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proa Ano III / Edição 2 Dezembro 2013

Revista proa - ed. 02

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Segunda edição da revista proa - uma revista de jornalismo literário.

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III /

Ediç

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facebook.com/proarevistaissuu.com/proa_revista

COORDENAÇÃO EDITORIALPaulo Roberto Araujo

MTb/RS 4219/14/23 v RS Viviane BorelliMTb/RS 8992

EDIÇÃOGiuliana Matiuzzi

Marlon DiasOlívia Scarpari

EDIÇÃO DE TEXTOAnelise DiasDairan Paul

Gabriel Bortulini

EDIÇÃO DE FOTOGRAFIADairan Paul

DIAGRAMAÇÃOBarbara PesamoscaDiossana da Costa

FOTOS CAPA E CONTRACAPAKamila Baidek

REVISÃOGiuliana Matiuzzi

Marlon Dias

TRATAMENTO DE IMAGEMLaura Moura de Quadros

Barbara Pesamosca

IMPRESSÃOImprensa Universitária

novembro de 2013500 exemplares

[email protected]

A revista proa é uma publicação do Curso de Comunicação Social

- Jornalismo e tem apoio do FIEX/2013 do Centro de Ciências

Sociais e Humanas (CCSH).

A arte de observar o cotidiano, ouvir histórias e compreender a singularidade do outro foram marcas da atuação do jornalista e pesquisador norte-americano Robert Park, um dos principais representantes da Escola de Chicago. Os estudos realizados por ele e seus seguidores inspiram pesquisas no campo da Comunicação com abordagem etnográfica. Na produção de proa há também inspirações dessa ordem, pois nossa proposta é experimentar, por meio do jornalismo literário, um outro modo de observar a realidade e de contar histórias de vida.

Nesta terceira edição, proa traz três perfis. Daniela Pin Menegazzo narra a história do operador cinematográfico que, embora invisível em sua cabine, é o único responsável para que dê tudo certo na hora da projeção dos filmes. Nicholas Lyra conta como um caricaturista fascina, pelo talento e precisão de traços, veranistas em Capão da Canoa. Géssica Valentini apresenta sua personagem em várias facetas: a catadora de papel e poeta é transformada em princesa, que narra sua história com lucidez e autenticidade.

Os repórteres de proa encontram personagens que se confundem com a história de alguns lugares. Bibiano da Silva Girard visita a Vila Capela do Saicã, a Fazenda São Marcos e a casa do Posto Novo para contar parte da história do patrimônio e da atuação de Marcos Antônio da Silva, um antigo e conhecido estancieiro do pampa gaúcho. Gregório Mascarenhas encontra o escultor Rogério Bertoldo e seu jardim de homens de pedra em um sítio no povoado de São João dos Mellos. Já Marcelo De Franceschi enumera histórias de vida familiar ao detalhar o ambiente e o funcionamento de uma das casas mais antigas de São Sepé, no interior gaúcho.

Em entrevista a Anelise Dias, a escritora Liniane Haag Brum detalha como percorreu um longo caminho na busca por marcas que pudessem fazê-la recuperar a memória do tio, o sepeense Cilon Cunha Brum. Em à deriva, o ensaio fotográfico de Luciele Oliveira nos mostra os “sorrisos que emergem da consciência negra”. Gabriel Eduardo Bortulini apresenta a obra de Ernest Hemingway, com destaque para Tempo de viver e Tempo de morrer, que devem ser relançados no Brasil em 2015. Já Olívia Scarpari mostra um outro viés da escritora Clarice Lispector – que se transforma em repórter, revelando-se aos leitores. E Giuliana Matiuzzi relembra personagens e ações que dão vida ao bairro Güemes, no coração de Córdoba, Argentina.

Nesta edição, há ainda duas reportagens que apresentam fragmentos do cotidiano em lugares tão distantes e em situações muito distintas. Na primeira, Dairan Paul mostra como católicos e evangélicos disputam espaço por um pedaço de terra no cemitério municipal da cidade de Agudo, no Sul do Brasil. Na segunda, Kamila Baidek descreve a sua experiência ao observar e vivenciar o cotidiano de uma família que trocou a vida na cidade de Tucumã, Pará, por uma casa em meio à mata, na Amazônia.

Paulo Roberto Araujo e Viviane Borelli

bússolaL E M E | memórias do silêncioLiniane Haag Brum, autora de “Antes do Passado”, conta sobre os caminhos que percorreu em busca das lembranças do tio Cilon Cunha Brum, morto no Araguaia, vítima do regime militar.

A B O R D O | por detrás dos projetores | a mão que opera o cinema

E S C O T I L H A | máquina de instantes

R O T A S | disputas transcendentais | a briga pelo descansoDuas crenças, uma morte: o cemitério que separa católicos e evangélicos em margens opostas, teimando que o destino não seja o mesmo.

A B O R D O | lápis e caneta | farelos de borracha e grãos de areiaNo alvoroço da noite de verão, em meio ao estouro de fogos do réveillon, o talento de um caricaturista à beira-mar.

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À D E R I V A por Luciele Oliveira | sorriso negro de liberdade

R O T A S | janela amazônica | no meio no caminho tem uma florestaLonge da impaciência do mundo, a família de Edilene encontra o seu lugar

R O T A S | arquitetura da memória | o moinho é o mundoEm São Sepé, interior do Rio Grande do Sul, uma das casas mais antigas é símbolo da presença italiana

na cidade, abrigando as primeiras atividades industriais e muitos entrecruzamentos de vida

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A B O R D O | reinados recicláveis | império de papelãoPoeta, parteira, palestrante, viúva, esposa, mãe, avó, bisavó, além de, para viver, catadora de papel. Tereza, nesta história, também reina.

R E S G A T E | o último senhor

U M C O P O D E M A R | tempo de relerP A R A U M H O M E M N A V E G A R | enigmas de uma Clarice-repórter

D E S E M B A R Q U E | o improvável jardim das esculturas

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lemeleme

Quem era ele? Quem conheceu ao longo da vida clandestina? O que mudou nele desde a saída do interior de São Sepé rumo a São Paulo? Quais seriam as lembranças que carregava consigo para a clandestinidade, hoje esquecidas no segredo da floresta? Foram inúmeras as estórias que contaram a ela, mas havia também a história: após batizá-la, despediu-se dos mais próximos e partiu para longe, onde uma missão o esperava, e não mais retornou.

As memórias de infância – alimentadas por fantasias, mas, sobretudo, por silêncios – fizeram-na acreditar que o padrinho talvez voltasse, até o dia em que se deparou com o nome dele, dentre tantos outros, em um livro que denunciava os abusos do regime militar: Cilon Cunha Brum, desaparecido político no Araguaia. Do encontro com as histórias contidas no livro até estar pronta para romper de vez com seu silêncio e enfrentar o espanto e o medo que o desaparecimento do padrinho ainda lhe causava, decorreram quase quinze anos.

Quando percebeu estar pronta, Liniane escreveu, como uma longa carta, o primeiro de muitos desabafos que viriam depois. Não intentava reconstituir a memória da Ditadura Militar no Brasil. Queria entender quem era aquele homem que resistia em sua memória. Para isso, Liniane embarcou em uma busca das marcas deixadas por Cilon nos lugares em que passou. De São Sepé ao Araguaia, a autora foi reconstituindo a memória do padrinho. As histórias encontradas por ela estão no livro Antes do Passado, sobre o qual ela falou à proa, em visita recente à Santa Maria.

proa Liniane, como foi a busca pelas informações para recontar a história que tu apresentas no livro, que tu conhecias, até então, apenas por relatos orais dos teus familiares?Liniane Haag Brum: Bom, primeiro eu preciso dizer que quando eu comecei a colher as informações para poder escrever o livro foi um processo muito mais emocional do que racional, no início. Eu costumo dizer que comecei a pesquisar a vida dele e a me interessar, porque partiu de uma dor da família, uma vivência que tive numa idade muito tenra, muito infância. Quando eu comecei a recolher as informações eu já tinha, então, essa vivência familiar, que veio a partir da experiência do meu pai, das histórias que me eram contadas. Ou da história que me foi contada: quandp eu nasci, o Cilon me batizou e, depois, desapareceu. Isso marcou muito. Acho que esse é o ponto de partida. Com quinze anos, me deparo com o livro Brasil: Nunca Mais e, lá atrás, em anexo, tinha o nome do Cilon como desaparecido político no Araguaia. Depois

de ler todos aqueles relatos de tortura... aquilo, naquela época, eu com quinze anos, foi um choque muito grande, um marco. Então, dali eu acho que comecei a colher informações, mas não sabendo disso. Eu me deparei com aquilo sem saber muito bem o que fazer com a raiva que eu tinha por aquele contexto de violência e por quem tinha feito aquilo tudo. E aí se combinou com um processo que também foi longo, que durou até os meus trinta anos, que aí sim eu acho que tive amadurecimento suficiente para enfrentar esse tema, que era o desaparecimento do Cilon e o espanto que ele me causava.Também aí houve abertura na família, apesar de que sempre meu pai preservou a memória do Cilon. Nos jornais de Santa Maria e de São Sepé, ele, às vezes, punha, como aviso de nascimento e de morte, ele punha assim: “missa de desaparecimento”. E isso ele já fazia em início da década de 90, por 95. Foi uma maneira de marcar que estava acontecendo uma coisa, que aquela pessoa estava fazendo uma missa de desaparecimento, porque, de fato,

Memórias do silêncioLiniane Haag Brum, autora de “Antes do Passado”, conta sobre os caminhos que percorreu em busca das lembranças do tio Cilon Cunha Brum, morto no Araguaia, vítima do regime militar.

entrevista anelise diasfoto marcelo min

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ela não estava nem morta nem viva. Coisa mais esquisita. Uma coisa que não existe, se for pensar. Nós víamos isso – eu, meu irmão, as pessoas que estavam mais próximas – como isso acontecia. Mas, mesmo tendo esse processo de o meu pai estar sempre rememorando o irmão, só me senti pronta para colher informações no início dos anos 2000. Eu precisava falar do Cilon, do desaparecimento dele, o que isso causava. Bem, na verdade, foi uma questão bem mais pessoal do que “vou de uma forma me preocupar em reconstituir a memória da Ditadura ou coisa parecida”. Aí eu falei: “vou fazer um documentário sobre ele”. Só que eu não tinha nada, nada. Tinha esses recortes de jornal, essas matérias que saiam, mas que eram sempre do meu pai contando do desaparecimento, do confronto dele com essa dor. Os meus tios começaram a falar disso bem depois. Enfim, eram esses relatos. Não tinha nada que pudesse conduzir. Era um grande mistério esse desaparecimento: “bom, o que ele fez depois que ele me batizou?”. E, para mim, era maior ainda [o mistério]. Como se tornou quase que uma imagem de um herói eterno, uma pessoa que eu gostava muito, depois eu me dei conta que não eram tanto as informações que me interessavam, a priori, eu queria saber também como ele era.

proa Essa ideia do documentário foi o embrião para o livro, então? O início da coleta de dados?LHB: É... foi com esse processo de documentário que eu comecei com uma amiga roteirista e um amigo diretor. A gente começou a formatar um roteiro em cima do nada. Eu escrevi uma carta, que foi como um desabafo, e, então, comecei a entrevistar a família. Começamos a fazer lá em São Paulo. Eu entrevistei o Dom Paulo Evaristo Arns, que era um mito para mim, mas que, no final, não tinha muito a me dizer sobre o Cilon. Aí eu vi que estava na direção errada, que era outra coisa, que tinha que ir mais a fundo. Então, comecei a entrevistar as pessoas da família.

proa E como foram essas entrevistas?LHB: A primeira pessoa foi a minha tia de Santa Maria. As perguntas que eu fazia eram essas: “qual a última vez que você viu o Cilon?”, “qual a memória da última vez que você o viu?” e, aí depois, alguma memória de infância. Entrar na questão do desaparecimento era muito difícil. Depois, entrevistei meu pai, em São Sepé. A escolha dos tios para entrevistar foi uma coisa que não tem nada a ver com o mundo racional, se a gente for parar para pensar. Foi uma sensação de alguém que poderia dar conta de me responder, do ponto de vista nem tão objetivo. Em Porto Alegre, também entrevistei algumas pessoas. E aí, só depois – eu já morava em São Paulo – eu comecei a entrevistar lá também. Ele foi pra São Paulo. O Cilon foi daqui para lá para estudar Economia na PUC e para trabalhar numa agência de propaganda, que o dono era o padrinho dele, que também havia nascido em São Sepé. O meu percurso para coletar as informações foi primeiro aqui no Rio Grande do Sul, aqui na região, depois em Porto Alegre, e, então, em São Paulo e no Araguaia. As entrevistas aconteciam de uma maneira muito esparsa. Era uma entrevista aqui, outra daqui a seis meses, outra daqui a um ano. Mesmo a minha prima, que é nascida em São Sepé, que depois foi morar em Brasília e hoje vive em São Paulo, que conheceu o Cilon, a minha prima Rejane, com ela foram dois anos para conseguir marcar uma entrevista. E o que ela tinha para me falar? Memórias de infância, aquela sensação da Ditadura. Como a Rejane tem onze ou doze anos a mais do que eu – ela já era uma mocinha e eu uma criancinha – e ela ficava muito com a minha vó Eloah, então ela sentiu muito esse peso da repressão. Ela pôde me dar o relato que meus pais já me tinham feito, mas que, às vezes, você acha que estão exagerando. Eram relatos de como havia a sensação de que eles estavam sendo espionados, de que a casa da minha vó era cerceada, sabe? Isso eu ouvia do ponto de vista deles e internamente eu até achava que poderia ser um exagero.

Quando eu vou entrevistar a minha prima em São Paulo, ela conta essas coisas, de dentro da casa. E fica clara essa sensação de medo, de “estou sendo espionada”. E, algo mais explícito, que está lá no Antes do Passado, que a gente não sabe dizer se era Polícia ou Exército – ela [Rejane] tinha a memória de menina – entrando na casa e revistando. Outro episódio também que o meu pai contava, que a Rejane confirmou, também na propriedade rural que meu avô tinha, de um lugar que chamava Buraco do Názario. Então, as forças repressoras foram até lá ver se o Cilon estava escondido. Ele já era procurado. Já era um clandestino. O termo desparecido político veio só com a Lei da Anistia. E esse evento do Buraco do Nazário confirma esse clima de repressão, de cerceamento, de vigília. Aí no meio do documentário – que acabou não virando um documentário e virou livro – apareceu a Deusa Maria de Souza, uma historiadora que pesquisava os quatro desaparecidos políticos do Araguaia, que conseguiu uma coisa que eu nunca tinha conseguido: as cartas e os bilhetes do Cilon, que são pouquíssimos, quatro ou cinco, em que ele se despede da família. E isso o meu pai não me falava que tinha guardado e eu perguntava “você não tem nada escrito?” e ele falava “não, não tenho.”. E aí um dia elaaparece para pesquisar a família e acha esses bilhetes. Então, esse processo de entrega

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parece que se deu por conta dela, aí ela acaba sendo uma figura importante, que traz essa informação que confirma tudo o que aconteceu: esse marco que foi o meu batizado e o Cilon sumir. Confirma que não é uma história que você foi alimentando para ir reconstruindo a sua identidade, ou alguma coisa assim. Como também pode ser... Às vezes as pessoas analisam desse ponto de vista. Mas também se tem uma coisa concreta.

proa Tu falaste que durante muito tempo o assunto foi uma espécie de tabu na tua família. Quais são as tuas lembranças de infância, o que te foi contado para que tu pudesses entender que o teu padrinho havia desaparecido?LHB: Não teve bem um contar. O próprio desaparecimento é um mistério, até mesmo para nós que somos adultos. Tinha uma história de “ele vai voltar”, “o teu padrinho vai voltar”. Minha mãe dizia muito isso. Depois, começou a de que ele desapareceu. Então, ficou uma imagem tão etérea, tão difícil, que fica algo, assim, uma presença ausente, uma presença sem corpo...

E era isso que me contavam dele: “ele vai voltar, ele foi pra longe, mas vai voltar riquíssimo”. Isso eu acho que já era um pouco fantasia. Não era uma fala do meu pai, mas mais uma fala da minha mãe, no sentido de querer achar que “não, que ele foi lá, fazer uma coisa que ele achava que tinha que fazer”. Por que a gente fala coisa? É porque ele falou, em um momento, quando no meu batizado meus pais tentaram dissuadi-lo de fazer a missão dele, que não se falava o que era. Ele dizia que iria pra longe, fazer a missão dele. Eu imagino que eles contavam isso

para mim como uma maneira de alimentar isso, de “ele vai voltar bem, numa outra condição”, numa condição que todo mundo da família sonhava para ele. Aí, depois, sempre teve aquilo de que no batizado foi a última vez que ele foi visto. Lógico que isso foi ficando muito mais frequente com o passar do tempo, eu acho. Eu posso te falar que essa expectativa era muito forte, era como se fosse uma presença sem corpo mesmo.

proa Dos relatos que tu ouviste, das entrevistas que tu fizeste, qual delas mais te marcou?LHB: Todas foram muito marcantes, porque para mim era um processo como se eu estivesse me encontrando com o Cilon. Era muito intenso sempre. Mas, realmente, o que mais me marcou foi quando eu cheguei no Araguaia pela primeira vez, que eu fiquei sabendo que havia uma mulher, a Maria da Paz, que teria 13, 14 anos na época em que o Cilon esteve no Araguaia. Ela até estaria escrevendo um diário com as memórias dela, onde ela também contava um pouco da história dele. Então, o que mais me marcou para além da verdade histórica, foi desse âmbito do íntimo, que

Ficou uma imagem tão etérea, tão difícil, que fica algo, assim, uma presença ausente, uma presença

sem corpo...

Em 1995, o governo brasileiro declarou Cilon Cunha Brum como uma das vítimas do regime Militar, através da lei 9.140, que “reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979”. O dia e o ano do assassinato dele ainda são desconhecidos. As datas presumidas pela família são entre o natal de 1973 e a páscoa de 1974.

foi quando eu fiquei sabendo da Maria da Paz, que ela existia. Então, eu encontrei com a irmã dela. Eu chego na casa dela, e ela fala assim, num relato espontâneo: “Eu lembro dele, a minha mãe era cozinheira na fazenda Consolação”. E depois eu fui pesquisar e descobri que era uma base do exército. Então, a mãe delas era de uma família que estava colocada naquela fase de extermínio final do movimento comunista – eu não gosto de falar guerrilha, porque eu acho que foi mais um extermínio. “Aí você imagina que a minha mãe cozinhava, e o Cilon estava lá e estava ruim. Aí ele falava muito com a minha mãe e com a minha irmã, a Maria da Paz. Ela sabe muito dele, fala com ela”. E ela contou que ele falava do Rio Grande do Sul, falava dos sobrinhos pequenos. E isso nem foi uma entrevista. Foi um encontro. Eu estava querendo chegar na Maria da Paz, mas quando encontro a Dila e ela me fala isso, foi muito impactante. Mas depois tem a Maria da Paz. À história, ao jornalismo investigativo, vai caber ao historiador e ao jornalista puxar os fios da verdade, mas eu acho que tem muita verdade no relato dela, mas uma verdade sentida.Quando ela conta sobre ele, sobre a destruição dele, ela fala que ‘‘poxa. isso ficou guardado dentro de mim todos esses anos’’.

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“Ele deve ter uns duzentos anos”, essa foi a primeira frase que ouvi sobre Vilson Salda-nha. Embora a descrição possa dar a ideia de um senhor de cabelos brancos e esparsos, andar já meio curvo e riso contínuo, o estereótipo nem de longe se aplica ao “tio Vilson”, como é chamado pelos colegas de trabalho. Os fios de cabelo são poucos, é bem verdade, mas é por opção de corte, não por calvície. O semblante é de atenção permanente, nada de distribuir sorrisos ao léu. Sua fala é calma, mas por vezes as palavras parecem sair de sua boca uma sobre a outra, sem pausas, dando a impressão de que está sempre com pressa. Pressa para resolver um problema aqui e outro acolá, pressa de quem não quer perder o ritmo e ficar para trás. Na Santa Maria dos dias de hoje, pode ser tarefa complicada encontrar alguém que projete películas há tempo suficiente para conhecer o velho e o novo, o antigo e o moderno. E realmente seria, não fosse a insistência de seu Vilson em não abandonar a cabine de proje-ção, mesmo depois de aposentado. É por suas mãos que a ficção toma conta das salas de cinema e nos atinge de tal forma que o impossível parece não existir. Estamos ali, somos parte da história. Somos espectadores e também nos sentimos personagens. Torcemos e esbravejamos. Vivemos aqueles minutos como se fosse um mundo à parte. Talvez real-mente seja.

