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Revista Universidade e Socieadade n° 34

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Revista Universidade e Sociedade n° 34, do Sindicato Nacional dos Docentes de Ensino Superior (Andes-SN). Artigos: "Educação política pela greve" (Antonio Candido); As "Reformas" do Governo Lula: "Terceira via ou social-liberalismo: bases para a refundação do projeto burguês de sociabilidade" (Kátia Lima); "Reformas ou contra-revolução? O governo Lula" (Edmundo Fernandes Dias); "A reforma universitária nas universidades estaduais do Paraná" (Antônio de Pádua Bosi e Luiz Fernando Reis); "A ruptura da CUT é um processo objetivo e já está em curso" (José Maria de Almeida); Movimentos Sociais: "O Negro na história da educação superior no Brasil" (Graziela de Oliveira); "O professor universitário - um estudo sobre atividade acadêmica e tempo livre" (Maria Bernadete Leal, Clara Maria Silvestre e Ricardo Henrique Bernardo Lopes); "O lugar da escola nos movimentos sociais: representações e imaginários" (Eliana Amábile Dancini); "O desafio de lidar com as diferenças" (Lobelia da Silva Faceira); "Feminismo e liberdade" (Telma Gurgel); "Ciências humanas e autonomia" (José Mario Angeli); "A greve das IFES" (Paulo Marcos B. Rizzo); Resenha: "As Esquinas Perigosas da História"

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SU M Á R I O

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XIV, Nº 34, outubro de 2004 - 55

Editorial

Educação política pela greve Antonio Candido

As "Reformas" do Governo LulaTerceira via ou social-liberalismo: bases para a refundação do projeto burguês de sociabilidadeKátia Lima

Reformas ou contra-revolução? O governo Lula:Edmundo Fernandes Dias

A reforma universitária nas universidades estaduais do ParanáAntônio de Pádua Bosi e Luiz Fernando Reis

A ruptura da CUT é um processo objetivo e já está em cursoJosé Maria de Almeida

Movimentos SociaisO Negro na história da educação superior no BrasilGraziela de Oliveira

O professor universitário - um estudo sobre atividade acadêmica e tempo livreMaria Bernadete Leal, Clara Maria Silvestre e Ricardo Henrique Bernardo Lopes

O lugar da escola nos movimentos sociais: representações e imaginários Eliana Amábile Dancini

O desafio de lidar com as diferençasLobelia da Silva Faceira

Feminismo e liberdadeTelma Gurgel

Ciências humanas e autonomiaJosé Mario Angeli

A greve das IFESPaulo Marcos B. Rizzo

Resenha: As Esquinas Perigosas da História

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Bom, como ouviram, pouca coisa sobroupara dizer [risos]. Esta é a vantagem de fi-car para o fim. Os colegas expuseram exa-

tamente o que houve e de tudo que expuseramressaltam a perfeita lisura e a perfeita boa fé dasorganizações em greve. E eu queria fazer ape-nas, para terminar, primeiro um relato daminha participação pessoal; segundo, algumasconsiderações.

Como disse aqui o nosso querido presiden-te [da ADUSP], eu "já peguei o bonde andan-do", quer dizer, fui convocado naquinta-feira para uma reunião,para esta Comissão, para ir even-tualmente à Reitoria. Infelizmenteeu tinha uma reunião que já haviasido confirmada antes e não teriacomo desmarcar. Também nasexta-feira ao meio-dia já tinha umcompromisso. Assim que o com-promisso terminou vim para cá efiquei aqui das três e meia da tardeàs nove e meia da noite.

Nesse período pude verificaralgo que é muito característico dasgreves: o movimento de fluxo erefluxo constituindo de certo modo o seuritmo. Às três horas, otimismo; às três e qua-renta, pessimismo; às quatro e dez, desespero;às cinco horas, esperança; às seis horas, euforia;às oito horas, de novo desespero. Nós passa-mos por isto na sexta-feira. Quando nos sepa-

ramos às nove e meia da noite, as perspectivaseram mais negativas que positivas.

Mas o fim de semana fez seu efeito, o tempopassou e, ao chegar hoje aqui, cheguei à con-clusão que as coisas melhoraram bastante.Aquelas idas e vindas, até com alguns episó-dios desagradáveis, acabaram rendendo umprogresso. Isto me leva às palavras que queriadizer. É o seguinte: somos velhos grevistas, nãoapenas o prof. Alfredo Bosi e eu, e também oJoão [Zanetic] (a diferença maior é que naque-

le tempo a barba dele era loura eagora está toda branquinha...[risos]...). Mas o próprio Reitor daUniversidade foi nosso compa-nheiro na greve de 79 [risos]; lem-bro perfeitamente, porque presidivárias assembléias; eu era vice-pre-sidente [da ADUSP], o presidente,aliás um grande presidente, o Prof.Modesto Carvalhosa, tinha que seausentar com certa freqüência e euassumi várias vezes a presidência,por períodos às vezes longos. E melembro de várias assembléias emque eu estava e de que nosso

Reitor participou muito ativamente, de manei-ra que ele deve ter uma boa idéia do que nósestamos fazendo aqui.

Dessas greves de que participei, dentro e forada Universidade, uma convicção nasceu em mim,convicção que tive a oportunidade de exprimir,

Antonio Candido

Educação políticapela greve1

Não há greve derrotada. Toda

greve é sempre umprogresso, às vezesnão no sentido de seobter exatamente o

que se quer, mas pro-gresso em coesão,

em consciência e emcombatividade.

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E d u c a ç ã o p o l í t i c a p e l a g r e v e

na sexta-feira, várias vezes aos meus colegas: nãohá greve derrotada. Toda greve é sempre um pro-gresso, às vezes não no sentido de se obter exata-mente o que se quer, mas progresso em coesão,em consciência e em combatividade.

Vejamos o caso da nossa ADUSP. Quandoela foi fundada, teve a princípio uma diretoriaprovisória, depois houve uma diretoria eleita.A ADUSP praticamente não existia. Nosmomentos em que era preciso, convocavam-seas pessoas, elas vinham ou não vinham.Grande parte dos professores ainda discutia secabia ao professor fazer uma associação, por-que isso dava um ar um pouco desagradável desindicato operário, não é mesmo? E o profes-sor é um gentleman ... [risos].

Me lembro até que, em uma dessas reu-niões, em uma outra greve depois daquela de79, tive a oportunidade de dizer que o profes-sor universitário, dadas as suas condições devida e dada a evolução da sociedade, não é maisum gentleman ligado às elites. Ele é muito maisum homem ligado ao trabalhador. Por isso, ocomício, a manifestação, o protesto, a grevetornam-se instrumentos legítimos desta novaetapa da sua vida. Tive até a oportunidade decitar, propondo que fosse uma espécie de lemanosso em relação a colegas mais conservadores,o nome de um livro de ensaios do grandesocialista inglês Harold Laski, Sobre os perigosde ser gentleman e outros ensaios [risos].

Ora, daquela greve de 1979, quero contaraos colegas o seguinte: eu, no exercício da pre-sidência, mais de uma vez oficiei ao Reitor deentão. Qual o resultado? Não respondia aosmeus ofícios. Só isto. Uma descortesia tão pro-funda que não chegava a ser descortesia. Era oseguinte: "isto não existe"; "responder oquê?"; "o que este homem está fazendo?";"que associação é essa?". Bom, foi a greve quedeu coesão. A greve derrotada de 1979 pratica-mente criou o cimento que uniu a ADUSP.Naquele momento, pela primeira vez, os fun-cionários da Universidade entraram na lutaconosco. Ainda naquele tempo havia um cor-porativismo mais acentuado, nós funcionáva-

mos em deliberações separadas, mas os funcio-nários entraram conosco, para escândalo degrande parte de nossos colegas mais apegadosao passado.

Hoje não apenas os funcionários, mas osestudantes estão junto com os professores,deliberando, com freqüência, organicamente.Querem um progresso maior do que este, doponto de vista democrático, do ponto de vistadas relações humanas, dentro da Universidade,da sociedade?

Refletindo, extrapolando daquela nossasexta-feira meio angustiosa, de fluxos e reflu-xos, penso o seguinte: estes fluxos e refluxosque ocorreram, não na sexta-feira, mas nos 30,ou nos 40, ou nos 50 dias de greve são umaextraordinária educação política. E são algumacoisa mais que nos permitirá, por exemplo,depois de termos dado um balanço nas nossasconquistas materiais e funcionais, nos deixarmuito mais abertos para a grande discussão dofuturo da Universidade. Depois desta grevenós poderemos, com muito mais segurança,enfrentar o grande problema que é um proble-ma a que o prof. Bosi se referiu - o descalabroque está pairando sobre a Universidade.

De maneira que a minha palavra é de agra-decimento, de agradecimento por ter sido cha-mado depois de um período tão longo de ina-tividade, por estar aqui de novo, vendo a barbabranca do João e lembrando o tempo da barbaloura. Mas, para dizer que espero, que acredi-to que tudo vai acabar bem. E que, em home-nagem ao Reitor da Universidade de Londrina,amigo do Dr. Dalmo Dallari, possamos dizer:finis coronat opus.

Nota

1. Discurso proferido em Ato Público realizado pelo Fó-rum das Seis Entidades, no dia 12 de junho de 2000,durante a greve das três Universidades Estaduais Paulis-tas, em momento em que os reitores haviam fechado asnegociações. Publicado no livro "Tempos de Greve naUniversidade Pública", organizado por Isabel Loureiro eMaria Cândida Del-Masso, Marília: Unesp-Marília-Pu-blicações, São Paulo: Cultura Acadêmica, 2001.

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Introdução:

Este artigo tem como objetivo analisar al-guns elementos do projeto político propos-to pela "terceira via"1, apresentada por An-

tony Giddens2 como uma "filosofia política"sintonizada com as mudanças que estão ocor-rendo no cenário mundial, um programa de"modernização" da economia, do sistema polí-tico e do sistema de bem-estar social. A análiseda essência desta "filosofia política", em seusvários nexos e contradições, demonstra quesua base de fundamentação constitui-se no re-visionismo do projeto burguês de sociabilida-de que, em seu discurso, oferece supostas alter-nativas ao neoliberalismo e ao socialismo. Umprojeto que pode ser identificado como social-

liberalismo3, conceituação que mais claramenteexpressa a retomada "envernizada" do projetoburguês na medida em que, por um lado, man-tém as premissas básicas do liberalismo, e poroutro, recupera elementos centrais do refor-mismo social-democrata, apresentando-se in-clusive, como uma "nova social-democracia"ou uma "social-democracia modernizadora" 4.

Os estudos iniciais da obra de AntonyGiddens demonstraram uma série de afinida-des conceituais e políticas entre o projeto pro-posto pelo sociólogo britânico, professor daLondon School of Ecnomics, assessor de TonyBlair e um dos mais importantes articuladoresdo Novo Trabalhismo inglês e as diretrizes doprojeto nacional de desenvolvimento que vemsendo implementado pelo governo Lula, quais

"Terceira via" ou social-liberalismo: bases para a refundação do

projeto burguês de sociabilidade.

Kátia Lima

Professora da Escola de Serviço Social, doutoranda do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense,

pesquisadora do Coletivo de Estudos de Política Educacional e do Núcleo de Estudos ePesquisas em Educação Superior e membro do GT de Política Educacional da ADUFF-

Seção Sindical do ANDES SN. E-mail: [email protected]

"(...) o grande desafio dos socialistas modernos é governar o capitalismo de forma mais competente e maisjusta do que os capitalistas. Alguma forma de socialismo de mercado poderá ser alcançada no futuro. Agora,porém, quando a Nova Esquerda disputa eleições e assume os governos, ela não o faz para transformar o paísem socialista em um breve espaço de tempo - essa ilusão voluntarista está descartada -, mas para aprofundar ademocracia e promover uma maior igualdade de oportunidade, lograr melhores taxas de desenvolvimentoeconômico do que os partidos conservadores" (Giddens, 1999, p. 13, grifos nossos).

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sejam: 1) a crítica ao socialismo e ao neolibera-lismo e a proposta de viabilizar uma "agendapossível", ou seja, a reforma ou humanizaçãodo capitalismo; 2) a concepção de que a classetrabalhadora não pode mais ser identificadacomo o sujeito político capaz de construir umprojeto de sociabilidade que objetive a rupturacom a ordem burguesa; 3) a defesa do diálogo,do pacto social (aliança entre trabalho e capi-tal) ou "concertação nacional" como estraté-gias para a construção de um novo "contratosocial", a partir de uma intensa "mobilizaçãocívica"; 4) o aprofundamento da agenda neoli-beral para a periferia do capitalismo (conformeas diretrizes dos organismos internacionais do

capital) através da estabili-dade econômica - execuçãode um conjunto de reformas(previdenciária, tributária,trabalhista, sindical e da po-lítica educacional) - articu-lado com a justiça social,concebida como igualdadede oportunidades; 5) a ela-boração de políticas de "in-

clusão social" focalizadas nos segmentospopulacionais mais pobres (o "alívio à pobre-za", lema histórico do Banco Mundial), tendoa educação como estratégia para o fortaleci-mento da coesão ou harmonização social; 6) adiferenciação entre um Estado grande e umEstado forte, ressaltando a necessidade de umEstado regulador que estimule às ações deindivíduos e grupos sociais voluntários, dosmovimentos sociais com suas demandas espe-cíficas, a responsabilidade social dos empresá-rios e as ações dos sindicatos colaboracionistas;7) o estabelecimento de parcerias entre o setorpúblico e o setor privado e a constituição do"setor público não-estatal" como estratégiasde ampliação dos campos de exploração lucra-tiva para o capital, apresentadas como "demo-cratização" do acesso aos serviços públicos5.

O que se evidencia é que o projeto burguêsde sociabilidade tem demonstrado ser capaz derelançar o "velho" sob a aparência do "novo".

Esta capacidade está expressa no projetonacional de desenvolvimento que vem sendoimplementado pelo governo Lula: o aprofun-damento da agenda neoliberal de FernandoHenrique Cardoso apresentado sob a aparên-cia de um projeto democrático-popular. Estacapacidade, entretanto, não significa que as cri-ses e contradições do capitalismo (dependente)estejam superadas, mas colocam para todosnós que pautamos no horizonte político aconstrução do socialismo a tarefa de desmon-tar os projetos que tem apresentado como"agenda possível" um capitalismo reformadoou humanizado e com seu discurso de profun-da ambigüidade (socialismo de mercado) ocul-ta o foco central do debate: o embate entrecapital e trabalho.

1) A "terceira via" e as críticas ao socialismo:"A divisão entre esquerda e direita refletiu ummundo onde se acreditava amplamente que ocapitalismo podia ser transcendido, e onde aluta de classes modelou boa parte da vida polí-tica. Nenhuma destas condições é pertinenteagora" (Giddens, 2001, p. 46).

A "terceira via" apresenta seu arcabouçoteórico desvinculado do pensamento socialista,muito embora advogue para si a identificaçãopolítica como de esquerda. Inspirado nas aná-lises de Norberto Bobbio6, o principal intelec-tual da "terceira via" considera que "ser deesquerda é estar preocupado com a redução dadesigualdade - definindo de forma mais positi-va, com a busca de justiça social. Outros valo-res de esquerda, como a cooperação social e aproteção dos fracos, originam-se desta eternapreocupação" (idem, p. 46). E complementaafirmando que ser "esquerda modernizadora"é ser capaz de conduzir uma reforma profundadas instituições políticas, econômicas e sociaismais adequadas à nova dinâmica do capitalis-mo, apresentando como objetivo político areforma ou governo do capitalismo, através doestabelecimento de um novo contrato social.

É com essa autodenominação de "esquerda

As "Reformas" do Governo Lula

O que se evidencia é queo projeto burguês de so-ciabilidade tem demons-trado ser capaz de relan-çar o “velho” sob a apa-rência do “novo”.

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modernizadora" que a "terceira via" dirigeinúmeras críticas ao socialismo, concebido deuma forma ampla, desde a social-democraciaeuropéia até o socialismo revolucionário. Umprimeiro nível dessas críticas, condena a con-cepção de homem enquanto sujeito políticocapaz de definir os rumos da histórica, cons-truindo e reconstruindo seus próprios desti-nos. Na interpretação da "terceira via", "oseventos não confirmam essas idéias (pois) omundo em que vivemos hoje não está sujeitoao rígido controle humano... quase ao contrá-rio, é um mundo de perturbação e incertezas"(idem, 1996, p.11).

O segundo nível, em articulação ao primei-ro, defende que o socialismo apresenta umaconcepção instrumental da história, pois foi oportador da idéia de "progressivismo", ou seja,de que existe uma direção para a história cons-truída pelos homens e de que a humanidade secoloca dois caminhos: ou o socialismo ou abarbárie. O terceiro nível de críticas, afirmaque o socialismo possui também uma concep-ção instrumental da natureza, na medida emque a natureza não é vista como parceira, masdeve atender as necessidades humanas.

Para a "terceira via", esta concepção da his-tória está articulada à idéia de transição de umtipo de sociedade para outro. Entretanto, afir-ma reiteradamente a derrota do socialismo apartir da compreensão de que "a perda da idéiade revolução, enquanto revolução socialista -uma vez que é uma aspiração que certamentedesapareceu -, é um dos principais fatores res-ponsáveis pelo 'encolhimento' do socialismo,o que é visível atualmente em todos os lugares"(idem, p.77).

Diante deste quadro de derrotas, o socialis-mo passa a se concentrar na defesa do welfarestate, ponto principal da pauta do socialismoreformista. A "terceira via", entretanto, afirmaque o welfare: a) gera uma dependência previ-dencial, uma passividade nos indivíduos; b)tende a se burocratizar e, 3) desconsidera oslimites fiscais para o seu financiamento, gera-dos pelas mudanças demográficas e pelo

aumento das aposentadorias. O socialismo é apresentado como uma

variante do liberalismo, um "liberalismoético", segundo Giddens. O debate sobre osocialismo se desenvolve nos limites da críticaaos regimes burocráticos do Leste Europeu eao welfare state. O pensamento social-liberalgiddeniano não aprofunda os termos destedebate, na medida em que não faz qualquer re-ferência a diferenciação entre o projeto socia-lista revolucionário e o "socialismo realmenteexistente" (Mészáros, 2002, p.747). Como afir-ma Netto:

"Não é, portanto, a crise do projeto socialistarevolucionário nem a infirmação da possibili-dade da transição socialista: é a crise de umaforma histórica precisa de transição, a crise deum padrão determinado de ruptura com a or-dem burguesa - justamente aquele que se eri-giu nas áreas em que esta não se constituíraplenamente" (Netto, 1995, p. 23).

É neste quadro político mais amplo, negandotanto o socialismo revolucionário e a possibili-dade de construção da sociedade socialista,como as reformas sociais presentes no welfarestate, que a "terceira via" afirma que o socialis-mo morreu: "a proposição de que o socialismoestá moribundo é muito menos controversa hojedo que há uns poucos anos" (Giddens, 1996,p.17). Nesse sentido, a "terceira via" advoga aconstrução de um programa político capaz deadaptar a social-democracia às transformaçõesocorridas no mundo nas últimas décadas doséculo XX, ou seja, reformar e governar o capi-talismo, reafirmando, conseqüentemente, o pro-jeto burguês de sociabilidade.

2) A "terceira via" e a reforma do capita-lismo:

"A sociedade civil deve assumir tarefas quenão podem ser realizadas pelo Estado. Masnão é fácil divisar como isto deve ser feito, e sóo que podemos fazer é lidar com aspectosdesta questão. Temos de descobrir novas for-mas de defender o espaço público e redefinir

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as fronteiras entre o público e o privado"(Giddens, 2001, p. 29, grifos nossos).

A "terceira via" direciona críticas ao neoli-beralismo argumentando que a lógica neolibe-ral: a) defende o sistema de mercado como ainstância da eficiência econômica e da liberda-de individual; b) enfatiza o individualismo eco-nômico como a chave para a democracia e, c)aborda as transformações atuais geradas pelaglobalização de maneira muito limitada àsnecessidades de desregulamentação dos merca-dos e maximização dos lucros, sem perceber aimportância do capital social, ou seja, da açãosocial voluntária dos indivíduos e grupos e dasolidariedade e responsabilidade social dosempresários.

Neste sentido, a "terceira via" defende a ne-cessidade de reordenar a vida coletiva e indivi-dual, articulando a solidariedade social com oindividualismo e a responsabilidade pessoalcom a responsabilidade social. Daí a crítica aoneoliberalismo por entender individualismocomo expressão do comportamento que é inte-resseiro e que tende à maximização dos lucrosdo mercado.

"o novo individualismo que acompanha aglobalização não é refratário à cooperação e àcolaboração - a cooperação (em vez da hierar-quia) é positivamente estimulada por ele. Ocapital social se relaciona com as redes de con-fiança que os indivíduos podem formar paraobter apoio social, assim como o capital finan-ceiro pode ser formado para utilização eminvestimento. Como o capital financeiro, ocapital social pode ser expandido - investido ereinvestido" (idem, 2001, p. 83).

A "terceira via" recupera, assim, comopressuposto básico da sua construção analítica,o individualismo, como um valor moral radicaldo liberalismo burguês inspirado no pensa-mento durkheimiano.

"Durkheim tinha uma concepção singularsobre a natureza da moralidade moderna...Necessitamos de algum outro tipo de sistema

moral, que Durkheim dizia existir na ótica daRevolução Francesa. Podemos ter uma mora-lidade que seja não apenas social, coletiva, porassim dizer, mas que também reconheça afundamental importância da liberdade indivi-dual" (Giddens e Pierson, 2000, p. 48).

A liberdade individual, as noções de res-ponsabilidade e solidariedade expressam umaconcepção do indivíduo descolado da luta declasses e apontam para a necessidade de supe-ração de uma perspectiva que defende a exis-tência de uma classe, sujeito político capaz deredirecionar a história. Essa superação se rela-ciona com a existência de valores universaissobre a vida humana, dos direitos humanosuniversais, da importância da preservação dasespécies e dos cuidados com as gerações futu-ras, fazendo com que a responsabilidade naimplementação deste projeto seja de todos osindivíduos.

"Responsabilidade também é uma das chavespara a atuação. Hoje é preciso que repudiemoso providencialismo - a idéia de que os sereshumanos só se colocam problemas que podemresolver - junto com ele, temos de descartar aidéia de que existem agentes enviados paracumprir as finalidades da história, incluindo-se a idéia metafísica de que a história é 'feita'pelos despossuídos...não existe um únicoagente, grupo ou movimento que, como oproletariado de Marx deveria fazer, possa con-ter as esperanças da humanidade" (Giddens,1996, p. 30).

A política proposta, identificada como"política gerativa", estimula a atuação de todosos indivíduos e grupos na ordem social, cons-tituindo o principal meio de abordar a questãoda pobreza e da necessidade de "inclusão so-cial".

"A política gerativa é uma política que buscapermitir aos indivíduos e grupos fazer as coisasacontecerem, e não esperarem que as coisas lheaconteçam, no contexto de preocupações e obje-tivos sociais totais... A política gerativa é uma

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defesa da política de domínio público, mas elanão se situa na velha oposição entre Estado emercado" (idem, p. 21, grifos nossos).

A pobreza e o desemprego aparecem comoinfortúnios ou conseqüências da incapacidadeindividual. Cada indivíduo conseguirá acesso aestes bens e serviços conforme suas habilida-des, competências e capacidades. A lógica é,portanto, meritocrática. Estimular essas capa-cidades é fundamental no enfrentamento dapobreza, que não deve ser entendida comouma condição permanente que exija programasde assistência social de longo prazo, mas comocondição transitória - de alguns indivíduos ougrupos sociais menos capacitados- o quedemanda ações focalizadas na busca de justiçasocial.

"A busca de justiça social foi com freqüênciaidentificada com uma grande ênfase na igualdadede renda e, como conseqüência, esforço e respon-sabilidade foram ignorados. A justiça social foiidentificada com níveis ainda mais altos de gastospúblicos que quase não tinham relação algumacom o que realmente foi alcançado ou com oimpacto dos impostos sobre a competitividade e acriação de empregos" (Giddens, 2001, p. 16).

A justiça social, para a "terceira via", nãopode estar desvinculada dos deveres indivi-duais e do apoio mútuo entre indivíduos e gru-pos sociais. A partir de uma crítica ao quedenomina de "igualitarismo a qualquer preço",a "terceira via" afirma que

"a esquerda contemporânea precisa desen-volver uma abordagem dinâmica à igualda-de, destacando primariamente a igualdadede oportunidades. Os social-democratas mo-dernizadores também têm de encontrar umaabordagem que harmonize a igualdade com opluralismo e a diversidade de estilo de vida,reconhecendo que os embates entre liberdadee igualdade, para os quais os liberais clássicossempre apontaram, realmente existem" (idem,p. 90, grifo nosso).

Daí o teorema utilizado por Giddens (idem,

p.58): "não há direitos sem responsabilidades".Essa responsabilidade individual vincula-se aoconceito durkheimiano de solidariedade sociale na medida que reduz os antagonismos declasse às desigualdades, a luta de classes perdea centralidade e é substituída pela tentativa deconciliação entre capital e trabalho. "A idéiado conflito de classes como mola propulsorada história certamente deve ser rejeitada. Dizerque esse conflito é a força motriz da mudançahistórica não convence" (Giddens e Pierson,2000, p.52).

Além da retomada do individualismo comoum valor moral radical do liberalismo burguês,um segundo elemento central do pensamentoliberal será utilizado. O mercado será conside-rado como o local da eficácia econômica, degestão da vida social, umespaço privilegiado de re-produção da sociabilidadeburguesa.

Porém, o mercado nãopode se auto-regular. É neces-sária a ação do Estado, guar-dião dos contratos e da ordemestabelecida (terceiro funda-mento do pensamento liberalburguês) e simultaneamente, estimulador de umacultura cívica. Não se trata de um Estado grande,medido pelo número de funcionários e pelotamanho de seu orçamento, mas de um Estadoforte e ativo para fomentar o "empreendedoris-mo" e a "responsabilidade social" dos indiví-duos, grupos e "empresários sociais".

"No passado, alguns membros da esquerdaviam o 'terceiro setor' (o setor sem fins lucrati-vos) com suspeita. O governo e outros organis-mos profissionais devem o quanto for possívelassumir os grupos do terceiro setor, que sãocom freqüência amadores e dependentes de im-pulsos caritativos erráticos. Para tanto, eles pre-cisam ser ativos e empreendedores. Os empresá-rios sociais podem ser inovadores muito efica-zes no domínio da sociedade civil, ao mesmotempo que contribuem para o desenvolvimentoeconômico" (Giddens, 2001, p. 86).

O mercado será conside-rado como o local da efi-cácia econômica, de ges-tão da vida social, umespaço privilegiado dereprodução da sociabili-dade burguesa.

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As "Reformas" do Governo Lula

Buscando sua base de fundamentação teóri-ca e política em Durkheim, o social-liberalis-mo giddeniano critica as conseqüências sociaisda ausência de regulação moral da esfera eco-nômica. O papel do Estado, portanto, é garan-tir essa regulação moral do mercado, espaço daeficácia econômica, da concorrência e da liber-dade individual.

É neste contexto que a "terceira via" apresen-ta o conceito de "governança" ou "governação".

"Governo, assim, torna-se menos identificadocom 'o' governo - o governo nacional - e maisabrangente. A 'governação' torna-se um con-ceito mais relevante para designar algumasformas de capacidades administrativas ou re-guladoras. Agências que ou não são parte denenhum governo - organizações não-gover-namentais- ou são de caráter transnacional,contribuem para a governação" (Giddens,2000, p. 42).

A governança, para além da ação política deum governo, significa a capacidade reguladoraque articula a esfera estatal e a esfera privada(base de fundamentação do conceito de "pú-blico não estatal") em âmbito nacional e inter-nacional. Na atualidade é fundamental a cons-trução de uma agenda que busque a reformadas funções e do tamanho do Estado e da rela-ção estabelecida entre o Estado e a sociedadecivil. Uma reforma que tenha como centralida-de a ampliação da esfera denominada de "pú-blica não-estatal", ou seja, a ampliação dos me-canismos de parceria para que o Estado possadividir responsabilidades e ações com o setorprivado. Para viabilizar essas ações, "os incen-tivos fiscais podem ser mesclados com outrasformas e regulamentação. Os incentivos posi-tivos à filantropia, por exemplo, podem ter umpapel tão significativo quanto o dos impostosna transmissão direta de riqueza" (Giddens,2001, p.105).

O Estado ativo deve criar um processo dereordenamento político e jurídico que favore-ça o "ambiente de negócios", a privatização desetores estratégicos para o empresariado, esti-

mulando e expandindo o setor privado."Um clima positivo para a independência doempresariado e a iniciativa deve ser alimenta-do. Mercados flexíveis são essenciais para quese reaja com eficácia à mudança tecnológica. Aexpansão das empresas não deve ser obstruídapor demasiados regulamentos e restrições"(idem, p. 16).

As sociedades contemporâneas são, portan-to, constituídas pelo Estado, exercendo umaação reguladora das relações sociais; pelosmercados, porque são efetivos do ponto devista econômico; e pela sociedade civil ativa,solidária, instância da ajuda mútua. A "terceiravia" apresenta, desta forma, o tripé - comoafirma Giddens (2003, p.87) um "banquinhode três pernas" - responsável pela harmoniza-ção/coesão social cujo objetivo será apagar osmúltiplos e profundos antagonismos de classeque caracterizam o capitalismo.

"Não deveríamos conceber a sociedade comodividida em apenas dois setores, o Estado e omercado - ou o público e o privado. No meio,há a área da sociedade civil, que inclui a famíliae outras instituições não econômicas. A socie-dade civil é a arena em que atitudes democráti-cas, entre as quais a tolerância, tem que serdesenvolvidas... Já se comparou uma democra-cia eficiente com um banquinho de três pernas.Governo, economia e sociedade civil precisamestar em equilíbrio" (idem, p. 87).

O Estado deve regulamentar as ações dosetor privado, colaborar com o terceiro setor eorganizações não governamentais, fomentar a"responsabilidade social" dos empresários pormeio de incentivos fiscais e

"estimular as empresas e os sindicatos a tra-balharem juntos para a reestruturação econô-mica diante da mudança tecnológica...além delidar diretamente com os funcionários, os sin-dicatos agora precisam promover a empre-gabilidade e o treinamento em habilidades.Os sindicatos podem negociar ligações dostrabalhadores à comunidade mais ampla,

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As "Reformas" do Governo Lula

ajudar a proporcionar acesso ao aprendiza-do vitalício e formar cooperativas de aquisi-ção do setor privado" (Giddens, 2001, p. 151,grifo nosso).

A sociedade civil constitui-se como um ele-mento político fundamental para a "terceiravia". É um espaço de ajuda mútua, de solida-riedade, de fundamento da cidadania.

A "terceira via", recuperando os elementospolíticos do reformismo social-democrata ob-jetiva transformar os trabalhadores em cida-dãos7. A cidadania será a expressão da igualda-de formal entre os indivíduos, no entanto, "acidadania, entendida como articulação entreindivíduos juridicamente livres, oculta asdeterminações reais. Oculta, no fundamental,o seu caráter classista" (Dias, 1999,42).

Os sujeitos políticos coletivos - sindicatosclassistas e partidos que possuem como hori-zonte político a superação da ordem burguesa- são desqualificados. Ocorre uma ressignifica-ção dos sujeitos coletivos, valorizando-se asações de ONG´s, de grupos de voluntários, deuma "sociedade civil global" como a encarna-ção atual desta cidadania abstrata.

Se a cidadania expressa a liberdade formalentre indivíduos, a noção de democracia seresume ao estabelecimento de acordos parasolução de conflitos, um conceito de democra-cia restrito às regras do jogo burguês: tanto noparlamento como na democracia direta, ademocracia perde a adjetivação quando desco-lada da luta de classes. O que se apresenta éuma democracia formal de tipo liberal. O pac-to/contrato social como instrumento de regu-lação social e a concepção de democracia/cida-dania formal materializam a perspectiva decoesão social, de harmonização social. A coe-são social surge como articulação entre o "no-vo individualismo" e a solidariedade social.

Na medida em que democracia e cidadaniasão concebidas como igualdade jurídica ouigualdade formal entre indivíduos, a luta pelacidadania e pela "democratização da democra-cia" (nos marcos do projeto de sociabilidade

burguesa) substitui os antagonismos, substituia luta de classes8. Daí porque a política dealianças torna-se um instrumento fundamen-tal, pois, trabalhadores e burguesia têm emcomum a reivindicação da democracia, tornan-do possível, inclusive, a constituição de umbloco político eleitoral cuja linha de ação polí-tica será a estabilidade econômica - através deum conjunto de reformas neoliberais preconi-zadas pelos organismos internacionais do capi-tal - com justiça social, concebida como igual-dade de oportunidades para os indivíduos.

Existem duas dimensões principais de umaordem democrática para a "terceira via": "Porum lado, a democracia é um instrumento paraa representação de interesses. Por outro, é umamaneira de criar uma arenapública na qual assuntoscontroversos possam serresolvidos, ou pelo menos,abordados por meio de diá-logo e não por formas prees-tabelecidas de poder"(Giddens, 1996, p.24).

O programa político pro-posto concebe o diálogocomo a tentativa de conciliação dos (inconci-liáveis) interesses entre capital e trabalho, paraobtenção de um consenso que tenha comoobjetivo obscurecer o aprofundamento dosantagonismos sociais que caracterizam o cená-rio mundial na atualidade. O diálogo como viade conciliação dos antagonismos que consti-tuem a ordem burguesa.

"Sempre que surge um antagonismo que põeem dúvida a ordem social, um pouco mais pe-rigosamente que o costume (comum é que) seapele à eventualidade de uma prática do diálo-go, da qual se espera tenha a virtude de conci-liar as contradições, de aproximar as divergên-cias (ou as subdivergências), de reduzir asdiferenças; em suma, devolver os antagonis-mos a um lugar, sólido e neutro, no qual seexerça, na transparência, a boa vontade.o diá-logo (e seus pastiches modernos: a concerta-ção, a participação...) é precisamente uma ilu-

A luta pela cidadania epela "democratização dademocracia" (nos marcosdo projeto de sociabilida-de burguesa) substitui osantagonismos, substitui aluta de classes8.

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As "Reformas" do Governo Lula

são, que dá às almas boas e formosas a ocasiãode agitar-se moralmente, e aos que detêm aforça a ocasião de legitimar discursivamenteseu poder... quaisquer que sejam a gravidadedo conflito e a importância do que nele seventila, que seja sempre possível chegar a umacordo" (Chatelet 2003, p. 188).

O objetivo da "terceira via" será a amplia-ção do grau de socialização da participaçãopolítica. Essa ampliação se dá:

a) no parlamento, através das alianças queobjetivam reformar o Estado, concebido comoum espaço a ser conquistado, um aparelho deregulação republicana que merece ser reforma-do e não destruído9. Para a nova social-demo-cracia, como a "terceira via" se intitula, o socia-

lismo passa a ser entendidocomo um valor moral, ético,de igualdade política (nãoobjetiva a igualdade econô-mica)10;

b) nos espaços da socie-dade civil: nos movimentossociais com suas demandasespecíficas e fragmentadas,nos grupos de auto-ajuda,

nas organizações não governamentais, nos sin-dicatos colaboracionistas absolutamente ade-quados à ordem do capital, nas ações indivi-duais voluntárias e no "surto esquizofrênico"que este projeto defende a partir do discursosobre a "responsabilidade social" dos empresá-rios11.

Cabe à política da "terceira via" reconectar,através do pacto social ou concertação "nacio-nal, o governo", o mercado e a sociedade civil,pois, como afirma o autor,

"precisamos reconectar essas esferas pormeio de um novo contrato social, adequadopara uma era em que a globalização e o indivi-dualismo andam lado a lado...O governo devemanter um papel de regulamentador emmuitos contextos, mas tanto quanto possíveldeve se tornar um facilitador, proporcionan-do recursos para que os cidadãos assumam a

responsabilidade pelas conseqüências de seusatos" (Giddens, 2001, p. 167, grifo nosso).

Considerações para o debate:A "terceira via" atua, portanto, na formação

de uma nova sociabilidade baseada na igualda-de de oportunidades e na solidariedade social.Nesta direção política, articula a teoria do ca-pital humano - capacidade individual e igual-dade de oportunidades - com o capital social -responsabilidade e solidariedade sociais - nocenário de um "capitalismo responsável". "Nanova economia da informação, o capital huma-no (e social) torna-se essencial para o sucessoeconômico. O cultivo destas formas de capitalexige um investimento social extenso - emeducação, comunicações e infra-estrutura".(Giddens, 2001, p. 59).

Educar no sentido restrito da educação es-colar, como formação técnico-operacional eético-política do novo trabalhador-cidadão, eem sentido amplo, para a coesão social, são astarefas da "terceira via" no novo milênio. "Aprincipal força no desenvolvimento de capitalhumano obviamente deve ser a educação. É oprincipal investimento público que deve esti-mular a eficiência econômica e a coesão cívi-ca." (Giddens, 2001, p. 78).

Assim, a "terceira via" retomará em suaconstrução teórica e de ação política uma sériede elementos que atravessaram o debate histó-rico da social democracia.12 Apresentando-secomo uma "nova social democracia" ou uma"social democracia modernizadora", recuperaconcepções que estavam presentes nos embatespolíticos travados por E. Bernstein e K. Kauts-ky, guardadas as especificidades do pensamen-to político de cada autor.

A concepção de uma história linear, evolu-cionista e de que as instituições liberais nãoprecisam ser destruídas mas ampliadas para ga-rantir a participação dos trabalhadores sãoaproximações que podem ser realizadas entre aproposta de ação política do social-liberalismogiddeniano e do reformismo social democrata.Para a "terceira via", as políticas sociais, mes-mo que focalizadas, e o direito ao voto são

A ruptura com o projetosocietário burguês nãoestá na pauta de açãomas na busca por um con-junto de reformas neoli-berais nos marcos da ins-titucionalidade burguesa.

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As "Reformas" do Governo Lula

compreendidos como concessões do capitalis-mo que garantem a elevação das condiçõesmateriais e culturais dos trabalhadores e im-põem a necessidade de revisão histórica da lutapelo socialismo.

Igualdade de oportunidades, liberdade eresponsabilidade individuais são elementosfundamentais deste projeto. A "terceira via"ou social-liberalismo naturaliza o capitalismo.A ruptura com o projeto societário burguêsnão está na pauta de ação mas na busca por umconjunto de reformas neoliberais nos marcosda institucionalidade burguesa13.

A "terceira via" é, portanto, a expressãomais clara do social-liberalismo, uma constru-ção teórica e de ação política que tem, de fato,como objetivo político consolidar e aprofun-dar o projeto burguês de sociabilidade "enver-nizado" pelo discurso de um projeto democrá-tico popular.

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Notas

1. Em relação à origem do termo "terceira Via", Chauí(1999) afirma que esse termo foi empregado pelo fascis-mo para indicar um projeto político que se pretendiaeqüidistante do liberalismo e do socialismo, reapareceunos anos 40 para consolidar o peronismo e outrora comoagora, tem a pretensão de colocar-se além da direita libe-ral e da esquerda socialista.2. Giddens, ao longo de sua obra, identifica a "terceiravia" a partir de várias denominações: centro radical, cen-tro esquerda, nova esquerda, nova social democracia,social democracia modernizadora ou governança pro-gressista. Neste artigo utilizaremos a expressão " terceiravia" para identificar o arcabouço teórico e de ação políti-ca elaborado pelo autor.3. "Por social-liberalismo entendemos um amplo movi-mento em escala internacional de incorporação de pre-missas do neoliberalismo por tradicionais partidos deorientação trabalhista e social-democrata" (Bianchi, A eBraga R., 2003, p. 205).4 Cabe destacar a existência de uma série de identifica-ções entre a perspectiva giddeniana e o socialismo liberaldefendido por Norberto Bobbio. A respeito da obra deBobbio, Mondaini (2004) afirma que "assim, por um

lado, os socialistas sempre se voltaram contra as liberda-des e garantias individuais (o viés civil da cidadania), porentenderem que estas, na verdade, apenas camuflavam osinteresses concretos da dominação de classe burguesa e arespectiva preservação da propriedade privada. Por outrolado, os liberais nunca admitiram a ampliação dos direi-tos sociais rumo a uma maior igualdade (a faceta social dacidadania), no temor de que as minorias fossem destruí-das nos processos de construção da vontade geral e decoletivização das riquezas materiais. Foi preciso umaprendizado trágico com a experiência histórica para quesocialistas e liberais se conscientizassem de que amboshaviam se chocado com uma terceira tradição do pensa-mento político ocidental: a democrática. O filósofo polí-tico italiano Norberto Bobbio parece-nos ser a 'consci-ência ideal' dessa necessidade surgida num período emque a palavra 'crise' ronda nossas cabeças: crise da racio-nalidade, crise da modernidade, crise da democracia, crisedas utopias, etc. Sua proposta de fusão dos aspectos posi-tivos do liberalismo e do socialismo, seu projeto de umavia 'socialista liberal' realizam um verdadeiro encontrodas duas tradições do pensamento político ocidental coma democracia, forjam num só corpo os três braços da ci-dadania: as liberdades civis, as garantias políticas e os di-reitos sociais. Em suma, Bobbio leva a cabo uma síntesedemocrática entre socialismo e liberalismo, baseada fir-memente numa visão pluralista de mundo". A crítica àsanálises de Mondaini são desenvolvidas por Segrillo(2004) a partir da concepção de que a obra de Bobbio de-veria ser identificada como "liberalismo social", pois "emsua atuação filosófica e política concreta, ele certamentedá um peso muito maior aos valores liberais de liberdadeindividual, cerceamento dos poderes do Estado etc., queaos valores ligados à socialização da produção. Em suma:vejo-o mais disposto a sacrificar os valores socialistaspara não causar dano às liberdades individuais do libera-lismo que vice-versa".5. As análises dos principais documentos e dos projetosimplementados pelo governo Lula da Silva - que nos per-mitiram identificar aproximações entre o arcabouço teó-rico e da ação política da "terceira via" e o projeto nacio-nal de desenvolvimento do governo federal - foram reali-zadas em Governo Lula - "neoliberalismo requentado erequintado". Elementos políticos da reforma da educaçãosuperior Lima, 2004; Reforma universitária do governoLula: o relançamento do conceito de público não-estatalLima, 2004a e Reforma da política educacional brasileira:a submissão do governo Lula às políticas dos organismosinternacionais do capital Lima, 2004b. Indico como refe-rências importantes para este debate os seguintes artigos:Para onde vai o Brasil? Petras e Vetmeyer, 2003; Ca-

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XIV, Nº 34, outubro de 2004 - 2211

As "Reformas" do Governo Lula

pitalismo patrimonial nos trópicos? Terceira via e governoLula Bianchi e Braga, 2003; Traição ou lógica? Dias, 2004e Neoliberalismo com face humana Chossudovsky, 2003.6. Vale consultar a extensa bibliografia de Norberto Bob-bio e analisar sua concepção da social democracia comoum desenvolvimento do pensamento liberal, indico espe-cialmente Qual socialismo? Discussão de uma alternativa(1987) e Liberalismo e Democracia (1990).7. "A democracia social não deseja aniquilar essa socieda-de e fazer de todos os seus membros novos proletários;trabalha quase incessantemente para elevar o trabalhador,de uma situação social de proletário, à posição geral decidadão e, assim, fazer da cidadania um direito universal"(Bernstein, 1997, p.116).8. A crítica elaborada por Rosa ao reformismo aponta aslimitações da democracia representativa. Limitações quese articulam com a própria lógica do Estado burguês. Acrítica à social democracia e a "suspensão" da luta de clas-ses para proclamação da "união sagrada" entre burguesiae proletariado foi realizada por Rosa Luxemburgo quan-do afirma que: "o outro aspecto da atitude social-demo-crata era a aceitação oficial da Sagrada União, quer dizer asuspensão da luta de classes enquanto durasse a guerra. ovoto dos créditos pelo grupo parlamentar deu exemplo atodas as instâncias dirigentes do movimento operário. Oschefes sindicais fizeram cessar imediatamente todas aslutas de salários e comunicaram oficialmente a sua posiçãoaos empresários, invocando os deveres da Sagrada União.A luta contra a exploração capitalista foi espontaneamen-te interrompida durante a guerra. Estes mesmos chefessindicais tomaram a iniciativa de fornecer aos agricultoresa mão-de-obra citadina, de modo a que as colheitas nãofossem interrompidas" (Luxemburg, 1974, p. 113).9. Lembramos a polêmica travada entre Lênin e Kautskyem torno da conquista/destruição do Estado analisadapor Colletti (1975): "a teoria da estrita conquista dopoder, mas não também da destruição-transformação, emgerme, (se apresenta como) uma teoria inter-classista doEstado. Dizendo melhor, é a perene oscilação entre doispólos extremos: um subjetivismo desenfreado que vê aessência da revolução e do socialismo no acesso ao poderde um certo pessoal político, que é, como se sabe, a buro-cracia do partido, e uma concepção interclassista doEstado".10. "... a tarefa da democracia social é, ainda por muitotempo, em lugar de especular sobre um grande desastreeconômico, organizar politicamente as classes operárias edesenvolvê-las como uma força democrática; lutar portodas as reformas do Estado que se adaptem a erguer asclasses obreiras e transformar o Estado na direção da de-mocracia" (Bernstein, 1997, p. 26).

