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73 MARIA, CARNE DE DEUS: PESSOA E MULHER IMACULADA. MARY, FLESH OF GOD: PERSON AND IMMACULATE WOMAN. Xabier Pikasa Ibarrondo * RESUMO: Neste texto, busca-se apresentar Maria como “ pessoa” no sentido radical da palavra, uma mulher que colaborou com Deus e com outros seres humanos, como uma pessoa crente, que dialoga com Deus desde o mistério mais profundo de sua vida, em gesto de encarnação radical, em liberdade, com autonomia pessoal. É assim que ele vai interpretar a virgindade e a encarnação. O autor recoloca o tema, para descobrir de novo – em meio as diversas rupturas contemporâneas - o lugar de Maria na Encarnação de Deus, desde um contexto de diálogo com as religiões e de nova compreensão da existência humana. A primeira parte da reflexão destaca o sentido da encarnação, que nos permite falar de Maria como a Virgem da Carne de Deus, em sua realidade concreta de mulher crente. Na segunda parte, apresenta uma reflexão sobre Maria Imaculada, destacando suas características humanas, femininas e cristãs. Deus não realiza nela um gesto negativo, libertando-a de mancha original e do pecado, mas antes realiza um gesto muito positivo, oferecendo-lhe sua graça, a serviço da “nova criação”, quer dizer, do surgimento de uma humanidade nova. PALAVRAS CHAVE: pessoa; carne de Deus; mulher; imaculada; encarnação; ruptura. ABSTRACT: In this paper, we seek to present Mary as “person” in the radical sense of the word, a woman who collaborated with God and with other human beings, as a believer, who dialogues with God since the most profound mystery of life, in a gesture of radical incarnation, in freedom, with personal autonomy. That’s how he interprets the virginity and the incarnation. The author puts across the theme, to discover again – amidst the diverse contemporary ruptures - the place of Mary in the incarnation of God, from a context of dialogue with the religions and new understanding of human existence. The first part of the reflection highlights the meaning of the incarnation, that allows us to speak of Mary as the Virgin of the flesh of God, in its concrete reality of a woman believer. In the second part, presents a reflection about Mary Immaculate, highlighting her human, feminine and Christian features. God does not perform a negative gesture, freeing her from the original stain of sin, but rather performs a very positive gesture by offering her His grace in the service of the “new creation”, which means, the emergence of a new humanity. KEY WORDS: person; flesh of God; woman; immaculate; incarnation; rupture. Artigos * Espanhol de Vizcaya, Doutor em Filosofia, Teologia e Sagrada Escritura. Foi catedrático na Universidade do Episcopado Espanhol e professor da Pontifícia Universidade de Salamanca. Autor de artigos científicos e inúmeros livros entre eles: Apocalipsis (1999), Para celebrar la fiesta del pan, fiesta del vino (2000), Diccionario de la Biblia (2007), Diccionario de las três religiones. Judaísmo, cristianismo, islam ( (em colaboração com V. Haya – 2009), Diccionario de pensadores cristianos (2010) Evangelio de Marcos. La buena noticia de Jesús (2012). Seu mais recente livro: Historia de Jesus,(2013).

Revista Teologia 2016 Universidade do Episcopado Espanhol e professor da Pontifícia Universidade de Salamanca. Autor de artigos científicos e inúmeros livros entre eles: Apocalipsis

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MARIA, CARNE DE DEUS: PESSOA E MULHER IMACULADA.

Mary, Flesh oF God: Person and IMMaculate WoMan.

Xabier Pikasa Ibarrondo *

resuMo: Neste texto, busca-se apresentar Maria como “ pessoa” no sentido radical da palavra, uma mulher que colaborou com Deus e com outros seres humanos, como uma pessoa crente, que dialoga com Deus desde o mistério mais profundo de sua vida, em gesto de encarnação radical, em liberdade, com autonomia pessoal. É assim que ele vai interpretar a virgindade e a encarnação. O autor recoloca o tema, para descobrir de novo – em meio as diversas rupturas contemporâneas - o lugar de Maria na Encarnação de Deus, desde um contexto de diálogo com as religiões e de nova compreensão da existência humana. A primeira parte da reflexão destaca o sentido da encarnação, que nos permite falar de Maria como a Virgem da Carne de Deus, em sua realidade concreta de mulher crente. Na segunda parte, apresenta uma reflexão sobre Maria Imaculada, destacando suas características humanas, femininas e cristãs. Deus não realiza nela um gesto negativo, libertando-a de mancha original e do pecado, mas antes realiza um gesto muito positivo, oferecendo-lhe sua graça, a serviço da “nova criação”, quer dizer, do surgimento de uma humanidade nova.

PalaVras chaVe: pessoa; carne de Deus; mulher; imaculada; encarnação; ruptura.

aBstract: In this paper, we seek to present Mary as “person” in the radical sense of the word, a woman who collaborated with God and with other human beings, as a believer, who dialogues with God since the most profound mystery of life, in a gesture of radical incarnation, in freedom, with personal autonomy. That’s how he interprets the virginity and the incarnation. The author puts across the theme, to discover again – amidst the diverse contemporary ruptures - the place of Mary in the incarnation of God, from a context of dialogue with the religions and new understanding of human existence. The first part of the reflection highlights the meaning of the incarnation, that allows us to speak of Mary as the Virgin of the flesh of God, in its concrete reality of a woman believer. In the second part, presents a reflection about Mary Immaculate, highlighting her human, feminine and Christian features. God does not perform a negative gesture, freeing her from the original stain of sin, but rather performs a very positive gesture by offering her His grace in the service of the “new creation”, which means, the emergence of a new humanity.

