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Revista Filosófica
SãoBoaventura
ISSN 1984-1728
Fae - Centro UniversitárioInstituto de Filosofia São Boaventura
Curitiba 2010
SãoBoaventuraRevista Filosófica
São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 1-126
janeiro/junho 2010
Copyright © 2008 by autores
Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte.
FAE - Centro UniversitárioInstituto de Filosofia São Boaventura
Instituto mantido pela Associação Franciscana de Ensino Senhor Bom Jesus (AFESBJ)R. 24 de maio, 135 – 80230-080 – Curitiba PR
E-mail: [email protected].
Reitor: Fr. Nelson José HillesheimDiretor geral do Grupo Bom Jesus: Jorge Apostolos Siarcos
Pró-reitor acadêmico: André Luis Gontijo ResendePró-reitor administrativo: Regis Ferreira Negrão
Diretor do IFSB: Ms. Vicente Keller
Editores: Dr. Vagner Sassi e Dr. Enio Paulo Giachini
Comissão editorial:Dr. Roberto H. PichMs. Vicente KellerDr. Jaime SpenglerDr. João Mannes
Dr. Marcelo Perine
Conselho editorial:Dr. Osmar Ponchirolli
Dr. Mauro SimõesDr. Antônio Joaquim Pinto
Dr. Écio Elvis PizzetaDr. Leonardo Mees
Ms. Solange Aparecida de Campos CostaDr. Renato Kirchner
Revisão: Editoria
Diagramação: Sheila Roque
Capa: Roland Cirilo
Catalogação na fonte
Revista filosófica São Boaventura/ FAE - Centro Universitário Franciscano do Paraná. Instituto de Filosofia São Boaventura.
v. 1, n. 1, jul/dez 2008- . Curitiba: FAE - CentroUniversitário Franciscano do Paraná, 2008-v. 23 cm
SemestralISSN 1984-17281. Filosofia – Periódicos. I. FAE - Centro Universitário. Instituto deFilosofia São Boaventura.
CDD - 105
SUMÁRIO
EDITORIAL
Vicente Keller ..................................................................................................................... 7
ARTIGOS .......................................................................................................................... 11
Autonomia do Sujeito
Hermógenes Harada ........................................................................................................ 13
Reflexões em torno da liberdade, violência e imaginário
Rachel Gazolla ................................................................................................................. 25
Notas a respeito da educação
Gilvan L. Fogel ................................................................................................................. 37
Mito e filosofia grega (Logos, mytos, eros)
Emmanuel Carneiro Leão ................................................................................................. 49
Espírito de geometria e espírito de finesse
Jaime Spengler ................................................................................................................. 61
ARTIGOS-RESUMO DE MONOGRAFIA ............................................................................... 75
O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski
Robson Luiz Scudela ........................................................................................................ 77
Por uma filosofia da carne. A proposta fenomenológica de Michel Henryna obra Encarnação
Frei Paulijacson Pessoa de Moura ................................................................................... 105
TRADUÇÕES ................................................................................................................... 117
Unicidade
Heirich Rombach ........................................................................................................... 119
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 7-9, jan./jun. 2010 7
EDITORIAL
Alguns acontecimentos, neste ano de 2010, trazem à tonaum dos pensamentos de Pascal, ao se referir ao ser humano:“O homem não passa de um caniço, o mais fraco da nature-za, mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universointeiro se arme para esmagá-lo. (Um vapor, uma gota d’água,é o bastante para matá-lo. Mas, quando o universo o esma-gasse, o homem seria ainda mais nobre do que o que omata, porque sabe que morre; e a vantagem que o universotem sobre ele, o universo a ignora” (Pensamentos, ArtigoVXIII, XI).
Basta lembrar as tragédias acontecidas por causa de tem-pestades, os terremotos no Haiti e no Chile, e tantas outrascatástrofes atribuídas muitas vezes a fatores “naturais”. To-das mostram a atualidade do pensamento de Pascal. O ho-mem, realmente, nada é diante das forças da natureza.
Mas é justamente diante desses fenômenos que sobressai agrandeza e eloqüência do ser humano: mesmo podendo seresmagado pelo universo, ele pode enfrentar todas as adver-sidades e reconstruir o que foi destruído.
Mais: o ser humano é capaz de buscar respostas a este e aoutros problemas que o angustiam e que fazem dele um seritinerante no universo.
Daí surgem respostas e propostas aos seus mais profundosanseios.
Este número da Revista de Filosofia São Boaventura apresentaa contribuição de diversos autores, nos quais destaca-se estagrandeza do ser humano. Cada um a seu modo, mas de for-ma sutil e tênue, discute esta característica de racionalidadeque torna o ser humano ao mesmo tempo único e diferentede todos os demais seres. Algumas frases, extraídas de seusartigos, mostram essa linha de pensamento:
KELLER, Vicente. Editorial8
Tudo isso está vinculado com a compreensão de que o ser humanodeve ser colocado como aquele ente destacado entre todos os ou-tros entes não humanos, como a medida e o fundamento de todasas coisas, portanto, ser colocado como sustentáculo (sujeito) e agente(móvel e acionador) de tudo que é e não é, e isso não somentecomo quem interpreta o universo (mundo, homem e o divino) mascomo aquele que contribui para a transformação do universo e éresponsabilizado pelo sentido do mundo, a partir e dentro do qualeclodem as possibilidades de realização do mundo (Harada).
Estamos tão acostumados com esse modo de processar a realidadeque não sabemos sobre outro, mas há outros, muitos outros. En-tão, como ficam o imaginário e a liberdade nesse quadro? A liber-dade tende a esvaziar-se, isso é claro. Já o imaginário empobrece nasua capacidade de multiplicar as vias de sublimação, de criatividadequanto às defesas, o que torna pouco viável a manutenção da com-plexidade vital. Vitalidade é também forças pulsionais “livres”, ou,em outro modo de dizer, “desejos livres” para objetos não tão fá-ceis de conseguir (Gazolla).
Um dos aspectos reveladores da liberdade, em constituindo a es-sência do homem, é ver no homem coisa nenhuma, algo nenhum,mas só e tão-só um poder-ser, uma aptidão que se revela um insis-tente movimento de transformação e de alteração (= vir a ser ou-tro!) desde si e para si (é isso vida!) e que se chama criação. É daessência da liberdade humana a criação (Fogel).
A existência humana é a viagem que faz o homem entre realizaçãoe realidade. Para realizar-se e ao realizar-se, o homem irrompe natotalidade e nesta irrupção instala estâncias de relacionamento comtudo que existe e não existe. Nesse sentido, o homem realiza emsua existência todas as realizações. Impulsionado pelo impacto oblí-quo da realidade, constrói sua existência num contacto direto daação transformadora do trabalho com as realizações (Carneiro Leão).
A razão adquire assim uma posição particular: de um lado, se em-penha na reflexão para a formulação das definições, distinções eorganização dos dados recolhidos a partir da experiência externa ecientífica; do outro lado, pode também ser constantemente desper-tada para acolher, a partir desta compreensão da finesse, a possibi-lidade de vislumbrar dimensões novas, de onde a experiência exis-tencial lhe concede sempre de novo a possibilidade de investigar(Spengler)
Se um dos princípios da filosofia é poder prestar atenção ao que édado, refletir a respeito disso, no “desabrochar-surgimento” dascoisas, é estar acordado àquilo que Heráclito apresentara (...) por
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 7-9, jan./jun. 2010 9
que não perceber que os personagens de Dostoiévski, todos eles“humanos, demasiado humanos”, são possibilidade impulsionadorade reflexão; e, ainda mais, reflexão sobre quem reflete? (Scudela).
Como se viu, no desafio proposto por Michel Henry enquanto umpensar a vida, nada é acidental, porque tudo é sabor, provocaçãode aprender a ser. (...) A discussão pretende atingir uma plataformacomum, uma combinação, para superar certas dificuldades. (...) Daíque na experiência do encaminhar-se, do tornar-se de novo capazde escutar a palavra na profundidade de nossa interioridade (...)Com efeito, os caminhos dessa investigação não querem jamaisconstituir um corpo fechado, mas miram antes o testemunho deuma relação criadora da vida, sendo o que sempre ainda pode setransformar (Moura).
Unicidade pode acontecer a homens e coisas. Ela é imune à diferen-ça de pessoa e coisa. (...) Cada único possui seu próprio tempo. Notempo de um único ocorre também o outro único, não porém comoum único, mas talvez apenas como timoneiro (Vorschotmann). Notempo do outro único se dá também o outro único, mas talvezapenas como casa de férias. De modo bem imperceptível se dá queescorregamos de um tempo para o outro, e o outro único ainda falacomo o único, enquanto que ele é ouvido ainda apenas como otimoneiro. O não perceber que se está transpondo as barreiras pro-vém da incomparabilidade dos dois únicos (Rombach).
Vicente KellerDiretor do Instituto de Filosofia São Boaventura
e Coordenador do curso de Filosofia
ARTIGOS
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 13-23, jan./jun. 2010 13
Autonomia do sujeito*
arti
go
s
Hermógenes Harada
Quando intitulamos a reflexão de autonomia do su-
jeito, estão em jogo dois verbetes: autonomia e sujeito.
Como se trata de reflexões dentro da área da filosofia,
esses termos não podem ser compreendidos simplesmente
num sentido geral e usual, mas devem ser processados
dentro do modo de ser, visto a partir da filosofia. Essa
observação metódica vale para o uso desses termos em
outras ciências e também no uso cotidiano em situações
especiais. Por isso quem usa os termos que vêm da filoso-
fia ou de outro tipo do saber, dentro de um saber ou de
uma ciência positiva particular, na qual a pessoa se exerci-
ta e se forma, deve examinar cuidadosamente o seu uso
dentro de cada ciência respectiva em questão.
Na filosofia, os dois termos estão intimamente liga-
dos. E dizem respeito à maturidade da humanidade na
responsabilização de ser existência humana. Damos aqui
apenas o significado nominal dos termos autonomia e
sujeito, e então, para a compreensão mais própria do
conteúdo desses termos, propomos a leitura de um pe-
queno texto de Kant que se intitula Resposta à pergun-
ta: Que é “esclarecimento?”1.
* Publicação póstuma.1 KANT, Immanuel, “Res-posta à pergunta: Que é‘Esclarecimento?’”, in:Textos Seletos.Petrópolis: Vozes, 1974,p. 100-117. Os comentá-rios desse texto de Kantforam feitos para seremdistribuídos ao(à)s parti-cipantes de um encontrode formação, realizadono Noviciado das IrmãsFranciscanas de São José,em Rondinha, no Carna-val de 2008, coordenadopor frei Dorvalino FasiniOFM (da Província fran-ciscana do Rio Grande doSul).
HARADA, Hermógenes. Autonomia do Sujeito14
Definição nominal
Autonomia: É uma palavra grega, autonomia (autonomia), e significa: indepen-
dência (política), liberdade, autonomia. Literalmente é composta de auto + nomia e
vem de autonomos (auto + nomos). Auto – os adjetivos autos <masculino>, auté
<feminino>, auto ou auton significam ele mesmo, ela mesma, a coisa ela mesma; o
que é destacado e vem ao encontro como ele mesmo; daí: em si mesmo, por e para
si mesmo; pessoalmente, em pessoa; a partir de si mesmo por seu próprio movimen-
to; todas essas significações nos levam ao significado: imediatamente, diretamente,
absolutamente, (ab-soluto = solto e livre de <ab>). O substantivo nomos vem do
grego nemo = dividir, partilhar, distribuir, e, como o que me foi partilhado, é meu, é
minha porção, pode significar também possuo, assumo como meu. Nomos significa,
portanto, o partilhado, o distribuído, o que é determinado e fixado como meu, teu;
a porção que cabe a cada um; o que assumo sob a minha responsabilidade como
próprio, pertencente a mim; daí também a significação costume, uso, e principal-
mente lei e constituição. Em todas essas significações o tom fundamental humano
da palavra nómos não é de ensimesmamento, mas de responsabilidade como a tare-
fa a mim partilhada, como o modo de assumir o haver e o habitat da terra dos
homens, como ética. Daí, a significação da autonomia atribuída como tarefa e mis-
são da filosofia moderna, representada no movimento denominado Aufklärung (es-
clarecimento): autonomia é a capacidade de, a partir de si, a partir e dentro do assu-
mir a responsabilidade da sua ab-soluta liberdade, dar comando a si mesmo.
Sujeito: O significado do termo sujeito, no nosso uso corriqueiro, hoje, se acha-
tou de tal maneira que mal conseguimos sentir nele a pulsação do élan vital que,
como o termo latino Subiectum e Substantia, na Idade Média carregava ainda eco da
palavra grega hypokeimenon; nosso uso do termo tampouco carrega ainda o entusi-
asmo do zelo e o empenho de busca da autonomia do homem moderno, que vibrava
na definição do homem como sujeito-eu, e que na filosofia moderna inicial impreg-
nava as categorias fundamentais do ser humano como: razão, racional, cogito (Des-
cartes), espírito (Hegel), vontade para poder (Nietzsche) etc. No nosso uso corriquei-
ro, sujeito é sinônimo de o cara e indica o ser humano ao modo da opacidade e
indiferença de uma coisa. A palavra sujeito, no nosso uso, ainda guarda um pouco
do que ela significava no início da era moderna, quando ocorre no adjetivo subjetivo(a),
empregado para destacar o oposto do objetivo-coisa, indicando o modo de ser do
humano, diferente do modo de ser da coisa, da planta e do bruto. Mas conosco, no
nosso uso cotidiano da palavra sujeito, tanto como o cara, como essa coisa ali, esse
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joão-ninguém, mas também, já um tanto “personalizado”, o termo subjetivo é en-
tendido por sua vez como ensimesmado, individualista egoísta. Assim, nessa última
acepção, o termo sujeito acabou se tornando até o oposto e a negação de toda a
autonomia!
Na filosofia, se entende o termo sujeito, no seu uso maior, como indicando o
modo de ser fundamental da realização da autonomia. Nesse sentido de ser funda-
mento, sujeito significa literalmente o que foi lançado debaixo de, como sustentácu-
lo e agente do projeto da nova humanidade2. Tudo isso está vinculado com a com-
preensão de que o ser humano deve ser colocado como aquele ente destacado entre
todos os outros entes não humanos, como a medida e o fundamento de todas as
coisas, portanto, ser colocado como sustentáculo (sujeito) e agente (móvel e aciona-
dor) de tudo que é e não é, e isso não somente como quem interpreta o universo
(mundo, homem e o divino) mas como aquele que contribui para a transformação do
universo e é responsabilizado pelo sentido do mundo, a partir e dentro do qual eclodem
as possibilidades de realização do mundo.
Comentário do texto de Kant acerca do esclarecimento
O nome esclarecimento, segundo o dicionário Aurélio, indica “movimento filosó-
fico do século XVIII que se caracterizava pela confiança no progresso e na razão, pelo
desafio à tradição e à autoridade e pelo incentivo à liberdade de pensamento. Sinô-
nimos do Esclarecimento são Iluminismo, Ilustração, filosofia das luzes3.
Quando transformado em movimento, seja cultural, político ou social, o pensa-
mento filosófico torna-se mundividência, se não ideologia, e fixa toda uma maneira
de compreender a realidade, cujos sinônimos são vida, mundo, ser, estabelecendo-se
como doutrinas, i. é, material preestabelecido de ensino e de aprendizagem escolar,
explicações, leis e normas, teoria e praxe de visões e comportamentos acerca das três
grandes regiões do ente, intituladas: Deus, homem e universo. O pensamento filosó-
fico, já transmutado em mundividências e ideologias, cuja formulação sempre termi-
na em “ismos”4, quando virado para fora, para a publicidade, constitui o que deno-
2 Na Idade Média, subiectum dizia o mesmo que objectum e indicava o estar assentado na dinâmica da substantia(eco da compreensão grega do sentido do ser denominado hypokeímenon. Cf. Harada, H. “Comentário‘especulativo’ acerca da objetivação”, Scintilla, v.2, n.2, Curitiba, 2005).3 Aufklärung (alemão), Enlightenment (inglês).4 Cristianismo, marxismo, capitalismo, biologismo, cientificismo, misticismo etc.
HARADA, Hermógenes. Autonomia do Sujeito16
minamos de aspecto exotérico5. O contrário desse movimento ou a orientação con-
trária é a esotérica, termo que vem de esóteros e significa interior, dentro, virado
para dentro, para os de dentro. Daí a conotação de algo secreto, escondido, conhe-
cido somente aos que estão iniciados no segredo do grupo. Filosofia na sua tendên-
cia própria não é exotérica, mas esotérica, por buscar sempre e cada vez de novo os
fundamentos das pré-suposições do nosso saber, principalmente da própria filosofia.
Nessa acepção, ela é des-construtiva. É busca da origem. Nessa orientação própria e
essencial a ela, jamais é fundamentalista, mas sempre fundamental. Por isso, todo e
qualquer pensador, de qualquer época, se for pensador, deve ser considerado dentro
desse aspecto esotérico ou interior, acima mencionado.
O que se apresenta ao público enquanto aspecto exotérico do esclarecimento
como iluminismo, para os que se acham no tradicionalismo (os tradicionalistas), den-
tro do cristianismo sabe a racionalismo, relativismo, progressismo, cientificismo, sim
ateísmo. Para os que se acham no progressismo (os progressistas) sabe a autonomia,
antiautoritarismo, libertação, progresso, esclarecimento, maturidade humana.
A seguir vamos pinçar alguns pontos do texto para o destaque reflexivo, para
oferecer um subsídio para a reflexão autônoma de cada um de nós.
A importância da necessidade de esclarecimento
Importância: Importância significa literalmente a ação de carregar para dentro
(in-portar). Somente quem se carrega a si mesmo para dentro de uma tarefa está por
dentro do seu encargo, da sua missão, da sua vocação. Quem não se importa, jamais
pode assumir o trabalho para o qual foi designado ou para o qual ele mesmo se
designou. A tomada de consciência desse saber da importância é decisiva para o
sucesso do trabalho buscado na formação. Quem toma con-sciência dessa im-portância
sente a necessidade do esclarecimento.
Sentir aqui não é sentimento, nem sensorial nem sentimentalista. É muito mais
real, mais concreto, a ponto de o homem sentir a necessidade de se levantar e come-
çar a fazer alguma coisa, alguma coisa que seja bem próxima dele, por menor e
insignificante que ela seja.
5 Exóterikos, de exóteros. Exóteros = fora; exóterikos = externo, virado para fora; para os leigos, para os nãoiniciados, usual, compreensível a todo mundo; popular.
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Necessidade, aqui, é algo como imposição, algo como situação na qual não há
mais nem escolha nem subterfúgio: é um cerco corpo-a-corpo de si e para si mesmo.
A esse tipo de imposição6, os antigos chamavam de possibilidade. Nós podemos,
nós estamos na possibilidade, estamos na potencialidade real, quando fomos inseri-
dos nessa necessidade premente. Por isso, na filosofia de hoje, se diz: a possibilidade
é mais real do que a realidade7.
Quando a necessidade se torna possível, i.é, quando a necessidade, seja de que tipo
for, toma corpo e se nos impõe, quando sentimos na carne o poder dessa necessidade,
com outras palavras, quando a necessidade se torna possível, potente, então estamos
convocados, em todo o nosso ser e em nosso não ser, a fazer alguma coisa conosco
mesmos, a fazer uso do que somos e não somos para trabalhar8, para nos realizarmos.
E a primeira coisa ou a causa a ser realizada é esclarecimento. Eu devo saber. Mas
atenção: não no sentido de eu primeiro devo saber isso ou aquilo para poder agir. Mas
sim: devo buscar como necessidade, me esclarecer, ou melhor, saber. Nesse caso, saber,
buscar a compreensão não é nenhum luxo, não é o cultivo sofisticado da informação,
do conhecimento, mas a límpida necessidade de saber. Este saber tem tudo a ver com
sabor, não no sentido astênico e “sofisticado” em que caímos quando falamos de sabe-
doria da vida, de sabedoria contra o saber racional etc., mas como quando na acepção
da língua alemã se pergunta, por exemplo, se alguém gosta de uma comida, então se
diz: Mögen Sie es? O senhor gostou (i.é, o pode)?9
Em vez de saber, diríamos, portanto, poder, e poder no sentido de pode, i.é,
realiza, no sentido de apreender e compreender de que se trata.
A grande tradição do Ocidente, dentro de cujo vigor se acha o que denominamos
de espiritualidade cristã, denominou esse poder de realizar a realidade, essa capaci-
dade de realização da realidade, de razão. A esse poder, a esse vigor da possibilidade,
i.é, da necessidade possível, Kant chama de uso da razão ou do entendimento.
Em Kant distinguimos dois momentos do racional: o momento entendimento
(Verstand) e o momento razão, ou melhor, o fundo (leia-se pro-fundo) racional
(Vernunft). Verstand (do verbo ver-stehen: stehen = ficar, estar de pé), em referência
6 Vida, história, ser, i.é, o ter-que-ser.7 Observemos como as nossas possibilidades não são necessidades, mas veleidades as quais desejamos, mas nãoqueremos de fato como dom de uma conquista. Nós quereríamos....8 O povo diz o provérbio: Pode quem pode.9 Possibilidade (Möglichkeit) vem do verbo mögen.
HARADA, Hermógenes. Autonomia do Sujeito18
ao seu vigor, se baseia na Vernunft (vem do verbo ver-nehmen: nehmen = tomar,
receber). Verstand, i. é, o entendimento é o vigor do saber que se firma e fica em pé
como uma compreensão concreta e bem constituída. Mas a dinâmica do poder sur-
gir, crescer e se consumar desse saber está baseada no fundo de si, que é a Vernunft,
i. é, a recepção atenta e obediente, i. é, ob-audiente aos acenos do toque do abismo
insondável e inesgotável da possibilidade da necessidade de ser. Vernunft, i.é, o ra-
cional, é como o ponto de salto, virado de um lado para a possibilidade do abismo
insondável e inesgotável do ser como límpida e pura recepção do toque de inspira-
ção e ao mesmo tempo a contensão da eclosão do mundo como uma das realizações
da realidade. Se chamarmos de entendimento e de racional, Verstand e Vernunft a
esse modo de o homem ser, então o homem está no uso da Vernunft e do Verstand
como lugar de esclarecimento de todas as coisas, como ponto de salto do mundo
enquanto exotérico e da sua possibilidade como a profundidade do abismo de ser
como esotérico. A responsabilização para ser e estar sempre de novo nesse ponto de
salto é a autonomia da razão, que em Kant recebe o nome de liberdade. E então:
aquela “pessoa”, que é o “único senhor no mundo diz: raciocinai (i.é, fazei uso da
razão), tanto quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!”. Esse impe-
rativo é a palavra de ordem do esclarecimento.
Diante de uma tão grande proposta de responsabilidade pelo esclarecimento (i.
é, pela inserção no vigor e na vigência do uso da razão para o nascimento, crescimen-
to e consumação na liberdade, que é a capacidade de obedecer), como anda nossa
mentalidade a respeito da espiritualidade? Como anda o medo e o acanhamento
diante do esclarecimento?
O uso privado e público da razão
O uso privado da razão:
Embora muitas vezes o universal e o público estejam misturados, é preciso esta-
belecer a distinção entre eles. Público é o que aparece como a estrutura institucional
visível publicamente. O uso da razão que eu faço como pertencente à estrutura insti-
tucional visível publicamente é o uso privado da razão. A pessoa que pertence à
estrutura institucional visível publicamente recebe a sua denominação do cargo que
ele ali ocupa, por exemplo, sacerdote, juiz, militar, financista, professor, terapeuta
etc. Enquanto incumbidas por encargo público de pertencer e exercer a função que
lhe foi designada publicamente, essas pessoas fazem uso privado da razão. O uso da
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go
s
razão que essa pessoa faz, portanto, enquanto sacerdote, juiz, militar, economista,
professor etc., não é uso público da razão. É uso privado, porque está privatizado,
particularizado ao encargo que ocupa e à lógica que rege a estrutura institucional
visível publicamente desse encargo. Aqui, tanto numa instituição privada como numa
instituição oficial (no sentido em que a nossa publicidade usa a palavra privado), se
faz e se deve fazer o uso privado da razão. Diz, portanto, Kant: “Denomino uso
privado aquele que o sábio pode fazer de sua razão em certo cargo público ou numa
função a ele confiada”.
É interessante observar que as palavras privado e público se referem ao uso, e ao
uso da razão. O uso da razão diz respeito ao que o homem tem como o mais próprio,
a saber, à essência do seu ser. É o que vale para cada pessoa, a saber, para todas as
pessoas que são e devem ser homem; diz Kant: “o espírito (leia-se: o sopro vital) de
uma avaliação racional do próprio valor e da vocação de cada homem em pensar por
si mesmo”.
Quando se diz “trata-se do que vale para cada pessoa como essência do seu
ser”, isso equivale a dizer: vale para todas as pessoas. Cada pessoa é igual a todas as
pessoas.
Se eu represento esse “cada pessoa” como “esta e/ou aquela” pessoa, estou
tratando a pessoa como se fosse uma, duas, três coisas. Assim, nesse caso não há
nenhuma diferença entre pessoa e coisa físico-material. Agora tentemos enfileirar os
diferentes entes um ao lado do outro: esta pedra, esta planta, este animal, este homem,
esta mulher, esta criança, este ancião, este anjo, este Deus. O que aqui está indicado
como ente individual (este<a> e aquele<a>) não leva em consideração as diferen-
ças dos entes: (pedra, planta, animal, homem, mulher, criança, ancião, anjo, Deus).
Mas atenção: também não leva em conta a própria diferença que em concreto e de
imediato caracteriza a coisa material na sua materialidade. Nivela, neutraliza, in- ou
des-diferencia tudo, dizendo que se trata de isto e isto e isto e isto e isto: . Se
eu aumento o volume espacial quantitativo ou o diminuo assim: ou ou
o esvazio , em direção ao espaço vazio infinito ou o pontualizo ..., reduzindo-o
infinitesimalmente até reduzi-lo ao espaço vazio ou cheio indeterminado e o chamo
de nada, tudo isso em nada mudou o modo de ser representado como indivíduo, i.é,
como a última porção quantitativamente indivisível; essa variante toma forma de
extensão quantitativa, desde o ponto infinitesimalmente mínimo até o máximo. Esse
modo de encarar o ente, seja o que, quem e como for, – ser, vida, Deus, pessoa, amor,
ódio, espírito, alma, matéria, idéia, razão, coração, espiritualidade, ateísmo, mate-
HARADA, Hermógenes. Autonomia do Sujeito20
mática, geometria, sim até o nada – esse modo de re-apresentar ou tornar presente,
i.é, representar o ente, é o horizonte, perspectiva, a partir e dentro da qual hoje
vivemos, somos e nos movemos, tanto no âmbito das ciências, quanto nos afazeres
cotidianos da vida. Trata-se aqui de um sentido do ser bem determinado, que tomou
conta de nós e determina o tom e a cor fundamental do nosso ser, saber, fazer e
sentir. Muitas vezes concebemos o modo desse determinado sentido do ser como o
corporal, o sensorial, o físico, o material. Na realidade, o corporal, o sensorial, o
físico, o material já estão desaparecidos, não são vistos, pois foram neutralizados,
reduzidos, des-diferenciados como apenas maior ou menor volume quantitativo da
extensão. Se isso que viemos refletindo até agora é de fato assim, então torna-se
impossível admitir ou ver que “cada pessoa é igual a todas as pessoas”.
Na paisagem do sentido do ser determinado como extensão quantitativa, há só
igualdade formal, e a diferença é apenas numérica, sem nenhum conteúdo. Esse
modo de ser formal, apenas lógico, limpidamente homogêneo, sem nenhum conteú-
do ou diferença a não ser a numérica, esconde em si um grande enigma, pois, nessa
ab-soluta in-diferença, nessa “superfície” lisa de homogeneidade, pode estar retraí-
do um sentido do ser cujas imensidão, profundidade e pulsação vital contidas ace-
nam para o abismo insondável e inesgotável da possibilidade de ser. Mas tudo isso só
se torna de algum modo “visível” se estivermos nos evadindo do sentido do ser
dominante na nossa epocalidade. