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Revista Letras 80

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  • ReitorZaki Akel Sobrinho

    Vice-ReitorRogrio Mulinari

    Diretor da Editora UFPRGilberto de Castro

    Revista LetrasPublicao quadrimestral do Curso de Letras da UFPR

    http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/letrasA Revista Letras est indexada nos seguintes ndices bibliogrficos: 1. Internationale Bibliographie der Rezensionen Wissenschftlicher Literatur/International Bibliography

    of Book Reviews of Scholarly Literature; 2. Linguistics and Language Behavior Abstracts; 3. MLA International Bibliography of Books and Articles on Modern Languages and

    Literatures; 4. Social Planning, Policy and Development Abstracts; 5. Sociological Abstracts; 6. Ulrichs International Periodicals Directory; 7. CLASE Citas

    Latinoamericanas en Ciencias Sociales y Humanidades.

    Editor: Rodrigo Tadeu Gonalves (UFPR)Secretria editorial: Mariana Bordignon Strachulski de SouzaEditora da Seo de Estudos Lingusticos: Lgia Negri (UFPR)Editora da Seo de Estudos Literrios: Renata Telles (UFPR)

    Conselho EditorialAntonio Dimas (USP), Beatriz Gabbiani (Universidad de la Repblica do Uruguai), Carlos Alberto Faraco (UFPR),

    Carlos Costa Assuno (Universidade de Trs-os-Montes e Alto Douro), Elena Godoi (UFPR), Filomena Yoshie Hirata (USP), Gilda Santos (UFRJ), Jos Borges Neto (UFPR), Jlio Cesar Vallado Diniz (PUC-RJ),

    Lgia Negri (UFPR), Lcia S (Manchester University), Lucia Sgobaro Zanette (UFPR), Maria Lucia de Barros Camargo (UFSC), Marlia dos Santos Lima (UNISINOS), Mauri Furlan (UFSC), Maurcio Mendona (UFPR),

    Raquel Salek Fiad (Unicamp), Rodolfo A. Franconi (Darthmouth College), Rodolfo Ilari (Unicamp)

    Consultores ad hocAdelaide Herclia Pescatori Silva, Adriana Marusso, Altair Pivovar, Altamir Botoso, lvaro Faleiros, Amadeu Lopes

    Sabino, Ana Cludia F. Gualberto, Ana Scher, Anamaria Filizola, Benito Martinez Rodriguez, Caetano Galindo, Carlos Alberto Faraco, Carlos Gomes, Carlos Magno Gomes, Carolina Bernardes, Clarissa Jordo, Claudia Campos, Cristina Figueiredo, Eleonora Albano, Erotilde Pezatti, Evanir Pavloski, Fabiano Dalla Bona, Flvia Nascimento, Francisco Fogaa, Gabriel Arajo, Gesualda Rasia, Gilda Santos, Guilherme Gontijo Flores, Iara Costa, Isabelle

    Amorim Mesquita, Izabel Christine Seara, Jefferson Mello, Josalba Santos, Jos Borges Neto, Jos Martins, Juliana Perez, Lgia Negri, Lus Camargo, Luiz Arthur Pagani, Luiz S, Mrcia Canado, Mrcio Guimares, Marcos Lopes,

    Marcos Siscar, Maria Cristina Altman, Maria Estela Lima, Maria Jos Foltran, Marilene Weinhardt, Mario Luiz Frungillo, Mary Jane Franco, Mauri Furlan, Milena Ribeiro Martins, Milton Hermes Rodrigues, Naira Nascimento, Odete Pereira Menon, Orlando Luiz Arajo, Paulo Soethe, Pedro Ipiranga Jr., Raquel Illescas Bueno, Raquel Salek

    Fiad, Regina Przybycien, Renata Philippov, Renata Praa Telles, Renato Miguel Basso, Rita de Cssia Souto Maior, Roberta Oliveira, Rodrigo Tadeu Gonalves, Rosana Harmuch, Rossana Finau, Ruth Lopes, Sandra Stroparo,

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    Conselho ConsultivoAdalberto Mller (UFF), lvaro Faleiros (USP), Brunno Vinicius Gonalves Vieira (Unesp-Araraquara), Fernando

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    Coudry (Unicamp), Matthew Leigh (University of Oxford), Patrick Farrell (University of California/Davis)

    Sistema Eletrnico de Revistas - SERPrograma de Apoio Publicao de Peridicos da UFPR Pr-Reitoria de Pesquisa e Ps-Graduaowww.prppg.ufpr.br

    O Sistema Eletrnico de Revistas (SER) um software livre e permite a submisso de artigos e acesso s revistas de qualquer parte do mundo. Pode ser acessado por autores, consultores, editores, usurios, interessados em acessar e obter cpias de artigos publicados nas revistas. O sistema avisa automaticamente, por e-mail, do lanamento de um novo nmero da revista aos cadastrados.

  • Revista

    Nmero 201080

  • EDITORA UFPRR. Joo Negro, 280, 2o andar

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    Coordenao editorial: Daniele Soares CarneiroReviso dos textos em

    Portugus: Felipe AlbertiIngls: Vera Lcia Roloff

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    A Revista Letras, n. 80, janeiro a abril de 2010, poder ser obtida em permuta junto Biblioteca Central - Caixa Postal 19.051 - 81.531-980 - Curitiba - Paran - Brasil

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    Coordenao de Processos Tcnicos. Sistema de Bibliotecas, UFPR

    Revista Letras / Universidade Federal do Paran, Setor deCincias Humanas, Letras e Artes. n. 21 (1973)- . n. 80

    QuadrimestralContinuao de Letras.ISSN 0100-0888 (verso impressa) 2236-0999 (verso eletrnica)

    1. Lingustica. I. Universidade Federal do Paran.Setor de Cincias Humanas, Letras e Artes.

    CDD 410.5 CDU 801(05)

    Srie Revista da UFPR, n. 249ISSN 0100-0888 (verso impressa)

    2236-0999 (verso eletrnica)Ref. 609

    PRINTED IN BRAZILCuritiba, 2011

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  • ApresentAoPresentation

    Apresentamos o volume 80 da Revista Letras, correspondente ao perodo de janeiro a abril de 2010. Neste volume, teremos um dossi derivado do III Simpsio Antigos e Modernos, realizado na UFPR em 2009. Nas sees regulares, selecionamos quatro artigos de Estudos Lingusticos e trs para a seo de Estudos Literrios.

    O volume se inicia com o referido dossi, apresentado pelos orga-nizadores, Guilherme Gontijo Flores e Pedro Ipiranga Jnior.

    Na sequncia, iniciamos a seo de Estudos Lingusticos. Lgia Negri, Adelaide Herclia Pescatori, Gustavo Nishida e Roberlei Alves Bertucci contribuem com um artigo sobre questes epistemolgicas nas definies de fronteiras interdisciplinares na lingustica contempornea. O segundo artigo, de Maisa Martins, lida com questes de percepo de fonemas voclicos do ingls por aprendizes e professores brasileiros atravs de uma perspectiva experimental. O terceiro artigo, de Zira Bomfante Santos, versa sobre as contribuies da Lingustica Sistmico-Funcional na apreciao de textos, avaliando questes de lingustica textual e semitica em textos publicitrios. O ltimo artigo da seo, de Clerton Luiz Felix Barboza e Wilson Jnior de Arajo Carvalho, trata da teoria acstica da produo da fala.

    Iniciamos com a seo de Estudos Literrios com um texto em ingls de Maria Rita Drumond Viana, sobre monstros na obra potica de Keats. O prximo artigo, tambm em ingls, dos professores Luiz Fernando Ferreira S e Miriam Piedade Mansur, trata da influncia em John Updike do Paraso Perdido de John Milton. No terceiro artigo selecionado, de Michael Korfmann, temos uma discusso sobre as poticas de trs autores: Johann Christoph Gottsched, Johann Jakob Bodmer e Johann Jakob Breitinger.

    Esperamos que todos tenham uma boa leitura!

    Rodrigo Tadeu GonalvesEditor-chefe

  • SUMRIO / SUMMARY

    Dossi III Simpsio Antigos e Modernos / III Ancients and Moderns Symposium

    ApresentaoPresentation

    Representaes de monstros, figuras humanas e deuses na Grcia AntigaRepresentations of monsters, human figures and gods in Ancient GreeceEzio Pellizer

    Clepatra e Csar: Lucano, Guerra Civil 10Cleopatra and Caesar: Lucan, Civil War 10Alessandro Rolim de Moura

    Acerca da compreenso do prazer em AristtelesOn Aristotles conception of pleasureInara Zanuzzi

    Entre macho e fmea: santas travestidas na AntiguidadeBetween male and female: cross-dressed female saints in AntiquityPedro Ipiranga

    Um tradutor de latim sob D. Pedro II: perspectivas para a histria da traduo da literatura greco-romana em portugusA Latin translator under D. Pedro II: perspectives towards translation history of Ancient Greek and Roman Literature into PortugueseBrunno Vinicius Gonalves Vieira

    Estudos Lingusticos / Linguistic Studies

    A questo das fronteiras interdisciplinares em LingusicaThe issue of interdisciplinary boundaries in LinguisticsLgia Negri Adelaide Herclia Pescatori Silva Gustavo Nishida Roberlei Alves Bertucci

    Nmero 80, jan./abr. 2010 Editora UFPRCuritiba Paran Brasil

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  • Anlise acstica da realizao do par mnimo voclico ingls [i] e [I]Acoustic analysis of the English minimal pair [i] and [I]Maisa Martins

    As contribuies da Lingustica Sistmico-Funcional na apreciao de textos: uma anlise multifuncional e multimodal de um texto publicitrioThe contributions of Systemic Functional Linguistic in texts analysis: a multifunctional and multimodal analysis of an advertisementZira Bomfante Santos

    Princpios fundamentais da produo de vogais segundo a teoria acstica de produo da falaFundamental principles of vowel production according to the acoustic theory of speech productionClerton Luiz Felix Barboza Wilson Jnior de Arajo Carvalho

    Estudos Literrios / Literary Studies

    From a serpent, a lamia to a rainbow-sided creature: Keatss Lamia and the metamorphoses of the monsterDe uma serpente, uma lmia a uma criatura do arco-ris: Lamia de John Keats e as metamorfoses do monstroMaria Rita Drumond Viana

    Two Johns on a/the run: Updikes Rabbit, Run and Miltons Paradise LostDois Johns correm juntos: Rabbit, Run de Updike e Paradise Lost de MiltonLuiz Fernando Ferreira S Miriam Piedade Mansur

    O antigo versus o moderno: o debate histrico de Gottsched, Bodmer e BreitingerOld versus modern: the historical debate between Gottsched, Bodmer and BreitingerMichael Korfmann

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  • Dossi iii simpsio Antigos e moDernosIII Ancients and Moderns Symposium

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    ApresentAo

    Do mar apenas sobrevindo interlocuo e rido vento, do mar to caro aos gregos, ocorre-nos pensar na obra Symposiaka, de Plutarco. O ttulo da obra j revela o tema de discusso e o sentido primordial da concepo de simpsio: se preciso filosofar acompanhado de vinho, ou seja, se nas discusses filosficas h lugar para o vinho e Dioniso. No contexto da narrativa dessa obra, depois de apresentados os posicionamentos contrrios dos vrios interlocutores, o vinho se mostra como o elo simblico que rene diferentes tipos de pensar e de agir, a partir de um mesmo topos ou unidade temtica escolhida por todos.

    Do genos sympotikon brotam as narrativas aqui escritas, narra-tivas essas marcadas pela diversidade: perspectivas diversas, finalidades diversas. Neste estado de nimo, foi organizado este III Simpsio Antigos e Modernos, pela iniciativa do grupo de estudos Encruzilhadas de Narra-tivas, composto inicialmente por professores e alunos advindos das reas da Histria, da Literatura e das Letras Clssicas, a que, posteriormente, se filiaram estudiosos das reas da Filosofia e da Psicologia.

    O I Simpsio Antigos e Modernos, realizado em 2007, props como eixo temtico as vrias formas de abordagem da narrativa empreendidas pela historiografia antiga e moderna e pelos tericos e crticos da literatura e das Letras Clssicas, sob o ttulo Encruzilhadas entre Histria e Literatu-ra. Em 2008, demos continuidade ao projeto com o II Simpsio, intitulado Caminhos da alteridade: o outro na religio, na histria, na literatura, em que o debate se cerrou sobre o tema da alteridade. O que ora apresentamos o resultado do nosso III Simpsio Antigos e Modernos: Todos os sexos: questes de gnero, realizado em novembro de 2009, na UFPR.

    A temtica dos gneros tem tomado grande parte do discurso contemporneo, no s na academia, como tambm na mdia e no cotidiano: estamos cercados de informaes, prescries, ensinamentos, protestos, instituies, tribos etc., marcados pela discusso sobre a (in)definio dos gneros e sobre seus resultados ticos e estticos. Na academia, a importncia desses estudos e debates se torna notvel se meramente enumerarmos correntes novas, que pesquisam o tema: a partir da psicanlise (que parece ser uma verdadeira revoluo no estudo da sexualidade e de sua influncia profunda na sociedade), podemos citar, dentre outros, a esquizoanlise, os estudos culturais e a teoria queer.

    Interpretar esse movimento recente como uma mera concluso histrica de libertarismo e fim dos preconceitos seria, entretanto, demasiado ingnuo; e por essa complexidade inerente ao problema que o tema sugere

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    um debate interdisciplinar, como o que ns pretendemos realizar nesse III Simpsio. Como se poderia depreender a partir do seu ttulo, o objetivo desde o incio foi incorporar, abarcar o mximo de temticas, perodos, propostas e pontos de vista para evitar as sempre possveis excluses, sobretudo quando o tema tem um carter, digamos, incmodo como este.

    O resultado, como vocs podem constatar pelos artigos deste dossi, foi bastante frtil no quesito diversidade, que abrange cenas que vo da Grcia arcaica ao Brasil nos fins do Imprio, com enfoques que vo da antropologia, passam pela filosofia, psicanlise e histria e abarcam a literatura e a hagiografia: temos uma viso da formulao das imagens de homens, deuses e monstros e de suas delimitaes no imaginrio da Grcia antiga, apresentada por Ezio Pellizer, da Universidade de Trieste, e uma discusso da representao de figuras histricas fundamentais, como Csar e Clepatra, na Farslia (ou Guerra Civil) de Lucano, desenvolvida por Alessandro Rolim de Moura. Inara Zanuzzi apresenta um ponto de vista filosfico sobre o prazer em Aristteles, conceituado pelos ideais ticos de temperana e continncia e tomando por exemplo a bestialidade; Pedro Ipiranga trata do travestimento da figura da santa ou da mrtir e da refigurao e do transpassamento de padres de gnero na constituio da imagem feminina em certos escritos cristos desde o sculo III d.C. at princpios da Idade Mdia, o que acaba por gerar o prottipo da santa travestida nas narrativas hagiogrficas; por fim, Brunno Vieira comenta o problema da incorporao dos discursos de gnero e de tabus pelo vis da recepo tradutria dos clssicos no Brasil Imperial.

    Por breve que seja este dossi, esperamos que sua abrangncia seja de interesse para a discusso contempornea. A ausncia de sntese, indicada pelos tpicos aqui apresentados, talvez seja o ponto mais impor-tante do debate como um todo: processos complexos, como os que permeiam o imaginrio, a moral e as produes discursivas no podem ser abarcados unitariamente; e o grande problema dos gneros parece ser a versatilidade do humano em se desdobrar para alm das formataes estabelecidas em cada sociedade. Nesse sentido, a tendncia determinante parece se desmanchar em face do mltiplo.

    Guilherme Gontijo FloresPedro Ipiranga Jnior

    Organizadores

  • revistA LetrAs, CuritibA, n. 80, p. 13-28, jAn./Abr. 2010. eDitorA uFpr.issn 0100-0888 (verso impressA); 2236-0999 (verso eLetrniCA)

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    peLLiZer, e. representAes De monstros, FigurAs humAnAs e Deuses nA grCiA AntigA

    representAes De monstros, FigurAs humAnAs e Deuses nA grCiA AntigA

    Representations of monsters, human figures and gods in Ancient Greece

    Ezio Pellizer*

    J. L. borges, Eplogo, in Otras Inquisiciones, (1952): ... estimar las ideas religiosas o filosficas por su valor esttico y aun por lo que encierran de singular y de maravilloso.

    1. morFoLogiAs muDAntes Do Corpo humAno

    No ano de 1928 (mil novecentos e vinte e oito), Fritz Saxl fez uma conferncia (em alemo, mas que foi publicada mais tarde em ingls) com o ttulo Macrocosmo e microcosmo nas ilustraes medievais, em que ele examinou de um modo excelente um conceito fundamental nas operaes do pensamento antigo e talvez do pensamento humano em geral: a ideia (bastante estranha) de que exista uma secreta correspondncia entre a es-trutura do mundo e a figura humana; tudo o que fica no alto, de qualquer modo, o mais das vezes misterioso, acha uma correspondncia com o que fica em baixo, e o cosmo se encontra em uma relao de analogia com o corpo humano.

    * Universit di Trieste.

  • revistA LetrAs, CuritibA, n. 80, p. 13-28, jAn./Abr. 2010. eDitorA uFpr.issn 0100-0888 (verso impressA); 2236-0999 (verso eLetrniCA)

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    peLLiZer, e. representAes De monstros, FigurAs humAnAs e Deuses nA grCiA AntigA

    Os primeiros textos a atestar esta convico seriam iranianos (do Ir), e falariam da criao do Primeiro Homem mais ou menos com estas palavras:

    a cabea dele o mais alto dos cus, os olhos dele so o sol e a lua, os dentes so as estrelas, suas orelhas as janelas do cu, suas narinas a brisa do paraso, qual a boca d acesso1.

    Na idade helenstica diz Saxl, citando Reitzenstein e H. H. Scha-eder2 esta concepo ser estendida astrologia, produzindo a concepo de um corpo humano correspondente ao zodaco e, em seguida, a ideia de um microcosmo, o homem, ao qual corresponderia um macrocosmo cuja fora e energia estaria em uma relao de mtua correspondncia com aquele.

    A forma ideal do corpo humano (a anthrpou morph) estaria tambm em relao com os ventos (a rosa dos ventos), com o ciclo astral (ou seja, o Zodaco), e com os planetas, os quais, como todos sabem, so cinco, mais o sol e a lua3.

    Uma engenhosa tentativa de vincular a estrutura simtrica do mundo com o primeiro ser humano (em formas que antecipam a Cabala medieval), encontra-se em alguns versos dos Oracula Sibyllina, onde, nas primeiras letras do nome de Ado, reconhecida a presena dos quatro pontos cardeais, que por algum motivo oculto e misterioso so aqueles que se expressam em grego: Anatol ou leste, Dsis ou oeste, rktos ou norte, Mesembre ou sul (meio-dia).

    Oracula Sibyll. 3, 24-26:

    aujto; dh; qeov ejst j oJ plavsa tetragravmmaton jAdamto;n prwton plasqevnta kai; ou[noma plhrwvsantaajntolivhn te duvsin te meshmbrivhn te kai; a[rkton.

    e o mesmo Deus, aquele que formou Ado com quatro letras4, o primeiro plasmado, cujo nome aponta [?] o Leste, o Ocidente, o Meio dia, e a Ursa (constelao boreal).

    1 O Homem Csmico Iraniano (apud sAxL,1957).2 Cfr. reitZenstein e H. H. SChAeDer, 1926 (Synkretismus).3 Nos manuscritos antigos, abundam as reprodues dessas imagens da rosa dos

    ventos ou do zodaco em forma humana, cf. as figuras no j mencionado sAxL - settis (1985).4 Ou: cujo nome tem quatro letras.

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    Assim o corpo humano, com suas simetrias ou mesmo o nome do primeiro homem, podiam ser postos em relao com todo o cosmos. Na verdade, no parece que faltaram mesmo antes, j com alguns dos primeiros poetas da Grcia antiga, especialmente Hesodo, tentativas mais frugais mas por vezes impressionantes para descrever grandezas csmicas em for-ma humana, ou vice-versa. Nessas antigas concepes, ou melhor: nestas representaes fantsticas do universo, podem-se ver vrias tentativas, no modo analgico, fictcio ou imaginrio, para explorar a realidade emprica, descrevendo-a em um meio verbal ou icnico, com imagens que pem em jogo o princpio da analogia (e da polaridade, criando assim estruturas si-mtricas), estudado em um livro clssico de Geoffrey E. R. Lloyd5.

    Esses enunciados, sejam verbais ou veiculados por outros sinais, constroem mundos possveis nos quais aparecem descries, morfologias geomtricas (esferas, abbadas celestes, cavidades, abismos, planos) ou taxo-nomias tiradas da natureza (os quatro elementos: ar, gua, terra e fogo) isto : descries de estados da matria ou de aes ou alteraes (enunciados performativos), que tomam forma em uma primeira distino, alis fluda e mutvel, entre quietude e movimento, entre animado e inanimado. Assim nasceu o conceito de alma (ou respirao, esprito) do mundo (anima mundi), uma ideia que pressupe uma espcie de sopro ou respirao do universo, que reproduz de alguma forma algo de anlogo respirao humana (ou do mundo animado, a saber, dos animalia)6. E sempre o princpio gerativo por analogia aquele que produz concepes no uniformes de diferentes pocas, mas de alguma maneira semelhantes e recorrentes de uma correspondn-cia entre o Macrocosmos (o mundo, o universo com seus planetas, o cu e as estrelas) e o Microcosmos, que a figura do homem. Estas concepes, estas exploraes gerativas de mundos possveis (que se estendem em uma longue dure) parecem to enraizadas nos milnios, e to inevitveis, que fazem conjecturar que pertencem a estruturas morfognicas profundas, de natureza psicolgica, constitutivas do imaginrio humano, como a luz e as trevas, o dia e a noite, o preto e o branco.

    A tentativa de evocar algumas de suas linhas gerais nos leva a atra-vessar cosmogonias, teologias, filosofias, antropologias de muitas culturas, expressas em histrias (mitos), em textos sagrados, em sistemas filosficos, em obras literrias, em criaes artsticas, em rituais ou atos de culto, que envolvem (pelo menos este o limite que colocamos para nossa pesquisa) a bacia do Mediterrneo, e as diferentes culturas que se encontraram e se defrontaram nesta parte do mundo, entre Europa e sia, por alguns milnios.

    5 LLoyD (1966).6 Na Iliada 23, 880, uma pomba ferida por uma frechada de Merione morre exalando

    a sua fora vital, chamada thyms, o qual voa longe do corpo da pobre ave.

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    As grandes concepes filosficas e religiosas, s quais por vezes chegou esta contnua atividade morfogentica, so atraentes no s por sua grande beleza e capacidade de produzir maravilha, como disse Borges7, nem pelas diferentes religies ou crenas (ou fanatismos) que elas tm produzido nos sculos, com resultados por vezes sublimes e muitas vezes catastrficos:

    elas parecem ainda ser um objeto privilegiado e um tubo de ensaio para estudar e compreender melhor o funcionamento dos sistemas de signos que a entram em jogo, e o das formas e das estruturas em que so expressas, e por que no, para avaliar plenamente os efeitos pragmticos e passionais que elas so capazes de produzir, at estabelecer as formas de comunicao e persuaso que circulam entre dominantes e dominados, entre emissores e destinatrios dessa comunicao.

    Em outras palavras, estas vastas concepes do mito e do discurso religioso podem, talvez, permitir-nos compreender melhor o funcionamento simblico e metafrico da autoridade, e suas formas de controle da infor-mao, da comunicao, com efeitos de persuaso e induo de aspectos ficcionais da verdade, a fim de controlar as crenas, em uma plis, uma sociedade, ou em uma comunidade civil em geral.

    Sem um controle dos mitos e das crenas no possvel cons-truir e garantir uma forma de tradio, seja feita para durar milnios, seja improvisada por alguns anos ou dcadas. E necessrio, para dizer bons mitos, fazer um bom uso das simetrias, atingir (alcanar) as estruturas profundas do conto, as sequncias narrativas mais apropriadas: as provas (preuves) extraordinrias que superar, competncias no conhecimento da manipulao proftica, fices de combates csmicos (aspecto polmico do conto, da narratividade) que servem para definir a qualidade do heri, do rei, do deus, do homem da Pronia, da Providncia e para estabelecer onde coloca-se o Bem e o Mal; e tudo isto, em um contexto narrativo amplo e profundo, suscetvel (capaz) de fundar como tradio os fundamentos dos sistemas axiolgicos (do sistema dos valores) dominantes em que as culturas so construdas.

    Uma das Sete Maravilhas do mundo antigo, como conhecida, foi uma esttua de Zeus sentado, esculpida em marfim e ouro, lindamen-te pintada, com altura de cerca de dez ou doze metros. Olh-la, em sua

    7 J. L. borges, Eplogo, in Otras Inquisiciones (1952): [...] estimar las ideas religiosas o filosficas por su valor esttico y aun por lo que encierran de singular y de maravilloso.

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    imponente beleza, dava uma sensao de bem estar, de esquecimento dos problemas e das angstias. Um Grego religioso ficava obrigado a v-la pelo menos uma vez na vida.

    No Partenon, uma esttua de Atena, tambm com uma dezena de metros de altura e tambm esculpida em marfim e ouro, era encimada por um capacete de ouro, cujos reflexos podiam ser vistos j a partir do mar, aproximando-se ao porto de Atenas8.

    Na imaginao dos gregos, na idade arcaica e clssica trivial lembr-lo os deuses eram antropomrficos, isto , eram uma mera projeo do mundo dos homens. Corpos masculinos e femininos, gerao sexual (com algumas excees prodigiosas, como o nascimento de Atena, a gestao de Dioniso na coxa do pai, e algumas partenogneses primordiais), estrutura familiar e social hierrquica, sucesso gentica de trs ou quatro geraes, a origem da cosmos a partir do Vazio, isto , do caos original, at o tempo atual (da atualidade), at chegar ao mundo ordenado (ksmos) sob o governo de Zeus.

    Um problema a mais a relao (a mistura) sexual dos deuses com seres humanos, ainda que heroicos (heronas9). No podendo apa-recer na essncia total deles, que no teria sido tolerada fisicamente pelos seres humanos (como o mostra a histria de Smele queimada e do duplo nascimento de Dioniso), para comunicar com os homens e as mulheres, os deuses tinham que operar alguma metamorfose, tomando o aspecto de um ser humano, ou mesmo de animais, pssaros, touros, etc., como feito (se encontra) regularmente desde os tempos mais arcaicos que podemos reconstruir10.

    O crescimento deles podia ser prodigiosamente acelerado no tempo (como Zeus ou Hermes, que crescem muito rapidamente aps o nascimento), e seu tamanho, como tambm sugerido pelas esttuas gigantescas mencio-nadas, era bastante superior ao dos humanos.

    Bastante complicado tambm o problema da linguagem dos deu-ses: nos poemas homricos acham-se interessantes vestgios de um duplo sistema lexical, uma linguagem dos deuses diferente da dos homens11.

    8 possvel encontrar facilmente na Internet tentativas de reproduzir essa esttua colossal; para o capacete de Atena, cf. pAusAn (I 28, 2).

    9 Embora nunca sejam chamadas assim, mas s mulheres, gynikes.)10 Sobre as metforas em geral, cf. Forbes-irving (1990) e Frontisi-DuCroux (2003).11 Sobre os diversos registros da linguagem divina, cf. Ileana ChirAssi CoLombo, I lin-

    guaggi speciali degli dei e la lingua di dio, in morresi (1998, p. 83-103). Existem, porm, deusas de sexo feminino, terrveis e sedutoras, s quais se confere o epteto de audessa (hom. V 334, Circe, 3 vezes, e Calipso uma s, XII, a quem se chama ainda de ninfa, hom. Od. V 14, 30; no verso V 159 ela da theon; por outro lado, a filha de Cadmo, Ino Leukothea, antes de obter honras divinas era brots audessa, V 334, ou seja, humana, mortal; cfr. hAinsworth 1989 ad l., que cita J. CLAy, Demas

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    Um texto bastante arcaico (fim VII - comeo VI) nos fala de Dem-ter (Demter) que mostra-se em forma de velha na casa de Celeo e Metanira. No momento de sua entrada, ainda deste modo, no aspecto de uma mulher velha e doente, a deusa roa com sua cabea a abbada do quarto (vv. 188-89, mlatron), uma clara luz (slas) divina espalha-se no palcio real, causando aids, sbas e medo verde, dos, nas meninas e na rainha. Nos versos 275 ss., a deusa manifesta-se, antes de partir, mudando estatura e aspecto, emanando do vestido dela um cheiro particular (veja-se a crena crist no cheiro de santidade), e novamente emitindo luz, phngos, para o corpo imortal que enche o palcio real de esplendor (augh), semelhante a um raio, deixando a rainha sem palavras e estonteada por muito tempo (v. 271).

    Mesmo a dieta (os alimentos) dos deuses era diferente da humana: gastavam o tempo em banquetes e simpsios, servidos por um escano (por meninos, meninas, ou robs metlicos feitos por Hefsto); seu alimento a ambrsia, seu vinho o nktar, e em suas veias flui um lquido que no chamado de sangue (hima), mas de kor.

    Podem causar a morte de vrias maneiras, com dardos invisveis (metfora de uma praga), com raios, ou de outras formas, e interferir com o mundo dos humanos atravs de sonhos, profecias e outras smata, como o trovo, o voo das aves etc. [Talvez, eles possam mesmo morrer].

    Deslocam-se milagrosamente, como o voo de uma ave ou o cami-nho do arco-ris, viajando sobre o mar, em uma carruagem de ouro, e podem aparecer em sonhos, ou manifestar-se em forma humana (ssias) ou animal, transformando-se em vrios aspectos. Seus poderes so considerveis: eles tm a capacidade de desencadear tempestades, de lanar raios e troves, de operar metamorfoses, sobre si mesmos ou sobre outros etc.

    Na perspectiva de uma descrio densa (Clifford Geerz) das representaes icnicas que podemos observar, a partir da idade arcaica at a poca romana (devemos levar em considerao o fato de que trata-se de uma religio politesta muito complexa, que desenvolveu-se ao longo de dois milnios), observei que um princpio geral da morfognese do divino a adaptao das formas empricas de algums indivduos animados (homens,

    and Aude, Hermes 102 (1974, p. 129-36); cf. omph.), que poderia significar aquela que fala com voz humana, mas talvez ainda aquela que fala a lngua dos homens, usada alis pelos deuses maiores quando assumem forma humana para se comunicar, com tal proteo, com algum dos mor-tais, seja em sonho, seja em viglia. Outro caso de entidades divinas menores, mais prximas aos homens, fornecido pelas divindades fluviais, que costumam se unir com ninfas ou com mulheres mortais; Posdon, por exemplo, transforma-se num deus fluvial, Enipeu, para seduzir Tiro (sobre a posio intermediria das Ninfas em relao a deuses e homens, cf. hesioD., Fr. 304 Merk.-West).

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    animais, mais raramente plantas) para configurar aspectos naturais, sejam eles figuras csmicas (ou do ambiente circunstante), como a terra, o cu , as estrelas, as montanhas, o mar, os rios e as fontes, sejam ao contrrio fenmenos atmosfricos, como os troves, os raios (relmpagos), os tufes ou furaces.

    Neste tipo de representaes so operantes as distores mais habituais nas criaes do imaginrio, como as do tamanho (gigantismo, nanismo) ou, mais geralmente, as morfolgicas, por exemplo: um nmero anormal de braos, cabeas, olhos, e muitas outras deformidades possveis. Observa-se ento, neste universo ficcional, o uso sistemtico da associao de caractersticas morfolgicas diferentes (no conformes com as percepes comuns, empricas), para produzir vrias hibridaes, especialmente entre a figura humana e a de diferentes animais, isso , para gerar uma srie de figuras monstruosas, em geral violentas e predatrias.

    Os estgios mais arcaicos destes processos semiticos do ima-ginrio buscam representar os grandes eventos cosmolgicos, tais como o nascimento (theo-gonia) de uma raa divina primordial (chamada titnica), por uma unio entre o deus do cu, Urano, e a deusa da Terra, Gaia, desta maneira projetando por analogia sobre as figuras do cosmos alguns cones de tipo humano, como as relaes sexuais entre macho e fmea, das quais deixo a vocs imaginar o tamanho12.

    Dimenses igualmente csmicas tomam as lutas (plemoi) pela soberania dinstica sobre o universo, que encontram-se em diferentes formas nas religies do Oriente Prximo. Os gregos produziram histrias sagradas nas quais evidente a representao antropomrfica de catstrofes naturais, onde furaces, terremotos, deslizamentos de montanhas inteiras, erupes vulcnicas reconhecem-se na forma de uma luta (mkhe) entre sujeitos ani-mados, embora sejam ultragigantescos, hbridos ou monstruosos.

    Como um importante exemplo, podemos citar a Tifeomachia13, ou seja, a luta de Zeus, que teve de enfrentar (depois de ter derrotado a gera-o anterior dos Tits em um terrvel conflito dinstico), um novo tipo de Antagonista, hbrido, gigantesco, monstruoso, chamado Typhon (Typhon).

    Para alm de qualquer considerao histrica e religiosa, e manten-do-se no nvel (plano) da figurao (figuratividade, seja narativa,

    12 A religio egpcia, de uma maneira bastante significativa, imaginou um semelhante acoplamento, uma unio (um coito) de um ser masculino com um feminino, isso , entre Geb e Nut, mas inverteu o sexo dos dois elementos: o cu do sexo feminino, a terra do sexo masculino.

    13 Cf. o verbete Theogonie etc. em bonneFoy (1981).

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    seja icnica), preciso notar que as fontes mais antigas descrevem uma imagem de Typhon que no corresponde a nenhuma das imagens reproduzidas na iconografia. como se as possibilidades expressivas dos pintores ou escultores estivessem limitadas por restries de ordem tcnica, espacial (o que talvez compreensvel: se voc pode, em um espao pictrico vascular, reproduzir as trs cabeas de Crbero ou as nove da Hidra de Lerna, muito menos fcil desenhar sobre um nico corpo um conjunto redundante de cem braos ou cem cabeas de cobra). Isso acaba reduzindo signi-ficativamente as possibilidades reprodutivas (figurativas) do sinal icnico em comparao com as do conto, da narratividade, que parecem ser quase ilimitadas; os artistas da imagem, por vezes, parecem praticar (usar) uma espcie de bricolage, na tentativa de representar o irrepresentvel, a exemplo, a diacronia (Frontisi).

    Hesodo fala de Tiphon (ou Typhn), filho de Gaia e Trtaro, como de um monstro equipado com mos e ps incansveis, mas no indica o nmero, embora existam outros similares monstros enormes, que trazem suas deformidades em seu prprio nome, como os Centimani ou Heca-tnquiros, que tm cem mos. Em seguida, ele acrescenta que surgiam sobre seus ombros cem cabeas de serpente, drago terrvel / que vibrava cem lnguas pretas; sob os clios dos duzentos assim parece que se deve deduzir olhos serpentinos brilhava uma chama de fogo, e de todas estas cabeas coleava uma chama, quando esta criatura de pesadelo olhava para algum. Alm disso, as cem lnguas proferiam uma ampla gama de sons, que vo desde uma linguagem compreensvel para os deuses, at a emisso de mugidos de um boi ou de rugidos de um leo14.

    As modalidades da luta esto ainda impregnadas das imagens mais antigas de um choque de foras naturais, como furaces, relmpagos e troves; alguns fenmenos descritos nos versos de Hesodo (como a fuso das rochas) parecem mesmo aludir a erupes vulcnicas.

    Quase 800 anos depois de Hesodo, um mitgrafo chamado Apo-lodoro, autor da Bibliotheca, que organiza o que chamamos de mitologia grega, fornece uma verso da Typhon-(Tifono-)-machia, que expande o ta-manho csmico dos dois contendores. A representao icnica (a imagem verbal) do monstro varia significativamente, em comparao com a descrio de Hesodo. No h mais ps e mos incansveis, mas uma natureza hbri-da, de homem e de animal ... sua forma at as coxas era a de um homem, mas tamanha era sua altura que superava todas as montanhas; das coxas

    14 Nao preciso dizer que por meio da pintura ficaria muito difcil de reproduzir os sons, pingere sonum.

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    para baixo ramificavam-se espirais de cobra (spiras echidnn); cem cabe-as de serpente saltavam de seus braos, e a cabea (humana?) tocava as estrelas. Se ele estendesse os braos, com um teria tocado o Ocidente, com outro o Oriente.

    mACrobio, Saturn. I 20, 17, relata um orculo ao Rei de Chipre Ni-cocreonte (poca de Alexandre), no qual o deus Serapis (Srapis) ele mesmo descreve-se desta forma:

    Eu sou um Deus feito assim, (voc) aprender! qual eu digo: celeste cosmos minha cabea, a barriga o mar a terra so os meus ps, minhas orelhas esto no ter meus olhos que brilham de longe, a luz do sol brilhando!

    E o sol era chamado Olho de Zeus j em Hesodo15.O trecho hesidico de Tufo com cem cabeas localizadas sobre os

    ombros, ligeiramente modificado: aqui elas esto dispostas ao longo dos braos, j no sobre seus ombros. Mas enquanto Hesodo apenas descreve muitas cabeas de cobra, em Apolodoro Tufo tem embaixo das coxas enor-mes espirais de cobra, de acordo com um esquema figurativo que parece pertencer a outro tipo, ou seja, ao dos Gigantes16, com uma mescla bastante comum entre homem e serpente17.

    A figura de Tufo (Typhon) aqui no apresenta cabeas de cobra em seus ombros (ou ao longo dos braos), mas tem uma forma serpentina na parte inferior do corpo (de acordo com a morfologia dos Gigantes). Alm disso, deve-se notar, tambm tem duas grandes asas, sobre as quais parecem estar representados os muitos olhos do monstro, que tambm deviam ser desenhados em algum lugar.

    Com base em Apolodoro (e, ao que parece, no em Hesodo), Ata-nsio Kircher, muitos sculos depois, vai produzir esta imagem, juntamente com vrias interpretaes alegricas, fsicas e ticas18:

    Mais de dois mil anos separam Hesodo e Kircher, e o imaginrio (a atividade mental que produz imagems) continua utilizando este paradig-

    15 ApoLLoDoro, Bibl. I 6, 3. mACrobio, Saturn. I 20, 17. Cfr. pettAZZoni (1955, p. 100-103). Sobre a sobrevivncia das figuras de Serapis, cf. seZneC (1940, cit., p. 110 e nt. 6).

    16 FAbre-serris (1995, p. 55-56).17 Confira, entre tantas, a figura reproduzida numa hdria de Clcida, Mnchen Anti-

    kenslg., ca. 530 A.C. Sobre essas tipologias iconogrficas do gigantismo, cf. a ampla pesquisa de viAn (1952).

    18 A imagem est em: Athanasius KirCher, Oedipus Aegyptiacus, Romae 1652-1651, III volumes in folio.

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    ma, estas estruturas de significao eficazes e significativas. Dimenses csmicas, gigantismo, hibridismo, monstruosidade...

    Assim, ao longo dos sculos, as antigas lutas para a soberania do cosmos tinham sofrido vrias mesclas e sincretismos, todavia mantendo algumas estruturas espaciais, temporais e dinmicas.

    O que permaneceu (como v-se, por exemplo, na primeira parte das Metamorfoses de Ovdio) foram imagens como:

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    a. a separao dos elementos csmicos (Staudacher)19;b. a funo geradora da Terra,c. uma sucesso de geraes divinas,d. uma sucesso de idades da raa humana, em gradual declnio

    e deteriorao.E ainda:e. uma srie de lutas, de provas que o deus dominante (Zeus) deve

    enfrentar para formar um cosmos ordenado, de combates contra monstruosas foras primordiais,

    e, finalmente,f. uma ou mais imagens da origem dos homens, isso , uma an-

    tropogonia.

    Estas estruturas profundas levam a uma multido de figuras, por vezes grandiosas, do imaginrio, mas ainda podem levar a uma confuso, a diversas formas sincrticas, que tambm podem coexistir uma a lado da outra20, em uma espcie de bricolage da lgica do pensamento mitopotico.

    Os homens, por exemplo, podem surgir de um carvalho (quercus) ou uma rocha, das pedras de Deucalio e Pyrra ou do sangue dos Gigantes fertilizado pela Terra (Gaia); podem ter nascido a partir das cinzas do Filho de Zeus (Dionisos) e dos Tits, queimados por um raio arremessado pelo Pai dos deuses e dos homens. Ou podem ter a origem de um ovo csmico, ou de uma mistura de lama e gua, animada por um sopro divino (Pnuma), ou mesmo a partir do esperma de um deus coxo, derramado nos sulcos da Terra Me.

    O nascimento de alguns heris fundadores (autctonos) da Terra mesma (Gia), mostra algumas interessantes invenes icnicas, na tenta-tiva de representar a autoctonia21, com o expediente de imaginar um corpo feminino materno que emerge do cho at a metade do tronco, e entrega o beb nas mos das mulheres que tero de cri-lo22.

    Uma religio mais do que milenar, que nunca em sua longa histria produziu livros ou dogmas, deu um espao considervel criao literria e figurativa. Isso parece explicar, pelo menos em parte, o carter potico, que pelo menos desde o tempo de Chr. Gottlob Heine atribudo religio

    19 Feita em Ovdio por um misterioso demiurgo, um deus desconhecido (gnostos thes): I 73: Quisquis fuit ille deorum.

    20 No preciso lembrar que a civilizao grega no conhece uma ortodoxia religiosa, com uma nica cosmogonia, teogonia e antropogonia, mas produz muitas e diversas variaes.

    21 Sobre a questo da autoctonia na Grcia, cf. LorAux (1996).22 Cf. por exemplo as imagens de um certo Stamnos de Vulci, ca. 460 a.C. Gaia ou Ga

    emerge do solo tendo no brao o pequeno Erecthus e estendendo a mo a Atena, sob o olhar satisfeito de Efesto (LIMC, Ge 16, p. 173).

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    grega, ou se voc quiser as qualidades estticas nicas (peculiares) da mitologia grega, acmulo ou agregao de materiais narrativos que (no caso em que no seja reconhecido como o discurso religioso de um poli-tesmo complexo), leva o nome, genrico, mas significativo, de Histria poetica, para citar o ttulo de uma famosa obra mitogrfica de Thomas Gale (Parisiis, 1675).

    Na nossa anlise das morfologias do imaginrio no mundo Medi-terrneo antigo, ento, continua a surpreender-nos a quantidade e a beleza das grandes concepes filosficas e religiosas produzidas pela cultura grega, e uma surpresa (thuma) principalmente (sobretudo) de ordem esttica.

    [Todavia hoje, apesar disso, existe no mundo uma religio, dita Dodecateismo, que pratica rituais e venera os deuses do Olimpo, com muitos adeptos (max 500.000 min. 5.000).]

    Por um lado, uma vasta sindoque universal explica tudo o que existe, com base em algumas analogias antropomrficas e zoomrficas, e descreve a gerao dos deuses, com base em unies sexuais semelhantes as dos seres humanos: o Cu, Urano, aproxima-se da Terra (Gia) dominado por um forte desejo, e as relaes entre os deuses reproduzem a estrutura social do mundo humano.

    Do lado oposto, acham no espao as abstraes mais ousadas, assim que o Cosmos, o Ser (t on), e especialmente o Deus que os criou (que criou todo isso, em suma, todo o que existe), so retratados como substncias imateriais; enquanto os objetos (os seres) gerados do mundo material, podem ser preenchidos por um sopro, uma respirao imaterial que os anima, e podem ser variadamente mesclados a partir duma dinmica de atrao e repulso, pelo dio, pela discrdia (Nikos, Plemos) ou pelo amor, pela Phila ou Philtes, pelo Himeros, e finalmente pelo Eros. Se nas concepes areas do divino (Pnuma, Spiritus, Anima Mundi), pode-se ainda reconhecer um trao residual de fisicidade23, um passo ulterior na direo da abstrao (como a ideia magnfica de uma enorme bola, uma esfera global), ou seja, na direo de um discurso totalmente no-figurativo, levar a conceber o divino como uma Palavra criadora (Lgos), que tende a formas puramente intelectuais: Phrn, Nos, ou Lgos, isso , a Palavra (Verbum), que pressupe uma pura Mente, um Intelecto divino que anima,

    23 O ar, afinal de contas, um dos quatro elementos constitutivos do cosmo.

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    que infunde alma ao Universo24. O potencial morfogentico desta oposio, deste esquema opositivo (visvel // invisvel, material // imaterial, materia // esprito), como voc pode imaginar, enorme.

    Se os aspectos filosficos e religiosos deste problema vo muito alm das limitaes dessas poucas reflexes, vamos apenas concluir re-cordando algumas das vastas consequncias desta fundamental oposio figurativo // no-figurativo (ou abstrato).

    No final de uma civilizao que chegou, provavelmente, ao ponto mais elevado da iconicidade e da representao antropomrfica do divino, uma nova religio, que se referia a concepes abstratas de diferente origem (neoplatnica, estoica, judaica, etc.), tentar, a partir da polmica contra os deuses do politeismo grego e romano, (idola, os falsos dolos do paganismo), a via da recusa do iconismo, a renncia figurao, que pode ser resumida com uma frase retirada de Paulo de Tarso, citada por Clemente de Alexandria:

    Para ns, os dolos no so nada, no cosmos (Epist. aos Co-rntios. I 8, 4), uma vez que no possvel (lcito) para ns que exista qualquer representao de Deus nas coisas criadas (Strom. VI 18, 163.1)25.

    Mas cerca de oito sculos atrs j havia se levantado a animada bem como ignorada pela gente comum controvrsia (crtica) dos primeiros filsofos contra todas as formas de representao icnica ou antropomr-fica do divino, por exemplo, de Xenfanes ou de Empdocles: basta aqui lembrar Herclito (o mestre de feso chamado o obscuro, skoteins), para a eficcia do seu desdenhoso sarcasmo contra aqueles que adoram as esttuas:

    e oram s esttuas (aglmata), como se algum falasse com as paredes da sua casa (domisi)! (Fr. 5 D.-K.)26.

    24 Por volta do sculo VI a.C., os primeiros sbios da Jnia, aqueles que chamamos de filsofos, comearam a criticar com feroz ironia a concepo de figuras antropomrficas dos deuses, negando tanto que um deus possa morrer quanto que possa nascer, ser gerado por algum. Esses filsofos propuseram concepes mais abstratas do Ser (t n, p. ex. em Parmnide), representando-o como uma perfeita Esfera, e refutaram com firmeza a ideia que se possa atribuir aos deuses membros e formas semelhantes s do homem; cf. jAeger (1953), em particular o Cap. III, dedicado a xenFAnes de Colofonte.

    25 CLem. ALex. Strom. VI 18, 163.1: JHmin de; oujde;n ei[dwlon ejn kovsmw/ (pAuL. Epist. ad Corinth. I 8, 4), ejpei; oujde;n ajneikovnisma tou qeou oi|ovn te ejn genhtoi ei\nai.

    26 HerACL. Fr. 5.3, = ORIG. c. Cels. VII 62 20: kai; toi ajgavlmasi de; toutevoisin eu[contai, oJkoion ei[ ti dovmoisi leschneuvoito, ou[ ti ginwvskwn qeou; oujd j h{rwe oi{tinev eijsi.

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    A arte bizantina com base no legado do mundo grego e romano escolheu quanto ao resto o caminho oposto, representando de bom grado o Cristo Pantokrtor ou a Virgem Theotkos (a Madre de deus) em inumerveis cones, mosaicos, etc.; mas outras religies preferiram seguir o caminho da irrepresentabilidade do divino, ou pior, da condenao geral e destruio das imagens religiosas27. A histria de Bizncio conhecer polmicas ferozes, que no sero somente filosficas ou teolgicas, entre os iconoclastas e os iconodlios (ou idlatras, eijdwlolavtrai, ainda Paulo de Tarso, juntando-os com os ladres, com os prostitutos, os adlteros e os sodomitas28).

    E certamente, ainda hoje h grandes religies monotestas que no permitem a prtica semitica de representar o divino em imagens se-melhantes as dos seres humanos, embora seja dito muito claramente, em um livro sagrado essencial, que Deus criou o homem (e a mulher?) sua imagem e semelhana.

    No grego dos Setenta:

    kai; ei\pen oJ qeov: Poihvsomen a[nqrwpon kat j eijkovna hJmetevran kai; kaq j oJmoivwsin. (Septuaginta, Gne-sis, 1,27).

    Se no Antigo Testamento permanecem apenas alguns (embora eloquentes) vestgios do antropomorfismo do Deus de Abrao, se no per-mitido no Isl representar Deus em forma humana, mesmo no cristianismo oriental apareceu (insinuou-se) uma tendncia a considerar a adorao de imagens como blasfema.

    A herana do mundo greco-romano, por outro lado, ofereceu uma das religies mais produtivas de imagems e de histrias de deuses antro-pomrficos, at demasiado humanos29, que as civilizaes com escritura j conheceram (no sei a situao do hindusmo, que parece ser muito iconodulo).

    Se no tivessem triunfado, na cultura (religiosa) europeia, e no sem vastos derramamentos de sangue os iconodlios (que dizer, ns mesmos) nunca teriam nascido inmeras obras de arte, desde os mosaicos bizantinos de Ravena, Piet de Michelangelo, desde Giotto arte sacra de muitos sculos, que continua criando e gerando beleza at hoje e esperemos que continue por muito tempo mais.

    27 A destruio idiota dos Buddhas de Bamyan, no Afganisto, uma boa demonstrao disto.

    28 Cor. 1 6, 9-10: ou[te povrnoi ou[te eijdwlolavtrai ou[te moicoi; ou[te malakoi; ou[te ajrsenokoitai ou[te klevptai.

    29 Menschliches, Allzumenschliches, Nietzsche, 1878.

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    Assim, por exemplo, o grande afresco da Criao, um tema ampla-mente desenvolvido no filme de Hollywood Agonia e xtase (ano 1965, de Carol Reed, com Charlton Heston), na Capela Sistina, no Vaticano, poderia hoje ser considerado blasfmia.

    RESUMO

    Analisam-se alguns mecanismos para descrever as estruturas bsicas do universo, e algumas figuras divinas as imagens de deuses masculinos e femininos em termos de analogia com as formas do corpo humano. Gigantismo, dimenses csmicas, distores morfolgicas, macrocosmo e microcosmo. Confrontam-se algumas diferentes concepes de cosmotesmo (deus sive natura), com a proibio de produzir imagens de di-vindades. As civilizaes do Mediterrneo antigo encontraram diferentes respostas e solues para o problema de dar forma ideia da divindade, com representaes muito diversificadas.

    Palavras-chave: concepes de gigantismo; imagens mticas do feminino e do masculino; gnero e religio.

    ABSTRACT

    This paper examines some mechanisms to describe the basic structures of the universe, and some divine figures the image of male and female gods in terms of analogy with the human body shapes. Gigantism, cosmic dimensions, morphological distortion, macrocosm and microcosm. Though the ancient Mediterranean civilizations found different answers and so-lutions to the problem of forming the idea of divinity, with very diverse representations, face some different conceptions of the cosmos, theism (deus sive natura), as the prohibition of producing images deities.

    Keywords: conceptions of gigantism; mythic images of femininity and masculinity; gender and religion.

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    Submetido em: 29/04/2010Aceito em 26/07/2010

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    Cleopatra and Caesar: Lucan, Civil War 10

    Alessandro Rolim de Moura**

    O livro 10 da Guerra civil de Lucano abre com Jlio Csar no Egito, para onde tinha ido em perseguio a Pompeu depois de venc-lo na principal batalha da guerra, em Pharsalos. O rei do Egito havia assassinado Magno e oferecido a Csar, de presente, a cabea de seu inimigo. No incio do livro, Csar entra em Alexandria e faz uma visita tumba de Alexandre o Grande. O general romano mostra uma forte preferncia por esse monumento (19: cupide descendit)1, parecendo indiferente em relao s muitas outras bele-zas da cidade ptolomaica (17-18). Essa escolha estabelece na narrativa uma conexo direta entre as duas figuras, presente tambm em outras fontes2. O elo que os une, no pano de fundo, a importncia de Alexandre como cone de um poder centralizado e de carter mundial (ver 25-8), naturalmente uma das principais razes do tom negativo com que o narrador o apresenta. Entretanto, no retrato de Alexandre isso se mistura a uma ideia de ambio exagerada, loucura (enfatizada pela repetio, a curta distncia, do adjeti-vo uaesanus nas linhas 20 e 42) e mesmo hybris: apenas a natureza tinha sido capaz de pr um fim a suas expedies (41-2; ver tambm 21-2: iacet, terrarum uindice fato / raptus).

    Os sentimentos do poeta so complicados por mais um elemento, contudo. Em seu tpico estilo apaixonado, o narrador introduz, com uma

    * Este trabalho traduz e desenvolve uma pequena parte de minha tese de doutorado (roLim De mourA, 2008), e foi apresentado oralmente, numa verso condensada, no III Simpsio Antigos e Modernos (Curitiba, novembro de 2009). Agradeo ao pblico presente pelos comentrios.

    ** UFPR1 Todas as citaes de Lucano provm da edio de housmAn (1926). 2 Como, por exemplo, a prpria disposio, nas Vidas paralelas de Plutarco, de Ale-

    xandre e Csar como um dos pares de biografados.

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    exclamao (45, pro pudor), o tema da vitria de Alexandre sobre os partos, os ferozes inimigos que Roma no teria sido capaz de subjugar. A derrota romana em Carrhae aparece como fonte de angstia para o narrador desde o promio (ver 1.10-12, cumque superba foret Babylon spolianda tropaeis / Ausoniis umbraque erraret Crassus inulta / bella geri placuit nullos habitura triumphos), muito embora os estandartes romanos capturados pelo inimigo tenham sido recuperados por Otvio em negociao levada a cabo no ano 20 antes da nossa era, o que antevisto ou comemorado em diversos poetas augustanos e.g. Verg. georg. 3.30-33, Aen. 7.606, Hor. carm. 4.15.6-8, Prop. 2.10.13-14, Ov. ars 1.177-824. O narrador lucneo parece ignorar ou omitir deliberadamente essa vitria simblica de Augusto, colocando-se na perspectiva de um contemporneo das personagens de sua Guerra civil, tal como se fosse o Lntulo que reclama, dirigindo-se a Pompeu em 8.420 sqq.: nam quod apud populos crimen socerique tuumque / maius erit, quam quod uobis miscentibus arma / Crassorum uindicta perit?, etc.5 No livro 10, de certa forma, Lucano no faz mais que retomar uma temtica explorada anteriormente no texto, mas a escolha do tempo verbal (10.50-1, cedemus in ortus / Arsacidum domino, em contraste com foret [...] erraret [...] placuit em 1.10-12) sugere uma questo que se prolonga at o tempo do poeta6. A tenso entre Roma e o imprio parto, de fato, foi um dos principais problemas de poltica externa no perodo neroniano, especialmente no que se refere disputa pelo controle da Armnia, at que um acordo de paz foi alcanado em 63 da nossa era (ver, particularmente, Tac. ann. 15.28-9) e confirmado quase trs anos depois (aps a morte de Lucano) na espetacular visita de Tiridates a Roma (D.C. 63.1-7), ele que ento ocupava o trono da Armnia com a aprovao conjunta dos romanos e dos partos7. O fato de Lucano omitir os sucessos diplomticos de Augusto e Nero poder ser explicado, quem sabe, por um desejo de apagar os feitos dos Csares que ele v como inimigos da libertas. Mas no devemos deixar de lado uma outra explicao: o que desagrada a Lucano justamente o fato de no ter havido vitria mi-litar significativa para compensar o massacre do exrcito de Crasso. Como Lntulo em 8.425-6, o sonho do narrador seria arrasar as principais cidades

    3 Ver Conington (1881), ad loc.4 Ver tambm syme (1939, p. 388, com notas 3 e 4).5 Ver getty (1940, p. 27); roChe (2009, p. 114-15). 6 Esse conflito entre duas temporalidades na voz narrativa de Lucano entre um ponto

    de vista contemporneo da guerra civil e outro correspondente ao presente do poeta que escreve na poca de Nero foi objeto do artigo clssico de Marti (mArti, 1975), mas j aparece na discusso que se segue ao paper de Due nos Entretiens de la Fondation Hardt XV (Due, 1970, p. 130-1). Ver tambm Quint (1993, p. 388, n. 33); sChLonsKi (1995, p. 159-62) e Leigh (1997, p. 77-109, 307-29).

    7 Exposies sintticas sobre a crise armnia no perodo neroniano em CiZeK (1982, p. 322-33) e grAnt (1998, p. 44-6, 90-4, 175-8).

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    do imprio oriental. Nunca demais lembrar, o discurso de Lntulo intro-duzido por palavras claramente favorveis da parte do narrador (8.328-30).

    Da surge uma contradio: no incio do livro 10, entre os traos da caracterizao nada lisonjeira de Alexandre esto o custo humano de seus feitos (31: humana cum strage ruit) e o fato de seu poder se apresentar como um regnum (24 e 42), termo profundamente negativo na obra de Lucano; mas a imagem do imprio romano oprimindo e reinando (49: regnemus) sobre muitas naes atemorizadas aparece como algo desejvel (o mesmo paradoxo vem tona em 7.427-36). Preocupa o narrador o fato de que a obstinada Prtia costumava ser uma provncia pacfica (10.52: secura) da pequena Pela, capital da Macednia, enquanto sua grande Roma continua nutrindo desejos de vingana pela derrota de Carras. A vemos, pela primei-ra vez, o discurso de Clepatra, que vir logo em seguida, respondendo ao texto do narrador e se aproveitando dessa inconsistncia de seu discurso. Assim, se para o narrador Alexandre um sidus iniquum / gentibus (35-6)8, Clepatra diz a Csar, em 89-90, tu gentibus aequum / sidus ades nostris.

    Quando Csar est se aproximando do tmulo de Alexandre, ele sente que a atmosfera no inteiramente amigvel: os egpcios tm uma atitude ambgua, e no esto dispostos a se submeter ao poder e s leis romanas (11-12), aqui surpreendentemente representadas por Csar, que no resto do poema normalmente aquele que subverte essas leis. Encontrar-amos a j uma antecipao de certos comentrios elogiosos presentes na fala de Clepatra? O general est com medo, mas disfara seu sentimento (14-15, uoltu semper celante pauorem9 / intrepidus). Foras sobrenaturais tambm parecem estar em jogo aqui, j que os manes de Pompeu servem para proteger Csar de espadas estrangeiras (6-8), numa das vrias referncias ao fantasma de Magno nos ltimos livros da Guerra civil. O dio contra o Egito aqui mais forte do que a inimizade poltica entre os romanos. No livro 10, ao que tudo indica, vamos testemunhar uma importante mudana na perspectiva do narrador.

    Quando Csar finalmente admitido no palcio do rei, Clepatra vem secretamente encontr-lo, tencionando conseguir seu apoio na disputa pelo trono do Egito travada com seu irmo e esposo, Ptolomeu XIII10. O nar-

    8 A imagem, de acordo com von ALbreCht (1970, p. 276, n. 1), deriva de Hom. Il. 22.25-32, um smile que aponta para Aquiles e a iminente destruio que ele representa nesse momento do poema. Mas cf. Verg. Aen. 10.272-5.

    9 pauorem MPU : -es Z : timorem GV.10 No a inteno deste artigo fornecer um tratamento propriamente historiogrfico do

    envolvimento de Clepatra com Roma. O leitor interessado no governo de Clepatra poder consultar, dentre os inmeros ttulos disponveis sobre a ltima rainha do Egito: jones (2006); Ashton (2008) e tyLDesLey (2008). KLeiner (2005) aborda sobretudo as conexes entre Clepatra e Roma, bem como com as imagens que se construram a respeito dessa figura nas diversas artes e na cultura de massa. Ashton (2008) revela por vezes uma leitura superficial das fontes. Entre os textos antigos que tratam

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    rador reage imediatamente, e no verso 58 d incio ao mais maldoso ataque contra a rainha do Egito: ela o dedecus Aegypti, mas, antes de tudo, repre-senta um grande perigo para Roma; no meramente uma ameaa de derrota militar, mas uma perverso iminente de determinados padres culturais. A batalha de cio relembrada como o dia em que a questo era saber se o mundo seria governado por uma mulher que no era sequer romana (67: an mundum ne nostra quidem matrona teneret)11. Clepatra, diz o narrador, emprega mtodos no convencionais na sua guerra contra Roma (64): et Romana petit inbelli signa Canopo. Seu objetivo representado como uma fantasia de humilhao em que um Csar submisso, prisioneiro a ser exi-bido num triunfo egpcio (65: Caesare captiuo Pharios ductura triumphos), aparece imaginado numa situao totalmente atpica no poema. Canopo era uma cidade perto de Alexandria e famosa por suas festas dissolutas (Estrabo 17.1.17 as descreve bem) da seu carter no blico. A cidade a eptome do encantamento lascivo que a principal arma de Clepatra12.

    O paralelo mtico para essa imagem de poder feminino no poderia ser mais convencional: Helena com sua facie [...] nocenti (10.61)13, uma lem-brana que faz a referncia a Canopo ganhar especial relevncia, pois aponta para a histria do piloto de Menelau chamado Canopo, que foi enterrado no lugar da fundao da cidade (ver e.g. Tac. ann. 2.60), depois de ter sido mordido por uma serpente, e portanto poderia ser visto como uma vtima das errncias causadas por Helena14. Canopo relevante por tambm outra

    das relaes entre Clepatra e Roma, especialmente do caso com Csar, citemos Caes. ciu. 3.103-4, 106-12; [Caes.] bell. Alex. 31-3; Cic. Att. 14.8.1, 20.2; 15.1.5, 4.4, 14.2; Hor. carm. 1.37, epod. 9; Verg. Aen. 8.675-728; Prop. 3.11, 4.6; Ov. met. 15.826-8; App. BC 2.71, 84-6, 102; Plu. Caes. 48-9; Suet. Iul. 35, 52; D.C. 42.3-5.6, 7-9.1; 34.3-35, 43.27.3; Flor. epit. 2.13.53-60; Orac. Sibyll. 3.75-92, 350-80. jones (2006) apresenta essas fontes de maneira organizada e acessvel. Meu trabalho se preocupar, sobretudo, com o estudo da maneira como Lucano nos apresenta, poeticamente, a personagem Cle-patra, e como essa representao interfere na feitura de sua narrativa e nos sentidos do poema. Do ponto de vista dos estudos de gnero, considere-se a observao de Dixon (2001, p. xi): male-centred texts have employed constructions of Woman not as a reflection of known women or even of serious preconceptions about women in general, but as a category of discourse, the other, against which to define the insider qualities of the normative, hypothetical male. Para as personagens femininas em Lucano, ver QuArtAnA (1918); brure (1951); FinieLLo (2005); sAnniCAnDro (2007). Note-se tambm hArDie (1998, p. 84-6) e Keith (2000). Para Clepatra em Lucano, ver principalmente berti (2000); sChmiDt (1986) e ZwierLein (1974).

    11 As tradues presentes neste artigo so de minha autoria.12 Lucano j havia evocado o lugar em outro trecho de crticas ao Egito, em 8.543,

    Pelusiaci tam mollis turba Canopi, onde mollis turba remete s multides que l se reuniam para os folguedos; cf. Juv. 15.46.