11. Faço referência ao texto de Paulo Eduardo Arantes(2000) quando afirma que "as grandes empresas estãopassando nos últimos tempos por uma espécie de surtoesquizofrênico, pois agem, mas sobretudo falam, dando aentender que no fundo são organizações sociais sem finslucrativos, que aspiram de todo o coração à 'zona sideralda total abnegação' (...) o surrealismo da empresa que nãovisa lucro, mas se interessa exclusivamente pelo retornoético da cidadania como novíssimo fator de produção,responde a essa esquizofrenia de base de um mundointeiramente racionalizado pela economia monetária".12. Uma questão que diferencia o social liberalismo gid-deniano e o reformismo social democrata, inspirado emBernstein, é que o segundo tinha como perspectiva aconstrução de uma estratégia cumulativa de forças atra-vés das reformas com o objetivo de alcançar o socialismo,ainda que este objetivo acabasse obscurecido pela ade-quação do projeto social-democrata a reformas dentro daordem burguesa. Como afirma Trotski (1930): "o refor-mismo é a corrente surgida dos extratos superiores e pri-vilegiados do proletariado, que reflete os interesses des-ses extratos. Especialmente em alguns países, a aristocra-cia e a burocracia operárias conformam uma camada mui-to importante e poderosa com uma mentalidade que namaioria dos casos é pequeno-burguesa, em virtude desuas condições de existência e formas de pensar; porém,devem se adaptar ao proletariado, sobre cujas costas seelevam. Os mais elevados destes elementos chegam aopoder e bem-estar supremos, pelos canais parlamentaresburguês". Para o social-liberalismo, o socialismo, comoprojeto revolucionário contra a ordem burguesa, não estásequer no horizonte político, somente o que os intelec-tuais orgânicos da burguesia denominam de "socialismode mercado". 13. "Ao nos referimos à institucionalidade, não nos pren-demos à forma jurídica, mas ao adensamento da rede depráticas que constituem, a um só tempo, a individualida-de e o coletivo" (Dias, 1999, p. 41).

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XIV, Nº 34, outubro de 2004 - 2233

O governo Lula: o atual momento da contra-revolução capitalista

Examinando a história recente do Brasil ve-mos que as crises capitalistas necessitam eexigem para a sua resolução que se redese-

nhem as formas produtivas e, conseqüente-mente, as classes sociais. Mais ainda é necessá-rio redesenhar a institucionalidade: em especialo conjunto de leis sobre o trabalho (aí com-preendida a forma sindical), a educação, a ges-tão da política (ou seja a Reforma do Estado).Trata-se, portanto, do redesenho da sociedadepor inteiro. Trata-se de um momento explora-tório. Busca-se com essa hipótese apontar osentido e a direção da política vivenciada hojee no quadro da qual afirmamos a existência deum processo contra-revolucionário preventi-vo. Os elementos dessa análise, aqui esboçadasumariamente, passam, entre outros limitesobjetivos, pela organização / desorganizaçãodas classes sociais, a existência ou não de umprojeto nacional da burguesia e da relação in-ternacional de forças.

Nossa tese é clara. A crise do capital supõe

a refundação do Estado, a reconstrução dasrelações sociais como um todo, o redesenhodas classes. No fundamental essa alteração im-plica em suprimir o antagonismo, seja no planodas lutas de classe na sociedade, seja nas lutastravadas "na produção". Hoje o processo derefundação do Estado é ainda mais amplo. Atentativa é de construir uma classe trabalhado-ra do capital e não apenas para o capital. Tudoe todos têm que ser reduzidos às formas maistotalitárias do capital. Seguramente algumasprecisões se fazem necessárias. Pensamos aqui,em especial, nos projetos governamentais debrutal alteração das estruturas universitária,sindical e trabalhista. Poderíamos ainda tocarna questão da alteração da ordem política, ju-diciária e tributária.

O atual governo de conciliação de classessubordina-se inteiramente ao imperialismo,tem na Presidência da República, um ex-operá-rio que desempenha um papel na articulação,nos marcos do espaço territorial brasileiro, dobloco de poder comandado pela burguesia fi-nanceira internacional, o que não exclui even-tuais contradições com esta. Esse governo que

Reformas ou Contra-revolução?O governo Lula

Edmundo Fernandes Dias

"O estado cria as classes e as traz para o seu seio".Antonio Luis de Souza Mello1

Professor Aposentado do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE2244 - DF, Ano XIV, Nº 34, outubro de 2004

As "Reformas" do Governo Lula

abandonou qualquer pretensão de projetonacional autônomo deve realizar todas as rede-finições da ordem capitalista ainda com"apoio" popular. Para tal conta com a militân-cia (seja a autêntica, seja a de "resultados") dopartido que exerce o governo.

A eficácia do governo e de suas políticasrequer e necessita a desorganização objetivados antagonismos e eliminação do sentido pro-tagônico das classes trabalhadoras. Para tal eleatua: a) na construção/consolidação de umCentrão modernizado e ampliado e b) na ten-tativa de incorporação da Central à ordemestatal. É a construção do mais amplo arco dealianças já conhecido na política brasileira.Todos os ex-"inimigos" (bravata, diria Lula)de Sarney a ACM passando por Maluf, sãoagora "neo-companheiros", membros do sele-to Clube da Ordem Petista. A compra de votosde parlamentares para a aprovação dos seusprojetos, o feroz assédio ao Judiciário (com asameaças de uma reforma judiciária "compa-nheira"), a procura do mais absoluto controledos organismos sindicais, a censura à liberdadede imprensa (eufemisticamente chamada de"orientação"), tudo isso configura o arsenal dogoverno "democrático-popular" (sic) no esta-belecimento do reich petista.

Esta novidade na política brasileira2 trazuma série de conseqüências para a ação dosmovimentos sociais. Cotidianamente ecoa umasérie de notícias e propostas que vêm contradi-zendo aquilo que muitos esperavam. Se algosurpreendeu foi a velocidade do processo.Apesar dessa "novidade", não se alteraram anatureza de classe do Estado e a forma capita-lista de produzir e comandar. A busca de con-senso, orgânica, totalitária, assumiu formas di-ferenciadas como o CDES, espécie de CâmaraSetorial com elefantíase. As burocracias parti-dárias e sindicais que falavam em nome dostrabalhadores apresentam-se agora como mili-tância governamental. Constituíram-se, assim,as novas bases sociais da burocracia, seja a po-lítica, seja a sindical.

Reinventam-se os princípios básicos da

cidadania de tipo liberal para estabelecer-se oambiente necessário à resposta à crise do capi-tal. O Judiciário, ao julgar a constitucionalida-de da contribuição previdenciária dos aposen-tados, subordinou os direitos sociais à lei daacumulação capitalista, rompeu as cláusulaspétreas e o direito adquirido. Isto foi saudadoefusivamente pelo Palácio do Planalto como ofim do "mito dos direitos adquiridos": liberougeral as reformas, disseram. O projeto de re-forma política, com sua Lei de Barreira e o fi-nanciamento dos partidos de forma assimétri-ca, aprofundarão a tendência do estabeleci-mento de uma ditadura civil. Votações simbó-licas no Parlamento, pseudo-audiências públi-cas, uso e abuso ditatorial das Medidas Provi-sórias não apenas buscam a aplicação imediatade propostas obviando os debates políticosmas, sobretudo, dar a aparência de uma con-sulta democrática à sociedade. Usam-se despu-doradamente as pressões sobre o Judiciário esobre o Ministério Público (cf. a fala de Dir-ceu, chefe da Casa Civil e um dos homens for-tes do governo, comparando o MP à Gestapo).Buscam-se impor as chamadas "Lei Mordaça"(da proibição de fala dos trabalhadores do Es-tado à apropriação da tese histórica da'FENAJ- Federação Nacional de Jornalistas'de criação do Conselho de Jornalismo), Nãoapenas se suprimem as liberdades ditas repu-blicanas mas desmoralizam-se as próprias ins-tituições burguesas o que pode abrir o espaçopara soluções de força3. A imprensa, obsequio-samente, cala-se. E o povo, sempre expulso(salvo nos torneios eleitorais) da política, nãosente a necessidade de defender estas institui-ções que normalmente o ignoram.

O modo petista de governar: desorganizar, reprimir

No campo dos movimentos sindical e popu-lar a forma de intervenção governamental vaida cooptação à repressão pura e simples. Paramanter sua política econômica e tentar obter aomáximo a disciplina de seus trabalhadores o

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As "Reformas" do Governo Lula

governo quebrou, com a ajuda de ex-militantese hoje seus funcionários, a unidade das catego-riais e buscou desorganizar a CNESF, apoiar atentativa de oposições sindicais "amigas" emprocessos eleitorais, etc. O governo, com oconcurso da direção majoritária da CUT, dis-solveu os trabalhos da Mesa Nacional de Ne-gociação Permanente e tratou de segmentar ascategorias impondo acordos separados para ca-da um dos segmentos, e nem mesmo isso elecumpriu. Seus negociadores eram desmoraliza-dos pela chamada equipe econômica. As lide-ranças sindicais "companheiras" viram-se empalpos de aranha com as idas e voltas governa-mentais. Chegou mesmo, antecipando-se à Re-forma Sindical ainda em projeto, a tentar fun-dar, com a ajuda da maioria da direçãoda CUT, um novo sindicato na basede outro sindicato cutista que não sesubmeteu. Tudo em nome, é claro, da"liberdade" sindical.

No Brasil o processo de reestrutu-ração capitalista veio sendo construí-do desde a década de 80 e passou desa-percebido pela maioria das direçõespartidárias e sindicais, mas caminhoubrutalmente. Sarney claramente indi-cou o processo ao afirmar, alto e bomsom, que com a Constituição recente-mente proclamada o Brasil seria ingo-vernável. Nada de novo, sem surpresas. A velo-cidade e a consistência no processo de refunda-ção do Estado, da forma econômica, das clas-ses, da burocracia estatal, do processo educa-cional, parece inexorável. Nada pode deter umamodernização globalizada que nada mais é doque o aprofundamento da dominação capitalis-ta e onde a população, majoritariamente, é con-siderada, a um só tempo, obstáculo e supérflua.Esse processo foi facilitado pela progressivadestruição da ação militante da CUT, principal-mente pela ação de sua tendência majoritária apartir do Congresso de Belo Horizonte. Câ-maras setoriais, banco de horas, parcerias etc.,que antes seriam inadmissíveis, colaboraram natransformação da classe trabalhadora.

O governo Lula acabou de destruir a segu-ridade pública e estatal e transformá-la em ins-trumento privilegiado do Sistema Financeiro(responsável em grande medida pelas crisesargentina e chilena)4. Também foi alterado pro-fundamente todo o sistema educacional (ensi-no profissionalizante, diretrizes curriculares,implantação do Sistema Nacional de Avaliaçãoda Educação Superior - SINAES, a adequaçãodas PPP não apenas para incremento de obrasde infra-estrutura, a lei de inovação tecnológi-ca). Busca-se, agora, destruir a liberdade de or-ganização sindical, promovendo a liberaçãomáxima da exploração da força de trabalhopara o capital (leia-se "o negociado prevalecesobre o legislado"). Ampliou-se não apenas a

informalidade e o desemprego,elevando-os exponencialmente,mas atacou-se a possibilidadede sobrevivência. E diante doaviso empresarial de que conti-nuaria com a estratégia das ho-ras-extras para não contratar, o"companheiro" Berzoini ficouzangado e ameaçou... tomar asprovidências devidas. Fala queseria esquecida poucos minutosapós a aparição na mídia.

Lula com a sua "legitimida-de" popular e o mais amplo

arco de alianças da política nacional faz asreformas caminharem sem praticamente oposi-ção. O abuso das medidas provisórias, a enor-me sucessão de Emendas Constitucionais ras-garam a Constituição e minaram os elementosessenciais conquistados pela classe trabalhado-ra. O judiciário julga as políticas macroeconô-micas (como no julgamento do Plano Real, sobCollor) e os interesses contábeis do governocomo superiores aos interesses da população,vem aniquilando não apenas os direitos adqui-ridos, mas a própria essência do Estado dedireito. Foram mais longe e Nelson Jobin5 foialém e proclamou ter chegado a hora dos "di-reitos econômicos", como se a hora destes nãofosse agora e sempre.

O abuso das medidasprovisórias, a enormesucessão de EmendasConstitucionais rasga-ram a Constituição eminaram os elemen-tos essenciais con-

quistados pela classetrabalhadora.

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As "Reformas" do Governo Lula

A CUT de movimento sindical à estrutura estatal

A prática da Central, já faz tempo, é ausen-tar-se das lutas das classes trabalhadoras. Asduas etapas da Reforma da Previdência encon-traram na sua direção majoritária uma gerencia-dora da política de FHC e Lula. Ação coerentee contínua. Ao longo das duas últimas décadas,a Central, pela ação de sua Direção Majoritária,vem progressivamente, e em ritmo acelerado,negando toda e qualquer forma de democraciainterna. Transformou-se em uma central de di-reções e busca, incessantemente, aniquilar avontade das tendências minoritárias.

Ao negar a construção forte e densa deuma subjetividade classista antagônica, aonegar aos trabalhadores a possibilidade depassar ao plano ético-político (anova sociabilidade), fez com queela permanecesse no plano econô-mico-corporativo transforman-do-se em mais um aparato da Or-dem. "Todo poder às burocraciassindicais" é a palavra de ordemnecessária para garantir a Lula oapoio "popular-sindical". Caro eamargo é o preço a ser pago pelasclasses trabalhadoras que vemreagindo a esse processo de blo-queio de sua capacidade de luta.

A classe trabalhadora, nas suas formas maisavançadas organizacional e politicamente ata-caram - com uma grande dose de ingenuidademesclada a uma generosa combatividade - todauma tradição de atrelamento sindical. Na suaorigem a CUT organizou-se a partir da lutacontra os pelegos que a ditadura impusera ouapoiara. As oposições sindicais e os movimen-tos sociais estavam presentes não apenas nafundação mas, também, nos primeiros anos deexistência da Central. Independência sindical,livre organização e contribuição voluntária dostrabalhadores contrariando os pilares da estru-tura varguista - o controle do Estado, a unici-dade e o imposto sindical que era duramente

condenado. Proclama a greve como forma dedefender os interesses das classes trabalhadorase chegou mesmo a convocar greves gerais enunca mendigou ou pediu, como agora o reco-nhecimento legal do Estado. Buscava construira identidade classista dos trabalhadores, aconstrução de ações coletivas tudo sob o signoda autonomia e da independência dos sindica-tos de base.

Nascida na luta contra a ditadura a CUT foiforjada como instrumento de luta. Em umadécada mundialmente conhecida pelo refluxosindical e pelo triunfo das políticas determina-das pela reestruturação capitalista em planoglobal a Central, na contra-corrente da capitu-lação dos social-reformistas, agitava a possibi-lidade de pôr fim à ditadura capitalista nos pla-nos político e econômico. Os choques que

apareciam como lutas contra asuper-exploração do trabalho as-sumiram a forma da luta pela anis-tia, por uma reorganização parti-dária que rompesse os estreitoslimites da institucionalidade bur-guesa vigente. Foi um poderosomovimento na ordem mas quepermitiu incendiar os que lutavampor liberdade.

Não cabe aqui uma história daCUT. No entanto é necessário tra-

çar, ainda que rapidamente, o processo da cor-rupção daqueles ideais e práticas. Rapidamenteela se transformou e, menos de cinco anos apóssua fundação, ela deu um passo decisivo da suaesterilização como arma. No Congresso deBelo Horizonte (1988) a Central procedeu auma brutal mudança dos seus estatutos. O de-bate aparente era: CUT movimentista ou CUTsindical. Na prática a tendência majoritária quese constituira já na fundação conseguiu imporàs minorias um Estatuto que sintomaticamen-te se cristalizou em dois pontos centrais: espa-çou-se mais e mais os eventos deliberativos emudou-se a composição dos Congressos coma amplificação da participação de dirigentes e adiminuição dos militantes e delegados de base.

"Todo poder às burocracias sindicais"

é a palavra de ordem necessária

para garantir a Lula o apoio

"popular-sindical".

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As "Reformas" do Governo Lula

A Central muda assim seu caráter.As oposições sindicais que foram,em grande medida, decisivas nasua fundação são agora mal vistos,devendo ser vigiadas e controla-das. As instâncias verticais come-çam a preponderar sobre as hori-zontais. A direção dirige demais,soberanamente em relação aosdemais organismos.

Desde BH a CUT acentuou ocentralismo e diminuiu a combati-vidade. Perdem seu caráter de cen-tral sindical classista, combativa eindependente e buscou ser o demiurgo da"legalidade industrial capitalista". Para tal teveque mudar as práticas, os discursos, sua pró-pria forma. Muda sua natureza radicalmente.Introduz o discurso e as práticas do sindicatocidadão, isto é, abole o antagonismo e passa adefender um participacionismo abstrato. Lula,Meneguelli, Vicentinho valem o mesmo queErmírio de Morais. São todos cidadãos. Quemacredita nisso? Militantes mal formados teóri-ca e politicamente, direções desejosas de seremreconhecidas como iguais, no máximo comosócias menores de um capitalismo "não selva-gem" como se isso fosse possível. Avançam os"experimentos": as Câmaras Setoriais no ABCpaulista, em 1991, encaminharam a tese docolaboracionismo segundo a qual trabalhado-res e Estado deveriam ceder direitos ao capitalem troca da manutenção de empregos. Sequerisso foi garantido ao final desse pacto social.

O processo de adesão da CUT à ordem ace-lerou-se ainda mais com sua filiação à CIOLSem 1994. A aceitação da tese da colaboraçãoentre capital e trabalho caminhava para ser am-plamente majoritária na Central. Aqui vivemosuma curiosa disputa: quem era mais represen-tativo de um sindicalismo anti-trabalhadores.Vicentinho, entre uma greve de fome e umchoro na porta da fábrica declara alto e bomsom que levava a sério as práticas do "sindica-lismo de resultados"6, sem garantir direitos econdições efetivas de trabalho, inclusive sala-

riais, que atendessem às necessi-dades da classe trabalhadora,embora reduzissem os recursosdo Estado de São Paulo para aeducação e a saúde. Fortalecia-se,assim, uma nova tendência sindi-cal: a dos "pelegos combativos",aqueles que combatem as suaspróprias categorias.

As grandes questões da classetrabalhadora foram abandonadas.A aposentadoria por tempo de ser-viço foi identificada àquela portempo de contribuição o que, em

uma economia maximamente precarizada e"informalizada" acaba por impedir que os tra-balhadores da ordem privada se aposentem.Simetricamente a Central tentou (e conseguiuem alguma medida) desorganizar a luta contraa 2ª Reforma da Previdência. Para que? Parafinanciar os fundos de pensão, núcleo duro daacumulação capitalista em escala mundial. Aquestão das Câmaras Setoriais que acaboumostrando sua face de colaboração de classesao garantir redução de impostos para o capitalmas não assegurar, entre outros, as condiçõesde vida e de trabalho da classe operária e oBanco de Horas, forma de superexploração dotrabalho, caminham no mesmo sentido. Con-formou-se, assim, historicamente, a propostade Pacto Social ora apresentado pela sua dire-ção majoritária. Nascia uma forma de autono-mia: a dos burocratas. Autonomia contra suabase social. Nasciam os "pelegos combativos",aqueles que combatem sua classe de origem.

Em nome do programa político da sua ten-dência majoritária, repetido nos diversos con-gressos, fortaleceu-se o processo pelo qual ocapitalismo subordinou a maior parte das for-mas de resistência. A CUT atuou poderosa-mente na intensificação desse processo desubordinação da classe trabalhadora ao capital.Por exemplo, a central reformou-se estrutural-mente à medida que passou a ser financiadanão pelos seus sindicatos, mas, fundamental-mente, pelas verbas do FAT e de convênios do

Nascia uma forma deautonomia: a dos

burocratas.Autonomia contrasua base social.

Nasciam os "pelegoscombativos", aquelesque combatem suaclasse de origem.

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As "Reformas" do Governo Lula

tipo assistencialista, anteriormente monopólioda sua "rival" Força Sindical. Na sua fase maisrecente, a CUT aprofundou sua relação com oEstado e com o capital multiplicando seus con-vênios com a iniciativa privada como aconte-ceu na decisão de criar linhas de "crédito" paraseus filiados a juros "companheiros". Legali-zava-se a agiotagem.

Durante a greve contra a reforma da previ-dência, em 2003, os trabalhadores duas gran-des marchas a Brasília, uma delas com mais de45.000 participantes para responder aos ata-ques do governo. A CUT permaneceu ondeestava: isolada da luta contra aretirada de direitos dos servido-res públicos. Dizem que foi porcoerência porque ela já tinhaatuado no mesmo sentido, no go-verno FHC, em relação aos tra-balhadores da chamada ordemprivada. Ficou aí a atuação dela?Não, óbvio que não. Os metalúr-gicos do ABC agrediram covar-demente, na frente do seu sindi-cato, funcionários públicos quese manifestavam contra o genocí-dio "previdenciário".

Diante desse comportamento da Central ostrabalhadores iniciaram um processo de cons-trução de alternativas para poder conduzirsuas lutas: O Encontro Sindical em Luziânia,em março de 2004, deu origem ao CONLU-TAS que realizou uma demonstração impor-tante em Brasília com a presença de mais de 20mil manifestantes. A chamada esquerda daCUT apesar do seu claro posicionamento ne-gativo em relação ao CONLUTAS se organi-zou no Fortalecer a CUT. As campanhas sala-riais (judiciário paulista, bancários, entre ou-tras) demonstram um potencial de luta que ogoverno, a central e as direções desses sindica-tos sequer imaginaram.

Democracia interna? Sonho de uma noitede verão! Continuando a abandonar todo oseu ideário de luta a Central participa agora domacro pacto social denominado Fórum Na-

cional do Trabalho, junto com outras centrais,o governo e a direção burguesa. A um só tem-po propõe e aceita o genocídio sobre o conjun-to dos trabalhadores legitimando, para os in-cautos e os otimistas genéticos, a farsa de uma"reforma" sindical e trabalhista. Sem consultara ninguém a tendência majoritária da CUT, oumelhor, os dirigentes dessa tendência, à inteirarevelia dos filiados decidia, decidia, decidia...Magistrado, promotor e carrasco oficial dabrutal (i)legalidade industrial que se abateusobre a sociedade ela, de quando em vez, infor-mava interneticamente, o nosso "destino".

Ora, para quem já tinha condena-do a imensa massa dos trabalhado-res à não poder aposentar-se a nãoser por morte ou velhice (que nascondições de miserabilidade danossa sociedade é quase o mesmo)a condenação agora ao trabalhoforçado, sem direitos quase escra-vo7, era apenas uma questão de ló-gica. E as demais tendências? Essassequer precisam ser levadas emconta já que a concepção de demo-cracia da direção estalinista da cen-

tral é "manda quem pode, obedece quem temjuízo". E se essas tendências saírem? Melhor,raciocinam os burocratas, eles não têm mesmopara onde ir... As votações são puramente ho-mologatórias em relação às propostas daDireção majoritária.

A CUT passou de instrumento de luta aobstáculo. Transformou-se, na prática em umaagência do capitalismo e do Estado. Exemplardisso é a atitude absolutamente criminosa dopresidente da república "nomeou" Luis Ma-rinho presidente da Central. Não foi por ques-tão de simpatia pessoal, mas uma necessidadeestratégica: Lula precisava da mais absoluta le-aldade e Marinho não se furtou a isso. O pró-prio Lula, seu líder no Senado e outros articu-laram a eleição de um "companheiro" "sememprêsas" para a presidência da FIESP. Ma-rinho apresentou a velha e surrada proposta depacto social. Quem era a audiência? O Presi-

A CUT passou de instrumento de luta

a obstáculo.Transformou-se, na

prática em umaagência do

capitalismo e do Estado.

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As "Reformas" do Governo Lula

dente, o ministro Jaques Wagner,o presidente da FIESP que estavacom um seletíssimo grupo de em-presários. Alguma novidade?Não. Tratava-se de mais uma ree-dição das Câmaras Setoriais, agoracom elefantíase. O tal "entendi-mento social" ou "contrato so-cial" propunha formalmente evi-tar o aumento dos juros. Cadaagente econômico (empresários,trabalhadores, governo) teria deceder. Qual a parte neste latifún-dio que caberia aos trabalhadores?Durante três anos eles não solici-tariam recomposição salarial. Detal modo isso se chocou com apolítica FMI-Palloci-Meirelles que a propostacaiu no vazio. Mas é neste cenário que ganhainteligibilidade a proposta de "reforma" sindi-cal e trabalhista que o governo "democrático-popular" (!?!?) apresentou.

A reforma sindical do governo Lula

A Reforma Sindical foi elaborada no FórumNacional do Trabalho (FNT), uma reedição doConselhão do Pacto (o CEDES), criado comoparte da estrutura do Estado. Lá a CUT "con-sensuou" com governo, empresariado e outrassindicais o que seria a nova forma da classe.Destinado a eliminar a natureza antagônica dasclasses em luta na sociedade, gerenciando osconflitos, o Fórum aparece como a forma civi-lizada de regular a economia e a sociedade. Oresultado desse "consenso" foi o abandono ra-dical das posições formuladas pelos cutistas aolongo de toda a sua existência.

A idéia básica do processo é a da inexistên-cia de antagonismos entre as classes emborapossam haver conflitos reguláveis. É a famosaconciliação e colaboração de classes, ou seja. o"diálogo social". Alteram-se as formas estataisde intervenção na vida sindical com a aparente"democratização" via participação, em umConselho Nacional de Relações de Trabalho,

dos representantes dos trabalha-dores, dos patrões e do Governoem câmaras onde poderão proporcritérios que definirão os setores eramos das organizações dos traba-lhadores e patrões, propor a subs-tituição do famigerado EstatutoÚnico da era varguista por umaggiornato conjunto de disposi-ções estatutárias a serem observa-das pelos sindicatos com exclusi-vidade de representação, revisaros critérios de representatividade,opinar nas contestações e nospedidos de deferimento de regis-tro sindical, mediar e conciliarconflitos de representatividade

sindical, opinar sobre projetos do MTE emtramitação no Congresso, acompanhar as gre-ves em serviços essenciais, propor alteraçãono rol de serviços ou atividades essenciais.Em caso de empate de votação prevalecerá ovoto do governo. Bela democracia! E aindafalam em Estado Democrático de Direito.

A negociação coletiva, forma jurídica subs-titutiva dos acordos entre trabalhadores e seuspatrões, passa a ser obrigatória. Baseia-se emuma... conduta de boa-fé que ninguém sabeexatamente o que é e que cabe tudo ou nada(dependendo de quem julga ou tem força paraimpor). Recusar negociar, patrões ou trabalha-dores, caracteriza-se como conduta anti-sindi-cal e tem como penalidade a perda do registrosindical. A vontade explícita dos "agentes" ésuprimida administrativamente. Cidadania?Ora, a cidadania. A ambigüidade é tal que per-mite, caso não haja unanimidade entre as enti-dades, a qualquer uma delas assinar o contrato.Permite-se juridicamente, pela ambigüidade,quebrar os sindicatos combativos e constituir-se "sindicatos companheiros" do patronato oudo Estado que possui um direito ditatorial deintervenção pois deve promover a negociaçãocoletiva para que os contratos coletivos te-nham aplicação ao maior número de trabalha-dores e empregadores. Tudo isso é claro inde-

A idéia básica do pro-cesso é a da inexis-tência de antagonis-mos entre as classes

embora possamhaver conflitos reguláveis. É a

famosa conciliação e colaboração de classes, ou seja.

o "diálogo social".

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As "Reformas" do Governo Lula

pendente dos sujeitos sociais. O Estado é a sín-tese do social, tudo sabe, tudo pode. Os traba-lhadores, como na tradição liberal americanados séculos XVIII e XIX, devem ser guiados eimpedidos de fazerem desvarios.

Greve? Ela será "disciplinada". O direitoconstitucional de greve passa a ser, mais do queaté agora, letra morta. A lei disciplinadora in-dicará o conteúdo dos próprios "estatutos sin-dicais". Aí deverá estar previsto o número mí-nimo de trabalhadores para poder deliberar so-bre greve, impedir a realização de manifesta-ções ou atos de persuasão (os famosos piquetestão odiados pelo patronato, pelo Estado e pe-los burocratas) que causem danos à pessoa ouà propriedade. O projeto prevê que os traba-lhadores em greve terão suspensos seus contra-tos de trabalho. O sindicato teráque manter equipes para garantiros serviços considerados essen-ciais, que na prática do serviçopúblico será praticamente tudo ena ordem privada aquilo que efeti-vamente é vital para a greve. Lula,ex-sindicalista, promove uma leisui generis: não pode haver danosàs pessoas ou prejuízo irreparávelao patrimônio do empregador. Ouseja uma greve que não é greve.Mas a ambigüidade vai mais longeao prever que o movimento nãopode representar prejuízos paraterceiros, ou seja, qualquer um quese sentir prejudicado poderá sertentado a ajuizar a greve. E se o sindicato nãogarantir isso o patronato está autorizado acontratar "fura-greve". Ou seja: trabalhadorestemporários em quantidade razoável paragarantir a continuidade dos serviços mínimosnas atividades essenciais.

Na oportunidade da greve o Tribunal doTrabalho ordenará a entidade sindical represen-tativa que mantenha os serviços mínimos.Busca-se a inviabilização da greve, é óbvio. Asmultas que puniram os petroleiros e outras cate-gorias agora viram lei para ordenar a cessação

do comportamento ilegítimo e a eliminação deseus efeitos. A criminalização da greve está ago-ra legalizada e consagrada. Quais são os serviçosessenciais propostos pelo projeto: quase tudo.Do tratamento de abastecimento de água, pro-dução e distribuição de energia elétrica, gás ecombustíveis, assistência médica e hospitalar,passando pela distribuição e comercialização demedicamentos e alimentos, transporte coletivo,funerários, captação e tratamento de esgoto e li-xo, até telecomunicações, processamento dedados ligados a serviços essenciais, controle detráfego aéreo e compensação bancária. Só osprodutores de polainas (alguém ainda usa isso?)não se enquadrarão nessas medidas. Lula e seuprojeto farão com que o mundo capitalista maisuma vez se curve diante do Brasil. Isso se o pro-

jeto passar, é claro.A eufemisticamente chamada

Lei de Liberdade Sindical é, na rea-lidade, apenas mais uma forma delei anti-organização e anti-greve.O Ministério do Trabalho, pormeio do seu Conselho Nacional deRelações de Trabalho (CNRT),volta a ter o poder de definir quemé quem no mundo sindical. Ele po-derá conceder, ou não, registro equalificação de representatividade,bem como definirá os critérios pa-ra os ramos ou setores de atividadeem que as entidades dos trabalha-dores ou patronais se agregarãoainda que o projeto "garanta" a

trabalhadores e patrões o direito de constituirentidades sindicais.

Qual o segredo dessa proposta? Como notexto constitucional o poder poderá emanar dopovo (a base sindical), mas em seu nome seráexercido. Aliás, nem o poder constituinte dasbases sindicais está garantido. "Todo o poderaos burocratas", desde que, é claro, não se co-loquem em confronto com as instituições "de-mocráticas" básicas: o patronato e o Estado.Essa concentração de poder é tal que suas bu-rocracias poderão criar confederações, federa-

Só os produtores depolainas (alguém

ainda usa isso?) nãose enquadrarão

nessas medidas. Lulae seu projeto farãocom que o mundo

capitalista mais umavez se curve diantedo Brasil. Isso se o

projeto passar, é claro.

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As "Reformas" do Governo Lula

ções e sindicatos "companheiros"como parte de sua estrutura orga-nizativa. E se você não for "ami-go" da burocracia terá o imensotrabalho de constituir um sindica-to na "forma da lei" o que é obvia-do às Centrais que poderão, emcaso de contraste com qualquersindicato da sua base fazer o famo-so "paralelismo" sindical sob asbênçãos do Estado. O projeto"acaba" o malfadado imposto sin-dical obrigatório e cria uma Con-tribuição de Negociação Coletivaque corresponderá a até 1% do valor da remu-neração líquida, recebida no ano anterior ànegociação. Aumenta-se a expropriação "le-gal" do dinheiro do trabalhador. Tudo naforma da lei é claro.

Destruir a educação, trabalhar na construção da

classe trabalhadora do capital

A brutal alteração de todo o processo edu-cativo (alteração/destruição da Universidade edo Ensino Superior Público, do ensino técnicoe tecnológico, das PPP que atrelam as pesqui-sas universitárias aos interesses das empresas,da Lei de Inovação Tecnológica, CONAES/SINAES, ProUni, etc.) atuam na produçãodessa dominação do capital. Lula enviou, co-mo MP, a proposta do ProUNI rejeitado peloFórum Nacional em Defesa da Escola Pública.Fernando Haddad, do MEC, e, sintomatica-mente Palocci, da Fazenda, assinam a exposi-ção de motivos, E Tarso Genro? Precisava eleassinar? Ele decide o que? E saiu como MPpara cumprir o compromisso com os empresá-rios de ensino em detrimento dos fóruns de-mocráticos da sociedade.

Apesar dos altissonantes propósitos da MPao ensino superior privado será garantido umaisenção fiscal excepcional e permanente. Ao re-duzir ainda mais a "contrapartida" das institui-ções privadas à gigantesca isenção fiscal, a MP

revela o seu objetivo fundamental:estabelecer parcerias público-pri-vadas como eixo da expansão daeducação superior do país, robus-tecendo essas instituições de vendade serviços educacionais.Maximiza-se a ajuda "amiga" aeste setor do empresariado capita-lista com a compra de vagas nassuas instituições com o dinheirodo contribuinte salvando assimesse setor falido. Destrói-se con-sistentemente a educação: a impo-sição do decreto nº 5.205/04 "re-

gulamenta" as relações entre as instituiçõesfederais do Ensino superior e de pesquisa cien-tífica e tecnológica para usufruto das funda-ções de apoio legalizando-as buscando des-comprometer-se ainda uma vez com o finan-ciamento público das IFES. Da ditadura à Lulaesse parece ser o único projeto consistente dosgovernos para a Universidade.

A perspectiva de classe

As reformas em nome de uma "inclusão",como na Lei de Liberdade Sindical, pratica ooposto do que anuncia: a manutenção da misé-ria como elemento básico da vida das classestrabalhadoras. Subverte-se o próprio sentidodos termos já que inclusão nada mais é do queo ocultamento da temática da miséria. A socie-dade capitalista absorve e inclui, diferencial eassimetricamente, a todos. Ninguém, nem osinformais, nem aqueles subordinados ao nar-cotráfico, está excluído. Contudo, essa deno-minação cumpre um importante papel legiti-matório, fazendo com que o problema não es-teja nas relações capitalistas. A realização dosdireitos sociais é transformado em políticas fo-calistas que mantêm e reafirmam a estrutura dedominação do capital. Isto é a continuidaderadical da política dos governos anteriores (deCollor à FHC) que foram progressivamenteconstruindo o ambiente necessário para quehoje, sob a égide de um governo de colabora-

As reformas emnome de uma "inclu-são", como na Lei deLiberdade Sindical,pratica o oposto do

que anuncia: amanutenção da misé-

ria como elementobásico da vida das

classes trabalhadoras.

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ção de classes, seja concluído o processo derearticulação do Estado, a reformatação daclasse trabalhadora, a tendência autoritária àeliminação das liberdades democráticas.

Isto não é apenas uma mutação reacionáriano corpo sindical. É uma manifestação clarado processo de destruição da totalidade socialbrasileira. Contra-revolução? Talvez algunsse espantem. Pensarão: Não será apenas umabrutal "via prussiana" ou "revolução passi-va"? Penso, se minha análise estiver correta,que esse momento já passou. As classes subal-ternas já foram, em grande medida, desorga-nizadas e suas direções decapitadas. Hoje oprocesso é mais grave. Tornando supérfluas asclasses trabalhadoras, impondo uma fascisti-zação geral na nossa sociedade, os dominantespodem manter abertos o Par-lamento, a Imprensa, o Judiciário.Como o Big Brother orwellianotudo e todos são vigiados, a histó-ria permanentemente escrita, amemória apagada. A contra-revo-lução ameaça não apenas a desa-parição da subjetividade antagô-nica mas, levada a seu extremo, oque está em jogo é a própria liqui-dação física da classe antagônica.Morte por fome, inanição, deser-tificação do território, entrega dasriquezas, padronização de umaforça de trabalho do capital (papelespecial para as reformas "educa-cionais"), etc., indicam esse pro-cesso. As novelas da TV Globosão inocentes, infantis, diante dosprocessos de destruição implantados. Umbom exemplo pode ser dado por Campinas,cidade considerada rica e culta (universidades,centros de saúde, sistema fabril, centro deexcelência de pesquisa, etc.). Nessa cidade overeador mais votado falou o tempo todo na..."proteção aos animais" e um outro ensinava...a fazer pão. Em Unaí os acusados de manda-rem matar funcionários públicos que investi-gavam trabalho escravo, estão presos e um de-

les foi eleito prefeito. Dissemos, em outro momento, que a idéia

de crise era fundamental. Se na lógica burgue-sa a crise é subversiva porque põe sua ordemem perigo na lógica das classes trabalhadorasela é a possibilidade de criação de uma novasociabilidade. Ao tornar claras as contradi-ções a crise aponta um caminho de decifraçãoda inteligibilidade destruidora e de avanço nanova ordem que será socialista. Perigo e opor-tunidade são os ideogramas chineses que emconjunto significam crise. Perigo: vivemosum momento de extrema importância. Opor-tunidade: tudo parece estar correndo risco dedestruição, é verdade, mas nunca foi tão claraa possibilidade de um salto de qualidade: noconjunto dos movimentos sociais, sindicais e

partidários que levam o combatereal contra essa política econômi-ca está colocada à questão da uni-dade.

Possibilidade, pois nada existede fatal na história. Se por um ladotudo parece estar correndo risco dedestruição, por outro nunca foi tãoclara a possibilidade de um salto dequalidade: no conjunto dos movi-mentos sociais, sindicais e partidá-rios que levam o combate real con-tra essa política econômica estácolocada à questão da unidade.Dizemos possibilidade, pois depen-derá do esforço concreto de todosesses sujeitos históricos superarlimitações e propor-se construiruma unidade real baseada na auto-

nomia e na independência de classes. Nuncacomo hoje as lutas contra as Reformas Universi-tária, Sindical e Trabalhista estiveram associadasna vontade dos trabalhadores organizados.Juntar essas lutas, criticar e lutar para inviabilizaros processos de destruição das classes trabalha-doras e da sociedade é nossa palavra de ordem,nosso norte de intervenção no social. Temos quesuperar as perspectivas de categoria que tendemao particularismo para assumirmos a visão estra-

As "Reformas" do Governo Lula

Temos que superar asperspectivas de cate-goria que tendem aoparticularismo paraassumirmos a visãoestratégica de classee assim construirmosuma sociedade auto-determinada, umanova sociabilidade,

contra esta ordem e afavor da hegemoniados trabalhadores.

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As "Reformas" do Governo Lula

tégica de classe e assim construirmos uma socie-dade autodeterminada, uma nova sociabilidade,contra esta ordem e a favor da hegemonia dostrabalhadores.

Como Édipo nos defrontamos com a esfin-ge que nos questiona: "decifra-me ou eu tedevoro". Decifração essa que dependerá do es-forço concreto de todos os sujeitos históricospara superar limitações e propor-se construiruma unidade real baseada na autonomia e naindependência de classes que não exclua ne-nhum setor do campo da luta e que vem seconstituindo nas vanguardas dos trabalhadorese caminha para empolgar amplos setores demassa. A imobilidade, a passividade, na socie-dade é apenas uma ilusão. O conflito está dado.Vem se manifestando nas formas mais diversase inorgânicas, mas também em projetos con-cretos de intervenção no real.

Notas

1. Diretor do CREAI (Crédito Rural, Agrícola eIndustrial), órgão do Estado Novo.2. Dizemos na política brasileira por que esse fato jáocorrera antes. Cf. Lech Walesa na Polônia. E lá,também, a mutação transformista foi vital para aresolução da crise do capital e do fim da chamada"experiência" socialista.3. Isso não significa uma crença no poder das insti-tuições na preservação da democracia. Obviamentequando os dominantes rompem sua própria legali-dade o que podem os dominados esperar?4. Não satisfeitos já anunciaram que será necessá-rio aprofundar, mais para frente, a destruição járealizada.5. Único caso conhecido de "líder de bancada dogoverno" no Supremo. Agora acumula com a Pre-sidência Oficial do órgão.6. Em patética declaração Vicentinho afirmava quea CUT era realmente um "sindicalismo de resulta-dos". A Força Sindical seria apenas um "sindica-lismo de negócios". A diferença? Nenhuma. Ante-riormente Meneghelli, ao sair de uma reunião comCollor, afirmara sem sombra de dúvidas: "Somosparceiros da mesma jornada". Nós quem, cara pá-lida?7. No caso do trabalho escravo os proprietáriostinham que manter, no mínimo, a sobrevivência dos

seus trabalhadores... para não perder seu capital.Agora as burocracias governamentais, empresariase sindicais consideram que sequer necessitam dessesseres sub-humanos (os trabalhadores) e, portanto,não se consideram obrigados a fazer nada por essamassa supérflua de indivíduos.

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1. Introdução

Depois de privatizar a Previdência Social eintensificar a carga tributária sobre os tra-balhadores, o governo Lula já anunciou

suas próximas reformas: a sindical/trabalhista ea universitária. 18 meses se passaram e a dúvi-da sobre a natureza desse governo parece tersido dissipada por ações de caráter pró-impe-rialista e antipopular, exemplificadas peladeterminação de carrear mais de uma centenade bilhões de dólares para o FMI somente co-mo pagamento de juros da dívida calculadospara o ano de 2003, ou ainda pelo envio de tro-pas para sufocar a classe trabalhadora no Haiti.O posicionamento de classe do governo tem serevelado assim e apenas setores pró-governoainda mantém, retoricamente, a defesa de que épossível disputá-lo.

Noutro pólo, setores da classe trabalhadoravêm denunciando as políticas desse governo ecombatendo-as, como aconteceu na greve dos

servidores públicos federais contra o desman-telamento da Seguridade Social no ano de2003. A confiança antes depositada num go-verno de feição democrático-popular vai es-vaindo-se diante da aproximação sistemática elinear desse governo rumo às teses neoliberaisde transferência dos serviços públicos para omercado e de financeirização da economia pormeio do atrelamento consciente ao capital es-peculativo. As reformas apresentadas até omomento pelo governo Lula destoam por in-teiro das reivindicações da classe trabalhadora.Mesmo a reforma nos marcos do capitalismotomada na sua acepção clássica, vinculada àsocial democracia pós-primeira guerra, guardaenorme e intransponível distância com o go-verno Lula. As idéias de Eduard Bernstein1

sobre a distribuição de riquezas por meio dereformas sociais não têm nenhuma relação (ex-ceto de contraposição se alguém as reivindicar)com as medidas e formulações emanadas do

A reforma universitária nas universidades estaduais do Paraná

Antônio de Pádua Bosi*Luiz Fernando Reis**

"Eu vejo o futuro repetir o passado, eu vejo um museu de grandes novidades"Cazuza

* Professor adjunto da Universidade Estadual do Oeste do Paraná e 1º Tesoureiro do ANDES-SN.

** Professor assistente do curso de Enfermagem da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (campus de Cascavel)e membro do Grupo de Pesquisa em Políticas Sociais (GPPS-UNIOESTE).

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planalto. Não se trata agora de discutir a no-menclatura, mas de recolher da realidade suamais forte evidência que se materializa no mo-vimento de trabalhadores e estudantes2. Suasexperiências atravessadas pelos 18 meses deprofunda obediência do governo Lula ao FMIindicam a necessidade da resistência, mas es-barram no rubicão PT/PCdoB. Neste sentido,tanto será mais efetiva nossa ação quantomaior for a clareza do processo em curso. Dis-cussão e ação devem, portanto, buscar a sínte-se que permitirá frear e até mesmo deter omovimento que o capital faz agora por meiodos móveis disponíveis. Retorna forte a con-vicção de que "nenhum método nos garantirávantagem sobre a burguesia que não seja ba-seado na verdade"3.

Este artigo, assim contextualizado, integra-se nesse esforço de encarar as reformas do go-verno Lula a partir de um enfoque de classe,reafirmando o mote do último CONAD (48º)de que "a esperança está na luta". Não se trata,entretanto, de uma esperança em nome dos de-sesperançados, massa explosiva que pode serfacilmente convertida a populismos de todas asnuances. A esperança reivindicada pelo 48ºCONAD apóia-se de maneira fundamental noesclarecimento construído a partir da realidadevivenciada como experiência de classe. Porisso, debater, esclarecer e posicionar, materiali-zam-se, em síntese, como luta. E é por issotambém que tal esperança não pode ser conju-gada com os debates, esclarecimentos e posi-ções do governo. Sendo assim, e no contextoda reforma universitária do governo Lula, aintenção aqui é descrever e analisar a reformauniversitária executada no estado do Paranápelo governo Requião mostrando alguns nexoscom a reforma pretendida e já anunciada pelogoverno Lula, referenciando-nos principal-mente às questões do financiamento, da preca-rização das relações de trabalho docente e daautonomia, reconhecendo que nestes casos osparalelos são gritantes e refletem uma orienta-ção política comum de Lula e Requião: o Ban-co Mundial.

2. As diretrizes educacionais do Banco Mundial, sua relação com os

governos Lula e Requião e suas aplicações mais recentes.

Os dados divulgados pelo governo Lula nofinal de janeiro de 2004 sobre a dívida revela-ram o aprofundamento da aplicação do mode-lo neoliberal no país. Somente em juros foipago o valor de 145,2 bilhões de reais no anode 2003, o equivalente a quase 10% de nossoPIB. O superávit fiscal planejado de 4,25%(R$65 bi), que sangrou a classe trabalhadorabrasileira, foi superado em 0,07% (R$1,1 bi) e,mesmo assim, não foi suficiente para pagar osjuros, tendo sido adicionada a bagatela deR$79 bi. Não bastasse isso, o montante dadívida ainda aumentou em R$32 bi, totalizan-do R$913 bi, cerca de 58% do PIB4. A contra-partida social disso expressou-se em cortes vo-lumosos no orçamento incidindo, principal-mente, na educação. Os resultados foram sen-tidos imediatamente nas universidades fede-rais, que terminaram o ano numa situação deinadimplência com contas de água e luz, alémde defasadas quanto ao número de servidores,equipamentos e área física.

A adoção desse modelo não deixa dúvidassobre o futuro das universidades públicas: como pagamento da dívida não há dinheiro para aeducação, bem como para a manutenção dosdemais serviços públicos. Há, neste sentido,relação com as orientações do Banco Mundialinscritas no documento "O Ensino Superior eas lições derivadas da experiência5", que foi di-rigido, na década de 1990, aos governos doschamados países em desenvolvimento. Tratou-se ali de subordinar a educação superior àschamadas políticas de ajuste estrutural preco-nizadas pelo FMI, a exemplo de toda onda deprivatizações que assolou o planeta desde ospaíses do leste europeu até países de economiadependente como o Brasil. Num plano maisempírico e prático significou e significa - acele-rar o crescimento da participação privada noensino superior à medida que os recursos para

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as universidades públicas são minguados ano aano e até mesmo transferidos diretamente paraa iniciativa privada como propõe o Univer-sidade Para Todos. Eis o propósito conscienteconcretizado ao longo do governo FHC e con-tinuado no governo Lula. O resultado dessemovimento não apresenta nenhuma novidadee pode ser percebido atualmente assim: a) re-dução do financiamento público e aumento dacaptação de verbas por meio das fundações di-tas de apoio universitário; b) separação das ati-vidades de ensino, pesquisa e extensão, condi-cionando o exercício da primeira à eliminaçãodas duas últimas; c) transformação da extensãoem prestação de serviços auto-financiáveis(pagos); vinculação da pesquisa a interesseempresarias (os órgãos de Estado que fomen-tam atividades de pesquisa são cooptados pelosinteresses de mercado devido ao fato de que aspolíticas de governo também o são por meio,por exemplo, de editais direcionados como osdos Fundos Setoriais); d) precarização das rela-ções de trabalho docente como forma, inclusi-ve, de eliminar o compromisso docente com ainstituição em que trabalha. Em regra, se a uni-versidade é subordinada ao mercado por meiodessas ações, a autonomia de produção intelec-tual, que é a base de toda a autonomia univer-sitária, também sucumbe aos interesses demercado. O desdobramento mais claro dessequadro é o abandono, por parte do Estado edas políticas de governo, de um desenvolvi-mento socialmente referenciado e nacional-mente soberano.

Ao longo da década de 1990 essas diretrizesdo Banco Mundial foram operadas, principal-mente, pelo incentivo às fundações ditas deapoio universitário que viabilizam a venda decursos e de serviços das universidades. No go-verno Lula tais diretrizes estão sendo operadaspela asfixia orçamentária das universidades epelo arrocho salarial, concretizadas por meiode medidas pontuais (projetos de lei, medidasprovisórias e portarias ministeriais), como aLei de Inovação Tecnológica, a minuta de Pro-jeto de Lei que regulamenta as Fundações de

Apoio Universitário e a minuta de Lei Orgâ-nica de Autonomia das Universidades6. Nopronunciamento mais recente sobre a reformauniversitária7, o ministro Tarso Genro acaboupor reafirmar as linhas centrais do documentoproduzido pelo Grupo de Trabalho Intermi-nisterial do governo Lula (grupo criado pordecreto em 20/10/03), que traduziu cabalmen-te para as universidades públicas as orientaçõesdo Banco Mundial sumariadas acima. Sub-traída a retórica que promete "enfrentar a atualcrise das universidades federais", a reformauniversitária emanada daquele documentoobedeceria aos seguintes traços gerais: a) finan-ciamento; b) expansão de vagas; c) recursoshumanos. Por financiamen-to entender-se-ia: a) "liber-dade para captar e aplicarrecursos extra-orçamentá-rios" e "regulamentaçãodas relações entre as uni-versidades e as fundaçõesde apoio"; b) "contribuiçãovoluntária" por meio dacaptação de "recursos vo-luntários de seus ex-alu-nos"; c) "contribuição não-voluntária" por meio de"uma alíquota adicional noImposto de Renda para ex-alunos de universi-dades federais"; d) criação de "fundos empre-sariais para o ensino superior" que funciona-riam "nos moldes dos Fundos Setoriais queapóiam pesquisas com recursos dos Fundos dePensão"; e) "fluxo regular de recursos paraaquelas instituições universitárias" que aceita-rem aumentar vagas em áreas indicadas pelogoverno. Por expansão de vagas entender-se-ia: a) "metas da instituição (universidades) paraa ampliação do numero de vagas em horárionoturno"; b) até 2007 ter "até 500 mil alunoscursando o ensino superior por meio da educa-ção a distância" a partir de "equipes multimí-dias". Por Recursos Humanos entender-se-ia:a) incorporar docentes aposentados por meiode "bolsa de excelência docente"; b) incorpo-

Ao longo da década de1990 essas diretrizes doBanco Mundial foramoperadas, principalmen-te, pelo incentivo às fun-dações ditas de apoiouniversitário que viabili-zam a venda de cursos ede serviços das universi-dades.

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rar os jovens doutores por meio de "bolsa deaproveitamento e regionalização de doutores";c) flexibilizar a carreira docente única permi-tindo a cada universidade "decidir seu plano decarreira".

Estes três aspectos da reforma mostram-seintegrados a uma concepção de autonomiauniversitária de tipo "darwiniana", cuja regrauniversal é a concorrência pela captação de re-cursos. Sobreviverão aqueles que tiveremmaior capacidade de adaptação aos interesses

de mercado sendo que as uni-versidades passarão a ter pre-dominantemente suas razõesde ser no vigor da ideologiairradiada hoje pelo governoLula: austeridade nos gastospúblicos (leia-se gastos so-ciais, já que os gastos com adívida e o com o capital finan-ceiro continuam), produtivi-

dade de mercado (o que significa a alienação daautonomia intelectual) e formação fordista depessoas (como indicam as metas de aumentode vagas por meio de cursos aligeirados e decursos à distância).

3. O governo Requião: a distância entre o discurso e a prática.

Em relação ao sistema estadual de ensinosuperior8, o Governo Requião tem implemen-tado políticas que demonstram uma grandedistância entre o discurso e a prática governa-mental. Alegando que recebeu uma "herançamaldita do governo Lerner" o governo Requi-ão computa suas medidas anti-populares naconta do governo anterior. Neste sentido, osecretário Aldair Rizzi afirmou que sua gestãohavia herdado "um quadro caótico do ponto devista administrativo e financeiro. Havia aexpansão desorganizada de cursos, sem a ga-rantia de orçamento e, conseqüentemente, qua-lidade"9. Para enfrentar a chamada "herançamaldita" o governo Requião, em 2003, propôsa redução em 30 % das despesas de custeio em

todas as secretarias. Rizzi, manifestando a suaanuência com tal procedimento, declarou que"devido ao déficit não será possível expandircursos e nem investir em novos campi."10 O go-verno argumentava também: "2003 é um orça-mento que não é nosso."11

Para enfrentar o alegado déficit orçamentá-rio das 6 universidades paranaenses12 a SETIresolveu "implementar uma política de reestru-turação de todo o sistema estadual de ensinosuperior". Tal política, no ano de 2003, incluiua suspensão da implantação de novos cursos degraduação nas universidades paranaenses e anão estadualização de uma fundação municipalde ensino superior (Facinor) no município deLoanda. Quanto à reposição de perdas sala-riais13 dos servidores (docentes e técnicos) dasuniversidades paranaenses, reivindicada pelasentidades sindicais em inúmeras reuniões reali-zadas na SETI, o Governo Estadual alegavaque não podia responder à reivindicação dadoo déficit orçamentário. Além dessas medidas, aSETI reduziu o custeio das universidades, emaproximadamente 15%, no ano de 2003. Asmedidas adotadas no ano de 2003 tiveramcomo objetivo central, tal e qual no Governoanterior, reduzir os recursos alocados pelo Es-tado às universidades paranaenses. O déficitorçamentário foi o argumento utilizado peloGoverno Requião para justificar tais medidas.Entretanto, a análise da arrecadação tributáriado Estado e do comportamento da economiaparanaense desmente o argumento utilizadopelo Governo Requião.

4. Déficit orçamentário X crescimentoda arrecadação tributária: contradição

no discurso governamental.

Ao final do 1º quadrimestre de 2003, o se-cretário da Fazenda, Heron Arzua, em Audi-ência Pública realizada na Assembléia Legis-lativa, apresentou dados que demonstraram, jánaquela ocasião, um crescimento nominal de35,8% da receita tributária em relação ao mes-mo período do ano anterior14. Recentemente, a

Alegando que recebeuuma "herança maldita dogoverno Lerner" o gover-no Requião computa suasmedidas anti-popularesna conta do governoanterior.

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Secretária do Planejamento e CoordenaçãoGeral, Eleonora Bonato Fruet, em explanaçãorealizada no último dia 10 de março na As-sembléia Legislativa, afirmou que o desempe-nho da economia paranaense, em 2003, "foisuperior ao desempenho nacional, tanto doponto de vista do crescimento do PIB - que foide 3% enquanto o Brasil teve uma queda de0,2% - quanto da geração de empregos. (...)Para 2004, segundo a secretária, a previsão é deum cenário semelhante ou ainda melhor para oEstado"15. Essa visão também foi compartilha-da pelo secretário da Fazenda que na reuniãodo secretariado do Governo Requião, realiza-da no último dia 22 de março, afirmou que"está confiante no crescimento da receita do Es-tado durante o segundo e terceiro quadrimes-tres deste ano (...) A expectativa do Governo doParaná (...) é de que este ano o agronegóciorepita o desempenho do ano passado e dinami-ze os demais setores econômicos que proporcio-nam maior arrecadação ao Estado"16. Na ver-dade as informações veiculadas pela Secretariade Fazenda e pela Secretaria de Planejamentoconfirmaram as previsões do DIEESE-Prsegundo o qual a situação financeira do Estadoera bastante confortável como decorrência docrescimento real da arrecadação tributária e dodinamismo da economia paranaense. Tais in-formações desautorizaram o discurso do secre-tário Rizzi que tomava por base um déficitorçamentário que se mostrou inexistente. Nasreuniões da SETI com o movimento das uni-versidades estaduais as informações que com-provavam o crescimento da receita tributáriaforam surpreendentemente evitadas pelo se-cretário Aldair Rizzi.

A SETI, percebendo a fragilidade do argu-mento baseado no déficit orçamentário, come-çou a propalar uma outra justificativa não me-nos ideológica: "O Paraná é o Estado queapresenta o maior comprometimento percentu-al de sua arrecadação tributária com a manu-tenção da estrutura de ensino superior públi-ca"17. Assim, o problema passava a ser o Go-verno Federal que, teoricamente - e na visão da

SETI -, investia pouco na manutenção do ensi-no superior no Paraná. Na esteira desse argu-mento o governador Roberto Requião chegoua defender a seguinte idéia: "O que precisamosé federalizar algumas de nossas universidadesou, pelo menos, obter um repasse de verbas daUnião"18. Como este argumento demonstrou-se mais frágil do que o primeiro devido a suaincapacidade de prosperar como idéia exeqüí-vel, o secretário Aldair Rizzi, passou a justifi-car a política de restrição orçamentária sob aalegação de que o problema das universidadesestaduais do Paraná seria de pouca racionalida-de na utilização dos recursos recebidos. Numartigo19 que procurava justificar a "reestrutura-ção do ensino superior no Paraná", revelou oobjetivo das políticas do Governo Requião pa-ra as universidades paranaenses: "dar maior ra-cionalidade às atividadesacadêmicas e administrati-vas das instituições de ensinosuperior públicas". Tal obje-tivo se assemelha bastante ao"discurso neoliberal" inces-santemente repetido pelogoverno anterior (Lerner) edenunciado pelo PMDBquando era partido de opo-sição. Quanto às ações que vinham sendo de-senvolvidas pela SETI, o secretário afirmou:"Buscamos reassumir as responsabilidades doPoder público - esquecidas nos últimos anos - eadotar políticas realistas, visando não só ter oaproveitamento responsável dos recursos dispo-níveis, mas também conquistar a ampla partici-pação das IEES em ações condizentes com anossa realidade"20.

A partir dali a meta principal da SETI, deacordo com o secretário Rizzi, seria "a conso-lidação e a busca da melhoria da qualidade dasatividades de ensino, pesquisa e extensão"21.Para melhorar a qualidade das universidadesparanaenses a SETI evitaria ampliar sua parti-cipação no ensino superior mantido com re-cursos do Tesouro do Estado. De acordo como secretário Rizzi, "em função das grandes

Para melhorar a qualida-de das universidades pa-ranaenses a SETI evitariaampliar sua participaçãono ensino superior manti-do com recursos do Te-souro do Estado.

As "Reformas" do Governo Lula

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QUADRO 1 - RELAÇÃO ENTRE A RECEITA DO ICMS E O VALOR ANUAL ORÇADO ÀSINSTITUIÇÕES ESTADUAIS DE ENSINO SUPERIOR DO PARANÁ, NO PERÍODO DE 1994

- 20041994 1.040.910.000,00 71.908.000,00 6,91 %

1995 1.829.453.000,00 162.000.000,00 8,85 %

1996 2.082.778.000,00 178.425.000,00 8,57 %

1997 2.069.973.000,00 266.663.000,00 12,88 % 1 0 0

%

1998 2.118.422.000,00 268.655.000,00 12,68 % -

1,55 %

1999 2.508.333.000,00 267.695.000,00 10,67 % -

17,16%

2000 3.150.978.000,00 286.500.000,00 9,09 % -

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dificuldades em ampliar investimentos, pelaescassez de recursos, decidimos estancar a ex-pansão de novos cursos e novos campi"22 (grifonosso). Em coerência com tal decisão o Go-verno estadual impediria a abertura de novoscursos de graduação ao longo de 2003. A SETInão atendeu a solicitação das universidadesparanaenses que pleiteavam a abertura ou con-

tinuidade de 30 novos cur-sos23. A implantação de al-guns desses cursos já tinhasido autorizada pelo Gover-no Jaime Lerner24. NaUEPG o curso de Medicina,que já tinha iniciado as ativi-dades letivas, teve a sua im-plantação suspensa25. Narealidade a não abertura de

novos cursos associada ao arrocho salarial,conseguiria reduzir em termos reais o orça-mento das universidades para o exercício fi-nanceiro de 2004.

O Orçamento do Estado para o exercíciofinanceiro de 2003, o chamado orçamento doGoverno Lerner, previu a destinação de R$420.724.674,00 para o conjunto das universida-des estaduais do Paraná, o que significava9,12% da arrecadação (prevista) do ICMs (cotaestadual). O Orçamento 2004, do Governo

Requião, previu a destinação de R$433.034.760,00 para o conjunto das universida-des estaduais, o que significa 8,14% da arreca-dação (prevista) do ICMs (cota estadual).Assim, o Governo Requião, ao reduzir em ter-mos reais o orçamento das universidades, evi-denciou que vem dando continuidade às polí-ticas do Governo Lerner. O estrangulamentofinanceiro das universidades vem se constitu-indo nos últimos anos na principal característi-ca das políticas governamentais para o ensinosuperior público. Tal estrangulamento finan-ceiro se aprofundou especialmente a partir de1997, conforme apresentado no quadro abaixo.

5. A verdade sobre o governo Requião:mais arrecadação e menos educação.

No início de março de 2004, a SETI anun-ciou o "fechamento" de 43 cursos de graduaçãoque haviam sido implantados a partir do ano2000. As universidades foram proibidas de rea-lizarem novos vestibulares para tais cursos, atéque o Governo do Estado concluísse levanta-mentos junto às reitorias. O secretário Rizziafirmou que a SETI iria analisar esses cursoscaso a caso e as universidades poderiam manterapenas aqueles cursos que não representassemnovos impactos orçamentários e financeiros

O estrangulamento finan-ceiro das universidadesvem se constituindo nosúltimos anos na principalcaracterística das políticasgovernamentais para oensino superior público.

A N O RECEITA ICMS VALOR ORÇADO % DO ICMSCOTA PARTE ÀS IEESDO ESTADO

REDUÇÃO DO VALOR DO ICMS ORÇADO ÀS IEES EM RELAÇÃO A 1997

Fontes: SEFA e SETI

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para o Estado26. A Procuradoria Geral do Es-tado emitiu Parecer que procurava respaldar adecisão governamental. Tal Parecer concluía:"Novas turmas não devem ser iniciadas salvo seapós elaboração dos relatórios de impacto orça-mentário-financeiro, por três anos, pelas secreta-rias de Planejamento e da Fazenda, o PoderExecutivo concluir que há possibilidade finan-ceira e interesse público na sua manutenção"27.

Dos 43 cursos que tiveram seus vestibularessuspensos, no mês de março, pelo GovernoRequião, 37 foram autorizados, recentemen-te28, a realizar o vestibular para iniciar novasturmas e 6 continuam suspensos29. Alguns cur-sos foram "reabertos" porque a comunidadefoi "convocada" a investir recursos tanto paraa adequação dos espaços quanto para a aquisi-ção de equipamentos. De acordo com o secre-tário Rizzi "a regularização da maioria doscursos suspensos em tempo recorde deve-se aum esforço conjunto: governo, universidade esociedade. (...) Percebemos o esforço das uni-versidades no ajuste às políticas públicas e pelaprimeira vez a sociedade se envolvendo plena-mente no processo. Houve uma mudança deconceitos e metas gerenciais"30. O "envolvimen-to" da comunidade, à medida que ela assumeparte do financiamento da educação ou aceitacondições precárias na oferta pública da educa-ção, é a tradução das recomendações do BancoMundial. A esse respeito, o secretário Rizzicita o exemplo da prefeitura de Umuarama queassumiu o compromisso de contribuir para ofuncionamento do curso de Medicina Veteri-nária da UEM, projetado para funcionarnaquela cidade31. Outro exemplo desse tipo de"envolvimento" da comunidade, citado pelosecretário Rizzi, foi o caso da reabertura de al-guns cursos que contaram com a colaboraçãoda FIEP (Federação das Indústrias do Paraná)e do SENAI, que colocaram parte de sua infra-estrutura à disposição das universidades esta-duais32. As próprias universidades foram "esti-muladas" a fazerem ajustes internos de modo aobter a autorização do Governo Requião parao funcionamento dos cursos suspensos. No

caso da UNICENTRO o secretário Rizzi afir-ma que nessa universidade houve "o aumentoda carga do professor, de 9,9 para 14,9, horas-aula semanais, sem qualquer ônus para oTesouro Estadual"33. Em reunião com o secre-tariado do Governo Requião, o reitor da UEManunciou que assumiria cinco cursos suspen-sos com recursos próprios34. Nessa mesma reu-nião o reitor da UNICENTRO afirmou que"A reorganização administrativa da UNICEN-TRO vai contar com uma comissão permanentede auditoria interna, revisão dos conselhos supe-riores e a ampliação da captação de recursos pormeio de convênios"35 (grifo nosso). Os exem-plos de "envolvimento" lou-vado pela SETI estão se mul-tiplicando.

Na sua obstinação em re-duzir os gastos públicoscom a educação superior noParaná, o Governo Requiãodeu mostras mais evidentesque pretende precarizar,ainda mais, as condições detrabalho do corpo docente.Em reunião realizada naSETI, no último dia 27 de fe-vereiro, com representantes dos sindicatos dosservidores das Universidades, o SecretárioRizzi afirmou: "o governo não tem proposta dereajuste para as universidades". Afirmou aindaque apesar do Governo reconhecer as perdassalariais dos servidores "não colocou em suasprioridades o reajuste para as universidadesestaduais". Disse também que "não haveráexpansão nas universidades públicas durante ogoverno Requião". Finalizou a reunião dizen-do que não haverá novos concursos e que oatual número de docentes com TIDE serárevisto este ano36.

A SETI estabeleceu como uma de suasações prioritárias para o ano de 2004 a imple-mentação de um Programa de RacionalizaçãoAdministrativa. Tal Programa, de acordo comdeclarações do secretário Aldair Rizzi, seráefetivado por meio de uma reforma adminis-

Na sua obstinação em re-duzir os gastos públicoscom a educação superiorno Paraná, o Governo Re-quião deu mostras maisevidentes que pretendeprecarizar, ainda mais, ascondições de trabalho docorpo docente.

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trativa nas IEES e a definição, via projeto delei, de quantitativo de cargos em comissão efunções gratificadas37. As ações já desencadea-das pela SETI evidenciam que a Reforma Ad-ministrativa nas IEES buscará também reduziros gastos com o atual quadro de pessoal. Paratanto, além de não repor as perdas salariaisacumuladas, o Governo Requião pretendeampliar a carga horária dos docentes em salade aula, reduzindo o tempo dedicado à pes-quisa e à extensão. Por conseqüência, dimi-nui a necessidade de contratação de novosdocentes. Além disso, o Governo Estadualvem sinalizando que pretende implementarmedidas com vistas a restringir a concessãodo TIDE. Para tanto, desde o início desteano, o Governo Estadual desencadeou umacampanha difamatória contra os docentes dasuniversidades paranaenses, especialmente emrelação às universidades em fase de consoli-dação, como é o caso da UNIOESTE e daUNICENTRO38.

6. A difamação como instrumento de disputa política e precarização

do trabalho docente.

Os recentes ataques desferidos pelo secretá-rio da SETI contra aUNIOESTE são partedesse esquema que visa im-por uma reforma das uni-versidades estaduais refe-renciada em valores neoli-berais que diminuam a par-ticipação do Estado nofinanciamento dessas insti-tuições e que anule a auto-nomia universitária de mo-

do a submeter toda produção científica e a for-mação de profissionais à lógica do mercado.Orientado pela política de redução orçamentá-ria das IEES do Paraná, a SETI divulgou rela-tório cujo conteúdo tentava caracterizar osdocentes das universidades estaduais comoociosos, mirando inicialmente na Universidade

Estadual do Oeste do Paraná. Um dos recortesdo relatório divulgado na Agência de Notíciasdo Estado do Paraná dava conta de que osdocentes "trabalham apenas 13 horas sema-nais, apesar de receber uma gratificação de, emmédia, 50% do valor de seus salários para sededicar em tempo integral e com dedicação ex-clusiva (TIDE) à universidade"39. Por detrásdessa declaração estava a intenção de vender aimagem de que, além de ociosos, os professorespoderiam arcar com novas aulas e, portanto,assumirem a expansão de vagas e cursos semhaver a necessidade de novas contratações. Essacontabilidade efetuada pelo secretário AldairRizzi operou diretamente as diretrizes doBanco Mundial à medida que fez desaparecer aconcepção de ensino como um conjunto de ati-vidades integradas para a formação do alunocompostas por aulas, supervisão de estágios,orientação de monografias e apoio didático parao preparo de aulas e orientações aos alunos.

As declarações extraídas do relatório do se-cretário da SETI de que os docentes da Uni-versidade Estadual do Oeste do Paraná só tra-balham em média 13 horas por semana, alémde mostraram-se como um julgamento absolu-tamente desinformado e leviano, revelaramtambém a clara intenção de submeter os do-centes daquela universidade a uma carga horá-ria de ensino que, conseqüentemente, sepulta-ria as atividades de pesquisa e extensão. Des-dobrando a lógica do Banco Mundial de sepa-rar professores de pesquisadores (ensino depesquisa), o secretário afirmou que teria "umorçamento apertado e que deve ser bem em-pregado. Por isso, precisamos estabelecer umnúmero determinado de professores que farãopesquisas e passaremos a acompanhar a produ-tividade, a importância e o resultado dessestrabalhos"40 (grifo nosso).

O secretário Rizzi é professor da Univer-sidade Federal do Paraná e sabe que o proces-so de trabalho docente não se resume às ativi-dades de ensino em sala de aula. Os professo-res da UNIOESTE, tal e qual os professoresdas demais universidades estaduais do Paraná,

Além de não repor asperdas salariais acumula-das, o Governo Requiãopretende ampliar a cargahorária dos docentes emsala de aula, reduzindo otempo dedicado à pesqui-sa e à extensão.

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têm a sua carreira normatizada pela lei estadualnº 11.713/97 que determina aos professoresque optam pelo Regime de Trabalho de TempoIntegral e Dedicação Exclusiva (TIDE) quealém das atividades de ensino "deverão, obri-gatoriamente, estar em consecução de projetosde pesquisa ou extensão". De acordo com estu-dos realizados pela própria SETI, no iníciodeste ano, os docentes das IEES do Paraná de-dicavam, em média, 13,7 horas/aula de sua car-ga horária ao ensino em sala de aula. Essa mé-dia está bem acima das 8 horas semanais de aularecomendadas pela LDB. Esse estudo tambémevidenciou, naquele período, que dos atuais5.393 docentes das IEES, 3.378, ou seja, 63%,tinham o TIDE como regime de trabalho41.

No mês de fevereiro de 2004, o governadorRoberto Requião, em entrevista coletiva con-cedida aos órgãos de imprensa na cidade deCascavel, "prometeu acabar com a maracutaiado TIDE, que prevê 55% a mais de gratifica-ção para os professores com dedicação integral àuniversidade"42. Entretanto, o governador aca-bou revelando as verdadeiras intenções emdesqualificar o TIDE como regime de traba-lho, afirmando que, no seu entendimento, ape-nas 1/3 dos professores deveriam ter direito aoTIDE43. Se a proposta do governador for im-plementada, haverá uma redução significativados custos com a folha de pagamento das uni-versidades paranaenses. Dessa forma, vai serevelando aquilo que o discurso moralista e areforma universitária que vem sendo imple-mentada pelo Governo Requião tentam escon-der: a redução de custos da educação superiora qualquer preço. Dentre as ações prioritáriasda SETI, anunciadas recentemente pelo secre-tário Rizzi, inclui-se a "criação de um instru-mento para acompanhar a produção dos docen-tes com TIDE e o levantamento da produçãocientífica dos docentes com TIDE"44. Tais me-didas, ao que parece, longe de buscarem amelhoria da qualidade do trabalho docente,terão como objetivo fundamental restringir oTIDE dos docentes e conseqüentemente redu-zir os custos com a folha de pagamentos. Para

o Governador Requião, como vimos anterior-mente, 1/3 de docentes com TIDE seria o limi-te ideal. A restrição do Regime de DedicaçãoExclusiva concorreria, portanto, para transfor-má-lo numa gratificação produtivista.

Na seqüência das medidas adotadas peloGoverno Requião cumpre destacar ainda ocancelamento do concursopúblico para o preenchi-mento de 1.314 vagas paradocentes solicitadas pelasadministrações superioresdas universidades para-naenses. Em fevereiro de2004, o secretário Rizzianunciou a suspensão dacontratação dos docentes.Na oportunidade infor-mou que uma equipe detécnicos da SETI verifica-ria "in loco" a produçãoacadêmica nas seis univer-sidades. De acordo com informações veicula-das pelo Governo, o trabalho dos técnicos era"parte de um trabalho de avaliação institucio-nal que tem como objetivo a organização dosistema estadual de ensino superior e a raciona-lização de recursos públicos"45. E enquanto otrabalho dos técnicos da SETI não fosse con-cluído, as universidades estaduais não pode-riam contratar novos professores. Com a con-clusão dos trabalhos de verificação da produ-ção acadêmica nas universidades, o secretárioacreditava que seria possível "redimensionar asreais necessidades de cada uma das instituições.(...) Muitas coisas precisam ser revistas". Para osecretário Rizzi uma das questões passíveis derevisão seria o número de professores comTIDE e que efetivamente desenvolvem pesqui-sa acadêmica de resultados.46

Depois de concluídos essa verificação daprodução acadêmica nas universidades o Go-verno Estadual autorizou a contratação deprofessores, mas na forma precarizada de tra-balho temporário e em número menor do queo solicitado pelas universidades. A autorização

Depois de concluídos essaverificação da produçãoacadêmica nas universi-dades o Governo Estadualautorizou a contrataçãode professores, mas naforma precarizada de tra-balho temporário e emnúmero menor do que osolicitado pelas universi-dades.

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prescreveu a contratação de 690 professorescontra a demanda de 1.314. A contratação deprofessores temporários significa uma precari-zação do trabalho docente uma vez que taisprofessores são obrigados a assumirem cargahorária de ensino, em sala de aula, bastante su-perior em relação aos docentes efetivos. Quan-to à autorização para a realização de teste sele-tivo para a contratação de apenas 690 professo-res, o secretário Chefe da Casa Civil, CaitoQuintana, com sinceridade invejável, afirmou:"Com essa atitude o Governo está demons-trando a racionalização que se pretende nosgastos com pessoal"47.

As medidas "racionalizadoras" adotadaspela SETI têm sido acompanhadas de um dis-curso moralizador cujo objetivo é criar umaopinião pública favorável à implementação daredução dos gastos públicos com as universi-dades paranaenses. O Governo Estadual vemse esforçando no sentido de construir umaimagem bastante negativa das universidades

como se as mesmas vives-sem numa "anarquia ad-ministrativa que causa des-calabro"48. Neste sentido, oataque toma como alvo aautonomia universitária.Por diversas vezes o gover-nador Requião tem defen-dido a necessidade de im-por um "controle externosobre as universidades es-taduais"49. Apesar de pro-

meter em seu discurso de posse respeitar aautonomia das universidades, Requião iniciouem março deste ano, discussões com o objeti-vo de estabelecer o controle externo sobre asuniversidades estaduais. Em reunião com oseu secretariado no último dia 08 de março, oGovernador Requião afirmou que "as univer-sidades públicas estaduais apresentaram bonsresultados no último ano mas, em nome da au-tonomia universitária, continuam as desordensadministrativas que têm de ser resolvidas. (...)As universidades não podem se transformar

em instrumentos de corrupção e desvio derecursos. (...) é preciso que as universidadestenham um filtro fiscalizador, porque comoestão não podem ficar"50.

7. Conclusão: avaliar as universidades para destruir a

autonomia universitária.

Para anular a autonomia universitária aSETI estabeleceu como uma das ações priori-tárias para o ano de 2004 a institucionalizaçãode uma "Comissão Especial de Avaliação doSistema Estadual de Ensino Superior". Deacordo com a SETI, "um sistema de avaliaçãopermanente do ensino, da pesquisa e da exten-são nas seis universidades começa a ser implan-tado ainda este ano. O objetivo é prestar con-tas à sociedade e racionalizar recursos públicoscanalizados para o setor"51 (grifo nosso). Infe-lizmente, os reitores das universidades estadu-ais do Paraná se comprometeram a implemen-tar em conjunto com a SETI "um amplo pro-cesso de avaliação institucional". Não se trataaqui de se opor à avaliação institucional. Dis-cordamos do processo e da concepção que res-palda esse modelo de avaliação que é calcada namesma lógica de racionalizar os recursos e pu-nir as universidades e seu corpo docente.

A maior evidência da lógica que sustenta essemodelo de avaliação se expressou na Carta assi-nada pelos reitores das universidades pactuando12 compromissos com o governo Requião. Taiscompromissos foram assumidos sem nenhumaconsulta aos conselhos universitários, sendo en-carados como medidas de âmbito administrati-vo. Neste sentido, nasceram já subordinadas àpolítica oficial do Governo Requião, pois bus-cam enquadrar e determinar a autonomia didá-tico-científica, administrativa e de gestão finan-ceira e patrimonial, além de permitirem a que-bra da indissociabilidade entre ensino, pesquisae extensão. Já no início da Carta os reitores de-claram que "a avaliação tem, necessariamente,um caráter regulador e de controle, buscandocorrigir distorções e devendo prevalecer sua di-

As medidas "racionaliza-doras" adotadas pela SETItêm sido acompanhadasde um discurso moraliza-dor cujo objetivo é criaruma opinião pública fa-vorável à implementaçãoda redução dos gastospúblicos

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mensão formativa de uma cultura de responsa-bilidade com as atividades de educação supe-rior"52. Este princípio - completamente estranhoà idéia de autonomia intelectual - deverá, con-forme defende a Carta, ser operacionalizadopor uma "Comissão coordenada pela SETI".Para que não paire dúvidas sobre a natureza doexercício dessa autonomia, a carta reafirma quea comissão deverá se guiar pelo desenvolvimen-to de "uma reorganização administrativa visan-do a otimização dos processos com redução decustos e tempo" e "estabelecer mecanismos deacompanhamento e controle dos gastos com con-tratação de pessoal e afastamento docente, bemcomo para concessão do TIDE"53.

Assim, os reitores das universidades para-naenses, por meio de ações e omissões, pare-cem subordinar-se às políticas que vêm sendoimplementada pelo Governo Requião e equi-vocadamente isentam os verdadeiros responsá-veis pela crise do ensino superior público noParaná. A responsabilidade principal dessacrise cabe aos diferentes governos que já há al-gum tempo, vêm implementando reformas nosistema estadual de educação superior cujo ob-jetivo central foi e continua sendo a crescentedesobrigação do Estado de seu dever constitu-cional de financiar integralmente as atividadesdesenvolvidas pelas universidades com recur-sos do Tesouro do Estado. Menos Estado, maismercado. Eis a fotografia que reflete o raquitis-mo intelectual a partir do qual opera a SETI.

Por fim, alertamos para o significado desteprocesso de deliberada desqualificação dasuniversidades estaduais por parte do governoRequião/SETI. Procura-se atacar moralmenteessas instituições para viabilizar, sem que nin-guém perceba, uma reforma universitária quediminua a participação do Estado na educaçãosuperior pública, que restrinja o trabalhodocente à atividade de sala de aula e que subor-dine completamente as universidades às políti-cas de governo. O primeiro passo na constru-ção desse processo foi dado sob o argumentode que o Estado do Paraná gastaria demais comas universidades públicas, conforme estampa-

do no jornal Scientia, daSETI54. Na seqüência veio ainvestida contra as universi-dades e seus professores,numa tentativa de apresen-tá-las como ineficientes,corruptas e caras. O terceiropasso avança na direção desolapar a autonomia univer-sitária por meio de uma ava-liação institucional cuja ver-dadeira essência é a de ser uma avaliação gover-namental que visa essencialmente a redução decustos, tempo e do financiamento público dasIEES no Paraná.

Como disse Renato Ortiz sobre a difícil si-tuação das universidades estaduais de São Pau-lo: "a mediocridade de nossos políticos e a mio-pia de nossos reitores caminham juntas. Elasnos reservam um presente amargo e um futuroinsípido"55. É nesse sentido que os governosLula e Requião fazem o futuro repetir o passa-do exibindo, nessa reforma pretendida, ummuseu de grandes novidades.

Notas

1. Teórico do revisionismo marxista da 2ª Interna-cional cuja principal obra é Socialismo Teórico ySocialismo Practico. Las premissas del socialismoy la mision de la social democracia. Buenos Aires,Editorial Claridad, 1966.2. A realização do Encontro Sindical de Luziânia,nos dias 13 e 14 de março de 2004, que reuniu cercade 1800 sindicalistas de 270 entidades; o ato contraa reforma que aconteceu no dia 16 de junho de2004, que juntou cerca de 20 mil manifestantes emBrasília; a criação de uma Coordenação Nacionalde Lutas com o objetivo de organizar os trabalha-dores em torno de suas reivindicações. As inúmerasmanifestações que ocorreram até o momento nasuniversidades; o Encontro Nacional de Estudantesocorrido no Rio de Janeiro em Maio de 2004 quecontou com a presença de mais de 1500 estudantes; oSeminário Estudantil que aconteceu em Santa Ma-ria/RS que contou com a presença de cerca de 500

Procura-se atacar moral-mente essas instituiçõespara viabilizar, sem queninguém perceba, umareforma universitária

que diminua a participa-ção do Estado na educa-

ção superior pública.

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estudantes. Em paralelo a essa capacidade de mobili-zação, setores governistas do movimento estudantil,recorrendo oficialmente aos aparatos da UNE eUBES, conseguiram reunir apenas 2000 estudantesem ato realizado em Brasília, em agosto de 2004, emapoio à reforma universitária do governo.3. Cf. LENIN, W.I.U.. "Que Fazer?", In ObrasEscolhidas. São Paulo, Alfa-Omega, 1979. 4. Cf. Banco Central do Brasil.5. Cf. La enseñanza superior: las lecciones deriva-das de la experiencia (El desarrollo en la práctica).Washington, D.C. Banco Mundial, 1995.6. Tais documentos podem ser encontrados noANDES-SN.7. Documento apresentado em 02/08/04.8. O Sistema Estadual de Ensino Superior no Para-ná é composto atualmente por 6 universidades queoferecem 252 cursos de graduação para 71.621 alu-nos matriculados. São oferecidos, ainda, 14 progra-mas de doutorado e 65 programas de mestrado. Oquadro funcional das universidades é composto de8.299 servidores técnicos e 6.274 docentes. Destes,31% são doutores, 39% são mestres e 22% especia-listas. Conforme informações divulgadas pelosecretário Aldair Rizzi na Assembléia Legislativaem 30 de março de 20049. Cf. Governo vai reduzir despesas em 30%. Dis-ponível em: <Celepar8cta.pr.gov.br/> (AgênciaEstadual de Notícias, 09/04/03).10. Cf. Idem.11. Cf. Idem.12. Universidade Estadual de Londrina (UEL);Universidade Estadual de Maringá (UEM); Uni-versidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG); Uni-versidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOES-TE); Universidade Estadual do Centro-oeste(UNICENTRO); Universidade Estadual do Para-ná (Unespar).13. As entidades sindicais entregaram oficialmenteao Governo, em 29 de maio de 2003, a pauta de rei-vindicação salarial: recuperação das perdas salariaisno período de março de 1997 a maio de 2003. Asperdas acumuladas nesse período, de acordo com oICV/DIEESE, eram de 62%. 14. Cf. PARANÁ. Secretaria de Estado da Fazenda.Coordenação de Administração Financeira do Es-

tado Audiência Pública: Lei de ResponsabilidadeFiscal. 1º Quadrimestre de 2003. 15 Cf. Arrecadação do ICMs no Paraná cresceu4,3% em quatro meses. Disponível em: <Cele-par8cta.pr.gov.br/> (Agência Estadual de Notícias,10/03/04).16 Cf. Secretaria da Fazenda prevê crescimento naarrecadação. Disponível em: <Celepar8cta.pr.gov.-br/> (Agência Estadual de Notícias, 22/03/04).17. Cf. Scientia - Informativo do Sistema Seti. Ou-tubro de 2003, p. 1.18. Cf. Requião garante ensino gratuito na Facul-dade de Bandeirantes. Disponível em: <Cele-par8cta.pr.gov.br/>. (Agência Estadual de Notícias,11/04/03).19. Cf. RIZZI, A. T. A reestruturação do ensinosuperior público no Paraná. In Scientia - Informa-tivo do Sistema Seti. Outubro de 2003, p. 2.20. Cf. Idem.21. Cf. Idem.22. Cf. Idem.23. De acordo com informações veiculadas pelosecretário Aldair Rizzi, dia 30 de março de 2004, naAssembléia Legislativa, a SETI não autorizou aabertura ou continuidade de 2 novos cursos naUEL, 1 na UEM, 2 na UEPG, 1 na UNICENTROe 24 na UNIOESTE.24. Foi o caso dos cursos de Teatro, Música e Psi-cologia na UNIOESTE.25. Os 40 alunos matriculados no curso de Me-dicina na UEPG foram transferidos para os cursosde Medicina das outras universidades mantidas peloEstado em Cascavel, Londrina e Maringá.26. Cf. Rizzi explica que suspensão de 43 cursosdepende de avaliação. Disponível em: <Celepar8c-ta.pr.gov.br/>. (Agência Estadual de Notícias, 09/-03/04)27. Cf. Idem.28. Cf. Governo regulariza quinze cursos universi-tários. Disponível em: <Celepar8cta.pr.gov.br/>(Agência Estadual de Notícias, 19/05/04); Requiãoautoriza a reabertura de seis cursos da UEPG. Dis-ponível em: <Celepar8cta.pr.gov.br/> (Agência Es-tadual de Notícias, 29/06/04); UNICENTRO temnove cursos regularizados. Disponível em:<Celepar8cta.pr.gov.br/> (Agência Estadual deNotícias, 29/06/04); Requião libera sete cursos na

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UEM. Disponível em: <Celepar8cta.pr.gov.br/>(Agência Estadual de Notícias, 21/07/04); 29. As universidades estaduais do Paraná conti-nuam impedidas de realizar vestibulares para o in-gresso de novas turmas nos seguintes cursos: Mú-sica e Tecnologia em Construção Civil (UEM);Farmácia e Fonoaudiologia (UNICENTRO); Ad-ministração (UNIOESTE - campus de FranciscoBeltrão) e Enfermagem (UNIOESTE - campus deFoz do Iguaçu).30. Cf. Requião libera sete cursos na UEM. Dis-ponível em: <Celepar8cta.pr.gov.br/> (AgênciaEstadual de Notícias, 21/07/04).31. Cf. Idem.32. Cf. Governo regulariza quinze cursos universi-tários. Disponível em: <Celepar8cta.pr.gov.br/>(Agência Estadual de Notícias, 19/05/04).33. Cf. <http://www.seti.gov.br/noticias/notici-a s_2004/ jun/UNICENTRO%20regu lar i -za%20nove.htm>. Acesso em 17 de junho de 2004.34 Cf. Reitores apresentam mudanças nas universi-dades para atender política estadual de ensino supe-rior. Disponível em: <Celepar8cta.pr.gov.br/>(Agência Estadual de Notícias, 15/03/04).35. Cf. Idem.36. Cf. Boletim da ADUNIOESTE - Seção Sindicaldo ANDES-SN, Ano III, 28/02/2004, p. 1.37. Cf. Exposição sobre os programas da SETI e a sus-pensão dos vestibulares de 43 novos cursos, feita pelosecretário Aldair Rizzi, aos deputados no Plenário daAssembléia Legislativa, em 31 de março de 2004.38. Essas duas universidades começaram a se estru-turar no final da década de 80 e foram reconhecidaspelo MEC no final de 1994. As universidades deLondrina, Maringá e Ponta Grossa são mais anti-gas, foram criadas no início da década de 60. Essastrês universidades são consideradas "universidadesconsolidadas".39. Cf. Governador recebe relatório sobre situaçãodos professores da UNIOESTE, In celepar8c-ta.pr.gov.br/, 07/01/2004.40. Cf. Idem.41. Cf. Exposição sobre os programas da SETI e a sus-pensão dos vestibulares de 43 novos cursos, feita pelosecretário Aldair Rizzi, aos deputados no Plenário daAssembléia Legislativa, em 31 de março de 2004.

42. Cf. Jornal Gazeta do Paraná, Caderno Cascavel,p. 1, 13 de fevereiro de 2004. Disponível em:<http://www.gazetadoparana.com.br/paginas/edi-torias/cascavel/mat7.php>. 43. O Governador Requião argumenta que a LDBdetermina que apenas 1/3 dos professores teriamdireito ao TIDE. Na verdade, o Governador Re-quião faz uma leitura distorcida do art. 52 da LDBque determina que as universidades deverão contarcom 1/3 do corpo docente com tempo integral, ouseja, 40 horas. Requião foi senador e presidia a Co-missão de Educação do Senado quando da aprova-ção da LDB. Mas, ao que parece, não aprendeu dis-tinguir a diferença entre tempo integral e o regimede dedicação exclusiva. 44. Cf. Exposição sobre os programas da SETI e a sus-pensão dos vestibulares de 43 novos cursos, feita pelosecretário Aldair Rizzi, aos deputados no Plenário daAssembléia Legislativa, em 31 de março de 2004.45. Cf. Organização do ensino superior inclui che-cagem da produção acadêmica. Disponível em:<http://www.seti.gov.br> (Arquivo de notícias,13/02/04).46. Cf. Idem47. Cf. Requião autoriza abertura de vagas para oensino superior. Disponível em: Celepar8cta.pr.-gov.br/ (Agência Estadual de Notícias, 07/03/04).48. Cf. Jornal O Paraná, p. 3, 12 de fevereiro de2004. Disponível em: <http://www.oparana.com.-br/>. Palavras pronunciadas pelo Governador Re-quião ao referir-se à UNIOESTE. 49. Cf. Requião defende o controle externo das uni-versidades estaduais. Disponível em: Celepar8cta.-pr.gov.br/ (Agência Estadual de Notícias, 08/03/04).50. Cf. Idem.51. Cf. Ensino Superior público será avaliado. Dis-ponível em: Celepar8cta.pr.gov.br/ (Agência Esta-dual de Notícias, 09/02/04).52. Cf. Reitores das estaduais divulgam Carta comdoze compromissos. Disponível em: Celepar8c-ta.pr.gov.br/ (Agência Estadual de Notícias, 15/03/04).53. Cf. Idem..54. Cf. Scientia - Informativo do Sistema SETI.Outubro de 2003, p.12.55. ORTIZ, Renato. Crônica de uma morte anun-ciada. Mimeo, 2002.

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Agreve dos bancários que sacudiu o paísrecentemente teve, entre outras coisas, omérito de trazer à tona elementos impor-

tantes para compreendermos o processo derecomposição pelo qual passa o movimentosindical em nosso país, pós-ascensão do PT ede Lula ao governo da República. Ela aconte-ceu a partir de uma imensa rebelião de base dosbancários de todo o país, rebelião que recha-çou a proposta que havia sido acertada entre asdireções dos sindicatos (Confederação Nacio-nal dos Bancários - CNB/CUT), os banquei-ros e o governo ("dono" do BB e da CEF) edeu início a uma das maiores e mais radicaliza-das greves que a categoria já fez em toda a suahistória. Greve, aliás, sustentada em toda a suaduração pela oposição sindical bancária, en-frentando a intransigência e a repressão dosbanqueiros, do governo e a sabotagem das di-reções dos sindicatos e da CNB/CUT.