Vilson Saldanha tem sessenta anos de vida, cinquenta só de cinema, embora sua presença seja notada apenas quando algo dá errado. É uma dessas estrelas anônimas que fazem a mágica toda acontecer, mesmo que nunca seja visto. Fosse sua face conhecida nas telonas, seria um Danny Glover mais baixo, pele de um tom mais claro, cabelo mais ralo, seis anos mais moço e com onze anos a mais de história cinematográfica.

Nas salas de cinema, raramente olhamos para trás. Se o fizéssemos, vez ou outra seria possível vislumbrar figuras como a de tio Vilson. Munido de seus óculos retangulares e o olhar sôfrego de quem não quer perder um detalhe sequer, ele não cansa de dar suas espiadelas para ver se as coisas ocorrem de acordo com o roteiro. Roteiro esse do qual ele próprio é diretor. Antes de qualquer coisa, deixo claro que sou um operador cinemato-gráfico, não um “passador de filmes”. A maioria do pessoal que hoje em dia trabalha com isso só sabe passar as películas, se der algum problema já entra em desespero e não saber

a bordo / por detrás dos projetores

o que fazer. Eu passo os filmes, claro, mas também sei consertar se algo der errado. É o tipo de coisa que a gente aprende com o tempo, observando com atenção. E isso o tio Vilson demonstra conseguir fazer com maestria.

Certa feita, lá pelos idos de 1970, quando o Cine Glória era ponto marcado de encontro nos finais de semana de Santa Maria, uma lâmpada importada havia queimado. Parece pouco, parece quase nada, mas sem ela não haveria som vindo do projetor, menos ain-da da plateia, que teria de ir para casa mais cedo. A sala, com cento e sessenta lugares, já estava devidamente ocupada por espec-tadores que trajavam suas mais pomposas roupas e aguardavam ansiosos pelo início de mais uma sessão. O que fazer, mandar todo mundo embora e fechar o cinema pelos pró-ximos dias? Não se eu pudesse evitar. Cal-mamente, caminhei até a Funerária Brum, que na época funcionava nas redondezas, e pedi emprestada uma lâmpada que cos-tumava ser usada em funerais. Costumava, porque seu Vilson empregou a ela uma nova função. Voltou ao Cine Glória e fez com que ele funcionasse normalmente, permitin-do que os santa-marienses não tivessem que guardar para mais tarde suas gargalhadas e suspiros. De fato, não se pode chamá-lo simplesmente de “passador de filmes”.

perfil e foto daniela pin menegazzo

A mão que opera o cinema

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OS PRIMEIROS ANOS

Acontece que nem sempre ele fora o experiente homem da cabine, é claro, embora tenha começado cedo. Aos sete anos, Vilson não carregava brinquedos de um lado para o outro da casa, como havia de se esperar. O que ocupava seus braços e sua atenção eram os jornais que ele ajudava o pai a distribuir pela cidade. Não é de se estranhar que ele pouco se lembre da infância. Quando era menor, minha vó criava alguns gansos em casa. Lembro que certa vez eles vieram atrás de mim e me atacaram. Carrego até hoje uma pequena marca impressa no peito. A cicatriz fez com que a cena ficasse também gravada em sua memória. Mas é só. Outras histórias e detalhes são coisas que os quase cinquenta anos já fizeram o trabalho de apagar da lembrança. Seu Vilson não aprendeu a brincar, não aprendeu a ser criança. Seu brinquedo de infância foi aprender a ser adulto. E adulto sério.

Ainda aos dez, surgiu a oportunidade que lhe permitiu conhecer o mundo do cinema por detrás das telas, ou melhor, por detrás da cabine de projeção. “Seu Aurélio” e “seu Nilo”, lanterninha e gerente do Cine Imperial na época, convidaram-no para trabalhar colando cartazes e carregando rolos de filme. Tio Vilson não hesitou em trocar os jornais pelas películas, as ruas pelas cabines.

Sua jornada começava às oito horas da manhã – o que era tarde, comparado às tarefas da época de jornaleiro, que iniciavam três horas antes – com uma pilha de cartazes para colar. Quando o ponteiro marcava onze horas, ele seguia rumo à escola, afinal, mesmo trabalhan-do feito gente grande e agindo como tal, Vilson era ainda uma criança. Antes de voltar ao serviço, a professora me dava um lanche reforçado, para que eu pudesse prosseguir com mais um dia de trabalho.

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O menino, curioso que era, não se satisfazia em apenas carregar os rolos de um lado para o outro, menos ainda em distribuir cartazes. Seus olhos observavam atentamente os pas-sos dos projecionistas, os movimentos de suas mãos e, embora nada soubesse da pro-fissão quando chegou, dia a dia aprendeu seus truques, dificuldades e encanto. Aliás, a dose de encanto foi tamanha que, cinquenta anos depois, ela ainda permanece viva.Enquanto a seleção brasileira de futebol tornava-se bicampeã mundial, seu Vilson conquistava sua própria vitória. Menor, quem sabe, mas não menos decisiva – pelo menos para a sua história. O ano de 1962 marcava sua estreia como projecionista. Se na tela ele projetava Dois Destinos, na cabine Vilson unia o seu ao do cinema. De uma vez por todas. Dali por diante, eles eram um só. Por onde fosse o cinema, iria também tio Vilson.

A EVOLUÇÃO

Para os primeiros anos a frente das máqui-nas de projeção, seu Vilson teve a ajuda de um fiel amigo. Era um desses que a gente encontra por aí e que, assim mesmo, sem cerimônia alguma, já se tornam inseparáveis de nós. Seu companheiro era o nobre cai-xote de bananas, que não se importava que o menino tomasse emprestadas suas finas tiras de madeira, já desgastadas pelo tempo e pela sua generosidade, para ficar na altura do projetor. Não fosse ele, a oportunidade de projetar filmes ficaria para mais tarde ou, quem sabe, para um futuro que ainda não teria dado as caras.

Hoje ser projecionista é tarefa relativamente simples. Simples quando comparada ao que era nos tempos em que seu Vilson era moço. Um pequeno deslize e crac!, partiu-se a fita. Lembro-me que os projetores suportavam apenas um rolo, mas exibir um filme neces-sitava que fossem utilizadas pilhas deles. A troca era feita durante a exibição, sem pausa, o que exigia cuidado extremo. Os projetores utilizados hoje são ainda os mesmos, mas o

seu funcionamento, para a alegria dos pulmões dos que vivem ao seu redor, já evoluiu. O carvão e a acetona ficaram para trás, assim como a sensação de que as cabines eram saunas. Salve a tecnologia e os condicionadores de ar, os verdadeiros mocinhos dessa trama.

A sorte de seu Vilson é não ter crescido muito desde os dez anos. Fosse ele um homem de um metro e noventa, seria difícil circular de um lado para o outro da cabine sem ter de escolher entre abaixar-se ou bater a cabeça. Embora o local seja sua segunda casa, transpa-rece impessoalidade. Um projetor em cada extremo da estreita sala, um móvel aqui, outro por ali, velhos cartazes jogados e pouco mais do que isso. A cabine pertence a uma lógica muito própria. Dia ou noite, tanto faz, dentro dela o tempo parece seguir outro curso, in-dependente da rotação da Terra, completamente desligado do movimento dos ponteiros.

ENTRE PAIXÕES

Não importa onde ou quando, na plateia ou na cabine, guri ou senhor de idade, a séti-ma arte é uma das grandes paixões de Vilson Saldanha. Paixão de verdade, dessas que a gente carrega para todos os lados, através dos tempos e das decepções. Ele não a deixa jogada num canto quando sai para viajar, não se despe dela quando chega em casa, não a abandona nem mesmo quando o roteiro desagrada. Se for filme antigo então, a paixão vem em dobro. As salas de cinema são, de fato, um mundo mágico, mas ver os filmes no conforto de seu sofá também é um dos prazeres da vida do projecionista. Ah, se não fosse o Telecine Cult... Imagina ter de ficar preso apenas às películas de hoje, em que se pode multiplicar pessoas ao clicar de um botão. Talvez a relação entre tio Vilson e o cinema ficasse estremecida.

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É tanto tempo de trabalho com filmes que não houve jeito de seu Vilson escolher um preferido. Afinal, cinquenta anos não podem ser resumidos a uma única película. A menos que se trate de Cinema Paradiso. Perguntar o que ele acha do filme é quase uma senha para transformar a face fechada numa vitrine de dentes. Coisa rara de se ver. Ou, como ele prefere definir, “é a minha vida”. Um pedaço de papel na mão, projetor ligado. Pouco a pouco, ele reconstrói a clássica cena do filme em que, durante uma sessão com o cinema lotado, Alfredo e Totó, da sacada, olhavam o desespero das pessoas que não conseguiram entrar no cinema. Alfredo pisca para Totó e, com o reflexo de um espelho, projeta a ima-gem do filme no muro branco da casa em frente, para alegria dos presentes. Na pequena cabine de projeção do Movie Arte não havia um pedaço de espelho ou uma sacada, se houvesse, ele faria exatamente o mesmo, ainda que sem plateia.

Tanto tempo dedicado aos filmes, todavia, não fez com que tio Vilson deixasse de lado sua outra paixão. Seus cabelos levemente grisalhos escondem um avô coruja que já possui uma dezena de netos. Ao falar deles, os olhos atentos descansam, tornam-se doces, quase transbordam em orgulho. Quando se trata das duas netas que moram comigo e com a mi-nha mulher então, nem se fala... Elas passaram a viver com a gente desde que o pai morreu e hoje são a alegria da casa. Da carteira, abarrotada de papéis, ele puxa as identidades das meninas, já advertindo sobre a beleza de ambas. Cabelos escuros, pele morena, olhos também negros. Mesmo sendo suspeito para falar, ele estava certo.

Se nas telas o que lhe atrai são filmes clássicos e antigos e em casa quem faz a alegria do avô são as duas netas, nos campos de futebol é a paixão pelo tricolor gaúcho que faz seu coração bater mais forte. Gremista desde que tem recordação, seu Vilson faz questão de acompanhar cada passo do time e dar mensalmente sua contribuição como sócio.

Quando o trabalho o impede de ver os jogos em casa, é assistindo à televisão de tubo da cabine que ele se mantém informado sobre cada lance. Quando soube disso, logo en-tendi por que ele fazia questão de manter um fone ao ouvido enquanto conversáva-mos pela primeira vez. Havia escolhido um horário impróprio para visitá-lo: uma e meia da tarde, durante o programa de rádio Sala de Redação. Quem era eu para atrapalhar os comentários de Paulo Sant’Ana ou Cacalo, seus preferidos? Mudam os projetores, a tecnologia e os ci-nemas. Passam anos, décadas e, por eles, filmes. Vão e vêm atores, produtores e pú-blico. Seu Vilson, apesar da efemeridade a sua volta, mantém-se nas cabines. E não somente como operador cinematográfico. Abrirá um novo cinema e precisam de al-guém para treinar funcionários? Chamem

logo o Vilson! Instalação e montagem de aparelhos? Seu Vilson, claro! Parece quase uma regra. Pelo estado a fora são dezoito os cinemas que ele se orgulha em dizer que ajudou a inaugurar.

Quase uma regra é também sua economia nas palavras. Ele não é do tipo que costuma puxar papo e alongar-se por horas. Mas, vez ou outra, a lógica se inverte e é ele quem faz as perguntas.

- Mas me diz uma coisa, guria, até me es-queci de perguntar... De onde tu é?- Sou de Constantina, perto de Carazinho, Passo Fundo – já explico como de costume.- Carazinho?! Fecharam o cinema de lá faz pouco, né? – diz ele, como quem sempre tem uma conexão a fazer.- Bah, não sei dizer!- Fecharam sim, uma pena. É perto de Erechim também, não é? Eu que ajudei a abrir o cinema lá, passei um mês treinando o pessoal, montando o equipamento. Uma trabalheira só... Mesmo aposentado há seis anos, tio Vilson faz questão de seguir projetando filmes. Pa-rar? Ora, enquanto tiver saúde e disposição para seguir na rotina das últimas cinco dé-cadas, esse é um plano que passa longe dos seus pensamentos. Quando o corpo não aguentar mais e o peso dos anos superar a vontade de prosseguir, os santa-marienses não têm com o que se preocupar. O tan-to que aprendeu ao longo desses cinquenta anos, ele também fez questão de ensinar. Paulo Ivares é o nome de seu aluno, mas essa é história para outro dia.

Vilson Saldanha tem sessenta anos de vida, cinquenta só de cinema.

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escotilha

Máquina de instantestexto giuliana matiuzzi

No coração da Argentina estava Córdoba, e no coração dela, o bairro Güemes. Era lá onde a feira acontecia. Bastava seguir reto pela nossa rua e deixávamos para trás as quadras dos edifícios altos e modernos da parte nova da cidade para alcançar o bairro dos conventos, das galerias estreitas, dos ateliês de arte, das lojas de antiguidades e das moradias humildes. Em um terreno salpicado de ruínas, há déca-das os artesãos se juntaram no chamado Paseo de las artes. Ali, em longos corredores de tendas, tudo era feito à mão: roupas, sapatos, ca-dernos, bolsas, cerâmica. Havia também livros, plantas, velharias, comida e alguns objetos sem categoria, invencionices. Não era preciso mesmo muito propósito para visitamos a feira. Íamos para ver e passear, especialmente, ou para saber os preços e de novo não comprar. Às vezes, caminhávamos até lá só para comer empanadas. Também muito do que acontecia era de graça: ganhar serenatas dos músicos de fraque imitando os antigos enamorados, fazer amizade com os vendedores de tortas e assistir caricaturas feitas ao vivo. Vender era só uma parte do que se passava ali, e os artesãos se importavam pouco se comprávamos ou não, nos davam conversa de qualquer forma. Eu ia por histórias e nunca voltava sem alguma.

Costumávamos comprar café que alguns estudantes vendiam, fatias de bolo das senhoras quase na saída da rua Belgrano e incensos de baunilha. Ao contrário dos incensos com cheiro sempre da mesma coisa, nos quais o aroma era mais uma ideia ou uma promessa, esses realmente cheiravam a baunilha. Uma moça fazia marcadores de páginas com colagens e frases manuscritas, de quem eu comprei vários e perdi todos. Outro vendia cartões de aquarela, que eu postava pouco a pouco aos amigos. Um senhor costurava animais de pano, com feições espantosamente simpáticas – parar ao lado deles era coletar suspiros – e foi ali que um lagarto verde foi prometido a meu sobri-nho.Na tenda da mulher morena e de cabelos longos, vinda de Mendoza, me interessei especialmente pelos caleidoscópios. Ao me ver espiar e alcançar um deles para minha amiga olhar, ela se apressou em esclarecer: chicas, chicas, não se vê a mesma imagem nunca. Quando chega na mão de quem está ao lado, a estrutura se desfez, já mudou, as peças já se mexeram. Ela me dizia que o momento do olho no caleidoscópio só acontecia uma vez. Olhar ali dentro era ver algo que ninguém mais via, ela nos assegurou, explicando que era um dos objetos mais antigos do mundo. No tempo necessário para ver todos os desenhos possíveis – ela conta com voz de espanto, como quem lê uma história a uma criança – os oceanos secariam e as montanhas desapareceriam. Dizia também que os vidros eram importados, mas nem precisava inventar essa inofensiva mentira, porque eu já tinha sido tocada a ter um daqueles só pelas palavras. O “infinito”, a “eternidade”: nunca mais eles seriam tão portáteis e custariam somente trinta pesos. Foi assim que eu levei um deles comigo, satisfeita. Usava para me distrair, em tardes ensolaradas, o que em Córdoba significavam muitas.

Tempos depois, aquelas ruas já se encontravam longe demais dos meus pés e os amigos com quem cruzava os quarteirões até o bairro Güemes estavam irremediavelmente espalhados pelo continente. Do mesmo modo, quase tudo comprado na feira, por alguma razão, já não estava mais comigo. Se os cartões se esvaem pelo correio, os marca-páginas somem no meio da literatura, o lagarto de pano mora no quarto da criança e os incensos viram aroma e cinza, o caleidoscópio se mantinha ali. Como se nada tivesse acontecido, intacto ao tempo. Então o tomo na mão, aponto bem pra lâmpada - é noite, mas poderia ser dia, porque o sol havia se esquecido daquele inverno - e com minha luneta sou uma exploradora de padrões de desenhos que dançam. Sou a única espectadora dentro de uma vitrine de pétalas de vidro. Uma imagem bonita se forma, uma estranha combinação de amarelo e azul. Fico tentando fazê-lo aparecer de novo. Pode-se passar horas com o olho ali, nessa teimosia. Lembro então da artesã daquele bairro e me dou por conta que o desenho não volta. No movimento das imagens, somos a força que move, mas não a que decide. Tudo vai se espalhando por si e se perdendo, como um dente--de-leão que o vento vai soprando, como as geometrias que se esboçam sozinhas. Aí eu entendi, afinal, o que havia trazido pra casa: um antigo brinquedo que ensinava sobre o irrepetível. Um exemplificador do acaso. Uma máquina de ver instantes. Como a feira onde não voltei mais, e se voltasse, talvez não fosse nada do que eu lembro: as velhinhas já não prepararão mais bolos, os estudantes que vendiam café se formaram e no lugar das serenatas talvez eu só encontrasse silêncio. Pessoas e coisas tem esse estranho costume de mudar ou sumir e as constelações das circunstâncias são, sempre, ao azar. Talvez o caleidoscópio mostre a importância das lembranças, o fato de sermos as únicas testemunhas das nossas memórias, que a estampa delas é tudo que temos. Ou quem sabe tente dizer, na língua miste-riosa dos fragmentos de vidro, que é preciso saber assistir a tudo seguir girando e girando, incontrolável, absurdo e colorido.

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rotas / disputas transcendentais

Quando entrar naquele lugar para de lá nunca mais sair, a primeira coisa que lerá será uma placa avisando sobre os riscos da água parada. Não que haja alguma preocu-pação com a dengue ou com qualquer outra doença, afinal, a essas alturas... Aliás, altu-ra é uma coisa que cairá no esquecimento. Desta nova vida, não se terá a ideia de nada que esteja “acima”. O sono eterno somente conhecerá terra e verme, independente da localização. Mas há quem se importe com o lugar a ser enterrado – são os mesmos que levam a sério denominações como “morte de luxo” ou “morte de pobre”.

A diferença econômica pode ser a mais co-mum, porém ainda há outra. Após passar pela placa da dengue e dar alguns passos pelo chão de cal branca, o morto deverá fazer um esforço para se lembrar: sou ca-tólico ou evangélico? Se católico, por favor, dirija-se à esquerda, junto com as sepultu-ras de Eduardo Hermes e sua família. Caso seja evangélico, os túmulos à direita o espe-ram com ares funéreos. É pobre? Chegue ao fim da estrada de terra, ande cem me-tros em meio à roça e pronto, você estará em uma ala especial destinada àqueles sem dinheiro para comprar seu pedaço de ter-ra. Este é o cemitério municipal de Agudo, uma cidade do interior do Rio Grande do Sul com pouco mais de 20 mil habitantes. A bizarra separação entre indigentes e “ri-cos” - principalmente católicos e evangéli-cos - ainda prevalece, sendo fruto de raízes antigas que datam desde o século XVIII.

UM CONFRONTO HISTÓRICO

Ele gesticulava constantemente, mostrando indignação quanto ao caso dos evangélicos e católicos. Mario Ângelo Muttoni, ou frei Gervásio, é dono de opiniões fortes. Os olhos verdes, imensos, raramente piscam. Quando questionado sobre o cemitério municipal de Agudo, esbraveja: “a separação é um absurdo! Isso é da história, a separação entre as igre-jas evangélicas e católicas”. E explica: tudo começou com Martinho Lutero, nos idos de 1717. Lutero, católico, divergia da maneira com que seus companheiros religiosos agiam. Ao criticá-los, foi afastado da igreja católica e acabou fundando a sua própria. Desde en-tão, a igreja evangélica luterana passou a constituir seus próprios cemitérios.

Quando os primeiros imigrantes alemães, em sua maioria protestantes, vieram ao Brasil no ano de 1824, a religião oficial do país era o catolicismo. Logo, eles não tinham deter-minados direitos, como a cidadania brasileira – o que só era revertido caso a pessoa se tornasse católica. Seus filhos também não eram registrados em cartórios, sobrando a eles os livros de registros das igrejas. Locais de oração e cultos dos protestantes, somente se não fosse em um lugar com formato de torre e contendo um sino – o que caracterizaria uma igreja. Eram construídas casas com cruzes e que serviriam futuramente de escola, segundo a explicação do pastor Henrique Scherer. “Os protestantes eram os únicos pre-ocupados com a questão da educação, porque Lutero traduziu a Bíblia e queria que ela fosse lida pelo povo”.

O líder religioso que fundou a igreja evangélica luterana está devidamente representado na casa de Scherer, em um quadro. Com a voz enfática, de sotaque alemão, o pastor Henrique senta em um sofá e põe a balançar os pés calçados nas havaianas verdes. Puxa pela me-mória da cabeça quase careca algumas informações, coça a barba do rosto e põe-se a falar.

“Por não serem cidadãos, os evangélicos também não poderiam ser sepultados em cemi-térios oficiais. A igreja católica nunca se preocupou com cemitério, porque sempre tinha um oficial para eles. Era o poder público que providenciava uma área de terra para que eles fossem sepultados”. Dessa forma, luteranos tinham que adquirir uma área própria para enterrar seus entes. O cemitério evangélico de Agudo se configura, portanto, como uma área particular.

Quanto aos católicos, eles já tiveram um local próprio para os sepultamentos. Localizado no Canto Católico, uma região do interior de Agudo, o terreno hoje está cheio de sepul-

A briga pelo descansoDuas crenças, uma morte: o cemitério que separa católicos e evangélicos em margens opostas, teimando que o destino não seja o mesmo.

reportagem e foto dairan paul

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turas, sem mais espaço para nenhuma outra. Agora, os mortos são encaminhados dire-tamente para o cemitério municipal, juntamente com luteranos que não tiveram dinheiro para pagar a taxa de filiação da igreja evangélica.

No entanto, há católicos enterrados no cemitério evangélico. São pessoas que se tornam membros da igreja apenas para fazerem uso dela – como católicos, continuam atuantes na sua própria instituição. A explicação? Glamour. Não há indigentes no evangélico, uma vez que é preciso pagar para ser enterrado lá. Da mesma forma, este é o único cemitério localizado no centro de Agudo – o municipal é fora da cidade, assim como o católico já abandonado.

“Ser sepultado hoje no cemitério luterano dá uma certa fama e status”, admite o pastor Henrique. “Aqui é melhor localizado, mais próximo. Também é uma questão de fami-liares, porque a maioria está aqui”. Mesmo o frei Gervásio reconhece que o cemitério evangélico é “muito bem organizado e limpo”, fator que também contribuiria para a sua elitização. Porém, católicos que ali são enterrados só podem ser sepultados por pastores, como parte do regime interno da comunidade. Por fim, pode-se dizer que a chance de ser velado ajuda para a “transferência de religião”. Atualmente, apenas a igreja evangélica re-aliza velórios. A católica foi proibida pela Secretaria da Vigilância Sanitária do município, que alegou a inadequação do local como fator decisivo para a proibição dos atos fúnebres. Até hoje, a igreja evangélica não recebeu nenhum documento oficial que os impedisse de realizar velórios.

Embora o pastor Henrique nunca tenha feito o sepultamento de um casal ecumênico (ou seja, quando as duas pessoas são de religiões diferentes), ele acredita que hoje em dia há uma maior facilidade para que duas pessoas descansem em paz lado a lado. A conquista, de se conseguir juntar os dois somente em um lado do cemitério municipal, por exemplo, ou ambos no cemitério evangélico, é recente. Há 50 anos, a possibilidade de haver um casamento ecumênico era difícil. Agora, embora cada um esteja associado em determi-nado cemitério, existe maior compreensão para que ambos sejam enterrados juntos – e a rivalidade entre evangélicos e católicos se esvai com o tempo.

O ARTISTA DA MORTE

Com os pés em cima da mesa e o relógio caindo frequentemente ao longo do braço, Guido e sua voz aguda contam como conheceu Eduardo. Eram vizinhos. Também foram concorrentes, já que ambos tinham uma oficina de pedra grês, ou pedra de areia, na mes-ma época – em meados da década de 1920, durante a I Guerra Mundial. Era na região do Canto Católico, no interior de Agudo.

Inicialmente, Eduardo buscava seu material na pedreira da família de Guido. Depois que vendeu um pedaço de terra, conseguiu comprar a sua própria pedreira e começou a fazer concorrência. A família teve que parar com a produção. “Eduardo era um artista em pe-dra grês. Meu pai não conseguiu fazer concorrência porque ele trabalhava bem melhor. E fazia flores, letreiros... ele era um artista. Não teve que aprender nada. Foi tudo por conta, compreende?”.

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Naquele tempo, Guido tinha 12 anos. Seu pai, depois que fechou a oficina, foi trabalhar na colônia. Já o filho continuou o trabalho da família com as pedras, ao se mudar para Porto Alegre, com 21 anos. A diferença é que elas eram de granito, e não grês, como as que o pai manuseava. Na capital, Guido foi empregado no mesmo local até os 47 anos de idade.

O pouco tempo de serviço – 26 anos – se deve ao fato de que trabalhar com pedras é uma profissão de risco. Guido era serrador, já que a pedra de granito, ao contrário da de areia, não podia ser dinamitada. Também trabalhou em chapas para edifícios, forrações e cons-truções. “Eu era tarefeiro, trabalhava por tarefa, compreende?”. Ao contrário de Eduardo, Guido não conheceu as pedras de areia.

Todo pequeno pedaço de memória descansa em paz, no fundo da mente. Guido toma um tempo para si e reflete. Como era mesmo a oficina de “Edward”, como ele insiste em chamar, com seu forte sotaque? Uma espécie de galpão... e quando era quente, o Edward fazia as esculturas embaixo dos pés de plátano, com aquele martelinho dele. Demoravam uma semana para ficarem prontas. Bom, depende também de qual tipo ela era, se fosse mais simples ou se era uma koppelstein*, cheia de flores. Estas eram mais caras. Meu pai também fazia, mas quando tinha que moldar os enfeites, ele chamava o Edward pra fazer.

A chuva do lado de fora se confunde com a narrativa de Guido. Depois que foi para Porto Alegre, voltou uma vez a Agudo para ensinar os filhos de Eduardo a trabalharem com o granito, montando as máquinas para Floriano e Lotário. Só retornaria definitivamente à cidade natal quando voltasse de Teresópolis, no Rio de Janeiro, onde morou um ano e oito meses.

Entre essas inúmeras viagens, foi em Porto Alegre que Guido tornou-se católico – nas-cera evangélico. Uma pequena troca repentina, não esquecer disso. A mudança se con-cretizará quando eu chegar, naturalmente – instaurando ares melancólicos e pesados, eu sei, mas é a vida! Ou o contrário dela. Relembrando: católicos na esquerda, evangélicos à direita. Não precisa se preocupar com essa modificação de última hora, Guido. É só atravessar o lado, compreende?

***

“Eduardo era muito rígido com os filhos, muito educador. Deus o livre roubar alguma coisa ou dever pra alguém. Mas ele também era bem brincalhão”. Foi o que o neto ouviu falar, já que tinha apenas dois anos quando o avô morreu.

Marcus Antônio Hermes é filho de Floriano, o primogênito de Eduardo a quem Guido ensinou como trabalhar com as pedras de granito. Com 46 anos, o senhor de ar jovial é o único da geração de sua família que ainda permanece no ofício que consagrou os Hermes. Ainda assim, seu trabalho é bem diferente do que o pai e o avô faziam. Consiste basica-mente em manter uma chapa grande e cortá-la conforme lhe é solicitado. O uso não se restringe às sepulturas. Pode ser utilizado também em construções, por exemplo.

“Pedra de areia não tem mais. Antigamente era usado porque era o único material que ti-nha. Ela até pode ser explorada, mas é muito mole e não serve pra muro, calçada, não exa-

tamente pra isso. O que estão fazendo é a restauração de pedras velhas, muitas vezes substituindo as pedras de areia pelo granito e servindo à nova geração”.

As “novas sepulturas” em granito não con-tam com os versos de Eduardo Hermes. Na verdade, a inexistência das palavras do artista é percebida desde a década de 80. Acontece que quando o cliente encomen-dava sua sepultura, ele deveria tomar duas decisões. A primeira, obviamente, era qual túmulo escolher. Marcus conta que Edu-ardo possuía um catálogo com esboços de pedras, que, por vezes, eram copiados de desenhos já prontos, encontrados em li-vros. A segunda decisão se referia a qual verso escolher para ir na lápide do falecido. Novamente, o artista mostra seus dotes. Eduardo era dono de um caderno com es-critos pessoais – versos bíblicos ou tirados de sua própria cabeça. A pessoa que enco-mendava sua sepultura poderia aproveitar e escolher quais palavras seriam cravadas nela também.

Santos quebrados, um Jesus Cristo repleto de musgo e alguns anjos com as asas já des-cascadas. O chão está cheio de folhas secas; o céu quase passa despercebido tamanho o número de árvores que o cobre. O Canto Católico foi o primeiro cemitério de quem era da religião homônima e lá datam sepul-turas do século XVIII e XIX. As mais anti-gas foram restauradas por Eduardo, inclu-sive com a adição de versos de sua autoria.

Infelizmente, é provável que Marcus não tenha nenhum verso de Eduardo em sua sepultura. Como já o levei, haveria outra pessoa que escrevesse para o neto tantas palavras bonitas? Quem quiser conferir, basta checar o lado esquerdo do cemitério municipal daqui a alguns anos, quando eu contar a Marcus que abaixo de sete palmos da terra só existe o sono irremediável – e ele cederá à tentação.

*pedra com enfeites

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***

A cadeira de balanço realiza movimentos de vaivém semelhantes a um pêndulo pronto para rasgar a vítima e levá-la ao caixão. Alguém grita sem parar – o ambiente ‘cozinha e sala’ ganha uma atmosfera tensa, e apenas o gato Nick parece não se importar muito. Seus pelos negros e amarelos já passaram pelo fogão e agora circulam em cima da mesa de jantar.

Urildes não parece ter muita paciência com a sua mãe Annita. Os dois aparelhos de surdez que a dona da cadeira de balanço usa comprometem seriamente o estado de humor da filha. Annita não dá muita bola. Está mais preocupada em construir - reconstruir, no caso - suas lembranças, tal qual fazia seu pai com as pedras de areia.

Ele se chamava Eduardo Francisco Aquilino Hermes. Diariamente, de carroça, buscava pedras, que eram explodidas com dinamite, gerando nacos enormes. No caminho de volta para casa, Eduardo sempre passava em um armazém e comprava balas para seus filhos – Annita era a que ficava mais feliz com o presente. Após chegarem ao galpão, as pedras eram cortadas conforme um desenho já feito por Eduardo. É colocado um pouco de água, para amolecer a pedra e não esquentar a lâmina. Assim, ela cortará de maneira reta. Após todo o processo, a mãe de Annita pinta as pedras e o pai faz o retoque final.

O ofício de Eduardo começou pela simples necessidade de sobreviver. Depois de casar, precisava sustentar a família. Por morar perto de um cemitério e de uma igreja, ele pode ter observado que ninguém fazia pedras – a inspiração talvez tenha surgido daí. Annita explica que Eduardo era um autodidata:

“Ele que começou, e aprendeu tudo por conta própria, porque ninguém fazia isso em Agudo. Passou a fazer para todos os lu-gares, para Paraíso do Sul, Dona Francisca, Restinga Sêca, Candelária e Cerro Branco. Meu tio Adão ficou morando onde todos os filhos nasceram. Eram quatro da última mulher e uma filha, e todos tinham diabe-te. Eu também tenho diabete. Há quarenta anos”. Seguiram na profissão um irmão de Eduardo, chamado Lotário, e um filho seu, Floriano, além do genro. Hoje em dia, ape-nas o neto Marcus faz as pedras.

Urildes comenta que Eduardo fora um grande empreendedor. “Mas não é como agora, né, que os empreendedores ganham troféu, homenagens. Naquela época não existia. Ele nunca foi reconhecido”. Ape-sar da falta de algum prêmio, certamente Eduardo fora o maior artista de sua época e, muitas vezes, uniu seu dom à outra voca-ção: a de fazer graça com seus versos.

A história do cachorro contada por Annita é um exemplo. Certa vez, o animal de esti-mação de uma vizinha polonesa dos Her-mes faleceu. A senhora Puhlack, portanto, foi encomendar uma pedra com versos. Eduardo os fez.

Aqui jaz Ritchie, o cachorrinho,o qual não posso esquecer,pois ele comeu da senhora Pfeifertodos os seus patinhos.

Aqui jaz, quieto e duro,Ritchie Puhlack.

Pois o marido da senhora Puhlack não gos-tou nem um pouco dos versos em homena-gem ao cachorro e quebrou a pedra com um machado. Depois que o marido morreu, a polonesa viajou até a Alemanha, mas, frus-trada, não encontrou o país que esperava. Quando tentou voltar para o Brasil, desco-briu estar sem dinheiro algum. Suicidou-se.

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Annita, volta e meia em suas histórias, repete algumas informações. “Eu também te-nho diabete. Há quarenta anos”. Às vezes, termina uma frase, faz uma longa pausa, suspira, e interrompe quem estiver falando. “A tia Cecília também tinha diabete...”. E silencia. A hora estava próxima. Annita, enfim, confessa. “Ele morreu cedo, com 68 anos. Por causa da diabete”.

Um soco parece atingir a senhora anteriormente tão vivaz e energética em suas res-postas. Os olhos caem e a voz adquire uma profundeza espantosa. “Lá não tinha essa insulina ainda, só comprimido. E ele se tratava, né. Ficou tão doente no estômago que o estômago fechou e não saía mais... Ele teve uma morte triste, triste... Ele morreu faminto, por causa que não podia... engolia essas coisas e logo vomitava tudo pra fora, né. Era triste... até a morte, né”.

Annita segura firmemente a mão da cadeira de balanço, talvez para permitir enfra-quecer sua voz à medida que termina frases como “ele teve uma morte horrível”. O túmulo de Eduardo, ao contrário dos que ele sempre fez, era de granito. Não continha nenhum verso. O artista da morte foi enterrado primeiramente no cemitério do Canto Católico. Hoje, seus restos mortais se encontram no cemitério municipal de Agudo.

A jornada chegou ao fim. Quando eu mostrar a Annita o final da sua, ela terá que atravessar o lado do cemitério municipal, já que se converteu ao luteranismo quando casou. Ela sabe que todas as suas memórias descansam em paz e sorriem para ela. Seu pai passou a vida construindo homenagens aos outros e, quando se deu por conta, tudo desapareceu. Culpa minha que o levei. E não é culpa de ninguém que não haja enfeite ou homenagem para Eduardo. Existem relíquias à altura de artistas? A morte é uma arte.

ÁLCOOL, SUICÍDIO E ATEÍSMO

“É impressionante, tu anda e aparece um cemitério. Deve ter mais de 50 em Agudo”. O frei João se espanta com o tamanho número de cemitérios para uma cidade tão pequena. Ao contrário de frei Gervásio, seu companheiro de religião, João é mais novo – 67 anos. A voz calma, entretanto, parece ser marca registrada de quem trabalha em igrejas.

Os três principais cemitérios de Agudo são o evangélico, o municipal e o do Canto Ca-tólico, já abandonado. A enorme quantidade mencionada pelo frei se refere às áreas do interior. Lá, existem outros dois tipos: os de sociedade e os particulares.

Cada local não tem necessariamente sua respectiva igreja. A formação do primeiro tipo se dá por uma família que sepulta seus entes em uma área qualquer e a expande para seus vizinhos e amigos. Aos poucos, quatro, cinco, dez famílias já estão enterradas naquele cemitério, e uma sociedade é formada. Quanto aos particulares, eles são de uma família só, geralmente feitos próximo às casas das pessoas do interior.Segundo o pastor Henrique, os particulares eram feitos por outros protestantes que esta-vam distantes da comunidade evangélica no centro de Agudo. Faziam, portanto, cemité-rios nas suas próprias terras. “Agudo está cheio deles. Aliás, muitos já estão virados em roça. Muitas vezes se planta em cima dos cemitérios”.

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No interior, os velórios geralmente são feitos em salões ou mesmo no cemitério particular. “Por mim, pode ser até debaixo de uma árvore”, afirma o pastor, que já cansou de velar pessoas em suas próprias casas no interior de Santa Cruz do Sul. Em Agudo, o lado ruim de realizar as cerimônias nos salões é o fato de reu-nir, muitas vezes, bêbados. Como o dono do lugar não cobra aluguel, ele abre sua venda de bebidas. Curiosamente, quase nunca se põe água à disposição, mas sim refrigerantes e, é claro, cerveja.

“Daqui a pouco tem uma turma bêbada e eles começam a atrapalhar o velório, porque não conseguem ficar quietos. Então eles nem têm respeito para com a fa-mília enlutada, que tá ali velando seu morto”, lamenta o pastor.

Como a vigilância sanitária permite isso? A explicação dada por Henrique é que não há outro lugar para velar estes corpos, uma vez que não existe capela no inte-rior. Enquanto isso, o bafo do álcool segue se misturando com o cheiro da morte.

Os suicidas também já foram um problema. Frei Gervásio afirma que, no passado, o padre não fazia a cerimônia para o enterro de quem cometesse suicídio. Não ha-via reza ou oração, nem mesmo o processo de encomendação, feito por padres e pastores em que há a passagem do morto, a entrega de seu corpo para o cemitério e a recomendação de sua alma ou espírito para Deus. “Já que ele se excluiu da fa-mília ou da sociedade, também era excluído do ambiente de seus colegas mortos”, afirma o frei.

Tão anônimo quanto os suicidas eram os indigentes. Frei João comenta que o enterro deles “muitas vezes é sem material, apenas terra. A maioria não tem nome nem nada, são anônimos. Nós sempre falamos que são os ‘preferidos de Deus’”. Há pontos em comum no enterro de suicidas e pessoas pobres. Em ambos os casos, seus corpos costumavam ficar enterrados em um canto, para fora do cemi-tério. Não entravam pelo portão principal, mas passavam por baixo de um arame, pela entrada lateral dos cemitérios. O sino não era batido e o pastor, no caso do morto ser evangélico, não usava o talar. Estas regras também valiam para crianças que morriam sem serem batizadas. Hoje, Henrique afirma que a cerimônia é feita como qualquer outra.

“O que muda são as reflexões. Por que a pessoa fez esse gesto? O que deixamos de fazer com essa pessoa? Eu não faço diferenciação, porque normalmente o suicida a gente condena. Mas não cabe a nós condenarmos. Isso fica na mão de Deus”.

Por fim, ainda há quem não acredite no Todo Poderoso. Frei João define um ate-ísta como aquele que não quer mais saber de igrejas. “Mas dizer que não acredita em Deus, eu acho muito difícil”. Para ele, o ateu, no fundo, não quer se ligar a uma instituição. O frei concorda com seu companheiro Gervásio em um ponto: os dois nunca viram um ateu ser enterrado em Agudo. Na verdade, Gervásio vai mais além e, em meio a risadas, afirma que o ateísmo não existe. “Não, não! Ateu significa que não acredita em nada. Ele já tá se contradizendo. Nada não existe!”.

O que ocorre é que ateus normalmen-te não são membros de igrejas. Assim, quando morrem, os pastores ou padres não são procurados para fazer seu se-pultamento. O pastor Henrique define o ateu como um ser tão egoísta quanto o suicida.“Ele só pensou em si, não pensou naque-les que ficam. Que situação de constran-gimento fica a família se não há ninguém para fazer o sepultamento? Os ateístas têm esse problema sério, porque são ex-tremamente egoístas. E a gente tem que parar com essa história de julgamento. Posso julgar pelas atitudes éticas – cor-rupção, por exemplo. Mas não a fé. Não posso te dizer se você tem fé ou não tem, se tua fé é verdadeira ou não, se crê ou não crê. É uma questão tua, tá? Só isso”.

Com ou sem fé, o encontro é inevitável. A primeira pessoa de Agudo que veio a mim foi Catharina Rockembach. A meni-na, de apenas um ano e meio, me abraçou após sofrer de disenteria. Foi o primeiro óbito registrado da cidade, em dezembro de 1857 – na época, o município ainda se chamava Colônia de Santo Ângelo.

Ateus, suicidas, pobres, evangélicos e ca-tólicos. Alguns vivem separados duran-te a vida, alguns insistem em se separar também na morte. Para mim não há dis-tinção. Não importa se dona Annita era católica e converteu-se ao luteranismo. Não faz diferença se Guido era evangé-lico e tornou-se católico. O suicídio da senhora Puhlack merece um enterro tão digno quanto o do jovem Marcus e sua prima Urildes. E assim tudo segue seu curso normal. Eu? Eu estarei esperan-do o frei Gervásio, o pastor Henrique e quem mais quiser vir me conhecer. Não tenho foice, nem capuz, nem nada. Sou tão natural e simples como a minha irmã Vida. Eu sou uma arte.

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Farelos de borracha e grãos de areia

a bordo /lápis e caneta

Dificilmente alguém passará sem diminuir o passo para contemplar o trabalho dele, mesmo que por alguns segundos. Ainda que as pessoas caminhem ávidas, buscando alguma das inúmeras barraquinhas de cre-pes para saciar a fome; ainda que as vitrines da Sepé, principal rua do Centro de Capão da Canoa, pareçam atraentes com seus ar-tigos de praia e surfe; ainda que o movi-mento seja intenso nas noites quentes de dezembro, que antecedem mais uma virada de ano no Litoral Norte gaúcho, é impossí-vel deixar de observar a precisão dos traços – ágeis como os pedestres que procuram apressados pelos últimos lugares às mesas dos restaurantes em época de veraneio.

Quem passa próximo ao Shopping Lyne-mar, nas esquinas da rua Sepé com a Tupi-rana, observa o trabalho desse artista, des-de a sua concepção ao momento em que revela cada detalhe àqueles que aguardam ansiosos o resultado de sua arte. No iní-cio, apenas dois círculos marcam a posição onde mais tarde – pouco mais de quinze minutos depois – estarão estampados ros-tos, com semelhanças espantosas. Depois, os olhos ganham um traço, iniciado com dois riscos, também demarcando a localiza-ção; uma boca começa a tomar forma; no papel, surgem as impressões gravadas atra-vés da sensibilidade de um olhar.Ao mesmo tempo em que o lápis 6B de de-

senho passeia pela folha, os que passeiam em volta já se aglomeram para assistir ao desenho. E, com eles, também surgem os primeiros comentários. Uma risada de es-panto. “Tá igual!”, “Que perfeito!”, “Nos-sa!”. Após a passagem para o papel dos tra-ços físicos, os detalhes constroem a riqueza do desenho.

Enquanto o casal, posicionado estrategi-camente em dois pufes à frente do artista, aguarda pacientemente pelo resultado final, a caricatura começa a ganhar forma. O boné aba reta dele recebe tanta atenção quanto o pingente com o símbolo do time; os ca-belos cacheados dela deslizam suavemente através dos traços. Nem mesmo as crianças que correm de um lado para o outro, próxi-mos ao local, sem se preocupar muito com o que está acontecendo, parecem tirar-lhe a concentração; a mão direita segue percor-rendo o papel com movimentos firmes e precisos.

O lápis dá lugar à caneta, e os contornos definitivos são aperfeiçoados. Um retoque aqui, outra correção ali; os dedos do artis-ta acariciam o papel para criar o efeito de sombra. Quando a borracha entra em ação para acabar com os traços feitos com o lápis, ela vem acompanhada da brincadei-ra: “não tem jeito, vou ter que começar de novo”. As risadas só dão lugar ao suspense

Na agitada vida noturna que marca o verão ou nas tardes que antecedem mais uma virada de ano na praia, as atenções voltam-se para o papel – e para um talento em especial.

perfil e foto nicholas lyra

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segundos antes do artista virar a folha para mostrar o resultado aos seus clientes. E a reação – tal qual a de todos que até então observavam – é sempre positiva.

O responsável por passar essas impressões próprias para o papel é o caricaturista Ro-gério Marques Cardoso, de 34 anos. Natu-ral de Caçapava do Sul, residente em Ca-noas, há doze anos trabalha em Capão da Canoa durante a temporada de verão. Em-bora durante o ano o trabalho se restrinja, na maioria das vezes, a eventos, nos quais atua como contratado – convites e festas de casamento, aniversários e caricaturas sob encomenda – Rogério utiliza o período en-tre janeiro e fevereiro para complementar a renda na praia. Em casa, as caricaturas recebem atenção no formato digitalizado. As encomendas vêm inclusive do centro do país.

No intervalo entre uma caricatura e outra, numa das raras oportunidades sem movi-mento, Rogério aproveita para descansar – em pé. Vestido à maneira adequada para a temperatura no mês de dezembro – uma camisa cinza de mangas curtas, a bermu-da jeans surrada e tênis pretos – o artista aguarda o próximo cliente. O rosto redon-do e o nariz largo contrastam com a boca fina e os olhos pequenos. A pele negra e o cabelo bem raspado estão bem retratados em uma caricatura fiel feita pelo próprio Rogério, retratado no logotipo da marca Rogério Caricaturas, estampada em seus cartões de visita.

Quem toma conta da cadeira do artista, en-quanto este fuma um Dunhill próximo ao expositor com caricaturas de personalida-des que marcaram o ano de 2012, como o jogador Neymar, o lutador de MMA, An-derson Silva, e o personagem Leleco, da novela Avenida Brasil, é seu Ademar, pai de Rogério. Ademar é mais baixo que o filho – que também não é tão alto, já que tem cerca de um metro e oitenta.

Com 57 anos, seu Ademar mostra disposi-

ção para acompanhar a rotina do filho, que tem de acordar cedo para começar o traba-lho ainda pela manhã, quando percorrem a praia fazendo caricaturas dos banhistas. Ele auxilia o filho no trabalho, na hora de dar ou receber o troco, ou mesmo embrulhar o desenho e colocá-lo no saco plástico:

– Faço sempre com cuidado pra não que-brar o papel.

Meu sonho sempre foi trabalhar com o pú-blico. Eu morava lá em Rosário, mas aos 16 anos fugi de casa e vim morar em Porto Alegre. Minha mãe continua lá até hoje. Eu ia lá pra Rua da Praia, ficava observando aqueles artistas, o pessoal fazendo várias coisas, mas nunca tive a oportunidade. Fi-quei mais de 30 anos em firma e escritório. E agora tô aí, acompanhando meu filho. Destino, né?

Enquanto Rogério desenha suas “vítimas”, como ele próprio brinca, é seu Ademar o responsável por atender os clientes interes-sados nas caricaturas do filho. Quando as pessoas se aproximam – com atenção presa pelo mural com as caricaturas expostas ou pelo desenho que Rogério está fazendo no momento – o pai mostra aos possíveis dese-nhados uma pasta com diversas fotografias. Nelas, estão fotos de outros caricaturados – geralmente na praia – ao lado do trabalho de Rogério, para efeito de comparação.

Ademar conta que o filho começou a de-senhar profissionalmente com quinze anos, embora tenha mostrado desenvoltura com o lápis desde os seis: “ele pegava uma foto três por quatro e praticamente copiava”. E, embora saiba da preferência do filho por fazer e trabalhar com caricaturas, é a qua-lidade de outro tipo de desenho feito por Rogério que ele exalta: os retratos. Mesmo com uma dificuldade maior desse trabalho, já que exige um detalhamento maior e mais seriedade nos traços, seu Ademar elogia: “olhando, ninguém diz que é desenho. Pa-rece foto. A semelhança é muito grande”.

HISTÓRIAS E ENCONTROS NO PAPEL

É o meu primeiro dia de trabalho na praia nesta temporada. Cheguei na cidade há qua-tro dias, mas a chuva que teimava em não parar me impossibilitou de ir para a rua. Rogério aproveita para relembrar outros momentos de sua passagem por Capão. Enquanto aguarda as próximas pessoas a se sentarem no lugar destinado aos caricatura-dos, ele conta que já passou por momentos engraçados na profissão.

Acho que faz uns sete ou oito anos, ali na-quele shopping da outra esquina. Num des-ses verões, há sete ou oito anos, um argenti-no, tentando conquistar uma das atendentes de alguma loja, pediu para que eu observas-se a moça trabalhando e a desenhasse, mas sem assinar o trabalho. O motivo? Ele havia mentido que era artista, desenhista, escul-tor, e queria assinar o desenho. Aí eu fiz. Não sei se deu certo, mas foi engraçado.

Os clientes nos interrompem com frequên-cia:– Quanto é a caricatura? – Pode ser de mais de duas pessoas?

Também é possível observar que, ao con-trário do que Rogério e seu Ademar imagi-naram, o personagem que mais faz sucesso entre os escolhidos para exibir a arte não é Neymar: – Olha mãe, o Leleco, é o Leleco!

No meio disso tudo, surge até uma propos-ta, feita por dois rapazes:–Tu não quer vender esse Leleco aí?

Enquanto Rogério se desculpa e explica ser apenas para amostra:– Mas posso fazer outro por encomenda – admite, rindo do sucesso da caricatura, feita na noite anterior: – Não ia nem colorir, tava com preguiça de fazer, e agora todo mundo comenta.

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Vejo as caricaturas conhecidas e me aproximo sem ter muita certeza. Embora a faixa colo-cada ao lado indique o nome do artista. O homem ao lado parece mais velho. Talvez seja o pai. Por fim, o enxergo. Ainda não estou certa, mas arrisco a pergunta mesmo assim: – Tu não é o Rogério? – pergunto, e, ao ouvir a confirmação lembro a ele: – Tu trabalhaste fazendo caricaturas no meu casamento, em Estância Velha!

Ao ver o marido se aproximar, Rogério não perde a oportunidade de fazer uma brinca-deira:– Essa carinha aí eu já desenhei, hein! – diz ele, provocando risos nos que aguardam a sua vez de serem desenhados.

Rogério tem um blog na internet, que mantém atualizado constantemente com postagens de seus últimos trabalhos e eventos, com o qual atende pedidos de diversas partes do país. Esses pedidos chegam com os tipos mais variados de caricaturas: um veterinário a cuidar de animais, jovens em acampamentos, enfermeiras e torcedores com as camisas de seus clubes.

Agora, quem se senta à frente de Rogério não é mais um casal – embora esse seja seu pú-blico mais cativo – e sim uma família de Santa Cruz. Vivem em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro. Com outros parentes no entorno, as brincadeiras e comentários sobre o desenho seguem até o momento final. Depois, chega outro casal. Nem mesmo a rápida, mas forte, chuva de verão que resolve cair durante o trabalho atrapalha Rogério: sem hesitar, busca abrigo nas marquises do shopping para concluir mais um desenho, o último da noite.

Já passa de uma hora da madrugada. Enquanto o filho vai buscar o carro, estacionado longe do centro devido à falta de lugares óbvia para a época, seu Ademar senta-se na cadeira, cansado. Quando Rogério retorna, mais de vinte minutos depois em função do trânsito, guardam todo o equipamento de trabalho no porta-malas do Renault Clio, en-cerrando mais um dia de trabalho. Rogério, no entanto, não parece cansado: “agora vou

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dar uma volta pelo centro, já que é meu pri-meiro dia na praia”, e mergulha o carro no trânsito movimentado, nas ruas estreitas do centro de Capão.

FARELOS DE BORRACHA E GRÃOS DE AREIA

O cenário agora em nada lembra as calçadas da noite anterior, quando as ruas estavam iluminadas por postes que teimavam em fa-lhar ou pelas luzes da loja de revistas que permaneciam acesas, ainda que o relógio já tenha vencido a meia-noite. Agora, Rogé-rio e seu Ademar caminham pela beira da praia, entrecortando o caminho através de guarda-sóis e por entre barracas e cadeiras, sempre alertas a qualquer possibilidade de serem atingidos sorrateiramente por uma bola de frescobol ou algum boné trazido pelo vento que soprava forte, carregando areia e tremulando a bandeira amarela na guarita de salva-vidas número 75.

É sábado, antevéspera de ano-novo, o que faz com que haja pouco espaço para circu-lar na praia lotada. O serviço começou às onze da manhã, na altura da orla demarca-da pela guarita de número 77. A quantida-de de pessoas interessadas no trabalho de Rogério impede que o grupo se locomova. Enquanto desenha um casal de veranistas, outros se aproximam; as pessoas no guar-da-sol do lado chamam, e Rogério faz mais um desenho, enquanto, na barraca ao lado, seu Ademar chama mais clientes para a fila. Em meio às caricaturas, Rogério também se dedica à outra arte, essa exclusiva na beira da praia. Os dedos manchados de tinta de caneta mostram que a tatuagem de henna também faz parte do cartel do artista.

Agora, além do pai, quem acompanha e au-xilia os trabalhos do artista é o filho dele, Wesley, de 14 anos. – Eu não desenho nada, mas o guri já tá aprendendo com o pai – conta seu Ademar, orgulhoso com a possibilidade de mais uma geração de desenhista na família. A pausa para o almoço é próximo das duas

da tarde. A demanda não permitiu ir além da guarita número 76.

Uma hora e meia depois, os três já estão de volta à beira da praia para dar conti-nuidade ao trabalho. Agora, já na altura da guarita de número 75, o carro novamente está longe. Não há a menor possibilidade de estacionar por ali. Enquanto caminha por entre os guarda-sóis, seguido de perto pelo pai e pelo filho, que propagandeiam em voz alta o trabalho do filho, três casais de Santa Cruz chamam Rogério. O clima descontraído na beira da praia favorece as brincadeiras e, claro, a pechincha. Em meio às latas de cerveja e aos pastéis de ca-marão sobre a mesa, um dos rapazes pede desconto. Ele oferece um gole de cerveja a seu Ademar; um refrigerante para Rogério e, não demora muito, lá está ele sentado na sombra do guarda-sol fazendo mais cari-caturas.

As piadas, embebidas em cerveja, correm soltas. Seu Ademar logo apelida o primeiro caricaturado de “Gringo” e repete, a cada brincadeira feita por ele: “esse ‘Gringo’ é uma figura!”. Entre uma risada e outra que, não por poucas vezes, interrompem o tra-balho, Rogério segue desenhando.

Enquanto desenha a esposa, “Gringo”, que aguarda a sua vez de ser caricaturado, brinca com o cunhado. Rogério, em meio às risa-das, pergunta: “como é que tu aguenta esse cara, tchê?”. O outro rapaz, assumindo um tom sério pela primeira vez, também indaga Rogério: “tu nunca pensou em trabalhar pra polícia, fazendo retrato falado?”, e, embora a pergunta tenha sido séria, só possibilitou mais piadas feitas por “Gringo”: “é uma fi-gura!”, repete seu Ademar.

Encerrada a primeira caricatura, mal se vira na cadeira emprestada pelos vendedores do quiosque vizinho e, logo, já está dese-nhando o próximo casal. Seu Ademar, que aguardava na sombra, volta e pergunta: “é o terceiro desenho já né, Rogério?”. Ao ouvir a resposta negativa do filho, acaba dando mais brecha para gozação: “tá com o freio

de mão puxado! Que tu colocou no refri dele, Gringo?”, pergunta em voz alta, em meio aos risos incontrolados dos que estão em volta.

Termino o terceiro desenho. Preciso passar para o casal das cadeiras ao lado, mas já sin-to o cansaço. Limpo o suor que me escorre pelo rosto com as costas das mãos. Ainda tenho que tentar entrar no ritmo puxado do trabalho durante o verão, mas não é fácil. A gente caminha a manhã e a tarde inteira no sol, e não tem muito tempo pra descansar. Enquanto tá fazendo uma, já chamam do lado. A cabeça não descansa.

–Ele tá ficando velho – brinca o filho.

Um casal de advogados de Porto Alegre é a última caricatura do dia. Rogério aponta o lápis 6B com um estilete. Seu Ademar olha para o relógio e pede: “dez minutos nessa aí hein, Rogério”. O filho pondera e pede quinze, e seu Ademar coloca o cronômetro para funcionar, e volta para a sombra.

Vinte minutos depois, a arte está no papel. Levanto-me e guardo o material de trabalho para ir pra casa e tomar um banho antes de retornar ao trabalho no centro. Hoje foi di-fícil, mas tenho que me acostumar.

Seu Ademar, mesmo com sinais de cansaço, ainda tem energia para mais desenhos, em-bora reconheça: – Se a gente que fica só caminhando, carre-gando as coisas e chamando cliente já cansa, imagina ele – diz, apontando para o filho.

Já rumo a um quiosque no calçadão, onde tomaria um refrigerante antes de buscar o carro, os três são abordados por um grupo de oito jovens. Ainda que um pouco contra-riado, Rogério atende ao chamado: “quan-to tu cobra pra fazer uma de nós todos?”, pergunta um deles. Ao dar o valor, Rogério ouve a resposta: “passa aqui amanhã a par-tir das três, vamos estar no mesmo lugar”. Aliviado, ele concorda com a cabeça rumo a suas poucas horas de descanso antes de voltar a mais uma noite de trabalho.

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Sorriso negro de liberdade

à de

riva

ensaio luciele oliveira

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Mãos dadas, pés descalços e rostos enrijecidos com ares de sofrimento. O casal de negros libertos, prota-gonistas da fotografia que abre este ensaio, está proi-bido de demonstrar suas emoções. “As fotos deveriam ser apenas documentais”, é o que encontro na descri-ção da imagem, que integra o arquivo do Monumenta, programa do Ministério da Cultura que visa à preser-vação do patrimônio histórico. A imagem data 1889

– um ano após a abolição da escravatura no Brasil. As fotos, normalmente, eram tiradas no dia da libertação

dos negros. Junto à descrição, um alerta: “assim que os escravos

foram livres, uma das condições era não sorrir na hora de tirar uma foto”. Hoje, 125 anos após a abolição, as

fotografias transcendem o papel da documentação. São registros, memórias, reflexos de uma luta política por visibilidade, com um papel fundamental de retratar a

autoestima, a identidade e a cultura de negros e de ne-gras, não mais expostos às marcas da chibata, não mais

proibidos de demonstrar suas emoções, sua beleza e sua resistência. Neste ensaio, os sorrisos emergem da

consciência negra.

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Há muitos anos ouço, vejo e sinto histórias de quem passa por aqui. Antes, quando os primeiros homens vieram se aventurar e abrir caminhos para a colonização, nem tudo era como hoje. Eu era diferente. Frondosa e imponente, eu assustava. Queriam me derrubar a todo custo para, da minha terra, fazer desenvolvimento e progresso. E assim fizeram colonos, operários e garimpeiros, que se aventuraram pelo meu interior. Depois foi a vez dos pecuaristas e madeireiros. Virei pastagem. Virei madeira para exportação. Me dilaceraram, mas não por inteiro. Hoje ainda vivo, apesar de em recortes, e sou reconhecida pela minha grandeza. É verdade que não mais assusto, não mais sou hostil, mas muitos ainda veem em mim um obstáculo. E outros tantos têm em mim um lar. No norte do Brasil, como eu, eles criaram raízes. Meu corpo balança num vaivém constante enquanto meu estômago se contorce pedindo para que o tempo passe depressa. O vento que entra pelas janelas entreabertas e atravessa as poltronas até chegar ao corredor não ameniza o calor sufocante e a sensação de que estamos indo cada vez mais devagar. No lado de fora da janela podemos ver as casas de alvenaria e a estrada de asfalto que se despedem ao longe. Resquícios da urbanização que ficara para trás.

Tudo chacoalha dentro do ônibus, reformado para poder enfrentar os desafios que encontra pelo caminho. Mais elevado e com um guincho instalado, o meio de transporte é adaptado para não ser surpreendido pelos buracos – crateras gigantescas e profundas – que, teimosos, insistem em continuar ali a cada ano. As estradas do sul paraense deveriam se chamar descaso. Felizmente, estamos nos últimos dias do mês de julho. É verão por aqui. O mormaço e a poeira são resultado da chuva que não molha a região desde junho.

Já passa do meio-dia quando paramos. Engana-se quem pensa que chegamos ao destino. Depois de quase seis horas de viagem e pouco mais de 130 quilômetros percorridos, uma pausa apenas para um breve descanso.Desço do ônibus. A terra de chão batido se estende por todo o vilarejo. Uma das únicas placas encontradas no caminho me avisa: estamos em Teilândia, distrito da cidade de São Félix do Xingu. A localidade é como um suspiro de cidade para aqueles que vivem mais adiante, embrenhados no meio da mata.Sento-me em uma cadeira vermelha de um boteco. “O que tu queres?”, me indaga rapidamente o senhor de gestos largos atrás do balcão, enquanto enxuga com a mão o suor que escorre em seu rosto. Os demais passageiros já se encaminham ao ônibus quando o homem me entrega a garrafa de água que pedi. A viagem segue com vagar. Algumas pessoas fecham os olhos na esperança de que o vento morno traga uma doce sonolência e faça com que as horas preguiçosas se arrastem mais depressa. Abro a janela. A mata fechada e insalubre que existia ali, durante o auge dos projetos de infraestrutura implantados pelos governos militares nos anos setenta, dá lugar às poucas árvores nativas que restaram ao longo do caminho. Há trechos onde elas são mais numerosas e trechos onde o desmatamento deixa visível que o progresso chegou ali há muito tempo.

rotas / janela amazônica

No meio do caminho tem uma floresta

Longe da impaciência do mundo, a família de Edilene encontra o seu lugar.

reportagem e foto kamila baidek

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O ônibus finalmente para, depois de quase dez horas sacolejando. Desço. Não há sinalização, tampouco algo que indique a existência de uma parada de ônibus, mas apenas a mata e duas estradas que parecem não ter fim. Everton está a minha espera em uma motocicleta que delata a precariedade das estradas das cercanias. Vamos pela estrada da direita, enquanto o ônibus segue até Sudoeste, um vilarejo de São Félix do Xingu, pelo outro caminho. Depois de trinta quilômetros comendo poeira, chego ao meu destino final.

O sol já está se pondo quando Everton me deixa na casa de Edilene. O cheirinho de comida no fogo me convida a entrar. A casa de madeira tem cinco cômodos, com uma cozinha anexa. São apenas duas camas, mas inúmeras redes surgem na hora de dormir. Ali seria meu lar nos próximos dias.

Entro em um dos cômodos e coloco minha mochila em cima de um grande baú machucado pela ação do tempo. Olho pela janela e a noite já havia tomado o lugar do dia. O céu é de um preto azulado intenso pontilhado por inúmeras estrelas que cintilam. Podia senti-las reluzir em meus olhos imóveis. Ouço meu nome ser chamado. Mesmo cansada, me arrasto até a cozinha. A mesa já está posta. Uma toalha de um plástico branco com flores marrons cobre toda a superfície. As três panelas de alumínio exalam um aroma tão delicioso que faz cócegas no estômago.

Edilene, uma mulher de pele morena cor de canela, com os cabelos lisos tão escuros quanto seus olhos, me convida a sentar, enquanto pega a comida do fogão à lenha. À minha frente, senta-se Leo, um homem com a pele queimada pelo sol escaldante e com as sobrancelhas grossas e arqueadas. Todos comem tranquilamente e, de garfada em garfada, os pratos vão se esvaziando.

Depois do jantar, o cansaço é mais forte e o corpo implora por repouso. Apenas peço para lavar o rosto e escovar os dentes. Pego uma caneca de alumínio cheia d’água, por recomendação dos donos da casa, e escovo os dentes ali mesmo, na pia da cozinha. Despeço-me da família, que também já vai se encaminhando para os dois quartos, os únicos com camas. Eu me acomodo em uma rede no meio da sala.

Depois de cortar os céus do Brasil, percorrendo os mais de três mil quilômetros que separam Porto Alegre (RS) de Belém (PA), viajar mais mil quilômetros até a cidade de Tucumã, no sudeste paraense, e, dali, percorrer 180 quilômetros por mais de doze horas de viagem, cá estou, deitada em uma rede, contemplando as estrelas da Amazônia.

DE QUANDO ME DEI CONTA DALI

A mata acordou sob uma névoa densa pela manhã. Tão espessa que parecia transbordar as janelas abertas e invadir cada cômodo da casa. Desperto com a sensação de que havia acabado de adormecer. Olho pela janela que permaneceu escancarada enquanto dormíamos e tento decifrar os vultos das árvores que se espreguiçam lá fora. Tudo é silêncio. Aproximo-me do parapeito e o vento sopra úmido e frio no meu rosto. Tento, sem sucesso, enxergar por entre a neblina algum sinal que pudesse me indicar o horário. Mas não há claridade. Da cozinha, vêm sinais de que alguém já está em pé. Por aqui, o dia começa bem antes de surgir o sol.

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Com o cabelo atado em um coque na altura da nuca, os pés descalços e o vestido preto com detalhes azuis, apertado sobre o corpo roliço, a cabocla cantarola as modinhas sertanejas que saem do rádio de pilha em cima da prateleira de madeira, enquanto côa o café em um coador de pano. “E agora são cinco horas com mais trinta e dois minutos. Bom dia, tucumãenses!” - interrompe a radialista para impor hora a quem segue o ritmo da mata. Na prateleira onde está o rádio, misturadas com pratos, talheres e potes, estão cinco escovas de dente em um copo plástico. Acho estranho elas estarem ali, mas pode ser o costume da família escovar os dentes na cozinha, como eu mesma fiz ontem, e não no banheiro.

- Bom dia, bom dia! - branda Edilene da beira do fogão, fazendo com que eu desperte dos meus pensamentos - Caístes da rede, foi?, brinca.

Ela ri um riso largo e gostoso, exibindo seus dentes regulares, enxuga as mãos rudes no pano surrado e sai para o pátio, fazendo sinal para que eu a siga. Andamos pela lateral da casa até o poço que fica nos fundos da cozinha.

- Já puxei água, o balde está cheinho. Pode escovar os dente, limpar a cara. O nosso banheiro é assim, ao ar livre - me explica ela já tomando, de volta, o rumo da cozinha.

Ainda um pouco sonolenta, demoro a absorver a explicação. Aperto a bisnaga da pasta de dente que transborda mais do que eu gostaria para a minha escova. Mergulho no caneco de alumínio cheio d’água ao lado do balde de madeira e a enfio na boca. A névoa, antes densa, vai fazendo surgir as árvores que, ontem, ficaram escondidas pelo manto da noite. O som dos macacos

que guincham na mata ao longe, fazendo rebuliço, ecoa. Faço bochecho com a água fresca vinda do poço enquanto o que me disse Edilene palpita na minha cabeça. Ao ar livre. Banheiro ao ar livre. Só depois de ficar ali, pensando alguns minutos, entendo por fim. E, quando entendo, dou-me conta de quão diferente e distante me encontro da realidade em que vivo, no outro extremo do país.

O restante da casa vai despertando. Quando faço o caminho de volta, ouço gritos vindos da cozinha. É Edilene tentando pôr ordem nos filhos. Flamel, um menino esguio de 11 anos, não dá ouvidos à mãe. Edilaine – chamada de Leila - com os cabelos volumosos e esvoaçantes que seguem enrolados até a metade das costas, acompanha o irmão nas travessuras matinais que inclui correr ao redor da mesa. E a nenê, que se chama Edinália, de apenas dois anos, insiste em colocar os quatro dedos na boca, enquanto com a outra mão esfrega os olhinhos ainda meio cerrados. Eles estão agitados e curiosos com a novidade. E eu sou essa novidade. Eles me olham e, atentos aos meus movimentos, por alguns momentos, deixam de lado as traquinagens.

- Bora sentar! Leila, pega a nenê! – branda a cabocla.

Arredamos o banco comprido de madeira e sentamos. Não há pratos na mesa, tampouco talheres. O que há são xícaras, em sua maioria, de plástico colorido; uma ou duas são de vidro, apenas. Há também um pão redondo e um bolo de milho, feitos ali mesmo no forno à lenha. Levanto e pego algumas colheres pequenas, daquelas de café, que estão colocadas dentro de um pote fundo de margarina, e espalho sobre a toalha plástica. O café fresquinho e o cuscuz esperam pelo leite trazido por Leo. Antes mesmo de fazer a primeira refeição do dia, ele vai para a ordenha e prepara a tropa para lida, junto com Everton, o outro vaqueiro que vive em uma casa a uns 800 metros dali.

Mal sento à mesa e um homem sisudo com um chapéu preto surge. Em uma das mãos, ele traz uma garrafa pet abarrotada de leite. Coloca-a na pia e, com um gesto curto e tímido, Leo me cumprimenta. Lava as mãos em uma bacia cheia d’água e senta-se à mesa. Tão logo senta, já pega um prato cheio de cuscuz com leite.

- Cuscuz é o melhor alimento que tem, sustenta e dá força até a próxima refeição - esclarece Edilene.

Sem nem mesmo tirar o chapéu, tamanha é a fome, de bocada em bocada, o prato de Leo vai minguando. Tomo alguns goles de café preto, engulo um pedaço de pão e me levanto para ajudar a retirar as coisas da mesa.

Empilhamos a louça suja na pia, mesmo que ali não houvesse água encanada para a lavagem. Leo põe-se em pé, ergue o chapéu e, sem ao menos balbuciar alguma palavra, despede-se. Flamel, com sua rapidez invejável, traz mais lenha para alimentar o fogo.

- Leo é mesmo assim, um gaiato! Tímido e quieto que só ele, mas quando fala só faz

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divertir a gente! - conta a esposa com um sorriso orgulhoso.

Depois de depositar a lenha ao lado do fogão, Flamel cutuca as irmãs que o perseguem ao redor da mesa, fazendo estripulias. Cansados, sentam no banco de madeira e fazem dele um cavalo alado. E voam alto, imaginam personagens e criam histórias. Mas logo enjoam e vão inventar brincadeiras no quintal.

Edilene ri das travessuras dos pequenos, pega uma bacia onde antes deixara uma carne descongelando, senta-se e começa a limpá-la, retirando o excesso de gordura. Nem bem senta e já levanta para beber um pouco d’água, incomodada com algo. - Faz dias que minha boca tá amargando de manhã, deve de ser o figo* - diz, bebendo um copo d’água de uma só vez enquanto enxuga o suor que flui em pequenas corredeiras da testa.

Em poucos minutos, a carne está pronta para ir à panela. O feijão ferve no fogão e Edilene tem pressa. Vai dando jeito no almoço com a destreza de quem sabe a arte de cozinhar em um fogão à lenha, afinal o tempo de cozimento é outro. É o tempo de quem vive no mato, sem geladeira, sem fogão a gás, sem energia elétrica e sem água encanada, de forma simples e humilde, mas a plenos pulmões.

- Já faz dois anos que tô aqui e não troco o mato pela minha casinha na rua**, não! - confidencia.

Naquele momento, acho que pude compreender o que, de fato, tinha feito com que eu estivesse ali. Eu queria entender o que fazia os olhos cor de noite escura de Edilene brilharem ao falar do mato. O que fazia com que as crianças chorassem ao ter de voltar para a rua para estudar. Entender o real significado da simplicidade

e da tranquilidade, confrontando com a absurda agitação e impaciência do mundo hoje. Poder respirar a vida na sua singeleza e redescobrir as múltiplas facetas de nós mesmos, entendendo a eterna busca pela essência humana de encontrar seu lugar no mundo. DE COMO DESCOBRI MEU LUGAR NO MUNDO Flamel e as meninas voltam para a cozinha fazendo barulho e agitam meus pensamentos. Creio que minha presença ali é mais instigante para eles do que as inúmeras possibilidades de brincadeiras prontas para serem descobertas. O rádio segue ligado, permanecendo assim ao longo do dia, uma ponte com o mundo além da mata.

Depois de temperada com salsa, pimenta e coentro, a carne já está pronta para ir à panela. Encaminhado o almoço, Edilene senta-se no banco, tira de dentro de uma sacola o crochê e começa, ponto a ponto, a dar forma à continuação de uma toalha vermelha. As crianças juntam-se a nós e sentam-se também. Tinhoso e matreiro, Flamel decide me imitar e brinca de jornalista, fazendo perguntas à mãe.

- Nome completo? - indaga ele fazendo da colher de pau, microfone.- Maria Edilene da Costa Brito.- Dia e local de nascimento?- Tenho 33 anos, nasci no dia oito de julho de 1979, na cidade de Xambioá, no Tocantins.- Hum, a idade de Cristo!

O riso de Edilene contagia a todos. Flamel desiste da brincadeira na segunda pergunta, mas ela segue contando que só estudou até a quinta série, assim como Leo, seu companheiro há dez anos. “Na verdade, é Miguel Gomes da Silva, mas a gente foi chamando de Leo e ficou”. Conta-me também que gostaria muito de ser professora e que brincava de dar aula no quintal da casa da mãe, ajudando muitas crianças com esse gosto por ensinar.

*Fígado.**Rua, para Edilene, é o mesmo que cidade, ou seja, ela disse ter uma casa na cidade de Tucumã.

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Edilene levanta sobressaltada, larga o crochê sobre a mesa e vai olhar o almoço que borbulha no fogão. Ela prepara tudo antes porque não gosta de deixar o fogão aceso, a casa é de madeira e há perigo de incêndio. As horas se arrastam, mas perco a noção do horário. O cheiro que vem das panelas cutuca meu estômago. Depois de quase finalizar o almoço, ela chama as crianças para que organizem a casa, enquanto pega uma vassoura feita de palha para varrer o terreiro.

Em meio às gigantes mangueiras, coqueiros e limoeiros espalhados pelo quintal, encontram-se mais de dez cães, que se dividem para vigiar os arredores da casa. Para todo lugar que se olha só se vê a mata. O vilarejo mais próximo fica a 17 quilômetros dali. - Não vou muito pra Vila da Paz, não. Só vou quando tenho que vacinar as criança ou quando tem alguma festa. Conheço muita gente não – conta a cabocla amontoando as folhas junto às graúdas raízes da mangueira e jogando para longe a poeira que sobe fazendo uma nuvem no ar.

Ela apoia a vassoura na parede de fora da casa e volta à cozinha para conferir o que ainda precisa ser feito para quando o meio-dia chegar. Recolho as folhas do monte com um pedaço de papelão e

coloco-as em um saco plástico. Penduro a sacola em um prego da parede de fora da casa. Na cozinha, apanho uma garrafa térmica vazia. Vou até o poço, lanço o balde para o fundo. Faço um esforço enorme ao puxá-lo para cima. Quando, enfim, consigo, encho a garrafa e a levo de volta.

- Pode colocar ali no chão, porque a pedra deixa a água sempre fresca e gelada – ensina-me uma velha conhecida da vida na mata.

Leila volta à cozinha reclamando do calor e pede à mãe que prenda seu cabelo. Eu me ofereço para fazê-lo. Desconfiada, a menina me entrega o rabicó e senta-se no banco. Tranço o cabelo volumoso e comprido dela em uma trança raiz. Ela agradece e corre conferir o resultado no pequeno espelho no quarto da mãe. - Pareço uma princesa, olha, olha! - vibra ela sorrindo com os olhos.

Flamel também vem à cozinha. Com a cara fechada reclama de fome. Edilene oferece biscoitos ao filho que, para incrementar, adiciona arroz e feijão como recheio e come orgulhoso a iguaria que acabara de criar.

Vamos ao quintal e ficamos a observar a movimentação dos cachorros e o belíssimo balé dos galhos que dançam com o vento. E o vento trouxe consigo Leo, galopando a rédea solta em um cavalo marrom. Rapidamente ele chega até a porteira, desce e amarra na cerca seu companheiro de lida. As crianças já correm em direção à mesa enquanto o pai vai até o poço lavar-se. Ele tira o chapéu e deixa a água que cai do caneco escorrer pela cabeça. Depois, lava as mãos e vai para a cozinha. Edilene coloca as panelas na mesa e todos se servem de arroz, feijão, carne de gado em molho e batata frita. Ao longe, a mata descansa.

O sol brilha e arde na pele morena de Edilene. Ela coloca uma bacia plástica azul enorme, cheia de louça suja, na cabeça, tomando a direção do córrego que passa nos fundos da casa. Lá se lava louça e roupa, mas, além disso, serve de passatempo para as crianças. Com roupas de banho, os três estão prontos para o divertimento.

Pego outra bacia plástica menor e verde, mas igualmente abarrotada de louça e sigo logo atrás de Leila e da nenê. Vamos pela lateral da casa, bem rente à cerca. Há inúmeras folhas secas contornando o caminho. Seguimos assim até onde a terra de chão batido do quintal da casa encontra o verde do mato. Depois, prosseguimos, sempre rente a uma cerca que demarca o que é pastagem e o que é vegetação nativa preservada, por uns 200 metros até chegarmos, por fim, ao córrego.

Edilene tira os chinelos carcomidos na parte da frente e entra na água fresca. Coloca as louças sobre um pequeno balcão de madeira

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instalado dentro do córrego e o serviço começa. Já Flamel, Leila e a nenê brincam correndo um atrás dos outros, fazendo caminhos por entre a água. Vez ou outra Edilene mergulha para refrescar o corpo e a mente e, enquanto lava, conta um pouco sobre sua vida. A feição serena e faceira da cabocla se fecha.

Já sofri muito nas mãos de um antigo namorado. Ele que é o verdadeiro pai do Flamel, mas nunca se importou com o menino, mal conheceu ele. Foi os piores dias da minha vida. Mesmo grávida, ele me batia, me maltratava, me deixava sozinha. Graças a Deus me separei dele e encontrei o Leo! Agora a vida é mais feliz, né... Encontrei o Leo, vim morar aqui. Eu adoro o silêncio da mata, os passarinhos cantando, a friagem da noite, aiai... Só vou pra Tucumã se tiver que fazer compra mesmo. Isso quer dizer a cada dois ou três meses e se não conseguir ir, se come o que a terra dá. Na rua é um calor, uma zoeira. Minha cabeça não aguenta, não.

Flamel volta da caçada no fundo do córrego gritando que tem um boi deitado lá. Com sua experiência de quase vaqueiro formado pela convivência com aquele que agora é seu pai, diz que o boi vai morrer. Faz um alarde e toma o rumo da casa, corre para contar a novidade a Leo. Vou até o local conferir a informação do matreiro. Realmente há um boi branco, imenso, com chifres que amedrontam qualquer um, estendido sob uma moita com os olhos parcialmente cerrados. Leila me chama para voltarmos. Pego minha bacia agora repleta de louças limpas e sigo ela, a irmã e a mãe de volta à casa.

Depois de guardarmos os utensílios, vamos descansar no quintal. Nos fundos da casa, em frente ao poço, surgem redes para o repouso. Todos fazem da rede balanço. E naquele vaivém, adormecemos. O vento sopra pela mata, refrescando o sossego das crianças e de Edilene.

Desperto e vejo que Leo e Everton já voltaram da lida e, sentados nas cadeiras espalhadas pelo terreiro, conversam com o patrão sobre o dia. Eles contam que, de fato, o boi que estava deitado lá pelas bandas do córrego havia morrido há pouco.

- Ele começou a fica assim no domingo passado, foi afinando, afinando, prancheou e depois de uns três dias só levantou pra bebê água. Tomô remédio, mas não deu. Tivêmo que parti ele em dois pedaços, por causo de que ele tinha quase uma tonelada. – narrou Everton. - Ah, e tem outra coisa, seu Juca, a onça andô comendo uns bezerro aí. – fala Leo com a voz mansa.

Um arrepio me gela a espinha.- Onça, como assim onça? – pergunto com certo pavor. - Isso não carece de preocupação, moça, porque ela nunca se aproxima da casa. Ainda mais quando tem movimento de gente. – assegura Leo, rindo de meu susto.

Vou até a frente da casa da família de Edilene e me apoio na cerca para observar a mata. Já estava escurecendo e os últimos raios de sol coloriam-na de dourado. Um casal de araras azuis voa procurando abrigo em um coqueiro. A floresta se prepara para dormir.

Volto para a casa e as luzes alimentadas pela energia solar já começam a ser acesas. São poucas e fracas, mas, mesmo assim, consigo encontrar minha mochila que havia deixado em cima do baú velho. Vou até a cozinha, onde Edilene já prepara o jantar. Ela me indica o caminho até o quarto de banho que fica perto do poço, no quintal. Está um breu só. Seguro o sabonete e a esponja em uma das mãos e uma lanterna na outra para ir iluminando o caminho. Chego até um pequeno espaço feito de madeira, sem cobertura. Abro a porta meio descolada do restante, entro e fecho-a. Ilumino um lado. Há uma grande bacia plástica cheia d’água encaixada em um suporte feito de madeira. Um pouco mais acima uma caneca de plástico escuro pendurada em um prego. Do outro lado, um prego para pendurar a toalha e a lanterna. O céu estrelado e a luz do luar por entre os coqueiros alumiam a hora mais esperada do dia. Mergulho a caneca n’água, um tanto às cegas, e vou derramando aos poucos a água gelada, que escorre pelo meu corpo ainda quente e eriça os meus pelos. Aos poucos me acostumo e o que era estranho se torna revigorante. Findado o banho e tendo a lanterna em punho, faço o caminho de volta e vou me vestir. Na cozinha todos já me esperam para a janta. Edilene serve o que sobrou do almoço. Enquanto jantamos, rimos e vamos revivendo o dia que tivemos.

Depois de jantarmos, nos reunimos todos na sala que, ao contrário da maioria das salas, não tem sofá e, sim, as mesmas cadeiras que antes estavam espalhadas pelo quintal. A televisão de 16 polegadas só é ligada no horário nobre. As artimanhas da novela Avenida Brasil divertem o casal e as crianças. Eu já não consigo deixar os olhos abertos. Um pouco da claridade da noite entra pelas frestas das paredes. Os ares da floresta também parecem invadir o ambiente.

Levanto e me debruço no parapeito da janela. Ponho-me a mirar o que muitos dizem não estar lá, a ouvir o que poucos conseguem ouvir, a perceber o que ela me ensinou neste dia. Não precisamos de muito para termos tudo. Meu lugar no mundo pode ser qualquer lugar. No meio da Floresta Amazônica, a mais de quatro mil quilômetros de distância, eu encontro o meu lugar.

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à de

riva

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rotas / arquitetura da memória

E aí, tudo bem?Como te foi de viagem? De Santa Maria até São Sepé são uns 60 km de distância, geralmente é tranquilo. O centro da cidade não fica muito longe, umas quatro quadras. Dá uns 200 metros. Pertinho né? Sim, aqui até parece um sítio pra fora, tem inclusive essa estradinha de chão. Não foi difícil de achar? A casa é meio escondida aqui no fim da rua, mas com o aqueduto, o formato de “L” da casa e o teto largo de telhas não tem erro. Ali dentro é que ficam os restos do engenho e do moinho e lá atrás fica o lajeado. Já te mostro.

Mas entra, não repara na bagunça. Obrigado por ter vindo conhecer a casa. Sim, todo o resto do chão, exceto a cozinha e o banheiro, e do telhado da casa é de madeira. De noite tem um jeitão de filme de terror. É um silêncio: tu pisa e o pof pof pof ecoa por tudo. Mas nunca vimos nenhuma assombração. Bom é no verão, quando venta e estendemos as cadeiras de praia ali na frente. Bem fresquinho.

É, ela é bem antiga, tem mais de 100 anos. Tinha o ano “1909” pintado em cima da entrada lá do canto, não nessa daqui do meio. Pra tu teres uma noção, também naquela ponta da casa havia uma placa azul com os dizeres “Campo Cristóvão Colombo”, porque as ruas ainda não tinham nomes. Era puro mato. Só a Usina Elétrica, demolida neste ano, na frente da casa, servia como ponto de referência e a placa azul de identificação.

Aqui é a sala, tem esse conjunto de três sofás verdes antigos, inclusive essa máquina de costura que a minha vó usava pra arrumar as roupas dos meus tios. Quem comprou ela foi meu vô, Pedro Loch De Franceschi, com o dinheiro do trabalho de pipoqueiro, mas isso foi antigamente, quando existia o cinema de São Sepé, lá na Praça das Mercês. Essa parte aqui da casa não existia até o casamento dele com a minha avó, a Alda Bolzan, lá por novembro de 1945. Tem uma foto na Revista do Centenário de São Sepé que mostra bem como era – tinha outro galpão mais baixo entre o principal e a parte residencial.

Além dessa reforma, feita para abrigar o casal que se juntava, construíram a atual cozinha de concreto e uma nova roda hidráulica para o moinho. Os recém-

casados passaram a morar aqui junto com os pais da Alda, meus bisavós José Bolzan e Catarina Roso Bolzan. Depois nasceram minha mãe e meus oito tios – todos criados nos cinco quartos daqui. Eram quatro homens e cinco mulheres.A maioria deles veio à luz dentro de casa mesmo – só a minha mãe, Fátima, e o meu tio mais moço, o Jorge, nasceram no hospital. A minha tia mais velha, a Ieda, me falou rindo que, de tanto moralismo e pudor que os mais antigos tinham, não deixavam nem mesmo as mulheres verem a mãe parindo os irmãos em casa. “Tudo era feio, tudo não podia”, me contou sorrindo, nessa vozinha de vó querida.

A própria minha avó deve ter conhecido o meu avô de uma forma muito controlada, machista. Talvez, num dos atendimentos do moinho aos agricultores da região, o vô, também descendente de imigrantes italianos, tenha aparecido para moer milho ou trigo e visto ela. Nas portas do galpão ali na frente, era a entrada do moinho e não havia balcão, os clientes eram recepcionados diretamente. Então, pode ser que tenha sido feito um acordo para uma união afetiva. Não se sabe ao certo por que eles nunca falaram disso, né? Vai ver tinham vergonha.

O meu vô era magro e alto, tipo jogador da Azzurra, a seleção da Itália, e a vó Alda era bem gordinha, quieta mas atenciosa. O vô trabalhava numa colônia italiana a uns 30 km de São Sepé. Ele era um dos oito filhos do italiano Antônio Giuseppe De Franceschi, que chegou ao Brasil no fim de 1895, e da descendente de alemães Verônica Loch.

O Moinho é um mundo

Em São Sepé, interior do Rio Grande do Sul, uma das casas mais antigas é símbolo da presença italiana na cidade, abrigando as primeiras atividades industriais e muitos entrecruzamentos de vida.

reportagem marcelo de franceschifoto arquivo pessoal

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A mãe lembra que o vô Pedro acordava os filhos mais novos às seis da manhã para irem à escola das freiras e os mais velhos para ajudar no moinho.- Tá na hora! Vamo levantar!, gritava depois de abrir essas portas duplas dos quartos. De tarde, os que estudavam de manhã tinham que ajudar nos trabalhos, às vezes seguindo até dez horas da noite.

Bonita a vista do pátio daqui da janela, né? Têm os varais, as duas parabólicas, os cachorros, a horta e ali à direita é o bosque de laranjeiras. Diz a mãe que foi o vô que plantou. Também tem pé de abacate, pera, butiá, ameixa, uva e caqui. Ali à esquerda, junto com a casa, fica o galpão de teto de zinco com churrasqueira que a gente usa nos domingos ou quando tem alguma visita ou aniversário. Colado naquele espaço, tem o galinheiro e os chiqueiros com os bichos que o pai e mãe criam, que eu e meus irmãos também ajudamos a cuidar.

Quer ir lá ver os porquinhos depois? É só descer a escada de madeira que sai da cozinha ali no galpão de zinco. A água do lajeado já tapou toda a escada, acredita? É que tiveram algumas enchentes, tão fortes que taparam quase toda essa área, encheram os porões, e os animais tinham de ser soltos pra não se afogarem. Quase que a água entrava dentro de casa. Depois a gente desce ali, onde dá acesso à beira do lajeado e ao aqueduto de tijolos.

Ah, aqui embaixo do assoalho desse quarto chegou a funcionar uma fábrica de gasosa, sabia? É gasosa, um antigo refrigerante, do tempo do guaraná de rolha. Tu vês, não ofereciam só a moagem de milho e trigo, mas também fabricavam e vendiam gasosa de limão e de guaraná. O porão era o lugar ideal pra armazenar as garrafas: refrigerado, úmido, abrigado do sol naturalmente. A fórmula da bebida foi perdida, mas dizem que veio da Alemanha, já que os primeiros donos daqui eram alemães. Tem uma gravação de um tio-avô dizendo que faziam

um “xarope”, acrescentava-se essência de limão, mais um líquido chamado “espumantina”, e água e açúcar para formar a gasosa.

O nome do comércio era Fábrica Alcalina, depois passaram a chamar de Fábrica de Gasosa Bolzan e Irmão. Uma senhora já aposentada daqui da cidade, a dona Elmira Monteiro, de uns 88 anos, me falou que nunca tomou gasosa como a produzida aqui. Ela contou que, naquele tempo, os jovens, ao invés de tomarem chimarrão, tomavam gasosa. Compravam, iam e sentavam nas pedras do lajeado que era limpo. Já era um ponto turístico da cidade. Hoje, não tem como, está muito poluído, nos dias de chuva a água escurece muito por causa do esgoto que é jogado direto, e até fede um pouco. Sendo muito otimista, eu acho que daqui uns 100 anos despoluam e façam um saneamento na cidade toda.

A gasosaria só encerrou as atividades uns anos depois de meu bisavô, o José, ter adquirido a casa. Ele possuía uma serraria na colônia dele, mas queria ganhar mais e decidiu vir pra São Sepé com a família. Naquela época, a cidade era um povoado menor do que é agora. Veio ele, a mulher, dois filhos e uma filha, a Alda, em abril de 1927. Vendido o negócio na colônia, ele chegou e comprou o moinho colonial que pertencia à descendente de imigrantes alemães Catharina Carolota Felícia Kruel, casada com José Claro Monteiro, dona também de boa parte dessa região central da cidade. Ali no galpão ainda tem uns baldes e um garrafão verde, grande mesmo, de meio metro, que se acredita serem da época da gasosaria, vamos ali dar uma olhada?

Dá pra ver que as tábuas originais do chão estão bem deterioradas – tem várias madeiras preenchendo as partes podres que já quebraram. O telhado também tem várias goteiras, ali tem umas frestas entre as telhas, olha. Mas o pai e a mãe já fizeram uma baita reforma este ano trocando uma parte. Os gatos que costumam andar nas toras que sustentam o teto, caçando uns ratos de vez em quando.

Aqui funcionavam as engrenagens do moinho, que acabou dando nome ao lajeado, e lá no fundo tem as máquinas do engenho. Do moinho, eram essas quatro rochas grandes em forma de círculo aí que trituravam os grãos de milho e trigo.Os agricultores da região, após períodos de safra, vinham a cavalo, de carroça ou de carreta de boi procurando os trabalhos de moagem. Teve casos de agricultores que traziam a carreta cheia e ficavam uma semana esperando para irem embora. Meus tios botavam os sacos numa daquelas duas balanças ali, tudo à mão; pesavam e escreviam com um

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pincel de lata enrolado com crina de cavalo: ‘José da Silva’ tantos quilos. Pelo que eles me contaram, um saco de trigo de 60 kg levava uma hora para ser moído, dando em torno de 42 kg de farinha. De milho, já levava uma hora e meia e rendia uns 50 kg.

Do lado de fora que ficava a roda, que tinha uns seis metros de altura, mais ou menos. A água vinha no aqueduto, caía na roda e movia tudo isso. Só que a roda de madeira não girava 24 horas. Existia um sistema de “calha móvel”, que segurava a água para que não entrasse no aqueduto. No forte do verão, quando meus tios queriam, seguravam a água baixando uma tampa, uma tábua controlada por um arame que ficava disponível aqui dentro, enrolado. Além dessa tábua de contenção, havia outra parte de madeira no fim da calha, que permitia deixar a água cair na roda ou não, para assim parar o movimento da roda.

O vô Pedro só foi assumir a gerência do moinho lá por 1958, quando o vô José teve problema no coração – o diagnóstico da época pras doenças cardiovasculares – não podendo fazer qualquer esforço físico. Sem poder trabalhar, ele se mudou para outra casa, ali na esquina, e foi junto da mulher, Catarina Bolzan. Daí o vô Pedro teve que largar o serviço de pipoqueiro, e vir moer o grão.

De moagem em moagem, a superfície entre as duas pilhas iam se desgastando e, para que voltassem a esmerilhar bem os cereais, as pedras tinham que ser talhadas, ou “picadas”, com uns martelinhos. Nisso, pra levantar esse peso todo, as de cima tinham que ser levantadas girando umas hastes que faziam subir um gancho, encaixado em furos laterais. Imagina a trabalheira. A vida era muito mais difícil.

Pra se aquecer no inverno tinha o fogão à lenha da cozinha. Antes do chuveiro elétrico, tomavam banho de bacia, com a água que buscavam de balde ali na Usina Elétrica. Diz que era limpa e saía quente do motor-gerador a óleo. A água só foi ser encanada aqui em 1970, quando foram na Corsan pedir uma licença, e tiveram que fazer um desvio para colocar os primeiros canos da casa. Antes

disso, o abastecimento era pelo poço lá do pátio, que está coberto.

As poucas coisas que havia pra se entreter era o rádio na sala – onde ouviam Beatles, Rolling Stones, Roberto Carlos e Jovem Guarda – e as matanças dos suínos. Um evento pra eles ajudarem no corte da carne, na fabricação da linguiça, banha e torresmo.

Alguns dos meus tios mais velhos tiveram que trancar os estudos e só terminarem um pouco depois. Fazer faculdade só puderam mesmo depois dos 20 e poucos anos. Uma tia minha bem louquinha, a Leda, que foi a primeira aprovada no vestibular da UFSM. Foi pro curso de História, em 1962, mas aí o vô não queria que ela fosse para a outra cidade. Ela insistiu tanto e se foi, mesmo sabendo que não contaria com o apoio paterno. A vó Alda que “pegava” um pouco do dinheiro do vô de vez em quando pra ajudar. Com a conquista, outros tios meus também foram estudar mais, outros ficaram.

Essas aqui são as antigas máquinas do engenho elétrico que descascava arroz. Dentro desses armários aí ficavam os geradores. Na janela, tem umas tábuas que dão pra fora naquela

parte de vidro que não abre. Por ali, saíam as cascas de arroz. Mas naquela época não existia essa uma preocupação com o meio ambiente. Inclusive, da antiga usina de energia elétrica daqui da frente, saíam baldes de óleo queimado e era tudo largado no lajeado.

O meu tio mais velho, o Adenir, já com uns 60 anos, soube dizer de cabeça que o engenho chegou em 22 de fevereiro de 1961, de São Paulo. Ele decorou de tanto ele ver a data escrita numa das madeiras das máquinas. Os valores dos serviços do engenho ele não conseguiu lembrar, mas tinha uma proporção de troca: de 100 quilos de arroz em casca, o produtor levava 60 quilos beneficiados e ainda pagava pelo trabalho, claro. As máquinas do engenho funcionaram até mais ou menos o ano que eu nasci, em 1989.

Antes disso, o tio e o vô ainda resolveram oferecer também o serviço de colheita de arroz e de trigo com umas três máquinas agrícolas próprias que eram guardadas lá naquela ponta da casa, onde tinha um galpão gigante de madeira e teto de zinco. Depois que o vô se aposentou e vendeu as máquinas, ele deixava uma figura folclórica de São Sepé dormir lá, meio que num cafofo: o “Pufa”. Era um

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senhor já velho, negro, morador de rua, mas que nunca tinha nos incomodado. Quando a gente se mudou pra cá, em 2001, levamos as coisas dele pra um cômodo ali na antiga usina elétrica. Ele gostou e viveu ali até 2012, quando deu um incêndio e ele morreu. Bota coisa braba!

No outro lado dessa porta de madeira, que trancamos de noite, é a serraria do Clóvis e do Marcos Francisco Becker Gonçalves. Eles são irmãos e alugam aí desde 1993. Volta e meia, o vô Pedro se sentava em um banquinho na porta de entrada da oficina e passava a tarde inteira conversando, contado histórias de dificuldades dos tempos das lavouras de trigo da colônia dele e de situações engraçadas da vida, como pescarias e garimpos. E ainda fazia umas indiadas. Tipo, ele construiu um forno para fazer carvão num terreno aqui perto e perdia o controle do fogo e os bombeiros vinham, e criou uma vaca aqui no porão e abelhas no pátio, de vez em quando dava uns enxames que não podíamos chegar perto, isso nos anos 1990. Eu lembro um pouco.

A minha avó materna, a Alda, eu não cheguei a conhecer. Ela morreu em outubro de 1990, no segundo AVC dela. O vô morreu da mesma causa, em janeiro de 2000. Um ano e um mês após isso, a gente – meu pai, o Hélio, a falecida vó Joaquina, e os meus irmãos, o Gabriel e o Hélio Filho – se mudou pra cá porque a minha mãe, a Fátima, ficou com a casa. A gente morava numa casa bem legal também ali na esquina, onde o vô José e a vó Catarina moraram depois de aposentados, que o pai e a mãe compraram – lembro deles fazendo contas, calculando quanto iam ter que desembolsar pra não pagar mais aluguel. Mas agora vamos ali fora que vou te mostrar o aqueduto melhor.

Massa, né? Lembram os Arcos da Lapa do Rio de Janeiro, só que de uma linha só, menor, e com os tijolos expostos. São nove voltas mais a última parte que é quadrada. A base de metade está bem aterrada, que nem os Moais da Ilha de Páscoa, são altos como aparece numa foto

antiga. Quem construiu foi o vô José, pra trocar o material da antiga calha. Sim, o aqueduto anterior era de madeira. Só que vazava muita água, e vai ver dava mais problema pra consertar.

Cansado disso, ele resolveu erguer os arcos. Pelas fotos, ele era um sujeito parrudo, grande. Primeiro foi fazendo os moldes de madeira, o que tinha noção, já que fazia alguns móveis como armários, cristaleiras, mesas e outras coisas. Claro que ele começou pelo fim, a partir da casa, indo até a ponta por onde entrava a água. O tempo para colocar tijolo por tijolo não deve ter sido muito, uns seis meses que é uma temporada de entressafra pra não ter tido prejuízo. O trabalho ficou tão bom que fizeram aquela placa de concreto ali do meio marcando o dia do término em alto relevo, pra comemorar: 04/03/1937.

Devia ser bom brincar aqui quando corria água que nem meus tios faziam, viam de biquinho e só paravam antes de cair na roda. A água vinha do lajeado através de uma vala que começava numa pequena barragem de concreto, mais lá em cima, também feita pelo vô José. Dizem os mais antigos que o açude formado pela barragem e o resto do curso da água, na época do moinho colonial, era o piscinão de São Sepé nas tardes de verão. O povo ia pra lá se refrescar e era possível pescar nas águas ainda limpas na época. O lugar também era o ganha-pão de umas dez lavadeiras de roupas, que prestavam o serviço para várias famílias sepeenses. Cada uma tinha sua pedra no lajeado e depois de esfregarem, deixavam os tecidos ali pra “quarar”, sem medo de serem roubadas. A paisagem devia ser muito legal com a roda do moinho.

A roda só foi parar de girar por volta de 1977. Não só por causa da poluição e da diminuição do curso d’água do lajeado, mas também pelo uso constante, o material foi se deteriorando e o vô Pedro continuou apenas com as máquinas do engenho de arroz, e foi desmanchando a roda aos poucos, conforme iam apodrecendo as tábuas. Seria sensacional se um dia a reconstruíssemos. Eu vejo rodas em eventos turísticos e me pergunto se não daria pra construir uma aqui.

Pois é, é complicado. Era basicamente isso. Não quer ficar mais? É cedo, tens certeza? Bom, tu que sabes. Valeu por visitar a minha fazenda, a minha xácara. Pra mim é como um refúgio – um dos melhores lugares pra descansar. Te cuida e apareça sempre que quiser.

ÁGUAS FUTURAS

Todos os filhos de Pedro De Franceschi gostariam que o patrimônio, junto com a história da cidade, fosse conservado. Entretanto, reformas e restaurações custariam muito caro. Eles ainda aguardam pela Associação Italiana de São Sepé, a AISS, criada em 2003. A organização almeja adquirir a casa para restaurá-la, torná-la sua sede e mantê-la como um museu, mas não há data definida para sua efetivação. “Desde a fundação da Associação, é o nosso sonho. É um patrimônio italiano único da nossa região que as autoridades deveriam manter, mas ninguém dá bola”, declara o membro da AISS, Elson Giuliani. Ele adianta que pretendem buscar recursos no governo municipal e estadual.

Um projeto de reforma já foi elaborado por Gabriele Rech Santos, em 2012, no trabalho de conclusão de curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Franciscano. Segundo ela, a primeira etapa para que o projeto se torne realidade, deveria ser a despoluição do córrego do lajedo, porque se tornaria um lugar público, ficando muito mais fácil das pessoas investirem e frequentarem o local. “Todas as cidades deveriam preservar a arquitetura que conta sua historia, infelizmente não é isso que acontece em São Sepé e em varias outras cidades”, diz Gabriele.

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a bordo / reinados recicláveis

Era uma vez... A chuva cai torrencialmente do céu de Santa Maria (RS), cambaleando os guarda-chuvas que se acumulam nas avenidas e becos. No ponto de ônibus, súditos escorrem impaciência e uma enxurrada de palavrões disputa o ambiente com a sonoridade do choro das nuvens.

Vinte minutos depois, a carruagem de metal cinza com listras verdes estaciona. A paisagem aos poucos se modificou: edifícios, casas, casebres, gradativamente. O castelo que procuro fica num beco estreito com casas que se justapõem. Estou prestes a encontrar uma soberana, mas não tinha ideia que conheceria uma princesa até adentrar a casa, encarar a montanha de lixo, ir até a cama de casal capenga e perguntar qual é a identidade daquela que ali repousa.

- Tereza Moraes Marques da Silva – responde-me com um sorriso. Mal consigo esboçar um sorriso de volta, ouço-a completar:- Nome de princesa. - Sim, de princesa. Marques da Silva ela herdou de mim - o marido aparece no pequeno espaço, entre um guarda-roupa e um armário. - Na verdade, todo mundo diz que é de princesa e é mesmo – Tereza é rápida para rebater a informação.

O príncipe imediatamente vira sapo e volta para a sala ao lado, onde está também Victória, bisneta de Tereza. Enquanto isso, encaro a figura de pele morena e cabelos curtos, ajeitando-se com dificuldade sobre a cama. Um curativo na perna é o que restou do atropelamento que a deixou dois

meses sem sair de casa, com as duas pernas quebradas. Nada, porém, que tenha afetado a memória vívida e a lucidez que ultrapassa a compreensão do possível, embrenhando-se por trilhas fantásticas.

Trata-se de decifrar enigmas entre os amontoados de papel, papelão, latas, frascos, mas também palavras e versos. Ali Tereza é princesa, catadora, parteira, palestrante, viúva, esposa, mãe, avó, bisavó e poeta. Além de vaidosa. Várias faces de alguém que se ajeita para tirar foto, esboça um sorriso interminável para contar histórias e lembra de detalhes que só um autor com a imaginação por entre bosques, dragões e fadas conseguiria.

Rimando cidadania

“Nós somos catadores, essa é a nossa profissão.

Por falta de estudo, Deus nos deu essa missão.

Trabalhamos com orgulho e garantimos o nosso pão,

Tem gente de carroça, outros de carro de mão,

Tem gente de calçado, outros de pé no chão [...]”

Uma estrofe e ela despertou, como a Bela Adormecida, para um amor incondicional: a poesia. Esta foi a primeira e muitas outras vieram. Hoje, são três livros publicados e um legado que vai muito além. As leituras durante a vida foram poucas,

no máximo Érico Veríssimo nas visitas à biblioteca. Assim, em cada poesia, a língua portuguesa é como um dançarino que baila no desconhecido. Por outro lado, sobretudo, são os versos que constituem partes chaves para entender a personalidade da contadora de histórias.

Tereza nasceu em São Borja (RS), em 20 de setembro de 1938. Foi batizada aos quatro anos na Igreja Católica e essa é a primeira lembrança de infância que lhe vem à mente. Como indica a tradição, o padre derrama a água benta sobre a cabeça do batizado. Choro, susto. As reações de uma criança diante da ação podem ser as mais variadas possíveis, mas não chegam à fantástica história de Tereza.

- Quando senti aquela água gelada na minha testa, levei a mão na cara do padre, dei um tapão que tá louco – ela riAs artes da menina não paravam por aí. O passatempo preferido era brincar com os cachorros, mas o resultado era muitos pijamas rasgados e uma mãe furiosa. Talvez isso seja a motivação para escrever a poesia dedicada à mãe:

“Eu queria Ter minhaMãe embora fosse uma

Cruzeira, embora me picasseEra minha mãe verdadeira [...]

Uma irônica comparação, mas cuja última parte revela saudade. “Era minha mãe

Império de PapelãoPoeta, parteira, palestrante, viúva, esposa, mãe, avó, bisavó, além de, para viver, catadora de papel. Tereza, nesta história, também reina.

perfil géssica valentini

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verdadeira”. Aquela foi a última vez que a mãe levantou a mão para ela. Faleceu pouco tempo depois, assim como o pai.

A família então se reuniu para saber com quem Tereza ficaria e decidiram mandá-la para a casa da madrinha, em São Paulo (SP). - Me colocaram no avião e fui parar lá.

Ainda não tinha me dado conta de que estava diante de uma mulher fantástica, não por ser princesa, mas pelas contradições. Segundo Tereza, era 1942 e ela estava com quatro anos. De acordo com a Base Aérea de Santa Maria, o Aeródromo da cidade foi finalizado em abril de 1945, o que aumenta as chances de Tereza ter escrito este capítulo da própria história. Chegando ao apartamento da tia, imediatamente pediu para voltar. Porém, apenas a empregada estava em casa. Enquanto a mulher se ocupava da casa, Tereza conta que foi até a sacada e contemplou uma planta, para ela do tamanho de uma árvore. Decidiu se esconder, para que se compadecessem dela e a mandassem de volta. A tia chegou e entrou em pânico quando descobriu o sumiço da menina. Enquanto isso, Tereza tratou de ficar quieta. Ficava apenas ouvindo o que falavam sobre ela. Como ficava tonta ao olhar para baixo e contemplar os carros, ficou todo o tempo de olhos fechados, esperando que a encontrassem. Durante três dias, apenas bebeu a água que colocavam na planta e ali ficou até a encontrarem.

- Na hora a tia me colocou no avião de volta e eu vim para Santa Maria (RS).

O cunhado, casado com a irmã mais velha, foi buscá-la, e ela passou a viver na casa

dos dois. Cresceu assim, numa infância cuja maior alegria era decorar poesias em frente ao espelho, para declamar nas festividades do colégio.

Na adolescência, ia para um grupo de jovens a fim de participar de uma brincadeira que ela gostava. Os participantes faziam um cercado, colados uns nos outros. Uma menina e um menino vestiam-se de brigadianos e aguardavam a solicitação:

- Prende aquela menina – pagando, para isso, a quantia de 50 centavos. Depois, outro se compadecia e fazia outro pedido:- Solta aquela menina – e pagava mais 50 centavos.

Foi assim até largar a boneca, ou melhor, até se apaixonar.

AMANTE

“O amor é lindo de Admirar quando duas pessoas se

Amam ardentemente eGravam tudo em sua mente [...]”

Tereza suspira. Aos 17 anos, ainda brincava de bonecas. Aos 30, mesmo com dois filhos, ainda ninava os pedaços de borracha com face humana. Fala de amor no tempo passado, abaixa a voz para que ninguém mais nos ouça. Tereza teve muitos amantes. A história com eles, sozinha, daria um livro ou, no mínimo, muitas poesias.

Arregalei os olhos quando ouvi a sucessão de tragédias amorosas na vida da personagem. O primeiro amor foi com mais de 20 anos. O rapaz se chamava Francisco Figueira e se conheceram na loja de bordados em que ambos trabalhavam.

- Ele era louro, alto, bonitão, e eu uma nega “daquelas” – Tereza fala sem nenhuma modéstia.

A irmã da catadora não gostou muito do sujeito, mas Tereza foi enfática na decisão de continuar namorando. Alguns anos depois, quando ela estava com 28 anos, casaram.

Francisco não permitiu que Tereza trabalhasse. Assim, ela ficava em casa bordando para a patroa da loja, onde o marido continuava prestando serviços. Poucos meses depois do casamento, engravidou. Mal nasceu o primeiro, estava grávida de novo. Em três anos, três filhos: Carlos Alberto, Paulo Roberto e Flávio Rodolfo.

- Eu era feliz – Tereza contempla o alto e sussurra.

Felizes para sempre? Bem, este capítulo se encerra com um “The end” inesperado e sem nada de contos de fada: o marido se engasgou enquanto comia um sanduíche e faleceu. A família passou a viver da pensão de viúva e de doces e salgados que ela fazia por encomenda.

- Sou formada em arte culinária – Tereza explica, mas não diz como aprendeu, nem quais são seus dotes ou por que o empreendimento não deu certo, mas foi levando doces a uma festa que conheceu o segundo marido.- Eu era uma nega bonita, isso diziam muito. Aí eu fui nessa festa e ele me viu.- Quem é aquela nega? - perguntou ele a um amigo.- Ela é viúva, faz doces pra fora – o amigo respondeu.Tereza volta à realidade para explicar o desfecho:- Percebi que aquele negro forte me olhava, olhava, até que veio conversar comigo. Aí gostei dele.

38 / proa

O homem era Arnaldo Bastos da Silva. Casaram-se tão logo o romance começou. Com ele, Tereza teve cinco filhos: Maria, Dagmar, Lindamar, Dilamar e Alaquemar. Se foi feliz... ela não sabe responder. Poucos anos depois, o marido teve uma congestão e nada o fez melhorar. Acabava assim, tragicamente, a segunda união.

O terceiro casamento veio em seguida, mas o relacionamento durou três anos. Até o marido aparecer morto, ao lado da cama. - O médico disse que pode ter sido ataque epilético – Tereza conta.Depois, ficou solteira por alguns anos, dedicando-se aos filhos, até o dia em que conheceu Gilberto, o atual marido. Segundo ela, estava como sempre: toda pintada, de salto alto, quando o avistou. Estava indo ao mercado e ele perguntou se ela queria companhia. - Não! – a resposta foi enfática, mas nada sincera. Na verdade, ela estava se fazendo de difícil, quando queria que ele insistisse e a procurasse.

Atrás da casa dela, alguns barracos servem de abrigo, quando alguém procura pouso. Naquele dia, foi Gilberto quem bateu à porta e ela disse que ele poderia ficar ali. Ele então interrompe a conversa, com o jeito rude, mas calmo de fala, para contar sua versão da história.

- Ela não me deixou nem uma semana lá. Foi lá me buscar e arrastou pra cá, pra cama dela. Ela me tentou e eu, como sou homem, vim – Gilberto ri. Nada de fim trágico ainda. Esta cena se passou em 1994 e eles viveram juntos nove anos, até se casarem, em 2002. Amor entre os dois? Isso é algo que ela desconversa enquanto Gilberto está próximo, mas faz questão de levantar a voz quando se trata de contar o que falta ao casal.

- Às vezes a gente quer um carinho, um agrado, e nada.

A relação dos dois não tem vírgulas, nem lacunas ou parênteses. Tudo é aberto, sincero, e Tereza não pensou duas vezes ao publicar a poesia “Te Quero”, no segundo livro, com dedicatória especial a Gilberto.

“Eu te quero comoTu és impliquentoBeberrão e nojentoTe quero no frio

No calor em espinhos

Te quero entre os matosOu então em folhas secas

Sentindo o perfume Das flores da primavera

Que já passou

Te quero de manhãDe tarde e de noite

Mas não te quero como meu esposoDesejo-te para outra mulher”

Mesmo assim, casou. Retira alguns álbuns de uma pasta e encontra as fotos da cerimônia. O que chama a atenção é um recorte de jornal, datado de 24 de outubro daquele ano. O número 22.374 antecede o nome dos dois, na convocação para o casamento. O dia esperado foi em 12 de novembro. Terminava um capítulo desse estranho conto de fadas, que soma aos filhos 38 netos e 20 bisnetos.

TEREZA MATRIARCA - Tinha lido uns livros de enfermagem que diziam que não podia gritar, aí fiquei bem quietinha, mas chorava, chorava – Tereza lembra séria do primeiro parto de sua vida. Nascia o primeiro filho: Carlos Alberto.

Mal o bebê chorou, ela diz que soltou um

suspiro de alívio e na mesma hora o pé escorregou, quase causando uma tragédia.

- Acertei em cheio a parteira. Ela voou no chão. Chamava-se Santa, era muito brava aquela mulher – uma gargalhada veio para finalizar a história do dia mais feliz de sua vida.

Depois desse, muitos outros dias parecidos se seguiram. Seja dela na sala de parto, seja ela própria como parteira para os vizinhos, que vinham chamá-la, seja das filhas ou netas. E, assim como os dias mais felizes, a família também protagonizou os dias mais tristes da vida de Tereza. Um dia, Gilberto assistia a um jogo da seleção brasileira, quando Tereza chegou de Porto Alegre. Tinha ido visitar o primogênito, que caíra de uma escada e estava há dias no hospital.

Tirou o casaco bege de lã que vestia e se preparava para entrar no banho, quando uma das netas entrou no portão, correndo, chamando pela avó.

- Eu já sabia: meu filho havia falecido.

Já no terceiro casamento, ela teve outro pressentimento. Um dia, olhou para o marido e disse:

- Mas, homem, estou sentindo algo tão ruim, acho que um dos meus filhos vai falecer.- Está louca mulher! Vira essa boca pra lá, não vai acontecer nada – o marido tentou afugentar o presságio.

Dias depois, Flávio Rodolfo, então com sete anos, chegou em casa se queixando de uma dor no peito. Em seguida, os dois foram para o Hospital Universitário, de onde o menino só voltou morto.

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Alguns anos mais tarde teve outro presságio.- Sabia que ia conhecer alguém e ia gostar e viver com ele, mas não ia ser feliz. - Alguém quem, dona Tereza? – indago, enquanto faz alguns movimentos indicativos com a cabeça, querendo apontar para o outro cômodo, onde Gilberto estava.

Apesar disso, é todo o legado, inclusive Gilberto, que a faz sorrir e instiga a criatividade da matriarca. Ela até montou um grupo de teatro. Natal, páscoa, aniversários, qualquer data especial é motivo pra ela pegar linha, agulha, restos de tecido e compor figurinos. O lixo vira arte. Para ela, muito mais que isso: o lixo vira luxo.

RESTOS DE VAIDADE

Um, dois, três. Os olhos se perdem na contagem. Mais de cinco dezenas de esmaltes tomam quase toda uma prateleira. Hidratantes para o cabelo e corpo, perfumes de todas as formas e marcas e óleos de massagem se espremem no armário. A maioria, restos da vaidade de alguém. Restos que para outros chegaram ao fim.

Na parede, colares verdes, amarelos, azuis, vermelhos, curtos, longos, de pedras, pérolas, enfileiram-se feito ornamentos, como se fossem quadros. Exagero para muitos, descartáveis para todos aqueles cujo destino deste luxo foi o lixo. Para ela, um arsenal de guerra, para uma princesa que se preza e todos os dias vai à luta em busca de cidadania e dignidade.

- Eu sou exibida! – e poucas definições servem tão bem a Tereza quanto essa, que ela mesma dá.

Se vai catar papel, começa o ritual. Primeiro, deita o olhar sobre as unhas compridas, feito garras afiadas, e analisa se precisa de retoque. Depois, lambuza os lábios de ponta a ponta e sorri para a imagem no espelho. Abre o guarda-roupa, retira um saco, escolhe uma minissaia e uma blusa da moda, como define, e sobe no salto. Alguns saltos são colados, outros retocados, lascados. Tudo, porém, sustenta a beleza reciclada com restos de vaidade. Uma beleza (re)construída e completamente inteira, sem nada de modéstia.

Além disso, quando precisa escrever, diz que qualquer coisa serve de inspiração, por isso não guarda rascunhos.

- Escrevo uma poesia num instantinho. Se vou fazer um livro, em um mês escrevo todas.

Ela mostra orgulhosa a primeira edição, já esgotada, e a oferece como exemplo do que chama de “dom”. Os outros livros ela guarda numa sacola de mercado. Ali é o único lugar em que é possível encontrar exemplares. Cada um custa R$ 10, o que ajuda na renda de catadora, mas raras vezes alguém aparece para comprar.

- Por que a senhora cata papel? – continuo.Sorri, radiante, para responder:- Porque adoro. Saio bem feliz com o meu carrinho.

Uma resposta inusitada, mas provavelmente sincera. O carrinho trouxe os livros, a casa, o sustento dos filhos, uns trocadinhos até para poder emprestar aos vizinhos. Trouxe episódios que nos dias mais entediantes da existência trazem um sorriso à face, como uma viagem feita ao Uruguai, quando conta ter rasgado o vestido para dançar tango. - Vamos escrever, dona Tereza? – pergunto,

quando ela faz menção de que a história acabou. Não quer escrever, quer recitar, de cabeça. Fita-me e pergunta:- Sobre o que quer que seja a poesia? - O tema a senhora, dona da casa, que escolhe – respondo. - Então tá, eu começo.

“Hoje recebi um telefonema E não esperava que fosse me trazer tanta

alegria Que eu fosse conhecer uma moça tão meiga

Tão educada, que me cativouCortou o coração

Deu-me até vontade de chorar De tantas conversas boas que tivemos

Tantas horas boas que passamosDivertimos muito

Conversamos muitoFiquei encantadíssima com a meiguice dessa

moçaEsta moça chama-se Géssica

Géssica, meus parabénsQue Deus ilumine teus caminhos

Continue com essa meiguice Com esse encanto e com essa doçura

Deus te abençoe hoje e sempre.”

Participar dessa vida significa juntar as peças e compreender os entulhos de imaginação, lixo e luxo que há ali. Talvez, uma tarefa sempre inacabada.

Sei apenas que essa é Tereza, “Princeza” de um concurso de beleza, cuja faixa foi escrita por alguém que pouco conhecia contos de fada ou a língua portuguesa. Sei que esta é Tereza, que faz questão de dizer que concluiu um curso de informática, mas cujo único bem para utilizar os conhecimentos adquiridos jaz submerso em escombros na sala de estar, em forma de tela escura. Sei que esta é a mulher que sempre sonhou ser famosa e que agora vejo refletida na tela da TV desligada. Não é como sempre quis, mas é um lado real do conto.

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resgate

Chovia aos cântaros, contestando o morto, que também se recusava a viver nos dias treze de cada mês. Exatos treze dias passados desde aquele primeiro de julho de 1952, quando foi encontrado pela índia Al-zira, a governanta, debruçado sobre a escrivaninha onde lia pela tarde, Marcos Antônio da Silva, senhor daquelas terras, fenecia.

- Morreu num dia treze, frio e cinza, abaixo de chuva de muitos dias, que fez alagar o Saicã.

Não raro, voltam os homens a ocupar o mesmo espaço de seus ante-passados. É da natureza social e humana dos corpos. Sessenta e um anos depois, estávamos no mesmo lugar, mas sobre nossas cabeças peregrinava um sol terno, e o dia estava morno. Fizemos o percurso em aproximadamente uma hora. Em média, quatro pessoas por automó-vel. Fevereiro, na Campanha gaúcha, é o mês menos aterrorizantemen-te quente da estação. Conduzíamos em cortejo, todos os automóveis em velocidade menor na estrada de chão, a escoltar o carro-fúnebre guiado pela moça encarregada pelos serviços.

À esquerda da estrada, vimos surgir a comunhão de pequenas casinhas de um só morador, tantas tortas ou esburacadas, em contraste com duas grandes construções de altas paredes, balaustrada e brancura ce-lestial. A capela da Família Silva está saliente em meio ao descampado

do lugar. Desde 1952, jazem ali os restos mortaes do nota-bilizado antigo senhor destas terras, Marcos Antônio da Silva. Que foi carreteiro, depois estancieiro. Nas adjacên-cias, ergue-se a Vila Capela do Saicã, com uma extensa e larga via central que leva o nome do ilustre morto.

A vila é pequena e dista dezesseis milhas do município mais próximo, Rosário do Sul. Ainda pequena, como era no passado, hoje menos pobre, o vilarejo resiste formado por pequenos agricultores, pequenos pecuaristas e uma massa de peões e ajudantes do campo, herança laboral dos antepassados.

Grosso modo, a Capela do Saicã convinha, no passado, como arsenal de empregados às gigantes estâncias do en-

O ÚLTIMO SENHOR

Atención pido al silencioY silencio a la atencion

Que voy em esta ocasión,Si me ayuda la memoria,A cotarles de mi historia

La triste continuación. [estrofe inicial do manuscrito do poema “Martín Fierro”, de José Hernández]

texto e foto bibiano da silva girard

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torno. Na Fazenda São Marcos não era diferente. Desde Alzira até os peões, muitos de nome desconhecido, todos tinham alguma ligação, de origem ou de parentesco, com o vilarejo. Pouco mudou. Vê-se ainda a silhueta de cava-larianos indo e vindo no lusco-fusco atrás dos postos de trabalho que se abrem com as lavouras de soja e arroz em época de plantio e colheita. Nos outros meses do ano, é o serviço de campo, com a pecuária, que ajuda no sustento da grande maioria.

Por aqui, quem não é parente é contraparente, quem não conhece a mãe, sabe quem é o pai, e quem não é vizinho de casa vem a ser colega de trabalho. Assim é e sempre foi. Desde quando a vila era um amontoado de choupa-nas e outras poucas construções com tinta.

No cemitério, as covas rasas, ao fundo da imponente capela da Família Silva, onde alguns familiares entram e fazem o sinal da cruz, mergulham num capim enferrujado. Ao longe, as plantações brilham verde e a vida do campo segue. Passa o contorno de um trator levantando um fino risco de poeira ao longe. Ali, talvez seis dezenas de pessoas aguardam o fim dos ritos. Poucos são os que não pertencem à mesma família, sejam afastados os galhos da genealogia.