    13 Note-se que, segundo Lucano (104-5), muito mais que seu discurso, a beleza de Clepatra (uma caracterstica das heronas elegacas, diga-se de passagem) o fator que convence Csar (ver meus comentrios abaixo). Plutarco, todavia, em Ant. 27, informa que a rainha era uma intelectual respeitvel, e que seu grande atrativo era a capacidade de desenvolver uma conversao interessante.

    14 Veja-se Nic. Ther. 309-19 (ed. gow e sChoLFieLD, 1953). Para outras verses, ver mAAss (1892, p. 359-69), que reconstri o argumento de , obra perdida de Apolnio de Rodes. Cf. RE 10.1882.50-1883.17 s.v. Kanopos. Poderamos ir longe rastreando as possveis aluses implica-

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    razo: o nome nos ajuda a identificar um claro intertexto ovidiano (met. 15.828: seruitura suo Capitolia nostra Canopo)15, retirado de uma passagem em que a derrota da rainha egpcia em cio mais uma vez celebrada. Ns poderamos concentrar nossa ateno nos ecos do elogio ovidiano de Augusto presentes na passagem de Lucano, que certamente trazem mais ambiguidade para esta seo da Guerra civil (note-se, por exemplo, como Csar descrito por Lucano no verso 69 como um dos ducibus [...] nostris; uma outra srie de aluses, nomeadamente a Verg. Aen. 8.675-728 e Prop. 3.11, tem, como veremos, uma funo semelhante). Mas h uma diferena notvel entre o distanciamento de Ovdio e a visvel irritao de Lucano. Este ltimo repete a exclamao pro pudor em 77 (cf. 47), dessa vez como um comentrio sobre as consequncias da noite adltera que Csar e Clepatra passaro juntos:

    pro pudor, oblitus Magni tibi, Iulia, fratres obscaena de matre dedit, partesque fugatas passus in extremis Libyae coalescere regnis tempora Niliaco turpis dependit amori, dum donare Pharon, dum non sibi uincere mauolt.

    Jlia, filha de Csar, desempenha um papel anlogo ao de uma outra apario sua, no sonho de Pompeu no comeo do livro 3, na medida em que a sugesto aqui de que ela seria insultada pela aventura sexual de seu pai e pela prole da decorrente (Lucano fala em fratres, mas sabemos com certeza apenas de Ptolomeu XV Caesarion). Nesse trecho, entretanto, importante notar que uma outra (e talvez mais forte) razo para a impacincia do poeta a falta de interesse de Csar em vencer o Egito em seu prprio benefcio (dele, Csar, e supostamente tambm de Roma), em vez de subjug-lo para ceder seu controle a Clepatra. Mas a consequncia que Lucano coloca no centro deste passo de longe a mais comprometedora (para o narrador): no seu relaxamento oriental, digno de uma estada na ilha de Circe, o general

    das por Canopo. De acordo com Nicandro (Ther. 315), o piloto foi mordido por uma fmea da espcie haemorrhois, talvez como punio por ter rejeitado o amor de Tenoe, filha de Proteu (ver Cnon ap. Phot. Bibl. 186.132a23-4, particularmente linha 25, [ed. henry, 1959-91], e mAAss, 1892, p. 362-3). O mito traz ainda mais elementos que apontam para um certo poder destruidor associado ao feminino. Tomemos o papel intrigante desempenhado por Helena na estria de Nicandro: ela observa Canopo quando este est morrendo (ele descansava na areia quando a serpente picou seu pescoo; note-se que em 313 pode sugerir leito nupcial); em seguida, Helena fica furiosa com a cobra e esmaga sua espinha (cf. a estria similar sobre Pharos e Helena no Etymologicum magnum 788.17-21 s.v. ). Ver EM 328.16-19 s.v. , para as lgrimas que Helena derramou quando da morte de Canopo (cf. Plin. nat. 21.59: Helenium e lacrimis Helenae dicitur natum ed. von jAn e mAyhoFF, 1870-98). Quanto ao Canopo citado por Lucano em 8.181, trata-se da estrela (produto do katasterismos do piloto).

    15 Ed. tArrAnt, 2004.

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    d ao partido republicano a chance de recuperar suas foras na Lbia. Essa censura atitude de Csar, com esse impacto no destino do conflito civil, no casa bem com a postura do narrador no resto do poema: esperaramos que uma reorganizao do partido republicano fosse vista com bons olhos por Lucano. A contradio que se desenha aqui de suma relevncia, e ser retomada adiante.

    Quando Clepatra se aproxima de Csar, ela exibe sinais de tristeza semelhantes ao de outras figuras femininas da epopeia quando estas se di-rigem a seus pares masculinos (como a deusa Roma ao encontrar o prprio Csar no livro 1 e Mrcia ao buscar um segundo casamento com Cato no livro 2). Em laceros dispersa capillos (10.84), por exemplo, como se estivssemos novamente diante da prosopopeia da patria (sobretudo em 1.188-9, turrigero canos effundens uertice crines / caesarie lacera nudisque adstare lacertis). H claramente, todavia, uma encenao no comportamento de Clepatra (82-4): sine ullis / tristis adit lacrimis, simulatum compta dolorem / qua decuit, adornada com dor falsa, tanto quanto ficava bem, aproximou-se triste, mas sem quaisquer lgrimas. E apesar de formae confisa suae (82) ser coerente com a viso expressa pelo narrador em 104-5 (nequiquam duras temptasset Caesaris aures: / uoltus adest precibus faciesque incesta perorat), no ser apenas a beleza a agir aqui, pois a fala de Clepatra cuidadosamente ar- a agir aqui, pois a fala de Clepatra cuidadosamente ar-ticulada, revelando sua habilidade ao tirar vantagens da situao delicada em que Csar se encontra. Em primeiro lugar, o modo como ela se humilha, a si mesma e a sua famlia (em 89, conplector regina pedes, e 99, regem regnare iube), apela para as ambies de conquista do general. Quando ela apresenta um documento com as ltimas palavras de seu pai (92-3)16 como prova da legitimidade de seu pedido, Csar colocado na posio lisonjeira de restaurador da lei, bastante adequada para persuadir algum que esteve sob constante ataque na narrativa por seu rompimento com a constituio romana. Nisso, como sugerido h pouco, Clepatra usa para seus prprios fins a ambiguidade poltica do discurso do narrador identificada por ns no incio do livro 10. Tambm se revestem de grande importncia na estratgia de seduo as outras respostas de Clepatra a questes trazidas baila pelo poeta (como em 89-90, tu gentibus aequum / sidus ades nostris, que vimos acima, e em 90-2, trecho em que a divergncia da rainha quanto a um pro-blema de gnero evidente, como veremos em breve). As preocupaes de Csar com o perigo representado pelos conspiradores da corte de Ptolomeu XIII so igualmente abordadas (95-6 e 98-103), o que se associa a uma rplica ao facilmente perceptvel sentimento de indignao de Csar com o papel do egpcio Potino no assassinato de Pompeu (cf. 10.102-3, sat fuit indignum,

    16 Tratar-se-ia do testamento de Ptolomeu XII (ver Caes. ciu. 3.108.4-6).

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    Caesar, mundoque tibique / Pompeium facinus meritumque fuisse Pothini, e as palavras do prprio Csar em 9.1065-6: peius de Caesare uestrum / quam de Pompeio meruit scelus). A noite inefvel e seus gaudia (10.106 e 108) so a eficiente perorao do discurso de Clepatra.

    Outro intertexto no incio do livro 10, dessa vez com Proprcio 3.11, refora o problema crucial de modelos culturais e de gnero que podiam ser ameaadores para um romano. O poeta elegaco tambm associa Clepatra a Canopo (39: incesti meretrix regina Canopi)17, enxerga-a carregando o sis-trum (43: Romanamque tubam crepitanti pellere sistro) como em Lucano 10.63 (terruit illa suo, si fas, Capitolia sistro; cf. Verg. Aen. 8.683) e, o que mais interessante, minimiza os males da monarquia: a expulso dos Tarqunios (e, por conseguinte, o nascimento da repblica) teria sido intil se uma mulher tivesse que governar Roma (47-9: quid nunc Tarquinii frac-tas iuuat esse secures, / nomine quem simili uita superba notat, / si mulier patienda fuit?)18. Isso, claro, est conectado com a ideia central do poema properciano, qual seja a submisso do amante mulher adorada. Nenhum motivo para surpresa, diz o poeta, quando o caso visto luz dos exemplos mitolgicos e histricos que ele se prope a listar (1-8). Mas Proprcio, aqui e no poema explicitamente inspirado por Calmaco que dedica batalha de cio (4.6), sempre capaz de acrescentar uma pitada de irreverncia em relao grandiosidade do discurso oficial, como na passagem de 4.6.69 em diante (bella satis cecini etc.) e nas equvocas ltimas palavras de Cle-patra em 3.11.55 (non hoc, Roma, fui tanto tibi ciue uerenda). Algo dessa ironia est presente tambm em Lucano, mas com um tom amargo que no se encontra em Proprcio e quadra mais ao discurso satrico que tanto influenciou a Guerra civil19.

    Fica evidente que Lucano est se baseando numa tradio e que mantm total coerncia com outros momentos em que revela ansiedade diante de costumes efeminados e de poderes femininos. Na elegia esses temas so muitas vezes acompanhados do deleite que o poeta experimenta com a doce submisso a sua senhora, no obstante toda a dor. O lado aprazvel, todavia, parece estar completamente apagado na Guerra civil. Para Lucano, submisso

    17 Ed. heyworth, 2007.18 Note-se que temos aqui, provavelmente, um trocadilho com muliebria pati.19 AhL (1976, p. 226) observa: Caesars affair with Cleopatra elicits a Juvenalian saeua

    indignatio from Lucan. At onde sei, alm da dissertao de P. J. P. Oscarson, The satirical element in Lucans Pharsalia, defendida em New Haven em 1924, qual no tive acesso at o momento, h apenas uma monografia substancial sobre o tema, i.e. weston (1994). johnson (1987) tem muitas inteligentes observaes sobre a presena do discurso satrico no Bellum ciuile. Ver tambm CoFFey (1996), mArti (1975, p. 84), Leigh (1997, p. 210) e jenKyns (2005, p. 572: a satiric epic). heitLAnD (1887, p. cxxix-cxxxi) oferece uma lista de reminiscncias de Lucano em Juvenal, e significativamente fecha seu ensaio nos seguintes termos: the manner and tone of Lucan, though unsuited to an epic poem, find their proper place and function as a vehicle of satire. Discuto o problema em roLim De mourA (2008, p. 256-65).