Key Words: person; flesh of God; woman; immaculate; incarnation; rupture.

Artigos

* Espanhol de Vizcaya, Doutor em Filosofia, Teologia e Sagrada Escritura. Foi catedrático na Universidade do Episcopado Espanhol e professor da Pontifícia Universidade de Salamanca. Autor de artigos científicos e inúmeros livros entre eles: Apocalipsis (1999), Para celebrar la fiesta del pan, fiesta del vino (2000), Diccionario de la Biblia (2007), Diccionario de las três religiones. Judaísmo, cristianismo, islam ( (em colaboração com V. Haya – 2009), Diccionario de pensadores cristianos (2010) Evangelio de Marcos. La buena noticia de Jesús (2012). Seu mais recente livro: Historia de Jesus,(2013).

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A figura “sagrada” de Maria vem acompanhando de maneira poderosa os cristãos ao longo de mais de dois mil anos. Ela aparece como elemento essencial do mistério da encarnação.

Historicamente, Maria tem sido um elemento chave no desenvolvimento do cristianismo helenista e romano, na conversão dos povos germânicos e escravos, na reconquista cristã de Espanha e na evangelização da América, quer dizer, no imaginário espiritual do ocidente católico. Porém a situação parece estar mudando, pois chegou um tempo de crise, de visão distinta da mulher e da vida.

Por isso é necessário recolocar o tema, para descobrir de novo o lugar de Maria na Encarnação de Deus, desde um contexto de diálogo com as religiões e de nova compreensão da existência humana, partindo uma vez mais das raízes da revelação bíblica.

Na primeira parte desta reflexão quero por em destaque o sentido da encarnação, que nos permite falar de Maria como a Virgem da Carne de Deus, em sua realidade concreta de mulher crente que dialoga com o próprio deus, quer dizer, como pessoa. Ela não é carne de canhão para a morte, nem corpo a serviço de um varão dominador, nem simples terra abonada para um ideal desencarnado de sacralidade. Maria é carne-mulher, pessoa que dialoga com deus e com os homens, sujeito de sua própria história entendida como encarnação de Deus. Ela pode aparecer assim, na liturgia e no compromisso da Igreja como sinal e condensação de uma humanidade (mulher/varão) que dialoga com deus, como um arco-íris de promessa, frente ao risco de diluvio que continua ameaçando nossa história (Gn 6-9).

na segunda parte, quero apresentar uma reflexão sobre Maria Imaculada, destacando suas características humanas, femininas e cristãs, retomando , retomando um capítulo de um dos meus livros sobre o camino de Maria (¡santa Maria da carne! Jn 1, 14), na Biblia e na Igreja.

I - MarIa, Mulher. carne de deus: Pessoa1

1. santa Maria da crise

Agora, no começo do terceiro milênio, as coisas começam a mudar poderosamente, de maneira que está em jogo não só a figura da Mãe de Deus, mas também tudo o mistério cristão. Neste contexto podemos evocar varias rupturas e problemas.

1 Arquivado em meu blog em mujer, hombre, Amigos, a voz de los, María, 07.12.14

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1. ruptura sacral. um cristianismo sem mulher divina? Muitos pensam que a devoção a Maria significa uma espécie de volta ao paganismo. Seu culto tem sido uma regressão, uma espécie de retorno aos poderes sagrados da natureza, que o judaísmo tinha superado e a Jesus, que seria presença e revelação de Deus pelo que tem feito: por seu anuncio de reino e sua entrega em favor dos excluídos do sistema, por sua morte e a ressurreição, como um homem concreto (este homem ). Maria, em troca, seria sagrada por sua própria condição feminina e materna, quer dizer, por sua natureza e não pelo que fez como pessoa. Por isso, alguns afirmam que seria melhor permanecer somente com Jesus, sem Maria, em linha protestante.

2. ruptura familiar. um cristianismo sem mãe? Muitos consideram Maria como refugio psicológico, uma necessidade infantil do homem-criança que quer voltar aos braços da mãe. Sua figura teria servido para manter muitos homens e mulheres detidos num infantilismo. Nesse sentido, a devoção mariana seria um sinal residual e quase folclórico de infantilismo e de imposição psicológica, que o homem maduro e criador de nosso tempo deveria superar. Pode haver algo certo nessa visão, porém não podemos esquecer o fato de que o ser humano continua conservando ao longo de sua vida uns traços de criança (neotenia), que o levam a entender Deus como Pai (Abba), conforme à experiência e palavra de Jesus. De todas formas, seria preciso colocar melhor o sentido de Maria-Mãe.

3. ruptura feminina: santa Maria, a mulher. Muitos afirmam que a devoção mariana tem sido uma reação compensatória normal frente ao predomínio do masculino contra da mulher escravizada deste mundo (e para justificar sua escravidão real), os homens teriam elevado assim a figura de Maria como mãe celeste e mulher bela, carinhosa, próxima. Assim, ela representaria uma espécie de carência feminina. Por isso, uma vez que o problema feminino fosse basicamente resolvido, de maneira que não existam diferenças entre varões e mulheres, a figura de Maria seria desnecessária. Tampouco esta objeção parece conclusiva, porém deve ter-se em conta.

4. ruptura cultural: Folclore. A figura de Maria continua sendo importante para muitíssimos cristãos, pois sua história está vinculada a tradições veneráveis, próprias de imagens milagrosas e santuários famosos. Porém muitos destes santuários desaparecem ou se convertem em centros de

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folclore. O patrimônio mariano da igreja pode converter-se em arte, que milhões e milhões de pessoas visitam cada ano em romarias e exposições da arte, vinculadas ao mar e à montanha (Montserrat, Aránzazu), à fonte-rio e à rocha (Fuensanta, Pilar), à árvores e à covas (Virgem do Olivo ou do Pino, Covadonga)...nesta linha se situam, de um modo especial, as festas patronais de povos e lugares. Algo disso pode existir, de maneira que para entender a função de Maria é preciso voltar ao evangelho.

5. ruptura imaginaria: aparições. o culto à virgem Maria está vinculado, ao menos desde a Idade Media, a uma tradição, quase sempre idêntica das aparições (especialmente dirigidas a crianças e pastores) e imagens sagradas (escondidas faz tempo e depois encontradas, decidas do céu etc.). A maior parte dos santuários marianos antigos tem uma ‘lenda’ fundacional, que fala de revelações sobrenaturais, que de algum modo expandem e atualizam (e inclusive transformam) a revelação do novo Testamento, desde o “ayate” celeste de Guadalupe (México, 1531), a imagem “Aparecida” no rio Paraiba (Brasil, 1717), ou as “revelações” de Lourdes (França, 1854) e Fátima (Portugal, 1917). É significativo o fato de que o Magistério da Igreja católica, que reage em tantos outros casos, se deixe levar por mensagens e ‘revelações’ particulares, e tenha aceito nestes e noutros casos uma providencia especial de Maria, a Mãe de Jesus, no desenvolvimento da vida cristã de suas comunidades. Porém há muitos cristãos que pensam que este tipo de culto mariano fundado em aparições pode ser por evangélico.

Estas e outras rupturas nos obrigam a repensar o lugar e função de Maria dentro da igreja, no começo do terceiro milênio. São muitos os que pensam que ela representa o passado, a devoção de um tempo antigo, marcado por uma minoria de idade. Pois bem, o homem que alcança sua maturidade com a Ilustração, e que se atreve a pensar (Kant) e a transformar a sociedade desde suas próprias capacidades racionais (Marx) não teria a necessidade deste tipo de mãe.

A mariologia seria um refugio infantil, próprio de reprimidos ou medrosos. O homem moderno, criador de si mesmo, não sentirá a necessidade de mãe. Ao contrário disso, quero dizer que a figura de Maria continua sendo muito importante para entender o nascimento e vida de Jesus.

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2. santa Maria da Bíblia, uma mulher judia

O primeiro ponto de referencia da mariologia continua sendo a história e teologia de Israel, que superou o plano da sacralidade cósmica, para situar-se no nível de as mulheres-mães e amigas, criadoras de história num nível humano. Nesse contexto devemos recordar que Maria foi e continua sendo uma judia. Desde esse contexto podemos evocar quatro temas que nos ajudam a entender a figura de Maria, com seu background histórico e simbólico para interpretá-la.

– crítica à Mãe-deusa (asheras). A história de Israel foi em grande parte definida pela luta contra os deuses. O judaísmo assume a figura do Deus semita (El, Elohim), porém tirando seu caráter sexual, senhorio gerador, vinculado aos cultos da natureza (Baal); desde esse fundo, lutou contra a figura divina feminina, tanto da shera (esposa de Él), como de Isthar-Astherté-Anat (esposa de Baal). Assim podemos resumir a história religiosa de Israel dizendo que o judaísmo rechaçou o Deus-Touro gerador (El/Baal) e a sua consorte (Ashera/Astarté), para situar seu lugar Deus, Jahvé.

Como tenho dito, alguns pensam que a veneração cristã à Maria, Mãe de Jesus, suporia um retorno ao paganismo, uma inversão ou volta à mãe-deusa, uma recaída no paganismo. Assim o mostraria o tema da triada divina (Deus pai, Deusa mãe, Filho divino) que estaria no fundo da concepção virginal (Deus Pai gera o Filho divino por seu Espírito, revelado por Maria). Pois bem, como continuamos afirmando que Maria não pode ser interpretada dessa forma; ela é uma mulher histórica, não um simples momento de uma triada divina2.

– rechaço da deusa sabedoria ideal. Os judeus tinham “expulsado” a deusa materna, porém muitos correram o risco de colocar em seu lugar e de divinizar uma ‘hipóstase” ou personificação feminina de Deus. Nessa linha pode falar-se da Shekina, tabernáculo ou casa onde habita (cf. Ap 11, 19–12, 1) ou Maria no tabernáculo de Deus). Numa linha convergente avança a teologia da Hochma ou Sophia (Sabedoria de Deus, vinculada no Egito com a Maat). Parece que a especulação sapiencial judaica, desenvolvida sobretudo na Alexandria, sob a influência egípcia e helenista (século III-I a.C.), tinha destacado esta conexão sacral: o Deus-Pai (Poder transcendente), através de sua Esposa, a Mãe-Sabedoria (Sophia), gerou Filho divino (que é o Logos, que pode ser Jesus) .