A dubiedade da vida se estende à atmosfera imprecisa da morte. Quatro meses depois, em julho de 2013, voltamos à chácara onde toda essa história começou. Não exatamente à sede da Fazenda São Marcos, mas à casa onde seis personagens que habitam os tortuosos caminhos da fantasia de uma família prescrevem uma memória. “É melhor guardar a história, porque já estamos velhos e podemos esquecer”, disse-me um dos netos do velho.

A casa do Posto Novo foi construída dentro do território da São Mar-cos como herança do pai a um de seus seis filhos, Maroca, retratado na parede. Assim foi com todos os outros cinco filhos. Apenas Firoca, um deles, se sentindo traído pelos irmãos na partilha das terras, suposta-mente como repressão ao casamento fora das expectativas da família, distanciou-se geograficamente. Hoje, os primeiros moradores da São Marcos distam seis gerações dos tataranetos, afastados temporal e so-cialmente. O mar verde agora é colcha de retalhos.

A casa do Posto Novo é uma edificação construída em 1942 por Ma-roca, marido de Ana Herondina, ambos afáveis em seus retratos na pa-rede. De extensões medianas, a casa tem a altura dos altos telhados do pampa e vestida engenharia da época. Nas paredes do sótão, dois suspiros dialogam com o murmúrio do vento. É na parede do corredor central que os seis interrogam os passantes.

Da entrada frontal em direção à cozinha, o primeiro a encarar o pas-sante, mesmo que se tente desviar o olhar, é o velho Marcos, cordato, traços agressivos, cabelos brancos, olhos e orelhas de bugre.

- Bom dia. Digo mentalmente, e o velho permanece atento, mais alto do que eu. Passos seguidos e volto o olhar. Sua esposa, Alexandrina, ao seu lado, agora também me vigia. De todos, é o sorriso suave de Ana He-rondina, num vestido sedoso azul, que mais chama a atenção. O último da fila, Maroca, dono da casa e esposo da sorridente de colar, tenta ser sério em momento espirituoso. No retrato mais alto vê-se Miguel, filho do casal, morto bebê pelo crupe. Central, a única fotografia do grupo é de Gonçalina, falecida em 1996 aos 100 anos. Mãe de Herondina, seus netos a chamavam de Mãe-Velhinha.

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AQUELES DOIS BOIS BRANCOS E A CARRETA INEVITÁVEL

A Fazenda São Marcos, que englobava as terras onde hoje mais de nove casas existem, entre elas a Posto Novo, tinha como limite ao sul o cemitério dos Trindade, e ao norte a Coxilha Alta, estando a Vila Saicã a nordeste.

A areia onde enterraram os Trindade já peregrinou para todos os lados, e agora nem mesmo se sabe o lugar certo das covas. A terra sobe, desce, faz curva e ondula, tapando e destapando a cercania que abriga os túmulos. O areal não dura um raio amplo, mas demuda o solo aos poucos. Da sede da São Marcos avista-se a terra amarela onde existe osso como pedra e pedra como osso. Ali se iniciava a desmedida estância.

Os dois bois brancos escolhidos a dedo muitos anos antes da morte, permaneciam so-bre o verde achegado da sede da Fazenda. Ao lado da casa principal, erguiam-se colos-sais paineiras e umbus em fileira ao encontro da parreira dos fundos, onde Alzira, a índia governanta, a única além de familiares admitida a entrar nos aposentos do velho Marco, assentava uma larga cadeira de vime logo o término dos trabalhos caseiros da primeira parte do dia, que se estendia até o sol das quatro, para talhar guisado de charque.

As terras de Marcos Antônio se espalhavam por colinas, coxilhas e pequenos bosques hidrográficos. À frente da casa, avista-se o leste, para as bandas de Rosário, onde foi, por cinco anos, entre 1925 e 1930, atuante conselheiro legislativo. A cavalo, atravessar as cercanias da grande fazenda consumia uma hora e meia de vida, ou mais. Dependia da boa vontade do arroio Saicã, que até hoje inunda a área com frequência.

Se os mortos acompanham seu cortejo fúnebre, no voo leve da alma, o espectro de Mar-cos Antônio viu seu finado corpo ser carregado por uma carreta de bois, assim como havia ordenado tempos atrás, sob forte contenda de parentes. Os dois bois brancos faziam parte do rebanho de duas mil cabeças Shorthorn da fazenda, a mesma raça do touro Tarquino, reverenciado nas manchetes dos periódicos e que, trazido à Argentina em 1823, dera início à reprodução dos rebanhos prolificados pelos pascigos desprovi-dos de diferentes senhores do pampa gaúcho, uruguaio e argentino.

Ergueu patrimônio inicialmente charlando com bolicheiros. Numa caravana de dezes-seis carretas, percorria setecentas milhas entre Uruguaiana e Pelotas, entre ida e volta, abastecendo os armazéns por onde passava. Numa tarde, ao cruzar pela Vila do Saicã, Alexandrina enlevou seu coração, e as visitas passaram a ser quinzenais. Quando não chovia.

- Iniciou com uma carreta, terminou com dezesseis, conta quem viu.

Durante os treze dias que vegetou na cama, seu corpo se decompôs aos poucos e a chuva do lado de fora não cessou. Os netos sentiram. As costas do enfermo estavam tomadas por uma mancha cinza. Lembrou-se o velho pedido: levem-me numa carreta. A casa escureceu. A tempestade, que o capitão tanto execrava, perpetrava uma enchente histórica no arroio. Os campos baixos alagaram-se e as margens foram engolidas.

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O progresso havia chegado e sempre se soube que a esquife seguiria de automóvel até a vila, contrariando o velho em segredo. Mas o lodo não permitiu. Rebatidos pelo espelho traiçoeiro d’água que se formara, peões, alguns netos, filhos e outros presentes ergueram o pesado caixão e a cava-lo atravessaram o rio. Se o dia treze e a chuva tornavam o momento ainda mais ardiloso, a viagem de carreta serviu como consolo à alma. E assim foi feito, com dois bois brancos a puxar.

Sessenta e um anos depois, estamos novamente na capela dos Silva. Inusi-tado vestígio de tempos áureos, a edificação permanece cândida e imaculá-vel. Dentro, duas cadeiras servem aos que rezam de olhos fechados. Pelos cantos, potes com flores murchas e outras mais vivas. Nomes em pedras escuras, rosário pendurados e imagens sacras. Poucas são as flores de plás-tico. Pelo entorno, gente de todo o tipo, mas a presença dos incontestáveis senhores de terra naquele dia ocorria apenas no ramo da memória.

O neto, que no inverno passado havia solicitado guarida à memória dos seus velhos, parou de difundir aos quatros cantos as reminiscências até mesmo míticas de uma recordação que serviu como baú do tempo. Não como o avô, seus últimos dias foram na cidade, distante de sua horta, que há alguns meses já não florescia mais, e de sua casa, também estabelecida em território antes pertencente ao avô. Herdeiro da pampa, Lino Deoil, filho de Menoca, neto de Marcos, voltou aos seus. E a vida segue no cam-po, assim, com os netos a lavrar uma história sem ponto final...

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um copo de mar

Breve, conciso, claro, com frases curtas e sem rodeios. Parece estarmos falando em linguagem jornalística. No entanto, longe disso, estamos falando de Ernest Hemingway. Longe disso? Corrija-se: muito perto.

– Eu comecei a trabalhar no Kansas City Star porque eu considerava o melhor jornal dos Estados Unidos. Quando cheguei lá, me deparei com algumas normas de redação. Nos aconselhavam a usar frases curtas, com linguagem clara e vigorosa, sem adjetivos extravagantes. Aquilo me influenciou pelo resto da carreira. E não só eu, mas centenas de jornalistas, romancistas e roteiristas.

Que não se confunda o estilo enxuto e certeiro de Hemingway com o padrão jornalístico de lead e pirâmide invertida. A escrita de Hemingway era poética no ritmo, no significado imaginativo que o corte dos ornamentos resultava. Ademais, Hemingway tinha postura de jornalista: queria estar sempre no local dos acontecimentos. Talvez impulso próprio, talvez influência do Realismo Social, que já se esgotava na Europa e, um século depois, cruzava o Atlântico para encontrar, além de Hemingway, escritores como William Faulkner, John Steinbeck, William Saroyan, e Erskine Caldwell.

Apesar de ser um exemplo do namoro entre literatura e jornalismo, o autor sempre defendeu que suas matérias jornalísticas nada tinham a ver com seus escritos literários. Contudo, como escreve William White em 1967, “em seus mais de quarenta anos de escritor, Hemingway não só usou o mesmo material para os relatos de correspondente de imprensa e para os contos como também aproveitou peças com que enchera revistas e jornais, publicando-as virtualmente sem alterações em seus próprios livros, como contos”.

Alguns exemplos, aliás, são textos bastante conhecidos. É o caso de “Itália, 1927” – relato de uma viagem de automóvel pela Itália fascista –, que foi originalmente publicado no jornal The New Republic, em 1927, como matéria jornalística. No mesmo ano, o texto tem o título alterado para “Che Ti Dice la Patria” e é publicado como conto em Men Without Women and the First Forty-Nine Stories (1938). Esta última obra contém ainda “O Velho na Ponte”, publicado como notícia na revista Ken, em 1938. Mais um exemplo é uma matéria que Hemingway escreveu em 1937, como correspondente da Guerra Civil Espanhola, para a North American Newspaper Alliance. O texto chama-se “Os Motoristas de Madri” e foi incluído em Men at War (1942), coletânea que levava o subtítulo: Os Melhores Contos de Guerra de Todos os Tempos.

São exemplos claros da linha tênue (se é que existe essa linha) entre o fato e a ficção. Porém, essa indefinição entre o jornalismo e a literatura de Hemingway serviu como argumento para alguns críticos como Anthony Burgess afirmarem que as reportagens de Hemingway deveriam ser lidas como obra de ficção.

Caso ainda estivesse vivo, Hemingway talvez pudesse responder: “– Fato e ficção? Ora, não estão tão distantes. Há tanto de realidade nas obras de ficção quanto de ficção em textos factuais. É tudo observação e interpretação”.

Provavelmente seja quase impossível para um admirador de hoje tentar buscar as reportagens de Hemingway nos jornais daquela época. Entretanto, em 1967, foram lançados dois volumes nos Estados Unidos: Tempo de Viver e Tempo de Morrer, organizados por William White. São coletâneas de textos que o escritor norte-americano escreveu ao longo de quatro décadas. Os livros foram lançados no Brasil em 1969, pela editora Civilização Brasileira. Porém, são raros os exemplares que se podem encontrar hoje. A boa notícia é que a Bertrand, que detém os direitos autorais de Hemingway, pretende relançar os dois volumes em 2015. Quem tiver paciência para esperar poderá conhecer um pouco do lado jornalístico de um dos clássicos da literatura do século XX.

Tempo de relertexto gabriel eduardo bortulinifoto divulgação

Tempo de Viver - I, 299 páginas. Tempo de Morrer - II, 254 páginas.

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.

Organizador: William White. Tradução: Álvaro Cabral.

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para um homem navegar

texto olívia scarpari

Quando Clarice Lispector encontrou a Esfinge, durante uma visita ao Egito, as duas se entreolharam. “Eu não a decifrei, mas ela também não me decifrou”, costumava contar. Insondável como a própria figura mítica do deserto, a autora sempre receou a autorrevelação pública. Daí a postura relutante quando atuava como jornalista. Preocupava-se que um daninho autobiografismo pudesse escorregar nas linhas de um periódico – fosse por falta de assunto ou por mero descuido de sua parte. O sentimento ambivalente nutrido por Lispector em relação à imprensa se deve a sua longa relação com ela: estima-se que, em quase quarenta anos trabalhando para jornais e revistas, a Clarice-repórter tenha elaborado faraônicos cinco mil textos. Dessa produção, sua faceta como cronista é certamente a mais popular, multiplicando-se até hoje, no mercado editorial, compilações raspa-tacho e vídeos no Youtube nos quais são lidos trechos de seus ensaios sobre o cotidiano.

Em 2007, porém, a novidade foi descobrir que a escritora também entrevistava e o fazia com muita personalidade. Entrevistas, editado pela Rocco, reavivou o livro De corpo inteiro, resgatado do longínquo 1975: uma seleção de 35 das 100 matérias que fez entre 1940 e 1977 com ícones da cultura, como Pablo Neruda, Chico Buarque, Érico Veríssimo, Elis Regina, Ferreira Gullar. Cinco anos depois, Clarice na Cabeceira: Jornalismo (2012) é lançado, pela mesma editora, explorando ainda mais o repertório das entrevistas na obra da ucraniana naturalizada brasileira. Boa parte do escopo de ambos os títulos foi extraído de Diálogos possíveis com Clarice, seção que ela assinou para a revista Manchete de 1968 a 1969.

A autora de A hora da estrela deixa entrever que, ao entrevistarmos, só é possível obter a essência de quem quer que seja quando torcemos o protocolo do distanciamento jornalístico. A abordagem sincera e autoral com a qual conduzia os questionamentos resulta em declarações épicas, como as que Tom Jobim faz durante um encontro regado a uísque e cerveja. O diálogo, por vezes hermético, transcorre assim: “A morte não existe Clarice, tive uma experiência que me revelou isso. Fora essa experiência que não vou contar, temo a morte vinte e quatro horas por dia.” Clarice devolve a abstração do músico com uma outra: “Não estou entendendo nada do que estamos falando, mas faz sentido. Como podemos, Tom, falar do que não entendemos?”. Desse modo, o método clariciano de fazer entrevistas guarda características exemplares, as quais tentamos fazer uma pequena sistematização: 1) usa a primeira pessoa, se expõe e é sincera; 2) ora é Clarice que faz os questionamentos, ora é o entrevistado que a questiona; 3) ela abre espaço para o exercício da alteridade e da empatia; 4) apesar de às vezes provocar os entrevistados, o diálogo não é contaminado por agressividade; a conversa se desenvolve entre amigos; 5) ela descreve suas impressões subjetivas sobre as pessoas e lugares; 6) e utiliza três perguntas padrão, feitas a qualquer momento do encontro: Qual é a coisa mais importante do mundo?, Qual é a coisa mais importante para uma pessoa como indivíduo? e O que é o amor?

Curioso é que o medo de Clarice em se mostrar na imprensa se choca com seu método de entrevistar. Para além de simples perguntas, a escritora demanda a alma inteira do entrevistado; e ela, por sua vez, retribui com um tanto da sua. Apesar de avessa a falar sobre si mesma, no momento em que os papéis se invertem e é Clarice quem lança suas questões ao outro, ela acaba por se autobiografar também. Entrevistas e Clarice de Cabeceira – Jornalismo são duas oportunidades para entender as reflexões da autora sobre os processos da criação artística, o mistério do contato com o outro e consigo mesma. Ao longo das conversas, a persona de Clarice vai se revelando em pequenas pistas que deixa escapar. Um presente para os leitores que aceitarem a árdua tarefa de decifrar uma esfinge com olhos verdes e oblíquos.

Enigmas de uma Clarice-repórter

Clarice Lispector – Entrevistas, org. Claire Williams,Rocco, 2007, 232 páginas

Clarice na Cabeceira – Jornalismo, org. Aparecida Nunes, Rocco, 2012, 240 páginas

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desembarque

Os homens de pedra iam se posicionando no Jardim das Esculturas. O que surgiu no povoado foi, no mínimo, improvável. Distante cerca de cem metros da praça e da igreja, em frente à casa onde Rogério e a esposa Giselda vivem, as 36 primeiras esculturas eclodiram em 50 dias seguidos do ano de 2004. Metro e meio, posicionados ou não sobre um pedestal de tijolos, as estátuas representam sadhus – os monges andarilhos do hinduísmo – experimentando as posições mais contorcidas da ioga. O que causava estranhamento ao povo de São João, para Rogério já era prática há anos. A população se acostumava, lentamente, aos exercícios meditativos do escultor, sempre realizados ao ar livre e, portanto, visíveis e suscetíveis à apreciação alheia.

São João dos Mellos é um povoado de duzentas e tantas almas encravado na borda superior do Planalto Médio, já no começo das es-carpas que descem em direção à Depressão Central. Nasceu a partir das andanças dos imigrantes recém-chegados do norte da Itália, no final do século XIX. Os estrangeiros, tal como peregrinos, subiam a serra em busca de novas terras para suas sementes de trigo ou milho. Durante anos, a estrada que atravessa São João foi passagem quase obrigatória daqueles que subiam das colônias até Júlio de Castilhos que, no início do século XX, florescia com o lucro da pecuária extensiva. O vilarejo cresceu ao redor da igreja de beira de estrada, apa-drinhada pelo santo que pregava que a meditação é o caminho da luz.

Revela-se, detrás do cerro, o grande Sereno. A maior e mais gorda estátua do Jardim das Esculturas recebe os visitantes em posição de lótus e mãos cruzadas. Do alto dos seus seis metros, repousa algo que parece um coque. É, na verdade, um ninho de joão-de-barro. O visitante entra, passa pelo corredor entre as estátuas e vai se sentar em um rústico banco de madeira debaixo dos cinamomos. Giselda vem lá dos fundos com um chapéu de palha na cabeça e um mate nas mãos.

O Improvável Jardim das EsculturasPor inquietação ou qualquer razão hermética, Rogério Bertoldo esculpiu uma legião de mais de cem estátuas em arenito vermelho e as fincou no chão duro de seu sítio, num lugarejo chamado São João dos Mellos, interior de Júlio de Castilhos, interior do Rio Grande do Sul.

texto gregório mascarenhas foto dairan paul

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Rogério está no galpão. Vê os visitantes e acena em sinal de chamado. Solta as ferramentas sobre um toco e esfrega o braço na testa para secar o suor. Saca as luvas para cumprimentar e, no meio do aceno, percebe que tem as mãos sujas. Recua e sorri. Em seguida recomeça o gesto, mas oferece o antebraço em saudação. Ao contrário do que mostravam as fotografias nos jor-nais – nelas, o escultor aparece com cabeça raspada –, Rogério tem a cabeça cheia de fios pretos e cacheados. Giselda justifica:- Já me apareceram os primeiros fios brancos. Aí não aguentei a curiosidade e pedi para o Rogé-rio não raspar mais a cabeça. Olha só, ele quase não tem grisalhos.

O escultor decide dar uma pausa no trabalho. Rogério e Giselda dirigem-se aos bancos postados na sombra. Ela senta no banco, ele cruza as pernas sobre uma mesa. Mal começam a descansar, os dois lembram que estão com sede. O casal ri enquanto discute sobre quem buscará algo para beber. Rogério mostra as mãos sujas.

Giselda sai e o escultor começa a falar, em tom didático, sobre as dificuldades de conservar as estátuas na posição em que foram entalhadas.

- Os sadhus estão todos enrolados em mantos porque era a única maneira de mantê-los em pé. Funciona como um terceiro apoio.

Giselda vem segurando bandeja e assinala para uma mão que sai do chão:

- Essa não tem sustentação alguma. Não sei como não caiu até hoje.

Sobre a bandeja, suco de beterraba com laranja e biscoitos caseiros. O casal não come nada que deriva ou já foi um animal. Em seguida, Giselda começa a falar dos visitantes:

- Aparece mais gente de longe do que daqui mesmo. Como as pessoas são diferentes umas das outras – olha para Rogério e sorri. - Alguns ligam antes e perguntam qual estrada está melhor. Outros querem vir pela mais embarrada.

A constatação de Giselda a respeito da diversidade humana atiça a vontade de falar do escultor. Rogério conta seu caminho. O ponto de partida foi o interesse pelas artes marciais. Afastado das grandes populações pela distância e pela incomunicabilidade, Rogério tinha que aprender seu esporte através dos livros. Encomendava, então, as obras pelos Correios. Dos livros veio o interesse pela ioga. A partir da ioga, descobriu a sua filosofia de vida.

Em cada silêncio que serve de vírgula à palavra falada, Rogério lembra-se de algo que não pode deixar de ser dito. Hoje, o escultor discorre com segurança sobre os temas do seu agrado – re-lação com a natureza, religião, consumo ou as melhores rochas para entalhar. A sensibilidade e o caráter reflexivo de Rogério – atributos preciosos a um artista – nem sempre foram sua glória. A mãe do escultor, que também foi representada na pedra, nem precisava proibir que saísse ao pátio na frigidez do inverno; o silêncio que vinha do quarto ou sentava-se à mesa delatava o quanto o guri era forasteiro àqueles costumes.

O resto do mundo e São João dos Mellos aproximam-se aos poucos. As circunstâncias muda-ram. O Jardim das Esculturas é o oráculo momentâneo dos visitantes. Nosso cérebro – proje-tado por divindade ou por forças da seleção natural – percebe, saído de lá, o mundo religado à nossa própria natureza.

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