Essa greve representou, talvez, a primeirarebelião das bases contra as regras da ReformaSindical que a CUT quer aprovar junto com ogoverno. Se estas regras estivessem valendo, adireção da CNB/CUT teria simplesmente assi-

nado o acordo que ela já tinha acertado com osbanqueiros, sem ter que submetê-lo às assem-bléias de base. Ao ter que aprovar o acordo nabase, foi atropelada, num processo que deixaclaro as dificuldades que as Centrais - mesmocom uma eventual aprovação da Reforma Sin-dical - terão para tentar conter as lutas dos tra-balhadores.

A greve mostrou também um grau bastanteprofundo de ruptura dos trabalhadores com adireção cutista dos sindicatos. A palavra de or-dem gritada pelos mais de três mil trabalhadorespresentes à assembléia de São Paulo que decre-tou a greve (...eu, eu, eu, o sindicato se vendeu!)lembrou as assembléias do sindicato dos meta-lúrgicos de São Paulo, na década de 80, época dopelego Joaquinzão. E esta foi a tônica da relaçãoque a base manteve com as direções daCNB/CUT e dos grandes sindicatos do setordurante toda a greve. A revolta contra o gover-no, que se alinhou aos banqueiros para tentarderrotar o movimento, voltava-se também con-tra as direções sindicais cutistas, vistas comoagencia do governo e não como representantesdos trabalhadores. E nós estamos falando de

A ruptura da CUT é um processo objetivo e

já está em curso

José Maria de Almeida

Diretor da Federação Democrática dos Metalúrgicos de Minas Gerais, participa da coordenação da CONLUTAS representando esta entidade.

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE5500 - DF, Ano XIV, Nº 34, outubro de 2004

uma das burocracias mais fortes e bem estrutu-radas da CUT, a burocracia bancária.

O que a greve bancária expressou, com todaclareza, é que já há em curso um profundo pro-cesso de ruptura - também no setor privado -dos trabalhadores com o governo Lula e, poresta via, com as direções sindicaisque se transformaram em agenciasauxiliares do governo, defensorasdas suas políticas, ao invés dedefenderem os interesses dos seusrepresentados. Este processo já sevia com clareza no funcionalismofederal, desde a Reforma da Pre-vidência, com a particularidade deque, neste caso, a revolta se deudiretamente contra a CUT, dado opapel que esta cumpriu naquelemomento. Processo que se nota emqualquer setor da classe trabalha-dora onde esta discussão é feita com clareza.

Essa ruptura é fruto da contradição entre anecessidade (e, cada vez mais, a vontade) dostrabalhadores de lutar contra as políticas dogoverno para buscar as mudanças que Lula pro-meteu e não fez, e contra a firme decisão daCUT e de seus dirigentes nos sindicatos, deapoiar este governo e suas políticas econômicas.

Nos sindicatos, que organizam efetivamenteas massas trabalhadoras do país (não são asCentrais que cumprem esta função no Brasil),este processo deve tomar a forma de um amplofortalecimento de oposições sindicais na basedos sindicatos dirigidos pela CUT. O esforçodos trabalhadores para recuperar seus instru-mentos para a luta, deve se traduzir no apoio àoposições combativas, classistas, como ocorreuna década de 80 (guardadas as devidas propor-ções), em que se varreu a pelegada da grandemaioria dos sindicatos mais importantes do país.Devemos apoiar e potencializar este processocom todas as nossas forças.

No entanto, como se deu também naquelemomento, a classe trabalhadora precisa de umadireção nacional para coordenar os trabalha-dores e uni-los nas suas lutas e potencializar o

seu enfrentamento contra as políticas neolibe-rais de Lula/FMI. A CUT, que cumpriu estepapel na década de 80, não tem nenhuma con-dição de cumpri-lo agora. Pelo contrário ela éo principal obstáculo a que este processo se dê:ela é a "pelegada" de hoje.

A ruptura da CUT não é, por-tanto, um processo artificial, queobedece à vontade deste ou daque-le setor. É a expressão desta ruptu-ra política que já se dá na base, naestrutura, nos locais de trabalho. Éuma necessidade, para que seavance na construção desta alter-nativa de direção para as lutas dostrabalhadores. O papel, a obriga-ção da esquerda brasileira, épotencializar este processo de rup-tura e canalizá-lo para a constru-ção de uma alternativa.

Mas, insistem setores de esquerda que con-tinuam na CUT, não seria o caso de seguirlutando dentro da Central, para retomá-la parao caminho da luta?

A dimensão da degeneração da CUT

A degeneração da CUT não aconteceu "danoite para o dia" e tampouco se restringe aoapoio à proposta de Reforma Sindical formula-da dentro do Fórum Nacional do Trabalho.

Há anos vem se processando o afastamentoda Central das propostas e concepções que aoriginaram. A aproximação e depois filiação àCIOSL simbolizou a adoção pela CUT da con-cepção de ação sindical baseada na parceria e nacolaboração de classes. A expressão prática dis-so veio com os Acordos das Câmaras Setoriaisainda no início da década de 90. Daí surgiram osprimeiros Acordos de Banco de Horas, Bancode Dias e foi até o Acordo de Redução de Sa-lários dos trabalhadores da Volkswagen no finaldos anos 90.

Também a perda da independência e autono-mia frente ao Estado vem de antes, com os con-vênios com o governo (ainda o anterior) regado

O que a greve bancá-ria expressou, com

toda clareza, é que jáhá em curso um pro-

fundo processo deruptura - também nosetor privado - dos

trabalhadores com ogoverno Lula.

As "Reformas" do Governo Lula

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a verbas do FAT. Obviamente isso foi levando aCentral a afastar-se cada vez mais das lutas dostrabalhadores, a ir transformando-se em umaburocracia cada vez mais alheia aos interesses edemandas da base que deveria representar.

Com a ascensão de Lula ao governo, essaCentral que vinha já num processo acelerado desocial-democratização, mas que ainda era "deoposição", passa a ser uma Central "de situa-ção" e se integra à base de sustentação do gover-no. A CUT apóia então, de fato, a Reforma daPrevidência; silencia frente ao salário mínimo de260 reais; faz parceria com o governo para des-mantelar a última campanha salarial do funcio-nalismo federal; apóia a reforma universitária;propõe aos trabalhadores "diminuir as pressõespor aumento dos salários" para viabilizar umPacto Social no exato momento em que se ini-ciavam as grandes campanhas salariais de bancá-rios, metalúrgicos, petroleiros; trai a luta dosbancários; etc. Transforma-se em parceira dogoverno na implantação do mesmo modelo eco-nômico do FMI que ela nasceu combatendo.

A proposta de Reforma Sindical, preparadaem conjunto com governo e empresários, éuma conseqüência natural dessa opção daCentral. Ela visa assegurar ao governo/ empre-sários condições plenas para que se efetive umaampla flexibilização dos direitos dos trabalha-dores, e busca, também, assegurar à cúpula daCentral, e por esta via, ao governo Lula, o con-trole sobre as organizações sindicais dos traba-lhadores, impedindo que se transformem emfocos de resistência contra a aplicação das polí-ticas econômicas vigentes no país. A CUT que,antes, já era um obstáculo relativo à luta clas-sista dos trabalhadores brasileiros, passa a seragora um obstáculo absoluto, uma trava paraas suas lutas.

As bases sociais e econômicas desse processo político

Pela via da capitulação política estabelece-ram-se relações econômicas e materiais queliquidaram definitivamente com a independên-

cia e autonomia da Central frente ao Estado,ao governo e aos empresários. O processo quevinha de antes, com as verbas do FAT e com asparcerias com empresas, atinge um patamarsuperior com o governo Lula. São nomeaçõesde sindicalistas para cargos públicos, liberaçãode verbas de bancos oficiais para projetos diri-gidos pela Central e de validade bastante duvi-dosa para os trabalhadores, e a promiscuidadecom os fundos de pensão.

Com a Reforma da Previdência, as Cen-trais, CUT incluída, ganharam autorização pa-ra constituir seus próprios fundos de pensão.Mas alem disso, o governo nomeou sindicalis-tas para a administração de fundos de pensão jáexistentes e que tem carteira de investimentosna casa das dezenas de bilhões de reais(PREVI, PETRUS, etc, etc). Estes fundos depensão, por sua vez, investem bilhões de reaisem empresas, muitas vezes ganhando o direitode indicar a administração da empresa. E admi-nistram estas empresas dentro dos parâmetrosneoliberais para ter retorno do investimentofeito. Temos aí a associação de sindicalistascom empresários para explorar trabalhadores egarantir o aumento do lucro da empresa.

Isto quando não ocorre coisa pior: recente-mente o presidente da CUT intermediou juntoao governo um empréstimo de 700 milhões dereais do BNDES à EMBRAER. É uma empre-sa privada que tem como um de seus controla-dores, a PREVI, que é presidida por outro ex-sindicalista, o ex-bancário Sérgio Rosa. Depoisa EMBRAER fez uma generosa contribuiçãopara financiar o primeiro de maio da CUT.Nesta promiscuidade generalizada, nem pas-sou pela cabeça do presidente da CUT o trata-mento dado pela empresa a seus empregados,que ele deveria representar. Da mesma forma,no episódio em que o atual e o ex-presidenteda CUT posaram de garotos-propaganda deuma grande Universidade privada de SãoPaulo, jogou-se no lixo a bandeira histórica daCUT de defesa do ensino público.

E são estas relações, os interesses materiaiscomuns que se estabelecem entre a cúpula da

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Central com empresários e com o próprioEstado que tornam irreversível este processode degeneração. Mesmo no caso de uma derro-ta eleitoral do PT e da volta ao governo daoposição burguesa. É o caso das grandes Cen-trais Européias: podem mudar um pouco atonalidade da sua política a depender se gover-na a Social-Democracia ou se os partidos cha-mados conservadores, mas o conteúdo de suapolítica é sempre de conciliação, de parceiracom eles e com os empresários, contra os inte-resses dos trabalhadores.

Este grau de degeneração e burocratização aque chegou a Central, por outro lado, impos-sibilita completamente a emergência de qual-quer processo pela base que desloque sua dire-ção atual. Qualquer pessoa minimamente in-formada sobre a realidade da CUT sabe perfei-tamente que é impossível a esquerda ganharqualquer Plenária ou Congresso que se realizeem base às regras de funcionamento da Cen-tral. Não há como mudá-la por dentro. Seguirconclamando os trabalhadores a lutar por esteobjetivo é, ao mesmo tempo semear ilusões (oobjetivo é inalcançável), e desperdiçar energiaem uma luta interna completamente infrutíferadentro da Central. Ficar na CUT apenas serveà legitimação do que a sua direção faz. Para asociedade, para a população, para a classe tra-balhadora não há duas CUTs, uma de direita eoutra de esquerda. Há uma CUT, a que apóiaLula contra os trabalhadores.

Não é permanecendo dentro da CUT que aesquerda se localiza melhor para "disputar abase da Central". É construindo uma alternati-va à CUT, voltada para a luta em defesa dosseus direitos que vamos trazer essa base para aluta. Foi assim que fizemos quando rompemoscom as Confederações no início da década de80 para fundar a CUT com uma pequena mi-noria dos sindicatos existentes no país naquelemomento. A fundação da CUT foi decisivapara alimentar e potencializar o processo deorganização das oposições sindicais que per-mitiu varrer a pelegada dos sindicatos e trazerpara a luta "a base" das Confederações.

Não é possível, dentro da CUT, construir a unidade para lutar

Há companheiros que criticam as entidadesque estão se desfiliando da CUT como se estasdesprezassem a importância da unidade dos tra-balhadores, como se fossem divisionistas. Aqui háduas confusões - deliberadas ou não - que preci-sam ser desfeitas. A primeira é de qual unidade sefala? Da unidade para lutar contra a ReformaSindical? Da unidade para lutar contra a ReformaUniversitária? Da unidade para lutar contra omodelo econômico de Lula/FMI? Se for destaunidade que se fala, é preciso acrescentar que éimpossível construí-la dentro da CUT, pela sim-ples razão de que a CUT é contra todas estaslutas! Pelo contrário, a luta contra a ReformaSindical, contra a Reforma Universitária, etc, éuma luta contra a CUT, só será vitoriosa se derro-tarmos politicamente a CUT.

Sobre a segunda, a acusação de divisionsistas,vale lembrar que quando fundamos a CUT em1983 também enfrentamos esta mesma acusação,inclusive de setores da esquerda (PC, PCdoB,MR8, etc). A fundação da CUT deu-se a partirde uma ruptura com as Confederações e Fe-derações pelegas, mas foi uma divisão necessáriapara que se pudesse construir a unidade dos tra-balhadores para a luta. Porque assim como aCUT é hoje, as Confederações e Federaçõeseram uma trava para as lutas. E a acusação de di-visionismo acobertava, na verdade, a defesa davelha pelegada. Se naquele momento não tivés-semos levado adiante o congresso de fundaçãoda CUT (mesmo com a participação de apenascerca de 460 sindicatos), o que teria acontecidocom aquele processo de revolta dos trabalhado-res contra as Confederações e Federações comquem rompemos para fundar a Central?

CONLUTAS - A construção da unidade para a luta

É neste contexto que surge a CONLUTAS.Trata-se de construir um pólo de aglutinaçãode forças que possa vir a se transformar em

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uma Alternativa para as lutas dos trabalhado-res que a CUT não é mais. Um pólo de agluti-nação que seja construído com toda a paciên-cia necessária para que seja sólido, consistente,e agrupe o maior leque de forças possível. Mastambém com a determinação e firmeza neces-sária se entendemos que a CUT não é mais oinstrumento para a nossa luta e que é precisoconstruir uma alternativa.

Por isto a CONLUTAS é hoje o que seupróprio nome diz, uma coordenação, aberta atodos os que queiram lutar, as entidades filia-das à CUT, as que já se desfiliaram, as quenunca foram filiadas. Esta amplitude é o reco-nhecimento de que o processo de recomposi-ção apenas se inicia, e de que há grande desi-gualdade e diversidade na com-preensão do que se passa no inte-rior da classe trabalhadora, e dastarefas que estão colocadas. Assimse constrói a unidade de todos quequerem lutar.

Mas há sim uma definição que éfundamental e que esclarece o"perfil político" da CONLUTAS:A compreensão de que sua tarefa élevar adiante a luta contra este go-verno e suas políticas neoliberais, econtra seus aliados, sejam eles osbanqueiros e empresários, sejam asCentrais Sindicais (CUT inclusi-ve). Esta definição é um distintivo fundamen-tal, num momento em que boa parte dos movi-mentos sociais do país transforma-se em chapa-branca e governista. Não há luta contra asreformas neoliberais, contra estas políticas eco-nômicas do governo Lula, sem lutar contra ogoverno (que aplica estas políticas) e sem lutarcontra a própria CUT (que lhe dá sustentação).

Esta questão é muito importante, pois umamá localização política acerca dessa situaçãopode levar um movimento social à trincheiraerrada na luta de classes. Os setores da esquerdada CUT que se negaram a participar da manifes-tação de 16 de junho em Brasília, contra a Re-forma Sindical, porque esta manifestação era

contra a CUT e o governo, acabaram contri-buindo para o enfraquecimento da luta contra aReforma Sindical que dizem combater. Esti-veram na trincheira errada, e impediram a cons-trução da unidade de todos que estão na lutacontra a Reforma Sindical.

Uma alternativa para as lutasdos trabalhadores

Mas o fato de hoje ela ser uma coordenação,que é o que a realidade nos permite, não pode noslevar a negligenciar a tarefa de ir transformando-a na Alternativa que a nossa classe precisa.

Precisamos de uma Alternativa que resgateas bandeiras de luta da esquerda brasileira. E

acreditamos que aqui não há queinventar a roda. A esquerda brasi-leira construiu com suas lutas nasúltimas décadas, uma plataformabásica comum aos setores que com-põem a CONLUTAS hoje, e estedeve ser o nosso ponto de partida.A luta contra a recolonização impe-rialista, materializada na ALCA enos acordos de "Livre Comércio"de forma geral, nos acordos com oFMI e no pagamento das dívidasexterna e interna e na Militarização.Por emprego, salário digno, refor-ma agrária, moradia, transporte.

Em defesa da saúde e educação pública, de qua-lidade e para todos. A defesa dos serviços e pa-trimônio público, contra as reformas neolibe-rais como a Sindical/Trabalhista e a Univer-sitária que estão em curso. A luta por liberdadee autonomia de todas as formas de organizaçãodos trabalhadores, não só a sindical, frente aoEstado, aos governos e aos patrões. A luta con-tra toda forma de exploração e opressão docapitalismo e por uma sociedade socialista.

Não queremos, tampouco, construir umanova CUT. Cito aqui um trecho do texto quenós (metalúrgicos) disponibilizamos para odebate dentro da CONLUTAS, acerca dessaalternativa que queremos construir:

Por isto a CONLUTASé hoje o que seu pró-prio nome diz, umacoordenação, abertaa todos os que quei-ram lutar, as entida-des filiadas à CUT, asque já se desfiliaram,as que nunca foram

filiadas.

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"Um olhar mais cuidadoso para a realidade daclasse trabalhadora brasileira hoje, nos indica anecessidade de buscarmos alternativas de organi-zação superiores àquelas representadas pelas atu-ais Centrais Sindicais. Mais de 50% da classe tra-balhadora brasileira está no setor informal ou emtrabalho precário, sem falar nos desempregados.Estão fora, portanto, da base dos sindicatos e dasCentrais. Da mesma forma é notório o fato de queos setores mais pobres e marginalizados tem difi-culdades para encontrar espaço para as suas lutasdentro dos sindicatos.

Nada disso é dito para diminuir a importânciae o papel dos sindicatos e do movimento sindicalna luta dos trabalhadores em nosso país, o que ne-nhum de nós nega. O que queremos dizer com issoé da importância de os próprios sindicatos busca-rem estreitar alianças com estes setores mais explo-rados da nossa classe. Aliança que é fundamentalpara 1) reunir força para defender as reivindica-ções dos trabalhadores representados pelos sindi-catos (o caso dos servidores públicos é apenas omais gritante a demonstrar a importância do apoioàs suas lutas pelo restante da população); 2) forta-lecer a luta destes setores em torno às suas deman-das específicas e; 3) somadas as forças, dos sindica-tos e de todos estes setores sociais, criarmos as con-dições para transformar nosso país, na luta contraa exploração capitalista.

Não vemos, então, como melhor a hipótese de aCONLUTAS vir a ser uma nova Central Sindical,nos moldes das atuais. Acreditamos que o melhorseria que ela amadurecesse como uma organizaçãomais ampla, que pudesse agrupar sindicatos, movi-mentos sociais, movimentos populares de formageral, organizações estudantis, etc. E que preservas-se a autonomia das entidades e movimentos quedela participassem, para tomar toda e qualquer de-cisão que julgar necessária, no âmbito da represen-tação de cada um.

Que tivesse uma estrutura e um funcionamen-to (nacional, estadual, regionais/ municipais, etc)capaz de dar conta dessa amplitude de representa-ção, menos centralizada que uma Central Sindical.Mas que, por outro lado, fosse capaz de unir na lutaos seus componentes, que não fosse simplesmenteum espaço para debates, e sim, também e principal-mente, um espaço para organizar a luta. E que, ob-viamente, contasse com uma forma de financia-

mento de seu funcionamento e de suas ações capazde transformar em realidade tudo isso".

Esta é a discussão que está em curso dentroda CONLUTAS neste momento. E é impor-tante que todas as entidades dele participem,colocando sua opinião. Só assim a construçãodessa Alternativa será obra de um trabalho co-letivo, plural, democrático. Da mesma forma éfundamental que este debate seja feito na basede cada categoria, pois se não for construídopela base, este processo já começará mal.

Estaremos neste final de 2004 realizandoEncontros Estaduais da CONLUTAS paraavançar na discussão do calendário de lutas epara aprofundar o debate sobre como deveráser esta Alternativa que estamos construindo.Em janeiro, durante o Fórum Social Mundialem Porto Alegre, realizaremos um grande En-contro Nacional que também deverá tratardestas duas questões. Não pretendemos obvia-mente encerrar aí este debate, muito pelo con-trário, ele está ainda em seu início. Nem pre-tendemos fundar uma nova organização noEncontro de janeiro, porque estamos consci-entes de que este processo deve ser maturadocom cuidado para que seu resultado seja con-sistente como precisa ser.

Mas sim acreditamos que é preciso avançartudo o que for possível para irmos fortalecendoe aprimorando o funcionamento dessa Alterna-tiva para as lutas dos trabalhadores que estamosconstruindo. Neste sentido, do ponto de vistadas necessidades para as lutas dos trabalhadores,temos sim urgência (a greve dos bancários e agreve contra a reforma da previdência que odigam). Será o debate aberto, democrático, fran-co, com ampla participação de todas as entida-des e movimentos que estiverem engajados nes-te processo que nos apontará o quanto podere-mos avançar. Estamos diante dos primeiros pas-sos de uma longa jornada, mas passos funda-mentais que precisam ser dados com firmezapara alcançarmos nosso objetivo: a construçãode uma alternativa de direção para as lutas daclasse trabalhadora que a liberte da exploração eda opressão do capitalismo.

As "Reformas" do Governo Lula

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A Situação Educacional do Negro no Século XX

Em pleno século XX a situação educacionaldas populações preta e parda não foi posi-tiva, como demonstra o exemplo abaixo,

baseado em dados de 1991:Em relação aos níveis de estudo, observa-se

uma ainda alta participação de pessoas sem ins-trução na população preta, ou seja, 36,40%.Quando se considera a faixa etária, na qual osjovens deveriam estar cursando o ensino mé-dio, observa-se que ainda 16,96% dos jovenssão iletrados e apenas 11,22% cursavam o ensi-no médio.

Os dados demonstram que quanto maior o

nível de escolaridade, menor é a participaçãode pretos e pardos. Somente 1,86% dos pretostêm de 11 a 14 anos de estudos, enquanto umpercentual também insignificante, menos de1%, possui mais de 15 anos de estudos.

Da população jovem de 15 a 19 anos de ida-de, somente 13,38% lograram cursar o ensinomédio. Nessa faixa etária, 2,33% dos jovenspardos conseguiram aparentemente_ participardo ensino superior. Contudo, um percentualinsignificante, de menos de 1%, possuía 15 oumais anos de estudo.

Quanto ao ensino superior concluído, dototal de 3.928.263 pessoas de todas as raças,52,055 (1,32%) eram pretas e 513.880 (13,08%)eram pardas.

O Negro na História da Educação Superior no Brasil

Graziela de Oliveira

Variáveis Selecionadas Total %

Pessoas Pretas de 5 ou mais anos de idade 6.704.624 100,0

Pessoas pretas de 5 ou + anos de idade, sem instrução e - de 1 ano de escola 2.440.545 36,40

Pessoas pretas, de 15 a 19 anos de idade 748.802 100,0

Pessoas pretas de 15 a 19 anos de idade, sem instrução 127.006 16,96

Pessoas pretas, de 15 a 19 anos de idade, com 8 a 10 anos de estudo 84.090 11,22

Pessoas pretas de 15 a 19 anos de idade, com 11 a 14 anos de estudo 14.000 1,86

Total de pessoas pretas com 15 ou + anos de estudo 56.222 0,83

Pessoas Pardas de 15 a 19 anos de idade 7.014.573 100,0

Pessoas pardas de 15 a 19 anos de idade, com 8 a 10 anos de estudo 939.131 13,38

Pessoas pardas de 15 a 19 anos de idade, com 11 a 14 anos de estudo 163.539 2,33

Total de pessoas pardas com 15 ou + anos de estudo 540.399 0,98

Fonte: IBGE, Censo Demográfico de 1991, p.194 e 196

Doutora em Ciências Sociais e professora aposentada da Universidade Federal da Paraíba-UFPB.

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Movimentos Sociais

Em relação ao mestrado e doutorado, osdados do IBGE, para 1991, afirmam que, de52.214 pessoas nesta categoria, somente 2%eram pretas e 10% eram pardas.

Quando se estuda a população de 10 anos emais de idade que possuía pelo menos 1 cursocompleto, a situação era a seguinte, em 1991:

De um total de 64.543.790 pessoas com umcurso completo, inclusive a 4ª série do 1º grau,2.554.653 eram pretas ( 3,95% ) e 21.447.224(33,22%) eram pardas. Da população preta,somente 19,08% tinham o 1º grau completo.O mesmo aconteceu com o grupo dos pardos,também com um percentual de 19,22% de pes-soas com 8 anos de estudo completos. Nota-se,portanto, que um baixo percentual de 38,3%de pretos e pardos possuíam 8 anos completosde escolarização em 1991.

No campo das Ciências Exatas e Tecnoló-gicas, que inclui também cursos e profissões deprestígio e bom posicionamento no mercadode trabalho, a população branca predomina. Aparticipação de pretos e pardos é marginal,como mostram os dados: de 605.556 pessoascom formação nesta área, 6.050 (0,99%) erampretas e 64.714 (10,68%) eram pardas. Por-tanto, nem ao menos 1% dos pretos tinhamformação em Ciências Exatas e Tecnológicas.Somados aos pardos, a população negra parti-cipou com 11% de profissionais de nível supe-rior na referida área, deixando à populaçãobranca o domínio profissional da mesma. Em1991, em cursos de prestígio, como Arquite-tura e Urbanismo, Engenharia Civil, Engenha-ria Elétrica e Eletrônica, a participação de pre-tos e pardos foi :

Os dados demonstram que a participaçãoda população preta nas profissões ditas nobres,que auferem bons salários e posição social, se-quer chegou a 1% do total de profissionais naárea considerada. Os pardos apresentaram me-

lhores percentuais mas, mesmo assim, sequerchegaram a aproximar-se da situação reservadaà população branca.

A situação desfavorável da população ne-gra no sistema educacional de hoje demonstraa discriminação que ela sofre na sociedade. Noentanto, como veremos a seguir, em certo mo-mento da história do país houve negros que,mesmo em minoria, adentraram o ensino supe-rior e galgaram posição de destaque no seio daelite intelectual brasileira.

Discriminação do Negro nasInstituições de Ensino

A discriminação do negro na sociedade bra-sileira é antiga, data do período colonial, quan-do ele era um mero instrumento de trabalho.Parece, contudo, que as próprias condições so-ciais de reprodução da sociedade brasileira nãoeram suficientes para manter o negro em posi-ção de dominado. Leis foram promulgadas pa-ra alijar o negro da escola e das possibilidadesmateriais de desenvolvimento de seu potencialde trabalho intelectual.

Nas condições socio-econômicas da época,escolarizar o escravo era coisa impensável.Além disto, havia, parece, a preocupação polí-tica de se evitar a alfabetização do escravo eseus descendentes, libertos ou/e livres, paraque eles não tentassem seguir o exemplo dosmovimentos de emancipação dos demais paísesdo continente, do Haiti principalmente.

O analfabetismo forçado de parte da popu-lação negra deveu-se, como aludido, também àdeterminações legais. Segundo Moura (1988:96, grifo meu), em 1838, por exemplo, o decre-to n.13, de 20 de março, expedido pelo gover-nador de Sergipe, proibia a freqüência de ne-gros em escolas públicas. O decreto bania dasescolas:

"1- Todas as pessoas que padeçam demoléstias contagiosas;

§ 2- Os africanos, quer livres quer liber-tos. "

Assim como em Sergipe, várias unidades do

Curso Total Pretos % Pardos %

Arquitetura 48.937 337 0,76 3.123 6,38

Eng. Civil 147.626 964 0,65 16.829 11,39

Eng. Elétrica 69.022 641 0,92 7.058 10,22

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XIV, Nº 34, outubro de 2004 - 5599

Movimentos Sociais

império editaram leis que negavam ao indiví-duo de ascendência negra o acesso à educaçãoformal. De acordo com Oliveira Lima (2003),no ano de 1857,

"No Rio Grande do Sul, no Colégio de Ar-tes Mecânicas, a lei mandava recusar matrículasàs crianças de cor preta e aos escravos e pretos,ainda que libertos e livres".

A província do Rio Grande do Sul, na rea-lidade, durante vários governos do império,sancionou leis e regulamentos que impediam oacesso do negro - escravo ou livre -, às institui-ções de ensino. De acordo com o pesquisadopor Barbosa e Clemente (1987), durante todo oséculo XIX prevaleceram leis e regulamentoscontra a participação do negro na vida escolar.Os autores observaram o seguinte na legislação(idem:49,50,52 e 53):

Antonio Elizario de Miranda e Brito, presi-dente da província de São Pedro do RioGrande do Sul, sancionou em 22 de dezembrode 1837 a lei n º 14, cujo parágrafo 2 º proíbe osescravos e todos os pretos, ainda que livres oulibertos, de freqüentarem as escolas públicas.

Pela lei n. 51 de 22 de maio de 1846, sancio-nada pelo vice-presidente da província, Patrí-cio Corrêa da Camara, permaneceu proibidoaos escravos a freqüência às escolas públicas.

No norte do país, na província da Bahia,foram sancionadas pelo menos quatro resolu-ções governamentais a respeito da proibição daescolarização de negros.

O Regulamento de 22 de abril de 1862 proi-biu, no art. 46, parágrafo 3 º, o ingresso deescravos nas escolas primárias (cf. Fundação,1996: 220).

O Regulamento de 27 de setembro de 1873,no parágrafo 3 º do art. 83,

"inclui os escravos entre os que não seriamadmitidos à matrícula, nem poderiam freqüen-tar as escolas primárias." (idem:222)

Por sua vez, a Resolução n º 1561 de 28 dejunho de 1875, sancionada pelo presidente daprovíncia Venancio José de Oliveira Lisboa,determina no art. 86, parágrafo 4 º do Cap.VII, referente à matrícula dos alunos e aos cas-

tigos disciplinares (idem:109-110),"(...)que os escravos não seriam admitidos à

matrícula, pois não poderiam freqüentar asescolas primárias."

Também o Regulamento de 5 de janeiro de1881, art. 10, Cap. II, no que tange à matrículaescolar, proíbe a matrícula dos escravos (cf.idem:232).

A proibição do tráfico de escravos em 1831ocasionou o aparecimento de uma populaçãonegra "livre", que ficoudurante muito tempo segre-gada da escola. Entretanto,ao menos na província doRio Grande do Sul, a situa-ção para os negros livrescomeçou a mudar.

A lei n º 143, de 21 dejulho de 1848 reza o seguin-te:

"Art. 3 º - O ensino público primário do 1º grau é obrigatório para todos indivíduos li-vres maiores de 7 anos e menores de 15 anos,residentes dentro do círculo traçado pelo raio deum quilômetro, medindo da sede da escola pú-blica, não tendo impedimento físico ou moralque efetivamente o iniba de freqüentar a escola."

Assim, mesmo não sendo cumprida, nãoapenas a permissão, mas a obrigatoriedade daescola para os livres foi sancionada.

O artigo 24 da referida lei, no parágrafo 2 º,afirma que os escravos não serão admitidos àmatrícula.

A permissão para freqüentar escolas foi rei-terada dois anos depois. De acordo com a lei nº 194, de 22 de novembro de 1850, os negroslivres acima de 5 anos poderiam freqüentar asescolas públicas.

Já quase no final do século, em 16 de abrilde 1886, a lei n º 1.563, sancionada pelo presi-dente da província do Rio Grande, determina:

"Art. 1 º - É concedido o benefício de umaloteria para as Irmãs de S. Francisco nesta capital,a fim de prepararem as acomodações indispensá-veis para a criação de uma aula destinada ao ensi-no gratuito dos filhos de libertos e escravos."

Leis foram promulgadaspara alijar o negro da es-cola e das possibilidadesmateriais de desenvolvi-mento de seu potencialde trabalho intelectual.

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Movimentos Sociais

Vemos, portanto que, ao menos do pontode vista formal, conforme Barbosa e Clemente(1987) registraram, houve presidentes provin-ciais que se lembraram da instrução da popula-ção negra. Embora os autores não deixem clarose a escolarização realmente aconteceu, em to-do caso, já foi grande avanço a edição da lei,pois observa-se a preocupação da autoridadeprovincial com a educação das crianças negras.

No conjunto do país, contudo, não houvequalquer preocupação oficial com a instruçãoda população negra, que foi deixada à sua pró-pria sorte após a abolição da escravatura. Destaforma, a situação de discriminação racial e so-

cial no sistema escolar aden-trou a República e o séculoXX.

Andrews (1998:198),comparando a discriminaçãosofrida pelo negro no merca-do de trabalho e no sistemade ensino, afirma que em SãoPaulo, na década de 1920, elaera pior do que no Rio deJaneiro e no nordeste dopaís.

Em relação à discrimina-ção na escola e no mercadode trabalho, ele diz:

"Tendo acesso negado à educação públicaelementar, e já marginalizada nos empregos detrabalho braçal, a população negra de São Pau-lo estava muito mal posicionada para lutar paraser admitida nesta nova classe de colarinhobranco."

Não obstante a segregação escolar impostaaos negros e seus descendentes, e às própriascondições materiais de vida a que a maioria dapopulação negra teve/tem que enfrentar, a sa-gacidade e a capacidade intelectual de muitosnegros foi superior à opressão imposta pelasclasses dominantes. A história nos revela a pre-sença de negros que conseguiram ingressar noensino superior e destacar-se como médicos,advogados e engenheiros durante o primeiro eo segundo impérios.

Negros de Formação Superior

A despeito das condições sociais e econô-micas de discriminação e opressão que lheseram impostas pela sociedade, muitos afro-brasileiros conseguiram burlar a discriminaçãoracial e elevar-se ao nível ou mesmo acima dosintelectuais das classes dominantes.

Segundo Costa (1985: 207), mesmo sendoas diversas elites compostas quase que exclusi-vamente de pessoas brancas, o sistema de clien-tela que sustentou a mobilidade social no Bra-sil permitiu, principalmente ao mulato, em ge-ral filho ilegítimo de algum branco, ascenderna escala social. Tal foi o caso de negros e mu-latos como Torres Homem, José do Patrocí-nio, André Rebouças, Tobias Barreto e LuisGama, entre tantos outros.

Os negros que lograram participar do mun-do do trabalho intelectual e científico são a

A despeito das condiçõessociais e econômicas dediscriminação e opressãoque lhes eram impostaspela sociedade, muitosafro-brasileiros consegui-ram burlar a discrimina-ção racial e elevar-se aonível ou mesmo acimados intelectuais das clas-ses dominantes.

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Movimentos Sociais

negação das teses sobre sua inferioridade ra-cial, como defendia, entre outros, Nina Ro-drigues.

Na introdução de sua obra Os Africanos noBrasil, Nina Rodrigues afirma que, apesar dosofrimento da escravidão e do trabalho desen-volvido no país, não se pode negar, do pontode vista da ciência, a inferioridade da raça ne-gra. O autor sustenta (1988:4):

"Se conhecemos homens negros ou de corde indubitável merecimento e credores de esti-ma e respeito, não há de obstar esse fato o re-conhecimento desta verdade - que até hoje nãose puderam os negros constituir em povos civi-lizados

Em relação aos mestiços, sustenta que o seusangue, possivelmente de melhor qualidade,condiciona a sua superioridade intelectual ecultural em relação aos negros. Estes últimos,dada a sua herança genética, conferem ao povobrasileiro atributos de sua inferioridade. Elereitera (idem:7):

"A raça negra no Brasil (...), há de constituirsempre um dos fatores da nossa inferioridadecomo povo.

(...) consideramos a supremacia imediata oumediata da raça negra nociva à nossa naciona-lidade, prejudicial em todo caso a sua influên-cia não sofreada aos progressos e à cultura donosso povo."

Em artigo onde analisa os cem anos de abo-lição, Antonio Cândido (1992:27) chama aatenção para o processo de aniquilação do euontológico que é cometido pelos afro-brasilei-ros que escondem a sua origem étnica. Cite-mos o autor:

"Onde estão na vida corrente os polí-ticos, diplomatas, professores, profissio-nais liberais, empresários, altos funcioná-rios, generais que cabem na definição dos50% "de cor"? Os que por acaso cabe-riam, na verdade não cabem, porque nomomento em que vencem a barreira dopreconceito eles são automaticamente"promovidos" a brancos, isto é, tornam-se alguns dos muitos brancos convencio-

nais que somos todos nós e, portanto, sevêem compelidos a renegar a sua realida-de para assumir uma conceituação posti-ça de favor, que importa em aceitar amutilação do ser. A conseqüência é que osconsiderados brancos assimilam estrate-gicamente o preconceito e o voltam con-tra os seus iguais, a fim de se libertaremda maldição inicial. Esse mecanismo defalsificação ontológica exprime a profun-didade do drama, e é aceito pelas suasvítimas porque, do contrário, aquele quepulou o muro do preconceito arrisca serdevolvido à esfera maldita. Assim, nósescondemos incessantemente algumasdas nossas raízes mais autênticas e adota-mos o triste papel de carrascos de nósmesmos."

Apesar de tornados invisíveis do ponto devista racial, desde o período colonial algunsmestiços, e mesmo pretos retintos, consegui-ram forjar sua mobilidade social através da in-serção no seio da elite intelectual. Estes indiví-duos ampararam-se na qualificação educacio-nal e profissional que obtiveram.

Segundo Azevedo (1958 a:85-86), a educa-ção abria perspectivas, que eram aproveitadaspor brancos e por uma minoria de negros. Ci-temos o autor:

"Não eram perspectivas que se rasga-vam sòmente para os brancos, mas tam-bém para os mestiços que, tendo-se ele-vado, no período da Colônia, pelas artes,pelas letras e pelas funções eclesiásticas,encontravam agora uma nova escada pa-ra a ascensão social, nas escolas superio-res, donde entravam em número cres-cente para os quadros das chamadas pro-fissões liberais."

Em parte, pelo próprio fato de as primeirasescolas superiores que foram fundadas no Bra-sil terem sido as de medicina, direito e enge-nharia, os filhos da elite dominante e a minoriade negros que tiveram acesso ao ensino supe-rior dedicaram-se às profissões liberais ofereci-das por essas escolas.

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Movimentos Sociais

Em 1808 foram criadas escolas de medicinano Rio de Janeiro e na Bahia. Na província daBahia, vários mestiços do negro e também ne-gros "puros" ingressaram na escola de medicinae tornaram-se os primeiros médicos formadosno Brasil. Podemos citar Juliano Moreira e JoséMaurício Nunes Garcia, entre tantos outros.

Sobre o médico Juliano Moreira, Oda eDalgalarrondo (2000:178) afirmam o seguinte:

"Juliano Moreira (1873-1933), baianode Salvador, é freqüentemente designadocomo fundador da disciplina psiquiátricano Brasil. Sua biografia justifica tal elei-ção: mestiço (mulato), de família pobre,extremamente precoce, ingressou na Fa-culdade de Medicina da Bahia aos 13anos, graduando-se aos 18 anos (1891),com a tese "Sífilis maligna precoce". Cin-co anos depois, era professor substituto daseção de doenças nervosas e mentais damesma escola. De 1895 a 1902, freqüen-tou cursos sobre doenças mentais e visi-tou muitos asilos na Europa (Alemanha,Inglaterra, França, Itália e Escócia)".

A pobreza e a mestiçagem não foram capa-zes de impedir o desenvolvimento intelectualde Juliano. Em maio de 1896, Juliano Moreirafoi aprovado por concurso para professor daFaculdade de Medicina da Bahia. Ele tambémdirigiu o Hospital Nacional de Alienados, on-de efetuou mudanças no tratamento dispensa-

do aos internos. Santos Filho (1979:205) as-

segura que na Bahia, à épocado Império, a Faculdade deMedicina contou com váriosprofessores de projeção nosmeios social e político. Entreesses professores, muitoseram mulatos, havendo osque, em suas palavras, eram

negros retintos. O autor diz: "Na Bahia havia lentes que eram negros re-

tintos. E a inexistência, aparente pelo menos, depreconceito racial na sociedade do século XIX,é verificação digna de análise e interpretação."

Ao contrário do que pensa o autor, o pre-conceito e a discriminação contra o negro esta-vam presentes na Escola de Medicina, comoafirma Magalhães (1932:238) em relação à per-seguição sofrida por José Maurício Garcia Nu-nes, por ocasião do concurso para professorcatedrático da referida escola. Segundo Ma-galhães, José Maurício sofreu hostilidades porparte de outro docente, que debochava de suaorigem étnica, pois era filho do padre e hojereconhecido musicista negro José MaurícioNunes Garcia.

Até o início do século XX, as condições deensino nas escolas superiores existentes nopaís muito deixavam a desejar. As precarieda-des do ensino superior no Brasil imperial le-varam muitos estudantes a completarem seusestudos na Europa, principalmente em Por-tugal e na França. Por isto, também estudan-tes negros e mestiços, agraciados com recur-sos do Imperador ou da família e demais pro-tetores, buscavam aperfeiçoar-se em Paris,Montpellier ou Lisboa.

Joaquim Cândido Soares de Meireles, porexemplo, nascido em Sabará, MG, em 1797 efalecido no Rio de Janeiro em 1868, doutorou-se pela Faculdade de Medicina de Paris. Ele foiConselheiro do Imperador e médico da Impe-rial Câmara. Foi fundador da Imperial Aca-demia de Medicina, no Rio de Janeiro (1831).Suas atividades não se restringiram ao campoda medicina. Assim como outros intelectuais (-negros) de sua época, foi politicamente ativo,tendo sido eleito deputado provincial. Fun-dou, com o jornalista e também político Eva-risto Ferreira da Veiga a Sociedade Defensorada Liberdade e da Independência Nacional (cf.MinC, 2001:338).

Os médicos negros acima apontados sãosimples exemplos dos que lograram ascender nahierarquia social e profissional, jogando porterra as teorias racistas e sedimentando a hipó-tese de que, sendo dadas as condições materiais,qualquer indivíduo medianamente inteligentepode desenvolver sua capacidade de trabalhointelectual, independentemente de sua etnia.

Também estudantes ne-gros e mestiços, agraciadoscom recursos do Im-perador ou da família edemais protetores, busca-vam aperfeiçoar-se em Pa-ris, Montpellier ou Lisboa.

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Movimentos Sociais

Mas os negros não se restringiram aos estu-dos da medicina. Eles também se destacaramno campo do direito.

Direito

Azevedo (1958:51) afirma que com a cria-ção dos cursos jurídicos em São Paulo e Olin-da, em 1827, surgem os dois maiores núcleosde ensino superior e de cultura jurídica dopaís. O curso de Olinda foi transferido em1854 para o Recife. As faculdades de direito,segundo Azevedo, influíram na vida social eintelectual do país, inclusive nas agitações so-ciais e políticas.

Na Bahia, a Faculdade de Direito só surgiuem 1891, reconhecida pelo Decreto do Gover-no Federal, de número 599, de 19 de outubrode 1891 (cf. Bahia, 1955:87).

Havia bastante estudantes e posteriormen-te advogados negros também durante o Impé-rio. Podemos mencionar Francisco Otavianode Almeida Rosa. Nasceu no Rio de Janeiroem 1825 e faleceu na mesma cidade em 1889.Segundo o MinC (2001:310), Francisco Ota-viano era bacharel em direito e colaborou naredação da Lei do Ventre Livre, de 1871. Eletambém atuou em diversas áreas, tendo sidopoeta, deputado e senador. Foi ministro ple-nipotenciário no Rio da Prata, onde negociouo Tratado da Tríplice Aliança. Exerceu o jor-nalismo e foi diretor do Diário Oficial e devárias publicações.

Outro negro que se destacou como advoga-do (rábula), um autodidata que nunca freqüen-tou a faculdade de direito, foi Luis Gama. LuisGama nasceu na Bahia em 1830 e morreu emSão Paulo em 1882. Era mulato, filho de africa-na livre e pai português. Aos 10 anos de idadefoi vendido pelo próprio pai como escravo, pa-ra pagar uma dívida de jogo. Em 1840 foi em-barcado da Bahia para São Paulo, onde apren-deu a ler e a escrever, e começou a vida de jor-nalista, poeta e rábula. Luis Gama teve atuaçãodestacada na luta abolicionista na imprensa enos tribunais (cf. Azevedo, 1999).

José Rubino de Oliveira (1837-1891), foiadvogado e professor de direito. Melo (1954:439), no Dicionário de Autores Paulistas, re-gistra que José Rubino era pardo, natural deSorocaba. Rubino foi selei-ro, matriculou-se no Semi-nário Episcopal de São Pau-lo, onde estudou humanida-des e teologia por quatroanos. Em 1803 abandonou abatina e, em 1864, matricu-lou-se na Faculdade de Di-reito. Em 1868 recebeu o grau de bacharel e em1869 o de doutor.

A fonte citada revela ainda que José Rubino,além do escritório de advocacia aberto em Ati-baia, foi lente substituto em 1879 e catedráticoem 1882 da Faculdade de Direito. Entre asobras por ele produzidas constam: "O arrom-bamento e o roubo em face do Código Crimi-nal", publicada em São Paulo pela tipografia AProvíncia, em 1878; "Epítome de direito admi-nistrativo brasileiro segundo o programa docurso de 1884", apresentada à Congregação daFaculdade de Direito de São Paulo.

Vale a pena também destacar o criminalistade renome Evaristo de Morais, advogado e his-toriador, como um negro que se dedicou ao di-reito criminal e escreveu trabalhos sobre delin-qüência (cf. Ramos, 1971:171). Nascido no Riode Janeiro em 1871, faleceu em 1939. Segundoo NDH (1970:422), Antonio Evaristo de Mo-rais foi consultor jurídico do Ministério doTrabalho e pioneiro da legislação trabalhista.

Além de haverem se distinguido nas duasáreas acima registradas, também na engenhariahouve negros de renome.

Engenharia

Estudos superiores de engenharia foraminiciados em 1810, com a criação da AcademiaReal Militar, que deu origem à Escola Poli-técnica do Rio de Janeiro, hoje Escola de En-genharia da UFRJ.

Entre os negros que se destacaram na enge-

Mas os negros não se res-tringiram aos estudos damedicina. Eles também sedestacaram no campo dodireito.

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nharia, estão três dos maiores engenheiros quea história da engenharia do Brasil conheceu:Teodoro Sampaio e os irmãos Rebouças.

Teodoro Sampaio nasceu em Bom Jardim,município de Santo Amaro, Bahia, em 1855, demãe escrava, e faleceu no Rio de Janeiro em1937. Sampaio estudou engenharia civil na Es-cola Politécnica do Rio de Janeiro.

Ele trabalhou na urbanização da cidade deSão Paulo e nas obras de res-tauração do sistema de esgo-tos. O seu trabalho na Co-missão de Saneamento de SãoPaulo durou até 1903 onde,segundo o Dicionário (DHB,1970:445),

"realizou grandes obras deEngenharia, podendo dizer-seque modificou o aspecto daCapital, reestruturando-lhe o

serviço de esgotos e remodelando o de outrosserviços públicos".

Outro engenheiro negro de destaque foiAndré Rebouças. Nascido em Cachoeira, naBahia, em 1838, morreu em Portugal, em 1898.Formado em engenharia, aperfeiçoou-se na In-glaterra. Na Escola Militar do Rio de Janeirotambém adquiriu formação em Matemática e emCiências Físicas em 1858. Rebouças elaborouplanos viários e realizou obras relevantes daengenharia nacional, principalmente na constru-ção das docas do Brasil. As primeiras docas doBrasil foram projetadas por ele, no período entre1866 e 1872. Junto com seu irmão, Antonio Re-bouças, participou de projetos de pontes e ferro-vias (cf. DBU, 1983 e NDH, 1970).

Antonio Rebouças participou ainda daconstrução da Estrada de Ferro Paranaguá -Curitiba e da Estrada da Graciosa, rodovia queliga Antonina à capital paranaense (c. MinC,2001:336).

Ao adentrarmos o século XXI, podemosconstatar que, apesar do progresso econômicoe social do Brasil, as desigualdades raciais per-sistiram em todos os parâmetros, principal-mente no que se refere à participação de negros

na elite intelectual brasileira. Aqueles negrosque outrora, apesar das condições materiais esociais de inferioridade, lograram desenvolversua capacidade de trabalho intelectual e contri-buir para o progresso do país, parece que nãodeixaram herdeiros visíveis que possam servirde exemplo e orgulho para a comunidade ne-gra brasileira.

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Movimentos Sociais

Entre os negros que sedestacaram na engenha-ria, estão três dos maio-res engenheiros que ahistória da engenharia doBrasil conheceu: TeodoroSampaio e os irmãos Re-bouças

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Movimentos Sociais

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Nota: Esses dados, conforme apresentados, nãooferecem nenhuma garantia de que o jovem, com 11ou mais anos de estudo, os tenha completado comêxito. Assim, a pessoa pode ter 11 ou mais anos deestudo e, nesse total, estar embutida várias repeti-ções de série escolar.

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XIV, Nº 34, outubro de 2004 - 6677

Movimentos Sociais

Universidade

Auniversidade é uma instituição socialcomprometida com a formação de profis-sionais, técnicos e intelectuais de nível

superior, para atender às crescentes necessida-des da sociedade; local para produção de pes-quisas, discussões, debates, e construção dediferentes áreas do conhecimento, as quais sãoapropriadas, tanto para transformação quantopara manutenção da situação vigente.

A universidade, socialmente constituída edeterminada como é, representa o quadro so-cial de sua época, exerce o papel de manuten-ção ou transformação social, refletindo omomento histórico e a correlação entre as dife-rentes forças sociais da sociedade onde estáinserida. É uma instituição social de interessepúblico, independente do regime jurídico aque está submetida. De acordo com o papelque desempenha na legitimação e consolidaçãode projetos sociais, na formação de profissio-nais e de novos dirigentes da sociedade, e naprodução de conhecimento. A universidade seconstitui, historicamente, como centro depoder ideológico e político. Além disso

"na medida em que abriga e reflete o con-junto das contradições que permeiam toda a so-ciedade, constitui também palco das disputasentre grupos que buscam hegemonia do poder,no embate de projetos entre diferentes concep-ções de sociedade". (Mazzili, 1996, p.5).

Surgiu no século XII, cabendo à Igreja ocontrole sobre a transmissão do saber. No sé-culo XV aparece a universidade renascentista,o Estado nacional e o fortalecimento do poderreal. No século XVIII a Europa é palco daRevolução de 1789, o que veio a favorecer, emseguida, a criação da universidade estatal nosprimeiros anos do século XIX. Na AméricaLatina, nos países de língua espanhola, nascea universidade no século XVII. No Brasil,aparece apenas no século XX, especificamen-te no ano de 1920, na cidade do Rio de Ja-neiro. Uma das razões mais fortes para a exis-tência da universidade nas diferentes épocas elocais, é a de formar profissionais para o mer-cado, favorecendo assim as camadas privile-giadas nas diferentes sociedades. Ela estáinterligada à sociedade, e como tal, transfor-ma-se no tempo e no espaço.

Ao longo dos anos a universidade, assim

O professor universitário - um estudo sobreatividade acadêmica e tempo livre.

Maria Bernadete Leal Campos*Clara Mª Silvestre**

Ricardo Henrique Bernardo Lopes***

*Professora mestre na Universidade de Pernambuco.**Professora doutora na Universidade de Pernambuco.

***Aluno no curso de Educação Física da UPE.

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE6688 - DF, Ano XIV, Nº 34, outubro de 2004

Movimentos Sociais

como a sociedade, passou por diferentes trans-formações, e hoje "tem não só o dever, mastambém a responsabilidade social de reprodu-zir sua pesquisa, de forma aberta, a toda a so-ciedade". (Kunsch, 1992, p. 27). Daí que, aexistência de universidades pressupõe qualifi-cação profissional e tecnologias que o país ne-cessita, a investigação científica, e o desenvol-vimento social, que, de modo geral favorecemas mudanças sociais. Nesse contexto, é precisolembrar que é o local onde se processa a forma-ção necessária às exigências do contexto e paraa construção de um novo humanismo.

Enquanto instituição social a universidadebrasileira deverá estar apoiada nacapacidade de assegurar a produçãode conhecimento crítico e inova-dor, torná-lo acessível à sociedade,favorecendo a socialização do co-nhecimento, exigindo respeito à di-versidade cultural. As pesquisasnão deverão servir "apenas comoinstrumentos para se galgar algunsdegraus a mais na carreira acadêmi-ca ou para se subir na hierarquia detítulos universitários".(Kunsch,1992, p. 82). Os projetos deverãovoltar-se para a complexidade de uma socieda-de marcada por elevados índices de concentra-ção de renda, responsáveis pela extrema desi-gualdade, baixos salários e fome.

Os primeiros cursos de ensino superior noBrasil surgiram para preparar profissionais queatendessem às necessidades do governo insta-lado com a chegada da família real portuguesa,em 1808. O ensino era caracterizado pelatransmissão de conhecimento e preparação deprofissionais, e não pela produção de conheci-mento. A primeira universidade brasileira foiinstituída por decreto em 1920, sem apresentarnenhuma inovação para o sistema de ensinosuperior. Era meramente profissionalizante,elitista e alheia às necessidades da maioria dapopulação, além de não incentivar o desenvol-vimento da ciência e da tecnologia.

Em 1935, Anísio Teixeira cria, através de

decreto municipal, a Universidade do Dis-trito Federal. Muito contribuiu para a uni-versidade brasileira e considerou a produçãode conhecimento o traço fundamental, inte-grada com a transmissão de conhecimento e àprofissionalização.

Em 1946, através dos jesuítas, é criada a pri-meira universidade católica brasileira, a Ponti-fícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

A Universidade de Brasília foi criada em1961, de um plano definido que não incluíafaculdades profissionais preexistentes, masfazia parte de um projeto nacionalista desen-volvimentista.

A partir dos anos 50, quandoo país adotou uma política de de-senvolvimento baseado na mo-dernização, a ciência e a tecnolo-gia também adquiriram condi-ções para se desenvolverem, atra-vés da criação de agências fede-rais financiadoras de pesquisas.As universidades e seus progra-mas de iniciação científica e depós-graduação no nível de mes-trado e doutorado são responsá-veis pela formação das novas ge-

rações de pesquisadores.A universidade não só é responsável pela

formação de novos profissionais, mas tambémpor oferecer condições favoráveis para mudan-ças sociais, uma vez que interage com grandenúmero de segmentos da sociedade, estimulan-do as transformações no campo econômico,político, tecnológico e sócio-cultural. Objetivaassumir compromisso com a produção de co-nhecimento nas diferentes áreas que contri-buam para erradicação das desigualdades nospaíses denominados de terceiro mundo, ousubdesenvolvidos, onde muitos têm pouco epoucos têm muito.

A formação de professores

Entende-se por formação de professores, oprocesso de escolarização necessária ao desem-

A universidade nãosó é responsável pelaformação de novosprofissionais, mas

também por oferecercondições favoráveis

para mudançassociais.

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Movimentos Sociais

penho de atividades relacionadas ao trabalhodocente. Qualificação é o preparo para melhoratender às necessidades ligadas ao emprego. Éna universidade onde se dá a formação e quali-ficação do profissional para o mercado de tra-balho, porém "uma dimensão importante naformação e profissionalização do educador, ésem dúvida, o mundo de sua experiência coti-diana e prática". Além do que

"elementos formativos e de qualificação doeducador pressupõem, mas transcendem, acompetência técnica e científica adquirida eminstituições especializadas e na experiência pro-fissional" (Gentili e Silva, 1996, p. 99 e 101).

Muito se fala que a prática docente vemperdendo, ao longo dos anos, asua valorização, o que não podeser atribuído à feminilidade daprofissão; considera-se a existên-cia de um conjunto de fatores,dentre os quais está o descompro-metimento do Estado com a edu-cação. Os professores são mal re-munerados e precisam "correr"atrás de empregos para garantirsua manutenção e seu status so-cial, o que resulta em pouco tem-po disponível para aumentar osconhecimentos necessários a umaformação de qualidade.

No Brasil, especificamente noEstado de Pernambuco, os professores têmrecebido um tratamento (ou a falta de trata-mento) de desvalorização, são desprestigiados,perdem força política, o que fica claro atravésdas greves que resultam em muitos dias semaulas e poucos ganhos nas negociações com osórgãos representativos, quando se trata de ins-tituições da rede pública de ensino.

Os professores, preocupados com essasituação, têm investido na sua formação, o quepoderá possibilitar a retomada da valorização,assim como melhores ganhos financeiros.Além de "apropriar-se dos seus processos deformação e dar-lhes um sentido no quadro dassuas histórias de vida". (Nóvoa, 1995, p. 25).

O Brasil, nos últimos anos, tem investidoem uma base não só quantitativa, mas qualita-tiva, com programas de qualificação nas uni-versidades, daí ter aumentado consideravel-mente o número de professores nas universi-dades, com mestrado, doutorado ou pós-dou-torado. Conforme Decreto 2.207/97, deveráhaver um número mínimo de titulações nasinstituições de ensino superior. De acordo comexigências legais, até 2004 as IES organizadascomo universidades, deverão ter 30% dos pro-fessores com grau de mestre e doutor.

A formação é, portanto, um aspecto da pro-fissão que tem sido valorizado na busca pelaqualificação, embora muitas vezes represente

apenas um princípio quantitativode especialização, visando atenderàs necessidades numéricas legais,institucionais e do capital, sempriorizar a relação social e a intera-ção. Como afirma Nóvoa

"a formação de professores estáa converter-se novamente (....) noelemento-chave, numa das pedrasangulares do projeto de reforma dosistema educativo". (1995, p. 54).

Coforme Relatório de Ativida-des da UPE (2002), no que se refe-re à categoria funcional, o quadrode professores da Universidade dePernambuco, estava assim forma-

do: 41,56% por professores auxiliares,27,11% assistentes, 24,68% adjuntos e 6,65%auxiliares. Quanto ao nível de qualificação es-tavam representados por: 9% graduados,45% especialistas, 30% mestres, 16% douto-res e 1% livre docência.

No processo de qualificação do professor,muitas vezes são utilizadas horas extras nãoremuneradas, implicando assim em acúmulode trabalho realizado em detrimento das ne-cessidades pessoais, familiares e sociais. Nãoque essa profissão seja marcada apenas porsacrifícios, uma vez que poderá haver tambémprazer e gratificação pessoal na formação pro-fissional.

No processo de quali-ficação do professor,muitas vezes são uti-lizadas horas extrasnão remuneradas,

implicando assim emacúmulo de trabalhorealizado em detri-

mento das necessida-des pessoais,

familiares e sociais.

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Movimentos Sociais

Trabalho, tempo livre e qualidade de vida

Nas últimas décadas o lazer tem se apresen-tado como um problema social e como reivin-dicação pela qualidade de vida nas cidades, in-tegrando-se ao imaginário dos trabalhadores.Marcellino (1990), afirma que a falta de con-senso sobre seu significado é uma das dificul-dades para a abordagem do tema,mas considera a existência de doisaspectos do lazer: o tempo e a ati-tude, uma vez que se trata de umaatividade realizada no tempo dis-ponível, capaz de proporcionarefeitos, como o descanso físico oumental, o divertimento, o desen-volvimento da sociabilidade, etc.Para ele, o lazer é uma cultura vi-venciada no tempo disponível,convive com o trabalho e com ou-tras obrigações da vida social.

A busca da satisfação é umacondição básica para o lazer, e esteenvolve o prazer, a satisfação e aalegria de viver. O aprofundamen-to e compreensão dessas questões, contribuempara proporcionar aos professores e órgãoscompetentes, uma reflexão sobre a profissão deprofessor universitário, por serem sujeitos so-ciais envolvidos na produção da sociedade co-mo um todo, de suas relações sociais e dasmúltiplas dimensões de sua vida.

Nos últimos anos, o crescimento econô-mico, as políticas de desenvolvimento, oavanço tecnológico e a automação da produ-ção, fizeram surgir uma realidade onde estãopresentes, dentre outros elementos, a altacompetitividade, o desemprego, a instabilida-de ocupacional e a elevada valorização doaperfeiçoamento/qualificação do trabalhador.Quadro esse acentuado nos países subdesen-volvidos, devido ao processo desigual de glo-balização, e a existência de maior tempo inde-pendente do trabalho, no sentido da ausênciadesse trabalho, conseqüentemente em grandenúmero de desempregados.

O trabalho deve ser dotado de uma dimen-são mais humana, que valorize também umtempo livre com sentido pessoal, ou seja, alémda esfera do trabalho produtivo. Tarefa bastan-te difícil de ser realizada no sistema capitalista.

Sabe-se que o trabalho intelectual continuaem expansão, apesar de apresentar mudançaestrutural em sua organização desde o século

XIX. Um dos fatos observados nocontexto da vida acadêmica é aavaliação do professor, quandoforam criados os chamados indi-cadores de capacidade intelectual(titulação e número de trabalhospublicados). Transformando-o,portanto, em empresário intelec-tual, por conviver com critériosquantitativos em substituição aosqualitativos.

"A luta das empresas e do go-verno tem sido, desde o final da IIGuerra, impor o controle sobre aautonomia do trabalho intelec-tual: mecanismo interno à esferada produção que facilita o avanço

capitalista atual, normalmente batizado desociedade do conhecimento, mas que é necessá-rio nomear como capitalismo do conhecimen-to". (Couto, 2001/2002, p. 76).

No contexto atual de crescimento econômi-co nas sociedades capitalistas há um volume deexigência muito elevado sobre os trabalhado-res de modo geral, o que tem provocado no in-divíduo uma vida marcada pelo estresse, porsituações que o guiam para problemas como osedentarismo e para a falta de liberdade e es-pontaneidade em suas ações sociais. Seria pos-sível homem só trabalhar poucas horas por dia;

"numa forma de trabalho autodeterminado,o mundo poderia reproduzir-se atendendo suasnecessidades sociais fundamentais de maneiranão destrutiva. E o tempo livre, ampliado demaneira crescente, poderia, então, ganhar umsentido verdadeiramente livre e também eleautodeterminado". (Antunes, 2002, p. 247).

Tempo este que varia conforme as diversi-

No contexto atual decrescimento econômi-

co nas sociedadescapitalistas há um

volume de exigênciamuito elevado sobreos trabalhadores demodo geral, o que

tem provocado no indivíduo uma

vida marcada pelo estresse.

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Movimentos Sociais

dades socioeconômicas e culturais nos diferen-tes locais. O trabalho, realizado da maneiraque é, tem proporcionado uma preocupaçãocom o desenvolvimento humano no que dizrespeito à questão da qualidade de vida, mes-mo reconhecendo que os avanços da medicinae da tecnologia na sociedade possibilitam aohomem viver muito mais tempo do que há anospassados. Nesse sentido, a referência que se fazà qualidade de vida inclui o tempo livre e conse-qüentemente o lazer, reconhecido como

"espaço educacional e político que precisa serintegrado ao conjunto de ações que têm emvista a melhoria da qualidade de vida da popu-lação". (Pinto, 1997, p.29).

O tempo livre não é compreendido de for-ma igual por trabalhadores e desempregados,assim como não é pelas diferentes camadas dasociedade. Porém há necessidades sociais deocupação do tempo livre. É preciso criar con-dições para tornar o tempo livreprazeroso, propiciador de satisfa-ção e da melhoria da qualidade devida, ou seja, criando-se uma cul-tura de lazer que promova a me-lhoria da qualidade de vida, e nãoum tempo livre conduzido para oconsumo de mercadorias.

O lazer é uma atividade reali-zada sem o caráter de obrigatorie-dade, sem constrangimento, e semo cumprimento de horários im-postos pelas atividades de traba-lho. Santin (1979), admite que uma atividadepoderá ser trabalho em certa circunstância oulazer em outra. É possível que o trabalho esco-lhido livremente, onde haja uso da criação,possa se aproximar do lazer, isto é, não há umreal antagonismo, são situações que se asseme-lham ao lazer e ao trabalho, dificultando a dis-tinção de seus limites.

É oportuno lembrar que a livre-escolha e otempo livre são elementos fundamentais paracaracterização do lazer. E também que as desi-gualdades sociais, econômicas e culturais, estãopresentes nas diferentes práticas do lazer,

quando sujeitos estão excluídos do acesso eparticipação à diversidade do lazer. Comoexemplo, o fato de que muitas pessoas usu-fruem o tempo livre em suas residências assis-tindo televisão ou fazendo outra atividade quelhe dê prazer, o que se constitui, inegavelmen-te, como um lazer doméstico, embora a prefe-rência seja pela diversão onde o contato comoutras pessoas esteja presente, como parques,bares, praia, cinema, teatro, etc.

O lazer aqui se insere como fruto da indus-trialização e urbanização da sociedade, "e dia-leticamente, incide sobre ela como gerador denovos valores que a contestam".(Marcellino,1997, p.159). São valores que estão presentesnas sociedades urbanas, junto às novas situa-ções e relações, compondo uma realidade so-cial que sempre se renova. Foi a partir daredução da jornada de trabalho que o trabalha-dor obteve tempo livre, utilizado nas diferen-

tes formas de lazer, contribuindopara a satisfação pessoal, desenvol-vimento social e adaptação do ho-mem ao meio.

A diminuição da jornada de tra-balho, o avanço tecnológico e aglobalização repleta de contradi-ções, são fatores que, de uma for-ma ou de outra, acarretaram au-mento do tempo livre, o que seconfigura como uma das grandestransformações sociais. Transfor-mações essas acompanhadas das

atenções para o lazer e seu caráter econômico,uma vez que a "venda" do lazer tem se apre-sentado como um dos grandes investimentosempresariais; porém deverá servir de base parao crescimento e desenvolvimento sociopolíti-co, tendo em vista a melhoria da qualidade devida das pessoas: a idéia de qualidade de vidanão pode ser dissociada do nosso bem-estar.

Entende-se, por qualidade de vida a idéia deuma vida ativa, saudável, prazerosa e harmoniosa,e a "satisfação do conjunto das necessidades huma-nas: saúde, moradia, alimentação, trabalho, educa-ção, cultura, lazer, etc." (Gadotti, 2000, p. 62).

As desigualdadessociais, econômicas eculturais, estão pre-sentes nas diferentes

práticas do lazer,quando sujeitos estãoexcluídos do acesso eparticipação à diver-

sidade do lazer.

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE7722 - DF, Ano XIV, Nº 34, outubro de 2004

Movimentos Sociais

A pesquisa

O professor universitário é osujeito da presente investigação,voltada para o seu desenvolvi-mento acadêmico, o qual está re-lacionado com o uso do tempo li-vre. O universo da pesquisa é for-mado pelos professores ativos doquadro efetivo de professores daUniversidade de Pernambuco,com análise dos aspectos da vidafuncional e acadêmica desses professores, bemcomo sobre a utilização do tempo livre. A va-riável tempo livre apresenta-se no âmbito daconcepção e uso do mesmo, e se constitui indi-cativo de qualidade de vida. Os dados foramobtidos através de questionário semi-fechado,dirigido a 10% dos professores da FENSG(Faculdade de Enfermagem Nossa Senhora dasGraças), ICB (Instituto de Ciências Biológicas)e FCM (Faculdade de Ciências Médicas). Aproblemática investigada no estudo é, portanto,o cotidiano do professor da Universidade dePernambuco, através da atividade acadêmicae da forma como utiliza o tempo livre.

Alguns critérios foram utilizados para iden-tificação da amostra, como:

- ser constituída por professores em ativida-des de ensino, pesquisa e extensão, dentre ascategorias auxiliares, assistentes, adjuntos e ti-tulares, da Universidade de Pernambuco;

- não foram incluídos na amostra os profes-sores que não compõem o quadro efetivo dessainstituição, como professores convidados etemporários;

- a coleta de dados foi realizada no primei-ro momento apenas com os professores quetrabalham no campus de Santo Amaro. As de-mais faculdades serão investigadas em etapaposterior.

A pesquisa é de caráter tanto quantitativoquanto qualitativo, sendo utilizadas algumasvariáveis como: atividade (ensino, pesquisa eextensão) e o tempo que disponibiliza para ca-da uma; formação acadêmica; pesquisas; arti-

gos publicados; participação em en-contros, congressos, jornadas, etc,mecanismos institucionais de in-centivo à formação (como progra-mas para formação e capacitaçãodos professores). Na dimensão qua-litativa considera-se a relação dinâ-mica entre o mundo real e o sujeito,ou seja, que há um vínculo entre omundo objetivo e a subjetividadedo sujeito, como percepção do tem-po livre, motivações para o lazer,

etc. Os fenômenos são compreendidos, por-tanto, dentro de uma perspectiva que conside-ra os componentes de cada situação, como ainfluência da realidade concreta e dos valoressociais econômicos e culturais.

No que se refere ao tempo livre, aponta-seas variáveis: concepção, importância, valoriza-ção do tempo livre para o professor, necessida-des e expectativas sobre a ocupação desse tem-po; como usa o tempo não dedicado às ativida-des acadêmicas.

A metodologia utilizada para o tratamentodos resultados é a análise das freqüências dire-tas e das relações entre as variáveis do estudo,de forma descritiva, não sendo, portanto, utili-zados elementos da estatística inferencial.

Os dados da pesquisa sobre a atividade aca-dêmica e o uso do tempo livre dos professoresuniversitários, foram obtidos entre 25 profes-sores (uma vez que alguns não devolveram osquestionários), dos quais 60% são do gênerofeminino e 40% masculino e entre eles, 80%estão na faixa etária de 41 a 60 anos, e apenas16% têm entre 31 e 40 anos. A amostra é for-mada, em sua maioria, por professores auxilia-res e assistentes (42% e 41% respectivamente)e apenas 17% por adjuntos. Cerca de 50% sãomestres, 21% doutores e 23% especialistas;destes, 16% estão em processo de qualificação.Nos últimos anos houve um crescimento donúmero de professores da UPE que se torna-ram mestres e doutores, assim como vem au-mentando o quantitativo de publicações em re-vistas científicas.

A variável tempolivre apresenta-se

no âmbito da concepção e uso

do mesmo, e se constitui indicativo de

qualidade de vida.

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XIV, Nº 34, outubro de 2004 - 7733

Quanto ao tempo de docênciana UPE, 62% têm até 20 anos,enquanto 38% têm 21 anos oumais.Os dados apontam para umaamostra não muito jovem, com umconsiderável tempo na instituiçãoo que é indicativo de professorescom larga bagagem de experiência.Por outro lado, a quantidade deprofessores que tem mais de 21anos de UPE, demonstra que elesnão estão distantes da aposentado-ria; fato este que deve ser analisado pela uni-versidade no âmbito administrativo dos recur-sos humanos, uma vez que as vagas oferecidasatravés de concursos para preenchimento dasnecessidades no quadro de professores nãocorrespondem à realidade atual.

Interrogados sobre a concepção que têm detrabalho, obteve-se uma variedade de resposta,como: ser necessário para realização pessoal eprofissional, para segurança, é uma atividadeprazerosa e que requer dedicação.

Alguns atribuem a satisfação com o traba-lho à relação que mantêm com os alunos e aofato de contribuírem para a construção social.Por outro lado, a falta de tempo para se dedi-carem às pesquisas e a expectativa de um me-lhor salário, influenciam o nível de satisfaçãocom o trabalho. A questão salarial deve ser aresponsável pelo fato de que 68% da amostraexerce outra atividade além do exercício demagistério na UPE.

A atividade acadêmica dos professoresentrevistados, com exceção dos que têm car-go administrativo, está distribuída entre en-sino e pesquisa, sendo que 43% dedicam de12 a 30 horas para atividades de ensino. No

que se refere à carga horária des-tinada a pesquisa, 36% têm maisde dez e até 18 horas semanaispara essa prática. Na variável pu-blicações realizadas, cerca de80% dos entrevistados já publi-cou até um artigo em revista decirculação internacional e 20%dois ou mais artigos. Foi consta-tada uma relação inversa no quese refere à publicação em revistade circulação nacional, ou seja,

90% publicaram dois ou mais artigos e 10%somente um artigo.

Atividades1. Ficar com a família2. Ler jornal/revista3. Ler livros4. Dormir/descansar/relaxar5. Assistir filmes6. Sair e conversar com amigos7. Fazer compras domésticas8. Namorar9. Ir à praia10. Assistir peça teatral/show11. Usar internet12. Ouvir música/dançar13. Ir ao shopping14. Praticar atividade física

A obtenção e distribuição do tempo, nãoapenas quantitativamente, mas qualitativamen-te é um indicativo de qualidade de vida. O quese observa no quadro acima, é que ficar com afamília é a prática preferida pelos professores,

A falta de tempopara se dedicarem às pesquisas e a

expectativa de ummelhor salário,

influenciam o nívelde satisfação com

o trabalho.

Movimentos Sociais

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE7744 - DF, Ano XIV, Nº 34, outubro de 2004

Movimentos Sociais

seguida por 64% que adotam a leitura de jor-nal/revista. Como demonstra o gráfico, há umpredomínio de atividades pacatas, realizadasem casa, indicando, portanto, a preferência pormomentos de tranqüilidade.

Os professores entrevistados têm umaconcepção de tempo livre que não difere demuitos estudiosos do assunto, ou seja, consi-deram-no como o tempo livre de qualquerobrigação, é o tempo para satisfazer as neces-sidades pessoais, e até o "tempo para não fa-zer nada, literalmente". Interrogados sobre asuficiência do tempo livre, 76% afirmaramque gostariam de ter mais tempo livre parautilizá-lo de diferentes maneiras.

Considerações finais

De acordo com os dados coletados, consta-tou-se que um elevado número de professorescom titulação de mestres e doutores, e que de-dica grande parte de sua carga horária semanalpara atividades de ensino. Verificou-se tambémque pesquisam e publicam suas produções, tan-to em revistas nacionais quanto internacionais.Sabendo que não existe um programa de capa-citação docente na UPE, os professores obtive-ram suporte financeiro para aperfeiçoamentoprofissional através da CAPES e CNPq, masalguns obtiveram auxílio da sua unidade deensino e outros do IAUPE. Os professores têmplena consciência da importância do seu papel,estão satisfeitos com o trabalho que realizam,apesar da insatisfação com o salário que rece-bem; sentem-se gratificados por saberem queestão contribuindo para a formação de profis-sionais que irão servir à sociedade. No que serefere ao tempo livre, há uma forte predomi-nância da necessidade de redução da carga ho-rária de trabalho e conseqüente aumento detempo livre. Conclui-se que os professores pre-ferem a realização de atividades mais pacatas,mas fazem também uso de outras atividadescomo: ir à praia, assistir peças de teatro/show/-filme, prática de atividades físicas e sair paraconversar com amigos

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XIV, Nº 34, outubro de 2004 - 7755

As múltiplas vozes sobre os sentidos daescola, sobre os significados da leitura,escrita e cálculo, ecoam da variedade de

movimentos sociais que desassossegam o rurale o urbano do Brasil contemporâneo. Nestetexto, gritam mais alto, porém, os cortadoresde cana da região canavieira de Ribeirão Preto,especialmente os de Guariba e Barrinha.

Os trabalhadores são, aqui, historiadores

privilegiados que se historiam. Eles levamcolados ao corpo os estigmas de grevistas, dealuno de escola noturna de primeiras letras, depai de alunos de ensino fundamental e médiodas escolas próximas aos bairros de cortadoresde cana em greve. As condições de moradoresde bairros pobres nas periferias das cidadesilhadas por canaviais, marcam os traços dosfigurinos. Estes protagonistas de seus atos e

O lugar da escola nos movimentos sociais:representações e imaginários

Eliana Amábile Dancini Doutora em antropologia e professora na UNESP-Campus de Franca

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE7766 - DF, Ano XIV, Nº 34, outubro de 2004

Movimentos Sociais

falas têm os pés fincados há muito neste soloimpregnado de largos canaviais, um chão tute-lado por grandes usinas de açúcar e álcool. Elesconstituem um dos atores/autores dos movi-mentos de cortadores de cana ocorridos na re-gião de Ribeirão Preto-SP, nas décadas de 80 e90 do séc. XX. Em todo este cenário os gre-vistas de Guariba e Barrinha assumem a fren-te de luta sempre, sofreram e sofrem a repres-são maior em muitos flancos: dos usineiros,dos governantes locais, dos moradores tradi-cionais das suas cidades, das milícias particu-lares dos usineiros e donos de propriedadescanavieiras, da grande parte dos professores e

diretores das escolas que fre-qüentam e dus cachorro dogoverno (polícia militar, po-lícia de "choque", governan-tes do estado, ministro dotrabalho e outros).

O artigo trabalha com oimaginário, com as represen-tações construídas sobre a es-cola conjugada no singular,

isto é, como instituição dotada de identidade.Neste sentido, o texto diz sobre a atmosferaque envolve o ambiente escolar em tempos degreves. Os sinais da rebeldia marcam fundo oscorpos dos grevistas e os das suas famílias,sobretudo nas ocasiões de perversidade agudados confrontos, tanto nos canaviais, como nasruas das cidades e nos bairros de concentra-ção de cortadores de cana, lugares transfor-mados em verdadeiras praças-de-guerra. Eminstantes assim, os alunos tendem a carregarpara o interior das escolas os rastros da vio-lência, da indignação, enfim a greve - um ruí-do ensurdecedor que racha os ares do tempo.

Aos olhos dos vitimados, os habitantes detradição das cidades canavieiras e a escola sím-bolo, incorporada em cada uma e por todas asoutras, vêm construindo, ampliando e reite-rando imaginários sombrios, pestilentos, chei-rando o sujo sobre as sagas da formação e ex-pansão dos antros de morada dos cortadoresde cana usinada. No imaginário dos responsá-

veis pela garantia da ordem vigente, chagas sãoabertas no urbano e no rural com a chegadadestes estranhos. As imagens edificadas sobreos cortadores de cana, são representativas dobárbaro, do que traz no sangue o ruim da espé-cie. Assim, para evitar que a greve, os movi-mentos sociais, a vida desta gente e outras te-máticas correlatas, para impedir que os traba-lhadores grevistas e suas trajetórias conver-tam-se em símbolos da luta persistente pordireitos, a escola procura exorcizar-se diaria-mente. Para isso, reitera e carrega nos tons dastintas os imaginários e as representações ex-cludentes fabricadas pelos moradores dascidades e pelos próprios professores e funcio-nários da escola. Tais imagens, há muito en-charcam os calabouços de cidades como Gua-riba e Barrinha. Por tempo infindos, as histó-rias dos intrusos, do estrangeiro indesejável,dos cortadores de cana são contadas de bocaem boca como histórias bandidas, promís-cuas, pagãs, regadas a muita cachaça, prosti-tuição, feitiço e a pedra de crack. O interdito,o perigoso recobrem os bairros pobres, suasruas e ruelas, impregnam os corpos de ho-mens, mulheres, crianças e velhos, toda umacomunidade de destino que tem o canavialpor emblema. O malefício acerca-se dos seussantuários. A marginalia crava a ferros as li-nhas dos trajes da tribo, rotula seus dialetos,impregna os sons dos atabaques, as cantoriasao redor das mesas dos bares, torna infecta amineirice de procedência e faz sujo o negro dapele da maioria dessa gente.

Nestes tempos de greve e repressão, asmãos dos normatizadores não vem apenas doexterior dos espaços escolares e das cidadesenredilhada pela cana, estão dentro das escolastrabalham no cotidiano da instituição. Cria-tivas, inventam e (re)inventam várias fórmulasde fazer obedientes. Por vezes, o silêncio dossepulcros impera nas atmosferas escolares, fa-zendo quase irreconciliáveis, nos mesmos cor-pos, duas vidas: a que corre entre o sinal deentrada e o de saída dos muros das escolas e aque pulsa em meio à miséria, ao desemprego, à

Por tempos infindos, ashistórias dos intrusos, doestrangeiro indesejável,dos cortadores de canasão contadas de boca emboca como histórias ban-didas, promíscuas, pagãs.

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discriminação, à humilhação, à repressão semtravas em tempos de luta por direitos mínimos.

Nos momentos de tensão explícita, não sóas greves invadem as cidades, os bairros, a esco-la. Os cortadores de cana também marcam comuma presença contundente todos os espaçossociais, saem dos limites das cidades, da região,do país. Na escola eles desalinham os saberes efazeres costumeiros produzidos e veiculadospela instituição, transmutam as faces familiaresdas pessoas, das pedagogias vigentes.

Regido pelo princípio da incerteza, aosabor do indeterminado, sob a leve brisa doacaso, desarranjam-se as armações do sistemadisciplinar pré-montado. Em desalinho e sob ofôlego apressado do que fazer, outras estraté-gias de docilização dos rebeldes sobem ao pal-co. Nestes tempos de grandes espetáculos, co-mo nas grandes greves que varreram os anos de1984 a 1990, o dia-a-dia das escolas vive aossustos. Dentro destas instituições de ensino, osagentes da ordem trazem os nervos à flor dapele. O imaginário do sistema escolar trabalhaa todo o vapor, perde o sono frente ao real/fan-tasmático do inesperado, do trágico. Os hu-mores, instáveis, próprios das trajetórias de en-frentamentos das forças sociais em jogo, camu-flados podem estar alojados em quaisquer dasdobras dos corpos perigosos dos alunos grevis-tas. Assim, ao alarido do primeiro sinal de en-trada para a escola, feito uma avalanche, estesalunos ocupam os pátios, os corredores, as salasde aula, penetram nas retinas de professores, dediretores, e dos integrantes dos grupos de apoioescolar. O acaso, os detalhes de um cenáriomovediço a cada instante, o império de pensa-mentos e atos surreais, colocam a descoberto asfragilidades e as inabilidades que tem as escolaspara trabalhar com o inédito, com o aconteci-mento, com o que vai além do programado.

Nos instantes de exceção, como os das gre-ves, nas escolas ficam nítidas as faces sombriasalojadas em cada um dos seus ângulos. As cru-eldades dissimuladas na banalidade do costu-meiro, assumem múltiplas e despudoradas si-lhuetas. Questões de fundo não equacionadas

há longo tempo, colocam-se à mesa, tais comoas intolerâncias as diversidades étnicas e cultu-rais, as violências que marcam as relações degênero, as linguagens da excludência, a viola-ção da cidadania, a morte simbólica/real dacondição de pessoas, a desumanização e desca-so com a vida de todos os vivos.

Falando, ainda, sobre os rostos desencanta-dos das escolas freqüentadas pelos trabalhado-res, ergue-se uma multiplicidade de vozes.Homens e mulheres, velhos e jovens, sobretu-do, consideram as entrevistas como espaços dedenúncias e o entrevistador como as mãos quepodem e devem escrever sobre e por aquelessem voz e sem existência para a maioria daspessoas. Em outras palavras, estes trabalhado-res vêem no pesquisador o semblante da espe-rança. Os laços da amizade, da confiabilidade,a dialógica entre observador e observados,entre sujeito e sujeitos selam uma carta decompromisso, aos olhos dos alunos que vivema condição de cortador de cana grevista.Assim, o pesquisador que conquista a confian-ça dos cortadores de cana em tempos de greve,que procura construir ciência com Eros, acabapor enredilhar-se numa trama de perigosasencantarias. A busca é, pois, por produzir umaciência aberta, por fazer uma ciência com cons-ciência, por aventurar-se pelas armadilhas, pelaprática libertária e sensível de uma escritaensaísta. Este pesquisador opta por viver osricos e desafios de olhar através dos olhos dequem olha, ou seja, através dos olhos da comu-nidade de destino dos cortadores de cana.Nestes termos, ele tem o privilégio de ouvir ede poder dizer sobre esta comunidade, sobreos risos, as alegrias, as festas, as sacralizações,os martírios, as angústias, o salário que quasemorre a míngua, o desemprego que se alastrafeito erva daninha. Conquista a liberdade decaminhar pelas rotas dos seus interditos, pelosfios das suas memórias.

Homens e mulheres abrem-se, então, semreservas para dizer das alianças e encontrosfurtivos da escola com os poderes locais, osgrandes proprietários de terras, os usineiros, os

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feitores e outras peças-chaves na hierarquia demando regional. Denunciam o policiamento, acensura, a ingerência dos poderosos dentro doespaço escolar e as repressões cotidianas nosbairros de maior concentração de grevistas.Revelam o esquema de vigilância que recai so-bre os moradores de certos bairros nas suasandanças em direção aos centros das cidades,em especial. Falam dos professores e diretoresque se calam, que ficam na espera do que fazer,

do que dizer, isto é, que nãosabem como se comportar eatuar sem serem tutelados. ZéMorerinha enfatiza o proces-so de escolha dos educadoresprofissionais, o caráter con-servador e serviçal típicos doprocesso de fabricação daobediência. No contexto da

greve, os educadores, sua linguagem, seu ges-tual e seus fazeres escolares tiritam de medoaos olhos do líder grevista. Professores e ou-tros profissionais do ensino policiam o insu-bordinado que corre nas suas próprias veias ena dos alunos / grevistas. As escolas, os traba-lhadores e a polícia convivem com os espectrosdas torturas e dos horrores.

"... Ocê sabi qui num podi... A pró-pria professora, coitada, ela tem medo.Ela tem medo. Ela num chegô a falá pramim qui tem medo, mais pelo dia qui eue meu companhero tava cunversano, euvi qui ela ficô diferenti. Ele preguntô pramim e eu fui ixpricá pra ele e eu vi qui elaficô diferenti. Ficô diferenti, coitada, pru-quê ela tem medo. Dispois diz qui teveuma ronião lá, diz qui o diretô falô issopra ela, sobre esse negócio do direito dutrabaiadô... Mais num foi muito aperta-do, pruque ocê sabi... Aqui im Guaribatem muitas pessoa qui sabi. Quem co-manda essas própria escola eles são con-tra. É... eles são contra os direto du tra-baiadô, di um grupo di trabaiadô si uni.Não é bem assim por dizê, ele é contra otrabaiadô. Ele gosta qui o trabaiadô tra-

baia. Mais o negócio qui ele num gosta équi o trabaiadô sabi du direito e a forçaqui ele tem. Pruque a maior parte delestem fazenda tamém... tem impregado...

Num pertaro muito (na ronião). Deuuma como diz o otro né... A própria Usi-na preguntô pra ela cumu qui ela mixiacom o trabaiadô. Ela falô qui num sabiadi nada. A outra falô:

- Pelo meno na minha crasse eu numparticipei mais eu vi trabaiadô lá falanomuitas coisa sobre a vida deles no campo.Só qui eu num participei pruque eu numtinha ordi, pru causa disso qui eu numparticipei."

José Moreira, 1988

Zé Moreira, aluno / trabalhador, grevistasímbolo na cidade de Guariba e em toda a re-gião canavieira em greve, expressa com clarezaas imagens impressas nas cabeças de outros tra-balhadores. No seu entender, em momentos deembates profundos. o professor encarna o este-reótipo do feminino: frágil, desprotegido, infan-tilizado, destituído de poder decisório. Na suafala esticada e complexa, ele vai construindouma floresta de símbolos. Zé Moreira, Adolfo,Dona Maria, apontam para as reentrâncias, paraos labirintos da instituição escolar.

Nas suas formas de ver e entender a familia-ridade de seu mundo, estes e outros alunostentam encontrar significados para os procedi-mentos de certas escolas. Uma lógica perversaassombra seus pensamentos. Desconfiados,olham com apreensão o empenho de professo-res e diretores em reduzir drasticamente os al-tos números de alunos por classe. O discursopedagógico bem articulado pelas escolas nãoos convence. Para eles, esta linguagem esconde,ou procura dissimular o processo de implanta-ção de uma determinada e obstinada políticaeducacional: a que tem por eixo de preocupa-ções equacionar os problemas da superlotaçãoexpulsando os alunos mais incômodos e peri-gosos. A indisciplina, as faltas sucessivas, obaixo aproveitamento escolar, a violência for-

No contexto da greve, oseducadores, sua lingua-gem, seu gestual e seusfazeres escolares tiritamde medo aos olhos do lí-der grevista.

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mam um bloco de porquês da exclusão-evasãoescolar. Outro bloco, vem sob a forma de dis-curso batido e incontestável para a maioria dosprofessores... os alunos não querem nada comnada... os alunos do noturno já vem cansadosdo trabalho e pouco conseguem aprender... temum grupinho de alunos que só vem para ba-gunçar. Tem muita gangue na escola e os pais ealunos adultos não agüentam a bagunça esaem... aqui tem aluno que já foi preso... elessão muito violentos e não tem medo de nin-guém. Em Guariba, ocupam os primeiros luga-res da lista dos que ...vão abandonar a escolana certa, os alunos da Vila de Sangue Quente,a do João de Barro. Ali, nas representações enos imaginários das escolas e da maioria dosfundadores de Guariba, aquela gente vivebêbada, faz arruaça, briga e mata por qualquercoisa... é um povo sem lei... gente brava. O trá-gico está no fato destes últimos relatos saíremda boca, serem de conhecimento de pessoascomo Zé Moreira, Dona Zélia, Seu Afonso,Adolfo, Dona Maria e tantos outros. Ummisto de revolta e humilhação toma conta doscorpos destes trabalhadores ao descreverem asimagens de si feitas pelos outros... gente quenunca pegô num facão... nunca teve que cumêcumida podre na roça... que não vê um fio seuchorano de fome e ocê não tê nada pra dá o dicomê (Adolfo, Guariba, 1988).

Alguns destes alunos/trabalhadores utili-zam a expressão lista negra para se referirem arelação de alunos indesejáveis pela escola. Amesma expressão sai das bocas dos usineiros,dos feitores dos grandes fornecedores de canapara as usinas e está no linguajar costumeirodos cortadores de cana e dos trabalhadores dasusinas. Olhando para uma lista negra, quecorre de um empresário rural para outros, ob-serva-se na linha de frente os nomes dos líde-res grevistas, do pessoal ativo dos Sindicatos deTrabalhadores Rurais. Logo em seguida vemos blocos dos doentes e dos fracos de serviço.O absurdo, a revolta, o surreal saltam aosolhos quando se coloca lado a lado as duas lis-tas, a das escolas e a dos usineiros e seus pre-

postos. Parecendo estar em pleno reino doshorrores, constata-se a materialização do im-possível - os nomes que engrossam os primei-ros lugares das listas são os mesmos. Patrões ea maioria dos educadores profissionais dasescolas consideradas fazem infectos os alu-nos/trabalhadores/grevistas. As pessoas quetrazem nos corpos gestuais, cheiros, odores,paladares, rituais, mitos, crenças, ritmos, figu-rinos, dialetos, imaginários, representações,imagens afetivas e poéticas, arranjos domésti-cos diferentes são transmutados em seres queexalam o podre dos impuros, o fétido dos es-gotos do urbano moderno. Visões de mundodiversas, insurretas trajetórias de vida comple-tam e reiteram os sinais dos heréticos.

Da cabeça de Zé Moreira, não passam des-percebidas as linhas que desenham a anatomiadesnudada da escola atada ao universo da pro-dução agro-açucareira, aos grupos políticoslocais e regionais. Na sua idéia, como nas deSeu Afonso, e de Adolfo, um estranho traçadodelineia-se na esfera do pensado. Chegando aolimite máximo da demência, para estes traba-lhadores o tempo, traiçoeiro e enganoso, re-solvera um dia escolher o imobilismo. Assim,as mesmas correntes que alimentam os cativei-ros, hoje, amarram e mantêm atadas escolas,prefeituras, cadeias, igrejas, agroindústrias,palácios de Estado, tribunais, cooperativas decoronéis contemporâneos. Arquiteturas res-tauradas e atualizadas mantém firmes as pon-tes que continuam a realizar antigos papéis,viabilizar a cumplicidade, o troca-troca defavores e cargos. Para eles e tantos outros tra-balhadores as altas esferas do político, dossaberes, da produção e da reprodução, atrelame mantêm as pequenas armações de poderlocais e vice-versa.

"... Mais ocê sabi qui tem isso. O go-verno paga pra ela fazê tudo, num é.Mais numa cidade, o prefeito vai correnolá, dispois dele sabê qui ela ta organizanotudo aquelas pessoa. Ele tira ela dali,pruquê ele tirano ela dali já é uma a me-nos. E põe uma pra podê tirá aquilo da

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cabeça do povo. Pra ele é mais tranqüi-lidade. E dispois quando o guverno subépru qual mutivo qui ela tá fazeno, pruguverno tamém é importanti... é um sus-segamento que ele vai tê tamém. Pruquêdispois qui tivé organizado, Guariba, Ja-boticabal, Pradópolis, Ribeirão Preto,otros tivé organizado... o povo cada umtá sabeno da verdadi... ah! minha fia"José Moreira, 1988

No entender de vários trabalhadores, osmicropoderes locais são costurados como umarede que se estende estabelecendo ligações comesferas mais amplas de poder. Para eles estesmicropoderes alimenta e são alimentados poruma vasta e complexa hierarquia de mando,que vai do olheiro e do feitor de turma até assalas do ministério do trabalho e dos salões dospalácios de governo. A malha de obediências,de obedientes e de insubordinações ganha den-sidade e visibilidade desproporcionais.

As greves que explodem nas safras e entres-safras do corte de cana, de 1984 até as portasdo séc. XXI, aprofundam a complexidade dopróprio movimento e de todo o contexto his-tórico, de toda a história da vida e da morte naregião dos conflitos. Este intrincado novelo(re)ordena-se incansável, na medida em que,aos movimentos de cortadores de cana incor-poram-se movimentos de trabalhadores ruraisligados às agro-indústrias de diferentes setoresprodutivos. Estes trabalhadores rurais-outrostrazem para os movimentos dos cortadores decana, pautas de luta diversificadas.

O movimento dos cortadores de cana as-sume um amálgama maior, também, por in-terferência de múltiplos fatores e sujeitos que,como formigueiro, sobem ao palco de lutas.Desta pluralidade é possível destacar: a inter-ferência da imprensa falada, escrita e televisi-va regional, nacional e mundial; a atuação daslideranças sindicais urbanas do Estado de SãoPaulo e o surgimento de organizações da so-ciedade civil, até então desconhecidas para ostrabalhadores rurais. Outros fatores interve-

nientes, que aumentam a complexidade dosmovimentos de resistência dos cortadores decana, estão para a aprendizagem de táticas ur-banas de greve. Em contrapartida, com o de-senrolar da resistência, novas formas de re-pressão são arquitetadas por instâncias dife-renciadas do sistema de disciplinação social,entre elas a escola.

Zé Moreira, Seu Afonso e Cida, por exem-plo, anunciam vários indicativos desta teia queenvolve homens, coisas e relações. Contam co-mo os acontecimentos fluem, como o passoapressado dos muitos escalões de defensoresda ordem vai sendo acelerado, como estes pre-postos do poder tentam impedir o desmorona-mento da arquitetura de vigilância e repressãodentro e fora das escolas.

As paredes da escola, para eles, erguem-seporosas, tendenciosas, comprometidas com osblocos regionais de poder, principais protago-nistas da espiral da pobreza, da miséria e daindigência dos cortadores de cana. Para muitosdos rebeldes dos canaviais de usina, a políticada maioria das escolas responde aos interessesdestes blocos de poder econômico, político ecientífico-tecnológico. Seu Afonso, trabalha-dor escolado, tem certeza que os conhecimen-tos e as estratégias necessários, isto é, aquelesque respondem aos projetos políticos-econô-micos, às culturas, ao corpo de valores, aos jei-tos de ser e de sentir dos cortadores de cana sãoconquistados fora da instituição escolar. Navisão de muitos entrevistados, a ciência escolar,especialmente em tempos de greve, tende aconcentrar esforços em temáticas alheias às vi-das que correm nas veias dos seus alunos.

A cultura produzida e veiculada pela escolade primeiras letras, o ensino, a pesquisa e osconhecimentos científicos que vem das Uni-versidades continuam presos a preceitos fan-tasmáticos, isto é, à ilusão de que métodos emetodologias são capazes de chegar a grandesverdades intocáveis. Os conhecimentos e sabe-res elaborados por estes vários espaços escola-res, continuam sustentados pelo mito da neu-tralidade, da distância do pesquisador, dos

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professores da escola em relação aos sujeitosestudados, em relação à vida dos alunos. Este,talvez, seja o dogma primeiro para se chegar aobjetividade, para a construção de um olharque não quer se deixar contaminar pelas lágri-mas da dor, da humilhação, do riso, da festa, doencantamento, da beleza e da emoção de pes-soas reais. No trajeto de casa para o trabalho ena volta para casa ao final de uma jornada, notempo que passa dentro da escola, as pessoasque compõem o corpo pedagógico-técnico-administrativo-disciplinar das instituições es-colares parecem esforçam-se por trancafiarseus sentidos e sensibilidades. Nos momentosmais aflitivos dos movimentos sociais há umatendência dos vários setores do social em igno-rar, ou em ver apenas o espectro dos revolta-dos. Esta atitude, muitas vezes, guarda umamiopia que adoece os olhos, apaga a ética etranqüiliza as almas. É fora da escola, nos sin-dicatos, no universo de trabalho entre parcei-ros e cúmplices, longe da vigilância de feitores,de outros prepostos e olheiros que, para SeuAfonso, os saberes dos direitos, as estratégiasde sobrevivência e de luta são apropriados earticulados pelos trabalhadores. Para muitostrabalhadores nestes e em outros espaços, lon-ge das portas das escolas, a identidade/diversi-dade dos pobres dos canaviais adquirem suamoldagem e ganha dignidade aos seus própriosolhos e aos olhos dos diferentes. As linhas quedenunciam e põe à descoberto as silhuetas dosinimigos e opostos, são logo identificadas, ge-rando práticas violentas de exclusão e intimi-dação. É fora da escola, junto a seus iguais,parceiros e amigos que os trabalhadores exer-citam o debate dos problemas que os afligem.Segundo Seu Afonso, é longe das salas de aulasque os trabalhadores aprendem os saberes efazeres do trabalho, da política e da vida comseus ardis. É vivendo, ganhando e perdendo,caindo e levantando que se aprende sobre omundo e a terra, sobre os homens e o restanteda natureza. A escola é mantida desgarrada davida, da terra e dos saberes que asseguram asobrevivência dentro e fora do trabalho.

"... No trabalho você é orientado porum amigo. O que ocê num sabe, as veizo cara tá cunversano uma coisa que vocênum sabe, ocê corta o assunto, mesmo si ocara num tá falano com você. Eu mesmosô um cara desse jeito. Quando o feitorou encarregado está falano certas coisa euarrumo um jeito di iscutá."(Seu Afonso, Guariba, 1996)

Os contextos históricos de repressões, dehumilhações, de discriminações vividos por ge-rações e gerações de pobres da terra, fora e den-tro da escola, não deixam dúvidas sobre a con-tundência das falas. Nestes instantes, ficam im-procedentes e até banalizadas as críticas dealguns teóricos que insistem em interrogar, emapontar para as visões nada dialéticas dos dis-cursos dos trabalhadores sobreas escolas. Diante das ima-gens esculpidas por eles, so-bre o caráter desumanizantedo espaço escolar tornam-selevianos os diagnósticos queapontam para a absoluta uni-lateralidade das suas repre-sentações. Perdem consistên-cia s reflexões que vem nasuposta falta de consciênciapolítica dos trabalhadores, acausalidade para construção de imagens des-qualificadoras da escola como espaço de trans-formação. Nos momentos de grandes confron-tos sociais, nos instantes de maior repressão aosmovimentos reivindicatórios, para certos tra-balhadores/alunos, uma escola cidadã assumefeições heréticas. Nas horas de violência de-mente, erguem-se os muros, trancam-se os por-tais, criam-se barreiras burocráticas, na tentati-va de impedir a realização do direito de acessoe de permanência dos trabalhadores na escolapública. Aos olhos de boa parte dos entrevista-dos, com o alargamento e complexidade dasgreves, aprofundam-se a exclusão e as práticasde vigilância, controle e punição pelos váriosagentes da instituição escolar.

Nos momentos de gran-des confrontos sociais,nos instantes de maiorrepressão aos movimen-tos reivindicatórios, paracertos trabalhadores/alu-nos, uma escola cidadãassume feições heréticas.

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Os movimentos sociais dos canavieiros aca-bam, assim, obrigando a escola a encarar suasdificuldades, suas intolerâncias às diversidadesétnicas e culturais, suas fragilidades em convi-ver e trabalhar com as diferenças econômi-cas/políticas. As várias formas de resistênciaconvidam as escolas a (re)pensarem suas iden-tidades e identificações, seus compromissoscom certas bandeiras, pessoas e grupos sociais.Os movimentos são instantes férteis. Sugeremque as escolas conheçam as condições de vidados seus alunos, suas crenças, suas históriasde vida, costumes e interditos. Convidam asescolas a desvelarem os contextos históricoslocal e global, isto é, o espírito dos tempos eos espaços sociais em que se inserem. Cha-mam e a equipe escolar para enfrentar os de-safios, riscos e incertezas de um mergulhopelo interior das cavernas do eu. O (re)pensardos saberes e fazeres escolares está calcadonestes enfrentamentos.

As falas dos alunos/grevistas podem fun-cionar como subsídios para a (re)visão dospropósitos político-pedagógicos das institui-ções educativas. Os relatos obtidos apontampara a urgência de discussões sobre as espe-cificidades das escolas de ensino fundamen-tal e médio.

Os movimentos sociais e as próprias esco-las, impulsionadas inclusive por estes movi-mentos, têm colocado a importância da pes-quisa científica, da produção individual e cole-tiva de saberes, de projetos e estratégias exigi-dos por uma sociedade complexa. Movimentosrurais e urbanos contemporâneos, que congre-gam uma diversidade de atores/autores, vêmalertando para a necessidade de construção deculturas escolares que expressem, contenham econtemplem, ao mesmo tempo, as diversidadeslocais como garantia da identidade planetária.Neste sentido, uma política do Antropos, umaantropologia fundamental surgem como emer-gências para os séc. XXI.

As greves dos cortadores de cana e muitosoutros movimentos sociais rurais e urbanosabrem-se para (re)pensar a complexidade do

ato educativo que o sistema público de ensinose dispõe a desenvolver. Movimentos como odos canavieiros da Região de Ribeirão Pretoimpulsionam as escolas, especialmente aquelaserguidas dentro ou às margens de bairros decortadores de cana, a enfrentarem suas preca-riedades, para entender e trabalhar com ostempos da infância, da juventude e dos adultospobres. Estes movimentos desafiam a institui-ção a exercitar sua radicalidade de propostas: a(re)humanização dos já desumanizados pelotrabalho, pelas misérias de várias ordens, pelashumilhações diárias, pelas discriminações e ex-clusões cotidianas.

Movimentos sociais no Brasil, como os dosSem Terra, os dos povos das florestas, os dospovos indígenas, os dos cortadores de cana emgreve e tantos outros, têm provocado a (re)sig-nificação da educação, da escola, do processode construção do sujeito para os tempos con-temporâneos. Enfim, os movimentos sociaisapresentam-se, hoje, como um dos palcos ins-tigativos das pedagogias críticas, isto é, daque-las que trazem por diretiva a necessidade dedesconstrução - (re)organização dos sistemaseducativos, que tem por ponto nodal a reformado pensamento consubstanciada pela comple-xidade dos paradigmas complexos. Os dizeresdos movimentos sociais, dos cortadores de ca-na em greve num tempo / espaço paroxístico,parecem propor o que há muito se faz inadiá-vel, para garantir a sustentabilidade da diversi-dade de culturas e de vidas sobre e da Terra:tecer junto o que foi fragmentado sobretudopela civilização ocidental moderna.

A urgência de (re) e (co)pilotagem de umanau colocada à deriva pelo homem moderno,pela extrema demência de uma de suas faces,ecoa por todo o planeta, como grito da vidapelo direito à vida. Estão compelidos a estaoutra viagem de conquista do (re)encantamen-to dos mundos, todos os espaços educativos eos escolares em específico, os homens e mulhe-res da Terra Gaia, as ciências e tecnologiasconscientes. Caminham na mesma esteira, às(re)organizações epistêmicas, das formas de

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viver e das articulações dos ecossistemas natu-rais com os ecossistemas culturais.

Reiterando, todos os esforços individual ecoletivo pressupõem a dialógica da unidademúltipla de saberes e fazeres, que passam a in-tegrar e integrar-se à cultura escolar. Por suavez, tais esforço requerem, ao mesmo tempo,alterações profundas na instituição, no sistemaescolar e, conseqüentemente, na formação dosprofissionais de ensino.

Mesmo que certos desdobramentos não es-tejam presentes nos relatos dos entrevistados,fica claro que, as transformações apontadaspor eles, não podem estar restritas às escolas deensino fundamental e médio. Elas são extensi-vas às universidades, sem que se possa apontarescalas de prioridades nos diferentes momen-tos da formação dos sujeitos. Um princípiounifica as modificações requeridas para a esco-larização. A desconstrução do sistema discipli-nar em favor da transdisciplinaridade é tarefaimprescindível, embora complexa.

A escola e suas encantarias

A instituição escolar surge ambígua, cheiade realismo mágico entre os fios de muitas fa-las, embora os desencantos adquiram força eespaço amplos nos relatos da maioria dos en-trevistados, Nestes momentos, os dizeres doscortadores de cana em greve, não se reportama uma ou outra escola vista à poucas distânciasdo conflitos. Em meios às falas mais impiedo-sas sobre as perversidades das escolas que fre-qüentam ou sobre a escola arquetípica, os cor-tadores de cana não se furtam de dizer dasencantarias deste universo de saberes e fazeres.Para a maioria dos trabalhadores, sob certosaspectos, o tempo e o espaço escolares vêmimpregnados de uma visão mítica. Eles contamdas várias versões e do eufemismo próprios aomito. Desenham imagens da escola como algoreal/imaginário. Esta visão não é específicadestes trabalhadores, nem do mítico que elesconstroem sobre a escola, nem do que aqui éentendido como mito. A este respeito, Edgar

Morin alerta... o real não é tão imperativocomo se pensa. Suas aparências são frágeis, suaessência está ou é desconhecida, sua matéria,sua origem, seu fundamento, seu devir sãoincertos, sua complexidade é tecida de incerte-zas. Daí sua extrema fraqueza diante da sobre-realidade do mito, da religião, da ideologia emesmo da idéia e de todo o imaginário (Morin,1991, pg. 24). O real e o imaginário vivemimbricados, articulados, integrados. Desentra-nhá-los parece constituir um dos impossíveispara o cérebro humano, porque suas fronteirassão pouco nítidas. O impon-derável ronda as certezasquando se pergunta: O queé real? O que é imaginário?As concepções da ciênciaclássica a este respeito so-frem hoje largos questiona-mentos, em especial com osavanços dos estudos sobre océrebro humano. Pode-sedizer, pois, que o imaginá-rio não está para o simples-mente irreal. Não é nem a fada e nem a loucada casa, segundo Edgard Morin (2002). Asconstruções do imaginário não estão destituí-das de realidade, nem de logus. O real não seaparta do imaginário. Apresenta-se encharca-do de produções do imaginário, de imagina-ção, de mitos e ritos. Por outro lado, há mitosno logus. Para olhos complexos, um princípiode incerteza está embutido na possibilidade deconhecer, de aprender o que é real, tal como seapresenta, supostamente, aos nossos sentidos.Há certezas possíveis, mas elas são fragmentá-rias, temporais, circunstanciais, secundárias...nunca fundamentais... qualquer caminhar paraa grande certeza só poderá ser uma gravideznervosa... O princípio da incerteza e o da inter-rogação constituem conjuntamente o oxigêniode todo o empreendimento de conhecimento. Oconhecimento é uma aventura que não só com-porta riscos, mas que se alimenta de riscos.(Morin, 1989, pág. 22). No livro "O homem ea morte" (1988), Morin diz não haver socieda-

Para a maioria dos traba-lhadores, sob certos as-pectos, o tempo e o espa-ço escolares vêm impreg-nados de uma visão míti-ca. Eles contam das váriasversões e do eufemismopróprios ao mito.

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des humanas que não comportem a construçãode imaginários, mitos, ritos, práticas sacrifi-ciais, representações. Da mesma forma, não háimaginários, isto é, esta floresta de símbolos,signos, sinais, mitos e magias fora da sociedadehumana. Esta noosfera é, segundo ele, própriada condição humana.

Numa polifonia de vozes, os cortadores decana continuam articulistas de imagens gene-rosas de uma escola possível. Tendo por par-ceiros as pessoas de espaços sociais educativosdiversos e os acontecimentos do próprio movi-mento social, os entrevistados não deixam deperceber outros sentidos da escola. Para eles, aescola traz nas entranhas uma práxis possível: ade transmutação dos seus alunos em protago-nistas das suas histórias, dos seus destinos. Ouniverso escolar pode ser, contar e registraruma história de construção-destruição - (re)-

ordenação de pensamentos epráticas na direção da huma-nização da humanidade.

A escola para eles e paraseus filhos, simbolicamenteconstitui-se em ritual de pas-sagem, em universo redenção.Ela torna-os seres libertos dotrabalho duro e sem futuro emterras de patrão, de negócio,como as de usineiro e as deprodutores de cana para asusinas. Para os cortadores de

cana a escola assume dons milagreiros. Mágica,é capaz de tirá um trabalhadô das agruras doanalfabetismo. Aprender a ler, escrever e con-tar são, portanto, fortes objetos de desejo.Assim, o real/maravilhoso, converte-se emmisturas que fortificam as paredes da escola deprimeiras letras. Eufemizada, ela é pedra pre-ciosa capaz de desvelar os enigmas, as mensa-gens, as senhas da linguagem escrita, das leitu-ras das revistas, dos livros reveladores da vidade um trabalhador e dos seus direitos. Des-vendar, assenhorar-se da leitura, escrita e cálcu-lo transmutam-se em portais abertos para umtempo mais generoso, para uma vida alegre,

melhor e solidária. No imaginário destes traba-lhadores, ler, escrever com desenvoltura, fazercálculos simples trazem em si ingredientes po-líticos. Podem fazer a diferença no processo deconquista de uma vida digna, de qualidade, deuma vida de homem livre. Com os movimen-tos sociais fica claro que o alastramento dosverdes canaviais não constituem, necessaria-mente, maior fartura de emprego e de vida.

Indicativo da interferência violenta damão histórica do homem, ou seja, de um tipoespecífico de culturalização da natureza, otempo circular da cana de usina reduz a doistempos o ano agrícola: o da safra e o da entres-safra; o da fartura de emprego e o do desem-prego. Desta forma, o desemprego é o demô-nio que atormenta a história de vida do corta-dor de cana, da sua família e das próximasgerações de pobres da terra. O homem cultu-ralizador, que (re)arranja o espaço, o tempo efaz da terra um mar de canaviais, nos últimostempos vem andando pelos territórios ao somde um ruído ensurdecedor - o desenvolvimen-to científico-tecnológico desenfreado. Cegas esurdas para a vida dos homens dos canaviais, astecnologias não liberam os fantasmas do de-semprego apenas no tempo delimitado da en-tressafra já mecanizada. A tecno-ciência da ci-vilização ocidental, serva fiel apenas do merca-do e destituída de ética assume, aos olhos doprogresso, a silhueta da inocência, do só bemfazer. As tecno-ciências, mensageira de boasnovas, têm, na contra-face do seu rosto angeli-cal, uma legião de demônios.

Neste início de séc. XXI, sob o reinado doscanaviais de usina, o angelical do progressotecnológico, nas mãos dos seus senhores, liber-ta os homens do trabalho bruto. Ébrio de li-berdade, este progresso no entanto, quebra ascorrentes do tempo delimitado de menos tra-balho no campo. Finalmente, os fantasmas dodesemprego ganham carta de alforria. Agora,eles correm livres por todo o ano agrícola.Transformam todas as casas dos trabalhadoresrurais em morada da fome endêmica.

Nestes tempos, mais que em outros, a esco-

Para os cortadores decana a escola assumedons milagreiros. Mágica,é capaz de tirá um traba-lhadô das agruras doanalfabetismo. Aprendera ler, escrever e contarsão, portanto, fortes ob-jetos de desejo.

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la transforma-se em símbolo de redenção,assume feições deificadas. Para muitos, ela nãoproporciona apenas a instrumentalização doler, escrever e contar. Os desdobramentos daaquisição destes saberes, levam a apreensão desaberes-outros e a posse de poderes políticos eculturais. A escola proporciona a sabia esperte-za nos meandros dos discursos instituídos e acompreensão das artimanhas da linguagemjurídica. No imaginário dos cortadores de canasaber ler, escrever e calcular instrumentalizama aquisição de seus direitos.

No entender de outros alunos / grevistas, ofalar e agir civilizados chegam a fazer parte dosmaneirismos exigidos pela condição moderna.A escola, neste aspecto, tem a incumbência detransmutar o bárbaro e esculpir o homem. Tor-na possível a compreensão de si mesmo, da vidaque flui em certo contexto social. Para certostrabalhadores, ainda, a escola cria condiçõespara outros possíveis. Neste sentido, ela permi-te aos trabalhadores adonarem-se do seu pró-prio destino; assumirem a feitura e a escolhaautônoma dos seus próprios caminhos. Os sa-beres da escola podem fazer com que eles usu-fruam dos avanços da modernidade possibili-tando o tráfego com destreza pelo universo designos, símbolos e sinais identitários do mundocontemporâneo. No horizonte longínquo, a es-cola com suas mãos de artífice confere aos tra-balhadores a possibilidade de diálogo com osmistérios que este e outros mundos contêm.

No entender de trabalhadores como ZéMoreira, a escrita ergue-se como uma forma dedocumento. Ela é um verdadeiro monumentoque impede o esquecimento. Para Zé Moreira eSeu Afonso, em especial, a escrita retêm omundo, assegura a inquestionável evidênciados dados, das situações, dos acontecimentos.Floresta de sinais, de símbolos, de mensagens,de imagens, de memórias, através da escrita épossível suspender o tempo, manter a vida,mesmo com a presença do ruído, do caos. Otempo, o burburinho do dia a dia, as idéias queatormentam a cabeça de um trabalhador, ascontabilidades dos custos diários da vida, pre-

cisam ser registradas, diz um contador de cana."Trabalhador depois que ele é adulto,

ele passa a te família, pode vê que ele tásempre com cabeça quente. Tem pobre-ma de doença na famia, tem dívida prapagá. Ele tá trabaiano aqui, mais o sen-tido dele tá longe. Sabe lê e escreve émuito importante pur causa disso. Ele ca-rece de trazê tudo na ponta do lápis pru-que a cabeça vive pertubada, cansada."

(Um trabalhador de Guariba, 1989)

O entrelaçamento desta variedade de fato-res confere peso político à escrita, leitura e cál-culo. De certa forma, no imaginário dos traba-lhadores, a escola oferece condições que viabi-lizam estratégias de sustentabilidade econômi-ca, política e cultural.

Neste presente, mais que em outros, a sobre-vivência sofre transmutações, complexificações.A fome dos cortadores de cana nesse pedaço dechão, tem múltiplas causalidades e dimensõesarticuladas. Cabeça e corpo, matéria e espíritovivem de alimentos diversos. A escola e tudo oque ela representa torna-se, desta forma, im-prescindível em todos os espaços e momentosdo cotidiano das pessoas pobres.

Movimentos sociais e suas interrogativas: considerações finais

Os mesmos movimentos sociais que eno-brecem e ressaltam uma vida escolar redentoraenzimam, também como foi visto, questões defundo não respondidas, não equacionadas portoda a engrenagem do ensino regional, nacio-nal e mundicial. Assim, uma multiplicidade devozes chamam os olhos para ver o agravamen-to da indigência humana. Alheia a contempo-raneidade dos tempos, a exclusão social alarga-se despudoradamente e sem camuflagens. Per-sistentes, as vozes interrogam sobre o queacontece fora e dentro da escola: os estranha-mentos e enfrentamentos étnicos e culturais, oaprofundamento, difusão e pluralidade da vio-lência, o agravamento das discriminações, das

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intolerâncias às diversidades. Alguns movi-mentos, como os dos povos indígenas, trazempara o cenário das discussões as temáticas docorpo e suas várias linguagens. Outros movi-mentos sociais abordam as questões que dizemrespeito à ética e estética. Eles dizem dos pro-blemas relativos à inseparabilidade entre oempírico - racional - lógico e o simbólico - mí-tico - mágico, entre as objetividades e subjeti-vidades, entre o "eu" e os "outros", entre oprosaico e o simbólico. Insubordinadas, aspessoas e seus movimentos sociais apontampara as inconsistências destas e de outras dis-junções. As críticas aos dualismos podem servistas: nos escritos de poucas linhas, registrosque se transformam em memórias nos cader-nos de escola, nos documentos de sindicatos.As rejeições à bipolaridade da vida, domundo e das relações podem ser vistas e sen-tidas à volta das mesas dos bares, nas conver-sas sem fim sobre o trabalho, sobre a vida e amorte de todos os dias. A irrealidade das vi-sões e das práticas duais expressa-se nos pas-sos do cotidiano. O dualismo morre à min-gua nas histórias de vida contadas só para osouvidos da amizade.

No caso das greves de cortadores de cana deGuariba e Barrinha, em especial, o cenário dedestruição, de caos tem seu lado genésico e ge-nerativo. No olho do furacão, a escola pressio-nada e tencionada por todos os poros saí dostrilhos quando o pré-estabelecido, o determi-nado desmorona. Neste processo de descons-trução, para a escola fica difícil ignorar o con-texto em que está mergulhada, e não ver as suasimagens estampadas em manchetes. Para a es-cola é impossível não olhar para si mesma, paraas suas múltiplas, ambíguas, contraditórias, com-plementares e simultâneas faces.

Não há como considerar que o momentocaótico é, também, extremamente rico e fértilporque mostra os vários sentidos da escola, asvárias vidas aninhadas em si. Nos tempos detensão, de greves e de outras formas de resis-tência a escola acaba por permitir atos genero-sos: a (re)organização de si por si e a ação com-

partilhada de (re)visão de si pelos outros. Nes-ta medida, a escola olha sua própria indignida-de e vive sua indignação. Seguramente, nestesdias turbilhonais, quentes, boa parte das entra-nhas da escola, não vira o rosto para o insubor-dinado, o indigesto, o instituinte, o desaforadoque trafega pelos espaços do urbano e do rural.A transgressão remexe os guardados nas cabe-ças dos homens trabalhadores ao longo dassuas histórias de vida. A rebeldia, dentro e forada escola, altera imaginários, representações,visões de mundo, objetos de desejos, dialetos,formas de comunicação e de intercambio. Estasalterações, por decorrência, modifica objetivi-dades e subjetividades, o estranho e o familiar.A insubordinação transverte as ruas, as casas,os bares, os santuários e as alcovas das tribos. Omovimento social, com sua fúria (re)direcionaos passos da comunidade de destino.

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Discutir a temática "O desafio de lidar comas diferenças" é priorizar primeiramentealgumas considerações e reflexões sobre o

que consideramos socialmente como diferente,quem considera a diferença e, principalmente,destacar que a normatização e a diferença sãotermos e concepções construídos historica-mente e socialmente, de acordo com os pa-

drões culturais e morais de uma sociedade.Não vivemos numa sociedade que preza

pela diversidade e respeita o direito a diferen-ça. Dessa forma é importante pensarmos o querepresenta a diferença e a diversidade na atua-lidade e, especificamente, o desafio da Edu-cação em lidar com as diferenças no processode construção da Cidadania e da própria de-

O desafio de lidar com as diferenças*

Lobelia da Silva Faceira

Professora adjunta do Instituto de Humanidades da UNIGRANRIO e do curso de Serviço Social da Universidade Castelo Branco.

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mocratização do espaço escolar. SegundoFERREIRA (2004) diferença é:

"1. Qualidade de diferente. 2. Divergência;desarmonia. 3. Distinção. 4. Aquilo que distin-gue ou torna desiguais às coisas ou pessoas to-madas em comparação." (p. 239).

Pensar a temática da Diferença no campoeducacional é considerar o olhar dos váriosatores sociais (educadores, alunos, famílias ecomunidade) com relação ao outro e as múlti-plas expressões dessa diversidade presentes noespaço da escola: classe social, etnia, gênero,religião, representações das diversas realidadessociais e culturais.

Uma outra questão que devemos destacarnesse debate inicial é a configuração da dife-rença representada pelo estranhamento dosatores sociais do campo educacio-nal com relação às múltiplas ex-pressões da Questão Social, queperpassam o campo educacional:violência, drogas, sexualidade dacriança e do adolescente, a homos-sexualidade. Ou ainda com relaçãoàs características subjetivas e com-portamentais dos próprios alunos(crianças portadoras de necessida-des especiais, distúrbios compor-tamentais, dificuldades de apren-dizagem e a "hiperatividade"), quemuitas vezes são caracterizadascomo diferenças e causas do pro-cesso de estigmatização e da pró-pria culpabilização do aluno comoresponsável pelo fracasso escolar.

A Educação, de acordo com a Lei de Di-retrizes e Bases da Educação de 1996, tem porfinalidade o pleno desenvolvimento do indiví-duo, sua qualificação para o trabalho e o pre-paro para o exercício da Cidadania. De acordocom CARNEIRO (1998):

"O conceito de cidadania centra-se na con-dição básica de ser cidadão, isto é, titular dedireitos e de deveres a partir de uma condiçãouniversal - porque assegurada na Carta de Di-reitos da Organização das Nações Unidas - e

de uma condição particular - porque vazadaem cláusula pétrea da Constituição Federal:todos são iguais perante a lei". (p. 33).

Considerando que a Educação é direito detodos e dever do Estado nos termos do Art.205 da Constituição Federal, é imprescindívelpensar sobre a igualdade de condições para oacesso e a permanência na escola dos alunos,considerando as suas diversidades. Esta preo-cupação implica em se definir parâmetros demelhoria da eqüidade por meio de uma sala deaula com qualidade, isto é permeável às especi-ficidades e diversidades das populações: crian-ças que residem na periferia ou na área rural,populações em condição de pobreza, popula-ção indígena, além de evadidos e excluídos dosistema escolar.

A escola não é algo pronto ouuma instituição imutável, pelocontrário, ela foi instituída histori-camente de acordo com interessesdeterminados e com característicaspróprias, sendo necessário analisá-la dentro de um contexto maisabrangente e histórico, como afir-ma Freire (2003):

"Enquanto categoria abstrata, ins-tituição em si, portadora de uma natu-reza imutável da qual se diga é boa, émá, a escola não existe. Enquanto es-paço social em que a educação formal,que não é toda a educação, se dá, aescola na verdade não é, a escola estásendo historicamente. A compreensãodo seu estar sendo, porém, não pode

ser lograda fora da compreensão de algomais abrangente que ela - a sociedade mesmana qual se acha. A educação formal que évivida na escola é um subsistema e sistemamaior - não são contudo mecânicas. Se nãose pode pedir à escola, o que vale dizer, àeducação formal, que se torne alavanca dastransformações sociais, não se pense, por ou-tro lado, que ela seja um puro reflexo do sis-tema que a engendra. Daí a afirmação comque começo esta breve introdução: enquanto

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A escola não é algopronto ou uma insti-tuição imutável, pelocontrário, ela foi ins-tituída historicamentede acordo com inte-resses determinadose com características

próprias, sendonecessário analisá-la

dentro de um contexto mais abran-

gente e histórico.

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categoria abstrata, instituição em si, portado-ra de uma natureza imutável da qual se digaé boa, é má, a escola não existe. Daí tambémque não seja a escola a que se encontre emcrise, como astuta ou ingenuamente se in-siste em apregoar. Fala-se de crise da escolacomo se ela existisse desgarrada do contex-to histórico-social, econômico, político dasociedade concreta onde atua; como se elapudesse ser decifrada sem inteligência decomo o poder, nesta ou naquela sociedade,se vem constituindo, a serviço de quem edesservindo a quem, em favor de que e con-tra que". (p. 7).

Daí a importância de analisarmos historica-mente o surgimento da instituição escola e suafunção ideológica, para refletirmos sobre o seucontexto e a temática do desafio de lidar com adiferença.

Antigamente, não existia a instituição esco-la como a responsável pela educação e pelatransmissão de conhecimentos, educar era vi-ver o dia-a-dia da comunidade, plantar, partici-par de cerimônias coletivas e ouvir dos maisidosos as estórias da tradição oral. De acordocom Freire (2003):

"A prática educativa consistia na aquisi-ção de instrumentos de trabalho e na inte-riorização de valores e comportamentosenquanto o meio ambiente em seu conjun-to era um contexto permanente de forma-ção". (p. 23).

Logo, todos os adultos da comunidade di-vidiam a tarefa de ensinar, sendo a aprendiza-gem resultado do próprio conhecimento do in-divíduo e da experiência dos outros. Essaaprendizagem tornava inseparáveis as instân-cias do saber, da vida e do trabalho.

Na Idade Média, na Europa, a educaçãotornou-se um produto da escola, sendo neces-sária à capacitação de um conjunto de pessoasna tarefa de transmissão do saber, especifica-mente os religiosos. A atividade de ensinarpassou a se desenvolver em espaços específi-cos, denominados como escolas, permanecen-do isolados da vida cotidiana. Durante muito

tempo, esse espaço ficou separado e destinadounicamente às elites, enquanto a população po-bre continuava a sua aprendizagem e educaçãoatravés da prática do dia-a-dia.

Nesse contexto, a escola atribuía importân-cia e valor ao saber abstrato, científico, a mo-ral, a religião, valorizando o trabalho intelec-tual em detrimento da atividade manual, da vi-da cotidiana. A sociedade é constituída porduas principais classes: uma que vive da rendade suas propriedades e outra que desprovidade propriedade, consegue sua subsistênciaatravés da venda da sua força de trabalho. Sen-do a educação responsável pela legitimidade dadiferença dessas duas classes, refletindo numaseparação entre o trabalho considerado inte-lectual e o trabalho manual.

Esse modelo de educação durou até o sur-gimento do capitalismo industrial, que desen-cadeou uma série de transformações na socie-dade, como: a revolução tecnológica, consoli-dada pela invenção da máquina a vapor e autilização de novas formas de energia; o de-senvolvimento e ascensão da burguesia indus-trial, que passa a ocupar o lugar de classe do-minante; a formação de uma classe operáriacaracterizada como mão-de-obra pobre e des-qualificada, que vende a sua força de trabalhoem troca de baixos salários.

Com o desenvolvimento da industrializa-ção, o mercado de trabalho passou a exigir umamão-de-obra mais qualificada, uma vez que omanuseio das máquinas na indústria requeriaum profissional mais especializado, um núme-ro maior de quadros técnicos e científicos. Estaexigência econômica coloca a necessidade deuma modernização da escola, no sentido deatribuir um mínimo de instrução à classe ope-rária. Logo, paralelamente a escola dos ricos,surge à escola para os pobres, com a função dedar aos futuros operários o mínimo de culturanecessário à sua integração e inserção no nívelmais baixo da sociedade industrial. SegundoFreire (2003): "Os 'ignorantes' deveriam socia-lizar-se, isto é, deveriam ser 'educados' paratornarem-se bons cidadãos e trabalhadores

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disciplinados". (p. 29). Assim, a escola é demo-cratizada para os trabalhadores com a funçãoeconômica de qualificá-los, habilitá-los técni-ca, social e ideologicamente para o trabalho.Ou seja, a função social da educação permane-ce subordinada e controlada para responder àsdemandas do capital. De acordo com Gryzy-bowski apud Frigotto (1999):

"(...) a educação é, antes de mais nada,desenvolvimento de potencialidades e aapropriação de 'saber social' (conjunto deconhecimentos e habilidades, atitudes e valo-res que são produzidos pelas classes, em umasituação histórica dada de relações para darconta de seus interesses e necessidades). Tra-ta-se de buscar, na educação, conhecimentose habilidades que permitam uma melhorcompreensão da realidade e envolva a capa-cidade de fazer valer os próprios interesseseconômicos, políticos e culturais". (p. 26).

Logo, a passagem do feudalismo para ocapitalismo não representou a superação e ul-trapassagem da sociedade marcada pela opres-são, segregação social e desigualdade de classespara uma sociedade livre e igualitária. Pelocontrário, o capitalismo mantém o quadro dedesigualdades sociais sob uma igualdade jurí-dica e legal, que não é legitimada, mas respon-sável pelo estabelecimento das relações econô-micas, políticas e ideológicas de uma nova so-ciedade de classes. Segundo Frigotto (1999):

"O mercado, sob as relações das classesfundamentais capital/trabalho, de um lado,constitui-se no locus fetichizado, por exce-lência, onde todos os agentes econômicos esociais supostamente se igualam e podemtomar suas decisões livres, e o contrato, deoutro, na mistificação legal da garantia documprimento das escolhas 'igualitárias elivres'". (p. 27).

Logo, cria-se a ideologia de que as chancespassam a ser iguais na sociedade capitalista,destacando, especificamente o acesso à educa-ção, que passa a ser estendido as classes popu-lares. Porém, esse acesso ainda permanece dife-renciado e restrito, à medida que passam a coe-

xistir dois tipos de escola, onde as criançaspobres têm acesso à escolarização básica("escola primária"), aos conhecimentos míni-mos indispensáveis ao trabalho industrial,não tendo acesso a estudos e conhecimentosmais aprofundados e considerados científi-cos. E as crianças da elite têm acesso ao ensi-no de nível superior, aos conhecimentos inte-lectuais e científicos, criando uma situação desegregação social.

Assim sendo, o poder da escola remonta doséculo XIX, onde o sistema educacional foicriado como uma forma de intervenção legiti-mada do Estado, para intervir na vida dos tra-balhadores e também para regular e assumir aeducação das crianças. O ensino público, gra-tuito e obrigatório, é visto como a melhor ma-neira de alcançar uma verdadeira democratiza-ção dos estudos. De acordo com Freire (2003):"A expectativa dos operários é de que a escola- transformada numa espécie de serviço públi-co aberto a todos - seja um instrumento deemancipação e de educação das classes menosfavorecidas." (p. 32).

Gradualmente, o sistema de duas escolas vaisendo abolido e todos os alunos, independenteda situação sócio-econômica começam seusestudos num mesmo tipo de escola e, é apenasao término de um segmento (1º ou 2ºgrau) quevai se dar à seleção desses alunos em dois gru-pos: de um lado, uma minoria que vai conti-nuar os estudos até alcançar a universidade e,de outro lado, uma maioria que vai seguir cur-sos mais curtos e menos valorizados, que con-duzem apenas às escolas técnicas e profissio-nais, que qualificam rapidamente os indivíduospara ingressarem no mundo do trabalho. Lo-go, a educação tem como sujeito, que define assuas ações, as necessidades e demandas do pro-cesso de acumulação de capital, sob as diferen-tes formas históricas. Frigotto (1999) destacaque Marx e Engels concebem a realidade socialcomo uma estrutura:

"(...) uma totalidade de relações onde, emsua unidade diversa, o conjunto de relaçõessociais e econômicas, por serem imperativas

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na produção da vida material dos seres hu-manos, constituem-se na base a partir daqual se estrutura e se condiciona a vida socialno seu conjunto. Como, em diferentes mo-mentos, estes autores insistem, o caráter fun-damental das relações sociais de produçãonão confere às mesmas a definição única eisolada das demais determinações. As rela-ções econômicas são, antes de tudo, relaçõessociais e, enquanto tais, engendram todas asdemais. O ser humano que atua na reprodu-ção de sua vida material o faz enquanto umatotalidade psicofísica, cultural, política, ideo-lógica etc". (p. 31).

Marx considera o trabalho como uma catego-ria ontológica e econômica fundamental, à medi-da que é a forma com que o homem produz suascondições de existência, a história e o próprio serhumano. A partir dessa visão do tra-balho como criador da realidadehumana, Marx e Engels colocam anecessidade da união do trabalhoem suas diferentes instâncias: ma-nual, intelectual e produtivo.

Essa união do trabalho pressu-põe a própria supressão da relaçãocapitalista, à medida que o capita-lismo é responsável pela transfor-mação do trabalho criador da vidahumana em alienação. Ou seja, àmedida que o homem perde o sen-tido de seu trabalho e o reconheci-mento do que produziu, consti-tuindo o que Marx denomina co-mo estranhamento.

Para a legitimação desse sistemade exploração, faz-se necessário disseminar aideologia dominante e de submissão para asclasses trabalhadoras, utilizando para isso osaparelhos ideológicos, dentre os quais destacoa escola. Ou seja, é necessário qualificar a mão-de-obra para o trabalho industrial e manter ostrabalhadores numa certa ignorância e submis-são, indispensáveis para que permaneçam pas-sivos e conformados frente a sua exploração.

Logo, não podemos analisar essas transfor-

mações da escola e no campo educacional con-siderando que a mesma alcançou seus objeti-vos de democratização, até mesmo pelo fato deentendermos a democratização, como a igual-dade de chances de êxito entre os alunos vin-dos de meios sociais e culturais diferentes. Ademocratização, sob o aspecto das crianças po-bres terem acesso à escolarização, pode serconsiderada como positiva, mas não podemosexcluir desta análise a parcela de crianças quese mantém excluídas das escolas e a própria se-gregação que continua existindo internamentenas escolas. De acordo com Freire (2003):

"É verdade que os filhos dos operários,lavradores e assalariados de baixa renda vêmtendo maior acesso à escola. No entanto,suas possibilidades de êxito permanecemmuito menores do que as dos filhos de ou-

tras categorias sociais". (p. 34).Nos séculos XIX e XX, parti-

cularmente na Europa, ocorreramreformas educacionais, porém ossistemas educacionais continuamdeliberadamente estratificados: se-gregados por raça, gênero e classesocial, dividindo as escolas entreacadêmicas e técnicas, públicas eprivadas, protestantes e católicas.Após muitos movimentos sociaisde luta contra essa situação, aeducação torna-se abrangente euniversalista para os grupos ex-cluídos.

O direito à educação foi mate-rializado internacionalmente, naDeclaração dos Direitos da Cri-

ança pela Organização das Nações Unidas(ONU) em 1959 (exceto na África do Sul),como significando igualdade de acesso para to-dos. Porém, ainda no interior das instituiçõesigualitárias, as crianças proletárias e pobrescontinuam a ter baixo desempenho e rendi-mento escolar, estando mais sujeitas à reprova-ção e evasão escolar, e tendo menos chances dechegarem à universidade. Assim, a escola re-produz a divisão social da sociedade em cate-

Movimentos Sociais

Para a legitimaçãodesse sistema de

exploração, faz-senecessário disseminara ideologia dominan-

te e de submissãopara as classes traba-lhadoras, utilizandopara isso os apare-

lhos ideológicos, den-tre os quais destaco a

escola.

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gorias sociais distintas, uma vez que o filho dooperário tem acesso a uma baixa escolaridade,constituindo mão-de-obra com pouca qualifi-cação, que será absorvida pelo mercado de tra-balho. Já uma minoria da população terá aces-so ao 3ºgrau, a alta qualificação e bons empre-gos e salários. Assim, a escola legitima umasituação já previamente existente, reforçando aideologia de que a criança pobre não consegueconcorrer, a nível de inteligência, com a crian-ça de uma família de boa situação sócio-econô-mica. Isto é, desenvolve-se a idéia de que opobre encontra-se na situação de pobreza por-que não tem competência de superá-la.

Segundo Connell (1995) a educação foi tra-zida para o contexto da assistência social atra-vés da correlação entre níveis mais baixos deeducação, de um lado, e índices de desempregomais altos e salários mais baixos, de outro. Sur-gindo assim, a idéia do "ciclo da pobreza" au-to-alimentado, no qual a precária situação só-cio-econômica da família tem forte influênciano baixo rendimento da criança na escola, queconseqüentemente, resulta no seu fracasso es-colar e dificuldade na inserção no mercado detrabalho, garantindo assim, a pobreza na pró-xima geração. Essa associação da pobreza àeducação é responsável pela segregação dosalunos pobres em relação aos demais alunos,que são considerados historicamente como in-feriores.

É inquestionável que uma cri-ança mal nutrida, ou que tem quededicar seu tempo ao mercado detrabalho, para ajudar no orçamen-to familiar, não terá um bom ren-dimento escolar e nem conseguirápermanecer muito tempo na esco-la. Porém, o que destacamos é queessa análise não leva em considera-ção outros fatores que contribuempara o fracasso escolar, como: adescontinuidade da Política Edu-cacional, ou seja, as constantesmudanças de programas e políticasfrente à mudança de governos; a

dificuldade e ausência de avaliação da PolíticaEducacional, até mesmo pela sua falta de con-tinuidade; padrões avaliativos que discriminame estigmatizam o aluno pobre; a precariedadeda formação dos professores; as poucas condi-ções materiais das escolas e do ensino, a inade-quação do currículo com relação à realidadesocial da criança e a própria função da escolaenquanto instrumento de reprodução ideoló-gica. Ou seja, desenvolve-se o estereótipo deque o fracasso escolar é de responsabilidadeunicamente da criança e de sua família, nãoanalisando que o próprio funcionamento daescola é responsável por essa seleção, de acor-do com os interesses e demandas do mercadode trabalho.

A escola, à medida que passa a ser a institui-ção responsável pela transmissão do saber, se-para o ensino da vivência e experiência dacomunidade, ou seja, ao contrário das formasiniciais de educação, a aprendizagem é separa-da da vida cotidiana da criança, conseqüente-mente, a mesma é uniformizada e condiciona-da a seguir as normas escolares. Os alunos de-vem ter um comportamento disciplinado e nãocrítico na escola, sendo o professor considera-do como o detentor da verdade, do conheci-mento e o aluno um simples receptor desse co-nhecimento. Freire (2003) destaca essa ques-tão, apresentando os dados de uma pesquisa,

que torna evidente a valorização eexigência da disciplina e bom com-portamento dos alunos:

"Fizemos uma pequena pesqui-sa com futuros professores sobreas qualidades que consideravamprimordiais para o bom desempe-nho escolar: as características aten-to, disciplinado e dócil obtiveram41% dos primeiros lugares. En-quanto as qualidades espírito críti-co e reflexão obtiveram apenas2%". (p. 48).

A criança experimenta assimum mundo de silêncio, imobilida-de e passividade, Gramsci dá uma

Movimentos Sociais

Os alunos devem terum comportamentodisciplinado e não crítico na escola,sendo o professor

considerado como odetentor da verdade,do conhecimento e o aluno um simples

receptor desse conhecimento.

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contribuição importante para a análise da esco-la enquanto aparelho de coerção e hegemonia.Ele destaca a questão de que a força verdadei-ra, que mantém um sistema, não reside nopoder coercitivo do Estado, mas na aceitaçãoda classe dominante de sua condição de subor-dinação e dominação. A filosofia da classedominante é transferida para a classe domina-da através da moral, costumes e normas, logo,o principal é compreender e analisar como aclasse dominante conseguiu conquistar o con-sentimento da classe dominada, dando ênfase àideologia e hegemonia. Ou seja, através dosaparelhos hegemônicos (como a escola, a fábri-ca e a igreja) a ideologia de dominação é trans-ferida para as classes subordinadas.

A escola através da atribuição de que o bomaluno é aquele que possui como principal ca-racterística à disciplina e obediência desenvol-ve e propaga a ideologia e o aprendizado deque o trabalhador deve ser disciplinado e umcidadão passivo. Ou seja, através da escola, oaluno vivencia a situação de obedecer a ordenssem questionar, mantendo-se disciplinado.Caso o aluno insista em questionar as normasinstitucionais ou manter-se indisciplinado, aescola lhe aplica castigos, o que constitui umaoutra face do poder da escola, que é a coerção.Podemos assim, analisar a escola como trans-missora da ideologia de submissão e passivida-de, não apenas pelo ângulo da ideologia, maspelo viés da coerção, à medida que o alunoindisciplinado e que não obedece às normasescolares sofre punição e castigo. SegundoFreire (2003):

"Imediatamente depois do maternal, acriança de seis anos é "parafusada" numa ca-deira dura para estudar palavrório durantehoras e horas. Será por acaso que a criançaem desenvolvimento, essa força da natureza,essa exploradora aventurosa, é mantida imó-vel, petrificada, confinada, reduzida à con-templação das paredes, enquanto o sol brilhalá fora, obrigada a prender a bexiga e os in-testinos, seis horas por dia, exceto alguns mi-nutos de recreio, durante sete anos ou mais?

Haverá maneira melhor de aprender a sub-missão? Isso penetra por músculos, sentidos,tripas, nervos e neurônios... Trata-se de umaverdadeira lição de totalitarismo. A posiçãosentada é reconhecidamente nefasta para apostura e para a circulação, e no entanto eisnosso homem ocidental com problemas decoluna, as veias esclerosadas, os pulmõesretraídos, hemorróidas e nádegas achatadas...Faz um século que vemos as crianças arras-tando os pés embaixo das carteiras, entortan-do o corpo e pulando como rãs quando asineta bate (sem falar dos 20% de escoliose).Esse tipo de manifestação é atribuído à tur-bulência infantil: nunca à imobilidade insu-portável imposta às crianças - a culpa é sem-pre da própria vítima. Não, não é um acaso.É um plano. Um plano desconhecido para osque o cumprem. Trata-se de domar. Do-mesticar fisicamente essa máquina fantásticade desejos e prazeres que é a criança" (p. 47).

A escola contribui para a universalização deidéias e costumes, uma vez que ela padronizaos alunos, todos devem ter a mesma vestimen-ta, o mesmo ritmo de trabalho, utilizando osmesmos livros, adquirindo os mesmos conhe-cimentos, fazendo os mesmos exames, nãohavendo lugar para a singularidade e diferençadessa criança.

A escola não considera as diferenças sócio-culturais dos alunos, pelo contrário os nivela,considerando que possuem os mesmos interes-ses e habilidades, muitas vezes não valorizandoo conhecimento prévio do aluno. Além disso,a escola é um mecanismo seletivo, à medidaque organiza determinados conhecimentos erequisitos para que o aluno mude seu nível es-colar, Freire (2003) destaca essa questão:

"Os outros como todo mundo sabe, en-quanto estiverem na ESCOLA OBRIGA-TÓRIA, devem repetir o ano. Mais tarde,quando o sistema escolar se diversifica, res-tam as divisões e subdivisões em níveis eseções em estabelecimentos menos exigentes(mas que fecham as portas do futuro). Fi-nalmente, quando o limite da escolaridade

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obrigatória é atingido, vem a evasão (o aban-dono da escola) para os que já acumularammuitas reprovações e já estão muito atrasa-dos". (p. 57).

Os conceitos que garantem a aprovaçãodesse aluno são de caráter abstrato e funcio-nam como critérios que garantem ou não o seuprogresso escolar. Muitas crianças não têm umbom rendimento escolar, por não se enquadrarnesse sistema de avaliação.

Através desse sistema de avaliação, a escolapossui um afunilamento em relação aos níveisescolares, possuindo taxas de repetência e eva-são escolar altas em cada um dos seus segmen-tos, constituindo o fluxo escolar odesenho de uma pirâmide. Nessapirâmide, a base é formada peloensino básico de 1ºgrau, ao qual amaioria da população tem acesso eque constituirá a mão-de-obrapouco qualificada, que trabalharáem troca de baixos salários ou for-mará o exército de reserva de mão-de-obra; o nível médio de ensino,ao qual tem acesso um númerorestrito da população pobre, com aesperança de ter uma qualificaçãoque lhe garanta melhores salários epossibilidades de emprego; e otopo da pirâmide (3ºgrau), quepermanece restrito a classe maisprivilegiada, sendo mínima a parcela de po-bres que conseguem atingir esse nível de es-colaridade. Não é do interesse da classe do-minante que todos tenham acesso a níveis al-tos de escolarização, pelo contrário, faz-senecessário que a maioria da população tenhaacesso apenas aos conhecimentos e qualifica-ções mínimas e que ingressem rapidamenteno mercado de trabalho ou nas filas de de-sempregados, que sustentam os baixos salá-rios e a submissão dos trabalhadores.

A escola também oferece aos seus alunos ocontato com a existência de uma hierarquia eque os mesmos devem respeitá-la, o que cons-titui um ensinamento de todas as hierarquias,

as quais futuramente, enquanto cidadão estarásubmisso. Essa hierarquia não é apenas no sen-tido do aluno ter que respeitar as autoridadesdo professor, diretor e demais funcionários daescola, mas também no que se refere ao conhe-cimento, ou seja, a escola e o próprio professornão consideram o conhecimento prévio queseus alunos possuem, bem como a realidadesocial em que eles estão inseridos, restringin-do-se a transmissão dos conhecimentos julga-dos como importantes e das formas mais tradi-cionais. Freire (2003) destaca que:

"É necessário que se reconheça que esteconteúdo artificial e gratuito da maioria das

lições escolares é uma das causas de de-sinteresse e falta de atenção por partedos alunos. Por outro lado, essa distân-cia entre o ensino e a realidade vai sen-do interiorizada, de tal maneira pelascrianças, que elas passam a renunciar afazer por si próprias as poucas ligaçõespossíveis entre escola e vida. Estes ado-lescentes que, ao passar pela porta daescola, só pensam em sua moto, só fa-lam de corridas, recordes, envenena-mento de motor, ficam muitas vezes ca-lados e desinteressados nas aulas de Fí-sica sobre velocidade..." (p. 63).

O contexto escolar é formadopor um sistema de normas, regrase controles que não são impostos

apenas aos alunos, mas aos próprios professo-res. Isto é, estabelece-se um círculo de pressãohierárquica, onde o diretor exerce pressão epoder institucional sobre o professor, que con-seqüentemente, exerce poder sobre seus alu-nos. Os professores têm influência direta sobreo aluno, sua personalidade e a maneira comoesse vai relacionar-se com o mundo, consti-tuindo também numa transmissão de valores,normas e ideologia. Nem sempre essa relaçãode poder ideológico é clara para os professores.A ideologia encontra-se justamente no campodo abstrato, funcionando para ocultar a domi-nação, a exploração capitalista e alienação aqual a classe trabalhadora é submetida. Logo, a

Movimentos Sociais

Não é do interesse daclasse dominante quetodos tenham acessoa níveis altos de esco-larização, pelo con-trário, faz-se neces-sário que a maioriada população tenhaacesso apenas aos

conhecimentos e qua-lificações mínimas.

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ideologia é o mecanismo que oculta o real,sendo transmitida para a população implicita-mente, de maneira imperceptível. Caso elaatinja o campo do concreto, torna-se a própriarealidade e é modificada. Lembrando que oreal não se restringe ao aparente, ao imediato,mas é o resultado das relações sociais.

A escola, nesse contexto, não valoriza apotencialidade da criança, estimulando seuprocesso de aprendizagem e o desenvolvimen-to de um olhar crítico acerca da realidade socialda qual faz parte. As crianças chegam às esco-las portadoras de desigualdades e diferenças,sendo inviável tratá-las de maneira igual ouuniformizada. Elas possuem condições mate-riais distintas de vida, diferenças de cultura,costumes e a própria diferença de atitudes eparticipação dos pais em relação à escola. Aescola, ao invés de valorizar essa diversidade,impõe a cultura e normas dominantes em de-trimento da própria cultura, costumes e conhe-cimentos da classe a qual faz parte a criança.Assim, a escola desenvolve mais uma vez oaprendizado da submissão e do sentimento deinferioridade, onde o professor é a autoridademáxima e o detentor do conhecimento. Dentrodesta hierarquia não cabe ao aluno questionarou discordar, desenvolvendo uma ideologia depassividade para evitar qualquer possibilidadede conflito. Surge a idéia de que o cidadão deveestar passivo frente às mudanças na sociedade,a fim de evitar o conflito.

A escola, enquanto aparelho hegemônicodesenvolve também o aprendizado do indivi-dualismo e da competição, ou seja, existe aproibição de que os alunos falem entre si nasala de aula, as notas e comentários do rendi-mento escolar são realizados no sentido decomparar os alunos, sempre valorizando aque-les que possuem os melhores rendimentos es-colares, conseqüentemente, privilegiando ossucessos e esforços individuais. Assim, maisuma vez a escola funciona ideologicamente afavor das classes dominantes, uma vez que pre-para futuros cidadãos para a competição domercado de trabalho.

Dentro dessa questão – o desafio de lidarcom a diferença – destacaremos o debate sobreas denominadas turmas de progressão, das es-colas do município do Rio de Janeiro.

As turmas de progressão e o desafio de lidar com a diferença.

A rede de ensino do município do Rio deJaneiro implantou no ano 2000 o 1º Ciclo deFormação. Ao longo do ano, a Secretaria Mu-nicipal de Educação constatou que havia mui-tos alunos dispersos pelas diferentes séries, queainda não haviam se apropriado da leitura e daescrita ou que ainda apresentavam uma série delacunas a serem preenchidas em sua formação.A partir de 2002 foram implementadas as tur-mas de Progressão, com o objetivo de encami-nhar estes alunos que, por algum motivo, apre-sentam algum tipo de dificuldade. Nestes ca-sos, o aluno não permanece todo o tempo naProgressão, mas somente o período necessáriopara superar suas dificuldades, retornando, emseguida, às turmas do ciclo. De acordo comFREIRE (2003):

"Parece que um dos mecanismos maisresponsáveis por fracassos escolares é o queé desencadeado por dificuldades de leitura."(p. 58)

A rede de ensino estabelece que a turmade Progressão I destina-se aos alunos queainda não se apropriaram da leitura e daescrita e a Progressão II para aqueles que,embora houvessem constituído conhecimen-tos básicos sobre a leitura e a escrita, neces-sitavam de um pouco mais de tempo para se-dimentar determinados conhecimentos, pa-ra, em seguida, ingressarem no ciclo de for-mação. Nesse sentido, não existe nenhumavinculação entre a Progressão I e a Progres-são II, não tendo os alunos à obrigatorieda-de de passar pelos dois grupos.

As turmas de progressão, pela natureza dasua proposta, são constituídas por alunosque convivem com o "fantasma" e estigmado fracasso escolar e representam uma diver-

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sidade sócio-cultural. Esse é um grupo quemerece nossos olhares e preocupações, nãosó com relação à possibilidade de integraçãodesses alunos ao fluxo regular, ao processode desenvolvimento e aprendizagem, masprincipalmente com relação ao desafio que aEducação enfrenta de intervir nesse campode múltipla diversidade sócio-cultural, bus-cando a inclusão social e a construção da Es-cola Cidadã.

O professor da Classe de Progressão temem suas mãos, além do compromisso de desen-volver nos alunos a possibilidade de apropria-ção da leitura e da escrita, o desafio de, dialeti-camente, aprender a lidar com a diferença ebuscar a construção de um trabalho voltadopara a questão da Cidadania, desenvolvendoestratégias pedagógicas pensadas de forma aminimizar as dificuldades no pro-cesso de aprendizagem, a estimu-lar a valorização da auto-estima e avisibilidade da criança como "alu-no de possibilidades" e não estig-matizado como fracasso escolar.

Inúmeros estudos e pesquisassão desenvolvidos com o objetivode analisar e problematizar as inú-meras causas do fracasso e proble-mas escolares. Historicamente, es-ses estudos atrelam a causa das bai-xas taxas de escolarização apenas àsituação de pobreza e carência dasfamílias. Logo, o fracasso escolarpermanecia centralizado na figuraindividualizada da criança, na justi-ficativa de que seu padrão nutricio-nal, biológico e cultural resultavaem dificuldades de aprendizagem. De acordocom Gentili (1995):

"Os pobres são culpados pela pobreza; osdesempregados pelo desemprego; os corrup-tos pela corrupção; os favelados pela violên-cia urbana; os sem-terra pela violência nocampo; os pais pelo rendimento escolar deseus filhos; os professores pela péssima qua-lidade de serviços educacionais. O neolibera-

lismo privatizou tudo, inclusive também oêxito e o fracasso social". (p. 22).

Embora a desnutrição e a situação de po-breza de grande parcela da população sejamindicativos de fracasso escolar, destaca-se operigo de culpabilizar a pobreza da família edo aluno pelo fracasso escolar, isentando fato-res e causas mais amplas, como o próprio mo-delo social e político-econômico adotado nopaís. Além disso, os problemas educacionaistêm causas no âmbito da própria Política edu-cacional, que é perpassada por medidas paliati-vas e isolada, não sendo resolvido no âmbitopolítico, social e econômico. De acordo comConnell (1995):

"É tradicional a crença de que o indivíduopobre não é como o restante de nós. Tal cren-ça afetou a elaboração dos programas de edu-

cação compensatória, sobretudo atra-vés da tese da 'cultura da pobreza', naqual a reprodução da pobreza de umageração para outra era atribuída àsadaptações culturais do indivíduopobre às suas circunstâncias". (p. 17).

Essa associação entre pobreza eeducação tem origem com a Teoriada Carência Cultural, que numavisão clínica e psicológica, centra-liza os problemas educacionais noâmbito individual, considerando ofracasso escolar o resultado dapresença de deficiências ou distúr-bios das capacidades e habilidadespsíquicas das crianças pobres, nãolevando em consideração o con-junto de fatores estruturais intrín-secos ao campo educacional. Se-

gundo Earp (1996):"(...) culpabilizar a pobreza da família e

do aluno é isentar o modelo sócio-econômi-co adotado no país. Esse grave problemasocial, além de não ser transformado emmero bode expiatório desse fracasso, não de-ve ser combatido com medidas paliativas ouisoladas, e sim com posições políticas, sociaise econômicas". (p. 111).

Movimentos Sociais

Embora a desnutriçãoe a situação de

pobreza de grandeparcela da populaçãosejam indicativos de

fracasso escolar, destaca-se o perigo

de culpabilizar apobreza da família edo aluno pelo fracas-so escolar, isentando

fatores e causas mais amplas.

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Essa visão clínica e psicológica do fracassoescolar foi sendo questionada e ultrapassada apartir de estudos desenvolvidos por Althusser(1974), Bourdie (1974), Passeron e Bourdie(1975), Establet e Baudelot (1971), que introdu-ziram uma dimensão política na análise do fra-casso escolar, pensando o papel da escola comoespaço de dominação cultural, no âmbito deuma concepção crítica da sociedade. Patto(1996) relata que esses autores forneceram:

"(...) as ferramentas conceituais para oexame das instituições sociais enquanto luga-res nos quais se exerce a dominação cultural,a ideologização a serviço da reprodução dasrelações de produção; na escola, o embaça-mento da visão da exploração seria produzi-do, segundo esta teoria, principalmente pelaveiculação de conteúdos ideologicamenteviesados e do privilegiamento de estilos depensamento e de linguagemcaracterísticos dos integrantesdas classes dominantes, o quefaria do sistema de ensino ins-trumento a serviço da manu-tenção dos privilégios educa-cionais e profissionais dos quedetêm o poder econômico e ocapital cultural". (p. 114).

A educação passou a ser anali-sada com base no método deinvestigação dialético, que buscaconstantemente uma visão dotodo e das contradições implícitas.Contradições essas, que favorecem por umlado à visão da educação como instituição quegarante o acesso à informação, conscientizaçãoe politização da população; e por outro, condi-ciona e reproduz os ideários de passividade edominação.

Logo, analisar criticamente as várias causase versões do fracasso escolar, presente ao longoda história da educação no país, requer a utili-zação do método dialético, destacando as con-tradições implícitas a essa instituição social.Segundo Patto (1996):

"O fracasso da escola pública elementar é

o resultado inevitável de um sistema educa-cional congenitamente gerador de obstácu-los à realização de seus objetivos." (p.343).

Atrelar o fracasso escolar apenas a situaçãode pobreza e desigualdade social é não levar emconsideração as múltiplas faces excludentes daeducação.

Na maioria das vezes, as turmas de pro-gressão concentram alunos com causas diversi-ficadas dos problemas de aprendizagem, rit-mos diferentes de aprendizagens e realidadessociais distintas, tendo acesso à mesma educa-ção massificada e sendo considerados como"incapazes", "crianças agitadas", "burras" e a"turma problema da escola". Segundo FREI-RE (2003):

"A escola trata a todos da mesma manei-ra, todos devem ter o mesmo ritmo de traba-lho, com o mesmo livro, o mesmo material,

todos devem aprender as mesmas fra-ses, saber as mesmas palavras.

Todos devem adquirir os mesmosconhecimentos, devem fazer os mes-mos exames, ao mesmo tempo" (p. 54).

Como discutimos anteriormen-te, a escola não leva em conta asdiferenças presentes no campoeducacional:

* Diferenças nas condições ma-teriais de vida - condições sócio-econômicas, o local de residência,o tipo de estrutura familiar e até

mesmo o tempo que os pais dispõe para parti-cipar da vida escolar da criança.

* Diferenças de culturas - a criança trazconsigo para o universo escolar diversas expe-riências, saberes, atitudes, valores, hábitos delinguagem, que refletem a cultura de sua famí-lia e comunidade.

* Diferença nas experiências adquiridas forada escola - as crianças e jovens convivem comexperiências e informações adquiridas na suacomunidade e grupo social.

* Diferença de atitude e participação dospais em relação à escola.

Os educadores não possuem em seu proces-

Movimentos Sociais

A educação passou aser analisada combase no método de

investigação dialético,que busca constante-mente uma visão dotodo e das contradi-

ções implícitas.

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so de qualificação e capacitação profissional enas próprias condições de trabalho elementospara o desenvolvimento de um trabalho peda-gógico voltado para essas diversidades. Nessesentido, em alguns momentos os professoresconsideram as turmas de progressão como um"castigo", um verdadeiro "presente de grego",reforçando a própria culpabilização da criançae, conseqüentemente, de sua família. Não per-cebendo as classes de progressão como um es-paço de possibilidade no projeto de construçãoda Escola Inclusiva e o próprio professorcomo mediador de qualidade, que interage apartir da história dessas crianças e constróicom eles a percepção do exercício da Cidada-nia, a partir da concepção do homem como su-jeito social e histórico. De acordo com BRES-SAN (2001):

"A inclusão social pode ser indicada co-mo um grande desafio a ser enfrentado pelaescola pública brasileira, pois esta só se tor-nará uma Escola Inclusiva quando garantir auniversalidade e a qualidade de seu atendi-mento". (p. 14).

O desafio de trabalhar com os alunos dasclasses de progressão é perceber criticamenteas características excludentes da Política Edu-cacional, acreditar que esses alunos podemaprender e seguir o curso regular da escolari-dade e, principalmente, o desafio de perceber,respeitar e intervir nas diferenças e diversida-des sócio-culturais.

Pensando a Educação de forma ampla ecom base nesta proposta de contribuição paraa construção de um cidadão crítico e conscien-te de seu papel individual e coletivo, a escolaprecisa ensinar e aprender, antes de tudo, a res-peitar a diferença e a diversidade.

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* Este artigo foi apresentado numa palestra realiza-da no dia 09/07/04 no I Encontro Estadual de Ser-viço Social e Educação, organizado pela comissãode Educação do Conselho Regional de Serviço So-cial (CRESS) - 7ª Região.

Movimentos Sociais

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE DF, Ano XIV, Nº 34, outubro de 2004 - 9999

Os últimos tempos têm sido realmente difí-ceis.

Além das sucessivas derrotas no campo dapaz mundial, temos enfrentado uma outra bata-lha no interior do movimento social e libertá-rio: o relativismo da autonomia política, ex-pressa, primeiramente, na quase absoluta buro-cratização ou adequação dos movimentos

sociais frente ao sistema de dominaçãoNeste texto, dialogo com o movimento fe-

minista latino-americano em sua condição desujeito total, analisando experiências históricasde sua representação e práxis, nos últimos dezanos. Com isto, procurei apresentar a historici-dade da categoria autonomia no interior destemovimento social, enfocando o processo de sua

Feminismo e liberdadeTelma Gurgel

Doutora em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba- professora do departamento de Serviço Social da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte e coordenadora

do Laboratório de Pesquisa em Serviço Social da UERN

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE110000 - DF, Ano XIV, Nº 34, outubro de 2004

Movimentos Sociais

resignificação na trajetória do feminismo e asprincipais implicações, sob o ponto de vista dapolítica feminista para a região.

Questões de autonomia para a práxis feminista

Como elemento demarcatório, a noção deautonomia estabelece os nexos necessários àconstituição de todo sujeito coletivo com múl-tiplos condicionantes de opressão e discrimi-nação, como é o caso do feminismo.

Isto porque, além de propor uma ampliaçãosubstancial do sentido atribuído ao sujeito, namedida em que insiste na apresentação de umadas contradições da universalidade abstrata, aautonomia é freqüentemente relacionada aoquesito liberdade.

O debate e o desdobramento estratégicosgerados em torno da autonomia, sobre o sujei-to e a concepção de práxis, no interior do femi-nismo, constituem-se peça chave para o enten-dimento de seu dilema atual, em torno darepresentatividade coletiva de suas ações.

Ao longo do tempo, a noção de autonomia,para o feminismo, passou por importantes re-significações, chegando a desfigurar-se no en-frentamento com a questão do Estado. Suaabordagem deve levar em consideração pelomenos três aspectos: a noção de liberdade, o re-conhecimento da opressão e a ação coletiva dasmulheres, como elementos que conferem umnexo interno as variadas dimensões ontológicasdos sujeitos de ação da práxis feminista.

Nesse sentido, o termo autonomia assumediversas conotações que refletem, primeira-mente, o nível de envolvimento do feminismocom o contexto social de sua realização e a suapresença, como movimento social e de trans-formações culturais.

Toraine (1984) caracteriza os movimentossociais como possuidores de três princípios : oprincípio da identidade- o reconhecimento daespecificidade; o princípio da oposição- identi-ficação do adversário; e, por fim, o princípioda totalidade, indicando um projeto alternati-

vo, um contraprojeto desenvolvido pelos su-jeitos em ação.

Sendo assim, o feminismo como movimen-to social procura o estabelecimento de novaspráticas sociais para homens e mulheres, supe-rando as relações assimétricas entre os sexos.

Assumindo o conceito de movimentos so-ciais apresentado por Sader (1988 : 53) comouma associação entre sujeito, projeto e autono-mia, a leitura do feminismo pode ser feita apartir das ações nas quais esse movimento searticula a aspectos da realidade social nas quaisse objetiva a ação humana.

Na dinâmica dos novos movimentos soci-ais, o feminismo evidenciou o aspecto multidi-mensional e hierárquico das relações sociais,abordando as interfases entre o macro e o mi-cro nas quais se consuma o poder.

Para Calado (2003), essa perspectiva se insereno horizonte da utopia libertária como um"processo de recuperação e permanente buscade um desenvolvimento omnilateral da condiçãohumana." (CALADO, 2003 :85). Com isto,posso destacar que os novos movimentos so-ciais, mesmo se concentrando em questões espe-cíficas, em suas condições de opressões particu-lares, trazem em comum a idéia de lutar contra aalienação em todos os aspectos da vida social.

O feminismo como movimento social atuana dialética da oposição/construção. As mu-lheres, como força organizativa, desenvolvemações reivindicativas, marcando a especificida-de do movimento e ações de ordem políticamais geral que demarcam a própria organiza-ção da sociedade.

Assim, por exemplo, as feministas latino-americanas dos anos de 1960 - 1970 se envolve-ram em projetos mais subterrâneos de resistên-cia às ditaduras militares na região (SARTI :1988) do que mesmo em lutas propriamentefeministas.

Na etapa seguinte, com o fim das ditadurasmilitares no continente, nos anos de 1980, ob-serva-se a presença das mulheres nas democra-cias emergentes e o conceito de autonomiapassa a ser relativizado.

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Essa relatividade se dá entre a autodetermi-nação e a subjetivação de uma identidade femi-nina baseada na invisibilidade de suas especifi-cidades. Transformando as mulheres em não-sujeito em sua relação direta com as estruturasdo Estado.

Com uma hegemonia ideológica marcadapela individualização e mercantilização dossentimentos e valores, num contexto de descen-so da organização popular e libertária, o femi-nismo dos anos de 1990 é marcado por um pro-cesso de transferência de campo de representa-ção e tomada de decisão, sem, com isso, se con-seguir a construção de um coletivo total, o qualatuasse com as diversas dimensões de opressãoque marcam a experiência das mulheres.

Assim, nos anos de 1990, a significação atri-buída à autonomia pelo feminismo desloca-seda questão da especificidade da autodetermi-nação das mulheres e ganha o terreno da insti-tucionalidade.

Este momento marca uma nova etapa naqual da noção de autonomia como ruptura devalores simbólicos e normativos e do projetode um viver livre e autodeterminado, construí-do na individualidade e no coletivo político ésuperada, centralizando-se os debates dora-vante no trinômio financiamento, instituciona-lização e representatividade.,

Gostaria de fazer aqui, uma breve imersãona historicidade do conceito de emancipação,dada sua centralidade em algumas correntesnas ciências sociais e do movimento feministalatino-americano.

Emancipação e liberdade

Usado inicialmente no século XIX, o con-ceito de emancipação, referia-se abolição dacondição de pária do povo judeu, da comuni-dade negra norte-americana, das mulheres, en-tre outras expressões de setores excluídos daarena política.

Sua hermenêutica nos sugere, portanto,uma permanente reflexão com o conceito de li-berdade, seja no sentido do liberalismo clássi-

co de Hobbes, na Inglaterra do século XVII,no qual a liberdade estava relacionada a ausên-cia de coerção. Neste sentido, a realização demeus atos, está em estreita ligação com a ob-servância do "outro".

Seja, na concepção marxista que, inspirada natradição filosófica dos clássicos, como Kant,Hegel, Spinoza e Rousseau, considera a liberdadecomo processo de autodeterminação coletivaporque "consiste na imposição [...], socialmentecooperativa e organizada docontrole humano [...] da natu-reza, como sobre a condiçãosocial da produção." (BOT-TOMORE, 1988 : 124).

Articulada com a noçãode liberdade, a emancipaçãofoi facilmente incorporadano discurso dos movimen-tos de libertação nacional etem influenciado, historica-mente, o feminismo latino-americano. Em vários textos pode-se constatara utilização dos conceitos de emancipação,libertação e autodeterminação como sinôni-mos no contexto da crítica a condição social-mente invisível das mulheres na história.

Para a União Brasileira de Mulheres1, posi-ção feminista que se autodefine como emanci-pacionista, esse processo de dá através daemancipação da mulher como sujeito indivi-dualizado e como parte da humanidade, levan-do-se em conta todas as suas relações sociais.

Segundo Valadares (1980) :A corrente emancipacionista [...] entende

e analisa a especificidade da opressão da mu-lher como fruto da perda da liberdade deproduzir e consequentes derrotas no planopolítico- jurídico e [...] a opressão específicatem íntima relação com o processo de surgi-mento da propriedade privada. ( 1980 :47).

Com base no reconhecimento da opressãoespecífica das mulheres, o movimento feminis-ta desenvolveu mecanismos de operacionaliza-ção de suas ações e espaços de intercâmbio e

Assim, nos anos de 1990,a significação atribuída àautonomia pelo feminis-mo desloca-se da questãoda especificidade da au-todeterminação das mu-lheres e ganha o terrenoda institucionalidade.

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reflexão coletiva de sua política no continente. Dentro estes espaços, destacam-se os En-

contros Feministas Latino-americanos2 nosquais muitas propostas de liberdade foram de-fendidas entrelaçando a exigência da autono-mia com o reconhecimento da singularidade.

Com esses propósitos de autonomia e sin-gularidade, os Encontros têm sido marcadospela polarização das posições no interior dofeminismo que trazem, por sua vez, uma leitu-ra política do contexto de atuação do movi-mento e a definição de estratégias e táticas querepercutem, primeiramente, no papel social domovimento na região.

No geral os debates nos Encontros se cen-tralizam na diversidade de expressões da polí-tica feminista na América Latina, na problemá-tica do reconhecimento da representatividademúltipla, na contradição indentitária das orga-nizações não-governamentais feministas que secolocam como representantes de grupos de

mulheres de base e nos meca-nismos de acesso a política definanciamento para projetoscom mulheres no continente.

O questionamento emtorno dos meios de financia-mento das ações feministas nocontinente na década de 1990centraliza-se na origem dosrecursos e no programa insti-tucional da fonte financiadoraou de cooperação.

Questiona-se, principal-mente, o fato de parcela domovimento na região estabe-lecer parcerias ou programaspontuais com as mesmas ins-

tituições responsáveis pelo contexto de exclu-são e pobreza no continente, em particular,entre as mulheres, base social de suas açõespolíticas.

Esse tem sido o eixo de crítica do feminis-mo autônomo, no qual considero importantedestacar:

[...] A autonomia não é apenas autogestão

financeira. Nossa posição crítica aos finan-ciamentos, é enquanto prática social, quantoao conteúdo, quanto às propostas que sesubordinam aos financiamentos e os agentesfinanciadores [...] através das formas como setem manejado os financiamentos das ONGsinstalou uma relação utilitária do movimen-to feminista [...] quando se negocia nossaspobrezas, nossa situação de mulheres, com oBanco Mundial, com os governos, com osditadores e repressores. (Relatório do VIIEncontro Feminista Latino-americano e doCaribe, República Dominicana, 1999: 25).

Sobre isso, constata-se no encontro de 1993a preocupação em questionar "[..] que os pro-jetos tenham que se adequar aos organismosfinanceiros, mudando seu conteúdo" (1994:47), como tônica de seu debate interno.

Essa problemática é focalizada na maioriados estudos sobre o movimento na AméricaLatina, conforme Alvarez (1998) e Castro(1997), como um dos indicadores do processode "onguização" do feminismo e sua provávelperda de autonomia para a realização de açõescom maior combatividade e radicalidade.Apesar de se reconhecer a existência de práti-cas diferenciadas entre as ONGs em relação aessa política de adequação discursiva.

Dentre essas práticas, a presença de algumasONGs constituídas por feministas socialistasou feministas de esquerda, que trazem em suasconstruções identitárias a recusa em firmarconvênio com organismos ou programas definanciamento atrelado aos ajustes estruturaisno continente, é algo que considero importan-te ser divulgado.

Como conseqüência direta dessa primeiradiscussão e segunda dimensão em que se baseiao debate sobre a autonomia no feminismo lati-no-americano, encontra-se o fenômeno da ins-titucionalização do movimento :

[...] a cooptação para a institucionalizaçãodo feminismo vem devastando consolida-ções construídas pelo movimento. Sobretu-do quando o feminismo demanda ao Estado

Questiona-se, principal-mente, o fato de parcelado movimento na regiãoestabelecer parcerias ouprogramas pontuais comas mesmas instituiçõesresponsáveis pelo contex-to de exclusão e pobrezano continente, em parti-cular, entre as mulheres,base social de suas açõespolíticas.

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e outras instituições o decreto da desaliena-ção das mulheres, base de seu sustento. Parte[...] do movimento entrou numa onda pro-longada de desgaste, de pactos com a estru-tura de poder e, portanto, de debilitamentode sua rebeldia e do conformismo com o"possível " [...]. ( Relatório do VII EncontroFeminista Latino-americano e do Caribe,Chile, 1996 : 48),

Nesse contexto, autonomia relaciona-se aum projeto político, implicado numa opção desujeito e práxis feminista de transformação darealidade. Consolidando-se na contrução deuma representatividade.

Mesmo que a questão em torno da repre-sentatividade no feminismo apresente-se emvárias perspectivas, inicio sua abordagem comuma cartografia do VII Encontro Latino-americano, em 1996, evidenciando a disputado projeto feminista, em pelo menos três gran-des campos, dimensionados a partir da concep-ção de feminismo, da relação com o Estado ecom as agências de financiamento: as autôno-mas, as feministas da agenda radical e as ne-nhuma nem outras.

Segundo Gobbi (1997: 02), a polarização noencontro, impossibilitou uma arena políticacomum e levou a que se desenvolvessem trêsencontros paralelos. Para esta afirmação, a au-tora se apoia em algumas avaliações apresenta-das, como as palavras de Margarida Pisano,representante da corrente das autônomas, aseguir:

[...] Este foi o Encontro mais político quetivemos. Avaliamos realmente as políticasque estamos realizando. Quem faz a políticadas instituições já não nos representa a todas.Era uma coisa muito patriarcal tomar a re-presentação de todas como se não existisseeste outro mundo inquieto que não está con-tente com o modelo de desenvolvimento,que está em rebeldia [...].

Destacou também o depoimento de GinaVargas, articuladora da agenda radical, abaixo:

[...] espero não me acostumar nunca aesta forma de fazer política dentro do movi-mento[...] esta forma de fazer política não é anossa, os fundamentalismos são perigosos eisolantes é por isso que o feminismo que euquero é dialogante e propositivo, que a auto-nomia [...] não passa por construir espaçosauto-referidos mas que se sustenta em expli-car uma proposta de transformação própria,independente, centrada nos interesses dasmulheres, a partir do qual, negociar, con-frontar, fazer alianças.(GOBBY, 1997:03).

O encontro sintetizou o debate iniciado em1993, sobre a política feminista mais adequadapara a região. Nele, considerou-se como obje-tivo principal a consolidação do movimentofeminista como proposta subversiva em todosos espaços da vida.

Apesar dessa declarativa condição de sujei-to, a representação política do feminismo queconseguiu se destacar na estrutura midiática,garantindo acesso a variadas fontes de finan-ciamento, foi justamente aquela na qual,segundo a perspectiva das autônomas, realiza-se o trajeto oposto à consolidação do feminis-mo como política de subversão. Com isto,consolidou-se a polarização política, na qualquestões em torno da representação coletivado feminismo na América Latina ganharamcentralidade.

O enfrentamento dessa contradição entre aidentidade de subversão e uma experiência de"cooptação" pressupõe uma diversidade de in-teresses no interior do feminismo que, confi-gurando-se como totalidades, constituem o fe-minismo como um coletivo total.

Autonomia e liberdade: a construção do coletivo total

Uma atitude, imprescindível, para a aborda-gem da diversidade, no feminismo, é se ultrapas-sar a pura e simples divisão de tendências, com-preendendo a diversidade como uma cartografiade sujeitos e práxis de transformação.

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Sendo assim, o reconhecimeno das singula-ridades dos sujeitos feministas ao longo da his-tória, permite a identificação de diversas for-mas "do ser e do fazer feminista", que unifica-das podem dar conta da complexidade do mo-

vimento na região, ou seja, daatuação específica de seusdiversos grupos e organiza-ções.

A noção de autonomia,durante a última década,acompanhou os diferentes su-jeitos. No início dos anos de1990, discutia-se autonomiacom referência a práticas or-ganizativas do mesmo campode práxis. Debatia-se entre ofeminismo, o movimento demulheres, os partidos políti-

cos de esquerda ou centro-esquerda e as orga-nizações de esquerda clandestinas. Debate que,de certa forma, ainda continua predominante,só que, desta feita, com um discurso menosexplícito que à época citada.

No relatório do V Encontro, em El Salva-dor, 1990, identifiquei pelo menos três aborda-gens da autonomia. A primeira, como oposi-ção a centralidade de poder:

[...] outro dos nós fundamentais é a rela-ção entre os centros feministas e o movi-mento de mulheres. Os centros promovema produção de conhecimento e a consolida-ção do movimento de mulheres através dediversos programas de ação. [...] seu traba-lho, [...] tem produzido em alguns casos,problemas de identidade. Se estabeleceuuma distância entre a proposta voltadapara fora e o processo de crescimento in-terno, pessoal e coletivo. Criou-se o mito dapromotora à serviço do movimento de mu-lheres, ao confundir a dinâmica de ambas asexpressões e submetê-las à lógica de umadelas. (Relatório do V Encontro FeministaLatino-americano e do Caribe, Argentina,1990: 07).

Uma segunda perspectiva como constituti-va do sujeito coletivo:

[...] resolvendo as falsas contradições en-tre as lutas pela subsistência e da opressão degênero. A qualidade de vida das mulheresdos setores populares tem tanto que ver coma situação econômica e dos serviços, comocom a sua dignidade como sujeito, com aviolência, com o aborto, com a democracia ecom a participação. (Relatório do V Encon-tro Feminista Latino-americano e do Cari-be, Argentina, 1990: 15).

E a terceira, como oposição à dupla militância:

[...] é necessário construir espaços femi-nistas alternativos, de poder solidário, umfeminismo autônomo, que sustente uma re-ferência político-ideológica clara que orientee ajude a resolver os problemas que lhe apre-sentam as mulheres que assumem postos dedecisão, nas estruturas existentes; que formeas mulheres que não se prestam ao uso departidos políticos e possam incorporar novasproblemáticas. (Relatório do V EncontroFeminista Latino-americano e do Caribe,Argentina, 1990: 25).

Nas duas primeiras caracterizações, predo-mina a idéia de um sujeito constitutivo, tendocomo prerrogativa a vinculação com os setorespopulares. A noção de autonomia se desenvol-ve a partir do debate sobre as demandas femi-nistas e às das mulheres. A questão central é oprocesso de popularização do feminismo e asalterações programáticas que lhe são decorren-tes.

A principal decorrência deste processo, semdúvida, é a diversidade expressa na noção desujeito feminista:

A realidade de marginalidade em que vi-vem as mulheres trabalhadoras demonstra anecessidade de uma mudança estrutural nosistema de vida patriarcal para poder assegu-rar o melhoramento das condições das mu-

O reconhecimeno das sin-gularidades dos sujeitosfeministas ao longo dahisória, permite a identi-ficação de diversas for-mas "do ser e do fazerfeminista", que unificadaspodem dar conta da com-plexidade do movimentona região.

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lheres e da sociedade, assim como sua auto-estima. Este caminho se inicia com a conso-lidação dos grupos de mulheres que buscamseu espaço em nível local, para que a partirdeste lugar possam ver seus problemas co-muns e sua situação dentro da sociedade edespertem sua solidariedade para buscar emconjunto- como protagonistas- as soluções.(Relatório do V Encontro Feminista Latino-americano e do Caribe, 1990 : 26).

Ao pensar sua autonomia, o feminismopressupõe uma composição identitária que lhepermita realizar o caráter coletivo de sua re-presentatividade.

Para o termo identidade, aproximei-me daperspectiva de Hobsbawn (1996), como umconceito surgido na Sociologia e na CiênciaPolítica, em meados dos anos 60. Período demanifestações políticas protagonizadas poragentes sociais que representavam variantesdos sujeitos da história que até então se tinhaconhecimento: o movimento feminista, o mo-vimento negro e o movimento gay.

Estes, sendo uma reação política e culturalque marcou profundamente uma geração, rea-firmaram o receio ante pensamentos totalitá-rios, esquemas fechados de interpretação e con-dições normatizadoras da natureza humana3.

Para Hobsbawn, o conceito de identidadecoletiva, inaugurada por estes novos sujeitos,aporta-se em quatro condições:

As identidades coletivas se baseiam nãono que seus membros têm em comum: podeser que tenham muito pouco em comum,exceto não ser "os outros". [...] as identida-des. [...] são intercambiáveis ou se podemlevar em combinação, e não únicas e como seestivessem pregadas ao corpo. [...] as identi-dades se deslocam de um lado e podem mu-dar, se necessário, mais de uma vez. [...] aidentidade depende do contexto, ao qualpode alterar. (HOBSBAWN, 1996: 90).

Essa noção de identidade apresenta uma

idéia ampla de sujeito da história e da subjeti-vação do contexto social como perspectivapolítica. Como exemplo, retomo alguns pon-tos destacados por Nye (1995) sobre Olympede Gouges e por Flora Tristan (1986), queapresentam a especificidade da situação dasmulheres e, ao mesmo tempo, refletem sobre auniversalidade dos direitos entre homens emulheres.

Guardadas as proporções temporais e de in-teresses, os dois escritos não foram motivadosapenas pelo ideário da sociedade da luzes e dostempos modernos, mas também por umanoção de identidade coletiva das mulheres cen-trada na igualdade e liberdade.

Nye (1995), citando a Declaração PelosDireitos das Mulheres e da Cidadã, elaboradapor De Gouges em 1791, destaca fragmentosnos quais se visualiza a auto-determinaçãocomo direito das mulheres:

1- Qualquer distribuição dos bens sociaisdeve depender da utilidade comum, incluin-do as mulheres.

2- A associação política deve conservaros direitos naturais [...] a autoridade é confe-rida ao povo,[...] e uma lei, para ser válida,deve ser expressão de vontade geral.[..]Certamente as mulheres são também povo,têm desejos, e, portanto, direitos naturais.

3- A autoridade governamental só é váli-da quando se trata de ações nocivas[...] e aliberdade de fala e pensamento deve ser asse-gurada."( NYE, 1995 : 27).

Partindo dessa idéia, a identidade das mu-lheres se apoiava na reivindicação ao direitonatural de cidadania, garantido pela sociedademoderna a todos os cidadãos considerados li-vres. A convocação de De Gouges às mulhe-res, no sentido de refletirem sobre as vitóriasconquistadas pela Revolução e lutarem contrasua permanente exclusão dos direitos civis,pode ser considerada como processo da cons-trução do sujeito feminista na sociedade mo-derna.

Em outra perspectiva, mas no mesmo sentido

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de ocupação da política pelas mulheres, o Planode União Universal dos operários e operárias,elaborado e publicado por Flora Tristan, em1843, período de grandes revoltas populares e deampliação das organizações de trabalhadores. Otexto inclusive pode ser considerado contempo-râneo à publicação do Manifesto Comunista porMarx e Engels em 1848.4

Flora Tristan descreveu a condição deopressão e de violência contra as mulheres nasociedade européia oitocentista em três pilaresde sustentação: a lei, a igreja e a filosofia. Paraela, essas instituições constroem uma razão enatureza feminina que contribuem para a exclu-são das mulheres dos direitos universais, reper-cutindo negativamente para a humanidade.

Afirmara Tristan: "a inferioridade da mulher,uma vez proclamada e posta como princípio,vejam que conseqüências desastrosas daí resul-tam para o bem estar universal de todos e de to-das na humanidade." ( TRISTAN,1986: 191).

Mesmo que tenha apresentado seus argu-mentos no Plano de União sem qualquer críti-

ca à divisão sexual do traba-lho, as idéias de Flora Tristansintetizam as necessidadesobjetivas das mulheres, emseu acesso à educação e à par-ticipação política, contribuin-do, com isso, para uma socie-dade de igualdade para os tra-balhadores e as trabalhadoras.

O elemento que se pode destacar comomediador dessas perspectivas de identidades éa idéia de um sujeito político de ação, construí-do nas totalidades parciais da condição deopressão das mulheres e vinculando à totalida-de social na qual sua atuação política auto-reflexiva tem um sentido de práxis5.