Neste contexto pode-se situar e se tem situado também simbolicamente a figura de Maria. De um modo consequente, a liturgia católica recriou os textos da Sabedoria, aplicando-os à Maria, ao longo de muitos séculos. Isso significa que se 2 Ver o tema na mulher na Bíblia Judia, Clie, Viladecavalls 2013

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viu uma conexão entre ela e a simbologia divina feminina. Porém esta conexão, fechada em si mesma, se torna insuficiente para explicar o culto mariano da Igreja, pois Maria é antes de tudo uma mulher histórica.

– as grandes mães, mulheres triunfadoras. no começo da história israelita está a mulher originaria, que se chama Eva e que aparece como Mãe de todos os viventes (cf. Gn 3, 20). Dela parece tratar o NT (evangelho de João), dela tratam explicitamente os primeiros Padres da Igreja, a partir de Justino e Ireneu, no século II d.C. Porém tal recordação é insuficiente, pois o próprio NT relaciona Maria com outras grandes mães israelitas: Mt 2 evoca a figura de Raquel, mãe de José e de Benjamin, que chora por seus filhos mortos, para mostrar, por contraste, o gesto de Maria que consegue salvar seu filho Jesus, centro verdadeiro da nova história israelita; por sua vez, Lc 2 36-38 compara Maria com Ana, viúva perpétua, que chora no templo a morte de seus filhos .

De maneira consequente, a liturgia cristã vinculou Maria com outras mulheres libertadoras, com Judite, que corta a cabeça de Holofernes (como Maria teria cortado a cabeça do Dragão perverso), e com as grandes “mães” cantoras da história de Israel, cuja figura e canto reaparecem no Magníficat (Lc 1, 47-55). As principais são Miriam, a profetisa do Exodo (cf. Ex 15), Débora, a vencedora (Jc 5) e Ana, a mãe de Samuel, cujo canto é anúncio da grande libertação israelita, assumida também por Maria, a mãe de Jesus (cf. 1 Sam 1-2).

Assim, poder-se-ia também acrescentar outras figuras femininas da Bíblia, começando pela Filha de Sião. (Filha-Sião3), figura evocadora e salvadora da história israelita. Por outro lado, os grandes profetas da aliança (de Oseias e Jeremias ao Segundo e Terceiro Isaias) apresentam Israel como povo querido de Deus, com traços femininos. Finalmente, a liturgia católica aplicou à Maria os símbolos do Cântico dos Cânticos, vindo a convertê-la numa espécie de noiva universal, mulher amante, testemunho e sinal de todos os amantes da historia.

Desde esse fundo se poderia elaborar uma mariologia judeu-cristã, interpretando a vida e função de Maria a partir dos grandes simbolismos e

3 Desenvolvi o tema em Filha de Sião, origem e desenvolvimento do símbolo in EphMar 44(1994) , pg. 9-43. Assim vista desde Israel, Maria aparece como sinal da mãe messiânica (cf. Mt 1-2), quer dizer, como expressão do povo da aliança de Deus (na linha da mulher de 4 Esdras), sendo ao mesmo tempo uma mulher e Mãe histórica, concreta. Nessa linha, o evangelho de Lucas apresenta Maria como portadora do canto de libertação israelita, apresentando-a assim como mãe-profetisa, inspiradora de liberdade universal. Nesse sentido, ela assume a causa de todos os rechaçados da história humana, cantando em nome de eles a chegada do tempo messiânico. Assim podemos afirmar que ela evoca a unidade pendente dos cristãos com o judaísmo, como indiquei na parte seguinte de meu livro.

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esperanças do antigo Testamento, realizando assim um exercício de ecumenismo israelita. Por isso, se num momento determinado os cristãos deixarem de se vincular à mãe-irmã Israel, teriam que esquecer Maria, a Mãe de Jesus, construindo uma religião puramente gnóstica, quer dizer, sem história.

3. santa Maria de (com) Jesus. “encarnação” mariana

A mariologia cristã está vinculada à encarnação de Deus, que não atua desde fora, exigindo uma submissão total (como no Islã), mas também desde a própria vida humana (pedindo colaboração). Nesse sentido, a virgindade não será passividade e submissão, mas será também atividade e colaboração. Nessa linha quero presentar Maria como “ pessoa” no sentido radical da palavra, uma mulher que colaborou com Deus e com outros seres humanos.

Assim quero apresentar Maria como uma pessoa crente, que dialoga com Deus desde o mistério mais profundo de sua vida, em gesto de encarnação radical, em liberdade. Não viemos ao mundo já prontos, não somos pessoas por nascer biologicamente de um “ventre”, mas também porque uma mulher-mãe (pessoa) nos introduziu (com o Pai e com outros seres pessoais) no mundo da vida pessoal, da palavra e do afeto.

Algo disto supôs a gnose antiga, ao afirmar que nós, os humanos, não nascemos simplesmente da cadeia social de gerações, mas também de Deus, por graça sua, em diálogo de fé, quer dizer, do acolhimento e responsabilidade; porém a gnose antiga e moderna tem corrido o risco de ignorar a historia, com suas conexões sociais. Falou da paternidade-maternidade de Deus, porém tendeu esquecer-se da humana, no nível da pluralidade social, dentro do tempo. Para por em destaque a transcendência de Deus (o mesmo que o Islã), a gnose esqueceu o caráter positivo da ação dos homens e mulheres na história.

tendo isso em conta queremos insistir na contribuição pessoal de Maria, como mulher livre, com autonomia pessoal, interpretando nessa linha a virgindade e a encarnação.

a virgindade não é submissão passiva (como pode supor o Corão), mas também colaboração ativa com Deus. A encarnação não é um dado geral e a conhecido, nem uma experiência abstrata, mas também o fato de que Deus eterno se faz carne na história humana. Frente ao risco de um sistema fechado, que se situa acima dos indivíduos (e os utiliza a seu serviço), contra um Deus que “invade” o terreno da vida humana (negando aos homens sua liberdade), temos que por em destaque a experiência da encarnação, que se expressa em forma

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de comunicação pessoal e de diálogo na liberdade. Maria não é “mãe de Deus” porque o recebe passiva desde fora, mas também porque o gera livremente, em amor comprometido:

– encarnação, por cima de toda ideologia. Ideologia é um tipo de pensamento que age desde o externo, distorcendo a realidade. Ao contrário disso, a encarnação indica que Deus age e se expressa na própria carne dos homens, através de sua liberdade. Pois bem, o Deus de Maria é aquele que se encarna em Jesus, atuando por meio de (com a colaboração) dela, através de sua carne real de pessoa e mulher. Se Deus para encarnar-se negasse ou submetesse (colonizasse desde fora) a carne de Maria não seria o Deus de Jesus Cristo.

– encarnação pessoal por cima de todo sistema religioso. Outros podem ter posto em destaque o valor sacral do templo de Jerusalém ou Roma, umas leis de Deus que regulam desde fora o conjunto da vida do povo, os sacrifícios ou sinais sagrados que têm sido fixados pela própria Escritura. Pois bem, por cima disso, para Maria a religião se expressa como acolhida e colaboração humana, como mulher e pessoa. Certamente, Deus é Deus (como sabe o Corão), porém não age “invadindo” o terreno de Maria, agindo desde fora dela, mas também através de sua liberdade pessoal e de sua colaboração humana.

Nesse aspecto, dizemos que, por meio dela, Deus se faz carne concreta em Jesus, e que a carne humana é manifestação da vida de Deus. Para ser mãe de um Jesus de carne, ela há de ser uma mulher concreta, capaz de dar vida na carne. Não pode ser o sinal geral da deusa, pois a deusa enquanto tal não existe, o que existe são pessoas concretas de carne, que se dão a vida e a compartem. Desde aí se entendem seus “mistérios”

– virgindade não significa ausência de carne, mas é também carne transparente, capaz de expressar todo o poder do espírito de Deus; virgindade não é ausência de sexo, mas é também amor forte e transparente no que se pode expressar o dom de Deus de maneira imaculada. Por isso, ali onde, em algum sentido, se opõe o Espírito de Deus e o sexo e se interpreta a virgindade como pura ausência de relações biológicas, se está negando o valor concreto da obra de Deus, sua revelação entre os pobres deste mundo.

– assunção. neste mesmo contexto deve-se entender a ressurreição de Maria, entendida como culminação pessoal de sua vida e de “carne” concreta. Uma salvação de Maria sem carne seria contraria aos princípios da encarnação, significaria negar aquilo que Deus realizou ao encarnar-se na vida concreta dos homens, desde a perspectiva dos mais pobres, daqueles que tem sua ‘carne’ ameaçada pela fome ou enfermidade, pela nudez ou pelo cárcere.

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II. IMaculada, uMa Mulher: caMInho de huManIdade4

nós homens nascemos num mundo de pecado e não podemos superá-lo só com nossas forças. nessa linha, o pecado original é a existência perturbada e destruída dos homens, em chave histórica e social. Corremos o risco de destruir o futuro da vida, de matar-nos uns aos outros. Num plano individual, o pecado se expressa como incapacidade de realizar-nos como pessoas. Para sermos pessoas em plenitude, Deus nos criou; porém nós nos deixamos ficar pelo caminho, perturbados em três aspectos primordiais da própria vida: nascimento, realização e morte. No plano social, nascemos num mundo manchado, num mundo que nos marca já desde o princípio, introduzindo-nos em suas redes de poder, mentira e egoísmo. Nesse aspecto, o pecado constitui uma experiência (e uma realidade) fundacional: nascemos desde um fundo ou «seio» mundano de pecado.

1. origem: humanidade em pecado, Imaculada.

No fundo do dogma da Imaculada Conceição, que a Igreja católica definiu no ano 1854 por intuição crente dos fiéis mais que por razões conceituais da teologia, encontramos um dado primordial de todo pensamento antropológico cristão: Maria é antes de tudo uma pessoa. Ela foi concebida e nasceu como criatura de Deus, dentro do tempo da historia.

Maria não pertence ao desenvolvimento (positivo o negativo) de Deus, não é tampouco uma aparência, uma sombra da terra que brilha num momento e depois perde seu fulgor, diluída no grande mar do divino. Tampouco é um momento passageiro do grande círculo de vida em que as almas sempre giram no tempo até que um dia consigam liberar-se de suas amarras temporais. Maria não é tampouco um momento do grande rio das coisas onde tudo corre sem chegar nunca a sua meta. Ela surgem em Deus como pessoa finita e diferente, mas dentro da historia.

Pois bem, nascendo a partir de Deus, Maria nasce ao mesmo tempo dentro da história dos homens, imersa em um processo que conforme a doutrina da Igreja, inspirada na Escritura (cf. Gn 3, Rom 5), se encontra perturbada, estropeada pela força do pecado. Por isso dizemos que os homens nascem (surgem, desenvolvem-se) como membros de uma humanidade que, mesmo recebendo o impulso da graça de Deus, parece empenhada em destruir-se, como afirma o Vaticano II:

4 Arquivado em meu blog em mujer, hombre, Amigos, a voz de los, María, em 07.12.14

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Criado por Deus na justiça, o homem, sem dúvida, por instigação do demônio, no próprio exórdio da historia, abusou de sua liberdade, levantando-se contra Deus e pretendendo alcançar seu próprio fim à margem de Deus. Conheceram a Deus, porém não o glorificaram como Deus. Obscureceram seu estúpido coração e preferiram servir à criatura, não ao criador (cf. Rom 1,21-25). O que a revelação divina nos diz coincide com a experiência. O homem, com efeito, quando examina seu coração, comprova sua inclinação para o mal e se sente inundado por muitos males, que não podem ter origem em seu Santo Criador... Toda a vida humana, a individual e a coletiva, apresenta-se como luta e por certo dramática, entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas. Todavia, o homem se percebe incapaz de dominar com eficácia por si só os ataques do mal, até o ponto de sentir-se como algemado entre cadeias... (GS 13).

Esta é a condição do homem. Desde o mesmo começo (ab exordio historiae) vive internamente dividido. (a) é filho de Deus, está convidado à herança da vida; (b) surge e se implanta num campo de pecado. Isto é o que o dogma da Igreja definiu desde tempos antigos quando fala do pecado original: existe em nossa vida uma tragédia muito particular que está fundada na mesma opção humana. Não é tragédia ter nascido, não somos filhos de um pecado dos deuses (de uma divisão intradivina). Nem é tragédia o viver; nem a matéria nem a vida são más. Mau é um tipo de vida obscurecida pelos próprios homens.

– em perspectiva sincrónica, o pecado original pertence ao homem em seu conjunto; é de «adam», da humanidade inteira. É totalmente secundário dizer se no principio dessa humanidade havia só um ser humano (um casal) ou existiam diversos casais. A Palavra da Bíblia afirma que o pecado pertence ao conjunto da humanidade. Não é um homem isolado o que se perde, é a própria humanidade, manchada e pervertida em seu caminho e em suas próprias estruturas de vida compartida. A humanidade como tal está quebrada, torna-se incapaz de alcançar o futuro que Deus lhe prometeu (o paraíso). Por isso, os que nascem nessa humanidade, nascem em risco, em perigo de perder-se.

– a tradição cristã afirma que o pecado é transmitido por herança, porém em sentido cultural, não biologista, como as vezes tem pensado certa teologia que no fundo já interpreta a própria forma «vital» (sexual) da “concepção” como se fosse em si pecado. Entender assim o problema do homem seria contrario à herança judaica do evangelho e ao primitivo cristianismo, que nunca condenou o sexo como tal, e situaria a origem da vida humana em um plano biológico (animal). Os animais evoluem através das mutações transmitidas por herança biológica. Os homens, em troca, propagam sua verdade e vida humana

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através da cultura. O que eles transmitem humanamente, em chave de realização antropológica, é mais que uma existência material; estendem e propagam formas de entender e realizar a própria vida, possibilidades humanas de existência. Neste plano deve situar-se o tema do pecado original .

Nesse sentido, nossa herança cultural humana está manchada. Quero entender essa Palavra de maneira muito extensa: cultura é aquilo que ultrapassa o nível da natureza interpretada em forma de necessidade vital ou material (mecanicista). Nesse aspecto ela transcende nossas possibilidades físico-biológicas. Nesse plano de criatividade (onde também é possível a destruição histórica) é que se situa o pecado. Aqui onde se expressa e se realiza de verdade nossa existência.

Com sua possibilidade de criação nova e pecado, a cultura configura todos os aspectos da vida do homem sobre o mundo. Cultura é a maneira de buscar a Deus e rechaçá-lo; cultura são as formas de existência social, as estruturas econômico-políticas, a experiência fundante da vida. Só nesse nível o homem pode realizar-se verdadeiramente como humano, quer dizer, como pessoa: ser que é livre, responsável em si mesmo, aberto em gratuidade para os outros, partindo da graça original do mistério (de Deus). Pois bem, conforme o testemunho da Igreja, essa cultura primordial, que deveria encontrar-se aberta para a vida e para a realização das pessoas, se encontra “manchada”, por culpa da própria atuação humana.

O pecado original não é uma pequena nota de caráter moralista, mas é a nossa forma de vida sobre o mundo: a maneira em que acolhemos (transmitimos), realizamos e terminamos nossa existência. Nesse sentido, o NT nos adverte que estamos «sob o signo insuperável do pecado»: destruímos o caminho da vida e por nós mesmos não podemos já encontrá-lo e realizá-lo. Deus nos criou para sermos pessoas e nós nos tornamos seres de violência e morte. Isso é o pecado.

Pois bem, sobre este background do pecado original, a Bíblia afirma que Jesus, filho de Deus, construiu sua vida sem pecado. Nasceu no mundo e recebeu sua herança dura e conflitiva, porém surgiu e foi se educando (amadurecendo) sempre em graça. Em graça respondeu ao assumir sua própria vida e realizar-se a caminho de Reino. Por isso se diz que foi tentado em tudo «como nós, porém não pecou» (cf. Hb 4,15). Assim, partindo do AT e fundando-se em sua própria experiência da graça pascal, a Igreja percebe que na base da história do pecado original (da que surge Jesus Cristo) existe também uma corrente poderosa de graça e esperança. Deus ia atuando já no mesmo caminho da história israelita, preparando a chegada de Jesus (cf. 2 Cor 5,21). Deus ia oferecendo o germe e

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princípio de vida nas mesmas entranhas da história, preparando assim a chegada do messias. No campo dessa preparação encontramos a Maria.

Nesse sentido, situa-se o “dogma” da Imaculada Conceição (ano 1854). Esse dogma faz parte da experiência pascal da Igreja católica, que descobre e concretiza em Maria um elemento chave de sua experiência antropológica: Por dom de Deus, os homens podem superar e superam o pecado, vivendo dessa forma em comunhão de Vida com a vida fundante de Deus, tal como se expressa em Jesus Cristo. O “dogma” da Imaculada pertence não só ao processo de realização pessoal de Maria, que assim vai construindo seu caminho em santidade, até o processo de maturação social de Israel e da humanidade. Em geral, a Igreja fixou-se só no primeiro aspecto, porém deve-se também destacar o segundo.

Por isso não é estranho que entre os santos Padres fosse comum chamar à Mãe de Deus toda santa e imune de toda mancha de pecado e como que plasmada pelo Espírito santo e feita uma nova criatura. Enriquecida desde o primeiro instante de sua concepção com esplendores de santidade do todo singular, a Virgem Nazarena é saudada pelo anjo por mandato de Deus como cheia de graça (Lc 1,28) e ela responde ao enviado celestial: Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua Palavra (Lc 1, 38) (LG 56).

Esta passagem entende a Imaculada em perspectiva positiva, como sinal da graça e santidade pessoais de Maria. Deus não realiza nela um gesto negativo, libertando-a de mancha original e do pecado, mas antes realiza um gesto muito positivo, oferecendo-lhe sua graça, a serviço da “nova criação”, quer dizer, do surgimento de uma humanidade nova, capaz de dialogar com Deus e de viver em concórdia mutua. Maria não é Imaculada em sua concepção biológica, mas sim em todo o processo de sua origem e empenho pessoal, em meio a uma história dramática, marcada por seu passado judeu (galileu) e por seu próprio desempenho pessoal, através de um diálogo difícil com Jesus seu Filho, dentro de “fortes” condições familiares. Nesse sentido se pode afirmar que a Imaculada faz parte da “segunda inocência” de Maria.

– há uma primeira inocência que seria “não saber”, uma espécie de infância continua, como se Maria tivesse passado pelo mundo sem “misturar-se” com as dificuldades e violências da vida. Esta é a imagem que projetaram sobre ela não só grande parte dos tratados teológicos, mas também (e sobretudo) as imagens da arte, que lhe representam como uma mulher que não se envolveu com as lutas da vida.

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– o “dogma” da Imaculada deve ser entendido à luz da “segunda inocência” de Maria, que não consiste em não saber, mas antes em saber e sentir, em sofrer e refazer a vida de um modo mais alto, em fidelidade humana, em vinculação dramática a Jesus. Dessa forma, só ao culminar seu caminho, diante da Cruz de Jesus e na Igreja, com os irmãos de Jesus e o resto dos cristãos, podemos afirmar que Maria foi e é Imaculada.

2. como Maria, a Mãe de Jesus:

– ser Imaculada não significa não equivocar-se, mas pode equivocar-se de uma forma criadora, superando os erros, aprendendo dos equívocos, mantendo sempre um caminho sincero de busca, em diálogo, em humanidade. Ser Imaculada não significa não ser discutida, pois os testemunhos dos evangelhos, de um modo ou outro, supõem e afirmam que Maria foi, sem discussão, um caminho aberto ao diálogo mais profundo, à fraternidade mais intensa, superando os enfrentamentos destrutivos.

– ser Imaculada não significa manter-se distante dos problemas, mas entrar neles com boa intenção, com capacidade de aprendizagem, num caminho messiânico. Maria foi Imaculada tendo nascido em um contexto de suma violência, em condições de fome e de guerra. Foi Imaculada podendo inclusive ser “violada” (como se pode perceber ao estudar o evangelho de Marcos 6, 3: Não é este o filho de Maria?). Foi Imaculada negando inclusive a mensagem de Jesus (não crendo nele…!), porém mantendo sempre um caminho de fidelidade que desembocou na Igreja.

3. Vida em liberdade. desenvolvimento pessoal.

Maria nasceu para ir-se realizando em liberdade, como pessoa. Por isso, nascimento e realização se vinculam, como destaquei no item anterior. Assim a viu o Vaticano II:

Assim Maria, filha de Adão, aceitando a Palavra divina, tornou-se a Mãe de Jesus e abraçando a vontade salvífica de Deus com generoso coração e sem o impedimento de pecado algum se consagrou totalmente a si mesma, qual escrava do Senhor, à pessoa e à obra de seu Filho, servindo ao mistério da redenção com ele e sob ele, pela graça de Deus onipotente. Com razão, pois, os santos Padres entendem a Maria não como um mero instrumento passivo mas como uma cooperadora da salvação humana pela livre fé e obediência (LG 56).

