: 25/05/12.5 ANDREW MCFARLANE, BBC News magazine, art. cit.6 En 1861, el Tribunal de Apelación de Munich – Oberlandesgericht München – declaró que la explotación

de un ferrocarril era una actividad antijurídica. Cita de BAIGÚN,D. “Delitos de peligro y la prueba del dolo”, Maestros del Derecho Penal n. 23, p. XVIII. Buenos Aires: B. de F., 2007.

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En España sería la Real Orden de 1897 la que iniciara la historia normativa de los “vehículos no movidos por la fuerza animal”, a la que sucedieron una serie de Reales Decretos7 que daban separada regulación a diversos aspectos de la circulación, como la limitación de velocidad – 15 km/h en pueblos, 28 en despoblados –, y la obligación de matricular previamente el vehículo8. En 1926, el Reglamento para la Circulación de Vehículos de Motor Mecánico por las Vías de España unificó los anteriores, y sirvió de base para la redacción del Código de la Circulación, que finalmente se aprobó Por Decreto del Presidente de la República de 25 de septiembre de 1934.

La promulgación de la Constitución Española de 1978, y los inevitables síntomas de obsolescencia que, el transcurso de las décadas y el perfeccionamiento ininterrumpido de la técnica automovilística, habían causado en el Código de 1.934, llevaron al legislador a encargar mediante la Ley de Bases 18/1989, de 25 de julio, la redacción de un texto articulado que alcanzase a regular aquellos aspectos de la circulación más recientes y novedosos. Así, el texto articulado de la Ley de Seguridad Vial (en adelante LSV), fue aprobado por el Real Decreto Legislativo 339/1990, de 2 de marzo, y a pesar de que, según su Preámbulo pretendía “abandonar la anterior concepción puramente policial de la actuación administrativa”, puede decirse que el orden administrativo diseñado se caracteriza principalmente por perseverar en la amenaza sancionadora para garantizar la seguridad vial, descuidando en exceso su promoción mediante otras políticas, como las de educación vial, que básicamente han venido consistiendo en ocasionales campañas de concienciación a través de los medios – costosas y de discutible eficacia educadora9 –, o las de infraestructuras de la red viaria, siempre necesitadas de mejora.

Así, recién aprobada la Ley 30/1992 de 26 de noviembre, la DGT no pudo resistirse a poseer un procedimiento sancionador propio, al igual que los ya existentes en otros ámbitos – tributario10, aduanero11 o social12 –, como tampoco se ha resistido más recientemente, a los beneficios que el progreso técnico ha ido brindando a su campo. El perfeccionamiento

7 Reglamento para el servicio de coches automóviles de 16 de septiembre de 1900, y Reales Decretos de 1909, 1918, 1920 y 1922.

8 Trámite administrativo que inauguró el 31 de octubre de 1900 en Palma de Mallorca, D. José Sureda, propietario de un Clement de fabricación francesa, a quién se le otorgó la matrícula número PM-1. Vid. http://dgt.es/portal/en/la_dgt/historia/. Ult. vis.: 26/05/12.

9 CASTELLÓ MAYO, E. Las campañas de educación vial de la Dirección General de Tráfico: de la sensibilización a la victimización, RICAPL, n. 8, v. 1, p.1-14, Sevilla, 2010.

10 Real Decreto 2631/1985, sobre procedimiento para sancionar las infracciones tributarias.11 Real Decreto 971/1983, relativo a las infracciones de contrabando.12 Ley 8/1998, de 7 de abril, sobre Infracciones y Sanciones en el Orden Social.

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de los instrumentos destinados a medir la velocidad, la tasa de alcoholemia, la captación de imágenes mediante fotografía o video, y el advenimiento de las nuevas tecnologías de la información, han tenido cálida acogida en la normativa sectorial y profusa utilización, las más de las veces, como mecánica fuente probatoria de cargo, y más recientemente para tratar de corregir la ineptitud crónica que la Administración padece a la hora de notificar sus actos13. De igual modo han sido acogidos los mismos planteamientos político-criminales utilizados en el ámbito procesal penal respecto de la conformidad premiada, de modo que se ha creado mutatis mutandis un “juicio rápido” administrativo – el procedimiento sancionador abreviado – en el que la aceptación por el denunciado de su responsabilidad, es correspondida por la Administración con un descuento en el importe de la sanción que asciende a un 50%.

Por si todo lo anterior no fuera suficiente, este elaborado aparato sancionador se ha completado con una artificiosa técnica de imputación de la responsabilidad administrativa, cuya intención manifiesta es evitar a toda costa el sobreseimiento de expedientes incoados a conductores no identificados o menores de edad. Así, las ”nuevas soluciones”14 incorporadas a la causa, han consistido en obligar a quienes ejerzan la patria potestad – en una singular lectura de la institución civil –, a “prevenir la infracción administrativa imputable a los menores”15, y en ampliar las obligaciones que los titulares de vehículos asumen a la hora de su matriculación, entre la que destaca especialmente, como se verá, la de identificar verazmente al conductor infractor.

Respecto del catálogo de sanciones, la implantación del sistema de permiso y licencia de conducción por puntos16 supuso una verdadera revolución en el tradicional régimen de autorizaciones para conducir, las cuales pasaron a condicionar su vigencia al hecho de que se mantuviese un saldo positivo en su crédito. Este complemento sancionador demostró desde el mismo día de su entrada en vigor el 1 de julio de 2006, unas virtudes preventivas sumamente eficaces que se tradujeron, casi inmediatamente, en un considerable descenso en las cifras estadísticas de la siniestralidad vial, como refleja el gráfico:

13 La Ley 18/2009, de 23 de diciembre, de modificación de la LSV crea la Dirección Electrónica Vial (DEV), y el Tablón Edictal de Sanciones de Tráfico, en formato digital (TESTRA). El párrafo I de su Preámbulo reza: “El empleo, cada vez más frecuente, de medios de detección de infracciones donde no se produce la detención del vehículo, y las deficiencias derivadas del sistema actual de notificaciones […]”.

14 El Preámbulo de la Ley 18/2009, de 23 de diciembre, refiere: “[…] la Ley mantiene el tradicional sistema de determinación de la responsabilidad dirigido a castigar al autor del hecho infractor. No obstante, la reforma no es ajena al hecho de que nuevas realidades exigen nuevas soluciones […]”

15 Vid. art. 69.1.b LSV.16 Ley 17/2005, de 19 de diciembre.

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GRÁFICO 1 – Número fallecidos accidente/ Normativa tráfico

FUENTE: Anuario estadístico de accidentes (2010) – Servicio de Estadística DGT (Madrid, 2011)

Precisamente por semejante demostración de acierto, es por lo que la doctrina mayoritaria no entendió cuáles fueron las razones que llevaron al legislador de 2007, a aprobar una reforma urgente del CP en materia de seguridad vial, que pasaría por resucitar el delito de conducción desautorizada, y por la creación ex novo del delito de conducción a velocidad excesiva, tipificado en el 379.1 CP según su nueva redacción. La constatación de esta velocidad excesiva requerirá, obviamente, de una medición correcta y rigurosa, que generalmente será obtenida mediante los mismos procedimientos e instrumentos que para los expedientes administrativos, pero que por su diseño de funcionamiento mecánico y automatizado, pueden plantear no pocos problemas de aplicación práctica, algunos de los cuales son objeto de reflexión en el presente estudio.

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1 EL TIPO PENAL DEL 379.1 CP

1.1 LA REFORMA OPERADA POR LA LO 15/2007, DE 30 DE NOVIEMBRE

Con la velocidad ¿qué está pasando?, hemos puesto radares con los que hemos obtenido unas fotos de tíos que iban a 240 y a 250, y a nosotros nos parecía que aquello no era administrativo, que aquello era una pasada. Las hemos enviado al Juez y nos las devuelve diciendo: si no hay un niño o una viejecita en la foto, no nos vale. No entendemos nada.

Estas palabras del Director General de Tráfico, pronunciadas en unas jornadas de debate sobre la necesidad de la reforma17, permitían ya vislumbrar las coordenadas hacia donde ésta apuntaba, y que más tarde, en el texto final, quedaron confirmadas:

Con amplio respaldo, el Congreso consideró oportuno impulsar una modificación del Código Penal con el objetivo de definir con mayor rigor los delitos contra la seguridad del tráfico, evitando que determinadas conductas calificadas de violencia vial18 [pudiesen quedar impunes].

Ante esta nueva manifestación del fenómeno al que MARTINEZ-BUJÁN PÉREZ se ha referido como el “Big Bang” del Derecho Penal19, se advierten aún más lejanos los tiempos en los que éste actuaba solamente desde una perspectiva culposa, cuando, descuidadas las normas de cautela en la conducción, se acababa produciendo un resultado. En palabras de MIR PUIG “entonces importaban poco los delitos imprudentes, y menos aún los de peligro”20.

Salvando la efímera vigencia del CP de 192821, fue la Ley de 9 de mayo de 1950, la que inauguró el modelo de tutela penal ex-ante “como medida legislativa necesaria para atajar la multiplicación de los accidentes, debidos en la generalidad de los casos a la falta de

17 Jornadas de Derecho Penal y Seguridad Vial. Centro de Estudios Jurídicos. p.165. Pamplona, 2007. 18 Preámbulo de la LO 15/2007, de 30 de noviembre, por la que se modifica el Código Penal en materia

de seguridad vial.19 MARTINEZ-BUJÁN PEREZ, C. Algunas reflexiones sobre la moderna teoría del Big Crunch en la selección

de bienes jurídicos penales, en PORTILLO CONTRERAS (Coord.). Mutaciones de Leviatán, Sevilla, 2005, pp. 259 y ss.

20 MIR PUIG, S., en Prólogo de Seguridad Vial y Derecho Penal Análisis de LO 15/2007 (Coord.) CARDENAL MONTRAVETA, Tirant lo Blanch, Valencia 2008.

21 Su art. 574 castigaba la conducción de vehículos sin certificación de la aptitud para ello, la marcha con velocidad excesiva, o sin la debida atención de su conductor, o con excesivo número de pasajeros.

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celo de los conductores”22, creando para ello “varias figuras de delito tendentes a prevenir los riesgos propios del uso de los vehículos de motor, aunque no lleguen a producir males concretos sobre las personas o sobre la propiedad”23. A pesar de haberse mostrado ineficaz para atajar la multiplicación de los accidentes, el nuevo modelo, que ofrecía una sugerente alternativa a las limitaciones de la imputación imprudente para perseguir conducciones peligrosas carentes de resultado, no ha dejado de extenderse – en palabras de LACKNER “como un charco de aceite”24 – ampliando generosamente su campo de aplicación, sin abandonar su innato pretexto sobre la función preventiva.

Hasta 1967 no abandonaron estas “modalidades delictivas” su residencia en ley especial, incorporándose al Código Penal – en el Título dedicado a la infracción de las leyes sobre inhumaciones, de la violación de las sepulturas y de los delitos de riesgo general – ante “la persistencia y continuidad con que se producen los delitos cometidos con ocasión del tránsito de automóviles”25, surtiendo el efecto que MUÑOZ CONDE definió como “la carta de naturaleza que despojó a la delincuencia vial del estatus de delincuencia menor, de delincuencia de caballeros”26.

En 1983 se produjo un cierto repliegue penal al descriminalizarse la conducción sin permiso “atendiéndose así a un sentimiento generalizado en los medios forenses y doctrinales, que no han podido apreciar en tal conducta algo más que un ilícito administrativo”27. Esta atención del legislador de 1983, sin embargo y como ya señalamos, fue revocada por la reforma de 2007 que la ha vuelto a tipificar, satisfaciendo una “criticada ausencia”28 y confirmando así su rotunda postura ante la llamada “violencia vial”.

Además de ésta, la otra novedad de la reforma, radica en el tipo penal objeto de este estudio, en el que el legislador ha tratado de corregir su confesa equivocación cometida en la reforma de 200329, en la que intentó objetivar la conducción temeraria punible del

22 STS de 5 de marzo de 1954 cita de ALAMILLO CANILLAS, F. en ADPCP 1959, Fasc II, p.306. Servicio de Publicaciones Instituto Nacional de Estudios Jurídicos, Ministerio de Justicia.

23 STS de 2 de diciembre de 1953.24 LACKNER, Das konkrete Gefährdungsdelikt im Verkehrsstrafrecht, Berlín, 1967, p. 1., cita de DE

VICENTE MARTINEZ, R. Derecho Penal de la Circulación. 2. ed., Barcelona, 2008, p. 329.25 Preámbulo de la Ley 3/1967, sobre modificación de determinados artículos del CP y de la LECrim.26 MUÑOZ CONDE, F. Derecho Penal. Parte Especial. 18. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2010, p. 676.27 Vid. Exposición de Motivos de la LO 8/1983 de 25 de junio, de reforma urgente y parcial del Código

Penal.28 Vid. Preámbulo de la LO 15/2007 de 30 de noviembre, de modificación del Código Penal en materia

de seguridad vial.29 Vid. Comparecencia del Director General de Tráfico en Diario de Sesiones del Congreso, VIII Legislatura,

n. 489, p. 3. También la del Fiscal General del Estado en el mismo Diario n. 437, p. 8.

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anterior 381 CP30, presumiendo la existencia de concreto peligro cuando – sin más – concurriesen dos elementos: velocidad desproporcionada y altas tasas de alcoholemia.

Así, con la decidida intención de estrechar los márgenes interpretativos – y de camino aligerar de peso el onus probandi – ha vuelto a adentrarse, con atrevido provecho de los avances en tecnología métrica, por los vericuetos de las presunciones legales “contra reo”, para extraer “la velocidad desproporcionada” del anterior 381CP y desvalorarla, entendiendo que circular a determinada velocidad es peligroso, siempre y en cualquier circunstancia, sin necesidad alguna de que conste el menor indicio de peligro, y – lo que es peor – sin admitir prueba de lo contrario, castigando dicha conducta como figura delictiva autónoma en el actual 379.1 CP que queda redactado del siguiente literal:

Artículo 379

1. El que condujere un vehículo de motor o ciclomotor a velocidad superior en sesenta kilómetros por hora en vía urbana, o en ochenta kilómetros por hora en vía interurbana a la permitida reglamentariamente, será castigado con la pena de prisión de tres a seis meses o con la de multa de seis a doce meses o con la de trabajos en beneficio de la comunidad de treinta y uno a noventa días, y, en cualquier caso, con la de privación del derecho a conducir vehículos a motor y ciclomotores por tiempo superior a uno y hasta cuatro años.

Aunque es obvio que la velocidad, por sí misma, no es causa directa de accidentes, si no va acompañada de algún otro factor concurrente en la circulación (distracción, distancia de seguridad con el vehículo precedente, lluvia, niebla, cambio de rasante, curvas de reducida visibilidad etc.) el legislador ha acogido llanamente las tesis que relacionan siniestralidad y velocidad31, y todo ello sabedor de la desarmonía existente entre las actuales carreteras, sus límites de velocidad – establecidos en 197432 –, y la correspondiente señalización, la cual provoca la situación de que tras una limitación, no siempre exista un riesgo que la justifique.

30 El 2º párrafo del anterior 381CP rezaba: “En todo caso se considerará que existe temeridad manifiesta y concreto peligro para la vida o la integridad de las personas, en los casos de conducción bajo los efectos de bebidas alcohólicas, con altas tasas de alcoholemia y a velocidad desproporcionada respecto de los límites establecidos”.

31 MONTORO GONZÁLEZ en su comparecencia ante la Comisión no permanente de Seguridad Vial manifestó que es innegable que a mayor velocidad, mayores probabilidades de sufrir un accidente, ya que disminuye la distancia de reacción del conductor, y en caso de impacto aumenta considerablemente su violencia. Diario de Sesiones del Congreso. VIII Legislatura, n. 537, p. 3.

32 El Decreto 951 de 5 de abril de 1974, extendía a todos los vehículos la limitación de velocidad prevista en el art. 93 del Código de la Circulación. hasta entonces sólo para vehículos pesados, con el objeto de reducir el consumo de petróleo.

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Consciente de ello el reformador penal, vía Disposición Adicional, ha encargado sine die al Ejecutivo que revise – al alza o a la baja – los límites de velocidad actuales, y a continuación actualice y subsane su señalización.33

De este insólito reconocimiento oficial al incongruente estado en que se encuentran los límites y sus señales, pueden extraerse varias conclusiones. La primera de ellas es que, de forma tácita, se está admitiendo sin ningún pudor, que no todos los límites de velocidad están debidamente justificados y que – al menos hasta que se revisen –, van a imponerse condenas penales sobre tales límites34. La segunda es que se persigue evitar el efecto que unos límites manifiestamente obsoletos y una señalización descuidada provocarían en los conductores, utilizando para ello técnicas preventivas – muy en la órbita de la teoría de las ventanas rotas (broken windows)35 – que pretenden infundir mayor respeto a la señalización, mediante una mayor apariencia de orden y seriedad.

Esta pretensión de seriedad y de realismo en la señalización, es ciertamente necesaria en lo que respecta a la regulación de la velocidad, donde es fácilmente apreciable el carácter de norma perversa propuesto por FERNÁNDEZ DOLS36. Así, en un contexto social de exaltación de la velocidad como símbolo de virtuosismo37, y que sirve de base para el diseño de nuevos modelos de automóviles, se estima que los límites de velocidad son habitualmente infringidos por más del 50% de los conductores, para los cuales es su modo normal de conducir, sin que por ello experimenten la más mínima sensación de inseguridad.

Estas conductas, observadas a diario en la mayoría de los conductores, y estadísticamente confirmadas38, terminan señalando lo que es habitual y, por tanto, lo que debe erigirse como norma. Si como afirmó HOBBES: “No es la palabra de la ley, sino la

33 La Disposición adicional de la LO 15/2007, por la que se reforma el CP en materia de seguridad vial, prevé: “Revisión de la señalización vial y de la normativa reguladora de los límites de velocidad. El Gobierno impulsará, de acuerdo con las administraciones competentes, una revisión de la señalización vial y de la normativa reguladora de los límites de velocidad, para adecuar los mismos a las exigencias derivadas de una mayor seguridad vial.”

34 En contrario, la FGE considera el encargo como un mero recordatorio de las obligaciones de señalización de la vía, por lo que los límites actualmente existentes son incuestionables.

35 MUÑOZ CONDE/ HASSEMER. “Introducción a la Criminología”, Tirant lo Blanch, 2011.36 FERNÁNDEZ DOLS, J. Análisis psicosocial del conductor indómito en ORTS BERENGUER (Coord.)

Prevención y control de la siniestralidad vial, pp. 79 y ss., Tirant lo Blanch. Valencia, 2011.37 Obsérvese que actualmente existen competiciones deportivas de velocidad en múltiples modalidades,

donde los ganadores adquieren considerable prestigio y éxito mediático: Pedrosa, Lorenzo o Stoner en Moto GP; Alonso, Vettel o Schumagger en Fórmula 1, Carlos Sainz, Dani Roma en rally Paris-Dakar.

38 En 2009 se impusieron algo más de 4 millones de multas de tráfico, de las cuales 773.144 lo fueron por exceso de velocidad, un 19% del total. Además fueron condenadas 1.542 personas por el delito del 379.1CP. Vid Anuario Estadístico General DGT 2010.

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fuerza de la nación lo que las hace efectivas.”39, quizás debería pensarse en adecuarlas al comportamiento de la mayoría, pues no debiera una norma – que se tenga por legítima – provocar semejante número de conductas desviadas. A pesar de ello la prohibición no sólo persiste, sino que endurece su represión, y todo ello bajo unas condiciones de aparente desorden y desajuste con la realidad40, que la hace completamente desmotivadora. Esa es la principal característica de la norma perversa, que parece existir más para ser infringida, que para ser respetada.

Independientemente de los motivos oficiales de la reforma, la doctrina apunta otros que, en algunos casos, no guardan relación alguna con la seguridad vial. Así, se señalan como causas directa de la reforma – aprobada por los trámites legislativos de urgencia y, como se ha dicho, a contracorriente de la evolución estadística de la siniestralidad – a la creciente exigencia de seguridad que el ciudadano demanda del Estado.

Esta exigencia es fruto de la moderna sociedad del riesgo41, cuyo desarrollo industrial, científico y tecnológico provoca, por sus cursos de acción y efectos, nuevos riesgos y peligros para el individuo. Éste soporta esa incertidumbre cada vez menos, y exige seguridad al Estado cada vez más, todo ello paradójicamente en un momento en el que, “como ningún otro en la historia, la sociedad es más capaz que nunca de predecir, medir y garantizar el resultado de lo futurible”42. Esta situación lejos de incomodar a los gobernantes, es aprovechada – cuando no fomentada – para practicar lo que BOTTOMS denominó “populismo punitivo”43. Primeramente se exploran las inquietudes y miedos de la sociedad, y a continuación se anuncian – y lo que es peor, a veces se toman – las medidas penales paliativas, todo ello con manifiesta finalidad electoralista, en el momento político oportuno, y acompañándose del boato y propaganda propios de tan solemne anuncio.

En palabras de DEL ROSAL BLASCO, esto hace que las nuevas fuentes del conocimiento penal sean los sentimientos del pueblo, sin que entre éstos y las decisiones

39 HOBBES, T. Diálogo entre un filósofo y un jurista. Madrid: Tecnos, 1992, p. 10. (Colección Clásicos del Pensamiento).

40 Adviértase el mensaje que recibe el conductor que transita por un tramo de vía afectado por una limitación de velocidad por peligro inminente, y tras recorrerlo comprueba su inexistencia.

41 BECK, U. La sociedad del riesgo. Barcelona: Paidós, 1998. En su Primera Parte, define los contornos de la sociedad que se caracteriza por su supranacionalidad, la imperceptibilidad del peligro, la expropiación ecológica, y el paso de la normalidad a la absurdidad”.

42 EIRANOVA ENCINAS, E. Operaciones económicas de alto riesgo. n. 14, Madrid: Dykinson, 2002. (Cuadernos Luis Jiménez de Asúa).

43 TRAPERO BARREALES, M. Los delitos contra la seguridad vial: ¿Una reforma de ida y vuelta? nota 2. Valencia: Tirant lo Blanch, 2011.

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políticas, intermedien reflexivamente los expertos.44 En la formación y fomento de estos sentimientos tienen en la actualidad relevante influencia los medios de comunicación, los cuales conforme a la “cultivation theory” que formulara GERBNER45, en su afán por impresionar con la mejor noticia – y la mejor noticia es siempre la más escandalosa –, tienden a amplificarla y a reiterarla provocando que los destinatarios perciban el fenómeno vial con desolación y exagerada preocupación, causándoles una sensación de vulnerabilidad que acaba desembocado en miedo y temor infundado46.

Por ejemplo, el National Safety Council estima que, en el mundo, se han de recorrer 100 millones de kilómetros para que ocurra un accidente mortal; por otro lado la OMS afirma que anualmente pierden la vida, en accidentes de circulación, 1,2 millones de personas47. Ambas noticias son verídicas, sin embargo la que probablemente acabe definiendo si el tráfico es o no peligroso, será esta última, confirmando así el adagio que afirma que hace más ruido un árbol cuando cae que todo un bosque cuando crece.

TAMARIT SUMALLA y LUQUE REINA defienden que no se ahorren esfuerzos en rebajar, aminorar, el número de accidentes en nuestras carreteras; pero también señalan que es necesario un discurso racionalizador que evite un alarmismo que sirva de caldo de cultivo a una huida insensata al Derecho Penal como la que se ha producido.48

Otro destacado motivo para promover la reforma ha sido el “redescubrimiento” de la víctima, fenómeno que en lo que respecta a la siniestralidad vial adquiere singular magnitud, dadas sus escalofriantes cifras sin comparación en ningún otro ámbito delincuencial. Asociadas convenientemente, se resisten a la victimización secundaria exigiendo satisfacción a sus expectativas de justicia: mano dura contra los conductores “violentos”. Así se erigen en un colectivo lo suficientemente inquieto y numeroso como para atraer la atención política, la cual – hipersensible ante semejante potencial electoral – acaba allanándose a todas sus demandas, consumándose lo que VIVES ANTÓN considera el más grave error que puede cometer el legislador penal:

44 DEL ROSAL BLASCO, B. ¿Hacia el Derecho Penal de la Postmodernidad?, RECPC, 11 ago. 2009. 45 VALBUENA DE LA FUENTE, F. Teoría General de la Información, p. 499. Madrid: Noesis, 1997. 46 HASSEMER destaca este efecto afirmando que “[…] una sociedad que dispone de tales medios y

además está morbosamente interesada en el drama y en la violencia, ya no necesita experimentarla personalmente para percibirla como omnipresente.”, en “El destino de los derechos del ciudadano en el derecho penal eficiente”, en Crítica al derecho penal de hoy, (trad. de Patricia S.Ziffer) Universidad Externado de Colombia, Bogotá, 1998.

47 FERNÁNDEZ-DOLS, J. , Ibidem.48 TAMARIT SUMALLA/ LUQUE REINA, “Automóviles, delitos y penas. Estudio de la criminalidad y de las

sanciones penales relacionadas con los vehículos de motor”. pp. 93-94. Valencia, 2007.

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Una cosa es que se oiga a las víctimas, que se las proteja y ayude por todos los medios posibles, y otra –muy distinta e indeseable- es que se tenga por justa la pena que ellas desearían imponer. Las víctimas no pueden ser jueces, tomarlas por tales socavaría el fundamento mismo de la pena pública, y nos devolvería a la época tribal de la venganza privada49.

La sensación de impunidad, referida en el Preámbulo de la reforma y núcleo de las denuncias de estos colectivos, trae causa, más que en la ley50, en la bagatelización judicial de las imprudencias viales, las cuales son generalmente calificadas como leves, haciendo que los accidentes mortales – de momento – se despachen mediante juicios de faltas que normalmente se acaban archivando, una vez indemnizado el perjuicio causado. Este resultado final, aun siendo lícito, es criticado por estos colectivos que no terminan de entender como la muerte de una persona puede tener como única consecuencia una indemnización, y que encima sea la compañía aseguradora quién la pague, y no el propio “asesino”. Arrecian estas críticas cuando se conocen decisiones absolutorias de jueces insensibles y contrarios a la causa, a quienes – aprovechando el interés mediático por el escándalo – se les reprende públicamente y se les califica, sin ningún pudor, de cómplices de esas mismas conductas “violentas” que permiten51.

A pesar de que la FGE haya denunciado la muy deficiente formación de los conductores españoles – donde nada menos que el 96,5% carecen de los conocimientos adecuados52 –, y de que la experiencia estadística señale otros ámbitos administrativos de probada eficacia en la reducción de las cifras de la siniestralidad vial:

49 VIVES ANTÓN, T. en el Prólogo a La reforma del Código Penal tras 10 años de vigencia, Centro de Estudios Jurídicos, 2006, p. 13.

50 Los arts. 142 y 152 CP prevén importantes penas -prisión hasta 4 años – para graves resultados causados por imprudencia grave.

51 Por ejemplo la SAP de Burgos de 12 de marzo de 2007 que anuló la condena a 6 meses de prisión impuesta al conductor de un Audi A-8 “cazado” a 260 km/h, por entender que no hubo peligro concreto, al tratarse de tramo recto de autovía, buen tiempo y visibilidad, y escasa circulación.

52 Memoria de la Fiscalía General del Estado 2009, p. 772. Ministerio de Justicia. Madrid. 2010.

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- la vigilancia y control de la normativa de tráfico:

GRÁFICO 2 – Evolución histórica número fallecidos accidente/ Denúncias administrativas

FUENTE: Anuario estadístico de accidentes (2010) – Servicio de Estadística DGT (Madrid, 2011)

- la construcción y puesta en servicio de autopistas y autovías:

GRÁFICO 3 – Evolución histórica número fallecidos accidente/ Kilómetros autopista

FUENTE: Instituto Nacional de Estadística. Base de datos de servicios (disponible en: www.ine.es/inebmenu/mnu_transporte.htm)

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63Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 5, n. 8, p. 49-102, jan./jun. 2013

- el incremento en las plantillas de agentes de tráfico:GRÁFICO 4 – Evolución histórica número fallecidos accidente/ Plantilla guardia civil tráfico

FUENTE: Guardia Civil de Tráfico, 50 años. Servicio Publicaciones Ministerio del Interior. (Madrid, 2009)

El legislador tiránico – en el concepto de BECCARIA53 – ha optado, una vez más, por el severo castigo antes que por las medidas preventivas, desoyendo la propuesta que hace algunas décadas hiciese CUELLO CALÓN54, y continuando el camino que ya iniciara en 1995, “no solo traicionando el principio de intervención mínima [...]” – en palabras de RODRIGUEZ RAMOS –, “[...] sino convirtiendo el Código Penal en una orgía de criminalizaciones”55.

Se avanza así con paso firme hacia esa confusión, de la que ya advirtiera PETERS respecto de los fundamentos del Derecho Penal, el cual al extenderse a la seguridad vial se inundaría de bagatelas, disminuyendo la sensibilidad hacia la pena y su significación y

53 “Toda pena que no proceda de la absoluta necesidad, dice el gran Montesquieu, es tiránica” BECCARIA, C. “De los delitos y de las penas”.

54 CUELLO CALÓN, E. “La delincuencia automovilística y su represión”, ADPCP 1955, p. 289.55 RODRIGUEZ RAMOS, L. en el Prólogo al libro de GÓMEZ PAVÓN,P. El delito de conducción bajo

influencia de bebidas alcohólicas, drogas tóxicas o estupefacientes, Barcelona, 1998, p. 9.

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oscureciendo la visión de la auténtica criminalidad56, lo que conducirá, parafraseando a HASSEMER y a MUÑOZ CONDE, a que muy probablemente, al final, las mallas de la red penal atrapen sólo a los peces pequeños, dejando escapar a los grandes57.

Esta bagatelización impulsada por la reforma ha tenido como consecuencia inmediata un explosivo incremento de procedimientos penales, cuyo número ha llegado a triplicarse, conforme puede observarse en el siguiente gráfico:

GRÁFICO 5 – Evolución histórica del número de procedimentos penales por delitos contra la seguridad vial

FUENTE: Instituto Nacional de Estadística. Base de datos de seguridad y justicia (disponible en: www.ine.es/inebmenu/mnu_justicia.htm)

A pesar del volumen de procedimientos, la Fiscalía niega que se estén produciendo sobrecargas en el normal funcionamiento de los Juzgados – “gracias a que se despachan fundamentalmente como Diligencias Urgentes, al altísimo porcentaje de conformidades (en torno al 95%), y a unos tipos penales de naturaleza cuasi-objetivas58” –. No obstante,

56 PETERS, K. Grundprobleme der Kriminalpädagogik. Berlín, 1960, pp. 307 y ss.57 MUÑOZ CONDE/HASSEMER, Introducción a la Criminología, p. 331. Valencia, 2001.58 Vid. MEMORIA GENERAL DE LA FISCALIA GENERAL DEL ESTADO 2011, p. 1055.

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65Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 5, n. 8, p. 49-102, jan./jun. 2013

aunque no se produzcan disfunciones durante el enjuiciamiento, no es arriesgado afirmar que, más bien, éstas se producirán en fase ejecutoria, debido principalmente al inmenso número de condenas impuestas, y a un predecible incremento de impagos de multas, consecuencia lógica del actual contexto laboral y financiero.

Por todo lo dicho, no es de extrañar que no haya sido precisamente una laudatio lo que la doctrina mayoritaria ha dedicado a esta reforma59.

1.2 EL BIEN JURíDICO PROTEGIDO

“El problema no es la velocidad que cada coche alcance en un momento determinado, sino el culto a la velocidad que trae consigo el progreso.” De esta forma parafraseaba REYES MATE, durante su intervención en el Seminario de especialización en seguridad vial para Fiscales,60 al filósofo español GARCíA MORENTE, criticando así el descomunal coste humano que acarrea el progreso y pidiendo un cambio en el estilo de vida apresurado y veloz que éste demanda: “tirando del freno de emergencia de la locomotora de la historia universal, que decía MARX, eran las revoluciones”61.

Este estilo de vida apresurado no es nuevo en absoluto; en verdad puede decirse que la humanidad nació con la necesidad de trasladarse, y hacerlo rápidamente siempre le aportaba ventajas. Desde sus mismos albores, los cazadores-recolectores necesitaban seguir constantemente a las manadas de animales, y cualquier técnica que les permitiera moverse

59 VALLESPíN PÉREZ destaca su eficacia simbólica, lamentando el desvanecimiento de la frontera entre el ilícito penal y el administrativo y la desconfianza del legislador hacía la hermenéutica judicial. DE VICENTE MARTINEZ recuerda que el empecinamiento y la urgencia por reformar el CP alcanzó tales cotas que las enmiendas presentadas al articulado, no se correspondían con la materia y artículos propuestos, lo que evidenció el desinterés de los propios grupos parlamentarios en la reforma. QUERALT JIMENEZ la considera un parche más cara a la galería, que pone negro sobre blanco lo peor del Derecho Penal Moderno: “Desconocimiento del legislador del instrumento que maneja, e incremento de inseguridad jurídica que llevará a interpretaciones arbitrarias”. GARCíA ARÁN critica que el simbolismo de la reforma envíe al ciudadano el preocupante mensaje de que la solución a cualquier conflicto sólo puede venir del Derecho Penal.

60 Encuadrado en la Escuela de Otoño del Ministerio Fiscal se celebró en Fuerteventura en octubre de 2007. Su ponencia “El progreso, la velocidad y los accidentes de tráfico” fue publicada por el RACC en su Anuario de la Movilidad 2009, pp. 27 a 37.

61 A lograr este cambio, fomentando un comportamiento ético entre los conductores, se empeña el encouragement , que se une a la estrategia de las 3 E,s – engineering, enforcemente and education – para abordar la siniestralidad vial desde un enfoque multidisciplinar. Esta estrategia está coordinada por el European Transport Safety Council, mediante el Consorcio ShLOW del que España forma parte y cuyos resultados se recogen anualmente en la Memoria General de la FGE, http://www.shlow.eu, 19/06/12. Estas estrategias se desarrollan con éxito en Estados Unidos desde 2000, por la National Highway Traffic Safety Administration; http://www.nhtsa.gov, 19/06/12.

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más rápido y anticiparse en la caza, podía considerársela un progreso revolucionario que aseguraba el alimento. Así, una de las principales aportaciones del invento del vehículo a motor, fue la de permitir a sus usuarios satisfacer esta ancestral necesidad de traslación, en menor tiempo que el resto de vehículos de la época. Revolucionariamente, la velocidad y sus beneficios estarían a disposición de cada vez más gente.

Sin embargo, estos beneficios no serían posibles sin la asunción de ciertos riesgos derivados del propio movimiento de la máquina para desplazarse por el terreno, y que frecuentemente acabarían causando resultados dañosos. Ahí radicaba su negatividad específica62, y de ella se ha venido ocupando el Derecho Penal conforme se ha dicho, en primer lugar castigando los resultados lesivos para la vida y la salud de las personas –delitos de resultado de lesión –, y más tarde adelantándose a él, acentuando el desvalor en aquellas acciones que, tras un juicio de probabilidad basado en la experiencia, aparecen como potenciales causantes de tales lesiones, en unos casos manifestándose en una situación arriesgada (resultado de peligro) exigida en el tipo de injusto, – delitos de peligro concreto-, y en otros sin que típicamente sea necesario que se exteriorice peligro alguno – delitos de peligro abstracto63.

En la figura delictiva objeto de este estudio, el legislador ha basado su juicio de probabilidad en el conocimiento estadístico que afirma que la conducción a velocidad inadecuada – la no correcta en relación a la vía u otras circunstancias- está presente en el 27% de los accidentes mortales64, para diseñar un delito de peligro abstracto puro, cuyo principal ingrediente es la velocidad a secas, y sin relacionarla con nada, castigar la conducción cuando simplemente supere una determinada cantidad de movimiento, presumiéndose que siempre y en todo caso – ya que no admite prueba en contrario – se da una situación peligrosa para la seguridad vial.

Aunque, como se ha dicho, la velocidad por sí sola no causa directamente ningún accidente, es innegable que en caso de producirse, éste resultaría más violento

62 VIRILIO constata que: “Toda conquista técnica trajo consigo una negatividad específica: el barco trajo el naufragio; el tren, el descarrilamiento; el avión, el estrellarse; la electricidad, la electrocución; la relatividad, la bomba atómica [...]”, para advertir luego de lo peligroso de alabar, sin más, los avances técnicos: “Hay que tratar de señalar lo que es negativo en lo que parece positivo. Sabemos que no progresamos por medio de una tecnología, sino reconociendo su accidente específico, su negatividad específica”, en “El cibermundo, la política de lo peor” p. 14, Colección Teorema, Editorial Cátedra, Madrid 1997.

63 HEFENDEHL, R. ¿Debe ocuparse el Derecho Penal de los riesgos futuros?, nota 14 RECPC 04-14. 2002.

64 “Las principales cifras de la siniestralidad vial. España 2010”, p.41. Servicio de Publicaciones Dirección General de Tráfico. Madrid, 2010.

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67Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 5, n. 8, p. 49-102, jan./jun. 2013

y sus consecuencias por lo general más graves cuanto a mayor velocidad circulasen los vehículos implicados, ya que en la colisión se libera súbitamente – conforme a la Ley de la Conservación de la Energía – toda la energía cinética generada por el movimiento, que será mayor cuanto mayor sea la velocidad. Esta liberación de energía cinética se produce mediante una explosiva transformación en otras formas –disipativas – de energía que frenan y mueven los vehículos en todas direcciones tras la colisión, producen calor y ruido, rompen y deforman las carrocerías y materiales etc.65 Parece ser que además, la velocidad influye a nivel fisiológico en los procesos de visión del conductor medio, disminuyendo sensiblemente sus capacidades de percepción y estimación de distancias66.

El legislador penal tira así “del freno de emergencia de la locomotora de la historia universal”, transmitiendo un mensaje simbólico –previo y complementario del mensaje normativo67 – sobre el reproche ético-social que entiende debe merecer la circulación a velocidad elevada. Adoptando la moraleja del refrán castellano “muerto el perro, se acabó la rabia”, propone su fórmula para garantizar la seguridad vial: “A menos velocidad, menos peligro”, la cual creemos que, sólo en teoría, es cierta pues aplicada hasta sus últimas consecuencias, nos llevaría hasta la única circulación, en puridad huérfana de peligro: la no-circulación, si bien despojando “de su papel en la vida social68” al riesgo inherente al tránsito motorizado.

Así, en su permanente función ponderadora entre protección de bienes jurídicos y permiso de riesgos, el legislador ha considerado inadmisible la circulación a semejantes velocidades por las vías de uso público, presumiendo iuris et de iure – al no admitir prueba en contrario69 –, que ello menoscaba siempre y en todo caso el nivel mínimo de orden y seguridad que debe exigirse en la utilización de estas vías públicas, en las que se desarrollan actividades susceptibles de provocar daños y lesiones –incluso fatales – entre

65 MERA REDONDO, A. Reconstrucción de accidentes de tráfico, p. 91. Imprenta de la Escuela de Tráfico de la Guardia Civil. Mérida. 2008.

66 ESCOFET SOTERAS. Estado de la salud de los conductores españoles, p. 10. Estudio RACC – Universidad Politécnica de Catalunya. 2011.

67 SANCHEZ-MORALEDA VILCHES, N. Instrumentalidad y simbolismo en los delitos contra la seguridad vial, p. 10, en RGDP, n. 16, Madrid: Iustel, 2011.

68 Vid.WELZEL. “Das deutsche Strafrecht”, p. 5, cita de CEREZO MIR, Curso de Derecho Penal Español. Parte General. nota 7, p. 14. 5. ed. Madrid: Tecnos, 1997.

69 En el X Congreso Internacional de Derecho Penal (Roma 1969), se adoptó la conclusión de que el sistema de peligro presunto debe ser cuidadosamente dosificado y debe comportar la posibilidad legal de aportar prueba en contrario para rebatir la presunción, al menos en los casos expresamente previstos por el legislador”, cita de CEREZO MIR, Curso de Derecho Penal Español. Parte General. nota 40, p. 107. 5. ed. Madrid: Tecnos, 1997.

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sus usuarios. Este nivel mínimo de orden y seguridad colectiva es el “interés humano o social, presupuesto que la persona necesita para su autorrealización y el desarrollo de su personalidad en la vida social”70 protegido por la norma penal, su bien jurídico protegido: la seguridad vial, a través de la cual se pretende proteger – mediatamente – otros bienes más personales71, como la vida y la integridad física de las personas que intervienen en el tráfico, incluso el patrimonio según algunos autores72.

Sobre cuál es el bien tutelado por los injustos penales de peligro, se distinguen principalmente tres posiciones doctrinales:

a) Individualista o personalista, que considera que la tutela se dirige solamente sobre la vida y la salud de las personas, por ser de entre todos los bienes en juego, el de mayor relevancia73.

b) Monista o colectivista, que afirma la dignidad de la seguridad del tráfico como bien jurídico autónomo, titularidad del sistema social en su conjunto y del que emanan – en segundo plano – los bienes individuales74.

c) Intermedia o dualista, que entiende la protección del bien colectivo como, en palabras de ROXIN, “espiritualizado75” instrumento necesario para proteger el individual, que no precisa de lesión efectiva.76

Entendemos que es en esta última categoría donde debe situarse al bien /bienes jurídico/s protegido/s por el delito de conducción excesiva: la seguridad vial, no como bien autónomo e independiente, sino como un bien intermedio mediante el cual, protegiendo la lesión de este bien colectivo se alcanza a proteger la vida e integridad física de los intervinientes en el tráfico.

70 MUÑOZ CONDE/GARCíA ARÁN, Derecho Penal. Parte General. 8ª edición, Valencia: Tirant lo Blanch, 2010. p. 59.

71 En contra, MAYER afirmaba que el bien jurídico pertenece siempre al Derecho Penal, y nunca al particular, “Strafrecht” ,1953, p. 52, cita de CEREZO MIR, J. Ob.cit., nota 4, p. 13.

72 En este sentido GÓMEZ PAVÓN “El delito de conducción bajo influencia de bebidas alcohólicas, drogas tóxicas o estupefacientes”, p. 94; y TAMARIT SUMALLA, en MORALES PRATS (Coord.) Comentarios a la Parte Especial del Derecho Penal, p. 1447.

73 En esta línea se posicionan, entre otros, BOIX REIG, ORTS BERENGUER, MARTíN UCLÉS, y LASCURAíN SÁNCHEZ; DE VICENTE MARTINEZ. Ob. cit., p. 321.

74 MORILLAS CUEVAS y SUÁREZ LÓPEZ consideran así a la seguridad vial, “por su ubicación sistemática, su propio contenido y su evolución histórica”, en MORILLAS CUEVA/SUÁREZ LÓPEZ, “El delito de conducción temeraria en el Código Penal de 1995”, p. 564, Cuadernos de Política Criminal, n. 69, Madrid, 1999.

75 ROXIN, C. Derecho Penal. Parte General, Tomo I, p. 410, Trad. de LUZÓN PEÑA, Civitas, 1997.76 A favor de esta, DE URBANO CASTRILLO, GÓMEZ PAVÓN, TAMARIT SUMALLA, RODRíGUEZ

FERNÁNDEZ y ROBLEDO VILLAR; DE VICENTE MARTíNEZ, ob. cit., p 322.

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69Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 5, n. 8, p. 49-102, jan./jun. 2013

Con la inevitable aceptación de la “sociedad del riesgo” como medio en el que se desarrolla nuestra vida colectiva, el legislador ha reaccionado, a menudo olvidando su carácter de ultima ratio, multiplicando las figuras delictivas de peligro – “hasta convertirlas en su hijo predilecto” en palabras de LACKNER77 –, y “que le han servido para la prevención a gran escala de situaciones problemáticas, pero abandonando la exigencia de lesiones concretas, propias del contexto liberal al que el Derecho Penal pertenecía” 78. Nada cabe objetar a que, ante nuevos riesgos, el Derecho Penal reaccione expandiéndose y adaptándose al nuevo entorno social, – “la compenetración del Derecho con las necesidades y exigencias de la vida social, no sólo es profunda sino permanente”79 –, excepto por las formas en que se articula esa protección, que como se verá, en algunos casos, puede afectar a algunos principios limitadores del poder punitivo del Estado.

1.3 ELEMENTOS DEL TIPO OBJETIVO

“Tráfico recomienda emplear un máximo de 15 segundos para adelantar, del mínimo no dice nada”. La lectura de este anuncio publicitario del Volvo 850 T5 – cuyo principal reclamo es su capacidad para alcanzar los 250 km/h –, suscita la pregunta de por qué los poderes públicos intervienen en la velocidad recriminando al conductor, mientras que por otro lado autorizan la matriculación y circulación de vehículos tan potentes como el del anuncio. ¿No sería más efectivo intervenir sobre unos pocos fabricantes – condicionando, por ejemplo, la homologación de sus modelos a que incluyan de serie dispositivos limitadores de velocidad –, que sobre millones de conductores? En este ámbito, al contrario de lo que ocurre por ejemplo en el delito de tráfico de drogas, el Código persigue al “consumidor” de velocidad, en lugar de castigar al “proveedor” de velocidad.

Así centrándose en el conductor, prohíbe la velocidad excesiva castigando como delito80 la conducción de un vehículo de motor o ciclomotor, a una velocidad tal que exceda a la permitida reglamentariamente en 60 km/h en vías urbanas u 80 km/h en vías interurbanas. Para determinar que debe entenderse por conductor, es conveniente remitirse

77 LACKNER, K. Das konkrete Gefährdungsdelikt im Verkehrsstrafrecht, Berlín, 1967, p. 1, cita de DE VICENTE MARTINEZ, ob. cit. p. 329.

78 MATA Y MARTíN, R. Bienes jurídicos intermedios y delitos de peligro, p. 22, Granada: Comares, 1997.79 DE CASTRO CID, B. Lecciones de Teoría del Derecho y Derecho Natural. p. 81, Madrid: Universitas,

1994.80 CEREZO MIR examinaba la conveniencia de castigar como falta, conductas como el conducir a velocidad

excesiva, o adelantar antirreglamentariamente. Vid. Problemas fundamentales del Derecho Penal, Madrid, 1982, p. 292.

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al Anexo I de la LSV81 que ofrece un sucinto catálogo de conceptos y definiciones, de suma utilidad para integrar algún otro elemento del tipo objetivo de este delito. De este modo por conductor, podemos entender, según el Anexo I:

9. Conductor. Persona que maneja el mecanismo de dirección o va al mando de un vehículo, o a cuyo cargo está un animal o animales. En vehículos que circulen en función de aprendizaje de la conducción, es conductor la persona que está a cargo de los mandos adicionales.

Ya que la acción típica sólo es realizable por quien, inmediata y personalmente, dirige los mandos del vehículo, se trata de un delito de propia mano, en el que sólo éste podrá ser sujeto activo, aunque ello no excluye otras formas de autoría, como la mediata, en el supuesto por ejemplo en que un ocupante, huyendo de la policía, obligue al conductor del vehículo a circular por encima de los límites penales; o induciendo a participar en “carreras ilegales”, promoviendo premios y apuestas, directamente o a través de redes sociales, mediante el uso de internet82.

Como sujeto pasivo podemos entender al conjunto de la sociedad, que es quien mantiene la expectativa de que los riesgos para los bienes personales implicados en el tránsito motorizado no se incrementen más allá de lo consustancial de la propia actividad.

Analizando la acción típica nos encontramos con que la misma consiste en conducir. La jurisprudencia ha entendido que la acción de conducir consiste en el desplazamiento del vehículo bajo el dominio del sujeto activo, con independencia de la distancia que recorra y de si lo hace con el motor arrancado o no83.

81 Su artículo 3 dispone: “Conceptos utilizados: A los efectos de esta Ley y sus disposiciones complementarias, los conceptos básicos sobre vehículos, vías públicas y usuarios de las mismas, se entenderán utilizados en el sentido que para cada uno de ellos se concreta en el Anexo al presente texto.”

82 El Juzgado de Instrucción núm. 4 de Palma de Mallorca imputó como cooperador necesario a una persona conocida como Matías “el humilde”, tras una investigación seguida por el Fiscal de Seguridad Vial y la Brigada de delitos informáticos en la que se puso de manifiesto que organizaba y fomentaba carreras ilegales en puntos que él concretaba a través de la red, y en las que se cruzaban apuestas y se generaban situaciones de intenso peligro. Nota 57 de la Memoria General de la FGE de 2007.

83 STS de 2 de mayo de 1964 confirmó la condena a un conductor que circulaba ebrio en punto muerto. Al contrario, CONDE-PUMPIDO FERREIRO considera que en los desplazamientos por la propia inercia o efecto de la gravedad no concurre la acción típica.

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71Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 5, n. 8, p. 49-102, jan./jun. 2013

Para que sea típica, la acción de conducir debe realizarse con un vehículo de motor o un ciclomotor. Para determinar qué vehículos tienen tal consideración, debemos remitirnos al Anexo I LSV:

4. Vehículo: Aparato o artefacto apto para la circulación por las vías o terrenos en los que se aplica esta Ley.

[…]

9. Vehículo de motor: Vehículo provisto de motor para su propulsión. Se excluyen de la definición los tranvías y ciclomotores.

Deben considerarse incluidos en el concepto de vehículo de motor, los más comúnmente utilizados: turismos, vehículos todo-terreno, camiones, autobuses, motocicletas, motocicletas con sidecar, furgonetas, tractores agrícolas, quads etc., siempre que utilicen un motor para su propulsión, ya sea eléctrico, de combustión, o incluso híbrido. De este modo será atípica la conducción de una bicicleta a velocidad excesiva, cuando por ejemplo atraviese una población bajando un puerto de montaña, sin embargo no estará excluida la tipicidad cuando ese mismo puerto de montaña se baje guiando un turismo con el motor apagado, y ello porque circular con el motor apagado no es esa su forma ordinaria de propulsarse, y porque creemos que el desvalor de la acción radica en el potencial lesivo de la Energía Cinética ínsita, como se ha dicho, en el propio movimiento del vehículo en base al binomio masa-velocidad84, motivo por el cual el legislador ha dejado fuera del tipo a los vehículos con masa y punta de velocidad, en teoría inocuas.

Por ciclomotor habrá que considerar a aquellos vehículos que reúnan las características técnicas previstas en el Anexo I, ya sean de dos, tres o cuatro ruedas, como los llamados coches sin carnet o los destinados a personas con movilidad reducida.

7. Ciclomotor: Tienen la condición de ciclomotores los vehículos que se definen a continuación:

a) Vehículos de dos ruedas, provistos de un motor de cilindrada no superior a 50 cm3, sí es de combustión interna, y con una velocidad máxima por construcción no superior a 45 km/h.

b) Vehículos de tres ruedas, provistos de un motor de cilindrada no superior a 50 cm3, sí es de combustión interna, y con una velocidad máxima por construcción no superior a 45 km/h.

84 La unidad de medida de la energía cinética es el julio, y la fórmula para su cálculo en mecánica newtoniana es Ec = ½masa·velocidad².

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c) Vehículos de cuatro ruedas cuya masa en vacío sea inferior a 350 kg, excluida la masa de las baterías en el caso de vehículos eléctricos, cuya velocidad máxima por construcción no sea superior a 45 km/h y con un motor de cilindrada igual o inferior a 50 cm3 para los motores de explosión, o cuya potencia máxima neta sea igual o inferior a 4 kW, para los demás tipos de motores.

Como ya se ha dicho, el tipo de injusto no exige la producción ni de peligro concreto, ni – menos aún – de resultados lesivos, por lo que concurriendo los elementos analizados, solo faltará atender a la velocidad para completar el tipo objetivo. En el supuesto de concurso ideal de delitos, en que se acabe produciendo una lesión constitutiva de delito, el 382CP85 prevé que se resuelva aplicando el principio de asperación, esto es castiga en su mitad superior la pena más grave de los delitos cometidos en la misma acción.

El legislador ha diseñado así un delito formal, podría decirse incluso que automático, que sólo precisa para su consumación la simple constatación métrica de haber superado – aunque solo sea por un instante – la velocidad prevista, sin mayor exigencia ni abundamiento, ni siquiera para una mínima valoración de la aptitud de la acción para producir un resultado lesivo – o al menos una situación de peligro –, que no aparezca ex ante como absolutamente improbable, como sin embargo se exige en el 16.1CP86 para perseguir la tentativa en los delitos materiales.

Semejante adelanto de la barrera penal entendemos desgasta en exceso los principios de lesividad y de intervención mínima, presentando serios problemas de ausencia de antijuricidad material – verdadero instrumento métrico87 de su desvalor, en esta figura, exclusivamente de la acción –, y por tanto de deslinde con el ilícito administrativo, a cuyas exigencias constitucionales deberá atenderse.88

De la misma manera deberá prestarse atención a la doctrina constitucional89 respecto a los principios de legalidad y seguridad jurídica, ya que para determinar cuál es el límite

85 El art. 382 CP dispone: “Cuando con los actos sancionados en los artículos 379, 380 y 381 se ocasionare, además del riesgo prevenido, un resultado lesivo constitutivo de delito, cualquiera que sea su gravedad, los Jueces o Tribunales apreciarán tan sólo la infracción más gravemente penada, aplicando la pena en su mitad superior y condenando, en todo caso, al resarcimiento de la responsabilidad civil que se hubiera originado.”

86 16.1cp: “Hay tentativa cuando el sujeto da principio a la ejecución del delito directamente por hechos exteriores, practicando todos o parte de los actos que objetivamente deberían producir el resultado”

87 “El daño hecho a la sociedad es la verdadera medida de los delitos”, BECCARIA, op cit. p.43.88 La STC 24/2004, de 24 de febrero, partiendo de la coexistencia del ilícito penal con otros de naturaleza

administrativa, advierte que corresponde a aquel atender a las conductas más graves e intolerables según su carácter de última ratio, o de lo contrario la respuesta punitiva sería innecesaria, y por tanto desproporcionada.

89 La reciente STC 101/2012, de 8 de mayo, en la que se declara nulo e inconstitucional el art. 335 CP, recuerda las exigencias de que el reenvio normativo a la norma de complemento sea expreso y esté justificado en rezón del bien jurídico protegido, de que la norma penal contenga el núcleo esencial de la prohibición y la pena aplicables, así como que sea satisfecha la exigencia de certeza.

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73Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 5, n. 8, p. 49-102, jan./jun. 2013

penal de velocidad y completar el tipo, el legislador utilizando la técnica del precepto penal en blanco, remite a los arts. 47 a 52 RGC90, así como a otros reglamentos sectoriales tan casuísticos y farragosos que, pese a tratarse de “una norma penal como cualquier otra91”, su aportación de certeza y seguridad jurídica es más bien escasa. Como advirtiese MUÑOZ CONDE “donde mayores problemas plantea la interpretación gramatical es en la precisión de conceptos jurídicos empleados en otras ramas del ordenamiento jurídico92”.

Para la determinación del límite penal de velocidad, habrá que atender al límite reglamentariamente establecido, al que deberá añadirse el exceso fijado en el tipo – 60 u 80 km/h –, según la vía sea urbana o interurbana. Para tipificar este exceso, a lo largo de todo el trámite parlamentario se estuvieron manejando distintas cifras, revelándose así la incertidumbre y dudas sobre la fijación de una concreta magnitud, y lo caprichoso del límite finalmente aprobado, destacando GARCíA ALBERO la artificiosidad y la falta de fundamento material – en términos de peligrosidad – de la selección de ese límite y no de cualquier otro, respondiendo ello únicamente a la necesidad de distinguirlo del ilícito administrativo93.

La norma de complemento a la que atender para determinar objetivamente el límite típico de velocidad es el RGC, en concreto los artículos 47 RGC y siguientes, que desarrollando el 19 LSV diseñan un sistema de límites de velocidad consistente en el establecimiento de unas velocidades máximas genéricas – según categoría de vehículo y vía –, que oscilan entre 120 km/h para turismos y motocicletas en autopistas, y 40 para vehículos que transporten mercancías peligrosas por vías urbanas. Esta velocidad genérica opera con carácter subsidiario cuando no sean de aplicación las previstas en el art. 52 RGC como prevalentes, entre las que se encuentran: las limitaciones específicas por las características del tramo de vía, las impuestas a determinados vehículos por sus especiales características, y las fijadas por circunstancias personales a determinados conductores – como ocurría con los noveles hasta marzo de 201194.

90 RD 1428/2003, de 21 de noviembre, por el que se aprueba el Reglamento General de Circulación para la aplicación y desarrollo del texto articulado de la Ley sobre tráfico, circulación de vehículos a motor y seguridad vial, aprobado por el Real Decreto Legislativo 339/1990, de 2 de marzo.

91 MUÑOZ CONDE, F. Introducción al Derecho Penal, p. 52. Buenos Aires: B de F, 2001. (Colección Maestros del Derecho Penal, n. 3).

92 Ibid., p. 219. 93 GARCIA ALBERO, R. La nueva política criminal de la seguridad vial, pp. 10 y ss. Revista Electrónica de

Criminología y Ciencias Penales, 09 nov. 2007. 94 La Orden PRE/629/2011 de 22 de marzo (BOE nº 72), suprimió la limitación de velocidad a 80 km/h

durante el primer año de vigencia del permiso, fijada para los conductores noveles desde 1974.

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Estas limitaciones específicas de velocidad previstas en el 47 RGC, que por las características del tramo de vía su titular está obligado a fijar mediante el empleo de las señales correspondientes, no plantean especiales problemas de seguridad jurídica, siempre y cuando sean coherentes – la recientísima SAP de Cantabria de 25 de mayo de 2012 anuló la condena por circular a 119 por tramo urbano limitada a 50, porque a la señal vertical de limitación a 50 le seguía otra de fin de limitación a 70, induciendo a error al conductor que no podía conocer cuáles eran los límites aplicables (excluyendo así el conocimiento actual que exige el elemento intelectual del dolo), se encuentren correctamente instaladas95, y se hallen en aceptables condiciones de visibilidad96 y conservación97.

Las limitaciones genéricas sin embargo, al establecerse según categoría de vehículo y tipo de vía por la que se circule en cada momento, son más proclives a crear situaciones en que las dudas impidan que ”[…] los ciudadanos puedan conocer de antemano el ámbito de lo prohibido y prever, así, las consecuencias de sus acciones”98.

También pueden darse situaciones de inseguridad, en relación con la tipología de la vía por la que se transita, en las que el conductor medio no esté absolutamente seguro de cuál es el límite de velocidad que le afecta. Este es el caso de aquellas carreteras situadas en el cinturón de grandes ciudades, que hacen de transición entre el viario urbano y el interurbano. Es necesario ser un auténtico experto para diferenciarlas, y las definiciones legales no suponen herramientas útiles para ello, antes al contrario aportan aún mayor incertidumbre. El Anexo I LSV define a la vía urbana e interurbana del siguiente literal:

76. Vía interurbana: Es toda vía pública situada fuera de poblado.

77. Vía urbana: Es toda vía pública dentro de poblado, excepto las travesías.

64. Poblado: Espacio que comprende edificios y en cuyas vías de entrada y de salida están colocadas, respectivamente, las señales de entrada a poblado y de salida de poblado.

65. Travesía: A los efectos de esta disposición normativa, es el tramo de carretera que discurre por poblado. No tendrán la consideración de travesías aquellos tramos que dispongan de una alternativa viaria o variante a la cual tiene acceso.

95 Art. 135 RGC: “Toda señal se aplicará a toda la anchura de la calzada que estén autorizados a utilizar los conductores a quienes se dirija esa señal.”

96 Art. 136 RGC: “Con el fin de que sean más visibles y legibles por la noche, las señales viales, especialmente las de advertencia de peligro y las de reglamentación, deben estar iluminadas o provistas de materiales o dispositivos reflectantes.”

97 Art. 139.1: “Corresponde al titular de la vía la responsabilidad de su mantenimiento en las mejores condiciones posibles de seguridad para la circulación y la instalación y conservación en ella de las adecuadas señales y marcas viales.”

98 En relación a la seguridad jurídica STC 283/2006, de 9 de octubre, FJ 5.

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78. Carretera: A los efectos de esta disposición normativa, es toda vía pública pavimentada situada fuera de poblado, salvo los tramos de travesías.

Lo primero que sugiere la lectura de semejantes definiciones, es que la conducta típica prevista en el 379.1 CP, sólo puede cometerse en una vía pública, ya que sólo las de tal naturaleza pueden considerarse como las urbanas o interurbanas descritas en el tipo, sin embargo entendemos que como para el resto de delitos contra la seguridad vial, el espacio penal de los delitos, coincide plenamente con el ámbito de aplicación de la LSV dispuesto en su artículo 299, del que sólo están excluidas las vías privadas, que posean normas propias, y sean exclusivamente utilizadas por una colectividad indeterminada de usuarios.

De entre todas, la vía que peor encaje tiene es la travesía, existiendo una fuerte discusión sobre cuál es su límite penal, ¿Qué exceso hay que añadir al límite permitido – normalmente100 de 50 km/h –, los 80 correspondiente a la interurbana, o los 60 de la urbana? Atendiendo a la definición literal, no cabe duda que una travesía no es una vía urbana, pero atendiendo a su régimen de circulación, la LSV las trata de forma idéntica. Las instrucciones de la FGE tampoco resuelven las dudas, pues en principio y por exclusión las considera interurbanas, pero “si se asemejan a las calles de un municipio por su conflictividad viaria o peatonal”, podrán tratarse como urbanas101. Entendemos, que el exceso aplicable al límite de la travesía, debe ser el de 80 km/h, por ser esta interpretación, además de in bonam parte, la que más se ajusta al literal de la norma.

Por otra parte, la discutida rebaja temporal – desde el 7 de marzo hasta el 30 de junio de 2011- del límite genérico de velocidad en autopistas y autovías a 110 km/h, operado por el RD 303/2011 de 4 de marzo planteó recientemente una interesante cuestión. La medida provocó – en el ámbito de la Fiscalía – un encendido debate acerca de cuál de los dos límites de velocidad debía considerarse para realizar el cómputo del exceso de velocidad a efectos del artículo 379.1, el nuevo de 110 km/h, o el anterior de 120. A favor de la utilización del nuevo límite, se razona que éste es – a todos los efectos – el “reglamentariamente establecido” al que, según el tipo penal en blanco, hay que remitirse para completarlo. Sin embargo, atendiendo a la ratio de la norma, la Fiscalía102

99 Art.2 LSV: “Los preceptos de esta Ley serán aplicables en todo el territorio nacional y obligarán a los titulares y usuarios de las vías y terrenos públicos aptos para la circulación, tanto urbanos como interurbanos, a los de las vías y terrenos que, sin tener tal aptitud sean de uso común y, en defecto de otras normas, a los titulares de las vías y terrenos privados que sean utilizados por una colectividad indeterminada de usuarios.”

100 Conforme al 50.1 RGC puede ampliarse el límite de velocidad en travesías hasta los 120 km/hora. 101 Circular 10/2011 de la FGE, p. 11.102 Memoria General de la FGE Año 2011, p. 1024.

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optó por continuar aplicando ultractivamente el anterior límite, pues la finalidad de la rebaja temporal era totalmente extraña a la seguridad vial, persiguiendo exclusivamente según su Preámbulo, la reducción del consumo de energía.

Igual de intenso resultó el debate provocado por la supresión de la limitación para conductores noveles, por la Orden PRE/629/2011 de 22 de marzo, en el que se planteó la aplicación retroactiva del nuevo límite de velocidad – 120 km/h – a los noveles que hubieren sido condenados teniendo en cuenta, el anterior límite aplicable de 80 km/h.

Siguiendo el criterio que SILVA SÁNCHEZ atribuye a BINDING103, de distinguir entre motivaciones fácticas o valorativas de la modificación de la norma – en este caso extrapenal de complemento – para decidir su aplicación retroactiva favorable, debemos concluir que debido a que la modificación se debió a razones fácticas distintas a una nueva valoración de la consideración de conductor novel – estado actual de las vías y seguridad en los automóviles –, no es retroactivamente aplicable, “a pesar de la generosa apariencia del art. 2.2 CP”104. En el mismo sentido la STS de 23 de abril de 2004 sostiene que “[…] no cualquier modificación de una norma extrapenal con incidencia penal siempre ha de aplicarse cuando pueda ser beneficioso para el reo, sino cuando responda a un cambio en la valoración […]”. En contra LASCURAíN SÁNCHEZ105 critica este criterio por lo complejo que resulta delimitar las motivaciones que impulsan una reforma, ya que generalmente serán tanto fácticas como valorativas, por ello destaca la conveniencia de que en ellas se resuelvan expresamente estas cuestiones, con el consecuente aporte de seguridad jurídica.

Por último, cabe añadir que sólo cabe el delito consumado, ya que al adelantarse tantísimo la barrera de protección penal, y no tratarse de un delito material –no exige resultado-, carece de tentativa, siendo todo su iter criminis penalmente irrelevante hasta su misma consumación. Difícilmente evacua el precepto la exigencia de lesividad siquiera del bien jurídico inmediatamente protegido –la seguridad vial-, distintivo del Derecho Penal frente a otros medios formales de control social, presupuesto de la antijuricidad material, e instrumento métrico de su desvalor – “el daño hecho a la sociedad es la verdadera medida de los delitos106”.

103 SILVA SÁNCHEZ, J. “Legislación penal socio-económica y retroactividad de disposiciones favorables: El caso de las leyes penales en blanco”, en “Hacia un Derecho Penal Económico Europeo. Jornadas en homenaje al Profesor K. Tiedemann” , pp. 708-709, BOE, Madrid, 1995.

104 IGLESIAS RIO, M. Algunas reflexiones sobre retro-irretroactividad de la ley penal, Revista Jurídica de Castilla y León, Valladolid, n. 6, p. 47, 2005.

105 LASCURAíN SÁNCHEZ, J. Sobre la retroactividad penal favorable, Madrid: Civitas, p. 70, 2000.106 BECCARIA, op. cit. p. 43.

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1.4 ELEMENTOS DEL TIPO SUBJETIVO

El tipo del delito de conducción a velocidad excesiva, exige la concurrencia de dolo de peligro, en el que del mismo modo que si se exigiera resultado, requerirá el conocimiento por el sujeto activo de todos los elementos objetivos del tipo de injusto (elemento intelectivo), y su manifiesta voluntad de realizarlos (elemento volitivo).

No se exige ningún otro elemento subjetivo del injusto, ya que la finalidad por la que el sujeto activo conduce a velocidad superior a la prevista en el tipo – ganar una apuesta, o llegar puntual al trabajo – es penalmente irrelevante.

Son posibles las situaciones de error de tipo – generalmente vencibles – que excluyan el dolo y con ello la tipicidad, como sucederá, por ejemplo en el caso de extranjeros, especialmente británicos, que se desplacen a España en sus propios vehículos provistos de velocímetros que se expresen en millas, en lugar de en kilómetros/hora o que desconociendo los límites españoles de velocidad genérica, considerando además que no es una materia armonizada – ni siquiera en la Unión Europea.

También es muy probable, ya con conductores patrios, que se den situaciones en las que éstos, incluso invirtiendo gran diligencia y atención en ello, no sean capaces de determinar qué límite de velocidad es el que deben observar para no incurrir en delito. Ello es perfectamente imaginable, como se ha dicho cuando se transite por el cinturón viario de las grandes ciudades y no sea posible determinar con exactitud, si se circula por una vía urbana o interurbana, y por tanto que exceso hay que tener en cuenta, o cuando se recorra una travesía de cierta longitud entre poblaciones muy cercanas entre sí, o en aquellos casos en que la señalización, por su escasez o deficiente estado, no permita al conductor tener un conocimiento actual de la velocidad penalmente relevante.

Igual de difícil puede resultar a veces, conocer ésta atendiendo a la categoría del vehículo que se conduce y la limitación genérica que le es aplicable. Por ejemplo en aquellos modelos homologados para el transporte de mercancías, pero que mantienen características idénticas a los del transporte de personas, como pequeñas furgonetas, monovolúmenes, todo –terrenos o los llamados pick up. Especialmente en estos dos últimos casos es muy probable que una persona vaya conduciendo por una autopista, totalmente convencido de que circula con un turismo107 – límite 120 km/h –, cuando en realidad está conduciendo un vehículo clasificado como camión108 – límite 90 km/h. A pesar de su importancia, este dato sólo puede obtenerse tras una detenida lectura – repleta de tecnicismos – de la tarjeta

107 Anexo I LSV: 22. Turismo: “Automóvil, distinto de la motocicleta, especialmente concebido y construido para el transporte de personas y con capacidad hasta nueve plazas, incluido el conductor.”

108 Anexo I LSV: 23. Camión: “Automóvil concebido y construido para el transporte de cosas.”

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ITV del vehículo. La información recibida del concesionario cuando se adquirió, o la que se maneje durante contratación del seguro obligatorio – cuya clasificación de vehículos casi nunca coincide con la reglamentaria –, es posible que más que aclarar conceptos, confundan aún más al conductor no experto en la materia.

2 ALGUNOS PROBLEMAS PRÁCTICOS DE ESTE DELITO

“En el caso de grandes velocidades, se alertará a todas las unidades para detener al conductor del vehículo”109. De esta forma respondía el Director General de Tráfico a la pregunta sobre el proceder ante supuestos de captación automática de velocidades por encima del límite penal. La respuesta, poco meditada y más digna de un diálogo de cine policiaco, evidenciaba la falta de realismo y de previsión con que se afrontaba el tratamiento criminalístico que el neonato delito de velocidad excesiva precisaría, y que casi cinco años después continúa sin una respuesta satisfactoria.

Quizás fuese por su natural parecido, formal y material, con la infracción del ámbito administrativo110 – donde ni la falta de identidad del conductor, ni las deficiencias probatorias111 han supuesto nunca un impedimento para la iniciación del correspondiente expediente sancionador – por lo que no se advirtiera la posibilidad de que el acervo y la praxis administrativa resultasen incompatibles con las debidas garantías que deben observarse en todo proceso penal. Así, desde la entrada en vigor de la reforma de 2007, la experiencia forense ha ido desvelando la existencia de serias dificultades en la aplicación del delito del 379.1 CP, que en la práctica han ido motivando no pocas sentencias absolutorias, y ello en los casos en que se ha podido ejercer la acción penal.

La señalización deficiente y la escasa fiabilidad de las mediciones de velocidad, se han venido constituyendo como el caballo de batalla en estos procedimientos, si bien lo que se ha revelado como un auténtico quebradero de cabeza ha sido la identificación del presunto responsable una vez conocido el delito, y así lo demuestra el hecho de que desde su elevación a la categoría de ilícito penal, haya sido una cuestión recurrente en las Memorias anuales de la Fiscalía, en las que se apuntan toda suerte de propuestas y

109 Entrevista al Director General de Tráfico publicada en la edición electrónica de El País de fecha 5 diciembre 2007. http://elpais.com/tag/fecha/20071205/10. 05/07/12.

110 El art. 65.4.a LSV califica como infracción grave, y el 95.5.a como muy grave, cuando no constituya delito, la siguiente conducta: “No respetar los límites de velocidad reglamentariamente establecidos”.

111 Por ejemplo, la STSJ M nº 2397/2009 anuló una Resolución del Ayuntamiento de Madrid que imponía 102€ de multa y detracción de 2 puntos, por un exceso de velocidad medido con un aparato que nunca había sido homologado.

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sugerencias para tratar de averiguar la identidad de la persona contra la que dirigir, con un mínimo de solidez, el proceso penal.

En lo relativo a las deficiencias en la señalización, está previsto que el Ministerio Público112 realice una valoración previa de su estado, y si éste fuese tan irregular que no pudiese ejercer la acción penal, lo comunique a las autoridades administrativas para que procedan a su subsanación en cumplimiento de la obligación que les impone el artículo 57.1 LSV113.

La medición de la velocidad y la identificación del conductor responsable – La comprobación del delito y la averiguación del delincuente114 –, responden a la criminalística del delito, y por su importante repercusión en el éxito del proceso, merecen una reflexión más pormenorizada.

2.1 LA MEDICIÓN DE LA VELOCIDAD – DE LA COMPROBACIÓN DEL DELITO

La constatación de que un vehículo de motor circula por encima de los límites previstos constituirá la notitia criminis, que advertirá de la comisión del delito distinguiendo entre los excesos de velocidad que tienen relevancia penal, y los que no; por ello ésta será la primera diligencia a practicar mediante una pericia, que se incorporará al proceso como prueba preconstituida, dada la imposibilidad de reproducirla durante el juicio oral.

La jurisprudencia ha venido entendiendo que no existe limitación alguna – numerus clausus – de medios probatorios para verificar que la velocidad a la que se circulaba rebasaba los límites penales, admitiendo en ocasiones como medición válida incluso una estimación aproximada hecha por dos policías en base a la lectura del velocímetro del propio vehículo oficial con el que perseguían al acusado a 130 km/h por una vía urbana, y que fueron introducidas en el proceso como testificales115.

112 Circular 10/2011 de la FGE sobre criterios para la unidad de actuación especializada en materia de seguridad vial, p.15.

113 “Artículo 57. Mantenimiento de señales y señales circunstanciales. 1. Corresponde al titular de la vía la responsabilidad del mantenimiento de la misma en las mejores

condiciones posibles de seguridad para la circulación y de la instalación y conservación en ella de las adecuadas señales y marcas viales. También corresponde al titular de la vía la autorización previa para la instalación en ella de otras señales de circulación. En caso de emergencia, los agentes de la autoridad podrán instalar señales circunstanciales sin autorización previa.”

114 Rúbrica del Título V del Libro II de la Ley de Enjuiciamiento Criminal.115 SAP de Tarragona de 30/09/09: “[…] no existe limitación alguna de medio probatorios en atención al

tipo delictivo, pues el mismo podrá acreditarse con cualquier medio probatorio admitido, como lo son las declaraciones de los testigos, siempre y cuando pueda identificarse el elemento descriptivo del tipo, relativo al quantum de velocidad con la que circulaba el vehículo conducido por el acusado”. En el mismo sentido las SSAP de Madrid de 12/05/08 y de Burgos de 17/01/11.

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Sin embargo, el art. 70.2 LSV exige, desde mayo de 2010, que aquellos instrumentos que hayan de utilizarse para la formulación de denuncias administrativas, estén sometidos a control metrológico en los términos establecidos por la Ley 13/1985 de 18 de marzo, de Metrología y su normativa de desarrollo, con el fin de velar por la corrección y exactitud de las mediciones, lo que no obsta para que, aun así, se hayan registrado casos de lecturas erróneas116.

Esta garantía es plenamente exigible también para el proceso penal, puesto que la medición persigue iguales fines de seguridad pública que la sanción administrativa, y porque además sería ilógico requerir tales garantías para ésta, y no hacerlo para la penal, en la que las exigencias respecto de la fuentes probatorias para enervar la presunción de inocencia del acusado deben ser mayores.

De esta forma entendemos que no deberían valorarse aquellas fuentes de prueba obtenidas mediante técnicas que no se hallen sometidas a control metrológico público, como pueden ser el cálculo a partir de las huellas de frenada en un accidente, como propone la Fiscalía117 – ya que éstas sólo permiten obtener, y sólo en determinadas clases de accidentes, la velocidad mínima aproximada que desarrollaba el vehículo antes del siniestro118 –, la estimación subjetiva de testigos, ya sean peatones o policías en el curso de una persecución comparando las lecturas de su propio indicador de velocidad, o las mediciones hechas mediante la red de posicionamiento global (GPS) como ha sugerido el Director General de Tráfico119.

2.1.1 Márgenes de Error Permitido en Cinemómetros

Puede definirse al cinemómetro, como un sistema para medir el movimiento (del griego kineo: movimiento, y metria: medida), formado por diversos aparatos electrónicos sincronizados de tal modo que actuando secuencialmente permiten detectar el movimiento, medir su cantidad, realizar una evaluación respecto a un valor que previamente se le ha señalado, y en caso de superarlo, registrar los datos de la medición para almacenaros

116 Incluso bajo control metrológico se ha tenido conocimiento de frecuentes mediciones inexactas, todas ellas con velocidades superiores a la que realmente desarrollaba el vehículo: En Junio de 2007 un autobús urbano de Bilbao fue fotografiado a 235 km/h, y hace apenas un mes, en Vigo (Pontevedra) un radar captó a otro autobús urbano a 130 km/h. Tras las comprobaciones se concluyó que los aparatos erraban en el cálculo con vehículos de cierta longitud. Vid. edición digital de El Faro de Vigo de 08/06/12, en www.farodevigo.es. Ult. vis.: 14/06/12.

117 Circular 10/2011 de la FGE, p. 15.118 MERA REDONDO, A. ob. cit. p. 47.119 Memoria General de la FGE 2008, p. 84.

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en soporte digital, en formato video o imagen, y en caso de captaciones automáticas sin intervención de operador, enviarlos al Centro Estrada120 de la DGT en Onzonilla (León).

En la inmensa mayoría de las ocasiones será mediante el uso de estos aparatos como se tendrá noticia de la comisión de este delito, a partir de la realización de controles, aleatorios o permanentes, de velocidad, consistentes en medir indiscriminadamente la velocidad -media o instantánea- de todos aquellos vehículos que transiten por un determinado punto de la red viaria, y en caso de detectar una velocidad superior a la del valor que se le ha señalado, registrarla conforme se ha expuesto.

La Orden ITC/3123/2010, de 26 de noviembre, por la que se regula el control metrológico del Estado de los instrumentos destinados a medir la velocidad de circulación de vehículos a motor, deroga a la anterior de 2006 ampliando las clases de cinemómetros que pueden ser objeto de verificación, y sus modalidades de utilización. Así, actualmente es posible medir la velocidad instantánea, tanto en movimiento a bordo de vehículos, como en emplazamientos estáticos instalados en el interior de unas cabinas situadas en pórticos y bordes de la calzada para su funcionamiento permanente sin operador, con las siguientes clases de cinemómetros:

a) Ópticos: utilizan haces de luz en la región visible o infrarroja del espacio electromagnético. La velocidad del vehículo puede determinarse por procesamiento de la energía reflejada, o bien por medición de los intervalos de tiempo entre interrupciones de los haces provocadas al ser atravesados por un vehículo.

120 El Centro Estrada - acrónimo utilizado para designar a “Estatal de Tramitación de Denuncias Automatizadas”- fue creado por la Orden INT/2035/2007, de 2 de julio, y entre sus funciones se encuentra la de apoyo telemático y administrativo para la tramitación de las infracciones cuya detección se produzca mediante el empleo de medios técnicos.

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FIGURA 1 – Cinemómetro óptico

b) Sensoriales: utilizan cables u otros dispositivos que van colocados sobre la calzada de tal manera que, cuando un vehículo cruza a través de él se produce algún cambio en sus propiedades físicas. Generalmente están formados por bandas piezoeléctricas que se insertan en la calzada y al ejercerse sobre ellas una presión, emiten impulsos, que sirven para medir tiempos de corte.

FIGURA 2 – Cinemómetro sensorial

c) Efecto Doppler: utilizan un radar compuesto por un transmisor y un receptor de onda continua en la banda de las microondas y que operan bajo el principio Doppler.

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FIGURA 3 – Esquema de funcionamiento de cinemómetro de efecto Doppler121

El vehículo medido se aproxima o se aleja, cortando con su frente el haz de onda continua (amarillo) emitidos por la Sonda de Radar. Al ser reflejadas y recibidas por la antena (roja) de la Unidad de Mando, ésta mide la frecuencia con que se reciben (efecto Doppler) y si satisfacen severos criterios de regularidad efectúa la conversión a km/h, y envía la señal a la Cámara que fotografíe al vehículo.

También es posible determinar la velocidad instantánea de un automóvil desde alguno de los 21 helicópteros de los que dispone la DGT122, los cuales cuentan con cinemómetros de medición inercial, de avanzada tecnología militar y funcionamiento mucho más complejo que los anteriores, pero que sin embargo adolece de menor precisión métrica. El catálogo de cinemómetros metrológicamente conformes, lo cierra el de tramo, destinado no a medir la velocidad instantánea, sino la media que desarrolla un vehículo a lo largo de un tramo concreto, generalmente recto y de entre 3 y 5 kilómetros de longitud.

121 VV.AA., Manual para operadores de cinemómetros, p. 27 y ss. Imprenta de la Escuela de Tráfico de la Guardia Civil, Mérida, 2009.

122 Cfr. http://www.dgt.es/portal/es/la_dgt/estructura_organica/patrulla_helicopteros.htm, Ult. vis.: 08/07/12.

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FIGURA 4 – Esquema de funcionamiento de un cinemómetro de tramo123

El sistema consta de dos cámaras infrarrojas en cada uno de los puntos de control, las cuales graban la matrícula de todos los vehículos que pasen por el tramo. Al atravesar el punto de control B, el sistema calcula la velocidad media de cada vehículo, y si ésta es superior a la fijada para el tramo, es enviada al Centro Estrada de la DGT en León, para que se notifique al titular del vehículo, y éste identifique al conductor responsable de la infracción.

El control metrológico de los cinemómetros somete a todos los elementos que componen el sistema, así como a la cabina en que puedan instalarse, a una verificación previa a su primera puesta en funcionamiento o tras una reparación, y periódicamente antes de un año desde la última. Ésta consiste en los exámenes administrativos y técnicos necesarios para comprobar que poseen o mantienen las características metrológicas y funcionamiento conforme a su diseño originario. La conformidad obtenida tras haber superado la verificación, se documentará además de en el correspondiente certificado, en los precintos e inscripciones que deban hacerse en cada aparato. Asimismo se controla metrológicamente la “cadena de custodia” que supone la transferencia al Centro Estrada de los datos captados por un cinemómetro sin operador, exigiéndose la seguridad de que éstos no pueden ser objeto de interferencia durante su envío, así como de que mantienen su integridad; para ello además de enviar los datos, el aparato almacenará en su memoria una copia de ellos, por si fuere necesario contrastarlos con los efectivamente recibidos en el Centro124.

123 Anexo V de la Orden ITC/3123/2010, por la que se regula el control metrológico del Estado en los aparatos destinados a medir la velocidad de circulación de vehículos de motor.

124 Vid. 6.1 del Anexo III de la Orden ITC/3123/2010.

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Para determinar el límite penal de velocidad, a partir del cual se entendería consumado el delito del 379.1 CP, se viene exigiendo por los tribunales que a los límites permitidos y al exceso típico correspondiente a la vía de que se trate, se le añada además el margen de error permitido al cinemómetro con el que se realice la medición. Estos errores máximos permitidos difieren no sólo atendiendo a la clase de cinemómetro, sino a la fecha de su aprobación de modelo y primera instalación, de manera que “si no se conocen todos los datos para determinarlo con exactitud deberá aplicarse el máximo porcentaje de error contemplado en la norma”125.

De esta forma los errores permitidos a considerar, para velocidades superiores a los 100 km/h, son los siguientes:

Aprobación del modelo

Medición fija o estática

Medición en movimiento

Medición desde aeronaves

Medición en tramo

Orden ITC/3699/2006

± 4% ± 7% NO NO

Orden ITC/3123/2010

± 5% ± 7% ± 10% ± 5%

Satisfechas las exigencias de vigencia del certificado de conformidad del instrumento medidor y de sus márgenes de error, la pericia velocimétrica efectuada sobre un concreto vehículo de motor o ciclomotor, precisará para preconstituirse como fuente probatoria, de reflejo documental con el que poder incorporarse al proceso penal, siendo la secuencia de video, y especialmente la fotografía el soporte principalmente utilizado, en el que necesariamente deberá aparecer, sin ambigüedades, junto a la imagen del vehículo medido, la velocidad exacta expresada en km/h, la identificación del aparato medidor, la fecha, hora y punto kilométrico exacto de la red viaria donde se ha captado la infracción126.

Esta exigencia debería suponer la nulidad de aquellas mediciones cuyo registro fotográfico resultase ambiguo, por ejemplo porque en él aparezca más de un vehículo, incidencia que ya de por sí nunca debería ocurrir, pues es un requisito técnico específico para obtener la conformidad del aparato, que éste no pueda realizar ninguna lectura cuando dos o más vehículos entren con velocidades diferentes en su campo de medida, excepto cuando el instrumento medidor sea capaz de seguir e identificar inequívocamente al que desarrolla la velocidad punible.

A esta excepción únicamente pueden acogerse actualmente los cinemómetros ópticos, pues utilizan uno de los tres rayos laser de que disponen, para detectar el vehículo

125 SAP de Lleida de 28/12/10. En el mismo sentido la SAP de Barcelona de 17/01/11.126 Anexo III de la Orden ITC/3123/2010, de 26 de noviembre.

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y seguirlo durante toda la secuencia, registrando su medición en dos fotografías, una panorámica en la que aparecen todos los vehículos, y otra más detallada de aquel que ha sido medido. Fuera de estos casos, deben inadmitirse los cálculos realizados con otra clase de cinemómetros de funcionamiento más rudimentario – por ejemplo los de efecto Doppler –, que registran el resultado de su medición en una sola fotografía panorámica, y de la cual resulta imposible determinar cuál de los vehículos que aparecen es el que superaba el límite.

Mayores problemas de indefensión plantea la imposibilidad de que la prueba del exceso pueda ser objeto de contramedición por el acusado en el momento de su formación, impidiendo la práctica de lo que GUZMÁN FLUJA llama contradicción para la prueba127, al contrario de lo que ocurre en los supuestos de alcoholemia positiva, donde el conductor cuenta con la posibilidad de realizarse un contra-análisis de sangre u orina, para contrastar la prueba de cargo del aire espirado. El mismo problema persiste, en el acto del juicio oral, donde la contradicción sobre la prueba obtenida automáticamente por un cinemómetro sin operador, no irá más allá –dado su carácter de prueba material- del mero examen de la legalidad de su obtención y de la documentación técnica del aparato.

Ahora bien, como afirma LLERA SUÁREZ-BÁRCENA

nada impedirá -so pena de vulnerar el derecho a contradicción- que la defensa solicite que el aparato sea llevado al local del Tribunal, conforme al 688 LECr, e incluso proponga una pericial instrumental sobre el aparato, [resaltando que] si no es posible ahondar – siquiera mínimamente – en las circunstancias de la obtención de esa prueba pericial preconstituida, esta se convertirá en una suerte de prueba tasada –absolutamente vetada en lo penal – que el Juez deberá aceptar automáticamente con un «amén» 128.

2.1.2 Velocímetro: Márgenes de Error y Averías

Además de los cinemómetros, es posible medir la velocidad con fines sancionatorios con otros aparatos controlados metrológicamente, como el propio velocímetro o indicador de velocidad, de instalación obligatoria en todos aquellos vehículos capaces de desarrollar en llano una velocidad superior a 40 km/h129; y el tacógrafo o aparato de control, que

127 GUZMÁN FLUJA, V. “Anticipación y preconstitución de la prueba en el proceso penal”, Valencia, 2006, pp 114 y 115.

128 LLERA SUÁREZ –BÁRCENA, E. La prueba de los nuevos delitos contra la seguridad vial, http://www.juntadeandalucia.es/vgn/images/portal/cit_12354507/35/50/52703312obj.pdf, 12/07/12.

129 Vid. Art. 11.11 del R.D: 2822/1998, de 23 de diciembre, del Reglamento General de Vehículos.

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todos los autobuses y camiones dedicados al transporte público por carretera130 deben llevar instalados para registrar los datos relativos a la conducción – velocidad, distancia recorrida y tiempo de conducción – en hojas – registro de 24 horas (disco-diagrama), que deberán exhibirse al agente de la circulación que así lo requiera131.

FIGURA 5 – Interpretación de los datos grabados en la hoja-registro132

130 El art. 3.1 del Reglamento (CEE) 3821/85 del Consejo, prevé: “ El aparato de control, se instalará y utilizará en los vehículos destinados al transporte por carretera de viajeros o de mercancías , matriculados en un Estado miembro.”

131 El Considerando 14 del Reglamento (CEE) 561/2006, del Parlamento y el Consejo dispone: “Para garantizar una aplicación eficaz, es esencial que las autoridades competentes puedan determinar, al realizar controles en carretera, que los tiempos de conducción y períodos de descanso se respetaron debidamente el día del control y los 28 días anteriores.”

132 El tacógrafo y los tiempos de conducción y descanso en el transporte por carretera, p. 20. Centro de Publicaciones, Secretaría General Técnica, Ministerio de Fomento. Madrid, 2009.

Hoja-registro de 24 horas

Registro de la

distancia recorrida

Registro del tiempo

de conducción

Registro de la

velocidad instantánea

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Una vez insertado el disco-diagrama en el interior del aparato, comienza a girar en el sentido de las agujas del reloj, haciendo que los estiletes graben en la superficie del disco las lecturas correspondientes a los datos que se generen. En relación al registro de la velocidad instantánea, el estilete irá señalando por entre las líneas de velocidad (20, 40, 60, 80, 100 y 125), la que el vehículo desarrolle en cada momento.

La utilización de una medición realizada con este aparato para probar la comisión de este delito, sólo cabe imaginarla en supuestos en los que un agente de tráfico observe indiciariamente que un camión, o un autobús, posiblemente excede el límite de velocidad que corresponde al tramo de vía por el que circula. Para precisar la velocidad y el posible exceso, el agente -que habrá de estar presente en el tramo por el que circula el vehículo controlado-, detendrá el vehículo, requerirá la hoja de registro a su conductor, y comprobará el valor del dato de velocidad grabado. Siendo éste un elemento directamente incriminatorio, del que el conductor ya tiene constancia, entendemos podrá negarse a entregarlo, sin que ello pueda ser constitutivo de un delito de desobediencia grave, ya que al no constituir “una pericia técnica de resultado incierto”133 – como en el caso de la prueba etilométrica, a cuya realización no puede resistirse el conductor porque desconoce su resultado –, su entrega puede considerarse una declaración autoincriminatoria, a la que en modo alguno puede venir obligado. Todo lo más, la negativa a exhibir la hoja de registro constituirá una infracción del artículo 140.6 de la Ley 16/1987 de Ordenación de los Transportes Terrestres, calificada como muy grave y sancionada con multa de 4.601 a 6.000 euros134. En cualquier caso, también aquí deberá tenerse en cuenta el margen de error de estos aparatos que el Anexo I del Reglamento (CEE) 3821/85 establece en ± 6 km/h.

En relación al velocímetro, como se ha visto, se ha admitido ocasionalmente por la ya citada jurisprudencia menor, la medición efectuada con el velocímetro de un vehículo de policía para tratar de determinar, indirecta y aproximadamente, la velocidad de otro al cual se persigue a similar velocidad -duplicando paradójicamente el peligro que la norma trata de evitar-. Entendemos que no deberían admitirse o valorarse las mediciones hechas con estos aparatos, en primer lugar porque si sus lecturas no tienen validez en vía administrativa – por no someterse al exhaustivo control metrológico exigido, como se

133 STC 107/1985 de 7 de octubre: “ni la realización del test puede equipararse a una declaración autoincriminatoria, pues es sólo una pericia técnica de resultado incierto”, en el mismo sentido las SSTC 252/1994 de 19 de septiembre, 173/1997 de 14 de octubre, 161/1997 de 02 de octubre, y 234/1997 de 18 de diciembre.

134 Art. 140.6: “La negativa u obstrucción a la actuación de los servicios de inspección que imposi-biliten total o parcialmente el ejercicio de las funciones que legal o reglamentariamente tengan atribuidas, así como la desatención total o parcial a las instrucciones o requerimientos de los miembros de la Inspección del Transporte Terrestre o de las fuerzas que legalmente tienen atribuida la vigilancia de dicha clase de transporte.”

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ha visto, por la normativa sectorial –, mucho menos deberían tenerla en vía penal; y en segundo lugar porque, aunque cuentan con homologación, el rigor métrico del que estén provistos depende del fabricante del automóvil, variando sustancialmente de una marca a otra -de ahí el amplio margen de error permitido (+10% y +4 km/h) que el Anexo II de la Directiva 75/443/CEE les otorga –, lo que provoca que en la práctica estas mediciones por comparación, cuenten con una elevada dosis de imprecisión.

Es posible imaginar situaciones en las que esté excluida la antijuricidad de la acción típica, porque la conducta esté amparada por una causa de justificación, por ejemplo cuando se actúe – policía, bomberos o ambulancia – obligado por el legítimo cumplimiento de un deber, cargo u oficio – siempre y cuando no se cuenten con otros medios menos peligrosos, para cumplir con él –; o el particular que, en estado de necesidad, conduce a alta velocidad para trasladar al necesitado a un centro sanitario.

En el supuesto de que el velocímetro sufra una avería que lo inutilice, podría considerarse la existencia de un error vencible de tipo, que conforme al 14.1 CP debería penarse, en su caso, como imprudente, y dado que el tipo de injusto del 379.1 CP no prevé su comisión por imprudencia, la conducta resultaría impune en virtud de lo dispuesto en el 12 CP. Este resultado pudiera llevar a que algún conductor, anule intencionadamente el indicador de velocidad – operación relativamente sencilla en motocicletas, y reversible a la vista de la ITV periódica –, para exponerse a la multa administrativa de 200 euros por infracción del art. 12 del Reglamento General de Vehículos135 (RD 2822/98), antes que a las consecuencias del delito.

En estos casos deberá atenderse a las circunstancias de la avería para comprobar si el sujeto se ha colocado deliberadamente en una situación de ceguera voluntaria “no queriendo saber aquello que puede y debe conocer, pero beneficiándose de la situación”136, que le será subjetivamente imputada -conforme a la doctrina del TS, adaptación continental del Willful Blindness anglosajón- a título doloso “ya que asume y acepta todas las consecuencias del ilícito en el que voluntariamente participa”137. Esta solución carece de expresa acogida en el Código, a diferencia de la previsión del art. 20.2 CP para la figura similar de la actio libera in causa, con la que comparte la finalidad de que el actor no se beneficie de una situación de inimputabilidad que él mismo ha provocado.

135 Vid. Guía codificada de infracciones de tráfico. http://www.dgt.es.136 STS de 10 de enero de 2000, cita de RAGUÉS I VALLÉS, “La ignorancia deliberada en Derecho Penal”,

p. 24, Ed. Atelier, Barcelona, 2007.137 STS de 16 de octubre de 2000, cita de RAGUÉS I VALLÉS, “Consideraciones sobre la prueba del dolo”,

p.16, Revista de Estudios de la Justicia nº 4, Universidad de Chile, Santiago, 2004.

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2.2 LA IDENTIFICACIÓN DEL CONDUCTOR – LA AVERIGUACIÓN DEL DELINCUENTE

Observadas las anteriores exigencias respecto del aparato medidor de velocidad, la aplicación del delito de conducción a velocidad excesiva no debería plantear mayor problema, cuando es la misma policía judicial que realiza el control de velocidad, la que sorprendiendo en flagrante delito al conductor responsable, procede inmediatamente a su identificación para sustanciar el correspondiente atestado. Sin embargo, el empeño de los poderes públicos por perfeccionar su función de control social, le ha llevado a reemplazar progresivamente a los agentes encargados de la vigilancia del tráfico, por cinemómetros, cámaras y otros dispositivos automáticos.

Este fenómeno, que no es privativo del ámbito viario, se deduce claramente del notable incremento del número de cámaras y cinemómetros de instalación fija, que ha pasado de ser, sólo en vías interurbanas, de 190 en 2008, a 881 en la actualidad138, así como de la actual proliferación de, entre otros , las llamadas “cámaras foto-rojo” que, instaladas sobre los semáforos, captan la fotografía de aquellos vehículos que no respeten la fase roja, y de los vehículos “pone-multas”, que circulan grabando permanentemente mediante unas cámaras de video instaladas en el techo, con la finalidad “oficial” de evitar los estacionamientos en doble fila139.

Todos estos dispositivos tienen en común su parecido funcionamiento, caracterizado por su automatismo y porque el único dato que obtienen, sobre la identidad del responsable de la infracción, es el número de la placa de matrícula del vehículo. Este déficit material se salvó hace tiempo imponiendo a los personas que figuren como titular de algún vehículo inscrito en el Registro de Vehículos de la DGT, la obligación de identificar al conductor que cometiese una infracción con su vehículo. Esta obligación antes prevista en el antiguo art. 72.3 LSV, ha sido trasladada al nuevo artículo 9 bis.1, creado por la Ley 18/2009 modificadora de la LSV:

Art. 9 bis.1. El titular de un vehículo tiene las siguientes obligaciones:

a) Facilitar a la Administración la identificación del conductor del vehículo en el momento de ser cometida una infracción. Los datos facilitados deben incluir el número del permiso o licencia de conducción que permita la identificación en el Registro de Conductores e Infractores.

138 Desplegados muy irregularmente actualmente se tienen instalados 216 en Cataluña, 60 en País Vasco y 605 en el resto del territorio nacional. Vid. www.dgt.es, www.gencat.cat, y www.trafikoa.net.

139 Todos estos dispositivos han sido desarrollados a la luz de la norma UNE 199142-2:2010 de Equipamiento para la gestión del tráfico. Visión artificial. Detección de vehículos infractores.

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2.2.1 La Declaración de Titular y la Controvertida Figura del “Conductor Habitual” del Nuevo Procedimiento Sancionador

Con descarado abuso de esta obligación formal de colaboración, la Administración vial descarga en el titular registral del vehículo el “peso” de la identificación del infractor, sancionando su incumplimiento con multa del duplo o el triplo de la que corresponda a la infracción encubierta140. No obstante, el siguiente apartado de ese mismo artículo 9 bis, ofrece al titular del vehículo la posibilidad de aliviar dicha obligación designando a una persona – que podrá ser él mismo – como conductor habitual del mismo, y sobre el que recaerá – salvo que éste haya sido sustraído, o se pruebe que el conductor era otro – la responsabilidad de la infracción en los supuestos en que no tenga lugar la detención del vehículo141, la cual no será necesaria cuando la autoridad sancionadora conozca los hechos, precisamente a traves de un medio automático de captación que ya haya identificado al vehículo, permitiéndose en estos casos, que la notificación al denunciado, pueda realizarse en un momento posterior a la comisión de la infracción142.

Con todo este juego de obligaciones y presunciones, es evidente que a la Administración le basta con conocer el número de matrícula del vehículo infractor, para incoar expediente, sustanciarlo cómodamente a expensas del titular registral, o dirigiéndolo, sin mayor esfuerzo indagatorio contra el conductor habitual designado. Con semejantes ventajas no es de extrañar el mencionado incremento de cámaras y automatismos.

No parece, sin embargo, que estos dispositivos automáticos puedan resultar útiles para la comprobación del resto de delitos contra la seguridad vial, ya que éstos generalmente exigen la constatación hechos o datos que las máquinas por sí solas no son capaces de captar: peligro concreto, manifiesto desprecio por la vida de los demás etc. Pese a ello, en el caso del delito del 379.1 CP, dichas máquinas son perfectamente capaces de medir el quantum de velocidad requerido, si bien aportando sólo la matrícula del vehículo. Por este motivo, tras la entrada en vigor del precepto penal, el 2 de diciembre de 2007, se

140 Art. 67.2.a LSV: “La multa por la infracción prevista en el artículo 65.5.j (El incumplimiento por el titular del vehículo con el que se haya cometido la infracción de la obligación de identificar verazmente al conductor responsable, cuando sea requerido para ello) será el doble de la prevista para la infracción originaria que la motivó, si es infracción leve, y el triple, si es infracción grave o muy grave.”

141 Art. 69.1.c LSV: “En los supuestos en que no tenga lugar la detención del vehículo y éste tuviese designado un conductor habitual, la responsabilidad por la infracción recaerá en éste, salvo en el supuesto de que acreditase que era otro el conductor o la sustracción del vehículo.”

142 Art. 76 LSV: “1. Las denuncias se notificarán en el acto al denunciado. 2. No obstante, la notificación podrá efectuarse en un momento posterior siempre que se dé alguna de las siguientes circunstancias: a)…, b)…, c) Que la autoridad sancionadora haya tenido conocimiento de los hechos a través de medios de captación o reproducción de imágenes que permitan la identificación del vehículo.”

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planteó la cuestión – nada baladí teniendo en cuenta que cada mes se registran más de 200 captaciones constitutivas de delito143 – acerca de la aplicabilidad procesal penal a estos casos del juego de obligaciones anteriormente comentadas144.

Así la FGE ha dictado unas pautas de actuación para los supuestos en que sólo se cuente con la matrícula del automóvil, estableciendo que tras las indagaciones de la policía judicial y con el debido fundamento, el titular del mismo declare, con instrucción de los derechos del art. 118 LECrim, como imputado, y si en el ejercicio de estos derechos se negare a identificar a la persona que conducía, se comprobará su versión exculpatoria a los efectos del 396 LECrim, solicitándose una “profunda investigación” sobre quién conduce habitualmente el vehículo y cuantos extremos puedan llevar al descubrimiento del autor145.

TRAPERO BARREALES propone que sólo se despachen por vía penal aquellas captaciones delictivas en las que constare la identificación del conductor responsable desde un principio, ante la insatisfacción obtenida tras plantear las diversas situaciones posibles tras conocerse el delito, pero no su presunto autor146. A saber:

a) Se inicia el expediente sancionador requiriendo al titular del vehículo que identifique al infractor, éste comunica que era él mismo quien conducía, y con tal reconocimiento se pasa el tanto de culpa a la vía penal, formulándose acusación contra esta persona con base a su autodenuncia. Esto supone materialmente una vulneración del derecho a no declarar contra sí mismo y a no confesarse culpable, previsto en el 24.2 CE. Del mismo modo, si hubiese comunicado la identidad de un pariente suyo también se hubiese llegado a una situación de vulneración material del derecho a no declarar como testigo contra un pariente previsto en el art. 416 LECrim147.

b) Se inicia expediente sancionador y el titular del vehículo guarda silencio ante el requerimiento formal para que identifique al responsable de la infracción. Se termina imponiendo una sanción administrativa por ejercer el derecho fundamental de todo imputado, a guardar silencio ante una acusación formal de delito.

143 VILLALBA CARRASQUILLA, F. Jornadas de Derecho Penal y Seguridad Vial. Centro de Estudios Jurídicos. p. 132. Pamplona: Aranzadi, 2007.

144 Excepto la presunciones relativas a la figura del conductor habitual, que se introdujo ex novo en mayo de 2010 por la Ley 18/2009, de modificación de la LSV.

145 Circular 10/2011 de la FGE, p. 16.146 TRAPERO BARREALES, M. Los delitos contra la seguridad vial: ¿Una reforma de ida y vuelta? Nota 7

p.46, Valencia, 2011.147 El art. 416 LECrim. dispensa a los testigos de la obligación de declarar, cuando el procesado sea pariente

en línea directa ascendente y descendente, su cónyuge o persona a la que se halla unida por relación de hecho análoga a la matrimonial, sus hermanos consanguíneos y uterinos, sus colaterales consanguíneos hasta el segundo grado civil.

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c) Se incoan diligencias previas, compareciendo como imputado el propietario del vehículo, con instrucción de sus derechos del 118 LECrim, tras el interrogatorio al que no contesta, se dicta el sobreseimiento de la causa, dándose traslado a la autoridad administrativa, la cual iniciará el expediente requiriendo al propietario para que identifique al infractor, dándose de nuevo la situación expuesta en a), o b).

DE VICENTE MARTINEZ afirma que pretender trasladar la operativa administrativa al ámbito penal supone engañar a la ciudadanía, y augura que ésta y otras dificultades acabaran determinando que solo los excesos punibles en que conste la identidad del autor serán judicializados, preguntándose si para acabar así -persiguiendo penalmente sólo aquellos casos en los que constare identificación-, no hubiera sido más coherente exigir la concurrencia de alguna situación de peligro – siquiera leve – que colmara dignamente la exigencia de lesividad, aprovechando que se cuenta con policías y testigos de la identificación148.

Peor escenario se hubiera dibujado con el advenimiento de las presunciones establecidas para el “conductor habitual”, titulares de talleres, y arrendatarios de vehículos, que establece el Art. 69.2 LSV:

Art. 69 Personas responsables:

1.La responsabilidad de las infracciones dispuestas en esta Ley recaerá directamente en al autor del hecho en que consista la infracción. No obstante:

[…]

c) En los supuestos en que no tenga lugar la detención del vehículo y éste tuviese designado un conductor habitual, la responsabilidad por la infracción recaerá en éste, salvo en el supuesto de que acreditase que era otro el conductor o la sustracción del vehículo

d) En los supuestos en que no tenga lugar la detención del vehículo y éste no tuviese designado un conductor habitual, será responsable el conductor identificado por el titular o el arrendatario a largo plazo, de acuerdo con las obligaciones impuestas en el artículo 9 bis.

e) En las empresas de arrendamiento de vehículos a corto plazo será responsable el arrendatario del vehículo. En caso de que éste manifestara no ser el conductor, o fuese persona jurídica, le corresponderán las obligaciones que para el titular establece el artículo 9 bis. La misma responsabilidad alcanzará a los titulares de los talleres mecánicos o establecimientos de compraventa de vehículos por las infracciones cometidas con los vehículos mientras se encuentren allí depositados.

148 DE VICENTE MARTINEZ, R. ob.cit., p. 498.

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2. Lo dispuesto en el presente artículo se entenderá a los únicos efectos de la determinación de la responsabilidad en el ámbito administrativo por las infracciones tipificadas en la presente Ley.

No obstante el último apartado de este artículo exlcuye expresamente la posibilidad de utilizar estas presunciones para determinar la imputación de la responsabilidad penal, la Fiscalía afirma

que siendo claro que la titularidad registral no es suficiente elemento de cargo, tampoco puede considerarse un dato irrelevante, pudiendo la negativa a identificar al autor del delito valorarse en su contra, en caso de contradicción o corroboración indiciaria, a partir de la cual inferir la culpabilidad149.

Insiste con abundante referencia jurisprudencial150, en que

es la valoración conjunta de los numerosos hechos-base, entre los que se incluye la actitud pasiva del propietario del vehículo, y su proyección –por llamada directa- sobre el hecho principal u objeto de imputación, lo que permitirá inferir racionalmente, en base a máximas de experiencia fiables, el relato razonado y razonable de los hechos, suficiente para enervar la presunción de inocencia.

Mientras los supuestos enjuiciados no pasen de las Audiencias Provinciales, cabe preguntarse si entre los hechos-bases a valorar conjuntamente pueden considerarse alguno relacionado con las citadas presunciones legales, como por ejemplo un asiento de cierta antigüedad en el Registro de Conductores, que designa a una persona como “conductor habitual”. Entendemos que no debe ser así, pues en el momento en que se establecieron estas presunciones – 24 de mayo de 2010 –, el delito del 379.1 CP ya gozaba de plena vigencia, y por expreso deseo, el legislador no quiso que los efectos que esas nuevas presunciones pudiesen proyectar fueran otros que los de naturaleza administrativa, por lo que deben considerarse, a las previsiones del Art. 69 LSV, totalmente inválidas para generar cualquier efecto que no sea administrativo.

Creemos que el problema de la insuficiente identificación de las captaciones automáticas, podría aliviarse orientando el cinemómetro de forma que la cámara que registra la fotografía – o la secuencia de vídeo en helicópteros- captase, sin utilizar el flash para evitar deslumbramientos, la parte frontal del vehículo, en la que además de la matrícula apareciesen las características personales que quien va al volante, con la suficiente nitidez y fiabilidad como para permitir su identificación, sin que ello deba suponer vulneración alguna del derecho a la intimidad personal y familiar, y a la propia imagen (18.1 CE).

149 Memoria General de la FGE año 2010, p. 921.150 Vid. SSTC 161/97 FJ 5; 197/95 FJ 6; 202/00 FJ 5, así como la STS 556/07 FJ 1.

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En este sentido a las grabaciones de video y registros fotográficos realizados por estos aparatos, les son de plena aplicación los preceptos de la LO 4/1997, por la que se regula la utilización de videocámaras por las Fuerzas y Cuerpos de Seguridad en lugares públicos, para lo que exige que se respeten los principios de proporcionalidad (que la intervención sea mínima y el medio utilizado idóneo) y de oportunidad (existencia de un riesgo para la seguridad ciudadana), lo que a nuestro juicio se hace en el caso que nos ocupa.

2.2.2 La Identificación del Conductor por el Titular Registral

Considerando el silencio que mantiene al respecto, parece que hasta para la Fiscalía, “siempre celosa en su defensa de la legalidad151” resulta evidente la improcedencia de utilizar en el proceso penal la identidad que pueda haber proporcionado el titular registral, tras haber sido requerido formalmente por la Administración en virtud de la obligación prevista en el 9 bis.1 LSV. No obstante, al contarse con el único dato de la matrícula, será necesariamente el titular registral el eje de la “profunda investigación” que promueva la Fiscalía, y el protagonista de las diligencias indagatorias que deban practicarse. Así, tal y como se ha expuesto, se solicitará su citación como imputado, y una vez instruido de sus derechos, se le someterá a interrogatorio del que la Fiscalía espera obtener alguna prueba de cargo, al menos indiciaria, tanto de su declaración como de su silencio.

Ahora bien, la ejecución – aparentemente sencilla – de estas pautas de actuación se enfrenta a no pocas dificultades derivadas de la amplia casuística administrativa, que complicarán la práctica de la “profunda investigación” hasta extremos que pueden provocar el archivo – con el consecuente deterioro de la función preventiva general positiva – de las actuaciones y finalmente su traslado a las autoridades administrativas, las cuales ayudándose de su privativo juego de obligaciones y presunciones, generalmente impondrán con relativa facilidad una multa igual de severa – o más – que la que hubiese correspondido de mediar sentencia penal condenatoria, lo que provocará la inevitable pregunta de hasta qué punto es necesario el Derecho Penal para obtener idéntico resultado que aplicando el Derecho Administrativo, pero necesitando de un extraordinario esfuerzo que sin duda distraerá recursos – siempre limitados – que debieran empeñarse en causas de mayor significación.