Esta reflexão também esteve presente nofeminismo francês durante os anos 1970, como Movimento de Libertação da Mulher - MLF,que se autocaracterizava como um grupo demulheres que se consideravam diferentes, mas,com condição de pensar uma política a partirde suas próprias especificidades.

A coexistência de pontos de vistas que per-meou a identidade do MLF e seus desdobra-mentos organizativos é um dos pontos chavessobre os quais se pode concentrar estudos so-bre a composição social do feminismo e de suaconstrução como coletivo político.

Uma análise das expressões de sujeitos, ex-postas acima, indicam que o feminismo ao in-corporar a autonomia, como parte constituin-te de sua ação política imprimiu novas referên-cias que materializam a cidadania das mulhe-res, não como algo que precisa ser recuperado,mas como realidade que deve ser inventada,criada, formulada.

Para tal empreendimento, a semântica dotermo autonomia ganha a sua força de expressão.Pois, ao propor a criação de uma cidadania paraas mulheres, a teoria feminista parte de um acon-tecimento que, situado fora da ordem dominan-te de pensar, produz a ruptura com a noção dasmulheres como não-sujeitos da história.

No final do século XX o feminismo naAmérica Latina foi marcado por um desloca-mento de poderes e de representatividade. Deum lado, encontra-se uma tentativa de consti-tuição de um feminismo autônomo, tendo co-mo uma de suas singularidades a formação decoletivos de lésbicas e negras como hegemôni-cos em sua constituição.

Outra perspectiva é representada pelasONGs e redes institucionalizadas do feminis-mo, que têm como estratégia uma interaçãocom planos governamentais, priorizando osmecanismos de definição e de monitoramentode políticas para as mulheres. As feministas deadvogacy.

Outro projeto de feminismo, construídopelas ONGs híbridas ou ONGs- movimento,considera importante manter-se no trânsitodas estruturas governamentais e agências dedesenvolvimento social, devendo definir-secritérios de aproximação baseados num proje-to social mais amplo.(ALVAREZ, 1998).

A questão que se coloca, entre estas diver-sas concepções de feminismo, refere-se a acei-tação ontológica da outra e a abertura para a

No final do século XX ofeminismo na AméricaLatina foi marcado porum deslocamento de po-deres e de representativi-dade.

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construção de campos de representações múl-tiplas. Com isto considero importante desta-car, que uma das problemáticas centrais dofeminismo na América Latina, é a coexistênciatensionada entre seus objetivos e a dificuldadede se estabelecer novas práticas sociais, pauta-das numa práxis de solidariedade.

A percepção desta problemática evidencia acontradição que permeia a noção de autono-mia no seu interior: a sua construção comoprocesso individual e coletivo e sua inviabiliza-ção, ao predominar hegemonia de posições.

Pensei sobre esta contradição em pelo menosdois momentos específicos da minha pesquisade doutorado6: o primeiro, durante minha par-ticipação na reunião nacional da Marcha, emJoão Pessoa, em abril de 2000 e o segundo du-rante a passeata pela direito ao aborto, ocorridano II Fórum Social Mundial7, em 2002.

Na ocasião do primeiro momento, encon-trava-me na referida reunião, com cerca de 50mulheres, representando coletivos feministasou mistos de todo o Brasil, os quais compu-nham a base de sustentação e divulgação daMarcha Mundial de Mulheres -MMM8, emnosso país.

O objetivo da reunião era construir umaagenda nacional para o movimento, dentro doseixos mundiais de combate à pobreza e à vio-lência sexista, definindo uma ação das mulhe-res para 17 de outubro, o dia mundial de mani-festação da Marcha.

Nesse mesmo dia haveria uma manifestaçãointernacional em Nova York para a entrega dosabaixo-assinados coletados em todo o mundo.Estes eram dirigidos aos representantes dasprincipais instituições financeiras que coorde-nam as políticas de reestruturação econômicaem curso sobre a égide do neoliberalismo e dainternacionalização dos mercados.

Durante os debates e trabalhos em grupos,consolidava-se a idéia de uma ação de maiorradicalidade na conjuntura, como a ocupação,pelas mulheres, de algumas sedes públicas, talqual a do Instituto Nacional da SeguridadeSocial.

Mesmo sendo observado que existia umasimpatia das participantes por essa proposta,parte da coordenação nacional da Marcha de-senvolveu uma contra-argumentação, conse-guindo propor um acordo: nos Estados ondefosse possível, a ação seria realizada.

Avalio que, em função da falta de apoio dacoordenação, em termos de articulação nacio-nal das feministas para a construção da pro-posta de confronto radical com a estrutura doEstado, a proposta foi substituída pela realiza-ção de atos em frente às representações locaisdas instituições financeiras, para as quais sedirigia o texto do abaixo-assinado mundial.Nas cidades onde não existiam, as manifesta-ções foram marcadas pelo espontaneísmo cria-tivo do feminismo9.

O segundo momento da pesquisa em que seevidenciou a contradição entre as duas dimen-sões da autonomia : o individual e o coletivo,foi na passeata pelo direito ao aborto, ocorridano FSM, em 2002.

Esse episódio originou-se da convocatóriadas feministas do "planeta fêmea"10 às femi-nistas brasileiras da Marcha, decididas a nãoparticipar das atividades promovidas por essegrupo.

Entretanto, o dilema da historicidade veio àtona: como ficar de fora de uma manifestaçãoem defesa de um dos temas mais caros ao femi-nismo? Por outro lado, como participar semdar "representatividade" ao campo que seconstitui como antítese do que se defende en-quanto feminismo de esquerda/socialista ?

Após uma rápida conversa entre algumascoordenadoras da Marcha, decidiu-se organi-zar um cortejo na manifestação. Durante todoo trajeto, ficou visível a divisão das alas. Abrin-do a manifestação estavam os grupos de tea-tros, bonecos e as participantes do planeta fê-mea em seguida, as feministas da Marcha.

Destaco, a partir dos dois episódios relata-dos, que a autonomia, enquanto exercício daautodesignação, encontra-se bloqueada em suaexistência criativa (SARTRE :1996). Pois, noprocesso de sua construção coletiva, depara-se

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com conflitualidades internas, geradas pelaausência de estruturas democráticas de debatese de decisões que possibilitem "a quebra dashierarquias estabelecidas pelo status quo", co-mo afirmava Rosa Luxemburg, citada porTragtemberg (1991 : 44).

Nesse sentido, destaco as críticas aos mode-los de organização feminista. De um lado, há arelação ONGs, agências e movimento, na qualeste permanece em terceira dimensão de podere as ONGs confundem o papel de assessoria erepresentatividade.

De outro, tem-se a relação ONGs/ movi-mento de mulheres/ movimentos sociais, naqual, apesar do movimento de mulheres situar-se no campo da mediação dos interesses, esse éimpulsionado, em alguns momentos, a desen-volver ações e reivindicações políticas, que lheparecem exteriores. Ou não se constituem co-mo campo de interesse imediato e orgânico,surgido de suas experiências e tradições orga-nizativas de mulheres.

Essas críticas precisam ser enfrentadas paraa superação dos impasses de estratégias dofeminismo no que se refere a se constituir co-mo uma proposta utópica de um sujeito livre.

O anseio pela constituição de um coletivoque consiga superar os impasses criados pelahistórica composição dos campos no interiordo feminismo é evidente nos seguintes trechosde relatórios de encontros:

Reconhecer que na prática política femi-nista nossas opções e elaborações estão eminteração com as diferentes interpretações darealidade, quer dizer, que não só nos diferen-ciamos por nossas práticas, mas, pela formaque concebemos a utopia transformadora doconjunto da sociedade. (Relatório do V En-contro Feminista Latino-americano e do Ca-ribe, 1990: 42)

Ou ainda posso destacar:A política feminista [...] é uma proposta

que tem uma construção democrática comoterreno fundamental para sua expansão e de-senvolvimento, em confronto aberto com as

dinâmicas de exclusão e discriminação, emconexão e solidariedade com o conjunto delutas e expressões da resistência frente aos tra-ços patriarcais, excludentes e autoritários, detoda nossa sociedade e de todos nossos esta-dos. (Relatório do VII Encontro FeministaLatino-americano e do Caribe, 1996, 27).

Concluo minhas reflexões, desse texto, afir-mando que o feminismo pode ser caracteriza-do como coletivo total, ao desenvolver meca-nismos de participação direta e representativaem suas instâncias de decisões, construindopolíticas que realizem a maior potencialidadedo indivíduo: a sua condição de sujeito.

O feminismo como coletivo total propor-ciona, portanto, a inclusão horizontalizada dasdemandas específicas que compõem o sujeito"mulheres", tendo como princípio fundador asuperação de sua reificação, apresentando his-toricamente as mulheres em sua diversidade.

Creio que em tempo de adversidade, comoo que enfrentamos na atualidade, é fundamen-tal o alargamento dos espaços de democraciade forma que a totalidade, do sujeito feminista,expressa no reconhecimento da diversidadedas opressões e na sua vinculação com um pro-jeto de liberdade e emancipação, consolide apotencialidade criativa das mulheres, como su-jeito da história e como construtoras de umanova ordem.

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Notas

1. A UBM foi fundada em 1988, conta com certa de1.200 ativistas em todo o país, é uma entidade comatuação nacional, responsável pela editoração da re-vista Presença de Mulher.2. Os Encontros Feministas Latino-americanos edo Caribe realizam-se desde 1981 e buscam a cria-ção de espaços propositivos da política do feminis-mo na região. Atualmente, ocorrem numa periodi-cidade de três anos, estruturando-se com inscriçõesindividuais, atingem em média 800 mulheres porencontro.3. Apesar de não ter desenvolvido uma teoria com-

plexa sobre a natureza humana, Marx apresentoualguns elementos que compõem este conceito co-mo: " [...] um conceito dinâmico [...] deve incluirtanto variantes universais como elementos quevariam [..]. ( BOTTOMORE, 1988 : 279)4. Destaco essa particularidade histórica porqueacredito ser importante questionar, sob a ótica degênero, o por que da comissão de referências, a tãosignificativa obra para a organização dos trabalha-dores e das trabalhadoras, na Europa no período.5. O conceito de práxis é revisitado com muita fre-qüência pela teoria sociológica e pela filosofia.Considero que temos que abordá-lo como um con-ceito que indica ação criativa e potencialidade hu-mana num contexto determinado. Para Marx, prá-xis indica "a atividade livre, universal, criativa e au-tocriativa por meio da qual o homem cria (...), etransforma (...) seu mundo humano e histórico e asi mesmo" (Apud Bottomore 1988: 292).6. Refiro-me a minha tese de doutorado: Feminis-mo e Liberdade: sujeito total e tardio na AméricaLatina, defendida no Programa de Pós-graduaçãoem Sociologia da UFPB, março de 2004.7. O Fórum Social Mundial é estruturado para odebate, avaliação e proposição de políticas alterna-tivas à globalização excludente e neoliberal. Orga-nizado numa periodicidade anual, sendo as duasprimeiras edições, 2002 e 2003, sediadas em PortoAlegre, RS, e a terceira na Índia, em 2004.8. A MMM é uma articulação internacional do fe-minismo. Originou-se na experiência da marchaPão e Rosas realizada em 1995, pelas feministas noQuébec, Canadá. Atualmente organiza-se em 164países, nos quais unificou ações dos grupos femi-nistas contra a pobreza e a violência sexista.9. Sobre as diversas manifestações ocorridas emnosso país, durante o 17/10, ver a Revista da Mar-cha Mundial de Mulheres, SP, SOF: 2002.10. Articulação de ONGs feministas, sua primeiraedição foi na Conferência das Nações Unidas para oMeio Ambiente- Eco-92, no Rio de Janeiro, 1992.

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1. Ciências Humanas e história

As Ciências Humanas concernem às rela-ções do homem com os outros homens edos homens com o universo. Fazem parte

dela a Filosofia, a Sociologia, a História, Eco-nomia, Política e asLiteraturas etc... que ocu-pavam um lugar de honra nas universidades atémeados do século XX. Mas, neste último quar-to de século, com o avanço das ciências naturaise da tecnologia, elas passaram para uma posiçãosecundária nas instituições universitárias.

No mundo grego, século VI a.C., Aristó-teles entendeu a Ciência como um saber críti-co, abstrato e objetivo, que lhe impõe a exigên-cia da verificabilidade (ARISTOTELES, cap.IV, 1969). Aristóteles elaborará um corpus dedisciplinas especificas que virão a ser, sistemati-camente, organizadas e denominadas CiênciasHumanas. Com a chegada do Renascimento edo Iluminismo animados pelo espírito de siste-matização tanto do conhecimento das ciênciasfísico-naturais quanto as do espírito, aplica-seaos estudos do homem e da sociedade os méto-dos científicos propriamente ditos que haviam

anteriormente elaborados no campo das ciên-cias naturais.

Conseqüentemente, o projeto unitário domundo grego será desfeito com a chegada doIluminismo, e, particularmente com o desen-volvimento do capitalismo, passou a demandaruma reestruturação das ciências para quepudesse responder às novas necessidades.

Assim, o projeto de Marx e Engels irá des-fazer o mito grego do conhecimento abstrato econstruir uma estruturação institucional dasdiversas ciências, admitindo o modo de produ-ção e a reprodução da vida social, como formade resolver o enigma do mundo grego. Então,quando Marx e Engels passaram a investigar "aanatomia da sociedade burguesa", ela apareceestar presa à base epistemológico-científicageral, uma vez, sustentada na economia políti-ca como forma de superar o dualismo existen-te do modelo científico de interpretação dosacontecimentos sociais.

Aquele modelo de interpretação aristotélicoprevaleceu até o final do século XV e somenteno século XIX surgiriam as Ciências Huma-nas. O objeto das Ciências Humanas como

Ciências Humanas e Autonomia1

José Mario Angeli 2

Juliana de Barros Cerezuela (Hist-IC/UEL)Júlio César Campano Floriano (Soc- PIBIC/CNPQ)

Daniel da Rocha Medeiros (Soc)Sandro Heleno Morais Zarpelão (Hist)

Suellen Muniz Coelho (Dir) 3

“Quando secam os oásis utópicos estende-se um deserto de banalidades ”(Habermas)

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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE111122 - DF, Ano XIV, Nº 34, outubro de 2004

afirma Chauí é bastante recente: "o homemcomo objeto científico foi uma idéia surgidaapenas no século XIX. Até então, tudo quantose referia ao humano, era estudado pela filoso-fia" (CHAUÍ, 1994, p.281).

O aparecimento das Ciências Humanas irácompor um campo de disciplinas e tem comoobjetivo tirar o homem da abstração da metafí-sica e inseri-lo numa abstração diversamentecientifica e até alienante. Isto era tão importan-te quanto ao desenvolvimento das forças pro-dutivas de libertar o trabalho humano da explo-ração capitalista alienante, do trabalho assalaria-do em expansão (COGGIOLA, 2002, p.151).

Portanto, pode-se dizer que as CiênciasHumanas se apresentam por um lado, comoum desenvolvimento sustentado num conjun-to de abstrações teóricas e desarticuladas e queservem para dar suporte pragmático e utilitárioao sistema capitalista em plenodesenvolvimento e por outro,quando Marx e Engels estão pro-pondo um desenvolvimento unitá-rio das teorias sociais, estão pen-sando na "superação social da di-visão entre trabalho manual e inte-lectual que poderia encontrar basehistórica real cujo projeto viramdesenhar-se no próprio desenvol-vimento histórico: ciência natural abrangeráciência do homem e haverá uma só ciência"(Idem., p. 153) a história.

O desenvolvimento do capitalismo passou ademandar também o desenvolvimento das Ci-ências Humanas. Esta demanda implica numapura adaptação às contradições sociais do capi-talismo, isto é, numa atitude técnica de com-preensão da realidade, de tal forma que, o de-senvolvimento das Ciências Humanas ficoucircunstanciado ao desenvolvimento do capi-tal, e com o advento da globalização econômi-ca e a submissão dos países à lógica de merca-do, permitiu ainda mais que se aprofundasse aformação técnica - o saber fazer - em detri-mento da reflexão crítica.

A reformulação da maneira acumulativa e

reprodutiva do capital, não obstante, permitiucolocar para as Ciências Humanas novos desa-fios e novas perspectivas. No momento em queas universidades discutem a restruturação deseus cursos, enquanto uma exigência do Minis-tério de Educação, nada melhor que colocar al-gumas questões para não se perder numa puraabstração: Seriam as Ciências Humanas úteispara esta sociedade? Ou as Ciências Humanasteriam algo para contribuir com esta socieda-de? Ou ainda, como refletir as Ciências Hu-manas neste contexto de economia global?

2. Ciências Humanas e heterodoxia institucional

A crise das Ciências Humanas não é novi-dade. Ela pode ser constatada historicamente.Freud diagnosticava-a no "mal-estar da cultu-

ra" no início da década de trinta(FREUD, 1981) e Max Weber no"desencanto do mundo" (cfr.,WEBER, 1972, p. 51). Recente-mente, Marilena Chauí diagnosti-cou a crise das Ciências Humanasno modelo capitalista. Segundoela: "à medida que o modelo deprodução capitalista transformoua ciência e a tecnologia em forças

produtivas, não só tornou obsoletas as huma-nidades, como passou a exigir mudanças daspróprias universidades segundo as realidadeshistóricas" (cfr., CHAUÍ., 1994).

Este fato também está corroborado no arti-go de Miriam Limoeiro sobre "o mito do mé-todo", ou seja, do conhecimento. Segundo Mi-riam "a ciência contemporânea, de que a epis-temologia cartesiana já não consegue dar contae em que o fato mais significativo é o desenvol-vimento do método estar-se fazendo cada vezmais no interior da mesma, apresenta a questãode forma bem mais complexa, tendendo sem-pre a se concretizar" (CARDOSO, 2000). Paraela, o método por si só não é suficiente para seobter os resultados desejados do conhecimen-to, logo permite-nos inferir uma crise na ciên-

O desenvolvimentodo capitalismo passoua demandar tambémo desenvolvimento

das CiênciasHumanas.

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cia, e, por decorrência, das Ciências Humanas.A origem da crise nas Ciências Humanas

reporta-se à crise do modelo de ciência. Nota-damente, iremos encontrar nas Ciências Hu-manas aquele modelo remanescente que veiodo século XVI. Trata-se do modelo "newto-niano" e do modelo "cartesiano" que estabele-cia certezas imprescindíveis para as nascentesciências da natureza e do espírito. O primeiroaparece fundado na noção de hipóteses da qualo cientista se fazia valer para desvendar o pre-sente e atingir o universo da criação. Enquan-to, o segundo, reforça por meio da irrecuperá-vel relação dualista entre a natureza e o ho-mem, matéria e espírito e entre o mundo físicoe espiritual, o domínio do homemsobre a natureza.

Este modelo sustentou as Ciên-cias Humanas desde o séculoXVIII até o último quarto desteséculo. Segundo Chauí, ele está en-fraquecido. Sejam tanto nas "ciên-cias do espírito" quanto nas "danatureza" parece que ele dá sinalda sua deterioração. Por um lado,quando a superioridade das inter-pretações qualitativas prevalecesobre a precisão das analises quantitativas. Epor outro, quando o conjunto de ciências quecompõe este modelo se apresenta para a socie-dade de forma desagregada e desunida.

Esta profunda desagregação do modelo nointerior das ciências conseqüentemente tem le-vado também a fragmentação da compreensãosocial. Assim, podemos dizer que as CiênciasHumanas estão vivendo a pior ultrajem rece-bida da inteligência humana: a parcelação e aespecialização.

Agravada pelo ambiente "ideológico doniilismo do pós-moderno" e pelo domínio do"tecnocratismo neoliberal" que tentam expli-car as mudanças da sociedade, as Ciências Hu-manas acabaram sofrendo de um certo despre-zo por parte dos pesquisadores socialmentecomprometidos com a transformação social.

Segundo Jamenson, a crise aparece anun-

ciada por certos teóricos sociais, como sendoconduzida por uma forma de análise desta so-ciedade. Isto é, há uma crise nas Ciências Hu-manas porque há uma crise na análise destasociedade. Esses teóricos teriam conduzido asituação reinante de hoje ao pós-moderno,com uma forma de pensamento único, influ-enciado pelo estilo de reflexão em que se sub-mergiu a vertiginosa dinâmica do capitalismoglobalizado, onde as teorias sociais parecemsuscitar um cansaço e até um desprezo pormuitos cientistas sociais (cfr., JAMENSON,2001, p. 43, sg).

Segundo Jamenson, muitos cientistas so-ciais acabaram presos a uma leitura da realida-

de na qual os fatos aparecem me-diados pela linguagem tão somen-te. Influenciados pelo filósofo ale-mão Heidegger imaginaram umavisão de mundo e um modo deconceber o homem que fosse ca-paz não só de simbolizar a realida-de e de produzi-la, mas que rom-pesse com as determinações histó-ricas das condições materiais deseu tempo (cfr., HEIDEGGER,1990, p. 189 sg).

A partir de Heidegger, os fatos ganharamuma nova dimensão. Eles passaram a ser com-preendidos pela mediação da linguagem. Istocertamente trouxe um elemento a mais nacomplicada compreensão do mundo. A lin-guagem deixou de ser um elemento historica-mente determinado, para ser um instrumentonatural na explicação do mundo. E com isto,as várias teorias que foram elaboradas com acompreensão da totalidade para explicaçãodos eventos, hoje, elas aparecem como sendopeças de museus.

Entendemos que os paradigmas são chavesinterpretativas para a compreensão daquela so-ciabilidade fugitiva e sempre em movimento.Enquanto afirmação da sociabilidade e dosconceitos do mundo, significa a afirmação dacrença nos valores recebidos ou nos valoresinerente às coisas e ao movimento social, pois

Esta profunda desagregação do

modelo no interiordas ciências conse-qüentemente temlevado também afragmentação da

compreensão social.

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do contrario poder-se-ia chegar ao "ceticismognoseológico radical" de Wittgenstein, tecni-camente muito bem justificado, mas que invia-biliza toda a filosofia e toda a ciência (WITT-GENSTEIN, 1968, p.5, sg).

Por isso, a busca de um paradigma pareceser importante para a superação da crise, masnão é suficiente. Para tanto importa visualizaros fatores que evidenciam esta crise. É possí-vel identificar alguns fatores que vieram agra-var a crise existente no seu interior. Podemosidentificar pelo menos três fatores: um desses éo fato que as teorias estão radicalizadas na "he-terodoxia institucional" onde o ensino, a pes-quisa e a extensão estariam presos aos mode-los newtoniano e cartesiano, hoje, considera-dos antiquados. Um segundo fator está na for-ma como o capitalismo tem se desenvolvidonos "países emergentes", que subordinados aoFundo Monetário Internacional, aceitam de-senvolver pesquisas segundo o padrão destainstituição. E, um terceiro fator está na valori-zação da prática em detrimento da teoria, exi-gida pelas Instituições de Pesquisas onde aspesquisas na área de Humanas acabam nãotendo sentido para aquela instituição (BO-RÓN, 2001, p.359 sg), e agravadas pelos bai-xos salários, orçamentos insuficientes das ins-tituições públicas e urgências em obter os re-sultados desejáveis para o capital levaram asCiências Humanas a uma situação de "entra li-xo e sai lixo".

Tudo isto tem desvalorizado o trabalho docientista das humanidades e tem condicionadonegativamente a qualidade da produção inte-lectual nas Ciências Humanas, de maneira queas organizações fomentadoras da pesquisa pas-saram a valorizar muito mais aquantidade produtiva em detri-mento da qualidade. Assim, o queconta é, sobretudo, o número de"papers" publicado pelos pesqui-sadores. Esta realidade levou ospesquisadores a dedicarem o seutempo para os cursos de especiali-zação: "latu sensu e strictu sensu".

Segundo Wallerstein, o cientista social nestefinal de século tem procurado refúgio na espe-cialização (cfr., WALLERSTEIN, 1998).

A prática heterodoxa tem levado os sujeitosconscientes ou inconscientemente a desenvol-ver no âmbito das universidades uma superva-lorização do praticismo. Isto também acabacriando uma certa aversão à teoria. Conse-qüentemente, aquelas teorias que teriam a pre-tensão de explicar a sociedade em seu conjun-to foram abandonadas e por isso o refúgio dasCiências Humanas na "especialização" auto-destrutiva: estuda-se a árvore, ignorando apresença da floresta, no dizer de Hegel.

A heterodoxia fica ainda mais clara quandose volta para a compreensão do corpo de disci-plinas no interior de suas especificidades. Per-cebe-se que ali os indivíduos reforçam o cam-po da compartimentalização e na maioria dasvezes as disciplinas não tem nenhum vínculoentre si. Segundo O`Donnell, a compartamen-talização serviu para "reafirmar o caráter natu-ral dos princípios do laissez-faire, racionalistae abstrato presente na ideologia dominante nasociedade globalizada" (O´DONNELL, 1996,p.17).

3. Ciências Humanas e o resgate da dialética

O primeiro desafio trata de se rebelar con-tra as Teorias Sociais que expressam "a razãodo único" ou a "razão instrumental". Significadizer que as Ciências Humanas não poderãoconformar-se com a inteligibilidade de uma so-ciedade fragmentada. Para tanto, parece serimportante recompor o conceito da "autono-

mia do social", isto é, dos indiví-duos, grupos sociais e instituições,como forma de romper com a rela-ção de domínio. Entendemos aautonomia como a capacidade deagir deliberadamente e explicita-mente para modificar a lei, isto é, aforma de atuação destes indiví-duos, instituições e sociedade.

O que conta é, sobretudo,

o número de "papers" publicado

pelos pesquisadores.

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Neste sentido, trata-se de afu-gentar a visão "holística" e a "or-ganicista" do conhecimento pre-sentes nas Ciências Humanas, cujapreocupação tem sido a negaçãodas classes nesta sociedade capita-lista global, como se nada tivesse aver com o dinamismo da institui-ção universitária, e reafirmar aidéia da contradição como catego-ria capaz de criar a "unidade nadiversidade" nesta instituição. Istosignifica dizer que a contradição,nesta sociedade, cujas bases estruturais e supe-restruturais são compostos por sujeitos histó-ricos reais que criam o processo de produção ereprodução social (cfr., KOSSIK. 1976, p.74)estão presentes na universidade.

Hegel nos ensinou a pensar diferentementedaquele modelo newtoniano e cartesiano emque o objetivo era de domínio simplesmente.Ele nos ensinou a pensar historicamente e noslegou as bases da dialética. Pode-se dizer quecom ele iniciou-se um novo período na histó-ria do pensamento humano no qual as CiênciasHumanas constantemente mudam segundo aordem das coisas no tempo e no espaço.

Seu pensamento historicista iluminou KarlMarx e Engels através de Feuerbach, e por suavez, influenciou Freud, quando este em 1921incorporou o historicismo evolucionista abrin-do as porta para uma nova visão, mais abran-gente, da psicanálise no início do século. Co-mo disse, BLOCH (1949) "a dialética tem dei-xado de ser uma loucura esquecida para con-verter-se num escândalo vivo".

Recompor o ensino da dialética nas Ciên-cias Humanas parece ser o segundo desafio dopresente. Ela, como é portadora de um refe-rencial histórico e de práticas humanas na so-ciedade, muito contribuirá para compreenderos desvios da civilização ocidental. O fato depossuí-la como referência significa lembrar asmais desvairadas teorias políticas de direitaonde o Estado autocrático e onipotente do ale-mão Scheler, que viria subjugar intelectuais

como o espanhol Ortega Y Gassete, quiçá lembrar com um pouco detristeza a Hans Günther, o antro-pólogo do regime nacional socia-lista, professor da Universidade deYena e defensor do pan-germanis-mo, doutrina de um egoísmo ra-cional exacerbado (GÜNTHER,1923), bem como, as teoria políti-cas de esquerda presente na con-cepção stalinista de Estado auto-ritário. Ter-se-ia, nestes exemplos,a degradação do evolucionismo

filosófico que, sem dúvida, teria muito entris-tecido a Marx e ao mestre Hegel.

Entretanto, tais percalços não podem seratribuídos ao criador da dialética. O progressoe o regresso do pensamento ocidental nãopodem ser imputados a Hegel, Marx e Engels,propulsores da dialética. Seria uma insensatezde nossa parte. Antes, se deve levar em contaque os leitores de suas obras estavam mergu-lhados em hábitos puramente empiristas, me-canicistas, positivistas etc... todos quantitativa-mente refinados e reforçados pela filosofia me-tafísica, através de 20 séculos de procura.

Todos estes leitores, desde os enunciadossocráticos, buscavam na "idéia de criação ima-culada", o princípio da racionalidade do pensa-mento ocidental. Esta prática levou os filóso-fos a desenvolverem o conteúdo da idéia cria-dora imaculada em aberta contradição com anatureza. De fato, Hegel evidencia a idéia co-mo elemento criador da sociabilidade, e assimpensou em algumas das etapas da incansávelviagem da idéia realizando-se a si próprio naexplosão do mundo.

Desde a "Fenomenologia do Espírito" à Fe-nomenologia da Experiência, a consciência serealiza concretamente sobre si mesma e nuncasobre outra coisa. A consciência é por um ladoa consciência do objeto, por outro, parte daconsciência de si própria, consciência do que épara ela verdadeiro e consciência do seu saberacerca disso (HEGEL, s/d). O que vale dizerque o movimento da realidade social continua

Entendemos a autonomia como acapacidade de agirdeliberadamente eexplicitamente para

modificar a forma deatuação destes

indivíduos, institui-ções e sociedade.

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presente e atuante nas consciências. Mas foiMarx e Engels que colocaram a dialética no seuverdadeiro lugar. Isto é, não mais a idéia comoexplosão do universo, mas a matéria com todassuas implicações sociais.

Embora, esta concepção hegeliana-marxis-ta não tenha sido suficiente para a compreen-são da realidade humana, até porque ela ficoupraticamente presa ao paradigma "atomista emecânico" dos séculos XVII e XVIII, no sé-culo XX, a compreensão desta realidade serátransformada em paradigmas "emergente erelativista", desafiando aindamais a inteligência humana.

É neste contexto, que nós nosperguntamos: que paradigmas es-tariam sendo elaborados nas Ciên-cias Humanas para darem vida auma totalidade integradora quepudessem compreender as contra-dições sociais e possibilitassem oseu afloramento no capitalismoglobal no início do século XXI?

Parece que, do ponto de vistada realidade das Ciências Huma-nas, elas insistem em reafirmar antigos para-digmas, mesmo quando elas acolham conceitoscomo o de "direito" e de "cidadania" que sãofundantes de nossa sociedade como observouPAOLI, 1989, querendo atribuir um carátercoletivista à compreensão da sociedade. Então,teríamos um processo de continuidade com omodelo antigo e não uma ruptura. Contudo,percebe-se que há um descompasso entre aidealização da compreensão social e a realidadesocial capitalista. Este descompasso tem mar-cado nossos intelectuais. Pois, ao fazerem op-ção por um paradigma seja de caráter holístico,organicista ou dialético eles acabam sempreempobrecendo a realidade.

Se o papel do intelectual for fazer a críticado conhecimento para que ele possa vir a sercompreendido no processo da produção e nãosimplesmente fazer dele algo que possa vir aser aplicado à produção e as forças produti-vas, pensamos que estamos muito longe da-

quela realidade, pois muitos intelectuais pen-sam somente na eficiência e na performancepara o capital.

Em contrapartida, trata-se de fazer um "co-nhecimento diferente" capaz de superar a he-terodoxia acadêmica e apontar para a supera-ção desta sociedade capitalista. Pensamos sereste "o oásis da utopia das Ciências Huma-nas", pois o que estamos vivenciando nas uni-versidades, quando se propõe uma "reestrutu-ração curricular" de nossos cursos, com "o ob-jetivo de desenvolver as competências indivi-

duais e não o acumulo de informa-ções de nossos alunos" (SOUZA,1999), as Ciências Humanas sãotomadas como capazes de desen-volver a "transversabilidade" e a"interdisciplinariedade" sem levarem consideração a sua especifici-dade e a sua universalidade, queacima de tudo, é fazer a crítica des-ta sociedade e apontar valores querompem com os neoliberais.

O que significa dizer que o pa-pel do intelectual, certamente, será

o de romper com a teimosia do neoliberalismo,quando este celebra a "vitória do capitalismo"sobre o socialismo e com ele o "fim da histó-ria", bem como, do triunfo do mercado e dademocracia liberal, porque ele deverá se encar-regar de desmentir "verdades" proclamadaspor aquelas entidades sem negar a continuida-de das lutas populares e de suas organizaçõesautônomas e independentes.

Por um lado, trata-se de romper com o po-sitivismo em que a sociedade aparece assimila-da à natureza e as ciências, e concomitante-mente acentuam uma profunda identidade en-tre a vida social e os pressupostos que regem ofuncionamento dos corpos físicos, naturali-zando e harmonizando, o que existe na socie-dade. Ainda, trata-se de romper com este posi-tivismo que identifica sociedade e natureza, eque busca obedecer em seus movimentos, umalegalidade natural, invariável e imutável, atri-buindo à sociedade o fato de ela ser regida por

Percebe-se que háum descompasso

entre a idealizaçãoda compreensão

social e a realidadesocial capitalista. Este descompasso

tem marcado nossosintelectuais.

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uma lei natural. Por outro, trata-se de buscaruma epistemologia que supere o caráter deter-minista do materialismo histórico e dialéticocomo foi utilizado por simpatizantes e tradu-tores. Portanto trata-se de recuperar os concei-tos do senso comum que estão sendo apresen-tados pela sociedade. Não é uma recuperaçãomecânica, mas sim adaptando cada conceito asdiversas peculiaridades e tradição cultural,como pensou Gramsci "encontrar a real iden-tidade sob a aparente diferenciação e contradi-ção e encontrar a substancial di-versidade sob aparente identidadeé uma delicada tarefa do criticodas idéias e do desenvolvimentohistórico, as vezes até, incompreen-dido" (Q.24.2268).

Significa, assim, buscar a uni-dade das Ciências Humanas indoalém das suas especificidades, atéporque os seus diversos pontosrevelam um grande parentesco naevolução das idéias que nelas sub-jazem, a exemplo, a questão da ecologia quepode vir a indicar a superação das barreiras en-tre as ciências (ROSS, 1994, p. 265).

4. Ciências Humanas e autonomia

As Ciências Humanas deverão compreen-der as relações dialéticas que se estabelecemno conjunto de suas disciplinas para que pos-sam superar a fragmentação e a especializaçãodo modelo colocado pela heterodoxia institu-cional no conjunto dos saberes que se estabele-ceram na sociedade capitalista. Uma ciênciaque possa colaborar na construção da coope-ração entre os homens e não potencializar adivisão social competitiva dentre eles. Umaciência que possa colaborar na construção dacoesão e da associação livre entre eles, quepossa ser capaz de enfrentar os desafios apre-sentados pelo desenvolvimento das forçasprodutivas neste início de século.

Para tanto é sumamente importante umanova metodologia do conhecimento que consi-

ga fazer com que a compreensão das contradi-ções sociais venha para fora. Não estamos aquiafirmando a "epistemologia da co-emergência"como apregoam pesquisadores da Universida-de de Stanford (USA), em recente discussãosobre a interdisciplinaridade (MAIS, 24/11/-2002), mas sim uma inter-relação de saberescom as populações pobres. As populações po-bres precisam identificar que a ciência e ou-tras forças capitalistas dominam o saber a seufavor. Não basta possuí-la e dizer a verdade à

população. A verdade deverá virdas contradições sociais a seremapreendidas por eles próprios.

Segundo Gramsci "a elabora-ção unitária de uma consciência co-letiva homogênea demanda condi-ções e iniciativas múltiplas. A difu-são de um centro homogêneo é acondição principal, mas não deve enão pode ser só. Um erro muito di-fundido consiste em pensar que ca-da estrato social elabora sua cons-

ciência e a sua cultura do mesmo modo com osmesmos métodos, isto é, os métodos dos intelec-tuais de profissão" (Q,24. 2267), portanto tra-ta-se de elaborar um "novo paradigma" quepermaneça concretamente sobre a base do reale da experiência efetiva da sociedade.

Então, as Ciências Humanas seriam o cata-lisador deste modelo cuja perspectiva estariana adequação entre a teoria e a prática do cien-tista social. A teoria é o ponto de partida. Ela éa experiência, sem a experiência não haveráverdade, mas uma prática sem a experiência. Ateoria e a prática, não são, portanto, uma pro-va. A prova da validade da teoria é teórica, por-quanto a teoria desenvolveu a prática teórica.E, na medida em que, a teoria não possa sersenão teoria das práticas efetivas, ela esclareceestas práticas e se torna instrumento de ação.Gramsci entende que a relação teórico-práticadever ser orgânica e não uma restauração da"ida ao povo" ou das "universidades popula-res" que se apresentam como paternalistas.

Assim, o cientista social deveria reiterar

Trata-se de elaborar um

"novo paradigma"que permaneça

concretamente sobrea base do real e daexperiência efetiva

da sociedade.

Movimentos Sociais

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uma empresa teórica das práticasautônomas dos movimentos popu-lares. Os movimentos popularessão o lócus da transformação cul-tural necessária. Eles expressam alinguagem no seu sentido amplo,não reduzindo-a à forma escrita oufalada. A questão é saber como setrabalha essa linguagem, pois serautônomo é ter, entre outras ques-tões, a possibilidade de construir alinguagem adequada ao processode transformação, é "elaborar a própria con-cepção de mundo consciente e criticamente.... ,em conexão com tal trabalho, participar ativa-mente na produção da história do mundo, serguia de si mesmo" (GRAMSCI., p., 1376), édecodificar os signos e construir uma lingua-gem necessária aos nossos projetos.

Isto seria elaborar uma nova visão de mun-do especifica das classes subalternas! liberar-seda racionalidade capitalista. Para tanto a críticaé importante. "Criticar a própria concepção domundo significa, portanto, torná-la unitária ecoerente, e elevá-la ao ponto que atingiu o pen-samento mundial mais avançado. Significa,então, mesmo, criticar toda a filosofia até agoraexistente, enquanto ela deixou estratificaçõesconsolidadas na filosofia popular" (idem.,Ibidem).

Um novo paradigma nas Ciências Huma-nas, nós a entendemos que "deva inserir-se nasmudanças do modo de pensar das gentes, dascrenças e das opiniões. Isto não vem por explo-são rápida, simultânea e generalizada, masquase sempre por combinações sucessivas se-gundo fórmulas desarticuladas e incontroláveisda autoridade" (Q.24.2269).

Gramsci entende que é o modo de pensardas gentes, das crenças e das opiniões que reve-lam o saber. Estas gentes sabem, mas não com-preendem e o intelectual compreende, masnem sempre sabe.

Então, Gramsci está dizendo que, pode-sefazer uma tese sobre a caça e não saber caçar.Mas, o caçador para caçar tem que saber. Mas

como ele não sabe falar da caça deum modo pré determinado poroutro, diz-se que ele não sabe ca-çar. Mas se ele não soubesse sobrecaça, ele não caçaria. Gramsci en-tende que o saber está intrinseca-mente ligado ao fazer, isto é ligadoao mundo do trabalho.

Aqui está a verdadeira interdis-ciplinaridade e não aquela de quetanto se fala hoje nas universida-des. Interdisciplinaridade não é o

diálogo entre as ciências e muito menos umajustaposição de conhecimentos. Mas sim, odiálogo entre saberes. Aqui está a grande ques-tão. Esta tem sua origem na fala. A língua quese fala encerra o conjunto de conhecimento dasgentes e de um povo. Na medida em que seapropria da língua, apropria-se do conheci-mento. É por meio da palavra e da língua quese dá nome às coisas.

Desta forma, o intelectual deve estar aten-to para a troca de saberes. Ele não só comuni-ca, mas também recebe do outro o conheci-mento. E com este entendimento, parece quedeveríamos reconhecer a inevitabilidade daconvivência com a imprecisão de nossas cate-gorias analíticas nas Ciências Humanas e pos-tular o retorno de um intelectual mais críticoe autônomo que possa combater o niilismo"pós-moderno".

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Isto seria elaboraruma nova visão demundo especifica

das classes subalternas! liberar-se da racionalidade

capitalista.

Movimentos Sociais

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Notas

1. Este artigo apresenta as discussões realizadas noprojeto de pesquisa "Pressupostos ontológicos domodelo de convivência anarquista no rompimentodo paradigma da ciência contemporânea".2. Docente do dep. de Filosofia - UEL3. Discentes de graduação - UEL

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A greve das IFES

O governo federal instituiu no início de 2003 a Mesa Nacional de Negociação

Permanente com as entidades nacionais representativas dos servidores públicos fede-

rais, organizadas na CNESF. Prometeu que haveria negociação coletiva para os ser-

vidores e que não haveria perdas salariais no governo Lula.

Em abril de 2004, o governo simplesmente dissolveu a mesa e, adotando a táti-

ca de dividir para melhor impor sua política de reajuste zero, passou a se reunir sepa-

radamente com cada entidade para negociar reajustes nas gratificações, em particular

as de caráter produtivista. Propôs aos docentes reajustes na GED e na GID.

Em 6 de junho de 2004, o governo propôs ao ANDES-SN e ao SINASEFE a

extinção da GED e da GID e a criação de uma gratificação fixa em substituição àque-

las duas, extensiva integralmente aos aposentados e pensionistas. O governo cumpriu

tal proposta somente em relação à GID, firmando um acordo com o SINASEFE para

o qual o ANDES-SN não foi convidado, a despeito de representar todos os docentes

da carreira de 1° e 2° graus das IFES. O ANDES-SN passou a exigir o mesmo trata-

mento para os docentes do magistério superior.

No início de agosto, o governo rompe unilateralmente as negociações com o

ANDES-SN. A greve se inicia em 5 de agosto pelo restabelecimento de negociações.

O Governo mantém sua intransigência e publica a MP 208/04, que mantém a GED

com valores congelados e diferenciados para os da ativa e os aposentados e determi-

na que em 180 dias o governo deverá definir novos critérios de avaliação de desem-

penho.

A greve atingiu apenas 17 das 51 seções sindicais do setor das IFES e não con-

seguiu vencer a intransigência e divisão impostas pelo governo. O balanço da campa-

nha salarial e da greve indica que o ANDES-SN deve priorizar a retomada da unifi-

cação dos servidores federais e os da área da educação, que é o que ele vem fazendo

junto à CNESF.

Paulo Marcos Borges Rizzo Coordenador do Setor das IFES e 1º Vice- Presidente do ANDES-SN.

Notas sobre a greve das IFES

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Edmundo Fernandes Dias

Resenhar um livro é apresentá-lo a um públi-co que não conhecemos mas que supomos

interessado em conhecer a obra. Resenhar umlivro apresenta dificuldades. Normalmente elese apresenta como um todo acabado do qualprocuramos enunciar as teses. O desafio que olivro de Valério nos apresenta é outro. Produtode uma tese universitária As Esquinas Perigo-sas se mostra vivo, rico, aberto.

Faz sentido, hoje, no Brasil, uma tese sobreRevolução? Valério dos diz - e nos convence -que sim e apresenta um rico mosaico de desdo-bramentos histórico-concretos. Contraditoria-mente aos que pensam o fenômeno revolucio-nário como um mero cálculo militar ou produ-to inexorável de uma crise catastrófica, Valério,com paixão militante combinada com sensibi-lidade de pesquisador revela que o Marxismoé, fundamentalmente, uma ciência experimen-tal da política.

Valério se posiciona claramente contra odeterminismo, não foge da análise de situaçõescomplexas que poderiam constranger o mili-tante cego e articula não apenas os impassesdos objetivistas (Kautski, p. ex.) com os subje-tivistas que sobrepõem seu desejo à realidade.Movendo-se a partir de uma rica bibliografiaele elabora um mapa profundo das conjunturasrevolucionárias.

Trabalha com as determinações da rees-truturação capitalista combinando-as diale-ticamente com o peso das institucionalida-des vigentes aqui e agora. Ele se perguntaporque as massas, mesmo em momentos deextrema privação, se deixam pilhar pacifica-mente ao invés de entrar em processos aber-tamente insurrecionais. Não há, conclui,

respostas fáceis ou abstratamente universais.O resultado da análise é a construção de

uma teoria política da revolução. NorbertoBobbio afirmou que o marxismo não conse-guiu elaborar uma teoria do Estado. Poder-se-ia dizer, nessa mesma lógica, o mesmo sobre arevolução. Valério, a partir de Lênin, Trostky eRosa, demonstra o erro fundamental dessaanálise: só é possível construir uma teoria aber-ta da revolução. Uma teoria marcada pelas ri-cas e contraditórias determinações nacionais einternacionais, do movimento das classes e dos"humores das massas".

Recusar o determinismo (economicista, po-liticista, que sejam) significa negar a tese de quehá uma verdade no real já previamente traçada.O mundo não caminha necessariamente para osocialismo. A revolução não faltou ao encon-tro, como um certo tipo de intelectuais gostade afirmar. Valério vai além e coloca que "semteoria da História" não se pode praticar cienti-ficamente o ofício do historiador.

Processo aberto, "síntese de múltiplas de-terminações", classes e situações revolucioná-rias convivem com o capital, "a contradição emprocesso". Convivência contraditória que serevela como o grande laboratório da teoria.Decifrar o enigma é atuar conscientemente naHistória. Gramsci afirmou: "Marx significou oingresso da inteligência na História". É dissoque o livro trata.

Por fim queremos salientar que a obra deValério é uma leitura obrigatória para os que seinteressam pela vida social, para os que querema revolução, para os que a conjuram. O melhorde uma resenha não é esgotar a temática do li-vro mas é convencer o candidato a leitor deque vale a pena fazê-lo.

Carpe diem.

Valério Arcary - As esquinas perigosas da História.

Situações revolucionárias em perspectiva marxista, Xamã Editora, São Paulo, 2004-10-13

Resenha

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