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    no amor quase sempre, sem meias palavras, uma situao vergonhosa. Da o tratamento dado vida sentimental de Pompeu colocar em destaque as fraquezas da personalidade deste e seu fracasso poltico. Essas fraquezas, sugere o poeta, esto ligadas a suas relaes amorosas com Jlia e Cornlia20. E por isso que Csar parece mais frgil e hesitante no livro 10. Mais para o final do livro, quando o general est encurralado durante um combate, os versos 456-9 sintetizam a imagem paradoxal de Csar como herdeiro de Alexandre e ao mesmo tempo uma criana indefesa ou uma mulher:

    hic, cui Romani spatium non sufficit orbis, paruaque regna putet Tyriis cum Gadibus Indos, ceu puer inbellis uel captis femina muris, quaerit tuta domus []

    O notvel paralelo com o verso 54, rex puer inbellis populi sedauerat iras, referente ao rei-menino Ptolomeu XIII, refora a transformao de Csar num mollis dspota oriental21. Nota-se uma mudana na forma de apresen-tar Csar no poema tambm no banquete que se segue ao encontro entre o lder romano e Clepatra (108 sqq.). O banquete um tema privilegiado da stira, e novamente a influncia desse gnero literrio fortssima. Na cena vemos Csar ainda como que sob o efeito das palavras e da energia sexual de Clepatra, porm mais profundamente afetado pelo espetculo inebriante do festim palaciano. Testemunhamos, ento, um dilogo entre o romano e Acoreu, um sbio local. Pela primeira vez, emerge uma faceta de Csar at o momento ignorada pelo poema: seus interesses intelectuais. Ele pede a Acoreu que lhe fale sobre as origens do povo egpcio, a geografia da regio, os costumes, a religio e a arte do pas. O pedido vem com uma meno a Plato, que tanto aprendera com os egpcios, e com uma referncia s investigaes astronmicas do prprio Csar. A fonte do Nilo, entretan-to, o assunto sobre o qual Csar mais deseja saber, e nesse trecho que a personagem nos presenteia com uma confisso no mnimo curiosa: diz que estaria disposto a abandonar a guerra civil se tivesse uma esperana de conhecer a nascente do famoso rio (188-92). impossvel falar em to pouco espao de tudo o que essa passagem sugere, da longa e interessante resposta de Acoreu e de todas as conexes que esta cena tem com outros

    20 Ver a discusso de thompson (1984).21 Lembremos igualmente o passo inbelli Canopo (citado acima). O adjetivo inbellis

    tem importante funo no discurso elegaco, notadamente no topos amor versus guerra, to comum nesse gnero. Sintetiza-o Ov. am. 3.15.19, inbelles elegi, genialis Musa, ualete (ed. Kenney, 1961). O enfraquecimento do carter pico dos heris lucneos d-se frequentemente pela interveno de elementos da elegia. Veja-se especialmente hbner (1984).

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    momentos cruciais do poema22. Observem-se apenas dois aspectos: o desejo de Csar soa, obviamente, como megalomania tirnica, bem ao estilo de Alexandre, na linha das tentativas deste, de Sesstris, de Cambises e do prprio Nero23 de alcanar as nascentes do Nilo, todas referidas nesta cena direta ou indiretamente. Mas o outro lado do dilogo entre Csar e Acoreu o surgimento deste trao quase simptico da personalidade de Csar, o lado por causa do qual tantos aprenderam a admir-lo: o Csar escritor e cientista. A personagem se mostra aqui relaxada e at gentil, de certo modo liberada da agressividade que a caracteriza na maior parte do texto.

    J detectamos h pouco o fato de que essa espcie de enfraque- detectamos h pouco o fato de que essa espcie de enfraque-cimento de Csar, essa diminuio do seu furor belicoso, poderiam ser fe-nmenos absolutamente bem-vindos para um narrador que se mostra to ferrenho crtico do principado e to nostlgico admirador da repblica, mas que, ao contrrio, Lucano mostra-se um tanto inquieto com a situao de Csar, a ponto de apresentar em cores negativas a chance de se recompor que os exrcitos republicanos tiveram durante a estada de Csar no Egito. Lembremos que esses exrcitos se encontram sob o comando, entre outros, de Cato, para muitos estudiosos o heri da epopeia lucnea24. Essa contra-dio pode ser explicada com as inquietudes trazidas pelo fato de que um representante da masculinidade romana levado a deixar seu inimigo reagir devido influncia intoxicante de uma mulher. A esta altura do poema, a batalha principal da guerra civil j foi travada, Pompeu est morto, Cato, a meu ver, mostrou suas limitaes como lder no canto 9, e talvez, nesta nova fase das bella plus quam ciuilia, seja o momento, para o narrador, de fazer novas alianas25. Na histria da destruio dos valores romanos contada no Bellum ciuile, no surpreende que modelos polticos orientais representem uma radicalizao daquelas tendncias que o narrador mais abomina: um poder centralizado, um enfraquecimento da classe senatorial, imperadores deificados; em suma, a perda de importncia da cidade de Roma e suas tra-dies em favor de outras partes do mundo. Nesse contexto, o envolvimento de Csar com Clepatra toma um valor simblico particular, na medida em que prefigura a transferncia de poder tentada por Marco Antnio, uma personagem tambm citada pelo poeta, nos versos 70-2, como uma presa mais fcil do que Csar para Clepatra. A moralidade romana da voz poti-ca no pode suportar o que ela v como papis sexuais invertidos, e disso Clepatra indica ter conscincia ao argumentar, em seu dilogo com Csar, nos versos 90-2, que ela no ser a primeira mulher a ter o poder sobre as

    22 Desenvolvo essa temtica mais amplamente em roLim De mourA (2008, p. 265 et seq.).23 Ver Sen. nat. 6.8.3-4. 24 Ver, por exemplo, nArDuCCi (2001).25 Para o livro 9 como o incio de uma nova fase no poema, ver Due (1962, p. 124) e

    hutChinson (1993, p. 166).

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    cidades do Nilo, pois o Egito, sem distino de sexos, sabe suportar uma rainha (non urbes prima tenebo / femina Niliacas: nullo discrimine sexus / reginam scit ferre Pharos)26. Nessas circunstncias, a Romanitas de Csar torna-se uma espcie de ltimo e desesperado recurso para tentar conter o perigo oriental, e por isso o poeta espera que Csar resista a Clepatra e ao Egito, e o desejo de vingar o assassinato de Pompeu , em minha opinio, apenas um tema complementar. A impresso de que o Csar lucneo est fora do normal quando fala do Nilo no tem, quem sabe, o objetivo de ganhar a simpatia do leitor, mas apontaria, ao contrrio, para um perigo de dissolu-o. Lucano nunca se torna um cesarista27. Se comparamos a narrativa da Guerra civil sobre a intromisso de Clepatra na poltica romana com o que Verglio, Horcio, Proprcio e Ovdio dizem a respeito da batalha de cio, uma diferena fundamental chama a ateno: um elemento comum a todos os autores augustanos, qual seja o panegrico (sincero ou no) de Otavia-no como salvador de Roma, no tem correspondente em Lucano. Seu dio contra Jlio Csar e o que ele representa politicamente nunca desaparece por completo: apenas colocado num segundo plano ao surgir uma ameaa maior, sem nunca se transmutar em elogio. A questo para o poeta, ento, saber se Csar vai usar sua natureza destrutiva para dominar o Egito ou para colorir sua dominao de Roma com uma palheta egpcia. Por isso os versos 10.6-8 soam to irnicos: tua profuit umbra, / Magne, tui socerum rapuere a sanguine manes, / ne populus post te Nilum Romanus amaret.

    Contra Clepatra e o Egito, o poeta parece desejar que Csar d mxima expanso a seu mpeto destrutivo e conquistador, justamente o trao de sua trajetria que Lucano criticara, nele, Csar, e em Alexandre. Vemos a como a perturbao gerada por um problema de gnero, intimamente ligado a uma determinada viso de identidade romana e a uma concepo do estrangeiro, revela as fissuras do discurso poltico do poema. Lucano jamais consegue resolver inteiramente a contradio entre, de um lado, seus sonhos de liberdade e sua utopia antibelicista, e, de outro, sua fascinao pelo poder romano e seu temor de que ele venha a se perder28. De maneira anloga, no tratamento de questes de gnero, vemos Lucano reconhecendo o poder de diversas personagens femininas, dando-lhes espao na narrativa e, at mesmo, mostrando-se aberto aos questionamentos colocados por elas. Mas a voz narrativa nunca consegue superar inteiramente uma atitude de reservas em relao a essas personagens. Essas tenses, contudo, esto entre as facetas mais interessantes do poema, que fazem dele nunca um panfleto ou um mero documento da histria do machismo e do imperialismo, mas

    26 Sobre governantes do sexo feminino no Egito macednio e anterior, ver Ashton (2008, p. 10-11) e tyLDesLey (2008, p. 44-5, 245, n. 6).

    27 Pace mAsters (1992).28 Ver johnson (1987, p. 86-97) e Quint (1993, p. 151-7).

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    uma tentativa angustiada de visualizar poeticamente os dilemas de toda uma cultura.

    RESUMO

    Neste trabalho estudo o tratamento que Lucano d ao encontro entre Jlio Csar e Clepatra no livro 10 de seu poema pico. O narrador revela ali grande inquietao com o modo como a egpcia se envolve num episdio da histria (masculina) de Roma. Procuro mostrar como Clepatra assume uma posio dominante nessa passagem e explicar como esse poder feminino visto da perspectiva romana de Lucano. Para tanto, apresento esse trecho da Guerra Civil no contexto da tradio literria que aborda as relaes Roma-Egito, especialmente no que se refere a Clepatra. A atitude de Csar no trecho acaba por alterar a viso que o narrador tem do general. Discuto que implicaes isso tem para o poema como um todo. Nota-se que o conflito entre diferentes modelos de feminilidade e masculinidade en-cenado nessa passagem est ligado s contradies internas da voz narrativa na sua concepo do papel que Roma deve ter como imprio.

    Palavras-chave: Lucano; tcnica narrativa e gnero (masculino/feminino); Csar e Clepatra.

    ABSTRACT

    This paper discusses how Lucan depicts the encounter between Julius Caesar and Cleopatra in book 10 of the Civil war. The narrator appears greatly disturbed by the way the Egyptian woman meddles with an episode of Roman history. I propose to show how Cleopatra assumes a dominant position in this passage and explain how this example of female power is seen in the (male-centred) Roman perspective offered by Lucan. To this end, I present this section of the Bellum ciuile in the context of the literary tradition dealing with Roman-Egyptian relations, especially as regards Cleopatra. Caesars attitude in book 10 ends up changing the narrators view of the general. I discuss the implications of this change for the poem as a whole. It is noticeable that the conflict between different models of femininity and masculinity enacted in the passage is linked to the internal contradictions of the narrative voice in its view of the role which Rome must play as an empire.

    Keywords: Lucan; narrative technique and gender; Caesar and Cleopatra.