Así, la experiencia administrativa adelanta el dato de que se darán no pocas situaciones en las que no sea posible la imputación del titular del vehículo, tal y como propone la Fiscalía para impulsar su “profunda investigación”, como por ejemplo:

151 STS 101/2012, de 27 de febrero, Voto particular disidente del Magistrado MAZA MARTíN.

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- Automóvil no matriculado en España:

Una dificultad, conocida e irresuelta, es la del supuesto de vehículo con placa extranjera. Se han propuesto multitud de soluciones, entre las que destaca la de programar aquellos cinemómetros que registren un mayor número de captaciones de estas matrículas – zonas turísticas –, para que envíen una señal de alarma a Emergencias 112 o a la Central de la Guardia Civil de la provincia de que se trate, al objeto de proceder a su detención por las patrullas en servicio. El problema práctico que presentaría esta medida es que si efectivamente el aparato registra muchas infracciones, probablemente no siempre se disponga de patrullas para atender cada alarma que se produzca, bien porque se active en horarios nocturnos – cuando la vigilancia es menos intensa –, o porque las patrullas se encuentren atendiendo otras incidencias de mayor prioridad – accidentes, incendios forestales, alcoholemias positivas, retenciones en accesos a la costa, etc-. Además, aunque se lograse detener el vehículo, si en él viajan varias personas, y todas ellas afirman que se han ido alternando en la conducción, será ciertamente complicado determinar quién de ellos lo hacía en el momento de la captación. Asimismo cabe preguntarse por la actuación de la Fiscalía en este caso, y por la procedencia de citar como imputados a cinco personas, cuando se conoce – a diferencia de otras figuras delictivas, en que pueden haber múltiples responsables –, que solamente una de ellas puede ser el autor.

- Titular registral fallecido:

Otro obstáculo a la investigación, sin duda muy frecuente, es el de una fotografía tomada a un vehículo cuyo propietario hubiese fallecido mucho antes de que aquélla se tomara, y estuviese siendo utilizado por algún pariente indeterminado mientras la herencia permanece yacente. Cabe hacerse la pregunta anterior sobre las diligencias a practicar, y sobre quién debe ser citado y en calidad de qué, debiendo tenerse en cuenta especialmente en este caso, lo dispuesto en el art. 416 LECrim sobre la dispensa de declarar como testigo contra familiares y parientes.

- Automóviles de empresa, y otras personas jurídicas:

Con mayor frecuencia aún, se dará el caso de que el titular registral de un vehículo sorprendido a velocidad penalmente relevante, sea una persona jurídica – irresponsables penalmente por este delito, en virtud del 31 bis CP. Parece claro que en estos casos la Fiscalía iniciará su “profunda investigación” solicitando que comparezca el Administrador, Patrón o Presidente, en el caso de que se tratase de sociedad mercantil, fundación o asociación. La situación puede complicarse en el supuesto de que ésta no tenga un administrador único, sino varios que ostenten la representación de la sociedad por igual, así como en el caso de que se tratase de una organización sindical o empresarial, un partido político, o un organismo o fundación pública, u otras organizaciones de gran tamaño en la que no se mantenga un control exhaustivo del uso del parque móvil, y a su representante le resulte prácticamente imposible identificar al autor de la infracción penal.

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Entendemos que en todos estos casos la Fiscalía actuará adaptándose como mejor convenga a su labor de investigación, instando generalmente la citación en calidad de imputado – como prevé su protocolo de actuación152 –, y cuando no sea posible como testigo según las circunstancias concretas, pero en cualquier caso respetando escrupulosamente las garantías procesales de las que darán debida instrucción tanto a imputados, como a testigos.

Cabe plantearse la situación en la que habiendo sido citado como testigo, no se haya contestado al interrogatorio sobre la identidad del autor – porque se haya acogido a la dispensa de denunciar (Art. 261LECrim153), o declarar (arts. 416 y 418 LECrim) contra familiares y allegados –, y tras las posteriores indagaciones de la policía judicial se logre identificar al autor de los hechos – mediante una grabación de videovigilancia de una estación de servicio, o de la cabina de peaje de una autopista –, descubriéndose que no se trata ni del testigo interrogado, ni de ningún pariente de los previstos en dichos preceptos. Surge la pregunta, a partir de este dato, sobre si procedería deducir testimonio para depurar responsabilidad penal del testigo, respecto del delito de falso testimonio del art. 458.1 CP154, lo que entendemos que es perfectamente posible, salvo que el testigo realice la conducta absolutoria prevista en el art. 462 CP155.

Todos estos inconvenientes ponen de relieve la necesidad de cuestionarse, como se ha dicho, la oportunidad procesal de promover una “profunda investigación”, para resolver – en caso de que se tenga éxito y tras una ejecutoria repleta de previsibles obstáculos – la imposición de una sanción, que generalmente la Administración Vial impondría con muchísima más facilidad y celeridad.

152 Circular 10/2011, sobre criterios para la actuación especializada en materia de seguridad vial. 153 261 LECrim: “Tampoco estarán obligados a denunciar: El cónyuge del delincuente, los ascendientes y

descendientes consanguíneos o afines al delincuente y sus colaterales consanguíneo o uterinos y afines, hasta el segundo grado inclusive, y los hijos naturales respecto de la madre en todo caso, y respecto del padre si estuviere reconocido.

154 458.1 CP: “ El testigo que faltare a la verdad en su testimonio en causa judicial, será castigado con las penas de prisión de seis meses a dos años y multa de tres a seis meses”.

155 462 CP: “Quedará exento de pena el que, habiendo prestado un falso testimonio en causa criminal, se retracte en tiempo y forma, manifestando la verdad para que surta efecto antes de que se dicte sentencia en el proceso de que se trate. Si a consecuencia del falso testimonio, se hubiese producido la privación de libertad, se impondrán las penas correspondientes inferiores en grado”.

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CONCLUSIONES

Tras realizar una aproximación al estado actual de la justicia administrativa de la seguridad vial, completar el análisis del delito de conducción a velocidad excesiva partiendo del tipo penal en blanco del art. 379.1 CP, y reflexionar brevemente sobre los principales problemas prácticos con los que puede tropezarse en la aplicación de este delito, se ofrecen una serie de consideraciones con las que se concluye el presente estudio:

Primera: se ha podido comprobar que los primeros accidentes de tráfico llevan produciéndose desde el mismo nacimiento de la circulación motorizada, como una consecuencia directa e indeseada del riesgo inherente al propio movimiento. Asimismo se ha comprobado que, desde muy pronto, la velocidad a la que el nuevo medio de transporte podía desplazarse acaparó la atención de los usuarios de los espacios públicos, provocando ya un abierto rechazo a que se permitiera que fuese demasiado elevada, lo que motivó la intervención de los legisladores para tratar de regular satisfactoriamente el nuevo fenómeno, mediante reglamentos administrativos, que a duras penas conseguían mantenerse actualizados ante el imparable progreso técnico de la floreciente industria automovilística.

Segunda: así ocurrió en los albores del siglo XX en España, donde una interminable sucesión de reglamentos trataron, por una parte, de regular el sinfín de cuestiones legales, técnicas y administrativas que planteaba el vertiginoso aumento del número de automóviles en la sociedad española; y por otra, de prevenir mediante diversas sanciones el fenómeno de los siniestros viales que se incrementaba al mismo ritmo que lo hacía el parque móvil. Aunque prácticamente todos los reglamentos incluyeran previsiones relacionadas con el adecuado estado de las vía, su señalización, la formación y la educación vial, el eje principal del esfuerzo administrativo en la prevención de accidentes, siempre ha sido el discurso amenazador que supone la sanción, a pesar de haberse comprobado históricamente la existencia de otros ámbitos administrativos más eficaces para la evitación de accidentes.

Manteniendo esta tendencia y apoyándose en los avances tecnológicos, el Derecho Administrativo – creemos que tensando la cuerda que delimita la frontera con el desamparo constitucional – ha elaborado un riguroso ordenamiento sancionador que en cuanto mejore sus previsiones cautelares, deberá proyectar unos efectos ciertamente eficaces en la prevención de la siniestralidad, como ya ha demostrado con la implantación del sistema de permiso de conducir por puntos.

Tercera: pese a todo, el Derecho Penal, que hasta mediados del siglo XX mantuvo fuera de sus muros las conductas viales peligrosas carentes de resultado, se decidió a intervenir ante el imparable goteo de víctimas en las carreteras, introduciendo el uso de la tipificación del peligro, la cual a pesar de no haber logrado el éxito esperado en la prevención de los accidentes, no sólo no ha desistido de su utilización, sino que se ha extendido a aquellas manifestaciones y conductas ahora consideradas peligrosas,

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adelantándose cada vez más a la producción del resultado, y exigiendo cada vez menos antijuridicidad material, hasta confundirse ya, con las meras infracciones administrativas.

Este fenómeno expansivo, como se ha visto, no siempre responde a necesidades materiales de intervención penal, sino a otras finalidades simbólicas y a lo que podríamos denominar demandas de “ajusticiamiento” provenientes de sectores de población victimizados que aplauden satisfechos la atención del legislador – creemos que sin razón, pues el recurso al Derecho Penal no debería ser una buena noticia para nadie, ya que evidencia el fracaso de la regulación existente, y no garantiza que el problema vaya a resolverse.

Cuarta: numerosos son los reproches que nos merece el delito del 379.1 del Código Penal: lesión del principio de intervención mínima, excesivo adelantamiento de la barrera penal, confusión con el ilícito administrativo por su falta de antijuridicidad material, inseguridad jurídica por precepto penal en blanco vacío de regulación, etc. Sin embargo, lo que, a nuestro juicio, provoca mayor rechazo es la presunción iuris et de iure de peligrosidad que establece, y de la que es imposible defenderse, máxime cuando la fuente de prueba se introduce, conforme se ha expuesto, mediante una pericial preconstituida imposible de contradecir en el momento de su formación, y de tan limitadísima contradicción durante el juicio oral, que cabe considerarla una auténtica prueba penal tasada – pericial para probar el delito, y documental para imputar a su autor.

Ello es así, como se ha visto, por la automatización del proceso de formación de la prueba, caracterizado por una total ausencia de intervención humana, y tan dependiente de los cinemómetros que pareciera que el tipo penal no exige peligro, para aprovecharlos mejor. Se ha reflexionado también, sobre los déficits de la prueba automática, y las posibles dificultades en su aplicación, algunas tan notables que impedirán sostener una acusación mínimamente sólida.

Quinta: podemos concluir sin temor a equivocarnos, que muy probablemente la aportación del delito objeto de estudio, en pos de la seguridad vial será más bien pobre, provocando además el indeseable efecto de que, ante la falta de resultados, se reaccione con una nueva vuelta de tuerca.

El conocimiento estadístico señala claramente cuáles son las medidas que hacen disminuir las cifras de la siniestralidad, entre las que destaca la mejora de la red viaria. La construcción de autovías, la remoción de puntos negros y todas aquellas actuaciones que hagan las carreteras más sencillas de conducir, redundarán sin duda en la seguridad vial.

A estas alternativas al énfasis represivo, añadimos la implantación de la asignatura de educación vial en las enseñanzas obligatorias, una revisión del nivel de exigencia para la obtención y renovación de los permisos de conducir, y si se quiere intervenir en la velocidad, la obligación de instalar de serie en turismos y motocicletas, dispositivos limitadores de velocidad.

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RESUMO

Passados 100 anos de proibição e mais de 40 anos de guerra às drogas, os resultados são violência, mortes, prisões superlotadas, doenças se espalhando, milhares de vidas destruídas, violações a direitos fundamentais, racismo, entre outras discriminações, e nenhuma redução na disponibilidade das substâncias proibidas. Mais do que a inaptidão para atingir o declarado objetivo de eliminar ou pelo menos reduzir a disponibilidade das arbitrariamente selecionadas drogas tornadas ilícitas, a proibição acresce danos muito mais graves aos riscos e aos danos que podem ser causados pelas drogas em si. O mais evidente e dramático desses danos provocados pela proibição é a violência, resultado lógico de uma política baseada na guerra. A guerra às drogas mata muito mais que as drogas. Além disso, com a irracional decisão de enfrentar um problema de saúde com o sistema penal, o Estado agrava esse próprio problema de saúde. A imposição de “tratamento” compulsório a dependentes de drogas constitui clara violação à liberdade individual. Ninguém pode ser obrigado a se “curar”. É preciso pôr fim a essa falida e danosa política que, além de não funcionar em sua inviável pretensão de salvar as pessoas de si mesmas, produz demasiada violência, mortes, prisões e doenças. É preciso legalizar e consequentemente regular a produção, o comércio e o consumo de todas as drogas.

Palavras-chave: Drogas. Proibição. Guerra. Violência. Saúde. Legalização.

ABSTRACT

After 100 years of prohibition and more than 40 years of war on drugs, the outcomes are violence, deaths, overcrowded prisons, spread of disease, thousands of lives destroyed, violations of fundamental rights, racism and other discriminations, and no reduction in the availability of the prohibited substances. More than its failure to achieve the stated objective of eliminating or at least reducing the availability of the arbitrarily selected drugs that became illicit, prohibition adds much serious harm to the risks and harm that may be caused by drugs themselves. The most evident and dramatic harm provoked by prohibition is violence, which is a logical outcome of a policy based on war. The war on drugs kills much more than drugs. Moreover, taking the irrational decision of dealing with a health problem with the criminal justice system, the State aggravates this same health problem. Ordering compulsory “treatment” to drug addicts is a clear violation of individual liberty. Nobody shall be forced to be healed. It is necessary to put an end to this failed and harmful policy, which besides not working to accomplish its unfeasible aim of saving people from themselves causes too much violence, too much deaths, too much imprisonment, too much disease. It is necessary to legalize and therefore regulate the production, supply and consumption of all drugs.

Keywords: Drugs. Prohibition. War. Violence. Health. Legalization.

INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA: LIBERDADE É ESCRAVIDÃO?1

MANDATORy DETENTION: fREEDOM IS SLAVERy?

Maria Lucia Karam2

1 Palestra no VII Seminário Antimanicomial “Internação Compulsória: Liberdade É Escravidão?”, na Semana da Luta Antimanicomial de Pernambuco, promovida pelo Núcleo Estadual de Luta Antimanicomial – Libertando Subjetividades (PE), Recife-PE, maio 2013.

2 Juíza aposentada no Rio de Janeiro. Membro da diretoria da Law Enforcement Against Prohibition (LEAP). Presidente da Associação dos Agentes da Lei Contra a Proibição (LEAP Brasil – www.leap.cc/www.leapbrasil.com.br).

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Tem-se registro do uso das drogas desde as origens da história da humanidade. A proibição nem sempre existiu. É fenômeno que passou a existir, em âmbito mundial, somente recentemente, a partir do início do século XX, tornando ilícitas drogas como a maconha, a cocaína ou a heroína, e criminalizou as condutas de seus produtores, comerciantes e consumidores. Nos anos de 1970, a repressão aos produtores, comerciantes e consumidores dessas substâncias proibidas foi intensificada com a introdução da “guerra às drogas”, a qual foi declarada pelo ex-presidente Richard Nixon, nos Estados Unidos da América, em 1971, e logo se espalhou pelo mundo.

Essa explícita opção pela guerra deixa claro o descompromisso da política proibicionista com os direitos fundamentais dos indivíduos: guerras e direitos humanos são naturalmente incompatíveis. A proibição às drogas tornadas ilícitas é imposta nas vigentes convenções da Organização das Nações Unidas (ONU)3, que dão as diretrizes para a formulação das leis internas sobre esse tema nos mais diversos Estados nacionais. Essas convenções internacionais e leis nacionais, como a Lei nº 11.343/2006, contrariam diversos princípios garantidores consagrados nas declarações internacionais de direitos humanos e nas constituições democráticas.

A proibição se baseia na distinção arbitrariamente feita entre substâncias psicoativas, que foram tornadas ilícitas (como a maconha, a cocaína, a heroína etc.), e outras substâncias da mesma natureza que permaneceram lícitas (como o álcool, o tabaco, a cafeína etc.). Tornando ilícitas algumas dessas drogas e mantendo outras na legalidade, as convenções internacionais e as leis nacionais introduzem uma arbitrária diferenciação entre as condutas de produtores, comerciantes e consumidores daquelas e dessas substâncias: aquelas constituem crime e essas são perfeitamente lícitas; produtores, comerciantes e consumidores de certas drogas são “criminosos”, enquanto produtores, comerciantes e consumidores de outras drogas agem em plena legalidade. Esse tratamento desigual de atividades similares claramente viola o princípio da isonomia, o qual determina que todos são iguais perante a lei, não se podendo tratar desigualmente pessoas em igual situação.

Certamente, não há qualquer peculiaridade ou qualquer diferença relevante entre as drogas que foram arbitrariamente selecionadas e tornadas ilícitas e as demais drogas

3 São três as convenções da ONU sobre a matéria, vigentes e complementares: a Convenção Única sobre entorpecentes de 1961, que revogou as convenções anteriores e foi revista por um protocolo de 1972; o Convênio sobre substâncias psicotrópicas, de 1971; e a Convenção das Nações Unidas (Convenção de Viena) contra o tráfico ilícito de entorpecentes e substâncias psicotrópicas, de 1988. Ainda ao tempo da Liga das Nações, já haviam sido estabelecidas convenções internacionais sobre drogas, a primeira delas foi a Convenção Internacional sobre o Ópio, adotada em Haia, em 23 de janeiro de 1912. A imposição de criminalização somente se concretiza com as convenções da ONU.

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que permanecem lícitas. Todas são substâncias que provocam alterações no psiquismo, podendo gerar dependência e causar doenças físicas e mentais e que são potencialmente perigosas e viciantes, são drogas. Seus efeitos mais ou menos danosos dependem mais de como a pessoa que as usa se relaciona com elas do que de sua própria composição. Uma droga mais potente consumida com moderação pode ter efeitos menos danosos do que uma droga menos potente consumida abusivamente. Como já afirmado há tempos por Claude Olievenstein, “o problema da droga não existe em si, mas é o resultado do encontro de um produto, uma personalidade e um modelo sociocultural”4. Se, ainda assim, quisesse levar em conta tão somente o maior ou menor potencial danoso de cada droga em si (seus efeitos primários), a arbitrariedade do tratamento diferenciado se revelaria ainda mais claramente, pois algumas drogas lícitas são potencialmente mais danosas em sua própria composição do que algumas drogas tornadas ilícitas.5

Além de violar o princípio da isonomia, as convenções internacionais e leis nacionais que discriminatoriamente proíbem condutas de produtores, comerciantes e consumidores das drogas que foram arbitrariamente selecionadas e tornadas ilícitas criam crimes sem vítimas, ao criminalizarem a mera posse daquelas substâncias e sua negociação entre adultos.

Conforme princípios inscritos nas Declarações Internacionais de Direitos Humanos e nas constituições democráticas, a criminalização de qualquer conduta deve sempre se referir a uma ofensa relevante a um bem jurídico alheio, ou à exposição deste a um perigo de lesão concreto, direto e imediato. Isso significa que uma conduta somente pode ser proibida se for capaz de causar dano ou perigo concreto de dano a um bem jurídico de terceiro, isto é, quando impede a possibilidade desse terceiro, titular do bem jurídico, usar ou se servir (isto é, dispor) do objeto concreto relacionado ao bem jurídico (como a vida, a saúde, o patrimônio etc.).6

Quando o uso da droga não traz um risco concreto, direto e imediato a terceiros – como é o caso da posse para uso pessoal de drogas ilícitas –, ou quando o responsável pela conduta age de acordo com a vontade do titular do bem jurídico – como acontece na venda

4 OLIEVENSTEIN, Claude; ARON, Michel. A droga. São Paulo: Brasiliense, 1984.5 Ver NUTT, David et al. Development of a rational scale to assess the harm of drugs of potential misuse.

Lancet, n. 369, p. 1047-1053, 2007.6 Ver ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGÍA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho penal: parte general.

Buenos Aires: Ediar, 2000. Conforme a apropriada conceituação dos autores, o bem jurídico é uma relação de disponibilidade de um sujeito com um objeto. Embora costumeiramente o bem jurídico seja identificado ao objeto (como a vida, a saúde, o patrimônio etc.), o que o Direito protege (ou pretende proteger) não é propriamente o objeto em si mesmo, mas a possibilidade que o sujeito tem de usar ou de se servir (ou seja, de dispor) daqueles objetos concretos.

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de drogas ilícitas para um adulto que quer comprá-las –, o Estado não está autorizado a intervir. Leis que desprezam o consentimento do titular do bem jurídico e criminalizam a conduta de quem age de acordo com sua vontade ilegitimamente criam um mecanismo destinado a impedir indiretamente que aquele titular do bem jurídico exerça seu direito de dele dispor – no caso das drogas que foram tornadas ilícitas dispõe da saúde do titular.

Em uma democracia, o Estado não pode tolher a liberdade dos indivíduos sob o pretexto de pretender protegê-los. Ninguém pode ser coagido a ser protegido contra sua própria vontade. Intervenções do Estado supostamente dirigidas à proteção de um direito contra a vontade do indivíduo que é seu titular contrariam a própria ideia de democracia, pois excluem a capacidade de escolha na qual essa ideia se baseia. O Estado democrático não está autorizado a substituir o indivíduo nas decisões que dizem respeito apenas ao indivíduo. Deve-se garantir ao indivíduo a liberdade de decidir, mesmo que sua decisão resulte uma perda ou um dano para si mesmo.

Violações a normas garantidoras de direitos fundamentais estão na base da proibição e se aprofundam à medida que cresce o tom repressor, multiplicando-se as regras das convenções internacionais e leis internas que, ao estabelecer maior rigor penal e processual contra condutas relacionadas a drogas, contrariam princípios inscritos nas Declarações Internacionais de Direitos Humanos e constituições democráticas.7

Passados esses cem anos de proibição, com mais de 40 anos de guerra, os resultados são violência, mortes, doenças, prisões superlotadas, milhares de vidas destruídas, violações a direitos fundamentais, racismo e outras discriminações, mas nenhuma redução na circulação das substâncias proibidas. Ao contrário, em todos esses anos, as drogas ilícitas tornaram-se mais baratas, mais potentes, mais diversificadas e muito mais acessíveis do que eram antes de serem proibidas e de seus produtores, comerciantes e consumidores serem combatidos como “inimigos” nessa nociva e sanguinária guerra.

A própria ONU – que, em 1998, tomada por delirante euforia, prometia um mundo sem drogas em dez anos8 – vê-se constrangedoramente forçada a reconhecer a expansão e diversificação do mercado das drogas ilícitas. Em recente relatório, o Secretariado de seu Escritório para Drogas e Crimes (UNODC) estimou que de 153 milhões a 300 milhões de pessoas entre 15 e 64 anos teriam usado uma substância proibida pelo menos uma

7 Ver KARAM, Maria Lucia. Escritos sobre a liberdade: Proibições, riscos, danos e enganos, as drogas tornadas ilícitas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009a. v. 3

8 Na Sessão Especial da Assembleia-Geral das Nações Unidas (UNGASS) de 1988 foi lançado o slogan que se tornou famoso “A Drug-Free World – We Can Do It”, transmitindo a anunciada intenção de erradicar todas as drogas ilícitas – da maconha ao ópio e à coca – até 2008.

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vez em 20109. O mesmo relatório, destacando que a maconha continua a ser a droga ilícita mais utilizada, seguida pelas anfetaminas, revela que foram identificadas 49 novas substâncias psicoativas consumidas em Estados membros da União Europeia, em 2011; número superior às 41 novas substâncias identificadas, em 2010; e às 24, em 2009.

O fracasso da proibição, além de ser evidente, seria facilmente previsível. A realidade demonstra que, por maior que seja a repressão, sempre houve e haverá quem queira usar as substâncias proibidas. Dessa forma, enquanto houver quem queira comprar, sempre haverá quem queira correr o risco de produzir e vender. Os empresários e empregados das empresas produtoras e distribuidoras das substâncias proibidas, quando são mortos ou presos, são substituídos por outros igualmente desejosos de acumular capital ou necessitados de trabalho. Essa é uma lei da economia: onde houver demanda, sempre haverá oferta. As artificiais leis penais não conseguem revogar as naturais leis da economia. A proibição do desejo simplesmente não funciona.

Mas a proibição não é apenas uma política falida. É muito pior do que ser ineficiente. A proibição adiciona danos muito mais graves aos riscos do que os danos causados pelas próprias drogas. O mais evidente e dramático desses danos provocados pela proibição é a violência, resultado lógico de uma política baseada na guerra. Não são as drogas que causam violência. O que causa violência é a proibição. A produção e o comércio de drogas não são atividades violentas em si.

Não há pessoas fortemente armadas, trocando tiros nas ruas, junto às fábricas de cerveja ou junto aos postos de venda desta ou de outras bebidas alcoólicas. Mas isso já aconteceu. Nos Estados Unidos da América, entre 1920 e 1933, quando havia a proibição do álcool. Naquela época, Al Capone e outros gângsteres trocavam tiros nas ruas, enfrentando a polícia, matando uns aos outros pela disputa do controle sobre o lucrativo mercado do álcool, o qual era ilícito, cobrando dívidas dos que não lhes pagavam, atingindo inocentes pegos no fogo cruzado. Hoje não há violência na produção e no comércio do álcool ou na produção e no comércio de tabaco. Por que é diferente na produção e no comércio da maconha ou da cocaína? A resposta é óbvia: a diferença está na proibição.

Apenas existem armas e violência na produção e no comércio da maconha, da cocaína e outras drogas ilícitas porque o mercado é ilegal. É a ilegalidade que cria e coloca no mercado empresas criminalizadas que se valem de armas não apenas para

9 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Relatório do Secretariado para a 56ª Sessão da Comissão de Drogas Narcóticas (CND): world situation with regard to drug abuse. 2013. Disponível em: <http://www.unodc.org/unodc/commissions/CND/>. Acesso em: 29 ago. 2013

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enfrentar a repressão. As armas se fazem necessárias também em razão da ausência de regulamentação e da consequente impossibilidade de acesso aos meios legais de resolução de conflitos. Estudos apontam que o aumento da repressão também aumenta a violência, especialmente homicídios10.

O exemplo do México é eloquente. A partir de dezembro de 2006, com a posse do presidente Felipe Calderón, a guerra às drogas foi intensificada, inclusive com a utilização das Forças Armadas na repressão aos chamados “cartéis”. Desde então, as estimativas são de 60 a 70 mil mortes relacionadas à proibição11. A taxa de homicídios dolosos no México entre 2000 e 2006 se mantinha em torno de 9 a 10 homicídios por 100 mil habitantes. Em 2009, já era de 17,7; em 2011, chegou a 23,7 homicídios por 100 mil habitantes12.

No Brasil, a taxa de homicídios é ainda superior à do México – aproximadamente 26 homicídios por 100 mil habitantes13. Grande parte desses homicídios está relacionada aos conflitos estabelecidos nas disputas pelo mercado ilegal e à nociva e sanguinária política baseada na guerra. Policiais brasileiros são autorizados formal ou informalmente e mesmo estimulados a praticar a violência contra os “inimigos” personificados nos vendedores de drogas das favelas. Certamente, quem atua em uma guerra, quem deve combater o inimigo, deve eliminá-lo. Por que se espantar com a violência policial? Por outro lado, os ditos inimigos desempenham esse único papel que lhes foi reservado. Matam e morrem envolvidos pela violência causada pela ilegalidade imposta ao mercado onde trabalham.

A proibição cria crimes sem vítimas, mas a guerra às drogas, como qualquer outra guerra, é letal. A guerra às drogas mata muito mais que as drogas.

Essa não é propriamente uma guerra contra as drogas. Não se trata de uma guerra contra coisas. Dirige-se, sim, como todas as guerras, isto é, contra pessoas: os produtores, comerciantes e consumidores dessas drogas que foram arbitrariamente tornadas ilícitas e,

10 Ver WERB, D. et al. Effect of drug-law enforcement on drug-related violence: evidence from a scientific review. Vancouver: International Centre for Science in Drug Policy, 2010.

11 Ver matéria do The Observer (08/08/2010), quando as mortes no México ainda estavam no patamar de 28 mil. No início de 2012, o patamar subira para 50 mil mortes: The Washington Post (02/01/2012). Em 2013, já se falava em 70 mil mortes: International Herald Tribune (08/03/2013). A precariedade das informações conduz a que esses números se refiram a estimativas, podendo, na realidade, ser ainda maior o número de mortes.

12 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Escritório sobre Drogas e Crimes (UNODC). Homicide statistics: 2012. Disponível em: <http://www.unodc.org/unodc/en/data-and-analysis/homicide.html>. Acesso em: 10 jul. 2013.

13 INSTITUTO SANGARI. Mapa da violência: 1912. Disponível em: <http://mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_web.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2012.

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especialmente, os mais vulneráveis entre eles. Os inimigos nessa guerra são os produtores, comerciantes e consumidores pobres não brancos, marginalizados e desprovidos de poder.

A discriminatória proibição da produção, do comércio e do consumo dessas drogas ilícitas foi instituída sob o pretexto de proteção à saúde. No entanto, a própria proibição, paradoxalmente, causa maiores riscos e danos à saúde que enganosamente anuncia pretender proteger. Com a irracional decisão de enfrentar um problema de saúde com o sistema penal, o Estado agrava o problema de saúde.

Com a proibição, o Estado entrega o próspero mercado das drogas tornadas ilícitas a agentes econômicos que, atuando na clandestinidade, não estão sujeitos a qualquer limitação reguladora de suas atividades. A ilegalidade significa exatamente a falta de qualquer controle sobre o suposto indesejado mercado. São esses criminalizados agentes – os ditos traficantes – que decidem quais drogas que serão fornecidas, qual seu potencial tóxico, com que substâncias serão misturadas, qual será seu preço, a quem e onde serão vendidas.

No mercado ilegal não há controle de qualidade dos produtos comercializados, o que aumenta as possibilidades de adultério, de impureza e desconhecimento do potencial tóxico das drogas proibidas. Overdoses acontecem, na maior parte dos casos, em razão do desconhecimento daquilo que se está consumindo. A ilegalidade cria a necessidade de aproveitamento imediato de circunstâncias que permitam um consumo que não seja descoberto, o que acaba se tornando um caldo de cultura para o consumo descuidado e não higiênico, cujas consequências aparecem de forma dramática na difusão de doenças transmissíveis como a Aids e a hepatite. Com a proibição, as drogas tornadas ilícitas são apresentadas como um mal em si, sem levar em conta as diferentes formas de consumo. Ocultando-se que é fundamentalmente o prazer que move a maior parte dos que usam essas substâncias14, fala-se apenas de riscos e danos, dependência, doenças, promovendo-se campanhas aterrorizadoras, seguidas de imagens de degradação de pessoas apresentadas como se representassem a totalidade do universo de consumidores, quando a própria ONU reconhece que apenas 10 a 13% dos que consomem drogas se tornam usuários problemáticos, sofrendo de dependência ou de outras doenças relacionadas àquelas substâncias15. A falta de credibilidade do discurso aterrorizador acaba levando à desconsideração de quaisquer recomendações ou advertências seriamente feitas sobre riscos e danos à saúde que realmente podem advir de um consumo excessivo, descuidado

14 Ver WINSTOCK, Adam R.; NUTT, David. The real driver behind most drug use is pleasure, not dependence. The Guardian, 18 abr. 2013. Disponível em: <http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2013/apr/18/driver-drug-pleasure-dependence>. Acesso em: 12 mar. 2012.

15 UNODC, op. cit., 2013.

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ou descontrolado não só das drogas ilícitas, como também de todas as demais substâncias psicoativas legais, ou até mesmo dos mais diversos produtos alimentícios.

A proibição sugere a ocultação, dificultando o diálogo, a busca de esclarecimentos e informações, especialmente entre adolescentes e seus familiares ou educadores. Além disso, a artificial distinção entre drogas lícitas e ilícitas, concentrando sobre estas últimas os medos e os perigos anunciados, costuma conduzir à total despreocupação familiar e pedagógica com o eventual abuso das primeiras. Por outro lado, a ideia de estar fazendo algo proibido, o apelo desafiador daquilo que é ilegal e o lado aparentemente glamoroso da marginalização podem se tornar um incentivo no que diz respeito às buscas, às descobertas e aos desejos que caracterizam a adolescência, faixa etária em que as sensações provocadas pelas drogas costumam exercer especial e natural atração e em que os controles internos são menos atuantes.

Impondo obstáculos até mesmo ao livre emprego com fins terapêuticos, como o uso da maconha para aliviar dores, náuseas e perda de apetite em pacientes com Aids ou sob tratamento quimioterápico, a proibição ainda dificulta a assistência e o tratamento eventualmente necessários. Assim, ao impor “tratamentos” compulsórios, que além de reconhecidamente ineficazes, violam direitos fundamentais; da mesma forma que inibir sua busca voluntária pressupõe a revelação da prática de uma conduta tida como ilícita. Muitas vezes, essa inibição tem trágicas consequências, como em episódios de overdose em que o medo daquela revelação paralisa os companheiros de quem a sofre, impedindo a busca do socorro imediato.

Nos tratamentos compulsórios vinculados ao sistema penal – em regime ambulatorial, nos moldes das drug courts,a chamada justiça terapêutica, ou em regime de internação –, reforça-se a histórica e trágica aliança entre o sistema penal e os denominados saberes “psi”, nitidamente retratada na simetria existente entre o manicômio e a prisão, instituições totais de controle, cuja origem comum remonta aos séculos XVIII e XIX16. Essa trágica aliança prega uma abstinência forçada como suposta solução para evitar riscos e danos eventualmente decorrentes do consumo de drogas, o que equivale igualmente a uma irracional proposta de abstinência sexual como forma ideal de evitar doenças sexualmente transmissíveis ou uma gravidez indesejada. Mas a manifesta irracionalidade não é algo tão preocupante. Muito mais graves são as violações aos direitos fundamentais embutidas na imposição de tais supostos tratamentos.

16 Ver FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad.: Raquel Ramalhete. 25. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

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Como apontado pelo relator especial sobre tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes junto ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, a suposta necessidade médica de internação constitui obstáculo à proteção contra abusos em estabelecimentos sanitários e/ou em centros ditos de reabilitação. Conforme se constatou, esses abusos violadores de normas inscritas nas Declarações Internacionais de Direitos Humanos vêm sendo praticados em diversos países, inclusive no Brasil. Em seu relatório, o relator especial sobre tortura e outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes clama pelo imediato fechamento de centros de internação compulsória e de centros ditos de reabilitação, clamando ainda pela implantação de serviços comunitários sociais e sanitários, abertos e baseados na voluntariedade do tratamento, no reconhecimento de direitos e na efetiva comprovação de sua eficácia.

Tratamentos compulsórios vinculados ao sistema penal não passam de penas mal disfarçadas ilegitimamente impostas17, confrontando-se com o direito do paciente à intimidade e com o dever de sigilo a que estão adstritos médicos, psicólogos e demais profissionais da saúde. O tratamento de qualquer transtorno mental não é compatível com o caráter punitivo, que está indissoluvelmente ligado à sua determinação por parte de órgãos da justiça criminal. Esses tratamentos compulsórios vinculados ao sistema penal induzem o profissional da saúde a se transformar em um delator que deverá informar ao órgão do Poder Judiciário comportamentos reservados de seus pacientes, violando, claramente, o sigilo profissional garantidor da intimidade e da vida privada. A natureza obrigatória do tratamento e sua integração ao sistema penal implicam um controle do juiz sobre o indivíduo a quem foi imposto, controle que é feito exatamente a partir de informações prestadas pelos próprios encarregados do suposto tratamento.

Os princípios fundamentais que regem a ética dos profissionais da saúde estabelecem seu compromisso com seus pacientes. Sua prioridade sempre deverá ser a saúde de seus pacientes e não os interesses do sistema penal; suas avaliações deverão se basear nas necessidades dos pacientes, prevalecendo sobre qualquer outra questão não médica.

No que concerne a meros dependentes químicos, a imposição de um tratamento compulsório vinculado ao sistema penal, antes mesmo de violar o direito à intimidade e o dever de sigilo e a ética profissional, constitui clara violação à liberdade individual, presente, como mencionado, em qualquer intervenção do Estado sobre autores de condutas que não afetam concretamente direitos de terceiros. A imposição a esses consumidores

17 Ver KARAM, Maria Lucia. Escritos sobre a liberdade: liberdade, intimidade, informação e expressão. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009b. v. 4.

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a de cumprirem penas explícitas ou disfarçadas em tratamentos médicos, revelando a concepção que os estigmatiza na alternativa assinalada por Alessandro Baratta de que “se é enfermo, não é livre; se é livre, é mau”18, sempre revelará uma desautorizada intervenção do Estado em suas vidas privadas. Ninguém pode ser obrigado a se submeter a qualquer tratamento médico para se abster de um hábito que só faz mal a si mesmo. Ninguém pode ser obrigado a supostamente se curar.

A ilegítima e violenta prática de internação compulsória de adolescentes e adultos em situação de rua alegadamente dependentes de crack e que vem se desenvolvendo no Brasil, especialmente nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, viola o que dispõe a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências19. Em tal ilegítima prática, sustenta-se que dependentes de crack não estariam em condições de tomar decisões e que a internação compulsória se destinaria a “salvar” suas vidas. Tal discurso se filia à notória doutrina que, durante séculos, alimentou os manicômios, já banidos da legislação brasileira, mas ressurgindo sob o manto da danosa política proibicionista que vem restabelecer o lombrosiano preconceito de que o louco (e, como este, o dependente das drogas tornadas ilícitas) não seria capaz de se autodeterminar, agiria como um autômato, inconsciente, totalmente privado do livre arbítrio, “regredido”, equiparado a um animal, tornando-se um sujeito mais elementar, mais decifrável, mais previsível – enfim, mais “perigoso”20. Assim, perdendo sua qualidade de pessoa, poderia ser manipulado, contido, “tratado” compulsoriamente – enfim, recolhido a uma instituição em que tudo se assemelha a uma prisão.

A mídia e políticos dos mais variados matizes têm estimulado um pânico do crack – cópia perfeita da histeria sobre a mesma substância que dominou a cena nos Estados Unidos de 1986 a 199221. Lá, a consequência foi a introdução na legislação norte-americana de penas mais rigorosas para crimes relacionados ao crack, o que constituiu fator significativo para o aumento da impressionante disparidade racial que caracteriza o encarceramento massivo registrado naquele país – a taxa de encarceramento nos Estados Unidos, que é de

18 BARATTA, Alessandro. Fundamentos ideológicos da atual política criminal sobre drogas. In: GONÇALVES, Odair Dias; BASTOS, Odair Dias. Só socialmente... Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1992.

19 Ver a respeito o texto elaborado pelo Relator Especial sobre tortura e outros tratamentos ou punições cruéis, desumanos ou degradantes, Juan E. Méndez, apresentado à 22ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em 1º de fevereiro de 2013.

20 Ver VENTURINI, Ernesto; CASAGRANDE, Domenico; TORESINI, Lorenzo. O crime louco. Trad. Maria Lucia Karam. Brasília: Conselho Federal de Psicologia, 2012.

21 Sobre o “crack panic” nos EUA no período mencionado, ver REINARMAN, Craig; LEVINE, Harry G. Crack in America: demon drugs and social justice. Berkeley: University of California Press, 1997.

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716 presos por 100 mil habitantes, sobe para cerca de 4.700 presos por 100 mil habitantes quando se consideram apenas os homens afro-americanos22.

Naturalmente, o problema mais grave da maioria dos usuários de crack no Brasil não é a droga em si, mas está nas precárias condições de vida, na miséria desses usuários. A maioria é pobre, marginalizada, desassistida, privada de seus direitos básicos à saúde, à educação, à moradia, ao trabalho, ao lazer. Além disso, esses usuários expõem, nas ruas, suas precárias condições de vida, mostrando a permanência da trágica história brasileira de desigualdade, pobreza e exclusão, que autoridades parecem querer esconder dos olhos sensíveis daqueles que não querem ser perturbados pela miséria alheia e/ou dos olhos curiosos dos tão esperados turistas que virão visitar o País para os programados grandes eventos internacionais. Os perseguidos usuários de crack perambulam pelas ruas sem destino por falta de quem os trate com respeito e dignidade. A guerra às drogas agrava seu sofrimento. Os executores da política proibicionista, ilegitimamente trata-os como criminosos e submetem-nos à humilhação, à perseguição e ao recolhimento forçado a instituições semelhantes a prisões, acrescentando às suas miseráveis e traumáticas condições de vida a violência da privação de sua liberdade.

É preciso pôr fim a essa falida e danosa política que, além de não funcionar em sua inviável pretensão de salvar as pessoas de si mesmas e construir um inviável mundo sem drogas, produz demasiada violência, mortes, prisões e doenças. É preciso legalizar e consequentemente regular a produção, o comércio e o consumo de todas as drogas. Essa legalização é necessária para afastar medidas repressivas violadoras de direitos fundamentais, para pôr fim à enorme parcela de violência provocada pela proibição, como também para regular e controlar o mercado23 e efetivamente proteger a saúde.

A realidade e a história demonstram que o mercado das drogas não desaparecerá. Pessoas continuarão a usar substâncias psicoativas, como o fazem desde origens início da humanidade. Contudo, estarão mais protegidas com o fim da proibição, tendo maiores possibilidades, e se optarem livremente por usar tais substâncias, podem fazê-lo de forma menos arriscada e mais saudável.

No caso de drogas cujos efeitos primários podem ser mais potentes e danosos, como o crack, há muito o que se aprender com as experiências de fornecimento supervisionado de heroína, desenvolvidas pioneiramente na Suíça. Foram instaladas clínicas onde os usuários de heroína poderiam entrar e injetar a droga até três vezes ao dia, com seringas

22 US Department of Justice, Bureau of Justice Statistics.23 Ver sugestões para regulamentação do mercado das drogas em Transform Drug Policy Foundation (2009).

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limpas e sob supervisão médica. Essas clínicas também contavam com assistentes sociais, educadores e especialistas em mercado de trabalho, tentando fazer com que seus clientes deixassem a heroína, construindo uma relação de confiança com eles. Os resultados foram a inocorrência de qualquer morte por overdose relacionada a esse projeto, a menor taxa per capita de Aids e hepatites entre todos os países da Europa, e até mesmo o declínio no número de novos usuários em heroína.24

O fim da proibição, o fim da nociva e sanguinária guerra às drogas, além de afastar tantos riscos e danos, ainda pode contribuir para a necessária mudança da situação de miséria que agrava e, muitas vezes, determina o abuso e/ou o consumo problemático de substâncias psicoativas. A arrecadação de impostos consequente à legalização da produção, do comércio e do consumo das drogas, somada à recuperação das enormes quantias desviadas para a repressão, poderá permitir o emprego desse dinheiro em ações governamentais efetivamente voltadas para o bem-estar das pessoas.

Como Jack A. Cole, presidente da Law Enforcement Against Prohibition (LEAP), costuma dizer em suas apresentações, os 70 bilhões de dólares anualmente gastos pelos Estados Unidos da América na guerra às drogas, com o fim da proibição, poderiam ser redirecionados para programas que oferecem esperança para o futuro das pessoas. Diz ele:

Ao invés de pensar em gastar esse dinheiro em sentenças condenatórias mais rigorosas do tipo mandatory minimum, imaginemos um mundo onde legalizamos as drogas hoje e, no próximo ano, gastamos 70 bilhões de dólares para criar uma mandatory minimum educação para todos, mandatory minimum programas de saúde para todos. E que tal pensar em alguma forma de moradia básica para todos, treinamento profissional e emprego para todos aqueles que desejarem trabalhar? E ao invés de falar em salários mínimos, vamos falar em salários decentes.

24 Ver NORDT, Carlos; STOHLER, Rudolf. Incidence of heroin use in Zurich, Switzerland: a treatment case register analysis. Lancet, n. 367, p.1830-34, 2006.

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RESUMO

O presente artigo aborda uma questão polêmica na interpretação de uma norma do Código Penal brasileiro que diz respeito ao homicídio praticado mediante paga ou promessa de recompensa. Essa situação concreta é tratada como uma forma mais grave de homicídio. As regras da parte geral, porém, interferem na avaliação da responsabilidade do mandante. O artigo propõe soluções de lege lata e de lege ferenda para resolver o que aparentemente é uma situação dogmática paradoxal.

Palavras-chave: Homicídio Qualificado. Paga ou Promessa de Recompensa. Responsa-bilidade do Mandante.

ABSTRACT

This article discusses a controversial issue in the interpretation of a provision of the Brazilian Penal Code concerning homicide practiced by pay or promise of reward. This particular situation is treated as a more serious form of murder. The rules of the general part, however, interfere in assessing responsibility of the contractor. The article proposes lege lata and lege ferenda solutions to resolve what apparently is a dogmatic paradoxical situation.

Keywords: First-degree Murder. Pay or Promise of Reward. Responsibility of the Contractor.

HOMiCídiO MERCEnáRiO E CAUSAS ESPECiAiS dE diMinUiçãO dE PEnA: UM PARAdOxO dOgMáTiCO

MERCEnARy MURdER And SPECiAl CAUSES Of dEClinE Of PEnAlTy: A dOgMATiC PARAdOx

Paulo César Busato1

1 Doutor em Problemas Atuais do Direito Penal pela Universidad Pablo de Olavide, de Sevilha, Professor de Direito Penal da UFPR e Procurador de Justiça do Ministério Público do Paraná.

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inTROdUçãO

O legislador do Código Penal de 1940 utilizou as clássicas motivações sociais e antissociais para estabelecer privilégios, qualificadoras para o homicídio.

A técnica legislativa empregada, no entanto, produz problemas dogmáticos de difícil solução, em especial na questão do homicídio realizado mediante paga ou promessa de recompensa e sua relação técnico-jurídica com as hipóteses previstas como privilégios.

O presente artigo pretende explorar os problemas dogmáticos derivados de tal questão, expondo os paradoxos derivados da fórmula escolhida pelo legislador e propor soluções de lege lata e lege ferenda para as dificuldades encontradas.

Para tanto, iniciar-se-á pela abordagem da questão da evolução dogmático-jurídica das tratativas legislativas a respeito das motivações sociais e antissociais para as práticas delitivas, até chegar à fórmula adotada pela legislação atual.

Em seguida, descrever-se-ão as vinculações entre o homicídio e as motivações sociais e antissociais no Código Penal atual.

A partir de uma análise crítica das fórmulas de técnica legislativa empregadas para a conjunção do homicídio e as motivações no Código penal atual, serão expostas debilidades e problemas concretos, especialmente relacionados ao homicídio realizado mediante paga ou promessa de recompensa e às hipóteses de homicídio privilegiado.

Finalmente, como contribuição para a discussão dogmática do tema, serão propostas soluções para os conflitos detectados, tanto através de fórmulas hermenêuticas de aplicabilidade imediata, quanto para fins de reforma legislativa, à vista da proximidade de uma revisão completa do Código Penal.

1 O QUE SãO EMOçÕES E PAixÕES E SUA TRATATiVA nA SiSTEMáTiCA dA TEORiA dO dEliTO

Um aspecto essencial, que desde há muito é levado em consideração na tratativa do controle social penal, é o motivo que impulsiona a prática delitiva.

Daí que cedo se despertasse o interesse por emoções ou paixões que constituíram móveis para a prática delitiva. A emoção, considerada “um estado de explosão afetiva”2 ou a paixão, tratada como “um estado prolongado de emoção”3.

2 BRANDÃO, Cláudio. Curso de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: GEN-Forense, 2008. p. 226.3 Ibid., p. 226.

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Por influência do positivismo criminológico, as paixões eram classificadas de sociais (amor, piedade, patriotismo) e antissociais (ódio, inveja, ambição)4. As sociais, de modo geral, chegavam a afastar responsabilidade, as antissociais a agravavam. Hoje, porém, a relevância de tais temas para a imputação resta afastada.

Assim, no Código Penal atual, os motivos constituem elemento essencial para a individualização da pena, quer seja como circunstâncias judiciais, agravantes ou atenuantes genéricas ou causas gerais e especiais de aumento ou diminuição de pena. Eventualmente, ainda, compondo acessoriamente um tipo, figuram como qualificadoras ou, essencialmente, como especiais fins de agir.

É justa a preservação somente de atenuantes e agravantes, causas de aumento e diminuição, porque as motivações humanas não podem ser desprezadas. Porém, é certo também que o crime é em si uma situação que, na imensa maioria das vezes, estará associada a alguma classe de emoção singular, todas elas, também em regra, incapazes de afastar a correta compreensão do desvalor social do fato5.

Não obstante tal constatação, ainda existe parte da doutrina que entende que esses aspectos não podem ser desprezados, como determinantes da avaliação de presença ou não de imputabilidade como formas de “redução da capacidade de culpabilidade”6.

Seja como for, há uma opção clara político-criminal pela irrelevância, para fins de afastamento da imputação, de qualquer justificativa penal relacionada à emoção ou paixão. Ao menos é isso que se expressa na parte geral, o Código Penal de 1984, ao referir, em seu art. 28, inciso I, que: Emoção e paixão não excluem responsabilidade penal.

2 UMA AnáliSE dE ASPECTOS MOTiVACiOnAiS dO HOMiCídiO nO CÓdigO ATUAl

Especialmente no que tange ao homicídio, a opção feita pelo legislador de 1940, preservada pela reforma de 1984, foi no sentido de que a motivação no homicídio é expressão de emoções e paixões que, conquanto não possam afastar a carga de imputação, são relevantes para a configuração da pena desde seu início.

O Código Penal reserva privilégios e qualificadoras associadas aos motivos.

4 Esta classificação aparece referida ainda em alguns autores clássicos como HUNGRIA, Nélson. Comentários ao código penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958. p. 124.

5 De modo parecido, BRANDÃO, op. cit., p. 227.6 Neste sentido MESTIÉRI, João. Manual de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p.

178-179. v. 1.

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2.1 AS CAUSAS ESPECIAIS DE DIMINUIÇÃO DE PENA ASSOCIADAS À MOTIVAÇÃO

O Art. 121, em seu § 1º prevê especificamente que “se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, ou juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço”.

Como se nota, há duas situações diferentes, ambas relevantes a ponto de comportarem fração de redução de pena específica, caso estejam presentes no caso concreto. Fração esta incidente sobre o resultado da segunda fase de individualização da pena.

A primeira delas é o autor do homicídio ter sido movido por motivo de relevante valor social ou moral. A segunda, ter agido sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima.

2.1.1 O Relevante Valor Social ou Moral

Com o uso da expressão relevante valor social ou moral, o legislador pretendeu especificar um qualificativo que não admite transigir com o valor social ou moral de menor monta.

É bastante óbvia a relatividade histórico-social desse conceito, porquanto valores sociais e morais não são unívocos. Aquilo que é relevante em um determinado contexto histórico-social não é em outro e os padrões morais, porque variáveis individualmente, são menos padronizáveis ainda.

A moral é, na base, heterônoma e prática, recebida por aprendizado e coerção, mecanismos que dão ensejo à formação da moral autônoma. Como esses mecanismos e experiências que geram a formação da moral autônoma são os mais díspares possíveis, não é razoável esperar pela constituição de uma “moral uniforme”.

A doutrina clássica, em geral,7 sustenta ser necessário cogitar, tanto para o relevante valor social quanto para o relevante valor moral, a consciência ético-social em geral ou o senso comum.

7 FRAGOSO, Heleno Cláudio. lições de direito penal: parte especial. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995. p. 35; NORONHA, Edgard Magalhães. direito penal: parte especial. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 19 e HUNGRIA, Nélson. Op. cit., p. 124.

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A ideia é criticada por Fernando Galvão8, para quem, se a padronização em questão resolve a questão do valor social, não pode resolver, ao mesmo tempo, do padrão moral, sob pena de que se confunda ambos os conceitos. Se o legislador utilizou os dois, supõe-se que sejam coisas diferentes.

Os autores mais modernos9 mencionam, com frequência, dada a individualização do padrão moral, que o relevante valor moral difere do relevante valor social, por ser uma questão egoística ou um interesse meramente individual, mas os exemplos dados pretendem, de qualquer modo, compreender uma situação em que qualquer pessoa, posta no lugar do agente, teria ímpetos de atuar de modo similar, como o assassinato do estuprador da própria filha ou a eutanásia.

Uma das mostras mais evidentes das dificuldades da padronização de uma ideia de relevante valor moral é efetivamente o caso da eutanásia, exemplo que figurou na exposição de motivos do Código de 1940, no item 39.

Não obstante, a doutrina da época, recém-enfrentada com as polêmicas questões avivadas pelos programas de eugenia nazistas, especialmente a tese de Binding e Hoche10, que defendia a distensão da permissão da eutanásia identificando discriminatoriamente indivíduos como ‘desprovidos de valor vital’, firmou pé em uma interpretação o mais restritiva possível do reconhecimento da benesse11.

Isso sem contar que a própria opção por uma restrição da eutanásia a uma hipótese de decisão consciente segue sendo polêmica. Isso em função da química do próprio cérebro. Note que a depressão que pode ser desencadeada a partir de fortes emoções negativas

8 GALVÃO, Fernando. direito penal: crimes contra a pessoa. São Paulo: Saraiva, 2013. p.40-41.9 Assim, por exemplo, BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. parte especial. 7. ed.

São Paulo: Saraiva, 2007, p. 47, v. 2.; GRECO, Rogério. direito penal: parte especial. 7. ed. Niterói: Ímpetus, 2010, p. 146 v. 2.; ESTEFAM, André. direito penal: parte especial. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 101. v. 2.

10 Confira-se em BINDING, Karl e HOCHE, Alfred. la ciencia para la aniquilación de la vida sin valor de vida. Trad. de Bautista Serigós. Buenos Aires: Ediar, 2009.

11 Para Hungria, por exemplo, quem refere a respeito do relevante valor moral, que nas hipóteses de eutanásia, “tal motivo só pode ser reconhecido em casos especialíssimos, depois de afastada a hipótese, por mais leve que seja, de uma dissimulação”. In: HUNGRIA, op. cit., p. 128. Bento de Faria, qualificava o exemplo de ‘infeliz’, negando inclusive a sua condição de relevante valor moral, afirmando sobre a eutanásia, que semelhante prática “semelhante prática sobre não revelar valor algum moral, ou social, repugna a razão e a consciência humana”. In: FARIA, Bento de. Código penal brasileiro comentado. Rio de Janeiro: Record, 1961. p. 13; e Aníbal Bruno ressaltou a necessidade de distinguir o que ele chamou de “verdadeira eutanásia” daquilo que foi praticado ao amparo do Estado nacional-socialista, cuja “prática deve receber a mais viva repulsa”. In: FIRMO, Aníbal Bruno de Oliveira. direito penal: parte especial I. v. 4, p. 120-121. Em sentido também crítico veja-se também NORONHA, op. cit., p. 19-20.

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como a notícia de portar uma doença grave e incurável pode orientar uma pessoa que, embora esteja gozando de suas plenas faculdades mentais, decide de uma forma que, revista em uma situação química diferente, não seria igual.

Isso é mais intenso ainda em pessoas com certos graus de transtorno bipolar, que se equilibram em períodos cíclicos de depressão e euforia. Quando esta decisão seria válida em uma pessoa portadora de transtorno bipolar: quando ela está em euforia ou quando ela está em depressão, e que dizer do quadro intermediário? Como afirmar que a decisão consciente, eventualmente firmada em um documento, não foi mero produto de um distúrbio químico?

É mais grave quando se sabe, clinicamente, que boa parte das pessoas são portadoras de certos graus de bipolaridade, considerados ciclos de alegria e tristeza que, conquanto constituam enfermidade, nem por isso podem ser reconhecidas como situações de irresponsabilidade no plano jurídico em geral.

A despeito das diferenças que podem haver sobre o polêmico tema da eutanásia12, é certo que o guia decisório sempre deve ser a solidariedade humana13.

Assim, a conclusão é que todos os temas, que são submetidos à análise de relevância quanto a um valor social ou moral, compõem uma situação aberta à polêmica no que tange à distinção de tais critérios.

Não obstante, é possível inclinar-se pela conformação de uma interpretação juridicamente aplicável para o reconhecimento da hipótese: aquele valor social ou moral que possa ser reconhecido como tal acima das diferenças individuais ou de grupos. Isso é o que deve ser considerado um relevante valor social ou moral. Relevante porque supõe relevo, porque se destaca a ponto de ser reconhecido em um plano geral.

Portanto, ainda que a moral seja um dado individual, sendo a análise jurídica uma estrutura relacionada à vida social, necessariamente o interesse individual sofrerá uma avaliação intersubjetiva.

12 Sobre o tema já me pronunciei em breve estudo apresentado no Senado Argentino no ano de 2012, sobre os limites legais à interrupção dos cuidados paliativos, cujo excerto em breve será publicado como artigo.

13 Esta referencia foi bem ressaltada por Hungria, ao lembrar-se da lição de García Pintos: “Se algum dia no coração humano chegasse a extinguir-se totalmente toda chama do amor e solidariedade social, e na mente do homem já não pudesse florescer o mais minguado penacho de idealismo, para pensar em tais matanças, maldigamos, desde já, este dia, porque então sim que a sociedade, não obstante a exuberância de valores vitais e sociais, não estaria composta por mais do que mortos espirituais”. HUNGRIA, op. cit., p. 131-132.

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A questão, como quase todas as polêmicas em Direito penal, resolve-se a partir de uma interpretação baseada na filosofia da linguagem, afinal, é o caráter interpessoal, ou seja, a possibilidade de ser partilhado como quadro de mundo14, que faz com que se reconheça o conceito de relevante valor social ou moral. A rigor, é o modo como comumente se atua no foro, ainda que não seja por todos perceptível a existência de uma estrutura teórica de base.

De modo prevalente, se utiliza a ideia de interesse, ou seja, quando o caso é de algo admissível socialmente como relevante, mas possui interesse coletivo, fala-se em relevante valor social, enquanto que quando se trata de algo admissível como socialmente relevante, mas guarda interesse meramente individual, é tratado como relevante valor moral.

Por exemplo, o ato de matar um traficante e sequestrador que aterroriza o bairro é um homicídio por relevante valor social, enquanto que matar o estuprador da própria filha15 ou o traficante que viciou o próprio filho, são casos de homicídios por relevante valor moral.

Em resumo, a relevância é sempre um critério intersubjetivo, enquanto o dado moral (individual) ou social (coletivo) se vincula ao interesse que inspira o motivo.

Note que os exemplos são sempre aqueles cuja obviedade de padrão social ou moral permite aglutinar o transmissor e o receptor da mensagem e, mais do que isso, certamente a vítima, o réu e o próprio julgador.

2.1.2 O Domínio de Violenta Emoção, logo em Seguida à Injusta Provocação da Vítima

A outra circunstância que conduz à redução especial de pena, não é foco da questão central aqui abordada, mas merece, ao menos, ser delineada.

É reduzia a pena do homicídio quando cometida sob domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima.

14 Para Wittgenstein, especialmente no Investigações Filosóficas, o mundo e a linguagem não se relacionam como dados determinados, mas como uma derivação dos jogos de linguagem, ou seja, do modo como os termos significam. Veja-se em WITTGENSTEIN, Ludwig. investigaciones filosóficas. 2. ed. Barcelona: Editorial Crítica, 2002. p. 71 e ss. Especificamente sobre os jogos de linguagem como fórmula de significação veja AUSTIN, John Langshaw. Cómo hacer cosas con palabras. Trad. De Genaro Carrió e Eduardo Rabossi. Buenos Aires: Paidós, 2006.

15 Este exemplo aparece em vários autores como GRECO, op. cit., p. 146 e GALVÃO, op. cit., p. 41.

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O primeiro requisito para que isso se configure é que o autor seja dominado por violenta emoção, o que não pode ser uma mera influência. Portanto, é uma situação emocional que se apossa do agente, e deve ser intensíssima e incontrolável. Um jorro que impulsiona para ser violento.

Caso não haja propriamente um domínio da emoção, ou seja, se a emoção não foi tão intensa, mas ainda assim, tenha influenciado o sujeito, o tipo penal é de homicídio simples e poderá sofrer a incidência da atenuante genérica do art. 65, III, c, última parte do Código Penal16.

Esse fato tem momento próprio: deve ocorrer logo em seguida a provocação. Ou seja, há um aspecto temporal que torna incompatível, desde logo, esta causa especial de diminuição com a premeditação17.

A previsão do Código teve por objeto mais frequente de exploração doutrinária as situações de explosão de ciúme ocasionadas por flagrantes de adultério18.

De modo geral, se assenta que é possível entender-se por logo após, aquelas situações de imediação determinada pelo contexto fático, que traduz uma situação na qual não se rompe o ciclo emocional. Isso porque, evidentemente, a explosão emotiva, que caracteriza o privilégio, tem seu ápice no momento em que o agressor é atingido pela provocação, e o passar do tempo pode determinar o seu abrandamento. Em geral, não é possível pretender a aplicação do privilégio em uma situação em que se reage várias horas após o cessar da provocação, salvo se, nesse interregno, a reação ainda não se deu por impedimentos objetivos e remanesce o domínio emocional negativo. Há situações, ainda, nas quais a provocação é o que perdura no tempo, levando, inclusive, a um progressivo desencadear de emoções no agente que, em um dado momento, explode em agressão.

16 Cf. FARIA, op. cit., p. 14-15 e FIRMO, op. cit., p. 124. Atualmente, veja-se também GRECO, op. cit., p. 147; BITENCOURT, op. cit., p. 50.

17 NORONHA, op. cit., , p. 21; HUNGRIA, op. cit., p. 152; FARIA, op. cit., p. 16 e FIRMO, op. cit., p. 124. Atualmente, veja-se também BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit.,p. 51-53.

18 Por exemplo NORONHA, op. cit., p. 21. Hungria, porém, em passagem célebre já alertava para o equívoco de confundir-se o passionalismo possessivo com uma explosão emocional derivada do amor: “[...] será que o amor, esse nobre sentimento humano [...] que nos purifica do nosso próprio egoísmo e maldade [... Pode] deturpar-se num assomo de cólera vingadora e tomar de empréstimo o punhal do assassino? Não. O verdadeiro amor [...] não se alia jamais ao crime. O amor que mata, o amor-Nêmesis, o amor-açougueiro é uma contrafação monstruosa do amor: é o animalesco egoísmo da posse carnal, é o despeito do macho preterido, é a vaidade malferida da fêmea abandonada. É o furor do instinto sexual da Besta. O passionalismo que vai até o assassínio muito pouco tem a ver com o amor”. HUNGRIA, op. cit., p. 152-153.

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Caso não haja uma concreta imediação entre a provocação e a atuação, ainda poderá estar o sujeito sob a influência da emoção, situação que poderá clamar pela incidência da atenuante genérica do art. 65, III, c, última parte do Código Penal.

O último requisito para configurar a hipótese de especial diminuição de pena é: ser a provocação da vítima injusta.

Com acerto, Fernando Galvão19 lembra que injusto é um conceito jurídico. A expressão injusta aqui não pode ser entendida como uma expressão coloquial, pois se trata de matéria eminentemente jurídica.

De modo distinto, a doutrina clássica distendia o conceito, entendendo por injusto não o termo jurídico, mas o coloquial20.

Hungria21, em certa medida, buscava uma solução conciliatória, pois afirmava a impossibilidade de reconhecer como injusta uma provocação que acionou uma reação derivada da “hiperestesia sentimental dos alfemins e mimosos”, por outro lado, sustentou que, contra a provocação, a reação não precisa ser “necessária”, pois, nesse caso, estaria presente a legítima defesa. Ora, é certo que não se trata da provocação que admita a necessidade de uma reação homicida em legítima defesa. Por outro lado, nem toda a ofensa injusta, no sentido jurídico, exige repulsa dessa monta. O homicídio, nesse caso, será sempre um excesso na reação, mas, a nosso sentir, não há como negar que a expressão injusta deve assumir o cariz do termo jurídico22.

Não se descura da observação que uma interpretação restritiva da expressão injusta seria contrária aos interesses do réu, reduzindo a aplicabilidade da causa especial de diminuição. Por outra, há que se asseverar que a interpretação não tem porque ser considerada restritiva quando se leva em conta que o injusto é uma categoria que não se restringe à matéria penal, pois existe o injusto civil, administrativo, trabalhista etc. E todas as suas formas podem ser consideradas provocação.

19 GALVÃO, op. cit.,p. 43. De modo parecido com Galvão, referindo a provocação como “ilícita” NORONHA, op. cit., p. 21.

20 Assim, por exemplo, a opinião de Aníbal Bruno em FIRMO, op. cit.,, p. 124.21 HUNGRIA, op. cit.,p. 150-151.22 Cezar Bitencourt, refere textualmente que o fato de a agressão ser injusta “não significa, necessariamente,

antijurídica, mas quer dizer não justificada, não permitida, não autorizada por lei, ou, em outros termos, ilícita”. BITENCOURT, op. cit., p. 51. A expressão ilícita, no jargão jurídico, é sinônimo de antijurídica, conforme refere o próprio autor na parte geral do mesmo tratado BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal. parte geral. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 346-348. v.1. Ora, no caso, ou a exigência é de uma injusta provocação que consista em atitude ilícita ou antijurídica, em sentido jurídico-penal, ou seja, uma provocação que, por si só configure fato típico e antijurídico, ou a provocação será injusta em sentido leigo.

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Caso não haja propriamente uma provocação injusta por parte da vítima, mas um ato injusto, o tipo penal é de homicídio simples, que poderá reclamar a incidência, também, da atenuante genérica do art. 65, III, c, última parte do Código Penal.

2.2 AS QUALIFICADORAS ASSOCIADAS À MOTIVAÇÃO, ESPECIALMENTE O CASO DO MOTIVO TORPE E A PAGA OU PROMESSA DE RECOMPENSA

De outro lado, em direta contraposição à situação de diminuição de pena, os motivos figuram também como qualificadoras do homicídio, nas hipóteses específicas do § 2º, incisos I e II do art. 121 do Código Penal, especificamente se o homicídio é cometido: I - mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe; ou II - por motivo fútil.

No inciso II, o legislador opta por um conceito. Fala em motivo fútil. A futilidade é a desproporcionalidade, ou seja, a fonte da reação homicida é a prática de alguma conduta cuja eventual característica ofensiva contra o homicida resulta absolutamente desproporcional em relação àquela.

Como um dado, no mínimo curioso e, no máximo, representativo de um equívoco monumental do legislador, aparece o assentamento pelos precedentes judiciais de que a ausência de motivo não qualifica o homicídio23. É mais do que evidente que o motivo nulo, o homicídio realizado aleatoriamente não pode ser menos desvalorado socialmente que aquele realizado por algum motivo, ainda que fútil! O simples fato de constituir uma escolha pela morte a despeito de uma razão precisa representa um nível de desprezo pela via humana que é certamente desproporcional e, portanto, fútil.

Por outro lado, o princípio da legalidade obriga a uma interpretação restritiva e em favor do réu, não admitindo que se inclua a ausência de motivos como um item a mais na qualificação do homicídio, quando nada diz a respeito o Código.

23 Como exemplos veja-se o REsp 769651 SP 2005/0124029-6 5a Turma do STJ, Relatora Ministra Laurita Vaz, j. em 03/04/2006, DJ 15.05.2006 p. 281; RSE 16479 MS 2009.016479-6 do 2a Turma Criminal do TJMS, Relator Desembargador Romero Osme Dias Lopes, j. em 20/07/2009, publicado em 04/08/2009 e o RSE 100240951860370011 MG 1.0024.09.518603-7/001(1), do TJMG, Relatora Beatriz Pinheiro Caires, j. em 25/03/2010, publicado em 13/04/2010.

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Contudo, ainda importa destacar que é certo inexistir ação humana destituída de propósito. Se esse é um conceito jurídico de ação superado24, ontologicamente corresponde à verdade, ou seja, não existe ação humana fisicamente considerada que não se oriente segundo propósitos determinados. Outra coisa, bem diferente, é que esses propósitos estejam demonstrados na investigação procedida.

Em resumo: uma investigação que conclua pela realização desmotivada de um homicídio será, necessariamente, uma investigação incompleta25.

No inciso I, porém, o legislador optou por outra coisa diversa do conceito. Prescreveu uma fórmula consistente na exemplificação seguida de uma cláusula generalizante, remetendo à realização de interpretação analógica.

Assim o legislador assinala como qualificado o homicídio quando praticado mediante paga ou promessa de recompensa ou outro motivo torpe.

Vale dizer, é o homicídio mercenário considerado um homicídio praticado por motivo torpe e que admite incluir-se no epíteto em questão outras classes de homicídio tão torpes quanto o mercenário.

O motivo torpe é o abjeto, ignóbil, amoral, repugnante, o que ofende gravemente a moralidade média ou os princípios éticos dominantes26. Discute-se se a paga ou promessa de recompensa restringe-se ao plano econômico27.

Seja como for, parece que se trata de uma aporia, pois, outras motivações como a recompensa sexual, por exemplo, podem claramente constituir motivo torpe, tão torpe quanto a paga financeira, ou a promessa de recompensa econômica. A discussão é, portanto, vazia.

24 Sobre o equívoco no desenvolvimento da tese central de Welzel veja-se FLETCHER, George Patrick. Basic concepts of criminal law. New York: Oxford University, 1998. p. 52-53. Para um repasse geral a respeito da superação da idéia ontológica de ação como supedâneo para um conceito jurídico, veja-se MARINUCCI, Giorgio. El delito como acción: crítica de un dogma. Trad. De José Eduardo Sáinz-Cantero Caparrós. Madrid: Marcial Pons, 1998. p. 135 ss. No Brasil, já abordei o assunto detalhadamente em BUSATO, Paulo César. direito penal e ação significativa. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. Especialmente p. 67 e ss.

25 Fragoso já alertava para as razões pelas quais não se pode tornar qualificado pela futilidade um homicídio sem motivo. É que na verdade, ele “desconhecem-se os motivos do fato”. Cf. FRAGOSO, op. cit., p. 39.

26 FRAGOSO, op. cit.,p. 40; NORONHA, Edgard Magalhães. op. cit., p. 22; HUNGRIA, op. cit., p. 163-164; FARIA, op. cit., p. 18; FIRMO, op. cit., p. 77. Atualmente, veja também GALVÃO, op. cit., p. 45; BITENCOURT, op. cit., p. 55.

27 Entendendo que a questão deve restringir-se a aspectos econômicos FIRMO, op. cit. p. 77; HUNGRIA, op. cit., p. 40 (quem especialmente menciona como fonte de sua conclusão a análise histórica das motivações da qualificadora) e BITENCOURT, op. cit., p. 54. Em sentido contrário, com o entendimento de que a paga ou recompensa pode ser de outra ordem que não meramente pecuniária ou econômica, NORONHA, op. cit.,p. 22 e GRECO, op. cit., p. 153.

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3 A QUESTãO dO HOMiCídiO QUAlifiCAdO-PRiVilEgiAdO

Já é bastante assentado na doutrina e nos precedentes judiciais brasileiros que é perfeitamente possível a coexistência entre o homicídio em sua forma qualificada e o privilégio que representa a causa especial de diminuição de pena do art. 121, § 1o.

A razão dessa aceitação geral é a limitação destas possibilidades às hipóteses de homicídio qualificado por razões objetivas. Sustenta-se basicamente que como o privilégio é sempre subjetivo, associado à motivação do sujeito, seja ele praticado sob violenta emoção, logo após injusta provocação da vítima, seja ele cometido por relevante valor social ou moral, não há nenhuma incompatibilidade para com as qualificadoras consistentes na prática do homicídio mediante fogo, meio cruel, dissimulação ou outra qualquer qualificadora, desde que esta seja de ordem objetiva. Ou seja, o homicídio qualificado-privilegiado se restringiria às hipóteses de qualificadoras objetivas28.

A incompatibilidade restaria restringida às hipóteses de qualificadoras subjetivas, já que essas estão igualmente fundadas nos motivos que são guias das condutas dos sujeitos. Portanto, não seria possível que o homicídio fosse praticado por motivo torpe e de relevante valor moral, por exemplo. Isso seria uma contradição.

Nada do que se tenha falado até aqui resulta complexo, polêmico ou discutível, mas aqui cessam as obviedades.

A questão intrincada surge a partir do cotejo entre a natureza jurídica da qualificadora em questão, sua comunicabilidade e a distribuição equânime ou justa da carga penal.

4 O CASO dO HOMiCídiO MEdiAnTE PAgA. nATUREZA JURídiCA, COMUniCABilidAdE EnTRE OS COnCURSAnTES, COMUnHãO EnTRE QUAlifiCAdORA E PRiVilÉgiO. O PROBlEMA

No caso do homicídio mediante paga ou promessa de recompensa, surgem graves problemas para com a distribuição de responsabilidade penal entre os concursantes29.

28 Nesse sentido o posicionamento de NORONHA, op. cit., p. 26-27. Atualmente, veja-se também GRECO, op. cit., p. 181; GALVÃO, op. cit., p. 56; BITENCOURT, op. cit., p. 53; ESTEFAM, op. cit.,p. 113-114; BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Crimes contra a pessoa. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 23-24 e TELES, Nei Moura. direito penal: parte especial. São Paulo: Atlas, 2004. p. 79-80. v. 2-. O posicionamento neste sentido é também firmemente agasalhado pelo Supremo Tribunal Federal, consoante exemplificado no HC 98265 MS, Relator Ministro Carlos Brito, j. em 24/03/2010, publicado no DJe-086 em 14/05/2010.

29 O uso da expressão concursantes é deliberada, para evitar a discussão entre autoria e participação, que não é objeto deste estudo e que, no caso do homicídio mercenário, o qual, à luz da teoria do domínio do fato resulta, por si só, bastante complexa e polêmica.

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Ocorre que se a paga ou promessa de recompensa é considerada motivo torpe, esse motivo é uma circunstância subjetiva. Como tal, deveria comunicar-se entre os concursantes, a teor da regra do art. 30 do Código Penal, que prescreve que não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime.

É bem verdade que há uma intensa polêmica a respeito do que se pode considerar elementar do crime30.

Note que não são apenas as circunstâncias (a palavra deriva de circum stare, ou seja, estar ao redor de), mas também as condições de caráter pessoal que se comunicam. Vale dizer, não é apenas o que está em volta da definição do crime, mas também o que o compõe que, sendo um aspecto pessoal, deve alcançar os demais concorrentes.

Parece induvidoso, data venia, que constitui um elemento e não meramente uma circunstância do crime, tudo aquilo que o define como tipo, vale dizer, aquilo que pertence à imputação, claramente, deve ser considerado elementar, enquanto que circunstância deve restringir-se àquelas que podem ser reconhecidas ou não sem desnaturar a imputação, ou seja, sem gerar as hipóteses de mutatio libelli ou ementatio libelli.

Nesse contexto, é possível dizer que a qualificadora da paga ou promessa de recompensa integra o tipo, como sua elementar31. Enquanto tal, sendo de caráter subjetivo, comunica-se entre os concursantes. Vale dizer: embora seja o motivo que inspira o sicário, mas não quem o contrata, deve comunicar-se à pessoa deste.

Eis o problema. A questão diz respeito a se as qualificadoras se comunicam ou não aos partícipes, porquanto, se essas são elementares do delito, como parece ser correto, haverá comunicabilidade, já se não constituírem elementares, mas forem meras circunstâncias, a solução da comunicabilidade fica à mercê da interpretação que se dê a esta última palavra na redação do Art. 30. Isso é particularmente grave na questão posta em debate, porquanto se a qualificadora da paga ou promessa de recompensa é motivação do sujeito, se comunicará ao mandante por força de ser elementar do tipo.

30 Sobre esta polêmica, veja-se, por todos, BITENCOURT, op. cit., p. 503-504.31 A rigor, diante de uma interpretação rigorosamente significativa, até mesmo os privilégios descritos no

§ 1o do art. 121 do Código penal deveriam ser considerados elementares do tipo. Este aspecto, porém, uma vez que implicaria digressão mais ampla, não foi tomado como ponto de discussão neste artigo.

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As opiniões a respeito são as mais díspares possíveis. Para Fernando Galvão32, os tipos derivados ou qualificados são autônomos em relação aos tipos principais, pelo que, o autor considera que a circunstância de ter sido o crime cometido mediante paga ou promessa de recompensa, como elementar do tipo, se comunica ao mandante, de modo que ambos responderão por homicídio qualificado. Ademais, refere-se o autor que a regra de comunicabilidade serve tanto para as qualificadoras objetivas como para as subjetivas.

A comunicabilidade das circunstâncias é a fórmula preferida pelos nossos Tribunais33 e, nesta esteira, por boa parte da doutrina34.

Para outra corrente doutrinária que arranca do pensamento de Fragoso35, o mandante não deve responder pelo crime qualificado, mas sim por homicídio simples. Segundo o seu raciocínio, as qualificadoras devem ser interpretadas como circunstâncias e não elementares do tipo.

Dessa forma, entenderia-se-ia possível que o mandante do homicídio mercenário possa ter praticado o crime por relevante valor social ou moral, sem infringir a regra geral de comunicabilidade das circunstâncias subjetivas nem tampouco incorrer no problema de coincidência de aspectos subjetivos orientadores de qualificadora e privilégio que, segundo a doutrina majoritária, seriam incompossíveis.

Em reforço a esse pensamento sobre a incomunicabilidade, há quem aduza36 que o que inspira o agir do executor é a cobiça, coisa que, em realidade, nunca é a inspiração do mandante, que tanto pode agir torpemente, por exemplo, por vingança, quanto por relevante valor social.

Existindo esta comunicabilidade, por exemplo, o homicida que contrata outro para que em seu nome mate o estuprador de sua filha, ou para que desligue a máquina que mantém vivo o parente enfermo, realiza um delito que pode ser, em determinadas circunstâncias, considerado como motivado por relevante valor social ou moral. Não obstante, o privilégio não seria aplicável por força da comunicabilidade das circunstâncias de caráter subjetivo consistentes justamente no motivo do sicário, que não é o motivo do contratante.

32 GALVÃO, op. cit., p. 44.33 Nesse sentido, veja-se, TJSP RT 807/558, TJSC, RTJE 49/253 e TJSP, RT 538/348.34 Por exemplo, BITENCOURT, op. cit., p. 54.35 Com esta orientação FRAGOSO, op. cit., p. 40. Atualmente, BARROS, op. cit., p. 28; GRECO, op. cit.,

p. 155.36 Nesse sentido, por exemplo, ESTEFAM, op. cit., p. 108.

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Observe-se que a solução do problema não pode ser simplista. Em uma primeira observação, poderia advir a proposta de considerar as qualificadoras como circunstâncias e não elementares do crime.

Nesse caso, seria preciso reconhecer tal característica como uma regra geral e não apenas aplicável ao homicídio mercenário. Ou seja, seria preciso admitir, por exemplo, que um homicídio praticado por motivo fútil, poderia ser, ao mesmo tempo, praticado por relevante valor social, o que é completamente contraditório.

A outra solução, já referida, aventada por Fragoso37, seria correta do ponto de vista anímico relacionado ao caso concreto, mas negaria aplicabilidade à regra geral do Art. 30, com resultados práticos também duvidosos no plano da justiça. Vejamos: Adotar tal solução significaria afirmar que quem contrata o sicário pratica homicídio simples, enquanto que o sicário pratica homicídio qualificado, aplicando-se, ainda, o privilégio somente ao primeiro. O contratante responderia por homicídio simples (pena de 6 a 20 anos de privação de liberdade), com a redução própria da aplicação do privilégio. O matador de aluguel responderia pelo crime qualificado, sem possibilidade de aplicação do privilégio.

Não obstante, a vontade que se realiza no resultado é do mandante, ainda que a ela adira o executor. Em termos de domínio do fato, o tema é discutível, mas há que se admitir, no mínimo, um autor por trás do autor38. Seria essa uma hipótese de participação dolosamente distinta (Art. 29, § 2o)?

Nesse caso, surgiria outro problema, pois o resultado mais grave – homicídio qualificado – não é apenas previsível, é previsto, portanto, não ensejaria um plus de reprovabilidade derivado de imprudência inconsciente, mas sim de dolo e, no caso, dada a especificidade, dolo direto. Como aplicar, então a diferenciação.

Finalmente, há a questão da justiça na distribuição das penas que faria com que o mandante, com uma condição inegável de autor, tivesse uma pena incrivelmente menor que a de um coautor ou quiçá até mesmo executor relativamente fungível.

37 FRAGOSO, op. cit., p. 40.38 Sobre o tema, resulta especialmente relevante à releitura da tese de Roxin a respeito do autor detrás

do autor realizada por ele próprio e pela maior parte da doutrina alemã especializada no assunto, à raiz do julgamento do ex-presidente peruano Fujimori e de seu comparsa Montesinos. As análises estão reunidas no volume AMBOS, Kai; MEINI, Ivan. la autoría mediata. Lima: Ara, 2010.

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5 UMA PROPOSTA dE SOlUçãO dE lEgE lATA

Moura Teles39 levanta uma fundamentação que, do ponto de vista da justiça na distribuição da pena, parece insuperável: a covardia e baixeza de caráter daquele que contrata alguém para matar terceiro é tão vil quanto a daquele que executa tal morte por pecúnia. Ambos trazem em comum a reprovabilidade extraconsistente em converterem a vida alheia em um objeto mensurável economicamente, objeto de barganha e contrato. Cada qual, estando em lados diferentes do contrato, tem idêntico desprezo pelo bem jurídico, vida pertencente a outrem.

Não obstante, essa solução revela um aspecto inusitado, ainda que correto: o que o contratante e o sicário têm em comum é o contrato sobre a vida alheia, o que constitui um fato da vida, um dado objetivo que nada tem de subjetivo. Constituindo uma qualificadora objetiva, essa seria perfeitamente compatível com o privilégio subjetivo, o qual, ademais, não se comunicaria por não constituir elementar do tipo.

Nessa fórmula, a distribuição da carga penal resultaria justa na medida em que ambos responderiam pelo crime de homicídio qualificado e aquele que eventualmente estivesse movido por relevante valor social ou moral seria o único privilegiado por uma redução de pena. Assim, cada qual teria sua análise de privilégio, seja a morte do traficante que viciou o filho do contratante, seja a penúria e miséria famélica dos filhos do sicário.

O único inconveniente dessa solução resulta ser o texto do Art. 121, § 2o, inciso II, que fala em mediante paga, promessa de recompensa ou outro motivo torpe.

Ao estabelecer a cláusula de equiparação, o legislador deixou claro, como faz inclusive em outros incisos do mesmo dispositivo legal, que a fórmula visava a abertura de interpretação analógica. O equívoco do legislador foi colocar como um exemplo de motivo uma situação objetiva e não uma orientação subjetiva.

Essa solução destrói a unicidade do texto da lei, pois difere entre os outros motivos torpes (subjetivos) e a paga ou promessa de recompensa (objetiva).

Assim mesmo, de lege lata, parece, de longe, a melhor solução técnica. Ou seja, que a paga ou a promessa de recompensa, quando acontecer concretamente, seja considerada no plano objetivo, como elementar do tipo, comunicando-se entre os concursantes. De outro lado, que a motivação do sicário siga sendo exemplo ao qual equiparar, em interpretação analógica, os motivos torpes capazes de representarem a qualificadora.

39 TELES, op. cit., p. 62-66.

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6 UMA PROPOSTA dE SOlUçãO dE lEgE fEREndA. A QUESTãO dO HOMiCídiO MERCEnáRiO E OS PRiVilÉgiOS nO PROJETO dE REfORMA dO CÓdigO PEnAl. AnáliSE CRíTiCA

Diante do fato inarredável de que uma reforma no Código Penal é necessária e se avizinha, ainda que a primeira mostra tenha sido nada alvissareira, é preciso deixar sentada uma proposta para a correção do problema apresentado, que possa resultar em uma solução técnica e política criminalmente mais adequada do que aquela que pode brotar do esforço hermenêutico em face do direito posto.

Verifica-se, no anteprojeto enviado, que a comissão é sensível ao problema da conjugação entre privilégio e qualificadoras do homicídio, tanto que antecipou, na distribuição dos parágrafos que detalham o tipo do homicídio, as qualificadoras ao privilégio, para deixar claro que este se aplica àquelas.

Outrossim, da mesma redação observa-se que piorou consideravelmente o texto do inciso I, do § 1o, do art. 121, do Projeto, não só preservando o dado objetivo da paga ou promessa de recompensa, como ainda adicionando outras circunstâncias objetivas, o contexto de violência doméstica ou familiar ou em situação de especial reprovabilidade ou perversidade do agente.

Ambos são dados completamente objetivos. Ou seja, o ideal, que seria a separação entre as qualificadoras objetivas e as subjetivas em incisos diferentes, com vistas a dar adequada conjugação com eventuais privilégios e regras de comunicabilidade acaso preservadas na parte geral – aliás, mantida no projeto, em seu art. 39 – , não se realizou. Por outro lado, a mescla entre qualificadoras objetivas e subjetivas se ampliou consideravelmente, em detrimento da solução mais técnica.

A maior evidência do equívoco foi a clara associação, no inciso referido, entre os motivos e a culpabilidade, ao tratar de reprovabilidade conjuntamente aos motivos.

Ora, desde que a culpabilidade é normativa e os motivos, como guias da ação, nela já não estão contidos, esta associação é completamente superada. Não só porque isso ocorre no âmbito da imputação, pelo menos, desde o finalismo, mas também porque as próprias circunstâncias judiciais da culpabilidade e dos motivos são aferidas em separado.

De lege ferenda a proposta adequada exigiria separar os incisos da paga e dos motivos torpes. Paga não é motivo, é fato.

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COnSidERAçÕES finAiS

No âmbito das considerações finais gostaria de deixar sentado que o trabalho hermenêutico em situações complexas de conjugação normativa são aqueles que mais exigem do juiz, mas que também o justificam.

É inatacável a tese central da predominância do legislativo, como fonte da dimensão política do princípio de legalidade.

Mas é igualmente certo que o juiz exerce, em sua atividade cotidiana, labor criativo. O juiz cria a norma aplicável ao caso concreto, através de um processo hermenêutico em que busca a melhor interpretação das normas aplicáveis, dentro dos limites políticos que lhe são dados.

Nesta tarefa, há um guia essencial que não pode ser descurado: a idéia central sempre lembrada por Vives Antón40, de que é chegada a hora de que os juristas se proponham a substituir uma pretensão de verdade por uma pretensão de justiça, pois a verdade como correspondência, não será jamais encontrada pelo Direito, menos ainda o Direito Penal.

A única coisa que se pode almejar é a busca por um resultado o mais justo possível, dentro das limitações humanas. Se a pretensão de justiça exige um empenho redobrado na costura de soluções interpretativas, hão todos os personagens do foro de debruçar-se sobre esta busca.

40 VIVES ANTÓN, op. cit., p. 481.

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RESUMO

O objetivo deste breve estudo é contextualizar o Direito Penal e Processual Penal de Emergência. Inicialmente, relaciona-se a globalização (e os fatores sociais advindos desse fenômeno) com o Direito Penal de emergência, chegando-se à conclusão de que a globalização colabora de maneira eficaz à propagação da emergência penal e processual penal. Em seguida, apresenta-se o conceito de Direito Penal e processual de emergência, o qual revela as impropriedades dessa forma de exercício do poder punitivo do Estado. Não por acaso se estabelecem as incongruências de tal opção legislativa e judicial, valendo destacar o uso simbólico do Direito Penal, o desrespeito à finalidade da pena e do próprio Direito Penal, o mero tratamento das consequências e não das causas dos delitos e o desrespeito às garantias individuais.

Palavras-chave: Direito Penal. Direito Processual Penal. Direito Penal de Emergência. Política Criminal. Globalização e Efeitos Penais.

ABSTRACT

The purpose of this brief study is to contextualize Criminal Law and Criminal Procedure of Emergency. Initially it relates to globalization (and the social factors arising from this phenomenon) to the Criminal Lawof Emergency, coming to the conclusion that globalization contributes effectively to the spread of criminal emergency and criminal procedure. Then it introduces the concept of Criminal Law and Procedure of Emergency, which has revealed the inadequacies of this way of exercising the State punitive power. Not by chance the incongruities of such legislative and judicial option set up, it is worth highlighting the symbolic use of criminal law, the disrespect for the purpose of punishment and criminal law itself, the mere treatment of the consequences and not the causes of crime and disrespect for individual guarantees.

Keywords: Criminal Law. Criminal Procedural Law. Criminal Law of Emergency. Criminal Policy. Globalization and Criminal Purposes.

DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL DE EMERGÊNCIA: CONCEITUAÇÃO, COMPREENSÃO E ENFRENTAMENTO

CRIMINAL LAw AND CRIMINAL PROCEDURE OF EMERGENCy: CONCEPT, UNDERSTANDING AND COPIN

Daniel Laufer1

1 Doutorando em Direito Penal pela PUC-SP. Mestre em Direito pela PUC-PR. Advogado criminalista. Professor Adjunto de Direito Penal da PUC-PR. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico (IBDPE) e da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP).

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INTRODUÇÃO

O presente momento histórico revela temas obrigatórios relacionados ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal. Tal constatação é, por tão óbvia, quiçá desnecessária. Isso é decorrente das características da sociedade atual: globalizada, plural, internacional, cujas fronteiras físicas e ideológicas já não mais existem e, quando ainda eventualmente remanescem, não impedem a constatação de que os tempos atuais2 demandam outra forma de se lidar com as normas vigentes no Brasil e fora dele.

Não se trata de tecer loas ao passado ou glorificar o presente, mas sim apenas de aceitar – sem assumir uma postura passiva e alienada – a nova realidade que nos é posta e de igual forma o caráter mutante da realidade social e jurídica.

Ainda que não seja o único, mas possivelmente apenas o fator determinante, a globalização é passível de ser apontada como o fenômeno responsável pelas alterações estruturais da sociedade atual e, desta forma, do próprio Direito Penal.

É fato que a globalização – aqui tomada em seu conceito puramente econômico, ou seja, mundialização da economia3 – revela uma extrema mudança tecnológica em diversos aspectos concernentes à comunicação, à economia, ao plano político e ao plano

2 Em tema que diz respeito direto ao Direito Penal nos informa Luigi Ferrajoli de que a própria noção de soberania já não é a mesma. Vejamos: “El paradigma de la soberanía externa alcanza su máximo esplendor y a la vez el momento de su trágico fracaso en la primera mitad de nuestro siglo con la nueva guerra europea de los treinta años (1914-1945), en la que se incluyen las dos guerras mundiales, y que le llevan, por así decir, al suicidio. Este final quedó sancionado en el ámbito del derecho internacional, por la Carta de la ONU, aprobada en San Francisco el 26 de junio de 1945, y luego por la Declaración Universal de derechos del hombre aprobada el 10 de diciembre de 1948 por la Asamblea General de Naciones Unidas. Estos dos documentos transforman por lo menos en su dimensión normativa el orden jurídico mundial, trayéndolo desde el estado de naturaleza al estado civil. Por ellos la soberanía externa del Estado – en principio – deja de ser una libertad absoluta y salvaje y queda subordinada, jurídicamente, a dos normas fundamentales: el imperativo de la paz y la tutela de los derechos humanos.” FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias: la ley del más débil. Madrid: Trotta, 1999. p. 144.

3 Cf. MERCADO PACHECO, Pedro. Estado y globalización: ¿crisis o redefinición del espacio político estatal? Anuario de la Facultad de Derecho de la Universidad Autónoma de Madrid, Madrid, n. 9, p. 128, 2005.

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normativo4, tendo como aspectos nefastos a concentração de capital, a perda de poder dos estados, migrações, desemprego, exclusão social e guerras5. Já como aspectos positivos podem ser salientados, dentre outros, a democratização do conhecimento e a junção de países em conglomerados econômicos6.

Tais aspectos sociais e econômicos da globalização e a inter-relação e dependência entre os Estados – valendo aqui mencionar a mundialização das comunicações e da economia e, igualmente, do Direito e suas formas de defesa dos interesses do ser humano – trouxeram como consequência infeliz uma criminalidade internacional – que não se desenvolve em um único país ou território, senão a par das atividades econômicas de grandes corporações multinacionais, em escala transnacional ou inclusive planetária7. Se rapidamente pode-se impor, ainda que a título introdutório, as causas desta criminalidade global, generalizada e internacional, suas características estariam reveladas na rapidez com que se desenvolvem as etapas do delito, no desenvolvimento de partes do iter criminis entre diversos Estados Soberanos (tráfico de entorpecentes), na utilização de países para alocar unicamente recursos ilícitos (delitos financeiros e lavagem de dinheiro) ou para esconder

4 Cf. VOGEL, Joachim. Derecho penal y globalización. Anuario de la Facultad de Derecho de la Universidad Autónoma de Madrid, Madrid, n. 9, p. 114 e 115, 2005. Ainda que crítica, interessante a definição de FERRAJOLI para o que ele denomina de globalização jurídica: “Si tuviera que aportar una definición jurídica de la globalización, la definiría como un vacío de Derecho público a la altura de los nuevos poderes y de los nuevos problemas, como la ausencia de una esfera pública internacional, es decir, de un Derecho y de un sistema de garantías y de instituciones idóneas para disciplinar los nuevos poderes desregulados y salvajes tanto del mercado como de la política.” FERRAJOLI, Luigi. Criminalidad y globalización. Iter criminis. Revista de Ciencias Penales, Tlapan, Mexico, n. 1, 3. época. Tlapan, México, p. 72, 2005. De acordo com a constatação de Pedro Barbosa Pereira Neto: “As principais empresas do mundo hoje internacionalizaram não apenas seus mercados de distribuição e venda de produtos, mas também sua própria produção escolhendo países do terceiro mundo, tanto por razões estratégicas como para barateamento de seus custos. O desenvolvimento das comunicações forneceu o capital tecnológico necessário a essa expansão extraordinária. O capital financeiro internacional, de seu turno, não tem barreiras, migra de um lado a outro do globo terrestre onde houver uma oportunidade mais atraente para remuneração de seus ativos.” PEREIRA NETO, Pedro Barbosa. Cooperação penal internacional nos delitos econômicos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 13, n. 54, p. 153, maio 2005.

5 Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Globalización y crimen organizado. In: CONFERENCIA MUNDIAL DE DERECHO PENAL, 1., 2007, México, Conferência de clausula de la Primera Conferencia Mundial de Derecho Penal. México: Asociación Internacional de Derecho Penal, 2007. p. 1 (a Conferência foi realizada em Guadalajara, Jalisco, México, em 22 de noviembre de 2007. p. 1; FERRAJOLI, Luigi. Criminalidad y globalización. Iter criminis. Revista de Ciencias Penales, Tlapan, México, n. 1, 3. Época, p. 71-72, 2005.

6 Cf. ZAFFARONI, Eugenio Raul. Globalización y crimen organizado, op. cit. p. 1.7 Cf. FERRAJOLI, Luigi. Criminalidad y Globalización. Iter criminis. Revista de Ciencias Penales, Tlapan,

México, n. 1, 3. Época. p. 71, 2005.

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provas alusivas ao delito cometido (pedofilia), no aumento das possibilidades de ganho econômico por meio de atos de corrupção, dentre outras. A guisa de síntese do conceito: criminalidade global ou internacional pode ser empregada como aquela sem barreiras, sem fronteiras e cujo desenvolvimento ou efeitos se dê em mais de um país.

Vogel8 revela ser assaz complicado, quando não inviável, definir o que se entenderia por criminalidade global. Contudo, o mesmo doutrinador assevera não poder se descurar que “los hechos con conexión en el extranjero sean más frecuentes ahora”9 e que a criminalidade econômica certamente crescerá em razão da inter-relação entre atividade econômica e globalização.10 Ou seja, a globalização pode não ter trazido um conceito de crime global, mas certamente fomentou a prática de delitos transnacionais e, com isso, uma preocupação, daí sim global, para se enfrentar tal desiderato.

Ao Direito Penal a globalização e a existência de crimes transnacionais trouxeram como característica uma legislação penal de emergência, a qual invoca a exceção e a necessidade de remover obstáculos para a luta ou para a guerra contra a manifestação criminal organizada ou comum11, a utilização de tipos penais de perigo abstrato ou presumido, a antecipação de tutela penal por meio de atos preparatórios erigidos à categoria de tipos autônomos, o uso da analogia in malam partem, a consideração válida da responsabilidade objetiva, a estipulação de penas desproporcionais e a descodificação da legislação penal. O Direito Penal, aduz Nicola Mazzacuva12, chega a ser ilimitado, eis que para cada fenômeno social e o alarme social correlato de imediato se reformulam antigas disposições penais ou se criam novas figuras típicas que servem unicamente a finalidade simbólica da aparente luta contra o delito. Não há dúvida de que o Direito Penal se transformou apenas em um meio para se alcançar um fim, de modo que o Direito

8 “Parece plausible considerar que la realidad de la criminalidad se ha visto modificada por la globalización, pero ello de manera moderada y, por regla general, sin que se haya producido lo que podría llamarse <<criminalidad global>> en sentido estricto; una denominación que – como anota con razón Prittwitz – no debería usarse por el mero hecho de que determinados delitos se cometan en muchos lugares o en todas partes (en tal caso, el hurto sería criminalidad global), y tampoco porque antes, durante o después del hecho se transite por fronteras estatales (esto por sí mismo tan sólo constituye criminalidad transnacional, no necesariamente global.)” VOGEL, Joachim, op. cit., p. 115.

9 VOGEL, Joachim. Derecho penal y globalización. Anuario de la Facultad de Derecho de la Universidad Autónoma de Madrid, Madrid. n. 9, p. 115, 2005.

10 VOGEL, op. cit., p. 115.11 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Globalización y crimen organizado, p. 1; p. 9.12 MAZZACUVA, Nicola. El futuro del derecho penal. In: CRÍTICA y justificación del derecho penal en el

cambio del siglo. Cuenca: Ediciones de la Universidad Castilla-LaMancha, 2003. p. 231. (Estudios, n. 91)

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Penal moderno já não tem independência teórica, sendo absolutamente dependente da política, e não da política em seu aspecto de opções fundamentais para se melhorar a vida em sociedade, mas sim da política ordinária e cotidiana e que prospecta soluções de baixo relevo.13

No tocante ao processo penal o professor Claus Roxin expõe sabiamente sobre a que denomina ser a terceira (e atual) fase da evolução da política criminal, do Direito Penal e do processo penal, a qual se remete aos idos de 1975 até os dias atuais. A par das questões acerca do conceito material de delito14 e da prevenção geral tomada como finalidade da pena15, sobre a situação jurídica do acusado afirma Roxin que a tendência atual é no sentido de reduzir direitos do acusado, tendo aumentado vertiginosamente o número de escutas telefônicas, autorizado o controle acústico em residências e propugnado o controle ótico de espaços residenciais16. Em suas próprias palavras: “En definitiva, el espacio de no injerencia estatal es cada vez más pequeño y el control cada vez mayor.”17

Mas o aumento de controle por parte das autoridades representativas do Estado (Poder Judiciário, Ministério Público e Polícia) ainda se fundamenta sob o enfoque da internacionalidade das ocorrências delitivas. Carolina Yumi de Souza revela o incontestável:

Porém, o mesmo fenômeno da globalização que atingiu outras áreas também teve efeitos no âmbito da justiça criminal: não somente o cometimento de crimes não ocorre dentro das fronteiras de um único Estado, mas a prática de atos judiciais necessários à persecução penal também não fica adstrita ao território (por exemplo, a necessidade de oitiva de uma testemunha que resida em outro país). Isso levou ao reconhecimento de que os Estados precisam ajudar-se em prol de um objetivo comum.18

13 MAZZACUVA, Nicola. op. cit., 2003 p. 233. 14 ROXIN, Claus. La evolución de la Política criminal, el derecho penal y el proceso penal. Valencia.

Tirant lo Blanch, 2000. p. 25 e ss.15 Ibid., p. 28-29.16 Ibid., p. 30-31.17 ROXIN, op. cit., p. 31. Juarez Tavares, com escólio em Winfried Hassemer, bem relaciona que “o Direito

Processual Penal se há transfigurado no modelo de um direito policial, em que os fins de prevenção se integram nos objetivos puramente repressivos, mas, agora, não propriamente com vistas à identificação do culpado, senão na demonstração da efetividade do sistema”, fazendo com que se eliminem no processo penal “os princípios tradicionais de concentração e publicidade, e se amplia a investigação especializada, mas oculta (escutas telefônicas, violação de sigilo bancário, acompanhamento disfarçado, agente encoberto etc.)”. TAVARES, Juarez. A globalização e os problemas da segurança pública. Ciências Penais: revista da Associação dos Professores de Ciências Penais, São Paulo, v.1, p. 132, 2004.

18 SOUZA, Carolina Yumi de. Cooperação jurídica internacional em matéria penal: considerações práticas. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 17, n. 71, p. 298, mar. 2008.

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Chega-se, portanto, em um entrave: ao tempo em que é necessária uma discussão sobre segurança pública (em sentido macro), ou seja, sobre Direito Penal e processo penal, tal tarefa é extremamente difícil de ser realizada em um país que sempre violou direitos fundamentais por questões de conveniência política e econômica19, devendo, portanto, a proteção de tais direitos (dentre eles, e principalmente, a segurança) ser efetiva, impondo-se a exigências de manipulação política e de satisfação econômica.20

1 CONCEITO E CARACTERÍSTICAS

Consideradas as linhas acima, verificar-se-á que não há uma completa identificação de causa e efeito entre globalização e legislação penal de emergência. Se assim fosse, o assentamento de diversas categorias delitivas, por exemplo, os delitos fiscais, ambientais e financeiros, cujo realce maior se deu com a globalização, não teria fundamento jurídico. Em outras palavras, o Direito Penal não encontraria legitimidade para tutelar tais bens jurídicos, com o que desde já não se concorda. De outro canto, algumas características da globalização, em especial a dos meios de comunicação – e a agilidade hoje inerente – possuem extrema e direta relação com o Direito Penal de emergência.

A pretendida por alguns, mas irreal identidade absoluta entre globalização e Direito Penal de emergência, se vê insustentável ao se descortinar a existência de legislações de emergência antes mesmo da percepção da globalização, ao menos a globalização econômica tal como enunciada na introdução. Zaffaroni21 menciona ocorrências na Argentina e que datam de 1910 e 1932, quais sejam reformas legislativas destinadas a repreender a explosão de uma bomba no Teatro Colón (1910) e certa onda de sequestros e homicídios cometidos por algumas quadrilhas (isso em 1932).

Pode-se dizer, deste modo, que a globalização e Direito Penal e processual penal de emergência são temas distintos, sendo a globalização um vetor que contribui e, muito, ao agigantamento do Direito Penal emergencial.

19 Cf. TAVARES, Juarez. A globalização e os problemas da segurança pública. Ciências Penais: revista da Associação dos Professores de Ciências Penais. São Paulo, v. 1, n. 00, p. 128, 2004.

20 Cf. TAVARES, 2008, p. 128. 21 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La creciente legislación penal y los discursos de emergencia. In: VILLELA,

Rubén (Ed.) Teorías actuales en el derecho penal . Buenos Aires: Ad-Hoc, 1998. p. 613. O mesmo autor ainda pontua: “Las emergencias no son nuevas en los discursos legitimantes del poder punitivo: por el contrario, éste renace para quedarse durante el resto del milenio y proyectarse al próximo, confiscando a las víctimas, en la Edad Media (siglos XI y XII) justamente con una emergencia: el ataque de Satán y las brujas. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. op. cit., p. 613.

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O conceito de Direito Penal é derivado daquilo que o intérprete retira ser sua finalidade; daí estar o conceito de Direito Penal e sua finalidade intrinsicamente ligados. Pode-se resumidamente afirmar, com relativo grau de certeza, que o Direito Penal é definido como o setor do ordenamento jurídico que define crimes, comina penas e prevê medidas de segurança aplicáveis aos autores das condutas incriminadas22, cuja finalidade é a de proteger bens jurídicos, ou seja, valores relevantes para a vida humana individual e coletiva, sob ameaça de pena23.

Já a definição de emergência pode ser tomada como “aquilo que foge dos padrões tradicionais de tratamento pelo sistema repressivo, constituindo um subsistema de derrogação dos cânones culturais empregados na normalidade”24, ocorrendo a “mitigação, direta ou indireta, de garantias fundamentais estabelecidas no pacto da civilidade”25.

Isso estabelecido tem-se que sob a alcunha de Direito Penal de emergência se abarca toda e qualquer medida legislativa (criminalização primária) ou aplicação do Direito Penal em ordem prática (criminalização secundária) que não respeite as garantias fundamentais estabelecidas na carta constitucional ou ainda na legislação infraconstitucional. Claro está que sob a globalização não pode recair o manto de responsabilidade acerca do Direito Penal de emergência, porquanto se por meio da globalização se vislumbra a necessidade de tutela de um novo bem jurídico, tal fato – por si só – não deságua no (nem tampouco origina o) Direito Penal de emergência. Tal constatação poderá existir sempre e quando se desrespeitem garantias e direitos individuais ao argumento de que o Direito Penal é (quando não deveria ser) chamado a intervir.

22 Cf. SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 2. ed. Curitiba: ICPC; Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 3.

23 Cf. Ibid., 1997. p. 62 e ss.24 CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 5.25 Ibid., p. 6.

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Haja vista ter-se estabelecido o conceito de emergência – em sua acepção totalmente negativa, muito embora possa ser asseverado o seu aspecto positivo26 – atingível também se encontra uma definição de processo penal de emergência. Ora, em sendo o processo penal o setor do ordenamento jurídico que serve de “instrumento por meio do qual se concretiza e se pode exercer o poder-dever punitivo”27, também é plenamente compreensível – mas não desejável – a existência de um processo penal de emergência ao não serem respeitadas as garantias constitucionais e infraconstitucionais vigentes. O próprio Aury Lopes Jr. elucida que

o processo não pode mais ser visto como um simples instrumento a serviço do poder punitivo (Direito Penal), senão que desempenha o papel de limitador do poder e garantidor do indivíduo a ele submetido. Há que se compreender que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade, e jamais se defendeu isso. O processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena. Daí por que somente se admite sua existência quando ao longo desse caminho forem rigorosamente observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas (as regras do devido processo legal).28

Contudo, na questão penal e processual penal de emergência, ao que se percebe não há limites temporais e geográficos29 e, por isso, acaba se protraindo sem fronteiras e infiltrando-se na normalidade cultural com resultados prejudiciais, com absurda e flagrante involução do sistema punitivo. Daí a sua proximidade com a globalização e a manutenção

26 Nem sempre a concepção de emergência, se tomada em sua individualidade, pode ser tomada como negativa. Prova disso são as disposições constitucionais acerca do estado de sitio e estado de defesa, derivadas obviamente de situações emergenciais. Noticia Vergueiro: “O próprio texto constitucional positiva consagra a regulamentação a ser utilizada em momentos de crise, e a qual alguns autores se referem com a expressão legalidade especial. As Constituições, com o objetivo maior de defender-se frente a momentos que as põem em perigo em razão de situações excepcionais, ou de emergência, admitem regulamentação jurídica que poderá ser utilizada temporariamente, não a mercê dos governantes, o que significa afirmar-se que, mesmo em tais circunstancias, não fica desprezada a legalidade constitucional, embora revestida de características próprias.” VERGUEIRO, Luiz Fabrício Thaumaturgo. Terrorismo e crime organizado. São Paulo: Quartier Latin, 2009. p. 74. De igual forma tem-se o entendimento de Choukr: “Veja-se que mesmo em âmbito constitucional a emergência aparece prevista, contrariando, em termos, a própria essência da ideia do novo, do inesperado que é ínsita ao vocábulo analisado. Fato é que a exceção à democracia é prevista no próprio texto constitucional, onde se encontram mecanismos de proteção ao estado de normalidade, como o estado de emergência na atual Constituição brasileira. Diferentemente no campo penal, a emergência constitucional tem limites temporais e geográficos, além daqueles de índole material a regrar a exceção.” CHOUKR, op. cit. p. 3.

27 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 69.

28 LOPES JUNIOR, op. cit., p. 72.29 Cf. CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal de emergência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002. p. 4.

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com este fenômeno de uma relação de retroalimentação: quanto mais globalizada a informação no mundo e internacionalizada a cultura do medo, maior a tendência de utilização de institutos penais de emergência, pelos motivos adiante expostos.

O professor argentino Eugenio Raul Zaffaroni afirma que o crescimento desmedido de leis e disposições penais pode, de certo modo, se mesclar com o Direito Penal de emergência, mas, ao final, com ele não se confunde30. Isso porque dentre todas as idiossincrasias inerentes ao aumento da produção legislativa penal e processual (verdadeira maximização do Direito Penal) quais sejam: i) descodificação (o ideal de organização legislativa e de código não está presente nos legisladores posmodernos); ii) diretivas transnacionais temporalmente prolongadas que impõe praticamente a todos os países legislações penais diferenciadas da legislação penal ordinária (tóxicos, lavagem de dinheiro etc.); iii) modelo econômico globalizador que condiciona desocupação e expulsão do aparato produtivo e exclusão social, o que gera um aumento de conflitividade social; iv) leis penais frontalistas, eis que tendem a impressionar o observador por sua monumentalidade; v) tentativa da sociedade de informação em expor situações que permaneciam normalizadas como delitos – com a resposta pelo legislador por meio de tipos penais insólitos, indefinidos, vagos etc.; vi) fiscalização diuturna por meio do Direito Penal (Direito Penal fiscal) e vii) banalização (administrativização do Direito Penal), apenas algumas destas características abrangem o denominado fenômeno emergencial do Direito Penal e do processo penal.

Zaffaroni menciona que o Direito Penal de emergência possui as características apenas de transnacionalidade, frontalismo e renormalismo31. Vejamos com mais detalhes estas características. A transnacionalidade decorre de diretivas transnacionais temporalmente prolongadas que impõem a praticamente todos os países o enfretamento de questões sociais com base na legislação penal, ultrapassando em grande parte os limites do Direito Penal32. Por sua vez, o fenômeno econômico da globalização (mas não só ele) conduz um movimento de lei e ordem para que operadores políticos imponham certa ideologia de segurança sedimentada em leis repressivas que alteram toda a racionalidade das leis penais e que, em muitos casos, de cumprimento impossível33.

30 ZAFFARONI, op. cit., p. 615- 616.31 ZAFFARONI, op. cit., p. 617.32 Ibid., p. 615.33 Ibid., p. 615-616.

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Por fim,

la sociedad de comunicación tiene el mérito de poner en descubierto situaciones que permanecían normalizadas, como abusos sexuales a niños y mujeres, explotación de situaciones de superioridad laboral o funcional, etc. La respuesta de los operadores políticos para renormalizar estas situaciones sin resolver el problema, son leyes penales que crean tipos insólitos: el acoso sexual es uno de los más difundidos inventos, con su secuela de indefinición, vaguedad [...]34

Dessarte, conclui Zaffaroni – em idêntico raciocínio ao exposto por CHOUKR35 –, que o Direito Penal e processual penal de emergência seria aquele que: a) se funda em um fato novo, pretensamente novo ou extraordinário; b) a opinião pública reclama uma solução dos problemas gerados pelo fato; c) a lei penal não resolve o problema, mas tem por objeto proporcionar para a opinião pública a sensação de tê-lo reduzido ou solucionado; e, d) adota regras que resultam diferentes das tradicionais do Direito Penal liberal, seja porque modificam sua área ou por que criam um Direito Penal especial ou alteram o Direito Penal especial36.

E quais seriam as causas não apenas da maximização do Direito Penal, mas em especial do Direito Penal e processual penal de emergência? Salvo melhor juízo, seriam as seguintes: medo associado à mídia e crise de legalidade.

Um terreno fértil para o desenvolvimento de um Direito Penal e processual penal emergencial “é uma sociedade amedrontada, acuada pela insegurança, pela criminalidade e pela violência urbana.”37. Explica-se com tais palavras, resumidamente, um dos primeiros aditivos da emergência no Direito Penal. A globalização e seus efeitos de informação (novas tecnologias) afetam sobremaneira o debate político, sendo que o rádio e a televisão possuem âmbito privilegiado de exposição e de concentração da atenção dos cidadãos38. Têm lugar, ademais, as sábias palavras de Jesús-Maria Silva Sánchez:

34 ZAFFARONI, op. cit., p. 616.35 Cf. CHOUKR, op. cit., p. 3-4 e p. 58-65.36 Cf. ZAFFARONI, op. cit, p. 617.37 SICA, Leonardo. Direito penal de emergência a alternativas à prisão. São Paulo: RT, 2002. p. 77.38 Cf. CALLEGARI, André Luís; WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. Sistema penal e política criminal.

Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 51.

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En todo caso, en lo que hace ao Derecho Penal, resulta ineludible la puesta en relación de la sensación social de inseguridad con el modo de proceder de los medios de comunicación. Estos, por un lado, desde la posición privilegiada que ostentan en el seno de la “sociedad de información” y en el marco de una concepción del mundo como aldea global, transmiten una imagen de la realidade en la que lo lejano y lo cercano tienen una presencia casi idéntica en la representación del receptor del mensaje.39

Tanto é assim que nunca se pode perceber a violência e vivenciá-la como nos dias atuais40. Aliás, em uma sociedade que dispõe de numerosos e poderosos meios de comunicação bem como está absolutamente interessada na comunicação do fenômeno da violência não necessita vivenciar tal fenômeno para experimentá-lo diuturnamente e de maneira onipresente, bastando realizar uma atividade de contemplação ao mundo que nos rodeia.41

Tem-se, com isso, que as possibilidades de se dramatizar a violência e inclusive de se politizá-la são, diante dos meios e formas de comunicação, muito evidentes42. Agregue-se a isso que a “manipulação do medo e das angústias populares é recorrente na história da Justiça e da humanidade”43 para se concluir que a emergência penal e processual é derivada em sua maior parte do sentimento de medo e insegurança que assolam a sociedade atual, muito embora este medo e esta insegurança sejam menores de fato do que o sentimento de insegurança sofrido pelo cidadão comum. Conforme relaciona Sica,

não é necessária estatística para afirmar que a maioria das sociedades modernas, a do Brasil dramaticamente, vive sob o signo da insegurança. O roubo com traço cada vez mais brutal, “sequestros-relâmpagos”, chacinas, delinquência juvenil, homicídios, a violência propagada “em cadeia nacional”, somados ao aumento da pobreza e à concentração cada vez maior da riqueza e à verticalização social, resultam numa equação bombástica sobre os ânimos populares.44

39 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. La expansión del derecho penal: aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. Madrid: Civitas, 1999. p. 27.

40 Cf. HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y responsabilidad: bases para una teoría de la imputación en Derecho Penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999. p. 79.

41 Cf. HASSEMER, op. cit., p. 80; HASSEMER, Winfried. Crítica al derecho penal de hoy: norma, interpretación, procedimento. Límites de la prisión preventiva. Buenos Aires: Ad-Hoc, 1995. p. 50.

42 Cf. HASSEMER, 1999, p. 80.43 Cf. SICA, op. cit. p. 79.44 SICA, op. cit., 2002. p. 78. Agregue-se, ainda, o noticiado por Pastana: “A cultura do medo reflete, dessa

forma, a crença de que vivemos em um momento particularmente perigoso devido ao aumento da criminalidade violenta e a legitimação de posturas autoritárias que, de acordo com interesses políticos, são difundidas como capazes de solucionar este problema.” PASTANA, Débora Regina. Cultura do medo: reflexões sobre a violência criminal, controle social e cidadania no Brasil. São Paulo: Método, 2003. p. 95.

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O resultado, dessarte, não poderia ser outro consoante informa Pastana45:

Paradoxalmente, o medo e a insegurança neste período democrático permitem ao Estado medidas simbólicas cada vez mais autoritárias, leis cada vez mais punitivas, legitimadas por demandas sociais de proteções reais e imaginárias, principalmente da elite. Além disso, justificam a criação de empresas de segurança e o apoio à privatização da polícia. Criam, ainda, uma indústria de segurança – grades, seguros, alarmes – que, na maior parte das vezes, fornece mais proteção simbólica que real. Por fim, legitima discursos oficiais de políticos, da imprensa, de chefes religiosos, de “personalidades” diversas, sobre o aumento da violência e da criminalidade como resultado de uma sociedade em decadência.

Já o segundo fator responsável pelo Direito Penal e processual penal de emergência diz respeito à crise de legalidade e legitimidade do Estado em gerir a coisa pública e prover as necessidades básicas aos indivíduos, dentre elas a segurança. Informa Moccia que

a crise de legalidade e de legitimidade atingiu vastos setores do sistema, deixando emergir também a absoluta ineficiência das estruturas institucionais para garantir aqueles controles político-administrativos que teriam podido ser úteis para prevenir as degenerações criminais da gestão da coisa pública.46.

Têm razão Callegari e Wermuth47 ao afirmarem que o risco, o medo e a segurança são o trinômio orientador do processo de expansão do Direito Penal48 e, mais ainda, do Direito Penal e processo penal de emergência, a partir do momento em que, em deixando o Estado de promover políticas sociais e econômicas viáveis e necessárias para a diminuição da criminalidade. O ciclo é, verdadeiramente, vicioso. A criminalidade existe e é, ademais, superlativizada pelas instâncias midiáticas. O Estado, por sua vez, não consegue promover políticas públicas pensadas e direcionadas para lidar com a criminalidade existente, o que faz com que acabe se servindo de políticas criminais indevidas de aumento de criminalização de condutas, aumento da repressão sem reprimir na realidade os eventos delitivos.

45 SICA, op. cit., p. 97.46 MOCCIA, Sergio. Emergência e defesa dos direitos fundamentais: Revista Brasileira de Ciências

Criminais, São Paulo, v. 7, n. 25. p. 58, jan./mar., 1999.47 CALLEGARI; WERMUTH, op. cit., p. 13-2448 Relatam Callegari e Wermuth, em caráter especial, que: “São estas as principais características que o

Direito Penal orientado ao enfrentamento aos novos riscos, medos e inseguranças da contemporaneidade apresenta, o que acena para o fato de que se está diante da configuração de um modelo de intervenção punitiva que representa um sério risco às liberdades e garantias fundamentais do cidadão.” CALLEGARI, André Luís; WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi. Sistema penal e política criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 23.

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Silva Sánchez conseguiu sintetizar com maestria a crise da legalidade e da legitimidade estatal ao expor o atual descrédito em outras instâncias de proteção que não o Direito Penal, o qual, como se bem sabe, não é o responsável por solucionar isoladamente as questões e problemas de ordem social:

Lo anterior, con todo, todavía no explicaría de modo necesario la demanda de punición y la consiguiente expansión precisamente del Derecho penal. En efecto, tales datos podrían conducir ciertamente a una expansión de los mecanismos de protección no jurídicos, o jurídicos, pero no necesariamente jurídico-penales. Ocurre, sin embargo, que tales opciones o son inexistentes, o parecen insuficientes, o se hallan desprestigiadas. En primer lugar, la sociedad no parece funcionar como instancia autónoma de moralización, de creación de una ética social que redunde en la protección de los bienes jurídicos. En segundo lugar, es más que discutible que cierta evolución del Derecho civil del <<modelo de la responsabilidad>> al <<modelo del seguro>> esté en condiciones de garantizar, por un lado, que éste cumpla efectivamente funciones de prevención e, por otro, que garantice a los sujetos pasivos una compensación, si no integral (cuya propia posibilidad resulta cuestionable), al menos mínimamente próxima a ésta. En tercer lugar, la burocratización y, sobre todo, la corrupción han sumido en un creciente descrédito a los instrumentos de protección administrativa (ya preventivos, ya sancionatorios). Se desconfía – con mayor o menor razón, según las ocasiones – de las Administraciones públicas en las que, más que medios de protección, se tiende a buscar cómplices de delitos socio-económicos de signo diverso.49

Por óbvio, portanto, que o destinatário de todas estas exigências sociais acaba por ser o Direito Penal e o Direito Processual Penal, dos quais se espera uma ajuda eficaz para situações de necessidade a fim de garantir a segurança dos cidadãos50.

3 CONSEqUÊNCIAS E INCONGRUÊNCIAS DO DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL DE EMERGÊNCIA

Uma vez evidenciado o conceito e as características do denominado Direito Penal e processual penal de emergência podem ser apontadas as consequências e incongruências de tal modelo de utilização do Direito Penal e processo penal, muito embora já se tenha demonstrado acima o descalabro e impropriedade desta estruturação.

49 SILVA SÁNCHEZ, op. cit., 1999. p. 44-45.50 Cf. HASSEMER, op. cit., p. 86.

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São tantas as consequências nefastas e incongruências a serem retiradas da emergência no Direito Penal e processual penal que se permite, a fim de organização, emiti-las em tópicos, não havendo necessidade de envidar distinção entre estas duas categorias que se resumem em defeitos absolutos da utilização imediatista e utilitarista do Direito Penal e do processo penal.

3.1 ESCOLHA SOCIOPOLÍTICA INADEQUADA

Leonardo Sica anota que a escolha do modelo de Direito Penal é influenciada por decisões de cunho sociopolítico51. Disso não há dúvida alguma. Porém, a utilização do Direito Penal e do processo penal resultante de tendências autoritárias, demagógicas e expansivas52, acaba por ampliar de maneira indiscriminada a área de condutas criminalizadas, desbordando o limite da necessidade de proibição. Se tudo a passa a ser proibido, o sentido do Direito Penal é esvaziado,

pois se tudo é proibido, acaba-se pensando que tudo é permitido, numa realidade próxima da anomia. Esse sentimento de “anomia moral” deve ser substituído pela certeza e previsibilidade do Direito, e nada mais além disso, pois no “penal”, da certeza do Direito à certeza da pena a distância é curta.53

3.2 O DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL DE EMERGêNCIA SE ENGANA QUANTO à SOLUçãO E FINALIDADE DO DIREITO PENAL

Engana-se principalmente porque acaba por desconsiderá-lo como a ultima ratio do ordenamento jurídico.

Uma das constatações do Direito Penal moderno – e que a globalização e inclusive a necessidade de tutela de novos bens jurídicos, por exemplo, o meio ambiente, nunca poderá desconsiderar – é a de que a norma penal possui natureza subsidiária, fragmentária e de ultima ratio. Dessarte, o Direito Penal e processual penal de emergência, ao propugnar por uma antecipação desmesurada, imediatista e impensada da tutela penal em detrimento de outros setores do ordenamento jurídico – claramente premida pela pressão popular – tem como resultado o desrespeito flagrante a princípio fundamental de interpretação e aplicação das normas penais e processuais penais.

51 SICA, op. cit., p. 82.52 Ibid., p. 82.53 Ibid., p. 85.

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Do até agora exposto pode-se concluir que, se de um lado a (equivocada) política criminal, em razão dos motivos já declinados, propugna por um aumento do Direito Penal, seja em maior número de condutas humanas criminalizadas, seja na fixação de pena maior para aquelas já tipificadas, em sendo a função do Direito Penal a tutela de bens jurídicos, a esta mesma função se atribui o primeiro de seus limites, qual seja, o de que a tutela penal será apenas legítima se o bem jurídico a ser tutelado necessitar da intervenção da norma penal (e isto independentemente da seara de criminalização, primária ou secundária).

Inegável, pois, que o estabelecimento de tipos penais a partir da violação de um bem jurídico favorece a imposição de limites materiais à intervenção do Estado na vida do cidadão, propiciando a garantia de mínima intervenção do Direito Penal.54 Ademais, é justamente em razão da violência e efeitos absolutamente nefastos (visto que nada melhor do que o Direito Penal se conseguiu até o presente momento da humanidade) que decorrem outros limites da norma penal, quais sejam o princípio da ultima ratio e da subsidiariedade do Direito Penal.

Ao Direito Penal cabe o papel de último interveniente dentre todas as medidas protetoras a serem consideradas, ou seja, somente cabe intervir quando encontrado/selecionado um bem jurídico e sobre este falhem outros meios de solução social do problema, como medidas de natureza civil, administrativa, medidas de polícia, imposição de sanções não penais. Tal característica é expressa por meio do princípio da subsidiariedade e ultima ratio do Direito Penal.55 O raciocínio é por demais lógico e em razão disso chama a atenção o seu desvirtuamento: se as intromissões à liberdade do cidadão se dão em maior grau por meio do Direito Penal, cabe à norma penal intervir quando outros meios sensivelmente menos gravosos ao cidadão não ofereçam o êxito necessário.56

O caráter fragmentário e subsidiário do Direito Penal traz como consequência a impossibilidade de que o Direito Penal seja utilizado de maneira instrumental como primeira forma de combate à lesão de bens jurídicos. Com isso se estabelecem os claros limites de intervenção: o Direito Penal só deve intervir para tutelar bens jurídicos, sempre e quando outras esferas (formais ou informais) de controle não atingirem tal finalidade. Não se deve, pois, buscar um adiantamento preventivo de proteção a bens jurídicos por meio do Direito Penal nem tampouco embarcar na ingenuidade em se acreditar que ao

54 Cf. BUSATO, Paulo; MONTES HUAPAYA, Sandro. Introdução ao direito penal: fundamentos para um sistema penal democrático. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 59.

55 Vide, neste sentido, ROXIN, op. cit., 1997. p. 65.56 Cf. Ibid. p. 66. O mesmo raciocínio é exposto no estudo intitulado O que comportamentos pode o Estado

proibir sob ameaça de pena? Sobre a legitimação das proibições penais. In: ROXIN, Claus. Estudo de direito penal. Trad. de Luis Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 52.

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Direito Penal cabe uma função pedagógica, justamente quando esta função cabe a outras esferas de controle social como família, escola, universidade. Para fins pedagógicos deve-se recorrer a outras esferas menos gravosas que o Direito Penal.57

Nada obstante, a realidade normativa – especialmente a brasileira – destoa completamente do plano ideal, com o que as garantias conquistadas ao longo de centenas de anos estão sendo corroídas pelo Direito Penal moderno. Aduzem BUSATO e MONTES HUAPAYA que o “Direito Penal carregado de inconsistências e de constantes fricções que dificultam o conhecimento das garantias surgidas no iluminismo e que se traduzem em princípios de direito material e inclusive processual”58, de modo que ao Direito Penal – equivocadamente, mas em diversos dispositivos normativos da legislação brasileira – é dada a função de “responder às mudanças sociais” 59.

3.3 A UTILIZAçãO EMERGENCIAL DO DIREITO PENAL E DO PROCESSO PENAL TAMBÉM REVELA UM FLAGRANTE DESRESPEITO à FINALIDADE DA PENA, VEZ QUE RELEGA A UM SEGUNDO PLANO QUALQUER FINALIDADE DESTA

Muito embora exista dispositivo normativo (Art. 59, Código Penal brasileiro) que determine ser a pena aplicada com espeque na necessidade e suficiência de reprovação e prevenção do crime, as teorias da pena ocupam desde tempos remotos o campo de conhecimento do Direito Penal. Não é esta a sede apropriada para se inserir digressão a respeito dos fins da pena, devendo ser lembrado apenas que se classificam (em maior ou menor meio), em reprovação, prevenção especial (negativa e positiva) e prevenção geral (negativa e positiva).60

57 Cf. BUSATO; MONTES HUAPAYA, op. cit., p. 34.58 Ibid.,p. 35.59 Ibid., p. 35.60 Vide, neste sentido, ROXIN, op. cit., 1997. p. 78-111; SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 2.

ed. Curitiba: ICPC, 2007. p. 453-466; NUCCI, Guilherme de Souza. Individualização da pena. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 52-87; NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral e parte especial. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 394-405; BUSATO, Paulo César; HUAPAYA, Sandro Montes. Introdução ao direito penal: fundamentos para um sistema penal democrático. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 173-254. Para uma visão crítico-criminológica sobre as teorias e finalidades da pena vide a recente obra de BOZZA, Fábio da Silva. Teorias da pena: do discurso jurídico à crítica criminológica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. Interessantes críticas às teorias da pena também podem ser vistas na recente obra de BUSATO, Paulo. Direito penal: parte geral. São Paulo: Atlas, 2013. p. 806 e seguintes, cabendo asseverar os seguintes trechos: “Afinal, se a função primordial do Estado é a manutenção do controle social, essa é a função pela qual o Estado faz uso da pena no controle das situações mais graves. A resposta à pergunta “por que se pune?” está na expressão “se pune para manter o controle social, que é tarefa primordial do Estado. [...] Assim, a finalidade da pena não é mais do que manter o controle social do intolerável, através da proteção seletiva de bens jurídicos. Tudo o mais, o sentido de castigo da retribuição, a ideia de cura expressa na ressocialização, a ameaça coercitiva e a motivação à norma são impressões provocadas como efeito da atuação no sentido de preservação do controle social.” BUSATO, Paulo. Direito penal: parte geral. São Paulo: Atlas, 2013. p. 810.

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Contudo, de forma independente à filiação a determinada corrente acerca da finalidade da pena, lugar comum é que a pena não se resume a um fim em si mesmo61 e, diante disso, deve sim pretender-se uma finalidade para além dela. Tal consecução, sequer no plano ideal, não ocorre ao ser estruturada a política criminal de um Estado por meio do Direito Penal e do processo penal de emergência, posto que não se adentra à finalidade da pena, mas sim ao uso desmesurado, inconsequente e não direcionado a ressocializar o condenado nem tampouco passa pelo crivo de impor maior respeitabilidade à ordem jurídico-penal (prevenção geral positiva).

3.4 TRATAM-SE, COM O DIREITO PENAL, AS CONSEQUêNCIAS DO DELITO E NãO AS CAUSAS

O Direito Penal e o processo penal de emergência tratam – por meio do uso inconsequente e realmente emergencial do Direito Penal – apenas das consequências do delito e não de suas causas. Sabe-se que o mero aumento de pena ou a nova tipificação de crimes não é o caminho suficiente ou ainda adequado para a diminuição da criminalidade. As causas do delito não estão na ausência de condutas tipificadas, mas sim em tantos estudos e fundamentos já expostos pela Criminologia. Assim, a emergência no uso do Direito Penal e do processo penal, para além de tantas outras consequências negativas, cumpre a tarefa de apenas cuidar das consequências do delito e não das causas, tornando a utilização do Direito Penal em algo inócuo e redundante. A este fenômeno outorga Hassemer o adjetivo de direcionismo, porquanto “a política criminal moderna se caracteriza por estas tendências: desde há algum tempo, não trata de descriminalizar ou, pelo menos, de atenuar as penas, senão de criar novos delitos ou agravar as penas daqueles já existentes”62.

3.5 DESRESPEITAM-SE, SOB A ÉGIDE DE COMBATE EFICAZ AO CRIME, DIVERSOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS CAROS AO CONVÍVIO SOCIAL E OBTIDOS POR MEIO DE CONQUISTAS SOCIAIS E CONSTITUCIONAIS

O risco de se menosprezarem garantias individuais ao ser aplicados o Direito Penal e processual penal de emergência é, de tão óbvio, quiçá desnecessário em ser demonstrado. Em relação a este pormenor assevera Bechara63:

61 Cf. ROXIN, op. cit., p. 81-82.62 HASSEMER, op. cit., p. 88.63 BECHARA, Ana Elisa Liberatore S. “Caso Isabella”: violência, mídia e direito penal de emergência.

Boletim IBCCRIM, São Paulo. n. 186, p. 17, maio 2008.

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Essa sensação de segurança, substancialmente aumentada pela imprensa, converte-se em uma pretensão social a que o Estado, por meio do Direito Penal, deve fornecer uma resposta. Assim, frente aos movimentos sociais clássicos de restrição do Direito Penal, aparecem cada vez mais demandas de uma ampliação da proteção penal que ponha fim, ainda que nominalmente, à angústia da insegurança coletiva. E tal aspiração de uma coletividade que se autocompreende antes de tudo como vítima conduz à rejeição de formas e procedimentos. De fato, ao estruturar-se tal demanda social, nem sequer importa que seja preciso modificar as garantias clássicas do Estado Democrático de Direito. Ao contrário, referidas garantias, dentre as quais destacam-se os próprios princípios penais fundamentais e os elementos da teoria geral do delito, relevam-se, no novo contexto, como demasiadamente rígidas, opondo-se, assim, à solução efetiva dos casos concretos.

3.6 DESRESPEITA A NOçãO DE SISTEMA JURÍDICO OU AINDA DE SISTEMA JURÍDICO-PENAL

Tem-se, ademais, que a “ganância simbólica, na qual as garantias constitucionais e penais consagradas sucumbem às razões do Estado, que pretende impor o combate ao crime a qualquer custo, tem um alto custo, comprometendo a própria credibilidade do Direito Penal enquanto sistema”64, principalmente porque se utiliza o poder punitivo estatal (criando-se tipos e regras absurdas) em contrariedade a princípios e regras (na maioria das vezes constitucionais) gerando antinomias, o que por si só é uma evidente incongruência.

3.7 RELEGA-SE, ADEMAIS, AO DIREITO PENAL, UMA FUNçãO QUE NãO LHE É PRóPRIA

O Direito Penal e processual penal quando chamado para resolver algo que não é de sua alçada falha e entra em descrédito para com a população, tal como evidencia com propriedade Sergio Moccia:

também do ponto de vista global do controle repressivo, os resultados deixam a desejar, a exigência de uma inversão brusca de tendência faz-se imperiosa. A verdade é que o sistema penal, quando é chamado a resolver problemas fora de sua alçada, está destinado a falhar, com a desagradável consequência de perder credibilidade também naqueles setores em que poderia adimplir eficazmente a sua função.65

64 BECHARA, op. cit. É da mesma autora a afirmação: “Ora, se, na linha funcionalista, o Direito Penal cumpre a função de garantir a estabilidade da ordem jurídica, não se pode aceitar um emaranhado de leis desproporcionais, incoerentes e excepcionais ao próprio ordenamento jurídico penal e constitucional, sob pena de macular a manutenção desse sistema normativo.”

65 MOCCIA, Sergio. Emergência e defesa dos direitos fundamentais. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 7, n. 25, p. 88, jan./mar. 1999.

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3.8 A ATRIBUIçãO DE VALOR MERAMENTE SIMBóLICO66 AO DIREITO PENAL

Salienta Hassmer que “a gravidade do sistema penal e suas consequências não se coaduna com a utilização meramente simbólica do Direito Penal”67, sendo que

quanto mais pretensiosamente forem formuladas as teorias dos fins da pena (ressocialização do criminoso, intimidação das pessoas propensas ao crime, afirmação das normas fundamentais da sociedade), mais evidente será o seu conteúdo simbólico: eles (os fins da pena) almejam, mediante o emprego instrumental das normas penais (como que às expensas desta práxis), a difusão comunicativa (cognitiva e emotiva) da mensagem de uma vida conforme ao Direito.68.

Eis um traço marcante do Direito Penal moderno, ou seja, a “difusão simbólica de uma vida conforme ao direito por intermédio do emprego instrumental do Direito Penal”69, e a demonstração de que o “controle social pelo Direito Penal não passa de uma ilusão”.70

Como exemplos concretos que refletem a tensão entre o caráter real (manifesto) e o caráter latente (simbólico) podem ser citadas as Leis Maria da Penha (Lei 11340/2006), as mais recentes inovações na legislação de trânsito (Lei Seca – Lei no 9.503/97 c/c Lei no 1.2760/2012), o regime disciplinar diferenciado (RDD – Lei no 7.210/84 c/c Lei no 10.792/2003), a Lei dos crimes hediondos (Lei no 8.072/90), o estatuto do desarmamento (Lei no 10.826/2003) e, em caráter recentíssimo, a Lei no 12.737/2012, popularmente e inadvertidamente intitulada de “Lei Carolina Dieckmann”.

O simbolismo do Direito Penal é claramente demonstrado por recentes decisões oriundas do Supremo Tribunal Federal. Criada a Lei no 8.072/90, o Supremo Tribunal Federal demorou cerca de 17 anos para declarar inconstitucional o inciso I do Art. 2º da citada Lei. Ato seguido o Congresso Nacional editou a Lei no 11.464/2007, a qual previu a

66 “El denominado <<derecho penal simbólico>> constituye un caso de superación del los limites utilitarios que el principio teleológico de la sanción penal marca a la intervención penal. Se caracteriza de modo general porque se producen a través de la pena efectos sociopersonales expresivo-integradores que carecen de legitimidad no por su naturaleza, sino porque no se acomodan a las decisiones políticocriminales que fundamentan la pena. Ello sucederá si los mencionados efectos satisfacen objetivos que no son necesarios para mantener el orden social básico, si centran su incidencia sobre objetos personales que no son los decisivos en la lesión o puesta en peligro de los bienes jurídicos, o si, finalmente, su contenido no guarda relación con las necesidades de control social a satisfacer con la reacción penal.” DÍEZ RIPóLLES, José Luis. Política criminal y derecho penal: estudios. Valencia: Tirant lo Blanch, 2003. p. 82.

67 HASSEMER, Winfried. Direito penal: fundamentos, estrutura, política. Porto Alegre: S. A. Fabris, 2008. p. 210.

68 Ibid., p. 210.69 Ibid., p. 21770 Ibid., p. 227.

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possibilidade de progressão de regimes aos delitos considerados hediondos, muito embora a quantidade de pena a ser cumprida pelo condenado seja diferente da comumente cumprida diante do cometimento de delitos não considerados hediondos.

Curiosamente, nos dias atuais, o Supremo Tribunal Federal, justamente em razão de sua tardia decisão em declarar inconstitucional a vedação legal trazida originariamente com a Lei no 8.072/90 de não se permitir a progressão de regime de cumprimento de pena pelo cometimento de delitos considerados hediondos, passou a deferir e determinar que o quantum de pena a ser cumprido para ser admitida a progressão de regime por delitos hediondos cometidos antes de 2007 é de apenas um sexto da pena71. Não se está a considerar isoladamente como positiva a alteração legal de 2007 (estipulação de dois quintos ao réu primário e de três quintos ao réu reincidente), mas apenas de evidenciar os efeitos deletérios de um sistema equivocado e claramente simbólico.

No ano de 1990, após acontecimentos que ganharam espaço na mídia, foi editada a Lei no 8.072/90 com o intuito populista e enganoso de endurecimento no tratamento da criminalidade. Muito embora tamanho o absurdo da vedação de progressão de regime, o Supremo Tribunal Federal referendou a constitucionalidade das normas “hediondas” até o ano de 2007 quando, em lampejo de lucidez, as declarou (não todas, obviamente) inconstitucionais. O preço foi alto e o pagamento, imediato. Ainda que diante de delitos gravíssimos, o Supremo Tribunal Federal se viu obrigado a deferir a progressão de regime para delitos hediondos após o cumprimento de um sexto da pena. Tivesse sido tomada atitude contrária, mas consentânea com princípios penais constitucionais72, pelo legislador ou ainda pelo guardião da Constituição, não se teria nos dias atuais a incongruência de decisões tais como as apontadas.

CONCLUSÃO

Frente ao exposto não há outra conclusão senão a de se propugnar por um total rechaço ao denominado Direito Penal e processual penal de emergência. Não há outra saída senão a reflexão sobre a finalidade, âmbito de incidência e características do sistema penal73 para se chegar à reafirmação das garantias e direitos individuais, sem os quais qualquer enfrentamento do problema criminal estará fadado ao insucesso.

71 Vide, por exemplo, o julgamento do Recurso Extraordinário n. 579167, de relatoria do Exmo. Sr. Ministro Marco Aurélio de Mello. Maiores notícias. Disponível. em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=238684>. Acesso em: 20 jun. 2013.

72 Sobre o tema e sua importância vide NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios constitucionais penais e processuais penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

73 Cf. MOCCIA, op. cit.

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Moccia salienta que “legitimidade e efetividade devem, portanto, caminhar juntas, iluminadas pela ideia de subsidiariedade que, no estado social de direito, impõe o recurso ao sistema penal somente como extrema ratio e respeitando todas as garantias estabelecidas.”74

Outrossim, tem razão Choukr75 ao afirmar a incoerência do pensamento derivado da dicotomia liberdade individual versus segurança social, justamente por se ancorar sobre base frágil, inconsequente e paradoxal. A segurança da sociedade tem sim a ver com a liberdade individual e em escala diretamente proporcional. Quanto mais a segurança social for pensada de forma perene e condizente com as liberdades individuais, melhores serão seus efeitos. Do contrário, as incongruências e consequências deletérias terão mais espaço na sociedade brasileira.

Em sendo uma discussão, em últimos termos, de poder, pode-se concluir com a noção trazida por Zaffaroni há quase 15 anos, mas aplicável aos dias atuais como se estivesse sido redigida ontem e que reitera a necessidade de o âmbito acadêmico não descurar do cuidado em reafirmar os valores constitucionais:

Frente a esto, cabe preguntarse cuál es nuestra función, es decir, la del segmento académico del sistema penal, o sea, como agencia ideológica del mismo. Sin duda que la respuesta se plantea en el marco de poder. En ese marco, como académicos sólo disponemos del poder del discurso.

Aunque su dimensión sea aparentemente limitada, por cierto que no se trata de un poder menor: sin discurso no se puede ejercer el poder. Por consiguiente, la conclusión elemental de esta ecuación es que debemos poner en juego nuestro poder discursivo contra esta tendencia y en defensa del Estado de Derecho. En la medida en que la doctrina deslegitime esta tendencia y deje sin discurso al poder, éste deberá buscar – como todo poder irracional – discursos de niveles más irracionales y, por ende, menos creíbles.

Traicionamos nuestra misión reforzadora del Estado de Derecho en la medida en que renunciarnos a un discurso que deslegitime esta tendencia o en que pretendamos racionalizar sus desatinos. Los legisladores parecen hallarse en una encrucijada que los lleva a incentivar la demagogia vindicativa y represiva y a abjurar de los principios rectores del Derecho Penal liberal: nuestra tarea es la de postular la inconstitucionalidad de esta tendencia. El Derecho Penal liberal no necesita hoy derivarse de la razón (como en tiempos de Carmignani o Carrara) sino que halla positivizados sus postulados en los instrumentos constitucionales e internacionales.”76

74 MOCCIA, op. cit.75 CHOUKR, op. cit., p. 10-11.76 ZAFFARONI, op. cit., p. 618-619.

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RESUMO

O texto apresenta, de forma sintética, os principais argumentos desenvolvidos pelo jurista norte-americano, Ronald Dworkin, a respeito do aborto e suas implicações face às liberdades individuais. Isso pressupõe incursões nos âmbitos político, religioso e moral. Dessa forma, efetuou-se uma síntese sobre tais reflexões visando uma contextualização com os âmbitos social e jurídico do Brasil.

Palavras-chave: Aborto. Religião. Direito. Interpretação Constitucional.

ABSTRACT

The text presents, in a brief way, the main arguments developed by the american jurist Ronald Dworkin regarding abortion and its implications in the face of individual liberties. This presupposes incursions in the political, religious and moral range. In this way, a synthesis on those reflections was carried out aiming for a contextualization with the Brazilian social and legal ranges.

Keywords: Abortion. Religion. Law. Constitutional interpretation.

O PROBLEMA DO ABORTO FACE AO DIREITO, MORAL E RELIGIÃO

ThE ISSUE OF ABORTIOn BEFORE ThE LAw, MOnALITy AnD RELIGIOn

Luiz Henrique Urquhart Cademartori1

1 Doutor em Direito Público pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor do curso de Mestrado e graduação em Direito da Universidade do Vale do Itajaí UNIVALI; consultor do INEP e SESu – MEC para avaliação de cursos de direito no território nacional; autor de obras e artigos sobre Direito Público. E-mail: [email protected].

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A questão, recorrentemente polêmica, sobre a interrupção voluntária da gravidez envolve, além de inúmeros casos e circunstâncias, enormes dificuldades quanto ao seu tratamento pelo Direito. As razões disso decorrem não somente da complexidade de suas implicações, mas também da extrema relevância do valor intrínseco que tal problema encerra, qual seja, o da própria vida em toda a sua dimensão existencial.2

Com respeito a um problema de dimensões e decorrências tão amplas como é o caso do aborto, o presente artigo não pretende tratar da questão de forma analítica, isto é, tecendo considerações sobre cada uma das situações específicas nas quais se possam analisar os seus prós e contras. O que se objetiva é tratar da questão a partir de um aspecto que lhe é mais subjacente, qual seja, o do valor da vida e suas implicações moral, religiosa, política e constitucional. Isso poderá redundar na construção de parâmetros mais seguros, visando equacionar o papel do Estado e do Direito face ao tema do aborto e da religião.

Para tanto, o embasamento teórico a ser utilizado estará fundamentalmente apoiado nas reflexões de Ronald Dworkin3 a respeito do aborto e seu tratamento face às liberdades individuais. A escolha desse autor decorre, entre outras razões, da sua peculiar forma de tratar do tema, com atualidade e acuidade suficientes como para construir um sofisticado posicionamento, o qual, embora assuma um dos polos da questão, mostra-se igualmente respeitoso com relação aos variados e antagônicos posicionamentos ideológicos e morais sobre o aborto.

Destaque-se, entretanto, que a análise aqui empreendida procederá a um recorte teórico da citada obra, com base em critérios próprios tidos como os mais relevantes sobre as opiniões de Dworkin, sem se prender de forma linear a todo o conjunto de ponderações que o autor constrói ao longo de toda a obra.

Inicialmente, cabe considerar dois argumentos básicos que Dworkin esquematiza como parâmetros de posicionamentos contrários ao aborto4: o primeiro deles afirma que o aborto é errado, como linha de princípio, pelo simples fato de estar violando o direito

2 No ordenamento jurídico brasileiro, o aborto é regulamentado nos arts. 124 a 128 do Código Penal, sendo que recentemente outro acontecimento desencadeou uma nova discussão a tal respeito, com a propositura de ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental (no caso, os dispositivos atacados são os do Código Penal) pela Confederação Nacional de Trabalhadores da Saúde. Em julho de 2004, tal ação foi acolhida liminarmente pelo Supremo Tribunal Federal, autorizando a interrupção da gravidez em caso de anencefalia cerebral do feto.

3 A obra guia que conduzirá todas estas reflexões é: DWORKIN, Ronald. Domínio da vida. São Paulo: M. Fontes, 2003. Salienta-se, também, que são dois os temas centrais da obra: aborto e eutanásia, sendo que o segundo, por fugir ao escopo do presente artigo, não será aqui tratado.

4 Ibid, p. 12-14.

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de alguém a não ser morto; tal como matar um adulto ser igualmente errado na medida em que se viola o direito à vida.

Essa objeção ao aborto é chamada pelo autor de objeção derivativa, pelo fato de que ela pressupõe direitos e interesses que todos os seres humanos têm, incluindo-se aqui, os fetos. Esse posicionamento leva, então, ao entendimento de que o governo deveria proibir ou, no mínimo, regulamentar os casos de aborto por ter uma responsabilidade que, além de dizer respeito à vida dos seus cidadãos, é derivativa com relação ao feto.

A segunda objeção radicaliza o seu posicionamento afirmando que a vida humana possui um valor intrínseco e inato, sendo sagrada em si mesma. Assim, a sacralidade da vida começaria quando a vida biológica se iniciasse, vale dizer, antes mesmo de que a criatura à qual essa vida é intrínseca possa ter movimentos, sensações, interesses ou direitos próprios.

Nessa linha de entendimento, o aborto seria errado por desconsiderar e insultar o valor intrínseco e sagrado de qualquer estágio ou forma de vida humana. Essa objeção é chamada de independente, precisamente por não depender de nenhum interesse ou direito em particular nem sequer os pressupor.

Essas duas objeções podem ser problematizadas nos seguintes termos: começando--se com a segunda objeção, a dificuldade inicial em aceitá-la reside no próprio radicalismo do seu argumento, a tal ponto que, levantamento estatístico mostrado pelo autor, revela que, nos Estados Unidos, apenas 10% dos entrevistados, em pesquisa realizada pela Time/CNN, em agosto de 1992, afirmam que o aborto deve ser ilegal em qualquer circunstância.

Com efeito, caso se considere o contexto brasileiro, tal argumento é ainda mais restritivo e politicamente conservador que a própria legislação penal sobre o tema (a qual é criticada em sua totalidade, como defasada, pela maioria dos juristas), vez que esta ainda permite casos de aborto em situações específicas, tais como risco de vida para a mãe, ou gravidez que tenha sido fruto de estupro.

Em linhas gerais, se toda vida humana, inclusive aquela de quem virá a se tornar um ser humano é incondicionalmente intocável, em uma linha de raciocínio igualmente extrema, institutos como o da legítima defesa acarretariam uma contradição lógica insolúvel na medida em que não posso tirar a vida de outrem para me defender, uma vez que ela é sagrada; mas, ao não fazê-lo, acabo tirando a minha própria vida igualmente sagrada.

Por essas razões, resulta discussão mais proveitosa a respeito da primeira objeção (derivativa), inclusive por ser ela a que, majoritariamente, é levada em consideração ao tratar do aborto e dos direitos e interesses envolvidos na sua regulamentação, proibição ou permissão.

Adentrando, então, na discussão desse ponto de vista, o questionamento preliminar é do de saber se um feto tem direitos e interesses, principalmente o de não ser destruído a partir da sua concepção. Para Dworkin, essa ideia resulta extremamente problemática.

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Primeiramente, o autor ressalta que nem tudo o que pode ser destruído tem interesses em contrário. Nessa linha de argumentações a ser desenvolvida, as concepções são tecidas de forma mais abrangente e, aparentemente, arbitrária, entretanto, Dworkin produzirá um jogo de aproximações, partindo de coisas e chegando aos seres humanos, visando assim, situar melhor a ideia de interesses pela vida.

Para tanto, inicia seu argumento constatando que uma bela escultura poderia ser despedaçada, constituindo uma grave ofensa ao seu valor intrínseco que grandes obras carregam, afetando o interesse (aqui sim) das pessoas que se comprazem em admirar ou estudar ditas obras, mas isso não significa que a obra em si mesma tivesse, em algum momento, interesses contrários à sua destruição.

Mas mesmo aquilo que é vivo, ou se encontra em processo de transformação em algo mais amadurecido, também não terá interesses próprios, tal como um broto de cenoura colhido antes da sua maturação para ser servido como uma iguaria, ou mesmo uma borboleta, o fato de ser mais bela que uma lagarta não faz com que essa última tenha algum interesse em transformar-se em borboleta.5

Considerando, agora, seres humanos, nesse caso também se torna difícil afirmar que para que algo tenha interesses, seja suficiente que – em um sentido indiscriminado – ele possa se desenvolver até tornar-se um ser humano. Para melhor ilustrar este caso, o autor desenvolve o seguinte exemplo: imagine-se que os médicos fossem capazes de produzir uma criança a partir de um óvulo não fertilizado, por partenogênese. Nesse caso, a menstruação estaria contrariando os interesses do óvulo? Nessa mesma linha de entendimento, uma mulher que usa anticoncepcionais estaria violando, todos os meses, o direito fundamental de uma criança em formação?

Em suma, segundo Dworkin, para que algo tenha interesses, não é suficiente, sequer, que esteja em vias de transformar-se em um ser humano, ou melhor dizendo, não em qualquer circunstância. Em realidade, o aspecto fundamental é que tenha ou tenha tido, alguma forma de consciência, no sentido de algum tipo de vida mental e de vida física.

Portanto, toda criatura capaz de sentir dor tem interesse em evitá-la. Por exemplo, é contrário aos interesses dos animais a sua submissão à dor quando apanhados em armadilhas ou quando submetidos a dolorosas experiências científicas.

De igual modo, infringir dor a um feto que já possui um sistema nervoso desenvolvido contraria frontalmente seus interesses e aqui, a despeito de toda a gama de pesquisas sobre

5 DWORKIN, op. cit., p.19-20.

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conexões neuronais e sua fluência nos receptores nervosos do feto, embora a ciência não possua, ainda, dados suficientes sobre o exato momento em que tais conexões nervosas ocorrem, há certezas de que isso se produz depois de transcorrido metade do período de gestação. Tal constatação serve, por seu turno, como parâmetro para a fixação de limites éticos e jurídicos para a interrupção da gravidez, a partir de tal período.6

Ainda assim, há muito que se argumentar com respeito a tal possibilidade. Para tanto, Dworkin desenvolve suas ponderações com base em casos concretos, no âmbito da jurisprudência norte-americana, como é, aliás, o seu estilo de fundamentação teórica. É de se frisar que o fato de que tais argumentos e casos se situem em âmbito estrangeiro não impede a sua aproximação e contribuição no tratamento de tal tema no contexto do Brasil.

Com efeito, o que se irá salientar sobre tais decisões não serão os seus aspectos processuais ou demais meandros formais, bastante diversos – na common law e no modelo continental europeu que o Brasil adota –, mas sim o conteúdo dos problemas apresentados e os padrões de argumentação que deles decorrem sempre sob um enfoque de ponderação material, o que, pelo que se observará, pode ser transposto para a realidade jurídica e moral brasileira.

O primeiro caso em análise é Roe vs. Wade de 1973: é com base nele que o juiz Blackmun sentenciou que uma mulher grávida tem direito constitucional específico à privacidade em questões de procriação, e tal direito inclui o direito ao aborto, desde que ela e seu médico optem por fazê-lo. É importante frisar que Blackmun também deixou claro que as razões de um estado capazes de anular tal direito, tornando o aborto um crime, não são inexoráveis até o sexto período de gravidez.

Portanto, o Estado (ou um dado estado-membro da federação norte-americana) não poderia proibir o aborto até a chegada desse período. Ainda nesse caso, o voto divergente foi proferido pelo juiz Rehnquist, ao entender que as mulheres não têm direito constitucional específico sobre o controle da própria reprodução. Segundo ele, as mulheres têm, tão somente, interesse de liberdade.

Nessa medida, tal interesse torna-se fortalecido apenas para tornar inconstitucional qualquer lei que proíba o aborto, quando este for necessário para preservar a vida da mãe. Entretanto, declarou também que são legítimos os objetivos pelos quais um estado deve lutar pela proibição do aborto, mesmo que movido por outras razões, ainda que se trate de casos envolvendo fases iniciais da gravidez e, nessa medida, a decisão estatal de proibir o aborto, não seria irracional.

6 DWORKIN, op. cit. p. 21-22.

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No que diz respeito à decisão de Blackmun, várias sentenças anteriores da Suprema Corte já haviam estabelecido que uma pessoa tem direito constitucional específico para tomar decisões próprias em questões relativas à procriação. Um caso paradigmático a respeito dessa questão foi Griswold vs. Connecticut de 1965, no qual o tribunal decidiu que o Estado não pode proibir a venda de anticoncepcionais a pessoas casadas e, em sentenças posteriores, tal liberdade foi estendida a pessoas solteiras. Para esse último caso, o juiz Brennan, em Einsenstad vs. Baird de 1972, pronunciou-se no sentido de que: se o direito à privacidade significa alguma coisa, trata-se do direito do indivíduo, casado ou solteiro, de estar livre da intrusão do governamental em questões que afetam tão profundamente uma pessoa, como é o caso da decisão de ter um filho e poder criá-lo.

É, precisamente, com base nesses últimos argumentos que Dworkin entende correta a decisão de Blackmun, pois, uma vez que se considerem sentenças tais como a do caso Griswold vs. Connecticut como válidas, decorrerá disso que as mulheres têm, efetivamente, um direito constitucional à privacidade, o qual inclui a decisão não apenas de conceber ou não seus filhos, como também a decisão de tê-los ou não.

Assim é que, decisões sobre a privacidade justificam-se partindo do pressuposto de que as decisões que afetam o casamento e o nascimento dos filhos são, a tal ponto, íntimas e pessoais que as pessoas devem ter a liberdade suficiente de tomar tais decisões com base nas suas próprias convicções, ao invés de permitir que a sociedade – via atuação estatal – lhes imponha uma decisão coletiva.

Da mesma forma, decisões sobre aborto são tão pessoais quanto quaisquer outras decisões sobre o direito à privacidade que os tribunais tenham protegido. Nesse último caso, seria ainda maior o grau de privacidade envolvendo tais decisões na medida em que ela diz respeito não apenas às relações sexuais da mulher, como também às mudanças que se verificam no seu corpo e, nesse caso, a Suprema Corte também já reconheceu, de diversas maneiras, a importância da integridade física.

Com isso, Dworkin quer dizer que, sob tal abordagem, não é possível diferenciar o aborto da contracepção. Em realidade, parece impossível diferenciar, coerentemente, inclusive do ponto de vista médico, o aborto de alguns casos mais comuns de contracepção, posto que os contraceptivos mais eficientes e seguros, vale dizer, os dispositivos intrauterinos e as pílulas anticoncepcionais, agem como abortíferos, ao destruir os óvulos fertilizados.

A despeito de toda essa discussão sobre os argumentos judiciais travados nos casos antes apresentados, Dworkin chama a atenção para o que realmente polarizou o debate acadêmico travado em torno da sentença do caso Roe vs. Wade, o qual está centrado nos argumentos sobre qual a correta interpretação constitucional, do juiz Rehnquist ou do juiz Blackmun.

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Em termos mais precisos, os defensores do posicionamento de Rehnquist concordam com a sua afirmação de que a Constituição, de fato, não contém nenhum preceito específico sobre a liberdade de escolha em caso de aborto, e que Blackmun simplesmente inventou tal direito, afirmando que o teria encontrado na Constituição.

A esse respeito, Dworkin posiciona-se a favor do argumento de Blackmun, afirmando que a Constituição realmente protege tal direito, sendo que a fundamentação da sua opinião demanda uma análise sucinta sobre o papel da Constituição e sua correta interpretação na visão do autor.7

O ponto central da divergência de Dworkin, com posicionamentos tais como os de Rehnquist, reside no fato de que a Constituição está estruturada fundamentalmente em princípios e não em regras precisas e textualmente exaustivas, como também é o caso da Constituição brasileira (quanto aos direitos individuais, coletivos, difusos, políticos, culturais e econômicos, por exemplo), embora essa também possua regras. Ocorre que, ao tratar--se de princípios, a precisão dos termos da lei que informam seu conteúdo devem ceder espaço às concepções valorativas que informam as razões dos princípios para cada caso em que tais standards do campo da moral (e esta é a concepção de princípios prevalente em Dworkin) sejam considerados adequados, em um jogo de equilíbrio entre decisões judiciais precedentes e a moral institucional vigente.

Nos termos de Dworkin, isso significa que qualquer interpretação da Constituição deve ser procedida e testada com base em duas dimensões ao mesmo tempo amplas e correlatas, sendo a primeira delas a da adequação. Ou seja, uma dada interpretação constitucional deve ser rejeitada se as práticas jurídicas concretas forem totalmente incompatíveis com os princípios jurídicos que tal interpretação recomenda. Isso equivale a dizer que, o ponto de apoio da correta interpretação deve estar fundado na prática jurídica real.

A segunda dimensão corresponde à da justiça nos seguintes termos: quando duas concepções diferentes sobre a melhor interpretação de certo dispositivo constitucional passarem no teste de adequação, já mencionado, deve-se dar preferência àquelas cujos princípios parecem refletir melhor os direitos e deveres morais das pessoas (ou seja, as convicções de direito e justiça compartilhadas pela comunidade política), pois a Constituição é uma afirmação de ideais morais abstratos os quais, cada geração deve interpretar por si

7 Para tanto, resumiu-se algumas das ideias centrais sobre interpretação constitucional inscritas nas obras: DWORKIN, Ronald. Los derechos en serio. Barcelona: Ariel, 1984, p. 209-233; DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: M. Fontes, 2000, p. 43-80, além da obra central para este estudo: DWORKIN, Ronald. Domínio da vida. São Paulo: M. Fontes, 2003. p. 154-163.

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mesma, são independentes da vontade originária e descontextualizada de cada legislador constituinte. Em outros termos, pode-se dizer que cada cláusula constitucional revela-se abstrata ao seu modo, posto que cada uma delas desenvolve um uso de conceitos alheios à linguagem jurídica, bem como aos demais ramos das ciências sociais, tais como economia ou qualquer outro. O uso efetivo é o moral e político, correntes no meio social.

Por essa razão, expressões, como “liberdade”; “autodeterminação” “crueldade” ou “igualdade”, consideradas em abstrato, tornam-se por demais amplas. Quando essas expressões se consideram no seu sentido literal, segundo Dworkin, elas assumem o sentido de que o governo trate a todos os que se encontram sob o seu domínio, com igual consideração e respeito, o que equivale a não infringir as suas liberdades mais básicas.

Essa linguagem princípio-lógica está estruturada de forma abrangente, em duas das principais fontes de reivindicação dos direitos fundamentais da cultura ocidental, quais sejam: igual consideração e liberdades básicas, ou nos termos do juiz Cardozo no caso Palko vs. Connecticut, de 1937, “à ideia mesma de liberdade com ordem”.

Em linhas gerais, pode-se dizer que a teoria da interpretação de Dworkin não se desenvolve exclusivamente nos planos da sintaxe e semântica dos termos da lei e isso se revela crucial nos casos que envolvem os chamados “conceitos indeterminados” os quais predominam nos direitos fundamentais tais como liberdade, dignidade ou igualdade, por exemplo.

O sentido de tais expressões não se resolve, na visão do autor, por meio de operações lógicas no seu interior e sim sob um modelo pragmático o qual se remete diretamente ao uso social e contextual de cada expressão. Em resumo, o problema a ser tratado pela interpretação da lei não diz respeito tanto a conceitos da linguagem mas sim às concepções sociais sobre eles.

É por essa razão que nenhuma técnica interpretativa sobre o uso correto do idioma é capaz de explicar a suposta diferenciação entre direitos constitucionais explícitos ou, taxativamente enumerados e os chamados direitos “implícitos”. Isso porque os direitos fundamentais se baseiam em princípios amplos e abstratos de moral política cuja correta interpretação e aplicação dependem de percepções morais e não de usos linguísticos. Também por essa razão é que a distinção entre direitos específicos, explicitamente enumerados e os que não o são, torna-se, então, irrelevante.

Apesar da aparente simplicidade dessa explicação, Dworkin reconhece que em muitos casos constitucionais, torna-se difícil decidir se alguma interpretação proposta pode atender o critério da adequação, correspondente à primeira dimensão interpretativa proposta por ele, ou seja, em termos de adequação da correspondência do caso em questão, com a prática e a história jurídica visando à aprovação no teste desta dimensão.

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Entretanto, no caso Roe vs. Wade, a decisão, nesses termos, não resulta difícil. Ocorre que a alegação que tanto o juiz Blackmun como todos os demais rejeitaram, a de que o feto seria uma pessoa constitucional, é facilmente descartável na medida em que é frontalmente contestada pela história e prática judicial norte americana.

A esse respeito, cabe destacar que o conceito de “pessoa” como status a ser conferido a um feto, por exemplo, revela-se extremamente difuso, dificultando sua explicitação a respeito dos diversos âmbitos dos quais se deseja aproximá-lo, já seja o científico, filosófico, religioso ou jurídico.

No caso em apreço, a 14ª emenda da Constituição norte-americana determina que nenhum estado negará a nenhuma pessoa a igual proteção da lei, mas não há nenhuma remissão ao feto como tal. No caso do Direito brasileiro, essa questão também não é tratada nesses termos, na Constituição, remetendo-se ela à Lei Civil.

Assim, o Art. 2º do Código Civil afirma que, embora a personalidade civil da “pessoa” comece com o seu nascimento com vida, confere-se o direito à vida ao nascituro.

Portanto, também aqui não há uma declaração de status de pessoa ao feto, mas por uma espécie de ficção da lei, o nascituro tem o seu direito resguardado. O problema de tal determinação legal é o de que ela se encontra muito mais voltada a uma dimensão religiosa do que moral ou de direito, nos termos a seguir explanados.

Segundo Dworkin, certas pessoas, por motivos teológicos, entendem que, no momento da concepção, Deus provê ao feto uma alma racional, sendo que ele passa a ter um direito moral à vida. Entretanto, quase a totalidade daqueles que defendem tal ponto de vista (teológico) também admite que não é relevante para a interpretação constitucional, pois esta defende a rígida separação entre Estado e Igreja e, portanto, a laicidade estatal faz com que argumentos doutrinários de cunho religioso não possam ter validade jurídica. Assim, tais pessoas poderiam admitir, mesmo sem abandonar tais convicções religiosas, que o feto não é uma pessoa constitucional.

A partir desse ponto, desenha-se mais nitidamente o desfecho da argumentação de Dworkin a respeito do problema do aborto e sua relação com a interferência estatal face às liberdades individuais, ao circunscrever esta questão referente ao valor da vida em toda a sua complexidade como um valor religioso, embora o sentido de religião necessite de uma melhor explicitação.8

8 Essas digressões remetem-se à DWORKIN, op. cit. p. 208-235.

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Para tanto, o autor coloca como premissa, a afirmação de que a crença da maioria das pessoas no valor inerente à vida humana é uma crença essencialmente religiosa. Se, de um lado, muitos acreditam que as crenças, para ser consideradas de natureza religiosa, devem pressupor a fé em uma divindade pessoal, de outro, algumas formas de budismo e hinduísmo não consideram como base da sua crença a fé em um ser supremo de tal natureza.

Em tal caso, ao descartar-se a ideia de um ser superior e metafísico como fundamento de toda e qualquer crença tida como religiosa, tornam-se necessários outros critérios para classificar uma dada crença como tal. Segundo Dworkin, a resposta para tal problema remete-se a uma classificação menos rigorosa de tais tipos de crenças, e dessa forma, então, uma dada crença será considerada de natureza religiosa ao perguntar-se se ela é semelhante, em conteúdo, às crenças inequivocamente religiosas.

Aqui também se torna relevante evidenciar que certas convicções sobre valores existenciais, tais como o valor intrínseco da vida humana e sua inviolabilidade, por exemplo, serão consideradas como valores religiosos, independente do seu defensor crer em algum deus ou estar filiado a alguma seita ou credo de fé.

Em termos mais precisos e transpondo tais critérios para a crença de que o valor da vida humana transcende seu valor com respeito à criatura de cuja vida se trate e, portanto, que a vida humana é impessoal e objetivamente valiosa, essa revela-se, então, uma crença religiosa, creia ou não em Deus o seu defensor.

É por essa razão que, segundo Dworkin, a religião ou qualquer religião assume a função de responder à mais aterradora característica da vida humana, qual seja, a de que é necessário viver a vida e enfrentar a morte sem razão alguma para acreditar que a própria vida e, menos ainda, o modo de se viver fazem alguma diferença.

O questionamento de natureza existencial sobre o fato de a vida humana ter alguma importância intrínseca ou objetiva já sofreu vários tipos de problematizações teóricas. Mas, no entender de Dworkin, tal questão crucial não pode ser respondida através da observância de certo tipo de código de conduta ou mesmo a partir de uma dada teoria da justiça.

Isso ocorre pelo fato de que não são as respostas a tais questões que irão tornar os seus seguidores pessoas mais seguras, livres, determinadas ou prósperas. Também não são tais condicionantes as que auxiliarão os seus destinatários a cumprirem sua natureza humana, na medida em que o problema da existência é ainda mais profundo, pois perquire o porquê de todas essas indagações.

É por tais razões que se pode, então, estabelecer uma relevante diferença entre as crenças e diversas concepções sobre a importância intrínseca da vida humana e, de outra parte, as convicções de caráter secular sobre moral, equidade e justiça, o que leva à conclusão de que ordens, tais como o Direito, encontram-se alheias a tais questionamentos existenciais.

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A partir de tais constatações, torna-se possível atingir o cerne desta argumentação, vale dizer, a constatação de que âmbitos tais como o da Moral ou Direito referem-se mais a problemas como servir, conciliar ou resolver interesses antagônicos entre pessoas e dificilmente irão refletir concepções particularistas sobre as razões de interesses humanos terem importância intrínseca ou se chegam a possuí-la.

Para embasar tais conclusões, Dworkin remete-se de forma específica e breve ao pensamento de John Rawls9, por ser ele o formulador da teoria de justiça que fundamenta a sua concepção a esse respeito.

Segundo Rawls, tanto a sua como outras teorias sobre a justiça se diferenciam, significativamente, dos – por ele chamado – “esquemas religiosos” ou “éticas abrangentes”. Assim, a diferença fundamental entre tais âmbitos é a de que as teorias políticas ou da justiça não pressupõem nenhuma opinião sobre as razões de ser intrinsicamente importante que a vida tenha continuidade e prospere, embora tais teorias sejam, efetivamente, compatíveis com um grande número de opiniões dessa natureza10.

Em síntese, pode-se dizer que um Estado verdadeiramente laico, embora deva ter entre as suas atribuições os problemas atinentes à moral social, política e justiça, não faz parte da sua esfera de atuação os âmbitos das convicções pessoais, filosóficas ou religiosas, nos quais residem os questionamentos a respeito do valor da vida e seus fundamentos existenciais.

É por assumirem um grau tão elevado de importância pessoal que tais questionamentos não podem ser remetidos à potestade estatal ou mesmo regulados pelos mecanismos institucionais de controle social. Ao contrário disso, um dos deveres mais fundamentais do governo que são reconhecidos pelas democracias ocidentais, desde o século XVIII, reside em assegurar o direito de que as pessoas possam viver de acordo com suas próprias convicções religiosas.11

A vida consciente, nos termos já referidos, como vida humana que é, deve e é protegida constitucionalmente como direito fundamental, mas de igual forma, os direitos e garantias constitucionais, dentro de uma visão estrutural e pragmática, protegem o direito à autonomia procriadora, como decorrência mais elementar dos direitos de liberdade.

9 Cf. RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: M. Fontes, 2002.10 RAWLS, John. Justice as fairness: political not metaphisical, Philosophy and Public Affairs, v. 14, n. 2,

p. 223-252, Summer, 1985. 11 DWORKIN, op. cit., p. 225.

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REFERÊnCIAS

DWORKIN, Ronald. Los derechos em serio. Barcelona: Ariel, 1989.

______. Domínio da vida. São Paulo: M. Fontes, 2003.

______. O império do direito. São Paulo: M. Fontes, 1999.

______. Uma questão de princípio. São Paulo: M. Fontes, 2000

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: M. Fontes. 2002.

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RESUMO

Este trabalho demonstra duas das principais formas de pensar os fenômenos do delito e da pena. Uma, como história das ideias sobre a pena, outra, como uma economia política da pena. Por optar pela segunda forma como método de reflexão, em conjunto com elementos oriundos da psicanálise, chega-se à conclusão de que o direito penal é incapaz de funcionar como instrumento de controle da criminalidade nas sociedades neoliberais contemporâneas.

Palavras-chave: Economia Política da Pena. Neoliberalismo e Psicanálise. Controle Social. Criminologia Crítica.

ABSTRACT

This paper manifests the two main ways of thinking the phenomenon of crime and punishment. One as a history of ideas about punishment, and the other as a political economy of punishment. By opting for the second way as a method of reflection, in addition to elements brought from psychoanalysis, it follows that criminal law is unable to function as an instrument of crime control in contemporary neoliberal societies.

Keywords: Political Economy of Punishment. Neoliberalism and Psychoanalysis. Social Control. Critical Criminology.

FUNDAMENTOS EPISTEMOLÓGICOS DO PODER PUNITIVO: A INFLUÊNCIA DO NEOLIBERALISMO NA POLÍTICA CRIMINAL CONTEMPORÂNEA1

EPISTEMO LOGICAL FOUNDATIONS OF PUNITIVE POwER: ThE INFLUENCE OF NEOLIBERALISM IN CONTEMPORARy CRIMINAL POLICy

Fábio da Silva Bozza2

1 Versão ampliada da palestra proferida no IX ENCUENTRO INTERNACIONAL: ESCUELA DE VERANO DE LA HABANA 2013 SOBRE TEMAS PENALES CONTEMPORÁNEOS Y X CONGRESO INTERNACIONAL DE LA SOCIEDAD CUBANA DE CIENCIAS PENALES EN HOMENAJE AL Dr. Ramón de la Cruz Ochoa, ocorrido no Hotel Nacional de Cuba, em La Habana, entre os dias 8 y 12 de julio de 2013.

2 Doutorando em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor de Direito Penal e Criminologia no Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC), Curitiba, Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst), Centro Universitário Uninter, Unibrasil e Curso Professor Luiz Carlos.

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INTRODUçãO

O presente trabalho tem por objetivo demonstrar a impossibilidade de o Direito Penal funcionar como instrumento de controle da criminalidade em sociedades capitalistas caracterizadas pelo modelo econômico neoliberal.

Para tanto, num primeiro momento, realizar-se-á uma superficial análise histórica sobre as características da política criminal e, consequentemente, do Direito Penal nos estados liberais, totalitários e democráticos de direito. Em seguida, será objeto de análise a transição do modelo ideal “Estado democrático de direito” para, no neoliberalismo, o de “Estado penal”. Por fim, será demonstrado que o neoliberalismo, mais do que um modelo econômico, deve ser entendido como um modelo epistemológico, que determina uma nova forma de pensar os sujeitos, a política em geral, a política criminal e, por consequência, o Direito Penal.

No entanto, algumas observações são necessárias. Primeiro, não se trata de um trabalho de História do Direito, razão pela qual, embora se saiba que todo objeto de análise possui momento histórico e local determinados, serão realizadas afirmações gerais. Segundo, o instrumento metodológico utilizado para analisar a política criminal será o estudo da filosofia e da economia política, de forma que algumas imprecisões históricas serão necessárias para alcançar o objetivo que se quer atingir.

Para o desenvolvimento do trabalho, será realizada uma superficial análise das teorias normativas do direito penal e, em seguida, pensaremos uma breve economia política da pena.

1 TEORIAS NORMATIVAS DO DIREITO PENAL

Por teorias normativas do direito penal designamos o enfoque da ciência penal e criminológica que privilegia uma reconstrução histórica do sistema penal como história da ideia de pena, e não com instrumental advindo da criminologia marxista, como economia política da pena.3

Toda manifestação do direito penal corresponde a uma determinada orientação política para o tratamento da criminalidade. Às ações políticas orientadas ao controle da

3 PAVARINI, Massimo. Control y dominación: teorias criminológicas burguesas y projeto hegemónico. Buenos Aires: Siglo Vientiuno, 2002. p. 153.

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delinquência chamamos política criminal; e toda política criminal decorre da política geral do Estado a que corresponde. Dessa forma, é possível afirmar que o direito penal é reflexo da organização econômica e política do estado que o produz.4

Uma análise histórica superficial confirma que a evolução das ideias sobre crime e pena reflete as concepções políticas de cada época. Na Europa medieval, o poder político se legitimava pela religião, o que torna coerente uma também justificação religiosa do direito penal. O crime era visto como uma forma de pecado e a pena se justificava como manifestação de justiça correspondente ao castigo de Deus.

Na Idade Moderna, a fundamentação religiosa se mantém, mas o Estado se transforma em um Estado absoluto no qual o direito penal é utilizado como instrumento de submissão dos súditos ao poder. Se assim são as coisas, ao direito penal não são impostos limites, e à pena se lhe atribui a função de prevenção geral. É a época do “terror penal”, contra o qual, no século XVIII, inspirado na nova filosofia política iluminista, insurgiu-se Beccaria em seu famoso livro “Dos delitos e das penas”, de 1764.

Nos Estados Unidos, as primeiras constituições e a luta pela independência, e na Europa, a Revolução Francesa, abriram espaço ao Estado de Direito e, consequentemente, ao direito penal moderno. Antes de buscar a prevenção da criminalidade, o Estado Liberal apresentou como característica o objetivo de limitar o poder punitivo estatal por meio do direito. O Direito Penal moderno preocupava-se mais com as garantias do acusado do que com a proteção das vítimas. Eram princípios abstratos e ideais, como o de igualdade e liberdade, que serviam como instrumento de limitação jurídica do poder punitivo estatal.

Pensadores como Kant e Hegel, coerentemente, apresentaram outro princípio ideal, a exigência de justiça, como fundamento para a pena retributiva, limitando, com isso, qualquer finalidade preventiva para o Direito Penal. Bentham, na Inglaterra, e Feuerbach, na Alemanha, sustentaram uma função de prevenção geral à pena, mas limitada pelo princípio da legalidade (Feuerbach).

No decorrer do século XIX, junto à implantação das ideias liberais, criam-se as condições que iriam determinar a superação do modelo liberal de estado. Como consequência da industrialização, surgem, nas cidades, movimentos de trabalhadores que reivindicaram a necessidade da substituição de um estado absenteísta por um intervencionista. No âmbito do pensamento penal, a exigência de intervenção estatal produziu uma revolução científica nesse ramo do conhecimento. A crise do estado liberal pode ser considerada elemento determinante para a crise de sua política criminal. No

4 MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal. Barcelona: Ariel Derecho, 1994.

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final do século XIX, a criminologia positivista sustenta que a política criminal não deve se limitar a proteger os cidadãos contra o poder punitivo do estado, mas sim que deve ser orientada a uma luta eficaz contra a criminalidade.

Na política criminal de um estado intervencionista, perdem espaço as ideias de liberdade, igualdade perante a lei e justiça na aplicação da pena. Nesse novo modelo de estado, a pena deve ser útil, e a ideia de justiça ocupa espaço secundário. Destaca--se a teoria da prevenção especial, manifestação científica do direito penal da época. Como instrumento de prevenção da criminalidade, aparecem as medidas de segurança, inadequadas às limitações impostas pela igualdade e legalidade do direito penal clássico. Para crimes idênticos, impunham-se tratamentos diferentes a seus autores.

2 DAS IDEIAS POLÍTICAS à ECONOMIA POLÍTICA DA PENALIDADE

As teorias explicativas sobre a pena determinam uma leitura do fenômeno punitivo que se contrapõe ao tradicional enfoque da ciência penal e da criminologia, que colocam o acento numa reconstrução histórica do poder punitivo como história da ideia de pena. Com fundamento na crítica marxista sobre a economia burguesa, é possível desenvolver uma reconstrução materialista da reação social à criminalidade, ou seja, uma economia política da pena.5

Com sua criminologia marxista, na década de setenta, em “Cárcere e fábrica”, Melossi e Pavarini sugerem a existência de uma relação entre a forma que a penalidade assume na sociedade capitalista e a situação do mercado de trabalho, que é possível individualizar através da necessidade de disciplina da força de trabalho.6

Assim como a natureza estrutural da criminalidade é determinada pelo modo de produção capitalista, é possível explicar como a pena privativa de liberdade aparece como resposta necessária às exigências de disciplinar o mercado de trabalho nessa sociedade. Marx reconhece esta relação entre estrutura socioeconômica e sistema penal na passagem do sistema feudal ao sistema de produção capitalista, ao afirmar que a população vagabunda era submetida, por meio de leis, força de açoites, marcas com fogo e tortura, à disciplina necessária ao sistema de trabalho assalariado.

5 PAVARINI, op. cit., p. 153.6 MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário: séculos

XVI-XIX. Rio de Janeiro: Revan, 2006.

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Ao surgir, a burguesia necessita e utiliza o poder estatal para regular o salário, prolongar a jornada de trabalho e manter o trabalhador em situação de dependência, de forma conveniente a quem deseja acumular mais-valia.

Marx também destaca esta relação entre as exigências do nascente capitalismo e do sistema punitivo quando reconhece a necessidade de educar as massas de camponeses na disciplina da fábrica, apontando a origem do cárcere como instituição a serviço da burguesia. Durante os séculos XVII e XVIII é que, junto ao surgimento das manufaturas, vão desaparecendo as velhas formas de castigo corporal e surgindo novas formas de punição desconhecidas em períodos anteriores, como casas de trabalho, casas de correção e, apenas depois, o cárcere, dentro dos quais são coativamente impostas as formas de disciplina do proletariado e a disciplina a que o futuro proletariado estará obrigado a se submeter para tornar possível a existência da sociedade capitalista.

Depois de certo tempo que a cultura do trabalho foi imposta pela burguesia, e que, diante da explosão demográfica nas cidades, se tornou desnecessária a disciplina do excesso de mão de obra, as prisões não tiveram mais como finalidade a inclusão de pessoas no mercado de trabalho.

Rusche e Kirchheimer constataram que a casa de correção representou o auge do controle social da organização mercantilista e permitiu o incremento de um novo modo de produção. No entanto, a sua importância econômica desapareceu com o surgimento do sistema fabril. Na passagem do período mercantilista para a nova sociedade industrial, que requer o trabalho livre como condição necessária para o emprego da força de trabalho, o papel do condenado perdeu importância.7

Essa constatação fez com que, na década de 1970, nos países que implantaram o estado de bem-estar, penalistas e criminólogos reconhecessem o fracasso das finalidades ideológicas da pena e propusessem a abolição do sistema penal ou a necessidade de se trabalhar com penas alternativas à prisão. Dos abolicionistas aos reformadores encontra-se o mesmo discurso: enquanto as finalidades ideais da pena (prevenção da criminalidade por meio da ressocialização) estavam fracassadas, as funções materiais da prisão (a produção e reprodução da desigualdade, por meio de uma violência caracterizada pela crueldade e elevados efeitos de nocividade social) eram um sucesso.8

7 RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. 2. ed., Rio de Janeiro: Revan, 2004. p. 21.

8 SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 3. ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 488.

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Em matéria de política criminal, foram propostas alternativas. Na Europa, Alessandro Baratta, Melossi e Pavarini, na América Latina, Raul Zaffaroni, Rosa Del Olmo, Lola Aniyar de Castro, Bustos Ramíres, dentre outros, no Brasil, Juarez Cirino dos Santos, Juarez Tavares, Nilo Batista, enfim, todos os penalistas buscavam uma política criminal alternativa.

Embora na América Latina nunca tenha se consolidado o Estado de bem-estar, por conta das ditaduras do Cone Sul, o discurso político criminal foi marcado pela esperança da inclusão social dos condenados, não por meio do cárcere, mas sim, apesar dele. Com excelentes intenções, propostas de penas alternativas à prisão foram desenvolvidas. Além disso, muitos criminólogos críticos apresentaram propostas de criminalização das classes poderosas. Era o sonho dos anos de 1970.

3 O SALTO EPISTEMOLÓGICO: DE UMA POLÍTICA CRIMINAL INCLUSIVA à POLÍTICA CRIMINAL DA ExCLUSãO

Na Europa, o Estado de bem-estar faliu, na América Latina, sequer nasceu e, após as ditaduras militares, surge a ideologia neoliberal. E é sobre ela que trabalharemos daqui em diante.

3.1 FUNDAMENTOS EPISTEMOLóGICOS

Antes de qualquer desenvolvimento, é de se marcar a premissa do que será exposto: o modelo econômico neoliberal não caracteriza apenas um modo de organização da economia, mas, principalmente, deve ser entendido como um modelo epistemológico. Dessa forma, para compreender esse novo modelo epistemológico, necessitamos de uma boa teoria da sociedade e uma boa teoria do sujeito.

Para pensar o capitalismo industrial dos séculos XIX e início do século XX, uma teoria social marxista e a psicanálise freudiana eram instrumentos interessantes para pensar a sociedade e os sujeitos nela envolvidos. No entanto, se quisermos pensar as sociedades pós-industriais, que desenvolveram um capitalismo financeiro, outros aportes teóricos devem complementar os estudos. Portanto, utilizaremos como referencial para pensar os sujeitos e a sociedade contemporâneos os desenvolvimentos dos psicanalistas Jean Pierre Lebrun e Agostinho Ramalho Marques Neto.

Comecemos pela organização social.

De acordo com Agostinho Ramalho, o termo neoliberalismo concentra ideias de ruptura e continuidade. A ideia de continuidade se refere ao fato de se tratar de uma

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forma de liberalismo. E a ideia de ruptura se refere à drástica alteração dos fundamentos do modelo econômico liberal clássico para os fundamentos do modelo econômico neoliberal.9

De forma sintetizada, pode-se afirmar que o liberalismo clássico, de base filosófica contratualista, ergue-se sobre as ideias de igualdade, liberdade e fraternidade.

A igualdade não se refere à igualdade de condições e oportunidades entre as pessoas, como propôs o pensamento socialista da metade do século XIX. Trata-se de igualdade jurídica, somente perante a lei, que se opunha ao sistema do Antigo Regime, de privilégios de determinadas pessoas conforme a classe social da qual faziam parte.10

No que se refere à liberdade, trata-se, essencialmente, de uma ideia que tem por objetivo consagrar como princípio a liberdade contratual (autonomia da vontade), tanto no campo dos negócios quanto no das relações entre os proprietários dos meios de produção e o proletariado. Pressupõe-se que, nos contratos negociais e nos contratos de trabalho, as partes estão em igualdade de condição para livremente manifestarem suas vontades. Firmado o contrato, ele deve ser respeitado.11

Por fim, a fraternidade se refere à solidariedade necessária para a manutenção da ordem social, e tem como ideia central a necessidade de implantação de políticas que reduzam desigualdades extremas que possam representar o perigo de ruptura violenta da ordem estabelecida.12

Para compreender o neoliberalismo e seus fundamentos, é necessária uma superficial aproximação histórica. As ideias neoliberais foram pensadas na metade da década de 1940, quando a política de inspiração keynesiana era crescentemente implementada na Europa. Tal política defendia a intervenção estatal na economia com o objetivo de corrigir as desigualdades decorrentes da concentração de riqueza característica do modo de produção capitalista. Estavam sendo construídas as bases da social-democracia.

As ideias neoliberais representaram uma forte crítica ao modelo de Estado de bem-estar social. Este pensamento político-econômico enxerga a política de bem-estar como puro desperdício de dinheiro público, com prejuízos irreparáveis à dinâmica da economia de mercado.

9 MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. Neoliberalismo e gozo. In: VESCOVI, Renata Conde (Org.). A lei em tempos sombrios. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2009. p. 51-68.

10 Ibid., p. 53.11 Ibid., p. 53.12 Ibid., p. 54.

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Em O caminho da servidão, de 1944, Hayek afirma que a origem da crise do Estado de bem-estar social era determinada pelo nefasto e excessivo poder dos sindicatos e, de forma mais geral, pelo movimento operário, que corroeu as bases do capitalismo com reivindicações para que o Estado aumentasse cada vez mais os gastos sociais. Argumentava que o igualitarismo produzido pelo Estado de bem-estar retirava a liberdade dos cidadãos e a vitalidade da concorrência, que era fundamental para a prosperidade de todos.13 Assim, entendia a desigualdade como um valor positivo, elemento motor da competição, o que estimularia o desenvolvimento de todos.

Dessa forma, é possível afirmar que no neoliberalismo os três fundamentos da ordem social são outros: desigualdade, competição e eficiência.

A desigualdade não pode ser entendida apenas como exclusão econômica e social, como o contraste da concentração de riqueza nas mãos de poucos e de pobreza para muitos. Como princípio que fundamenta o neoliberalismo, a desigualdade é uma relação de dissimetria entre competidores no mercado, o que se apresenta como elemento favorável à competição e, por consequência, do próprio mercado. Assim, a desigualdade não deve ser entendida como um acidente histórico, mas sim como algo necessário e constituinte de uma organização social neoliberal.14

Nesse modelo econômico, a competição é o elemento que impulsiona a economia de mercado. Os agentes econômicos neoliberais são preparados para vencer a competição. A supervalorização da competição cria uma ideologia do sucesso e uma sociedade de vencedores e perdedores.

Com tal afirmação, não se quer subestimar a importância da competição para o desenvolvimento humano e social. Ocorre que essa forma de competição contemporânea apresenta característica diversa da competição saudável. Enquanto em uma competição saudável a lei e a ética aparecem como limitação aos competidores, no mundo neoliberal a competição é a própria lei. Ou seja, não há espaço para limites éticos e jurídicos entre os concorrentes. A Lei do Pai (o “Não” do Pai), no seu sentido simbólico a que se refere Lacan, revela sua fragilidade nas sociedades contemporâneas. É nesse terreno que se desenvolve a ideologia do “tudo é permitido”15, do “viver sem limites”.

Assim, pode-se concluir que a oposição marxista opressores/oprimidos não é

13 HAYEK, F. A. O caminho da servidão. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; Instituto Liberal, 1987. p. 68 e ss.

14 Ibid., p. 56.15 Ibid., p. 58.

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suficiente para explicar a organização social contemporânea. Mais adequado é fazer uso das categorias incluídos/excluídos, enunciadas por Bauman, em que os “incluídos” são tanto os opressores quanto os oprimidos, e os “excluídos”, aqueles que não possuem qualquer inserção na sociedade, não podendo ser rotulados como oprimidos, pelo fato de que ninguém se interessaria por oprimi-los, já que deles não extrairia qualquer proveito. Nesse contexto, ser oprimido não deixa de ser uma forma de inclusão!16 Para os excluídos, resta o sistema penal como destino.

Para segurar o avanço da desordem produzida pela exclusão social, precariedade no trabalho, retração da atividade social do Estado e massificação do desemprego, faz-se uso de uma política penal de exclusão. A pena criminal deixa de ter por objetivo declarado a ressocialização do condenado e, sem qualquer dissimulação, apresenta como objetivo a mera neutralização de classes perigosas. Verifica-se a transição do Estado-previdência ao Estado-penal. Em relação às desigualdades sociais, aplica-se a doutrina do laissez faire, laissez passer, no que se refere ao controle da pobreza por meio do sistema penal, é extremamente paternalista17.

O terceiro elemento sobre o qual se estrutura o neoliberalismo é a eficiência técnica. Ela está ligada à ideia de competição. Não é suficiente competir. O agente econômico adequado tem que ser o melhor. Tem que vencer a competição. E para isso deve fazer uso do meio adequado para atingir seus objetivos. Institui-se a lógica segundo a qual “os fins justificam os meios”.

O melhor competidor para o modelo neoliberal é aquele sujeito extremamente capacitado para empregar os meios adequados no seu trabalho, mas não consegue pensar criticamente sobre os fins a que sua prática pode levar. Exemplo muito claro se verifica nas Universidades. Não há mais espaço para intelectuais, apenas para burocratas. No campo acadêmico, em que pensávamos estar imunes a tal ideologia, essa lógica ocupou o seu espaço. No lugar das teses geniais, o número de publicações ditas científicas é que serve como critério para um burocrata de plantão avaliar o mérito de cada professor.

16 MARQUES NETO, op. cit., p. 58.17 WACQUANT, Loïc. Punir os pobres. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 24.

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3.2 OS NOVOS SUJEITOS: PROTAGONISTAS E OBJETOS DO PODER PUNITIVO

Em “A perversão comum: viver juntos sem o outro”18, Lebrun analisa a alteração dos laços sociais, entendida como desintegração da relação entre o indivíduo e a coletividade. A referida alteração provoca o surgimento de novos regimes de economia psíquica, assim como de uma nova forma de moldar as subjetividades contemporâneas. As alterações no modo de vida em coletividade recaem sobre o psiquismo dos sujeitos individuais, confirmando que o sujeito do inconsciente é um sujeito “assujeitado”. Assim, é possível afirmar que a identidade do sujeito vem do outro. Logo, é uma identidade do sujeito constituída pela negatividade que vem do outro. Assim, a construção da subjetividade é um processo de assujeitamento do indivíduo.

Ao tratar da mudança dos laços sociais, Lebrun reflete sobre a crise da civilização ocidental sustentada em um paradigma religioso. Estruturada sobre esse paradigma, a autoridade hierárquica se legitimava pelo lugar transcendente em que se apoiava. Com a crise desse modelo, abre-se espaço para a modernidade. Com o neoliberalismo, a razão de mercado ocupa o espaço da religião como elemento organizador dos laços sociais. Nesse novo modelo, abre-se mão da transcendência, assim como do lugar que ocupa a autoridade. Com isso verifica-se a transição de uma sociedade organizada verticalmente para uma organização horizontal, independente da transcendência. É essa transformação que provocou a deslegitimação da autoridade do modelo religioso, que prometia a completude.

Maria Rita Kehl constata que os discursos predominantes sobre o que deve ser a vida não mais se apoiam em fundamentos filosóficos ou religiosos, mas sim em razões de mercado, que se fundam em si mesmas, “pois sua satisfação não remete a nada além da fruição presente do objeto, da mercadoria, do fetiche”19. Assim, o objeto do desejo é um objeto inexistente, perdido desde sempre, cuja busca lança o sujeito numa incansável repetição20.

Ligado à desconsideração da transcendência, assim como à crise da função paterna, numa sociedade horizontal surge o neossujeito, que se livra de toda hierarquia, de toda negatividade, de qualquer limite ao gozo. O neossujeito é aquele que, por possuir um vazio interior, necessita de sensações intensas. A lógica da sensação prevalece sobre a do pensamento.

E é esse novo sujeito que hoje funciona, ao mesmo tempo, como protagonista e objeto da política criminal contemporânea.

18 LEBRUN, Jean-Pierre. A perversão comum: viver juntos sem o outro. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008.

19 KEHL, Maria Rita. Sobre ética e psicanálise. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 10.20 Ibid., p. 11.

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4 A POLÍTICA CRIMINAL NO NEOLIBERALISMO

A política criminal apenas poderá ser entendida corretamente caso se realize uma aproximação ao sistema econômico e político que a sustenta.21

O programa neoliberal, que é o fundamento teórico do sistema social ao qual se quer ajustar o Brasil, tem divulgado que o Estado moderno deve se assentar basicamente na proteção da economia de livre mercado e em sua menor intervenção, de forma que devem ser deixadas ao Estado apenas as funções consideradas indispensáveis à sua manutenção, como saúde pública, educação básica, saneamento urbano, segurança pública etc. Além disso, como aponta Tavares, mais que um discurso político ou econômico, “é um discurso ideológico, que busca justificar sua atuação de modo a tornar confiável a ideia de que estamos nos limites de uma nova era, na qual os grandes conglomerados e as forças exclusivas da iniciativa privada são capazes e mais que suficientes para proporcionar a todos um estado de bem-estar e liberdade e, evidentemente, de absoluto controle da criminalidade”.22

Esse discurso busca legitimar a atuação estatal como representante legítima dos interesses da população. Ocorre que as coisas não são bem assim. Consequência da globalização, o Estado se estrutura de forma diferente. O controle e a manipulação da economia pelos países desenvolvidos não foram capazes de evitar o que o programa neoliberal prometia: quebraram-se as economias emergentes, ocorre um crescimento da especulação financeira, há um domínio global dos países centrais sobre o comércio internacional, desemprego, miséria, privatizações injustificadas (entregas perniciosas dos bens públicos), crescimento da desigualdade social, destruição da capacidade decisória dos governos estatais etc.23

Como efeito, verifica-se a luta por uma desestruturação do Estado. Sob a desculpa de modernização da economia, com a finalidade de entrar no grupo das nações pós- -industriais, os defensores do neoliberalismo colocam como atividades emergenciais os programas de desestatização e privatização. Esse programa permite à iniciativa privada controlar setores relevantes da administração pública, “criando o espaço necessário para que as empresas passem a considerar o Estado não mais como gestor, mas sim como seu concorrente econômico”.24

21 TAVARES, Juarez. La creciente legislación penal y los discursos de emergencia. In: Temas actuales de derecho penal. Buenos Aires: Ad-hoc, 1998. p. 629 Destaca que esse fato passa despercebido no âmbito do Direito Penal porque ainda não conseguimos superar a herança do positivismo, que toma a norma jurídica como seu instrumento conceitual tautológico.

22 Ibid., p. 630 (tradução nossa).23 TAVARES, op. cit., p. 630. 24 Ibid., p. 633.

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Na América Latina, o Estado sempre foi dependente das forças econômicas que se encontram no poder. Nunca foi representante do interesse geral, mas sempre daqueles que estavam no poder. Nas palavras de Juarez Tavares: “O Estado foi sempre a exteriorização e expressão das forças ativamente dominantes nas estruturas econômica, jurídica e política, inicialmente com os donatários do Rei [...] e agora abertamente ao capital globalizado, com a marca dos países centrais.”25

Enfim, como forma de política, a política criminal não poderia ser definida por interesses senão os das forças dominantes. Numa situação em que as empresas privadas passam a realizar atividades estatais, seguindo um discurso eficientista, a política criminal nos países da América Latina deve ter o mesmo objetivo: a eficiência. Essa, no Brasil reconhecida como princípio constitucional (CF, art. 37), sustenta uma nova política criminal, que tem por meta a tutela eficiente contra aqueles que perturbam a ordem econômica e suas metas culturais. Essa política criminal possui as seguintes características: a) faz uso de dura repressão à criminalidade comum (furtos, roubos, pequenas fraudes); b) aumenta os recursos disponíveis aos órgãos de persecução criminal (aumento de penas, escutas telefônicas, de hipóteses de prisão preventiva etc.)26; c) são eleitos novos “bodes expiatórios”. Criam-se novos tipos penais em âmbitos como o meio ambiente, a economia, o processamento de dados, drogas, armas, impostos, mercado exterior, enfim, tudo o que se refere à chamada “criminalidade organizada”27; e d) a característica mais forte: a segurança pública ganha status jurídico nunca antes recebido: de direito secundário, sintetizado na ideia de segurança dos direitos, a um direito fundamental, autônomo, o direito fundamental à segurança, fundamentado em uma criminologia atuarial, que colocado na balança em situações de conflito com o direito fundamental à liberdade, jamais perde a disputa.

E outra característica interessante. A questão carcerária, que sempre foi debatida por uma elite intelectual nas academias, passa a ser objeto de demandas populares. O discurso crítico acadêmico, muitas vezes progressista, cai em descrédito e o populismo penal assume o front na batalha política. Na expressão de Pavarini: de una penologia “desde arriba” a una “desde abajo”28.

25 TAVARES, op. cit., p. 634 (tradução nossa).26 Ibid., p. 631.27 HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y responsabilidad: bases para una teoria de la imputación en

derecho penal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999. p. 5228 PAVARINI, Massimo. Un arte abyecto: ensayo sobre el gobierno de la penalidade. Buenos Aires:

Ad-Hoc, 2006. p. 122-123.

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Aqui a questão da democracia ganha importante espaço. Na organização social contemporânea, conforme os ensinamentos de Garapon e Sallas, a democracia passa a ser conhecida como democracia de opinião, dominada pelas emoções dos sujeitos. Nela, a demanda por punição e, por consequência, a forma de gestão da penalidade passa a ser moeda de troca entre eleitores e eleitos. Nas palavras de Juarez Cirino dos Santos: “O discurso político se articula sobre o medo da opinião pública, prometendo maior penalidade: o sistema penal é a resposta ao medo da opinião pública. A exposição dos cidadãos ao risco da criminalidade engendrou as políticas de lei e ordem, com velhas receitas para novos problemas”.29

Assim, é possível afirmar que existem duas principais frentes de atuação da política criminal contemporânea. A mais forte é a política criminal que se dirige ao controle da pobreza, fazendo uso da prisão e de medidas alternativas de controle (penas restritivas de direitos, monitoramento eletrônico etc.). Mas é importante destacar que não mais se trata de uma política criminal de matriz positivista, dirigida ao controle social de sujeitos perigosos. Hoje, com fundamento teórico em uma criminologia administrativa, também chamada criminologia atuarial (desenvolvida, principalmente, nos Estados Unidos), a política criminal se concretiza em projetos de segurança pública destinados ao controle de grupos sociais perigosos. A partir de estatísticas que mapeiam a criminalidade em determinado local, os recursos públicos são dirigidos ao controle penal de populações que são consideradas um risco social. As penas e medidas de segurança passam a ter finalidade instrumental de neutralização de pessoas pertencentes a grupos perigosos. Como exemplo, basta pensar no número de prisões cautelares que possuem como fundamento de seu decreto o abalo à ordem pública (probabilidade de reiteração delitiva), sendo que, não raras vezes, a situação de desempregado e de pessoa sem endereço fixo do acusado é utilizada como fundamento para demonstrar a possível reiteração de delitos. Com isso, pode-se concluir que, no Brasil, a polícia está presente nas favelas não para proteger a segurança da população que pertence às comunidades onde se instalam, mas sim para proteger a propriedade privada daqueles que estão fora dessas zonas pobres.

A segunda frente de atuação da política criminal contemporânea atua simbolicamente no controle dos riscos (econômicos e ambientais) decorrentes das atividades econômicas que se desenvolvem em uma ordem globalizada. O direito penal econômico é chamado

29 SANTOS, Juarez Cirino dos. Punir os inimigos: a nova lógica do sistema penal. Apresentação ao livro de In: PAVARINI, Massimo. Punir os inimigos: criminalidade, exclusão e insegurança. Curitiba: ICPC, 2012.

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a proteger a comunidade de vítimas produzida pela sociedade de risco30. E é essa política criminal da sociedade de risco que será objeto de breve reflexão.

Segundo o discurso oficial, a antecipação da tutela penal está dirigida à proteção de bens jurídicos supraindividuais de interesse de toda a coletividade. Seria possível pensarmos que se trata de uma política criminal deslocada de seu tempo. Enquanto o modelo econômico neoliberal exige intervenção punitiva do estado somente para funcionar como instrumento de exclusão daqueles que, “por não terem capacidade de se incluírem”, não podem consumir e, por consequência, são inúteis até para serem explorados, o direito penal econômico, de acordo com o seu discurso oficial, está orientado à punição dos poderosos, daqueles que detêm o poder econômico. Mero discurso.

Quando se utilizam as teorias conflituais da sociedade para fazer a análise desse problema, é possível concluir de maneira diversa. O direito penal econômico, em geral, é uma fraude. As ações perigosas para a sociedade, decorrentes do surgimento de uma economia global e do desenvolvimento tecnológico, estão no âmbito do risco permitido. Pela acessoriariedade administrativa, que caracteriza o direito penal econômico, são as agências da administração pública que, por um critério discricionário de oportunidade e conveniência, delimitam o conteúdo do injusto penal. Portanto, não se trata de proteção da sociedade contra os novos riscos (econômicos, ambientais etc.), mas sim de um gerenciamento de quem são as pessoas autorizadas a produzirem referidos riscos (veja-se, por exemplo, o princípio do poluidor pagador no direito ambiental).

No sistema econômico neoliberal, desaparecem os limites entre o público e o privado. A legislação penal se converte em um recurso público e, como tal, torna-se objeto de troca no âmbito da política. Isso quer dizer que a repressão penal de condutas que envolvem o bem jurídico é colocada entre os bens de autoridade, ou seja, “aqueles bens que, segundo os procedimentos do modelo neocorporativo, são objeto de negociação entre as autoridades públicas, por uma parte, e os grupos sociais organizados, pela outra”31. A distribuição de autorizações para a produção de grandes riscos atende exclusivamente aos interesses dos grandes conglomerados econômicos. E assim se produz a seletividade, estruturante de todo sistema penal, também no direito penal econômico. Os criminalizados, que constituem um número desprezível, são aqueles que, na disputa política, não tiveram sucesso na tentativa de colocar seus representantes no poder do Estado.

30 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión del derecho penal: aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. 3. ed. Buenos Aires; Montevideo: B de F, 2011.

31 SGUBBI, Filippo. El delito como riesgo social: investigación sobre las opciones en la asignación de la ilegalidad penal. Buenos Aires: Ábaco, s/f. p. 77

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Os delitos não constituem agressões ou ameaças a bens jurídicos concretos. Passam a ser mera desobediência a normas (agora penais) destinadas a organizar a atividade econômica. Assim, os grupos que possuem o monopólio sobre a legislação penal trabalham para impor a maior carga de deveres e responsabilidades sobre os outros grupos, para tornar cada vez mais complicadas e onerosas as atividades econômicas do concorrente.

Assim, pode-se concluir que, da mesma forma que o direito penal clássico, o direito penal econômico possui finalidades declaradas e latentes. A função declarada de proteger bens jurídicos supraindividuais, encoberta pelo discurso de se tratar de um direito penal típico de um Estado social e democrático de Direito. No entanto, sua função real é a de assegurar a desigualdade entre os competidores dentro do modelo econômico neoliberal.

CONSIDERAçõES FINAIS

Para terminar, em poucas palavras quero atingir o principal objetivo do presente trabalho: o de demonstrar a impossibilidade de se utilizar o direito penal como instrumento de controle da criminalidade nas sociedades ocidentais contemporâneas.

Se é possível afirmar, com Freud, que a falta é constitutiva de todo ser humano, é de se refletir sobre como convivemos com essa falta. Na modernidade, quando o homem estava marcado pela existência de uma razão instrumental, que permitia que a razão ligasse seus desejos aos objetivos a serem alcançados para satisfazê-los, o mal-estar estava configurado pelo fato de que, ao alcançar seu desejo, verificava-se o deslocamento a outro desejo. Ou seja, o mal estar é perene, pois a falta nunca será preenchida.

Pois bem, na pós-modernidade (se é que é possível afirmar a superação da modernidade), a razão instrumental é colocada em xeque pelo homem. Talvez o fracasso na tentativa de planificar a economia foi um símbolo para afirmar essa tese. Ademais, quando o modelo econômico neoliberal passa a funcionar como um modelo epistemológico, novas subjetividades são forjadas. O homem nega qualquer forma de assujeitamento pela cultura, pelo outro. Na sociedade de mercado, sua condição de sujeito deixa de ser marcada pela condição de homem racional e passa a ser determinada pela condição de consumidor.

Assim, o gozo é atingido em objetos, e não mais com a consecução de objetivos. Sensações intensas e passageiras substituem o caminho a ser percorrido para atingir os objetivos. Isso quer dizer que o homem passa a buscar o preenchimento da falta com coisas, objetos. Assim, o deslocamento se verifica de objeto para objeto. E essa forma de pensar o mundo atinge todos. Ninguém escapa, branco ou negro, rico ou pobre. É o neossujeito, descrito por Lebrun.

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Daí concluirmos pela impossibilidade de o direito penal funcionar como sistema de controle social nas sociedades contemporâneas. Se o direito representa o mínimo ético de uma sociedade, numa sociedade em que não há espaço para a ética, diante do imperativo do sucesso entre os competidores em um mundo livre de regras, não há espaço para o direito penal cumprir qualquer função ética. Trata-se de um amontoado de normas sem qualquer sentido. No mundo contemporâneo as pessoas negam qualquer possibilidade de assujeitamento. Se a lei era o limite, deixou de o ser. Vive-se uma sociedade em que o que se quer é “viver sem limites”. Não é à toa que esse é o mote de uma campanha publicitária no Brasil. Para a pobreza, a criminalidade deixa de ser simples meio de subsistência. É forma de evitar o assujeitamento e criar sua subjetividade a partir da condição de consumidor. O neossujeito não pratica crimes apenas para colocar comida em casa. Isso não é mais suficiente. É preciso gozar, a qualquer preço. É preciso ter a roupa da moda, o carro do ano etc.. E quando isso é conquistado, a falta continua lá, e sempre é necessário algo mais. Por isso as atividades criminosas não se restringem às classes subalternas. Aquele que é detentor de bens de consumo segue a mesma lógica. Daí ser possível explicar a criminalidade empresarial. São sujeitos que se situam nesse contexto. Pessoas que querem consumir mais e mais, sem qualquer limite.32

Como demonstra Lebrun, essa forma de pensar não representa uma patologia, mas sim a autoimagem do homem contemporâneo. Mais uma vez: o neoliberalismo não é apenas um modelo econômico, mas sim um modelo epistemológico; determina como o homem se vê em determinado momento histórico. Daí a quase impossível tarefa de o direito penal funcionar como instrumento de controle social nas sociedades contemporâneas. Se o elemento constitutivo do humano reside na condição de consumidor, e se a grande maioria das pessoas não possui recursos suficientes para poderem consumir, a necessidade não desaparece, e a demanda pela busca de se colocar na condição de consumidor continua existindo, para todos. Isso quer dizer que, se levarmos a sério a relação de determinação existente entre demanda e oferta, e considerarmos as ações criminosas (desde crimes patrimoniais de rua até crimes de colarinho branco) como meios de oferta para colocar

32 Ainda que se não tenha espaço para isso nesse trabalho, verifica-se a importância de uma breve reflexão a respeito da política criminal sobre drogas. Primeiro, nunca, na história moderna, houve política criminal sobre coisas, mas sim sobre pessoas. Segundo, enquanto essa política criminal tiver como alvo a oferta de drogas será impossível o controle do fenômeno. A partir do quadro acima descrito, verifica-se a demanda pela droga como algo que é oriundo de todas as classes sociais. A tentativa de preencher o vazio existencial, ou fugir do mal-estar contemporâneo, passa pelo consumo de drogas, lícitas ou ilícitas. Controlar, com política de guerra, a circulação de substâncias entorpecentes atacando a oferta, como afirma Sebastian Scheerer, significa querer acabar com uma lei da economia a tiros. Certamente não se terá sucesso. Enquanto houver demanda haverá oferta.

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pessoas na condição de consumidor, para preencher a falta que é constitutiva de todo ser humano, qualquer política criminal racional deve ter como objetivo controlar ou reduzir a demanda e não eliminar a oferta. A oferta de algo que não possui demanda não possui qualquer sentido.

Enquanto Weber e Habermas se referem a um processo de desencantamento do mundo no período da modernidade, parece que hoje vivemos um processo reverso. Só que, em vez de uma mistificação religiosa, temos o modelo neoliberal como mito da pós--modernidade.

Assim, para concluir, verifica-se a impossibilidade de o direito penal funcionar como instrumento de controle da criminalidade nas sociedades contemporâneas. Não se trata de uma falha no projeto ressocializador da pena criminal, tampouco da ideia contemporânea de neutralização. Somente há um possível instrumento de controle da criminalidade, e é tentar criar um novo modelo epistemológico, em que a condição do existir não seja determinada pela necessidade de consumo, em que a razão (instrumental ou comunicativa) volte a funcionar como fundamento de existência, em que a ética de respeito ao outro realize a função de limitar a busca pela concretização dos desejos. Devem ser afirmados os direitos de cidadania e implementados os meios para lhe promoverem efetividade. E isso passa longe de ser uma função para o direito penal, razão pela qual somente pode ser entendido como limite à intervenção do poder punitivo, e não como instrumento de proteção social.

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REFERÊNCIAS

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Resumo

Este artigo pretende apresentar e defender a difusão da fórmula da justificação procedimental como um instrumento dogmático moderno de compressão do sistema punitivo, por meio da ampliação de possibilidades de justificação, para além dos paradigmas tradicionalmente consagrados da justificação material. Para tanto, apresenta soluções legislativas adotadas neste sentido em outros países que podem servir de paradigma na solução da minimização da intervenção penal, não apenas para as mesmas questões já experimentadas nas legislações estrangeiras, mas também para outros casos em que a política criminal oscila errante entre soluções de incriminação absoluta ou abolição dela.

Palavras-chave: Causas de Justificação. Justificação Procedimental. Direito Penal Mínimo.

AbstRAct

This article seeks to present and defend the formula of procedural justification as an instrument of modern dogmatic punitive system, through the expansion of possibilities of justification, in addition to the traditionally established paradigms of material justification. To this end, legislative solutions has adopted in this regard in other countries that can serve as a paradigm in the solution of minimizing criminal intervention, not only to the same issues already experienced foreign legislations, but also to other cases in which criminal policy is wandering between absolute criminality solutions or abolishing it.

Keywords: Justification. Procedural Justification. Minimum Criminal Law.

JustIFIcAÇÃo PRoceDImeNtAL como oPÇÃo De DeseNVoLVImeNto De um DIReIto PeNAL mINImALIstA

PRoceDuRAL gRouNDs As oPtIoN FoR DeVeLoPmeNt oF A mINImALIst cRImINAL

Dener Rocha BebianoEvandro Vinícius Leonel dos Santos

Gabrielle Stricker do ValleGiselle Mota Fylyk

Orientador: Paulo César Busato2

1 Dener Rocha Bebiano, Evandro Vinícius Leonel dos Santos, Gabrielle Stricker do Valle e Giselle Mota Fylyk são membros do Grupo de Pesquisas Modernas Tendências do Sistema Criminal, cadastrado perante o CNPq.

2 Doutor em Problemas Atuais do Direito Penal pela Universidad Pablo de Olavide. Procurador de Justiça no Estado do Paraná. Professor Adjunto de Direito Penal na UFPR.

1

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INtRoDuÇÃo

Este artigo pretende defender a opção pela justificação procedimental como caminho de desenvolvimento dogmático, ajustado a um propósito de contração do sistema punitivo.

Para tanto, discute os efeitos protetivos do bem jurídico, gerados pela inserção sistêmica de causas de justificação procedimental, demonstrando a pertinência do seu emprego em sistemas jurídicos de imputação que estejam ajustados a uma política criminal minimalista.

Far-se-á um comparativo entre os fundamentos da existência da justificação material e da justificação procedimental, demonstrando sua equivalência.

Em uma conclusão aberta, anuncia-se um espectro amplo de possibilidades de exploração da dinâmica desta fórmula normativa, evidenciando um importante caminho a seguir para o desenvolvimento da Teoria do Delito.

1 FuNÇÃo DA JustIFIcAÇÃo NA estRutuRA DA teoRIA Do DeLIto

Em um determinado momento da evolução da Teoria do Delito, chegou-se à bipartição da dimensão objetiva da imputação normativa3. Esta bipartição foi uma proposta de separar, por um lado, o tipo, como expressão da proibição e, por outro, a antijuridicidade como juízo de valor autônomo, que se realizava pelaprospecção negativa de normas permissivas no sistema de imputação. Essa composição foi iniciada pela Teoria dos Elementos Negativos do Tipo, proposta por Merkel4 e desenvolvida por Beling com sua Teoria do Delito-tipo5.

Às normas permissivas que afastavam a ilicitude do fato denominou-se causas de justificação (Rechtfertigungsgründen)6.

O papel representado pelas causas de justificação é duplo.

3 Até final do século XVIII as legislações penais e igualmente as penalistas desconheciam um conceito geral e diferenciado de antijuridicidade. In: TAVARES, Juarez. teoria do injusto penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p. 148.

4 MERKEL, Adolf. Derecho penal: parte general. Trad. de Pedro Dorado Montero. Montevideo. Buenos Aires: BdeF, 2004.

5 BELING, Ernst von. esquema de derecho penal: la doctrina del delito-tipo. Trad. de Sebastián Soler. Buenos Aires: El Foro, 2002.

6 A denominação é utilizada à larga no tratado de Von Liszt, cf. LISZT, Franz von. (1881). Lehrbuch des deutschen strafrechts. Berlin: W. de Gruyter, 1921, especialmente § 22.

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Em primeiro lugar, elas procuravam representar as situações de excepcionalidade, aquelas em que a realização da conduta proibida realmente demanda um tratamento diverso do tratamento usual em face de um dado incomum, que conduz à aceitação do que, em princípio, é ausente à excepcionalidade, portanto, constituiria um ilícito. Seria inconcebível a inexistência de circunstâncias que eximissem da imputação o agente que praticou uma conduta típica numa situação adversa.

A antijuridicidade ou ilicitude, portanto representa “o choque da conduta com a ordem jurídica, entendida não só como uma ordem normativa (antinormatividade), mas como uma ordem normativa e de preceitos permissivos”7. Justamente o papel de permissivos normativos é realizado pelas causas de justificação, pois estas excluem a ilicitude de uma conduta típica, dentro de determinadas circunstâncias.

Em segundo lugar, as causas de justificação também representaram, sempre, um espaço de redução da intervenção penal, um recorte do âmbito de imputação, uma contribuição para a contração geral do sistema, algo sempre desejável.

Esta contração sistemática foi identificada por Roxin, quando o autor afirma que “é através das causas de justificação que a dinâmica das modificações sociais adentra na teoria do delito”8.

O comentário é oportuno, na medida em que a aceitação social de uma conduta, mesmo que não possa afastar, por si só, a tipicidade, é reveladora da inexistência tópica de necessidade de controle social, razão pela qual se impõe afirmar sua licitude.

Este recorte, que é antes material que formal, se infiltra no âmbito das justificações, como causa supralegal.

A despeito da permanência relativamente estável que possui o tipo, representando a expressão do princípio de legalidade, o âmbito de justificação é fluido, admitindo e absorvendo as mudanças sociais. Sustenta Roxin:

As razões pelas quais é permitido sequestrar pessoas, invadir domicílios ou lesionar fisicamente a outros, modificam-se constantemente. Cada alteração na ordem jurídico-penal ou civil, cada revisão das leis de polícia, cada variação nas concepções acerca do direito de castigar, da vacinação obrigatória, da esfera privada e dos direitos de protestar publicamente, criam ou eliminam causas de justificação. Este processo ocorre não só através de modificações na lei positiva, mas também por criação do direito costumeiro e jurisprudencial9.

7 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. manual de direito penal brasileiro: parte geral. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 540.

8 ROXIN, Claus. Kriminalpolitik und strafrechtssystem. Berlin: W. de Gruyter, 1973. p. 24.9 Ibid., p. 25.

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Roxin aduz que

A ordem jurídica como um todo contribui para a formação desses direitos de intervenção, que harmonizam a liberdade individual com a necessidade social. É a partir desta função político-criminal que deve ser levada a cabo a sistematização da antijuridicidade10.

A função da justificação, portanto, também é de formação de um equilíbrio, de harmonizar os interesses e conflitos sociais, sempre objetivando a melhor solução aplicável ao caso em concreto, a luz da melhor e maior proteção do bem jurídico tutelado11. Em todo caso, quando, pela via da justificação, algo que, em princípio, seria punível – porque típico – deixa de sê-lo, não há dúvida de que reside aí um potencial de redução da intervenção penal no controle social a ser visto como positivo.

1.1 A NECESSIDADE DE REGULAR SITUAçõES EXCEPCIONAIS

É mais do que evidente que não se pode pensar que a vida humana corre sempre dentro de condições normais. É também óbvio que as proibições jurídicas contempladas no plano da tipicidade são proibições associadas ao padrão de normalidade.

Por outro lado, a autorização para práticas ilícitas, especialmente quando estas se referem ao afastamento geral da ilicitude, ou seja, quando elas transcendem o autor e o âmbito penal, reclamam uma formulação prévia por meio de uma previsão jurídica expressa.

Assim, todo sistema precisa contar com um catálogo, tão preciso quanto possível, de causas legais de justificação, ou seja, de normas permissivas que descrevam situações excepcionais nas quais a prática de um tipo penal será tolerada.

Desde um ponto de vista meramente formal, é possível afirmar que a antijuridicidade é uma segunda etapa, que consiste em um juízo de valor distinto do juízo de tipicidade, porque na tipicidade se trata unicamente de uma subsunção entre o fato e a norma, enquanto que na antijuridicidade, se trata de valorar justamente se deve prevalecer, no caso concreto, a força da norma proibitiva típica ou da norma permissiva que indica a exceção que permite a realização do tipo de ação ou omissão.

Já dizia Giuseppe Bettiol que a antijuridicidade não é apenas um elemento do crime, mas é o principal deles, aquele que dota de sentido os problemas de Direito Penal,

10 ROXIN, op. cit., p. 25.11 Ibid., p. 24.

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“é o que faz com que o crime seja aquilo que ele efetivamente é”12. A antijuridicidade representaria justamente a contraposição entre o fato realizado e o valor jurídico contido na norma.

Daí que a doutrina preserve a ideia central de que a principal função da antijuridicidade seja a de promoção de uma prospecção negativa dela própria, por meio da determinação da eventual presença de alguma causa de justificação13. A existência de uma exceção regulamentada permite a absorção, pelo sistema normativo, de um espaço de racionalidade ampliado, onde se converte o reconhecimento da forma primariamente típica em uma ilicitude com maior carga material, adensando assim a reprovação jurídica.

Podemos, então, afirmar que a ordem jurídica não se esgota nas normas proibitivas, sendo, antes, composta pela ordem normativa complementada pelos preceitos permissivos. Enquanto os tipos proibitivos selecionam as condutas consideradas proibidas, constituindo a fundamentação da ilicitude, o tipo permissivo seleciona as condutas que se apresentam como antinormativas, mas não são ilícitas. Nestes termos, os tipos proibitivos revelam, numa atitude concreta e individualizadora, os bens jurídicos que devem ser protegidos, enquanto os tipos permissivos ou justificadores, por sua vez, sendo gerais e abstratos, aplicam-se a diversas situações, independentemente do tipo incriminador em análise14.

Podem, ainda, existir condutas que, sendo consideradas justas pela sociedade, não são previstas como justificadas; então, se a consciência social consente com esse comportamento, a necessidade de conservação do interesse comum faz com que o fato típico não seja considerado ilícito.

Isto se explica diante do fato inarredável de que, se a tipificação – em estreita obediência ao princípio de legalidade – pode e deve limitar-se ao prescrito em lei, as permissões, justamente por representarem a excepcionalidade, seriam capazes sempre de suplantar o mais vasto dos catálogos que fosse compendiado pela lei15.

12 BETTIOL, Giuseppe. Direito penal. Trad. de Paulo José da Costa Jr. e Alberto Silva Franco. São Paulo: RT, 1977. v.1, p. 364.

13 Nesse sentido, MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Derecho penal: parte general. 8. ed. Valencia: Tirant lo Blanch, 2010. p. 299.

14 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal: parte geral _ questões fundamentais, a doutrina geral do crime. Coimbra: Coimbra Editora, 2004. v. 1, p. 363.

15 Mezger já alertava que a existência de causas justificantes supralegais é uma decorrência natural do caráter fragmentário do Direito Penal, que jamais conseguiria catalogar todas as hipóteses em que determinadas condutas poderiam justificar-se perante a ordem jurídica, mesmo quando eventualmente venham a se adequar a algum tipo penal. Cf. Mezger, Edmund. tratado de derecho penal. Trad. de José Arturo Rodríguez Muñoz. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1935. p. 142.

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Ao lado disso, há de se considerar que se trata de normas permissivas e, dado que o que não se proíbe remanesce permitido, há sempre uma presunção de legitimidade de toda e qualquer conduta (como base da liberdade individual) que, para ser contraarrestada, demanda previsão legal. As causas de justificação, neste sentido, funcionam como um aditivo normativo ao princípio geral de liberdade individual.

Por esta razão, nada mais lógico do que o reconhecimento de um espaço para a ampliação das previsões legais justificantes para abrigar hipóteses supralegais. Aliás, de lege ferenda, seria prudente o emprego de uma cláusula de equiparação – abrindo espaço para a analogia – no catálogo geral das permissões, sejam elas fortes (justificações) ou fracas (exculpações).

Aliás, já é consagrado na doutrina que quando não há previsão legislativa em relação a uma conduta proibitiva, essa ausência não pode ser suprida por analogias, costumes ou princípios gerais, dentro do previsto pelo principio da reserva legal. Já as suas justificações não precisam ser de caráter especificamente penal, podendo provir da totalidade da ordem jurídica entendida como uma unidade16.

Podemos dizer que a regulação de causa de justificação tem sua necessidade central na busca pela constituição de garantias contra ações arbitrárias do poder punitivo do Estado, garantindo os direitos e liberdades do cidadão. O Direito Penal deve ser a ultima ratio na política social do Estado, o que significa que só devem ser punidas as penas e comportamentos socialmente lesivos se sua eliminação não for possível por meios menos gravosos.

A reserva do direito penal para hipóteses excepcionais é justamente sua força, reconhecendo que a intervenção penal é por si só um mal, uma violência institucionalizada que deve ser regulada.

Excluindo-se a ilicitude de uma determinada conduta quando seu valor não é entendido como inaceitável, garante-se essa minimização da intervenção estatal, principalmente em relação ao âmbito penal.

1.2 UM ESPAçO DE SOLUçãO DE CONFLITOS

A antijuridicidade é também considerada por boa parte da doutrina17 um espaço de solução de conflitos.

16 Nesse sentido, DIAS, op. cit., p. 365. 17 Veja-se, por todos, ROXIN, op. cit., p. 24 e ss. No Brasil, há referência nesse sentido, por exemplo, em

BITENCOURT, Cezar Roberto. tratado de direito penal: parte geral. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 395.

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Efetivamente, existe um interesse geral de persecução e condenação pela prática de fatos típicos contrapostos a um interesse específico e pessoal do agente em demonstrar a excepcionalidade da situação concreta e seu enquadramento em uma fórmula de exceção correspondente a uma norma permissiva.

Entre as várias teorias a respeito do fundamento das causas de justificação, a que parece ter mais ampla aceitação18 é a da colisão de interesses, ponderação de interesses ou interesse preponderante, segundo a qual, para que o comportamento possa ser considerado justificado, portanto, aceito pelo direito como não ilícito, é preciso que tal comportamento salve um interesse preponderante, vale dizer, um interesse ou valor maior ou mais importante do que aquele que sacrifica19.

Ou seja, se para preservar-se um bem de extrema importância não houver outra solução, o sacrifício de um bem de relevância menor, ou de igual tamanho, não pode ensejar numa reprovação social, e uma consequente reprimenda estatal.

Este fundamento é reconhecido como aquele que pode ser aplicado indistintamente a todas as causas de justificação. Trata-se de entender que “em todas as causas de justificação se permite a lesão a um interesse ou vem jurídico porque entra em conflito com outro interesse superior, de maior peso para o Direito”20.

Equacionar os conflitos sociais diários junto ao ordenamento jurídico vigente, nem sempre é questão de fácil elucidação. Todavia, as causas de justificação possuem o condão de minimizar e/ou neutralizar estes conflitos à luz do caso concreto, proporcionando e visando uma maior harmonização social.

Para Roxin “se analisarmos os meios através dos quais o legislador enfrenta o problema da solução social de conflitos, veremos que existe um número limitado de princípios ordenadores materiais, que determina, nas mais diversas variações, o conteúdo das causas de justificação”. Como exemplo cita Roxin, na legítima defesa, são os princípios da autodefesa e da proteção à ordem jurídica que fundamentam a regulamentação legal.

18 HASSEMER, Winfried; LARRAURI, Elena. Justificación material y justificación procedimental en el derecho penal. Madrid: Tecnos, 1997. p. 9.

19 Nesse sentido, comenta Fernando Galvão que: “A licitude da conduta lesiva ao bem jurídico somente poderá ser afirmada quando tal lesão for absolutamente necessária para proteger outro bem jurídico considerado como igual ou mais valioso. [...]

Nesse caso, o sentido da ordem jurídica indica a tolerância social em relação à conduta que protege o interesse considerado preponderante”. GALVãO, Fernando. Direito penal: parte geral. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 362-363.

20 LUZÓN PEÑA, Diego Manuel. Causas de atipicidad y causas de justificación. In: ______. causas de justificación y de atipicidad en derecho penal. Pamplona: Aranzadi, 1995.

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Isso significa: todos têm o direito de se defender contra agressões proibidas de forma que não sofram dano. Mas também quando houver a possibilidade de escapar da agressão, pode-se exercer a legítima defesa21.

Portanto, resta claro que as causas de justificação possuem papel relevante de um espaço para a solução de conflitos, uma vez que pode dirimir conflitos à luz de uma política criminal voltada a proteção dos bens jurídicos, bem como aos princípios ordenadores do conteúdo das causas de justificação.

Nesse diapasão, a aplicação da sanção penal nem sempre é a mais adequada ao caso concreto, devendo o operador do direito realizar profunda reflexão a respeito das causas de justificação junto a teoria do delito e, ponderar, o que é mais relevante para a proteção do bem jurídico e pacificação social, se a sanção penal aleatória e muitas vezes, uma mera inocuização temporária e parcial do agente apenado, ou a aplicação de uma causa de justificação que visa a harmonização individual e pacificação social.

2 As cAusAs De JustIFIcAÇÃo como sItuAÇões De FAto

Em geral, os ordenamentos jurídicos contém previsões legais de causas de justificação de caráter descritivo-material.

O fundamento da justificação repousa, em regra, no plano de uma situação concreta de emergência que coloca o agente na difícil posição de optar por duas condutas igualmente desvaliosas segundo sua avaliação pessoal do contexto e considera-se, em geral, justificada a ação empreendida para a salvaguarda de interesses preponderantes.

Estas circunstâncias podem ser classificadas de causas de justificação materiais, porquanto relacionadas a uma situação de fato concretamente instaurada.

As hipóteses doutrinária e legislativamente consagradas de modo geral22 ao menos nos sistemas penais do civil law são quatro, as mesmas elencadas na parte geral do Código penal brasileiro: a legítima defesa (Art. 25), o estado de necessidade (Art. 24), o estrito cumprimento do dever legal, e o exercício regular de direito (Art. 23).

21 ROXIN, op. cit., p. 26.22 Por exemplo, os Arts. 51, 52 e 54 do Código Penal italiano, elencados ao lado do consentimento da

vítima. O consentimento também aparece entre as formas clássicas de justificações do Código penal português, nos Arts. 32 a 39. Ao lado das justificações clássicas, no Código penal espanhol figura o chamado “medo insuperável”, reunidos todos às causas de exculpação no Art. 20. Também figuram reunidas justificações e exculpações em modelo semelhante no Art. 34 do Código Penal argentino.

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A legítima defesa é reconhecida como um direito à reação imediata de caráter defensivo contra uma agressão injusta de terceiro. De distintos modos as legislações buscam estabelecer os limites da atitude defensiva, dentro de um quadro de ponderação a respeito da razoabilidade dos meios empregados para defender-se.

A ideia deriva do fato de que presente a situação de emergência com caráter claro de injustiça não é lógico exigir que o atacado aguarde por uma intervenção protetora de parte do Estado, que pode tardar em cristalizar-se.

Do mesmo modo o estado de necessidade revela-se como situação emergencial, agora já não tendo por fonte uma agressão que possa ser qualificada normativamente como injusta, mas sim um risco concreto para um bem jurídico cuja preservação implica, não obstante, em sacrifício de outro bem jurídico.

Novamente está presente o quadro de ponderação e razoabilidade, que faz o recorte do espaço da justificação.

No que tange ao estrito cumprimento do dever, tal norma permissiva constitui uma exigência de ordem lógica que traduz a válvula de escape contra eventual esquizofrenia do sistema que possa prever um dever que constitua, ao mesmo tempo, violação de outro. No conflito entre deveres, um deles funciona como escusa ao descumprimento do outro.

Finalmente, o abrigo da compreensão geral de que se permite atuar até o limite do que não se proíbe, inclui uma distensão: as normas que contemplam afirmações de direitos.

Fora do âmbito das normas que correspondem ao binômio proibição/permissão, há uma série de outras, em especial fora do sistema punitivo, que tem o caráter de afirmar direitos.

A prescrição destas normas abre brechas no sistema de controle que obedecem também a uma construção de ordem lógica, já que o que está prescritivamente permitido não pode estar, ao mesmo tempo, prescritivamente proibido.

Daí que o exercício dos direitos, dentro de seus limites legais, afaste a ilicitude.

3 A NecessIDADe PoLítIco cRImINAL De cAusAs De JustIFIcAÇÃo esPecíFIcAs

As regras gerais, no entanto, por muito abrangentes que sejam, não conseguem cuidar de todos os caso, como bem demonstra a abertura necessária a causas supra-legais de justificação.

Não obstante, há concretos espaços em que o ordenamento jurídico percebe a existência de situação concreta cuja excepcionalidade tende a repetir-se e que politicocriminalmente exige o reconhecimento de uma permissão.

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Nestes casos, o sistema não permanece inerte, à espera de absorção da casuística pelo mecanismo de equiparação supralegal, senão que, ao contrário, lança-se à confecção de causas de justificação especialmente destinadas a uma figura delitiva ou a um grupo de delitos.

Tomando o Código penal brasileiro, tais hipóteses aparecem, por exemplo, no caso do Art. 128, relacionado ao aborto e no caso do Art. 142, relacionado aos crimes contra a honra.

No caso do Art. 128, por exemplo, uma das situações previstas é o aborto quando a gestação é derivada de um estupro.

Compreende-se que há uma sequela psicológica grave para a mãe derivada da condição de levar consigo por nove meses e depois ainda dar à luz o fruto de uma violência.

No caso do Art. 142, os limites das ofensas à honra são distendidos, entre outros casos, pela necessidade de pleno exercício da ampla defesa em situações onde a parte ou seu procurador, em defesa do seu interesse em uma causa, termina por realizar uma aflição à honra.

Isto serve para demonstrar que, conquanto existam causas gerais de justificação, capazes de abranger todos os delitos de modo igual, é perfeitamente possível detectar-se situações específicas, muitas vezes relacionadas de modo exclusivo a um determinado tipo ou uma determinada classe ou grupo de tipos, que reclamam, igualmente, o estabelecimento de normas legais, positivadas, a respeito da justificação, dada a amplitude de abrangência que merece o recorte do âmbito de imputação.

Estas situações, em uma sociedade complexa como a atual23, tendem a multiplicar-se e, como referem Hassemer e Larrauri24, “em muitos casos não existem mais normas sociais unívocas a respeito das quais fundar as normas jurídicas”, em virtude de uma crescente “complexidade moral, técnica social e científica”. Daí que não seja possível afirmar qual seria o interesse prevalente a reconhecer como apto a ser protegido, como é o caso da manipulação genética e a cura de doenças, a realização de obras públicas e a ofensa ambiental, e mais uma longa lista de hard cases.

23 A respeito da complexidade da sociedade pós-moderna ou da modernidade reflexiva, veja-se BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo. Trad. de Jorge Navarro, Daniel Jiménez e María Rosa Borrás. Barcelona: Paidós, 1998 e BERIAIN, Josetxo; AGUILUZ, Maya (Ed.). Las contradicciones culturales de la modernidad. Barcelona: Anthropos, 2007.

24 HASSEMER; LARRAURI. op. cit., p. 10.

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Ou seja, a complexidade da sociedade moderna conduz a situações limite onde a própria uniformização de regras permissivas específicas dirigida a casos concretos é extremamente dificultada.

4 o PRoceDImeNto como FóRmuLA De JustIFIcAÇÃo

É justamente neste vácuo que se insere a justificação procedimental. Da mesma forma que a descrição de fato de uma situação específica relacionada a um tipo ou a um grupamento de tipos é capaz de demonstrar a existência de uma ponderação de interesses que pende em favor do afastamento da ilicitude do fato, há outros casos em que, não obstante a ponderação de interesses não tenha lugar, o recorte adequado do âmbito do ilícito decorre do ganho para bens ou interesses jurídicos decorrentes de uma fórmula estritamente procedimental.

Nestes casos, ao contrário da existência de um contexto fático ou material de justificação, o que existe é uma estrutura procedimental que oferece um ganho ao bem jurídico ou ao interesse jurídico capaz de superar a necessidade de afirmação do ilícito.

Na verdade, trata-se de ampliar o espectro de princípios justificantes, através da demonstração da possibilidade de reconhecer como autorizado pelo direito um comportamento ordenado procedimentalmente25.

4.1 O CASO DO ABORTO NA ALEMANHA

Hassemer dedicou preciso estudo26 a respeito de uma decisão da Corte Constitucional alemã a respeito do aborto para discutir a existência de um espaço procedimental para a justificação.

A primeira proposição de amenizar as penas nos casos de aborto, e a possibilidade da gestação ser interrompida nas primeiras 12 semanas, na Alemanha, ocorreu em 1º de fevereiro de 1975, através da decisão 39 do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (Bundesverfassungsgerichts, BverfGE), posicionamento este muito mal recepcionado, principalmente por entidades religiosas. O descontentamento social foi tão intenso, que o grupo da União Democrata Cristã entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade,

25 Cf. HASSEMER; LARRAURI, op. cit., p. 10.26 Trata-se de HASSEMER; LARRAURI, op. cit.

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sendo que esta foi julgada procedente pela Corte alemã, através da decisão de 25 de fevereiro de 1975, que se resume ao seguinte:

A decisão de 25 de fevereiro de 1975 confirmou as “suspeitas”, a Corte declarou inconstitucional e em conseqüência nulo (nichtig) o § 218 do Código Penal por não ser coincidente com os artigos 2, parágrafo 2, oração 1 (direito à vida) em conexão com o artigo 1, parágrafo 1 (princípio de dignidade) ambos da Lei Fundamental (GG) devido a que despenaliza a interrupção da gestação quando não existem razões que tenham prioridade sobre a ordem de valores da Lei Fundamental27.

Entretanto, a Corte alemã persistiu com sua luta para reduzir as taxas de aborto no país, viabilizando uma maior proteção aos bens jurídicos. Em 28 de maio de 1993, por meio de uma decisão do Tribunal Constitucional alemão, foi considerada constitucional a Lei de ajuda à gravidez e à família, dispositivo que consistia em “determinar uma regulamentação da interrupção da gravidez, com vigência em toda a Alemanha, suprimindo as diferenças jurídicas existentes entre as partes reunificadas da Alemanha28”. Tal legislação previa uma

27 Resumo do caso por Geraldina González de la Veja. Disponível em: <http://treboles.tumblr.com/post/10681890621/la-interrupcion-del-embarazo-en-alemania>. Acesso em: 17 fev. 2013.

28 Disponível em: Resúmenes de información” (Informatorische Zusammenfassungen) de la Europäische Grundrechte Zeitschrift (EuGRZ), cuaderno 9-10, 4. VI. 1993, p. 1-3 (para la nota de prensa) y EuGRZ, Idem, p. 229 (para las directrices). Tradución de Manuel Fontán del Junco.

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alteração nos §§ 21829 e 21930 do Código Penal alemão (Strafgesetzbuch, StGB), que tratavam, especificamente da problemática penal do aborto.

Com essa emenda legal, passou a ser permitido o aborto realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez, desde que a mãe seja assessorada por um grupo de especialistas, que tem como principal intento a reconsideração do ato, por parte da mãe, mediante sessões que elucidem as consequências e riscos que podem advir da prática abortiva, além de ressaltar os benefícios que o Estado pode conceder às famílias desestruturadas.

Com essas medidas, busca-se a cooperação da mãe, através do devido acompanhamento, para que os índices de aborto sejam reduzidos, como bem ressalta o seguinte excerto:

29 1) O tipo penal do § 218 não se realiza quando: (1) a grávida solicita a interrupção da gestação e demonstrou ao médico por meio de um certificado

segundo o § 219 inciso 2 frase 2, que ela se deixa assessorar pelo menos três dias antes da intervenção. 2. a interrupção da gestação é praticada por um médico, e 3. desde a concepção não transcorreu mais de doze semanas.

(2) A interrupção da gestação praticada por um médico com consentimento da grávida não é antijurídica quando de acordo com o conhecimento médico seja necessária a interrupção para eliminar um perigo para a vida da grávida e o perigo de um prejuízo muito grave para sua saúde física ou anímica, e este perigo não possa ser eliminado de outra maneira exigível para ela.

(3) Os pressupostos do inciso 2, se dão como cumpridos também no caso de uma interrupção da gravidez que foi praticado por um médico com consentimento da grávida quando segundo o informe médico, se cometeu contra a grávida um dos fatos antijurídicos segundo os §§ 176 a 179 do Código Penal e existam razões fundadas para a crença de que a grávida se fundamento no fato e que desde a concepção não transcorreu mais de doze semanas.

(4) A grávida não será castigada de acordo com o § 218, quando a interrupção da gravidez tenha sido praticada depois do assessoramento (§ 219) de um médico e desde a concepção não tenham transcorrido mais de 22 semanas. O tribunal pode prescindir do castigo segundo o § 218 quando a grávida ao tempo da intervenção se encontrasse em especial situação de urgência.

30 § 219 Assessoria da grávida em situação de necessidade e conflito: (1) A assessoria serve para a proteção da vida pré-natal. Deve estar orientada pelo empenho em animar à mulher para continuar com a gravidez e abrir-lhe perspectivas para uma vida com o filho. A assessoria deve contribuir a que a mulher tome uma decisão responsável e conscientizada. Em relação a isto a mulher deve ser consciente de que o nascituro tem, em cada estagio da gravidez também frente a ela um direito próprio à vida e que por isso, segundo o ordenamento jurídico, uma interrupção da gravidez só se leva em consideração como uma situação excepcional quando a gestação do nascituro resulta uma carga que é tão difícil e extraordinária para a mulher que ultrapasse o limite exigível de sacrifício. A assessoria pretende contribuir por meio do conselho e da assistência a superar a relação conflituosa existente com a gravidez e a eliminar uma situação de necessidade. Maiores detalhes estão regulamentados na lei de conflito na gravidez (Schwangerschaftskonfliktgesetz) (2) A assessoria deve efetuar-se de acordo com a lei de conflito na gravidez (Schwangerschaftskonfliktgesetz) através de uma entidade assessora para conflito na gravidez reconhecida com base na lei de conflito na gravidez. Esta entidade assessora deve expedir à grávida ao término da assessoria, uma certificação a respeito, que contenha a data da última entrevista de assessoria indicando o nome da grávida a teor da lei de conflito na gravidez (Schwangerschaftskonfliktgesetz). O médico que efetue a interrupção da gravidez fica excluído como conselheiro.

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A Turma considera legal e constitucionalmente admissível que, para a proteção da vida humana do não nascido, o legislador escolha um modo de regulamentação que, na fase precoce de uma gestação, ofereça sobretudo orientação e ajuda para a mulher grávida em seus problemas de gravidez, a fim de obter a gestação do filho, e que, ao mesmo tempo, a notoriedade e os efeitos da consulta não impliquem uma ameaça penal para a interrupção da gestação que a mulher levará a cabo depois da consulta.

[...] Se o legislador, mediante considerações defensáveis, chegar à conclusão de que lhe seria possível proteger com eficácia ao nascituro e a mãe na fase precoce da gestação, com base em buscar como aliada a mãe, ao invés de ameaçá-la com uma pena por uma ação que supõe uma infração da proibição de interromper a gestação, então poderia levar a cabo essa proteção mediante um regramento da consulta orientativa31.

A discussão da legislação alemã proposta por Hassemer32 é no sentido da identificação, a partir da decisão da Corte constitucional, da existência de um espaço para a justificação penal que escapa do âmbito da mera afirmação material da tese geral de prevalência do interesse superior, e passa a apresentar uma fundamentação diferente, subsidiária ou complementar, em formato completamente discursivo para a justificação.

1.3.2 A Recente Tratativa do Aborto no Uruguai

Tal tratativa descriminalizante do tipo penal de aborto, mais recentemente, foi adotada pelo Uruguai, mais precisamente em 17 de outubro de 2012, ocasião em que o Parlamento uruguaio promulgou a Lei no 18.987, que versa sobre novas casos em que o aborto deixa de ser antijurídico. Entra em cena, aqui, no panorama legislativo sul-americano, de modo completamente inovador, uma justificação de caráter procedimental, que segue claramente os moldes da lei alemã de 1994.

A Lei no 18.987 afasta a incidência das sanções previstas nos Arts. 325 e 325b33 do Código Penal do Uruguai, quando a mulher realizar o aborto dentro das 12 primeiras semanas de gestação, e desde que ela comprove que passou por um assessoramento, que

31 Resúmenes de información” (Informatorische Zusammenfassungen) de la europäische grundrechte Zeitschrift (eugRZ), Kehl, cuaderno 9-10, 4. VI. 1993, p. 145-146.

32 HASSEMER; LARRAURI, op. cit., p. 14.33 Artículo 325. (Aborto con consentimiento de la mujer): La mujer que causare su aborto o lo consintiera

será castigada con prisión, de tres a nueve meses. 325 bis. (Del aborto efectuado con la colaboración de un tercero con el consentimiento de la mujer): El que colabore en el aborto de una mujer con su consentimiento con actos de participación principal o secundaria será castigado con seis a veinticuatro meses de prisión.

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lhe explicasse os riscos que o ato abortivo poderia lhe causar, além de lhe informar quais benefícios que o Estado poderia lhe prover, em casos de dificuldades34.

Esses exemplos de justificações em países com realidades tão diferentes, Alemanha e Uruguai, permitem constatar que não obstante a complexidade das relações da vida moderna, há um espaço de evolução para as normas permissivas, desde que estas não permaneçam atreladas a situações de fato que por sua disparidade, são de difícil homogeinização. O caminho se abre pela via procedimental.

34 Artículo 2º (Despenalización). La interrupción voluntaria del embarazo no será penalizada y en consecuencia no serán aplicables los artículos 325 y 325 bis del Código Penal, para el caso que la mujer cumpla con los requisitos que se establecen en los artículos siguientes y se realice durante las primeras doce semanas de gravidez. Artículo 3º. (Requisitos)._ Dentro del plazo establecido en el artículo anterior de la presente ley, la mujer deberá acudir a consulta médica ante una institución del Sistema Nacional Integrado de Salud, a efectos de poner en conocimiento del médico las circunstancias derivadas de las condiciones en que ha sobrevenido la concepción, situaciones de penuria económica, sociales o familiares o etarias que a su criterio le impiden continuar con el embarazo en curso.

El médico dispondrá para el mismo día o para el inmediato siguiente, la consulta con un equipo interdisciplinario que podrá ser el previsto en el artículo 9º del Decreto 293/010 Reglamentario de la Ley nº 18.426, de 1º de diciembre de 2008, el que a éstos efectos estará integrado al menos por tres profesionales, de los cuales uno deberá ser médico ginecólogo, otro deberá tener especialización en el área de la salud psíquica y el restante en el área social.

El equipo interdisciplinario, actuando conjuntamente, deberá informar a la mujer de lo establecido en esta ley, de las características de la interrupción del embarazo y de los riesgos inherentes a esta práctica. Asimismo, informará sobre las alternativas al aborto provocado incluyendo los programas disponibles de apoyo social y económico, así como respecto a la posibilidad de dar su hijo en adopción.

En particular, el equipo interdisciplinario deberá constituirse en un ámbito de apoyo psicológico y social a la mujer, para contribuir a superar las causas que puedan inducirla a la interrupción del embarazo y garantizar que disponga de la información para la toma de una decisión consciente y responsable.

A partir de la reunión con el equipo interdisciplinario, la mujer dispondrá de un período de reflexión mínimo de cinco días, transcurrido el cual, si la mujer ratificara su voluntad de interrumpir su embarazo ante el médico ginecólogo tratante, se coordinará de inmediato el procedimiento, que en atención a la evidencia científica disponible, se oriente a la disminución de riesgos y daños. La ratificación de la solicitante será expresada por consentimiento informado, de acuerdo a lo dispuesto en la Ley nº 18.335, de 15 de agosto de 2008, e incorporada a su historia clínica.

Cualquiera fuera la decisión que la mujer adopte, el equipo interdisciplinario y el médico ginecólogo dejarán constancia de todo lo actuado en la historia clínica de la paciente.

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6 As bAses DA JustIFIcAÇÃo PRoceDImeNtAL

Hassemer, debruçando-se sobre a apreciação da decisão da Corte Constitucional alemã sustenta que, embora tenha havido dissenso entre os julgadores35 a respeito da natureza jurídica do instituído pelo dispositivo normativo, “vê-se, à primeira vista, que se trata de uma causa de justificação (“não é antijurídico”) da lesão a um bem jurídico (morte de uma vida dependente) y que esta causa de justificação não responde aos cânones habituais”36.

Isto porque não se exige nenhuma prevalência de interesse preponderante, a constatação da justificação não depende de um juízo axiológico do magistrado e, finalmente, a decisão sobre a salvação ou lesão do bem jurídico é trasladada para a própria autora do fato37.

Surge, portanto, em princípio, uma nova fórmula justificante.

O direito estaria aceitando qualquer decisão da mulher, desde que esta aceite o assessoramento. Esta fórmula seria reconhecida como a melhor maneira de oferecer proteção ao bem jurídico vida no caso do aborto38.

A oposição geral que se formularia a este modelo de justificação seria a necessidade da presença da salvaguarda de um interesse prevalente e a necessidade do reconhecimento judicial da justificação.

Ocorre que, no caso do aborto, bem como em vários outros casos da vida moderna (hard cases), há grande dificuldade na identificação do interesse que deve ser prevalente e a submissão ao assessoramento como procedimento, antecipa ao tempo em que amarra a decisão judicial.

Hassemer39 destaca parte importante do voto do Juiz Bockenförde, que chama a atenção para o fato de que a manutenção da afirmação de que os abortos assessorados sigam sendo antijurídicos contrasta com sua condição de serem conformes ao direito.

35 A maior parte dos julgadores, contraditoriamente, reconheceu a autorização do aborto nas condições previstas pela legislação, mas relutou em reconhecer a existência de uma situação de justificação, fulcrando-se nas razões tradicionais de que uma causa de justificação exige a salvação de um interesse prevalente e sua existência deve ser constatada no caso concreto pelo juiz penal. No entanto, Hassemer pondera que as opiniões discrepantes de alguns julgadores (especificamente Mahrenholz e Sommer) em favor da justificação é a tese que deve prevalecer, reconhecendo-se sua forma procedimental. In: HASSEMER, Winfried; LARRAURI, Elena. op. cit., p. 15-20.

36 HASSEMER; LARRAURI, op. cit., p. 14.37 Cf. HASSEMER; LARRAURI, op. cit., p. 14.38 HASSEMER; LARRAURI, op. cit., p. 16.39 HASSEMER; LARRAURI, op. cit., p. 19.

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A questão toda se resume então ao reconhecimento da possibilidade de que, à margem da ponderação entre bens jurídicos e a despeito do reconhecimento de uma situação fática exigente da ponderação judicial, seja possível reconhecer uma situação juridicamente justificada.

Nos dois casos, da legislação uruguaia e da legislação alemã, o que existe em comum é a presença de um procedimento ao qual, submetida a mulher, a realização do aborto passa da condição de ilicitude para a condição de licitude.

Albin Eser40 há tempos já apontava para um modelo de “discurso orientado às situações de necessidade” que, na visão de Hassemer41, retira sua força argumentativa justamente do esgotamento do modelo de intimidação através de um juízo de terceiros, passando para um modelo que se baseia na própria decisão do implicado.

O assessoramento, de fato, ocupa o centro da proteção de bens jurídicos e, quanto mais bem organizado for, melhor será o resultado produzido.

É claro que o modelo de intervenção penal aqui se modifica, pois já não se trata de uma persecução básica com o reconhecimento exógeno e a posteriori de uma eventual situação de justificação, senão que, ao contrário, se trata de franquear a justificação antecipadamente e permitir, com isso, a opção por este caminho para aquele que decide pela realização de um fato, em princípio, típico.

Na verdade, como bem refere Hassemer:

[não se trata de que] o direito penal seja quantitativamente menor ou qualitativamente menos severo. Significa que o direito penal se desloca do centro de proteção do bem jurídico para a periferia; protege o bem jurídico só de forma mediata: mediante a proteção do assessoramento e das condições de decisão, que, nesta concepção, são os que devem proteger imediatamente ao bem jurídico42.

Importa notar que não é apenas no âmbito do aborto que uma política criminal orientada à proibição, com mero reconhecimento tópico da exclusão de antijuridicidade pela via da análise judicial a posteriori resulta ineficaz no sentido dissuasório, a despeito da identidade do bem jurídico. Os casos de contribuição para o suicídio, os casos de crimes relacionados ao uso de drogas, entre outros, teriam melhor tratativa, com redução de

40 Aponta-se, como fonte, o artigo publicado por Eser como: ESER, Albin. Schwangerschaftsabbruch zwischen Grundwertorientierung und Strafrecht – eine rechtspolitische Überlegungsskizze. In: ZEITSCHRIFT FÜR RECHTSPOLITIK, München: C.H. Beck, 1991. p. 291ss.

41 HASSEMER; LARRAURI, op. cit., p. 22.42 Ibid., p. 24.

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danos provocados pela intervenção penal, se aberta a via de justificação procedimental, com traslado da decisão para o âmbito do implicado.

É óbvio que o esclarecimento real das consequências para o afetado pela decisão – especialmente, por exemplo, na questão do uso de drogas – resultaria mais exitoso do que uma política de repressão quanto à pretendida redução de ocorrências.

Importa notar, ainda, que a fórmula procedimental é obviamente mais exitosa não por um mero acaso, mas sim porque corresponde a um raciocínio retirado das bases filosóficas melhor elaboradas.

A procedimentalização é a fórmula por excelência das teorias filosóficas e do conhecimento associadas à linguagem.

Uma ideia de procedimentalização não positivista visa não a afirmação retroativa de uma verdade a ser reconhecida e descrita, mas sim à produção de um resultado mais justo a ser, como tal, compreendido.

Daí que os critérios de justiça devam estar associados ao emprego do procedimento exemplar necessário para buscá-la: uma discussão comum, com igualdade de possibilidades de participação e crítica43.

Ora, isto é exatamente o que ocorre na justificação procedimental. O chamamento, a convocação do implicado pelas consequências do reconhecimento da situação de ilicitude participa da decisão a respeito de se deve ou não sua conduta ser considerada ilícita, a raiz de sua própria escolha a respeito da submissão ou não ao procedimento que torna lícita a decisão típica.

Importa perceber, neste contexto, que deixa de ser a questão de fato implicada que aciona a chave do controle penal, mas sim o descumprimento do procedimento que confere validade a tal controle.

A diferença crucial se estabelece no binômio inclusão/exclusão. Enquanto a justificação material impõe padrões exógenos de comportamento, admitindo a validade do controle a partir de uma chave cuja decisão não inclui aquele que sofre as consequências da coerção, a justificação procedimental impõe como condição de validade do controle a preservação do padrão de procedimento como fórmula discursiva que exige a participação e a inclusão com poder de decisão daquele que pode sofrer as consequências coercitivas.

43 Sobre o tema, veja-se HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. I. Trad. de Fábio Beno Siebenheichler. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 247 ss.

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Parece claro, do ponto de vista da política criminal, que o convite para o âmbito discursivo daquele contra quem se dirige o mecanismo de controle trabalha em sentido de diminuição das chamadas cifras negras de criminalidade44.

Ainda, a redução dos padrões de ilicitude implicam em necessária redução dos negativos efeitos do etiquetamento (labeling approach).

Do mesmo modo, com a definição procedimental do padrão de ilícito, impede-se o incremento dos paradigmas etiológicos da sua definição.

Hassemer45 menciona que o reconhecimento de que o assessoramento da gestante, nos casos de aborto, conjuntamente com outras medidas, é a melhor forma de proteção da vida, é preciso aceitar o resultado do assessoramento, ou seja, que o fato praticado sob sua égide está juridicamente justificado.

Importa ressaltar que a adoção de uma justificação procedimental em casos de aborto não supõe um abandono do bem jurídico, mas sim, pelo contrário, uma preservação de sua proteção, deslocando o âmbito de atuação do direito, para a fórmula da justificação.

Segundo Hassemer46, não significa que “o Direito penal seja quantitativamente menor ou menos severo”, mas sim que “se desloca do centro de proteção do bem jurídico para a periferia; protege o bem jurídico só de forma mediata: mediante a proteção do assessoramento e das condições da decisão, que nesta concepção são os que devem proteger imediatamente o bem jurídico”.

Com efeito, ao permitir uma decisão esclarecida e consciente, associada à oportunidade de que o sistema de saúde proceda a intervenção, quando autorizada, abandonam-se dois fatores preponderantes na determinação da ocorrência de lesões contra o bem jurídico vida do nascituro: ignorância e clandestinidade.

É possível que, nos crimes sem vítima (p. e.: uso de drogas) ou nos quais a vítima é impossibilitada de denunciar ou opta por não o fazer (p. e.: aborto ou auxílio ao suicídio), a criminalização exista tão somente por critérios morais, religiosos, classistas, sexistas, racistas

44 Cf. a respeito, GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, A. tratado de criminologia. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2009, p. 291. v. 1.

45 HASSEMER; LARRAURI, op. cit., p. 16.46 Ibid., p. 24.

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ou xenófobos (e não necessariamente jurídicos)47, o que, em termos político-criminais, pode ser complicado ou até mesmo desfuncional sustentar, ainda mais considerando a capacidade criminógena – e aqui mora o grande perigo da reação social – das instituições formais criminais.

Não há como negar que o mecanismo das causas de justificação consegue adaptar melhor a normatividade às adversidades que o Direito nem sempre pode prever e que, de certo modo, conseguem evitar minimamente o fenômeno do labeling approach. Não se valora como homicida aquele que se defende proporcionalmente em legítima defesa, nem como canibal aquele que sobrevive com carne humana para suprir um notório estado de necessidade e, segundo a legislação brasileira, pode abortar a mulher que, estuprada, engravide. Pontua-se, portanto, que as causas de justificação ampliam o controle do direito sem que ele seja necessariamente mais rigoroso e, em verdade, torna-o mais compreensivo por evitar a ultima ratio penal – eis o caso das causas de justificação por procedimento.

A permissão para aborto no Uruguai, como descrito nos tópicos anteriores, exige um procedimento tal que conduz a gestante a uma decisão mais próxima da racionalidade (com acompanhamento psicológico, terapêutico e médico especializado). O mesmo não aconteceria (nem acontece) com a criminalização total do aborto e nem mesmo com a sua descriminalização absoluta. Tal como o caminho do meio de Aristóteles, a justificação pelo procedimento é capaz de resolver um dos maiores impasses dos movimentos de descriminalização ou neocriminalização (ainda que o último não o reconheça de modo pleno): a tomada racional de decisão orientada em prol do bem jurídico.

47 MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho penal y control social. Bogotá: Themis, 2004. p. 32, explica: “[...] A prevenção geral estabilizadora pode ter, com efeito, como diz MIR PUIG, ‘um sentido moralizante, de imposição mediante a coação da pena de uma adesão interna dos cidadãos aos valores jurídicos, e isto seria absolutamente impróprio de um direito penal de garantia do indivíduo’. [...] Com um entendimento da pena como prevenção integradora se pretende, em última instancia, alcançar um consenso de maiorias que, como a experiência histórica demonstra, pode desembocar em um claro processo de facistização social, no qual o indivíduo desaparece devorado por essa máquina terrível que é o Leviatã estatal”.

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RESUMO

O objetivo deste trabalho é fazer uma análise acerca da constitucionalidade da lei que instituiu o regime disciplinar diferenciado em razão da violação a diversos princípios constitucionais, em especial o princípio da legalidade. Pretende-se demonstrar ainda que a referida legislação é uma “legislação de pânico”, criada de forma emergencial e pautada em preceitos como o “Direito Penal do terror” e o “Direito Penal do Inimigo”.

Palavras-chave: Princípio da Legalidade. Execução penal. Regime Disciplinar Diferenciado.

AbStRAct

The objective of this study is to analyze the constitutionality of the law that has instituted the “regime disciplinar diferenciado”, due to the violation of several constitutional principles, especially the principle of legality. It is intended to further demonstrate that the legislation is a “panic legislation”, created in emergency basis and guided by principles such as “Criminal Law of terror” and the “Criminal Law of the Enemy”.

Keywords: Principle of Legality. Criminal Enforcement. Differencial Disciplinary Sheme.

O REGIME DIScIPLINAR DIFERENcIADO E O PRINcÍPIO DA LEGALIDADE

thE DIScIPLINARy SchEME DIFFERENcIAL AND thE PRINcIPLE OF LEGALIty

Luiza Isfer Ravanello1

Paulo César Busato2

1 Assessora de Estabelecimento Penal da Defensoria Pública do Estado do Paraná.2 Procurador de Justiça do Estado do Paraná, Professor Adjunto de Direito Penal da Universidade Federal

do Paraná, Professor de Direito penal da FAE-Centro Universitário Franciscano. Doutor em Problemas Atuais do Direito Penal pela Universidade Pablo de Olavide de Sevilha, Espanha, Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí, Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra.

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INtRODUÇÃO

Este trabalho pretende discutir a constitucionalidade do regime disciplinar diferenciado frente aos princípios constitucionais, em especial em relação ao princípio da legalidade, bem como discutir o modelo dogmático adotado pela referida legislação.

A sua relevância é irrefutável, tendo em vista a importância dos princípios em nosso ordenamento jurídico e as graves consequências que as violações a eles podem ocasionar, principalmente no campo do Direito Penal, área que afeta os direitos dos cidadãos de forma tão drástica que merece especial atenção de nosso legislador e dos aplicadores do direito.

Para discutir o tema, será feita breve análise acerca do princípio da legalidade, seu histórico, seus fundamentos e seus desdobramentos, tais como a reserva legal, a determinação taxativa, a irretroatividade e a necessidade, bem como sua aplicação no campo da execução penal.

Será feito ainda um breve histórico sobre a criação do regime disciplinar diferenciado, suas hipóteses de cabimento e de que forma afronta não só o princípio da legalidade, mas também outros importantes princípios constitucionais.

1 PRINcÍPIO DA LEGALIDADE

No presente tópico será apresentado breve histórico do princípio da legalidade, com uma explanação acerca de seus fundamentos, político e jurídico, bem como os seus desdobramentos, que podem ser definidos na reserva legal, determinação taxativa, irretroatividade e necessidade.

1.1 HISTÓRICO

Grande parte da doutrina afirma que o princípio da legalidade encontra origem no ano de 1215, na Magna Charta Libertatum do Rei João Sem Terra, que em seu artigo 39 determinava que quando se tratasse de matéria penal, o caso deveria ser julgado de acordo com a Lei da Terra.3

3 LUISI, Luiz. Os Princípios constitucionais Penais. 2. ed. Porto Alegre: S. A. Fabris, 2003 p. 110.

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Entretanto, há autores que divergem desse posicionamento. Citamos como exemplo o entendimento defendido por Manoel Cobo Del Rosal e Tomás Vives Ánton4, que entendem que a Magna Charta Libertatum deu origem a chamada rule of law que, embora encontre semelhanças com o princípio da legalidade, encontra também diferenças substanciais.

Enquanto o referido princípio traduz o predomínio da Lei sobre os juízes, a rule of law representaria uma garantia jurisdicional, um conjunto de regras processuais a que as Cortes Reais deveriam se submeter.

Após, foi Thomas Hobbes quem discursou acerca da necessidade da anterioridade da lei para a criação de delitos, entretanto, não aplicava esse princípio em relação às penas, que poderiam ser editadas após a prática do crime.

Paulo César Busato5 leciona que, em razão da legalidade ser o princípio norteador das liberdades cidadãs, somente podemos falar nele em um Estado Constitucional, de forma que poderíamos situar a origem desse instituto na queda da Bastilha, durante a Revolução Francesa.

Eugenio Raúl Zaffaroni leciona ainda que a sua expressão constitucional surge junto com o próprio constitucionalismo, com a Constituição dos Estados Unidos e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e, especificamente no âmbito penal, foi expresso pela primeira vez por Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach.6

A formulação do princípio da forma como o entendemos possui grande contribuição de Cesare Beccaria, que afirmou em seu livro “Dos Delitos e das Penas”, que os crimes e as penas deveriam estar previamente previstos:

A primeira consequência que se tira desses princípios é que apenas as leis podem indicar as penas de cada delito e que o direito de estabelecer leis penais não pode ser senão da pessoa do legislador, que representa toda a sociedade ligada por um contrato social. Ora, o magistrado, que é parte dessa sociedade, não pode com justiça aplicar a outro partícipe dessa sociedade uma pena que não esteja estabelecida em lei; e a partir do momento em que o juiz se faz mais severo do que a lei, ele se torna injusto, pois aumenta um novo castigo ao que já está prefixado.7

4 COBO DEL ROSAL, Manuel; VIVES ANTÓN, Tomás Salvador. Derecho penal. Parte general. 5. ed. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1999. p. 68.

5 BUSATO, Paulo César. Fundamentos do direito penal brasileiro. 3. ed. Curitiba: Paulo César Busato, 2012. p. 236.

6 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho penal: parte general. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002. p. 111-112.

7 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas.Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: M. Claret, 2007. p. 20.

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Mas foi Paul Johann Anselm Ritter von Feuerbach que deu origem a fórmula que hoje expressamos nos seguintes brocados latinos: nullum crimen, nulla poena sine previa lege.

Inicialmente Feuerbach enunciou o princípio da seguinte forma: “nulla poena sine lege” (toda imposição de pena pressupõe uma lei penal); “nulla poena sine crimine” (a imposição de uma pena está condicionada a existência de uma ação cominada); “nullum crimen sine poena legali” (o fato juridicamente cominado – pressuposto legal – está condicionado pela pena legal, ou seja, o mal como consequência jurídica necessária se vinculará mediante lei a uma lesão jurídica determinada).8

Essa pode ser interpretada como a teoria da coação psicológica, pois somente a ameaça de um mal, através de uma lei que a fundamente, dá a noção e a possibilidade jurídica de aplicação de uma pena.9

Com o passar do tempo o princípio da legalidade sofreu modificações, deixando de se limitar somente a reserva legal e a anterioridade da lei e passando a pregar a necessidade da lei, além de ser prévia, ser também clara e precisa.

1.2 FUNDAMENTOS

Jorge de Figueiredo Dias10 leciona que o princípio da legalidade possui diversos fundamentos, alguns externos, ligados à concepção de Estado, e outros internos, de natureza jurídico-penal.

Os fundamentos externos são o princípio liberal, o princípio democrático e o princípio da separação dos poderes.

Primeiramente, o princípio liberal determina que toda atividade do Estado que intervenha na esfera dos direitos, garantias e liberdades dos cidadãos, deve estar fundamentada em uma lei geral, abstrata e anterior.

Em relação ao princípio democrático e ao da separação dos poderes, têm-se que a intervenção penal, diante de sua gravidade, somente pode ser operada por aquele que represente o Povo e tenha a titularidade do ius puniendi.

8 FEUERBACH, Paul Johann Anselm Ritter von. tratado de derecho penal. Tradução de Eugenio Raul Zaffaroni e Irma Hagemeier. Buenos Aires: Hammurabi, 2007. p. 55.

9 FRAGOSO, Heleno Claudio. Lições de Direito Penal (Parte Geral). Atualização de Fernando Fragoso. 16. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004. p. 111.

10 DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal – Parte Geral – Tomo I. São Paulo: RT, 2007. p. 179-180.

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Ou seja, o princípio da legalidade em sua dimensão política determina o predomínio do Poder Legislativo como órgão representante da vontade de todos, frente aos demais poderes do Estado.11

Já os fundamentos internos podem ser definidos na prevenção geral e no princípio da culpa. Afinal, não se pode esperar que a norma cumpra sua função negativa, ou seja, intimidadora, tampouco sua função positiva, em relação as expectativas, se os agentes não puderem saber, através de lei anterior, estrita e certa, qual é o limite entre a conduta considerada lícita e aquela que é considerada ilícita.

Ademais, o princípio da legalidade é o maior limitador de arbítrios estatais, conforme leciona Cezar Roberto Bitencourt:

A gravidade dos meios que o Estado emprega na repressão do delito, a drástica intervenção nos direitos mais elementares e, por isso mesmo, fundamentais da pessoa, o caráter de ultima ratio que esta intervenção deve ter, impõem necessariamente a busca de um princípio que controle o poder punitivo estatal e que confine sua aplicação em limites que excluam toda arbitrariedade e excesso do poder punitivo.12

Ainda, nas palavras de Manuel Cobo Del Rosal e Tomás Salvador Vives Antón13: “En última instancia, el principio de legalidad es expresión de los dos valores básicos de todo ordenamiento jurídico: la libertad y la igualdad”

Dessa forma, podemos concluir que esse princípio essencial é o maior garantidor das liberdades, uma vez que limita os arbítrios estatais, se desenrolando em quatro postulados: a reserva legal, a determinação taxativa, a irretroatividade e a necessidade.

Paulo César Busato14 leciona acerca do duplo fundamento desse princípio, o técnico e o político. Em relação ao fundamento político, podemos dizer que ele encontra amparo na separação de poderes, inspirada nos ideais da Revolução Francesa, que buscava a participação popular no poder. Portanto, somente o Poder Legislativo, que representa a vontade geral, poderá estabelecer as leis.

No caso do Direito Penal brasileiro, cabe privativamente à União a competência para legislar sobre Direito Penal (Art. 22, inciso I, Constituição Federal), sendo que essa atribuição deve ser exercida de modo a respeitar os procedimentos constitucionais do

11 BUSATO, op. cit., p. 240.12 BITENCOURT, Cezar Roberto. tratado de direito penal: parte geral 1. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2013,

p. 50.13 COBO DEL ROSAL; VIVES ANTÓN, op. cit., p. 74.14 BUSATO, op. cit., p. 240.

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processo legislativo (Art. 59, Constituição Federal), através do Congresso Nacional (Art. 48, Constituição Federal).

Cabe ao Poder Judiciário tão somente determinar se no caso concreto houve a realização da conduta definida previamente. 15 Isso se deve ao fato de que, em caso da ocorrência de um delito, existem duas partes, aquela que aponta a violação do contrato social e o acusado, que nega essa violação, de forma que se faz necessário que um terceiro decida essa contestação.16

A nossa Carta Magna não admite que a doutrina, jurisprudência ou os usos e costumes possam criar poderes punitivos, embora muitas vezes sejam usados para estabelecer os limites da tipicidade penal, quando a lei se referir a eles de modo tácito ou explícito.17

1.3 DESDOBRAMENTOS DO PRINCíPIO DA LEGALIDADE

Nesse tópico serão tratados de forma específica quatro importantes desdobramentos do princípio da legalidade. O primeiro deles é a reserva legal, que determina que não há crime sem lei anterior que o define e nem pena sem prévia cominação legal.

Outro aspecto desse princípio é a determinação taxativa, que exige que a norma esteja descrita da forma mais precisa possível, de forma a evitar que possua diferentes formas de interpretação.

Esse princípio possui outro importante desdobramento, que é a irretroatividade, que veda que qualquer cidadão seja punido por uma conduta que não era crime no momento em que foi cometida.

Por fim, temos a necessidade, que possui como objetivo combater o número excessivo de leis penais, que traz inúmeros prejuízos, como o esvaziamento da força intimidatória das leis penais.

1.3.1 Reserva Legal

Esse postulado está expresso em nossa Constituição Federal, que em seu Art. 5º, inciso XXXIX, determina que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.

15 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 23.16 BECCARIA, op. cit., p. 21.17 ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Direito Penal brasileiro – I. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p. 203.

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Segundo as lições de Luiz Luisi18, a Reserva Legal pode ser absoluta ou relativa. Se for absoluta, significará que somente a lei poderá disciplinar a matéria penal, excluindo-se qualquer outro tipo de disciplina, mesmo em relação aos aspectos secundários. Mas se for relativa, determina-se que o legislador deve fixar as normas fundamentais, ficando a cargo da administração o seu detalhamento.

Paulo César Busato19 inclui outras classes de reserva, a reserva geral, a especial, a substancial e a formal.

A reserva geral refere-se à regulação de determinados âmbitos gerais, em oposição à reserva especial, que se limita a regular determinados aspectos concretos dos âmbitos gerais. Já a reserva substancial é estabelecida por determinação Constitucional, frente à reserva formal, que determina a regulação de uma matéria pelo Poder Legislativo, impedindo a atuação de instâncias inferiores para complementar sua redação.

Conclui o referido doutrinador que em matéria penal a reserva é absoluta, pois somente a lei pode disciplinar matéria penal, geral, pois há uma regulamentação de certos âmbitos gerais e substancial, pois a reserva é estabelecida pela nossa Constituição Federal.

É desse princípio que decorre a proibição do uso da analogia e dos costumes como fonte de direito penal, sendo permitidos tão somente quando forem beneficiar o acusado.

Luiz Luisi20 leciona também acerca da aplicação desse princípio no campo da execução penal, questionando se a necessidade da lei prévia seria relativa somente a previsão na norma incriminadora ou se as normas em relação a execução da pena também deveriam ser estabelecidas previamente.

Para resolver a questão, o autor cita diversos dispositivos constitucionais que tratam da execução da pena, tais como os incisos XLVIII, XLIX e L do Art. 5º, da Constituição Federal, o que leva a inevitável conclusão de que o postulado da Reserva Legal, por imposição constitucional, deve ser aplicado também na execução da pena.

1.3.2 Determinação Taxativa

Segundo esse aspecto do princípio da legalidade não basta que a norma esteja prevista em lei, é necessário que essa norma esteja descrita de forma taxativa, o mais precisa possível, visando evitar diferentes interpretações, sob pena de inconstitucionalidade.

18 LUISI, op. cit., p. 22.19 BUSATO, op. cit., p. 242.20 LUISI, op. cit., p. 22-23.

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Luiz Luisi descreve bem a importância da precisão e clareza das leis:

Sem esse corolário o princípio da legalidade não alcançaria seu objetivo, pois de nada vale a anterioridade da lei, se esta não estiver dotada da clareza e da certeza necessárias, e indispensáveis para evitar formas diferenciadas, e, pois, arbitrárias na sua aplicação, ou seja, para reduzir o coeficiente de variabilidade subjetiva na aplicação da lei.21

Ou seja, de nada adianta que a lei seja prévia se a sua imprecisão impeça que o agente possa saber que praticava um crime ao realizar determinada conduta. Tampouco irá cumprir sua função intimidadora se o agente não souber ou não entender de forma clara e inequívoca o conteúdo da lei.

Conforme os ensinamentos de Francisco de Assis Toledo22, “para que a lei penal possa desempenhar função pedagógica e motivar o comportamento humano, necessita ser facilmente acessível a todos, não só aos juristas.”

Ou seja, a lei penal somente conseguirá exercer a sua função pedagógica se for acessível, se todos puderam compreender essa norma. Pouco adianta que somente os juristas possam compreender seu significado, se todos devem pautar seu comportamento com base nas mesmas regras.

Cesare Beccaria23 lecionava ainda que cada homem possui uma maneira diferente de enxergar um determinado fato, de modo que se o delito não estiver previsto da forma mais exata possível, a sorte do cidadão pode mudar de acordo com o tribunal que o julgar e o raciocínio feito pelo magistrado.

Esse postulado cumpre ainda uma função política, pois seu propósito é proteger o cidadão do arbítrio judiciário, procurando restringir ao máximo a discricionariedade do aplicador da lei, afinal, o Estado é um instrumento de realização dos direitos dos homens.24

Portanto, por mais reprovável que seja uma conduta, ela somente será considerada crime se o legislador assim a considerar, descrevendo-a e impondo a ela uma sanção criminal. Por isso mesmo, qualquer deficiência na redação da lei, quaisquer lacunas e esquecimentos, serão sempre entendidos em desfavor do legislador e de forma a valorizar a liberdade, mesmo que esteja evidente que a intenção da lei era reprovar determina conduta.25

21 LUISI, op. cit., p. 24.22 TOLEDO, op. cit., p. 29.23 BECCARIA, op. cit., p. 23.24 LUISI, op. cit., p. 25.25 DIAS, op. cit., 2007, p. 180.

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Isso se deve ao fato de que quando o legislador utiliza excessivamente conceitos que necessitam de uma complementação valorativa, está exigindo do magistrado um juízo valorativo para complementar a descrição típica, pois não descreveu de forma efetiva a conduta proibida, violando gravemente a segurança jurídica.26

Para exemplificar a utilização de termos vagos, podemos citar alguns tipos penais que remetem a expressões tais como “mulher honesta” (antigos Arts. 215 e 219, do Código Penal) e “objeto obsceno” (Art. 234, do mesmo Codex).

Enquanto no Direito Civil há previsão expressa no Art. 4º da Lei de Introdução do Código Civil de que, na ausência de previsão legal, devem ser utilizados para resolver o caso concreto a analogia, os costumes e os princípios, no Direito Penal ocorre o oposto.27

Cabe salientar que a pena também deve ser executada na forma legalmente estabelecida, pois afirmar a natureza jurisdicional da execução penal implica também em admitir sua sujeição aos princípios e garantias constitucionais incidentes, entre eles o princípio da legalidade.28

A analogia in malam partem é expressamente proibida no Direito Penal. Não é possível que o juiz entenda, por meio de analogia, que uma determinada conduta deve ser punida. Essa proibição busca justamente suprimir as hipóteses de usurpação entre os poderes e também o emprego de um sistema consuetudinário para a aplicação da lei penal. Ademais, traz também segurança jurídica, pois o uso da analogia impede a possibilidade de conhecimento a respeito da acusação.29

Por outro lado, a analogia in bonam partem é admitida, pois restringe a punibilidade e amplia a liberdade, os direitos e as garantias. Nesse quesito, é importante frisar a lição de Francisco de Assis Toledo30, de que o direito consuetudinário somente pode ser reconhecido quando houver “reconhecimento geral e vontade geral de que a norma costumeira atue como direito vigente”.

26 BITENCOURT, op. cit., p. 52.27 ZAFFARONI, op. cit., p. 208.28 MARCÃO, Renato. curso de Execução Penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 33.29 BUSATO, op. cit., p. 257-259.30 TOLEDO, op. cit., 1994, p. 26.

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1.3.3 Irretroatividade

A irretroatividade da lei penal é prevista na nossa Constituição Federal (artigo 5º, incisos XXXIX e XL), com o objetivo de evitar que uma pessoa seja punida por uma conduta que não era crime no momento em que foi cometida ou que previa uma pena mais branda que a atual.

Essa previsão proíbe a criação de tipos com a finalidade de alcançar fatos passados, de forma a punir tão somente aqueles fatos que se enquadrem nas formulações abstratas que já são de conhecimento do público. É uma garantia firmada pelo iluminismo contra o poder ilimitado na criação de regras de imputação de responsabilidade.31

Essa proibição se fundamenta no fato de que o tipo penal é o reconhecimento de uma conduta desvalorada socialmente em um determinado momento histórico e político de uma sociedade. Portanto, não é possível impor uma sanção penal a uma conduta sem que seu desvalor social tenha sido reconhecido previamente, pois ninguém pode reger-se por uma norma que ainda não existe.32

Paulo César Busato33 reforça ainda a ideia de prevenção do Direito Penal, pois as leis penais são regras que visam a prevenção de delitos no futuro e, por essa razão, não podem gerar efeitos antes de entrarem em vigor.

Entretanto, caso a lei seja mais benigna ela é aplicada, em razão de previsão constitucional (Art. 5º, XL). Ademais, não há sentido em continuar aplicando uma lei que valorativamente não é compartida pelo legislador ou pela sociedade, seja por razões político-criminais ou de justiça material, levando em consideração também que uma lei mais favorável nunca é abusiva, pois amplia as liberdades, afirmando o princípio da legalidade.34

É evidente que esse princípio é aplicado também no campo da execução penal, por disposição expressa do Art. 2º, parágrafo único, do Código de Processo Penal e Art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal.

31 BUSATO, op. cit., 2012, p. 250.32 Ibid., p. 251-252.33 Ibid, p. 252.34 Ibid.

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1.3.4 Princípio da Necessidade Atrelado ao Princípio da Legalidade

Luiz Luisi35 insere mais um desdobramento ao princípio da legalidade, que é o princípio da necessidade, visando combater o excessivo número de leis que criam milhares de tipos penais.

Afirma que o Estado Democrático de Direito Contemporâneo se fundamenta nas ideias iluministas, que preconizam um ordenamento jurídico simples, com poucas leis, claras e simples. Cita o Princípio da Intervenção Mínima, previsto no artigo 8º da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão.36

Entretanto, afirma que pouco mais de trinta anos após a Declaração já se percebia a extensão da legislação penal, sob a convicção de que a coação penal seria o único meio para combater violações a ordem jurídica.

Do sentimento de descontentamento com esse crescimento da criminalização, surgiram manifestações que apontavam os prejuízos dessa postura.

Primeiramente, podemos citar a criação de delitos de pequena importância, que preveem a aplicação de penas por condutas mínimas, tais como lesões levíssimas e a injúria. Esses pequenos delitos sobrecarregam a máquina judiciária, que deixa de dar a importância devida às condutas realmente graves. Além disso, toda essa movimentação tem um custo, o que gera um encargo muito alto para a manutenção da máquina judiciária.37

Afirma que devemos considerar também o esvaziamento da força intimidatória das leis penais, em razão da criação excessiva e descriteriosa de delitos, o que desvalorizaria as leis e aviltaria sua eficácia preventiva geral.

Portanto, diante de tudo que foi exposto acerca desse princípio, é forçoso reconhecermos que a legalidade é um dos pilares do nosso Direito Penal e uma importante arma para garantir as liberdades e combater os arbítrios.

2 APLIcAÇÃO DO PRINcÍPIO DA LEGALIDADE NA EXEcUÇÃO PENAL E O REGIME DIScIPLINAR DIFERENcIADO

No tópico anterior discorremos sobre o princípio da legalidade e seus desdobramentos, demonstrando a sua importância no campo do Direito Penal.

35 LUISI, op. cit., p. 112.36 LUISI, loc. cit.37 Ibid., p. 113.

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Nesse tópico iremos tratar a respeito da aplicação desse princípio na seara da execução penal e de que forma devemos analisar a Lei que implementou o Regime Disciplinar Diferenciado frente a esse princípio.

2.1 O PRINCíPIO DA LEGALIDADE NA EXECUçÃO PENAL

É forçoso reconhecer ainda que, dada a sua importância, e ainda a previsão em nossa Constituição Federal e na legislação vigente, esse princípio pode e deve ser aplicado no campo da Execução Penal, lugar em que talvez enxerguemos os maiores arbítrios estatais.

É essa a lição de Andrei Zenkner Schmidt

Com efeito, todo dispositivo legal que detenha a potencialidade direta de ampliar ou restringir a liberdade do cidadão deve receber todos os efeitos garantidores das normas penais propriamente ditas. Conseqüentemente, todos os dispositivos legais da LEP que estabelecem as infrações disciplinares devem se sujeitar à sorte das normas penais propriamente ditas. É sabido que uma falta disciplinar pode acarretar uma sanção disciplinar correspondente, que pode ir de uma mera advertência até um isolamento celular, uma restrição ao indulto, etc. Por essa razão é que as normas que estabelecem as faltas graves, médias ou leves e as sanções disciplinares sujeitam-se aos ditames do nullum crimen, nulla poena sine lege, com todos os seus corolários formais (lex previa, stricta, scrpita e certa) e substancial (lex necessariae).38

Inclusive, há previsão expressa sobre esse princípio na Exposição de Motivos da LEP, em seu item 19: “O princípio da legalidade domina o corpo e o espírito do Projeto, de forma a impedir que o excesso ou o desvio da execução comprometam a dignidade e a humanidade do Direito Penal.”

Ainda, o item 77 da Exposição de Motivos dispõe que “O Projeto enfrenta de maneira adequada a tormentosa questão da disciplina. Consagra o princípio da reserva legal e defende os condenados e presos provisórios das sanções coletivas ou das que possam colocar em perigo sua integridade física, vedando, ainda, o emprego da chamada cela escura (Art. 44 e parágrafos).”

Há previsão também no artigo 45 da LEP, que determina que “não haverá falta nem sanção disciplinar sem expressa e anterior previsão legal ou regulamentar.”

38 SCHMIDT, Andrei Zenkner. Direitos, deveres e disciplina na execução penal. In: CARVALHO, Salo de (Coord.). crítica à execução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007 p. 248.

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2.2 HISTÓRICO DA LEI Nº 10.792/2003

O Regime Disciplinar Diferenciado surgiu primeiramente no estado de São Paulo, em uma tentativa de conter uma megarrebelião ocorrida no início de 2001, iniciada pelos internos com o objetivo de denunciar as deficiências do sistema carcerário e reagir as transferências de diversos líderes da facção criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC) para outras Unidades mais distantes da capital São Paulo.39

Foi dado especial enfoque ao evento em razão do grande número de visitantes e familiares que se encontravam no interior das Unidades durante as rebeliões, bem como a forte cobertura dada pela imprensa.40

Como forma de reagir a esses eventos e tentar assegurar a disciplina, foram editadas duas resoluções pela Secretaria da Administração Penitenciária do estado de São Paulo, dando origem ao chamado Regime Disciplinar Diferenciado.41

No ano seguinte, ocorreu outra grande rebelião na cidade do Rio de Janeiro, levando o estado a criar o Regime Disciplinar Especial de Segurança, instituto muito semelhante ao RDD.42

Após a criação desse regime nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, surgiu forte pressão para que o Parlamento instituísse, por meio de Legislação Federal, o RDD a todos os estados da federação.43

Passava-se a ideia de que os apenados teriam direitos exorbitantes, criadas por uma frágil legislação. Ademais, seria uma forma de o Estado demonstrar que ainda estava no controle e que conseguia impor a disciplina nas Unidades Penais, em meio a onda de pânico que envolvia a figura de Fernandinho Beira-Mar e a morte de dois magistrados de Varas de Execuções Criminais de São Paulo e Vitoria44.

Era o clima de pânico propício para a criação de uma legislação de emergência, que tentaria conter essa sensação, cortando os “excessos de direitos e garantias” daqueles

39 CARVALHO, Salo de; FREIRE, Christiane Russomano. O Regime Disciplinar Diferenciado: Notas Críticas à Reforma do Sistema Punitivista Brasileiro. In: CARVALHO, Salo de (Coord.). crítica à Execução Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 272.

40 Ibid., p. 273.41 Ibid., p. 273.42 Ibid., p. 274.43 Ibid., p. 275.44 CARVALHO, op. cit.

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que estavam custodiados, demonstrando a incapacidade do Estado em lidar com a crise na área da segurança pública.45

2.3 HIPÓTESES DE CABIMENTO DO REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO

A Lei nº 10.792/2003, que alterou o Art. 52 da Lei de Execução Penal, passou a prever a aplicação do Regime Disciplinar Diferenciado nas seguintes hipóteses:

A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características:

I - duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada;

II - recolhimento em cela individual;

III - visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas;

IV - o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol.

§ 1o O regime disciplinar diferenciado também poderá abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade.

§ 2o Estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando (grifo nosso).

Da simples leitura do dispositivo, verificam-se diversos equívocos cometido pelo nosso legislador, em especial a violação ao princípio da legalidade, mais precisamente em relação a determinação taxativa.

Conforme descrito acima, é imperioso que a norma, além de estar prevista em lei, seja o mais precisa possível, a fim de evitar diferentes interpretações e dar margem a arbitrariedades.

45 CARVALHO, op. cit., p. 276.

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O Art. 52 da LEP não parece ter sido redigido com essa preocupação. Pelo contrário, verificamos que os tipos criados são abertos e suscetíveis a diversas interpretações, colocando o apenado em situação extremamente vulnerável.

2.4 INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI Nº 10.792/2003

A criação do RDD através da Lei nº 10.792/2003, que altera a Lei de Execuções Penais e o Código de Processo Penal é desastrosa não só pelo regime que cria, mas principalmente pela sua redação.46

Em vez de consagrar o princípio da legalidade, o que imporia a taxatividade dos tipos por ela criados, a lei se permite ser dúbia e imprecisa. A LEP, que já possuía no rol de faltas graves tipos imprecisos, passa a ser ainda menos precisa, dando força ao arbítrio administrativo e a teoria de neutralização daqueles que são “socialmente indesejáveis”.47

Consta no Art. 52 da LEP que a prática de crime doloso que ocasione a subversão da ordem ou da disciplina é um dos motivos que autoriza a inclusão do apenado no RDD. Mas não especifica quais atos poderiam ocasionar essa subversão e em que exatamente ela consistiria.

Outro exemplo é o constante no §1º, que trata dos apenados que apresentam “alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade”. Qual seria esse risco? Que condutas poderiam produzi-lo?

Ainda está sujeito ao RDD, conforme previsão do § 2º, o indivíduo sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação em organizações criminosas, quadrilha ou bando.

Esse dispositivo também viola preceitos constitucionais, afinal fundadas suspeitas não são uma prova de que o indivíduo de fato pertença a uma organização criminosa.

Portanto, será demonstrado a seguir que essa legislação fere a Constituição Federal e diversos princípios nela previstos, em especial o princípio da legalidade.

Salo de Carvalho48 ressalta que historicamente a técnica legislativa usada no ambiente carcerário serviu como arma para o uso arbitrário do poder por agentes prisionais, que se aproveitam da imprecisão terminológica para adjetivar condutas banais de presos

46 CARVALHO, op. cit., 2007, p. 276.47 Ibid., p. 278.48 CARVALHO, Salo de. Tântalo no Divã (Novas críticas às reformas no sistema punitivo brasileiro). Revista

brasileira de ciências criminais, São Paulo, v. 12, n. 50, p. 91-118, set./out. 2004, p. 103.

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considerados incômodos. Segue afirmando que a volatilidade desses termos minimiza os direitos de defesa, pois se torna quase impossível refutar as afirmações dos órgãos de segurança e cita como exemplo as greves de fome, que são atos pacíficos, mas muitas vezes acabam sendo punidas como uma infração de natureza grave por “subversão da ordem e da disciplina”.

A Lei nº 10.792/2003 em nada tentou modificar essa situação. Pelo contrário, incluiu categorias igualmente dúbias, favorecendo ainda mais o arbítrio administrativo.49

Nesse sentido também leciona Cezar Roberto Bitencourt:

Mais recentemente a Lei n. 10.792/2003, que altera dispositivos da Lei n. 7.210/84, de Execução Penal, ao criar o regime disciplinar diferenciado de cumprimento de pena, viola flagrantemente o princípio da legalidade penal, criando, disfarçadamente, uma sanção penal cruel e desumana sem tipo penal definido correspondente. O princípio da legalidade exige que a norma contenha a descrição hipotética do comportamento proibido e a determinação da correspondente sanção penal, com alguma precisão, como forma de impedir a imposição a alguém de uma punição arbitrária sem uma correspondente infração penal. É intolerável que o legislador ordinário possa regular de forma tão vaga e imprecisa o teor das faltas disciplinares e que afetam o regime de cumprimento de pena, submetendo o condenado ao regime disciplinar diferenciado. O abuso no uso de expressões como “alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal” ou “recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação” (art. 52,§ § 1º e 2º), sem declinar que “tipo de conduta” poderia criar o referido “alto risco” ou caracterizar “suspeitas fundadas”, representa, portanto, uma flagrante afronta ao princípio da legalidade, especialmente no que diz respeito à legalidade das penas, como demonstramos ao analisarmos as penas privativas de liberdade.50

Maria Thereza Rocha de Assis Moura51 também discursa acerca da violação ao princípio da reserva legal, ao levar em consideração que o RDD é um regime fechadíssimo de cumprimento de pena, que não foi previsto pelo nosso Código Penal, sendo que a sua criação por meio da Lei nº 10.792/2003, violaria o referido princípio.

Dessa forma, além da inconstitucionalidade desse instituto por clara violação ao princípio constitucional da legalidade, encontramos outras violações a Constituição Federal.

49 CARVALHO, loc. cit.50 BITENCOURT, 2013, p. 53.51 MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. Notas sobre a Inconstitucionalidade da Lei no 10.792/2003, que

criou o Regime Disciplinar Diferenciado na Execução Penal. In: CARVALHO, Salo de (Coord.). crítica à execução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 288.

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Maria Thereza Rocha de Assis Moura52 salienta a violação ao princípio da presunção de inocência, uma vez que o RDD é aplicável também aos presos provisórios, que sequer foram condenados, mas já podem ser submetidos a um tratamento tão gravoso.

Fabio Félix Ferreira e Salvador Cutiño Raya53 lecionam acerca da violação ao princípio da proporcionalidade, pois as sanções cominadas e aplicadas devem ser proporcionais às lesões por elas causadas. A aplicação de uma sanção desproporcional é ilegítima e injusta, de forma que, para garantir que não sejam violados os direitos universais do cidadão, a aplicação da sanção deve levar em conta uma valoração social da conduta e do resultado produzido.

Da leitura da lei que instituiu o RDD fica claro que a previsão de isolamento por período tão longo não levou em consideração o princípio da proporcionalidade.

Para ilustrar a questão, os referidos autores citam diversos delitos previstos em nosso Código Penal que são mais lesivos que as faltas graves previstas e cujas sanções são inferiores, como, por exemplo, o delito de lesão corporal, previsto no Art. 129 do Código Penal, que prevê pena de detenção de 03 (três) meses a 01 (um) ano, lapso temporal inferior a duração do RDD.

É certo ainda que podemos citar a ofensa a outros princípios constitucionais. Ao determinar o isolamento por período tão longo, com efeitos claramente destrutivos para a saúde física e mental do interno, estamos impondo uma sanção cruel, em um puro exercício de vingança, tentando infligir dor e sofrimento, em afronta ao disposto no artigo 5º, inciso XLVII, alínea “e”, da Constituição Federal, além de ofender também a dignidade da pessoa humana, prevista em nossa Carta Magna.54

A esse respeito, é valiosa a lição de Zygmunt Bauman55, que discursa acerca da aniquilação comunicativa. Afirma que o apenado que se encontra isolado em um espaço estritamente vigiado, distante de outras pessoas e impedido de manter uma comunicação regular ou esporádica fica despojado de sua singularidade individual, tornando-se apenas uma personificação da força punitiva do Estado.

52 MOURA, loc. cit.53 FERREIRA, Fabio Félix; RAYA, Salvador Cutiño. Da Inconstitucionalidade do isolamento em cela e do

regime disciplinar diferenciado. Revista brasileira de ciências criminais. v. 12, n. 49, p. 251-290, jul./set. 2004, p. 268-269.

54 CARVALHO, op. cit., p. 279-280.55 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução de Marcus Penchel. Rio de

Janeiro: J. Zahar, 1999. p. 115-116.

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É sabido que a execução da pena deve restringir somente os direitos mensurados na sentença penal condenatória, não podendo atribuir aos apenados sanções desmedidas, inadequadas e excessivas, sob pena de violação de princípio implícito na Constituição Federal.56

Há a restrição de direitos fundamentais, como a liberdade, mas a dignidade da pessoa humana deve ser respeitada, pois é assegurada a todo e qualquer indivíduo, independente da situação fática peculiar que lhe sobrevier.57

O RDD ofende ainda dispositivos internacionais, como as Regras Mínimas para Tratamento dos Reclusos, que em seu Art. 31 determina que “serão absolutamente proibidos como punições por faltas disciplinares os castigos corporais, a detenção em cela escura, e todas as penas cruéis, desumanas ou degradantes”.

É essa também a orientação da Organização das Nações Unidas, que propôs a abolição do isolamento no princípio 07: “devem empreender-se esforços tendentes à abolição ou restrição do regime de isolamento, como medida disciplinar ou de castigo”.

Viola ainda a Declaração Universal dos Direitos do Homem, que em seu Art. V determina que “Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante.”

Nesse mesmo sentido é o parecer exarado pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, aprovado pela Resolução 10, que concluiu que o RDD:

Promove a destruição emocional, física e psicológica do preso, que submetido a isolamento demasiadamente longo pode apresentar depressão, desespero, ansiedade raiva, alucinações, claustrofobia e, a médio prazo, psicoses e distúrbios afetivos graves.58

Ao analisar a referida legislação, Paulo César Busato59 externa outra importante preocupação, que é o modelo dogmático adotado pela Lei nº 10.792/2003.

Essa legislação permite que o apenado seja submetido a um esquema de completo isolamento, com razões derivadas de um juízo de valor que guarda pouca ou nenhuma relação com um Direito Penal do fato, se assemelhando muito com um Direito Penal do autor.

56 SCHROEDER, Simone. Regressão de Regime: Uma Releitura Frente aos Princípios Constitucionais: Abordagem Crítica. In: CARVALHO, Salo de (Coord.). crítica à execução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 481.

57 SCHROEDER, loc. cit.58 MOURA, op. cit., p. 288.59 BUSATO, Paulo César. Regime Disciplinar Diferenciado como Produto de um Direito Penal de Inimigo.

In: CARVALHO, Salo de (Coord.) crítica à execução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 295.

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Referido doutrinador cita o exemplo do Art. 52, § 1º, da LEP, que trata do “alto grau de risco para a ordem e segurança do estabelecimento penal ou da sociedade”, ressaltando que esse risco não se trata de um delito ou de uma infração disciplinar, pois em relação a esses já há disposição no caput do mesmo artigo. Então qual seria essa outra fonte de risco que poderia decorrer de ações que não sejam faltas nem delitos?60

Prossegue ressaltando que as restrições do RDD não estão dirigidas a fatos determinados, mas sim a determinada classe de pessoas que, segundo o julgamento da Administração Penitenciária, representam risco ou apresentam suspeita de integrar organização criminosa. Portanto, não mais importa o que o apenado fez, mas sim quem ele é.

Conclui afirmando que essas imposições nada mais são do que um “Direito Penal de inimigo”, ou seja, desconsidera-se determinada classe de pessoas como portadores de direitos iguais aos demais, diferenciando esses “inimigos” dos outros cidadãos.61

Salo de Carvalho62 leciona no mesmo sentindo, apontando que a legislação adota uma postura do direito penal do inimigo, tentando identificá-los para contê-los e neutralizá--los, classificando-os como sujeitos não portadores de direitos e garantias fundamentais.

André Luis Callegari e Fernanda Arruda Dutra63 também apontam para uma tendência regressiva no campo do Direito penal, com a desconstrução do sistema garantista através do uso de uma política mais repressiva. É aceita a criação de uma nova categoria de Direito penal àqueles que se desviam da lei e pela violência “legal” há a supressão de direitos e garantias fundamentais dessas pessoas.

Dessa forma, podemos concluir que o RDD, além de ser inconstitucional, não cumpre o fim a que se destina, não funcionando adequadamente como um instrumento de segurança pública, apenas servindo como um instrumento de violação dos direitos fundamentais.

É uma equivocada tentativa de conter a violência do crime com a violência da lei e de assegurar a segurança dos estabelecimentos penais com a destruição física e mental dos apenados.64

60 BUSATO, op. cit., p. 295-296.61 Ibid., p. 297.62 CARVALHO, op. cit., p. 279.63 CALLEGARI, André Luis; DUTRA, Fernanda Arruda. Derecho penal del enemigo y derechos

fundamentales.In: MELIÁ, Cancio; DíEZ, Gómez-Jara (Coord.). Derecho penal del enemigo, el discurso penal de la exclusión. v. 1 Buenos Aires: Euros Editores S.R.L., 2006, p. 326.

64 MOVIMENTO ANTITERROR. Carta de Princípios. Revista de Estudos criminais, Porto Alegre, v. 10, p. 8, 2003.

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Aliás, é nesse sentido o parecer do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária65, que por meio da Resolução 10, de 12 de maio de 2003, afirmou que a instituição do RDD é desnecessária para a garantia da segurança dos estabelecimentos penitenciários. Informando, inclusive, que não se deve confundir sanção disciplinar com regime de cumprimento de pena e, muito menos, buscar no isolamento a solução para garantir a segurança nos estabelecimentos penais.

Alertam Fabio Félix Ferreira e Salvador Cutiño Raya66 para o fato de que o RDD se distancia do direito internacional e das disposições constitucionais, que orientam para uma intervenção penal e um tratamento penitenciário humanizado, pois agrava a dessocialização do apenado.

É certo que esse também não é o método correto para se buscar mais segurança dentro e fora das Unidades Penais.

Sobre o assunto, a lição de Zygmunt Bauman67 diz que:

em toda a história a prisão jamais reabilitou pessoas na prática, jamais possibilitou sua “reintegração”. O que fizeram, ao contrário, foi “prisonizar” [prisonize] os internos (termo de Donald Clemmer), isto é, encoraja-los a absorver e adotar hábitos e costumes típicos do ambiente penitenciário e apenas desse ambiente, portanto marcadamente distintos dos padrões comportamentais promovidos pelas normas culturais que governam o mundo fora dos seus muros; a “prisonização” é exatamente o oposto da ‘reabilitação’ e o principal obstáculo no caminho de volta à integração.

Nesse mesmo sentido é a conclusão de Maria Thereza Rocha de Assis Moura, que afirma:

A lei no 10.792/2003 contém insuportável ofensa aos direitos e garantias constitucionalmente assegurados aos acusados e aos condenados, não existindo justificativa para tamanha violação. Lembre-se, a propósito, que a repressão ao crime organizado deve se dar dentro dos limites da lei e que a criação do regime disciplinar diferenciado não acabará com a violência urbana, assim como não tornará o preso uma pessoa melhor e não tornará mais segura a Sociedade.68

65 CONSELHO NACIONAL DE POLíTICA CRIMINAL E PENITENCIÁRIA. Resolução 10 de 12 de maio de 2003. Disponível em: <http://www.criminal.caop.mp.pr.gov.br/arquivos/File/ExecucaoPenal/CNPCP/n10de12maio2003.pdf.> Acesso em 16 jul. 2013.

66 FERREIRA; RAYA, op. cit., p. 273.67 BAUMAN, op. cit., p. 118-119.68 MOURA, op. cit., p. 292.

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233Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 5, n. 8, p. 213-236, jan./jun. 2013

Outra não poderia ser a conclusão de Paulo César Busato, ao afirmar que:

evidentemente essa lei não pode alcançar a pretendida diminuição de índices de delinquência, uma vez que a raiz do fenômeno criminológico brasileiro se encontra muito mais nas graves distorções sociais e econômicas do que no regime interno do cárcere, que, além do mais, costuma ser brutal e estar em descompasso com a própria disposição legislativa.69

Alexis Couto de Brito alerta para a violação do Estado Democrático de Direito:

A adoção de tal regime acaba por inverter a polaridade da discussão. Se o perigo para o Estado Democrático de Direito são os delinquentes que se deseja submeter a essa regime ou se muito mais prejudiciais à democracia são as políticas criadas para combatê-los.70

Diante de todas as considerações, não resta outra conclusão que não a inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado, em razão da violação a diversos princípios constitucionais, tais como a legalidade, a dignidade da pessoa humana, entre outros.

Também é imperioso reconhecer que o modelo dogmático adotado pela lei é o modelo de um direito penal do inimigo, típico de regimes autoritários.

Por fim, apesar de todas essas violações, a legislação não alcança seu objetivo de diminuir a criminalidade, uma vez que não alcança as verdadeiras raízes do problema, servindo mais como uma forma de “dessocialização” do que de ressocialização.

cONcLUSÃO

Diante de tudo que foi exposto, é forçoso concluir que o princípio da legalidade é um dos pilares essenciais do nosso ordenamento jurídico e uma das mais importantes ferramentas do cidadão frente ao arbítrio estatal. A sua aplicação no campo da execução é irrefutável, sendo que a violação a esse princípio traz consequências nefastas.

Em relação ao regime disciplinar diferenciado, conclui-se que o momento em que foi criado, em meio a uma onda de pânico e insegurança, contribuiu para a redação de uma legislação que afronta diversos princípios constitucionais, entre eles o princípio da legalidade, ao prever tipos abertos, dúbios e imprecisos e também a reserva legal, ao prever um “regime fechadíssimo” não previsto em nosso Código Penal.

69 BUSATO, op. cit., p. 297.70 BRITO, Alexis Couto de. Execução Penal. 2. ed. São Paulo: RT, 2011, p. 174.

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Afronta ainda a dignidade da pessoa humana, por ser uma sanção cruel, que busca infligir dor e sofrimento, determinando o isolamento por períodos tão longos, que traz evidentes prejuízos para a saúde física e mental do apenado.

Vale citar também o modelo dogmático adotado pela Lei nº 10.792/2003, que busca conter e neutralizar determinada classe de pessoas, classificando-os como sujeitos não portadores de direitos e garantias fundamentais.

Conclui-se, por fim, que a tentativa de conter a criminalidade por meio do regime disciplinar diferenciado é fadada ao insucesso, uma vez que não é um instrumento de segurança pública, mas sim um instrumento de violação de direitos e garantias fundamentais. E mais, a nossa criminalidade não encontra raízes no regime interno do cárcere, mas sim nos problemas econômicos e sociais do nosso país, sendo que o regime disciplinar diferenciado não muda essa situação, pelo contrário, apenas a agrava.

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235Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 5, n. 8, p. 213-236, jan./jun. 2013

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237Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 5, n. 8, p. 237-244, jan./jun. 2013

Resenha dos ClássiCos

a CUlPaBilidade eM diReiTo Penal

(Karl Binding)

Michelangelo Corsetti1

Karl Lorenz Binding nasceu em 1841 em Frankfurt e morreu em 1920, aos 78 anos de idade. Ocupou um posto de elevado destaque na literatura alemã, considerado um dos mais importantes autores da escola penal conhecida como positivismo jurídico-penal. Utilizando-se do método hegeliano como base, procurou reunir o resultado da ciência positiva com o idealismo. Binding foi quem deu forma ao conceito de bem jurídico de Birnbaum (vide resenha na edição nº 6) e quem distinguiu dois tipos de bens: individuais e coletivos. A partir da delimitação do bem jurídico, realizou-se a classificação dos delitos em delitos de dano e delitos de perigo, assim como evidenciou a existência de tipos penais em branco e a transcendência das ações livres em sua causa (actio libera in causa).

Além disso, Binding diferenciava delito de crime. Para ele, delito era a violação da norma, enquanto o crime, a contradição punível da norma2. Criticou fortemente a teoria da conditio sine qua non, afirmando que, tal como estava enunciada, podia responsabilizar Adão e Eva pela totalidade dos crimes cometidos na história. Para ele, o essencial era a direção decisiva acerca do evento, o que deu lugar à teoria da prevalência das condições.

A obra “A Culpabilidade no Direito Penal”, publicada em 1919, pretendeu fazer uma aproximação entre a teoria e a prática e está dividida em quatro partes. A primeira aborda as questões relativas ao duplo conceito da culpabilidade, que predominavam naquele período. A segunda trata de abarcar os temas relacionados ao dolo antijurídico. A terceira, por sua vez, trata dos problemas do erro e a quarta, das questões relacionadas à imprudência.

1 Mestre e Especialista em Ciências Criminais pela PUC-RS. Professor de Direito Penal e Processo Penal da Universidade de Caxias do Sul. Advogado Criminalista.

2 Esta conclusão deriva de sua teoria das normas exposta na obra die normen und ihere Übertretung: eine Untersuchung uber die rechtmassiges Handlung und die Arten des Delikts. Leipzig: W. Engelmann [c1872- 19--]

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Nessa linha, a obra inicia abordando a questão da culpabilidade como ação culpavelmente antijurídica. De acordo com Binding, naquele período, o entendimento positivo do Tribunal penal ainda se esgotava na constatação da culpabilidade do acusado e da pena adequada a ela. Tomada naquele sentido, “culpabilidade” significava a ação culpável. Além disso, delito e crime eram conceitos distintos, sendo utilizada a expressão crime apenas para os delitos puníveis. A culpabilidade, por sua vez, enquanto ação culpável, não somente constituía pressuposto iniludível, mas também fundamento jurídico da pena. Assim, afirma o autor que o princípio “sem culpabilidade não há pena” rege, de lege lata, sem limitação alguma. Há inocentes submetidos à pena, premeditadamente no Direito – na verdade, de modo injusto – por meio da presunção de que atuaram culpavelmente, sobre a base de provas reconhecidamente insuficientes.

De acordo com Binding, a práxis tem criado peculiares presunções de culpabilidade, completamente alheias às leis, mediante o estabelecimento de regras de interpretação, como, por exemplo, a presunção de dolo, que, para o autor, era completamente inadmissível. Outra crítica do autor estava relacionada à pretensão de que as verdadeiras leis de polícia, quando não mencionam expressamente o lado da culpabilidade ou não se apresentam configuradas de modo evidente como uma ação dolosa e, também, declaram punível uma ação imprudente, caracterizando uma dupla presunção de punibilidade.

Nesse sentido, afirma que a culpabilidade é uma ação juridicamente relevante, concretamente antijurídica. Enquanto tal, em primeiro lugar, é a realização da vontade de um sujeito que não tenha sido juridicamente declarado como absolutamente incapaz de ação. Quem tenha sido declarado absolutamente incapaz de ação é incapaz de culpabilidade. Uma vez que não existem seres humanos absolutamente capazes de ação, a capacidade de culpabilidade é uma questão de caso concreto. Quem pratica uma ação em erro insuperável carece de capacidade de ação ad hoc e, portanto, também de capacidade de culpabilidade. O “fato” antijurídico – e não “ação” –, então, não é imputável à culpabilidade, ou seja, não há a realização de uma vontade juridicamente relevante.

Binding explica, ainda, que a culpabilidade era analisada como o tipo subjetivo do delito. Havia, nesse âmbito, um duplo conceito da culpabilidade. A culpabilidade no sentido estrito como aquele comportamento voluntário, ou seja, como a vontade de um sujeito capaz de ação enquanto causa de uma antijuridicidade. Ou, então, a vontade de um sujeito capaz de ação enquanto causa de antijuridicidade evitável para ele. O dolo era parte essencial da culpabilidade. Esta unidade da culpabilidade foi superada pelos romanos mediante o descobrimento da sua segunda forma, a culpa. Havia, assim, duas “formas” de culpabilidade: a culpabilidade dolosa e a culpabilidade culposa.

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Binding chama atenção para o fato de que a “Ordenação Carolina” estabeleceu, pela primeira vez, uma presunção para um pressuposto da culpabilidade, o que não acontecia no Direito romano. No direito romano, era parte essencial da culpabilidade a consciência da antijuridicidade. A concepção de imprudência no Direito Alemão levou ao reconhecimento, pela “Ordenação Carolina”, das duas formas de culpabilidade. Era muito característico da posição interna adotada pelos pós-glosadores a respeito do dolus e da culpa em sua doutrina de que somente o delito doloso é verdadeiro, enquanto o delito imprudente seria somente um “quase delito”. Essa ideia manteve-se em toda a doutrina do Direito comum até os finais do século XVIII. Sem embargo, a ciência italiana teve uma grande repercussão no direito penal alemão. A incorporação do delito imprudente foi escrita por Hans von Schwarzenberg na Bambergiensis, e, a partir desse texto, a Ordenanza Judicial Criminal de 1532, a “Ordenação Carolina”. Somente por isso o delito imprudente incorporou-se e foi mantido no Direito comum alemão.

De acordo com o autor, a culpabilidade delitiva comum na “Ordenação Carolina” era considerada como malicia ou maldade. Assim, o delinquente atuava traiçoeiramente, com conhecimento e vontade, de modo “dolosamente traiçoeiro”, e isso de maneira contrária ao direito. Por isso, entendia-se sempre o dolo como uma conduta conscientemente antijurídica. Uma vez que a ação imprudente carece, precisamente, da consciência de antijuridicidade, a “Ordenação Carolina” introduz a clara contraposição entre culpabilidade consciente e inconsciente no direito comum.

Binding explica que, para a concepção dos conceitos de culpabilidade, dois fatos são relevantes desde o século XVIII. A antiga terminologia havia sido abandonada e, em lugar da norma da proposição jurídica fundamentadora do dever, colocou-se a lei penal. O termo Geverlich (imprudente) da “Ordenação Carolina” também aparece em seu antigo significado tanto no Codex juris Bavarici de 1751 como na Theresiana austríaca de 1768. Mas seu significado estava experimentando uma grande virada: cada vez mais predominava o sentido perigoso (Gefährlich). A segunda forma de culpabilidade era denominada inicialmente imprevisão (Versehen) e também culpabilidade. A imprudência (Fahrlässigkeit), enquanto denominação técnica, apareceu primeiro na “Ordenação” territorial prussiana e passou a ser constante na legislação a partir do Código Penal bávaro de 1813. Somente os Códigos saxões de 1855 e 1868 a chamaram de negligência. Nenhum Código Penal conheceu mais do que as duas formas de culpabilidade do dolo antijurídico e da imprudência.

A consciência da antijuricidade tanto de acordo com as fontes romanas, como de acordo com a “Ordenação Carolina”, pertencia à forma mais grave de culpabilidade delitiva. Somente atuava com “dolus malus”, ou Geverlich, aquele cuja vontade estivesse dirigida à antijuridicidade concreta, reconhecida como tal pelo autor. A antijuridicidade que formava o conteúdo do delito imprudente naturalmente era exatamente o mesmo

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homicídio antijurídico e a mesma liberação antijurídica do preso que se encontra nos correspondentes delitos dolosos. Onde, então, se encontravam as proposições jurídicas que ambas infringem? Para Binding, a esta pergunta eram dadas as respostas mais errôneas. A práxis completamente arraigada em dizer: “o delinquente vulnera a lei penal” expressava o impossível. De acordo com ela, qualquer delito doloso – não somente toda a classe de delitos – teria que ter seu próprio dolo. Segundo o autor, esta doutrina estava equivocada porque quem mata seu pai sem saber quem está diante de si mata de modo dolosamente antijurídico. Não há rastro algum de um homicídio imprudente.

Na segunda parte da obra, Binding analisa os dois tipos de “males” do conceito de dolo no direito comum. De acordo com ele, o dolo antijurídico conforme a concepção do direito comum, com a consciência da antijuridicidade como elemento essencial, estava correto e nunca deveria ter sido modificado. Entretanto, o dolo se converteu em uma subsunção consciente da ação fundada sob o tipo de uma determinada lei penal, unida ao conhecimento da exata ameaça de pena desta lei precisamente para essa ação. Esta evolução teve lugar completamente à margem do direito positivo em geral e do direito alemão em particular. Ocorreu inteiramente no terreno do direito natural, até que seu resultado teve acolhida, por meio de Feuerbach, no Código bávaro, em 1813. Assim, Binding explica que a antijuridicidade é naturalmente um elemento positivo do delito de homicídio, pois “estes elementos negativos do tipo são elementos positivos do tipo de ações que carecem da condição de delito”.

Nessa linha de pensamento, ao abordar o dolo do autor, Binding afirma que a vontade – a decisão – sempre está dirigida a desencadear uma atividade idônea para realizar total ou parcialmente o tipo objetivo de um delito. Querer significa causar e, para causar uma modificação, a única via é a aplicação de meios idôneos. Somente “posso querer” aquilo que há de vir, ou seja, algo futuro, nunca algo que já existe. Ainda mais complexo é o lado da consciência do dolo. Antes de entrar na análise de seus elementos individuais, deve ser feita alguma consideração acerca do conceito jurídico de conhecimento. O conhecimento não é absoluto. De fato, o autor nunca poderia ter um conhecimento completo a respeito do curso causal da ação. O conhecimento no sentido do Direito é suposição impassível pela dúvida, coincidente com a realidade. O desconhecimento é a ausência de convicção acerca da concorrência de um elemento próprio de uma ação não movida pela dúvida, que, também, pode ser representada como convicção positiva da sua ausência. A expressão técnica para isso, de acordo com o autor, é “erro”.

Para a existência de consciência do delito doloso tem de concorrer os seguintes requisitos: (1) O autor era consciente de querer. Quem não sabe que causa, de nenhum modo pode causar algo dolosamente. (2) Causar significa provocar uma modificação da situação e somente causa conscientemente esta modificação aquele que na realização da

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sua ação tenha representado corretamente a produção do resultado. A representação prévia do resultado concreto da ação é essencial ao dolo, do mesmo modo que a consciência de que a ação tenha virtualidade causal para produzi-lo.

Na terceira parte do livro, Binding elucida que o inimigo mortal do dolo antijurídico é o “erro”, pois este elimina a culpabilidade consciente. Uma vez que o dolo não se coaduna com ele, e resulta imprescindivelmente em uma culpabilidade inconsciente, a teoria da diferença entre o dolo e imprudência gira em torno da teoria do erro como se este fosse seu eixo. Errar é conhecer de modo errôneo, ou, dito de outra forma, supor erroneamente que algo existe ou não supor tal ocorrência. Todo conhecimento errôneo implica, ao mesmo tempo, em ignorância e toda ignorância em um conhecimento errôneo.

Para Binding, os erros consistem em crer que uma regra jurídica não existe; que um ser humano já não vive; que um negócio jurídico não foi concluído; que um delito não tenha sido cometido ou que fora cometido de modo diverso ao que realmente aconteceu. Todos são erros sobre fatos com relevância jurídica. O autor esclarece que a expressão “erro juridicamente relevante” é ambivalente. Com frequência, isto não se leva em conta, usando-se em parte em um sentido e parte em outro. Nessa linha, ele afirma que o que acaba de usar como denominação de tudo aquilo constitui erro no sentido do Direito. Não pode haver dúvida em torno do alcance do erro na primeira das acepções. Sem embargo, pode, sim, existir incertezas se um erro de Direito gera determinados efeitos, e determinadas classes de erro geram efeitos durante certas épocas, enquanto outras são declaradas irrelevantes. Diante disso, Binding é categórico ao afirmar que a classificação dos erros juridicamente relevantes em erros de Direito, e erro de fato, é completamente insustentável no plano dogmático, pois todo o erro juridicamente relevante necessariamente será um erro de Direito.

Posto que os deveres jurídicos sempre estejam dirigidos para a omissão ou realização de ações exatamente definidas, o único erro possível do sujeito contra seu dever consiste em não conhecer, não apreender o concreto delito que está cometendo. Por exemplo: mata antijuridicamente e não o percebe. Desse modo, se equivoca a respeito de que vulnera o dever concreto de atuar ou se omitir. Portanto, o único objeto de seu erro vem constituído por sua ação, especificamente, por sua concreta contrariedade ao dever: ou seja, precisamente aquela qualidade jurídica da ação que nesse caso é a única relevante. Seu efeito será a exclusão da ação consciente do delito, pois sempre consistirá na omissão errônea de subsumir a ação antijurídica sob o mandato de dever – a norma – ao que resta submetido. Por conseguinte, o único erro possível sobre o delito em sua comissão é o erro de subsunção. Enquanto erro sobre a natureza delitiva da ação cometida, é erro acerca de uma qualidade jurídica, de um fato jurídico relevante, portanto, sempre será, de modo indivisível, erro de Direito e de fato. Esta coincidência nunca poderá faltar em um erro com relevância jurídica.

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Esse erro sempre será o mesmo, ainda que a norma infringida seja uma lei imperfeita ou, ainda, que outras proposições jurídicas vinculem à sua infração outras consequências jurídicas, como uma pena ou a obrigação de indenizar. Nada tem a ver com essas consequências jurídicas. No entanto, é perfeitamente possível que o autor erre ao realizar sua ação e também sobre as consequências jurídicas, que suponha que sua ação não seja delitiva. Isso se percebe com toda a clareza naqueles casos em que o autor tenha percebido nitidamente o delito, mas erra acerca da circunstância de que está ameaçado de pena. Além disso, o sujeito que atua também pode errar juridicamente acerca de sua ação agindo na direção contrária àquela delineada pela lei. Desse modo, para Binding, o único erro que entra no âmbito de relevância para o desenvolvimento da teoria da culpabilidade é o erro do autor acerca da qualidade delitiva de sua ação: o chamado erro de direito.

Por fim, Binding enfrenta algumas questões relacionadas à imprudência. Para ele, é inadmissível denominar imprudência como uma conduta puramente interna, e muito especialmente um “não notar”, “não perceber”, “não refletir”. Além disso, para o autor, não se pode falar de algo desconhecido produzido culpavelmente por imprudência. O inadmissível se converte em completo absurdo quando se pretende encontrar a culpabilidade do delito imprudente exclusivamente na omissão interna. Desse modo, afirma que todos os delitos imprudentes deixam de ser ações no sentido jurídico e restam reduzidas a inação interna. Binding destaca que Feuerbach reduziu a tal interna actio de falta de atenção ao delito imprudente. Nessa linha de raciocínio, os delitos imprudentes mais importantes, cada qual com suas peculiaridades, seriam puros delitos de comissão e o verdadeiro delito de omissão imprudente seria a omissão de uma actio externa ordenada.

Inclusive, para o autor, tampouco seria admissível denominar “imprudência” qualquer ação descuidada, incluindo-se também aquela que acaba bem, sem dano algum. Nesse rumo, Binding afirma que se tais fatos não são queridos e a culpabilidade é uma vontade antijurídica, como seria possível imputar-lhes a culpabilidade? Se tal imputação não for admissível, o que resta? São responsáveis os seus autores e dão direito ao Estado de puni-los? Partindo desta concepção, Binding revela que a única conclusão coerente seria negar seu caráter culpável e sua punibilidade.

Nesse ponto, conforme o autor, entram em conflito dois erros fatais. Em primeiro lugar, uma observação absolutamente insuficiente da vida jurídica e antijurídica. Eleva-se o “resultado não querido” à condição de elemento essencial de delito imprudente. Em segundo, de caráter dogmático-jurídico, consiste na grave confusão de acordo com a qual somente seriam antijurídicos os “resultados” e não as ações que conduzam a eles. A sobrevalorização da relevância criminal dos resultados teria se convertido em uma fatalidade dogmática. Assim, para Binding, referente à vontade de antijuridicidade, não existe nenhuma diferença entre o delito imprudente e o delito doloso. A imprudência é a vontade não dolosa de uma ação evitável e antijurídica.

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A obra ora resenhada, apesar de sua de extrema importância para a dogmática penal, não esgota o tema acerca da culpabilidade. Portanto, a culpabilidade no direito penal será tema de resenhas seguintes, nas quais novos aspectos serão abordados, objetivando traçar uma linha de evolução que levou a estrutura atual da culpabilidade.

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245Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 5, n. 8, p. 245-248, jan./jun. 2013

Orientações aos colaboradores da Revista Justiça e Sistema Criminal

Histórico e missão

A Revista Justiça e Sistema Criminal é um espaço para divulgação da produção científica e acadêmica de temas relativos ao sistema criminal, compreendendo aspectos relacionados tanto ao Direito e ao Processo Penal quanto à Criminologia, à Política Criminal, à Sociologia Jurídico--Penal e à Filosofia do Direito Penal, que visa principalmente difundir modernas tendências das áreas referidas, em sentido crítico e evolutivo.

Os temas principais estão vinculados ao desenvolvimento dos trabalhos do Grupo de Estudos Modernas Tendências do Sistema Criminal, que reúne pesquisadores de diversas universidades e acadêmicos de graduação e pós-graduação da FAE Centro Universitário. Entre nossos leitores, encontram-se professores, alunos de graduação e pós-graduação, profissionais da área jurídica e consultores de empresas públicas e privadas.

Objetivo

O objetivo da Revista Justiça e Sistema Criminal é promover a publicação de temas relacionados ao Direito e ao Processo Penal quanto à Criminologia, à Política Criminal, à Sociologia Jurídico-Penal e à Filosofia do Direito Penal.

Pretende-se contribuir para o desenvolvimento teórico do modelo de controle social criminal a partir da difusão de ideias modernas e críticas que ajudem na construção de um perfil humanista do sistema criminal.

Assim, será dada prioridade à publicação de artigos que, além de inéditos, nacional e internacionalmente, tratem de temas contemporâneos relacionados com a matéria criminal e que tenham perfil preferencialmente crítico.

Orientação editorial

Os trabalhos selecionados pela Revista Justiça e Sistema Criminal serão aqueles que melhor se adequem às linhas de pesquisa desenvolvidas pelo Grupo de Estudos Modernas Tendências do Sistema Criminal, acessíveis pela plataforma de grupos de pesquisa do CNPq.

Os trabalhos podem versar tanto sobre análises teóricas quanto experiências da práxis jurídica, resultantes de estudos de casos ou pesquisas direcionadas que exemplifiquem ou tragam experiências, fundamentadas teoricamente e que contribuam com o debate estimulado pelo objetivo da revista.

Enfatiza-se a necessidade de os autores respeitarem as normas estabelecidas nas Notas para Colaboradores. Os trabalhos serão publicados de acordo com a ordem de aprovação.

Focos

O principal requisito para publicação na Revista Justiça e Sistema Criminal consiste em que o artigo represente, de fato, contribuição científica. Tal requisito pode ser desdobrado nos seguintes tópicos:

– O tema tratado deve ser relevante e pertinente ao contexto e ao momento e, preferencialmente, pertencer à orientação editorial.

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– O referencial teórico-conceitual deve refletir o estado da arte do conhecimento na área.– O desenvolvimento do artigo deve ser consistente, com princípios de construção

científica do conhecimento.– A conclusão deve ser clara e concisa e apontar implicações do trabalho para a teoria

e/ou para a prática jurídico-penal. Espera-se, também, que os artigos publicados na Revista Justiça e Sistema Criminal desafiem o conhecimento e as práticas estabelecidas com perspectivas provocativas e inovadoras.

Escopo

A Revista Justiça e Sistema Criminal tem interesse na publicação de artigos de desenvolvimento teórico e prático forense.

Os artigos de desenvolvimento teórico devem ser sustentados por ampla pesquisa bibliográfica e devem propor novos modelos e interpretações para aspectos relacionados ao sistema criminal.

Os trabalhos empíricos devem fazer avançar o conhecimento na área, por meio de pesquisas metodologicamente bem fundamentadas, criteriosamente conduzidas e adequadamente analisadas.

Normas de Publicação Para os Autores

– Os trabalhos encaminhados para publicação na Revista Justiça e Sistema Criminal consideram-se licenciados a esta pelo prazo de duração dos direitos patrimoniais do autor. Os trabalhos também poderão ser publicados em outros lugares, em qualquer tipo de mídia, impressa ou eletrônica, mas a responsabilidade referente aos direitos de autoria, em face da publicação na Revista Justiça e Sistema Criminal, serão de responsabilidade exclusiva do autor.

– Os trabalhos devem ser enviados pelo correio eletrônico, para o endereço ([email protected]). Recomendamos a utilização do processador de texto Microsoft Word 97. Pode-se, no entanto, utilizar qualquer processador de texto, desde que os arquivos sejam gravados no formato RTF, que é um formato de leitura comum a todos os processadores de texto.

– Não há um número predeterminado de páginas para os textos. Esse número deve ser adequado ao assunto tratado. Os parágrafos devem ser alinhados à esquerda. Não devem ser usados recuos, deslocamentos, nem espaçamentos antes ou depois. Não se deve utilizar o tabulador <TAB> para determinar os parágrafos: o próprio <ENTER> já o determina. Como fonte, usar o Arial, corpo 12. Os parágrafos devem ter entrelinha 1,5; as margens superior e inferior 2,0 cm e as laterais 3,0 cm. O tamanho do papel deve ser A4.

– Os trabalhos deverão ser precedidos por uma folha na qual se fará constar impreterivelmente: título do trabalho, nome do autor (ou autores), qualificação (situação acadêmica, títulos, instituições às quais pertença e principal atividade exercida), endereço completo para correspondência, telefone, fax e e-mail, além da autorização de publicação do artigo.

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247Revista Justiça e Sistema Criminal, v. 5, n. 8, p. 245-248, jan./jun. 2013

– As referências bibliográficas deverão ser de acordo com a NRB 6023/2002 da ABNT. Deverão constar nas referências: SOBRENOME, Nome do autor. Título da obra em negrito. Tradução. Edição. Local: Editora, data.

– Os trabalhos deverão ser precedidos por um breve Resumo (10 linhas no máximo) em português e em outra língua estrangeira, e de um Sumário, do qual deverão constar os itens com até três dígitos.

– Deverão ser destacadas as palavras-chave limitadas ao número de 5 (cinco) também em português e em outra língua estrangeira. Palavras ou expressões que expressem as ideias centrais do texto, as quais possam facilitar posterior pesquisa ao trabalho.

– Todo destaque que se queira dar ao texto deve ser feito com o uso de itálico. Jamais deve ser usado o negrito ou a sublinha. Citações de textos de outros autores deverão ser feitas entre aspas, sem o uso de itálico. A introdução e a bibliografia, no sumário, não deverão ser numeradas.

– Não será prestada nenhuma remuneração autoral pela licença de publicação dos trabalhos. Em contrapartida, o colaborador receberá 2 (dois) exemplares do periódico em cujo número seu trabalho tenha sido publicado ou do produto digital, quando contido em suporte físico.

– Os trabalhos que não se ativerem a essas normas serão devolvidos a seus autores, que poderão reenviá-los, desde que efetuadas as modificações necessárias.

– A seleção dos trabalhos para publicação é de competência do Conselho Editorial da Revista. Todos os trabalhos serão primeiramente lidos pelos coordenadores das Revistas, que os distribuirão, conforme a matéria, para os conselheiros ou ainda para pesquisadores que não sejam conselheiros da Revista, mas tenham reconhecida produção científica na área. Eventualmente, os trabalhos poderão ser devolvidos ao autor com sugestões de caráter científico, que, caso as aceite, poderá adaptá-lo e reencaminhá-lo para nova análise. Não será informada a identidade dos responsáveis pela análise dos trabalhos. Os trabalhos recebidos e não publicados não serão devolvidos.

Permuta

A Revista Justiça Criminal faz permuta com as principais faculdades e universidades do Brasil, da Espanha, da Argentina e da Nicarágua.

Envio de artigosOs artigos deverão ser encaminhados para:

FAE Centro Universitário - Grupo de Pesquisas Modernas Tendências do Sistema Criminal

Rua 24 de Maio, 135

80230-080 Curitiba -PR

E-mail disponível no site www.sistemacriminal.org

Fone: (41) 2105-4098 - Fax: (41) 2105-4195

Agradecemos o seu interesse pela Revista Justiça e Sistema Criminal e esperamos tê-lo(a) como colaborador(a) frequente.

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