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Esta passagem supõe que Maria aparece como pessoa independente, como dona de sua própria vida, capaz de dialogar com o próprio Deus, de escutá-lo e responder-lhe. Não é um «instrumento» que Deus possa manejar a seu bel capricho, nem um traço interior da mesma santidade de Deus, como um momento de sua vida e seu mistério. Ela é pessoa: dona de si própria, capaz de receber uma Palavra de Deus e responder-lhe; é pessoa em sentido radical como «sujeito diante de Deus», em chave de liberdade, responsável por si mesma, de maneira que nem o próprio Deus pode forçá-la.

– autonomia. Maria é dona de si e por isso Deus vai tratá-la com respeito, oferecer-lhe (não impor-lhe) sua palavra. Ela nasce assim, por este diálogo com Deus, como um ser distinto, uma espécie de «deus finito» que, por dom de graça, pode elevar-se diante do próprio «Deus que é infinito», dialogando com ele. Segundo a Bíblia, o ser humano desenvolve sua existência pessoal pela palavra, em chave de diálogo com Deus. Pois bem, chegando até o final no caminho começado pelo AT, Maria é a primeira que dialoga dessa forma com seu Deus. Assim se pode apresentá-la como a primeira pessoa da historia.

– colaboração. Maria “concorre” assim com Deus. Como disse o Vaticano II, colaboração significa liberdade pessoal e mútua dependência. Deus livre é para criar e Maria é livre para responder. Porém ambos querem viver e realizar a liberdade em companhia. Maria oferece a Deus o espaço para o surgimento humano de seu Filho, sua vida de mulher, sua Palavra de pessoa humana. Por sua vez, Deus oferece a Maria o mistério de sua própria vida intradivina. Necessita dela para expressar-se em liberdade e plenitude dentro da história: por isso pede e aguarda sua resposta de consentimento (Lc 1,26-38).

Neste nível de Palavra dialogal com Deus (que se abre aos demais seres humanos), Maria vem realizar-se de maneira exemplar como pessoa. Mais que «ventre e peitos», como sugeria a piedade popular israelita (cf. Lc 11, 27), ela é «a crente» (cf. Lc 1,45): dialoga com Deus e nesse diálogo desenvolve e realiza sua pessoa. Dessa forma «acolhe e guarda (cumpre) a palavra» (cf. Lc 11,28), de maneira que a mesma Palavra de Deus pode se transformar em carne na nossa história (cf. Jo 1,14). Em diálogo de colaboração com Deus Maria apresenta-se já como pessoa que nasceu e vive em liberdade sobre a terra.

Nesta perspectiva adquire todo seu sentido e tudo o que tem dito sobre ela como realidade que só amadurece e se compreende em âmbito de graça. Todas as demais «relações » passam. Assim acabam os outros níveis da vida (criatividade intelectual, domínio sobre o mundo...). Só em relação com Deus

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o homem permanece para sempre (cf. Is 40-55). Pois bem, nesta relação Maria desenvolveu seu sentido como ser que permanece, quer dizer, como pessoa.

O povo israelita conhecia esta relação e a expressava em termos de aliança. Porém não a havia culminado de maneira que nela apareciam duas limitações primordiais. (a) a verdadeira personalidade pertence ao conjunto nacional, não aos indivíduos como tais. Por isso, a fidelidade pessoal aparecia de algum modo como secundária, e estava ao serviço povo; (b) além do mais, o conteúdo e verdade da pessoa não se encontrava fixado todavia; os homens se encontravam em caminho e só no final desse caminho encontravam sua pessoa. Pois bem, Maria vem apresentar-se já no evangelho como uma pessoa realizada, em liberdade, em decisão, em relação, destacando sua peregrinação crente, a serviço de Jesus, até culminar em Pentecostes (At 1-2). Em todo esse processo, ela foi se expressando e realizando seu ser como pessoa, nos níveis já indicados:

– Maria é pessoa plena por ser livre, diante Deus e diante dos homens. Por isso não pediu permissão ao sacerdote nem ao letrado, ao político nem ao chefe militar no momento crucial da “anunciação”. Dialogou com Deus e diante Deus se decidiu por si mesma (cf. Lc 1,26-38), pondo-se a serviço da libertação messiânica. Nesse sentido, é pessoa porque sabe e quer decidir-se. Não se limitou a viver sua liberdade num vazio, numa espécie de contemplação intelectual que se desliga das lutas e tarefas da história, mas que desenvolveu sua liberdade em meio de condições conflitivas e muito duras, como fez ressaltar sobretudo em Lc 2,24-25.

– Por fim, e concluindo, Maria é pessoa total em relação (e em relação conflitiva) com outros seres pessoais, desde o cristo. Ela assume o caminho de Jesus e com Jesus a grande tarefa da culminação messiânica, numa linha de personalização social. Por um lado, ela plenitude e cumprimento da antiga aliança, de maneira que seu «fiat» condensa e ratifica a Palavra precedente dos homens. Porém, ao mesmo tempo, ela aparece como sinal e principio duma aliança nova, aberta a todos os homens, num caminho duro e conflitivo, que o evangelho de Marcos começa criticando. Só através de muitas dificuldades ela pode recorrer até o final o caminho messiânico aberto a todos os homens, como ratificam Lucas e João.

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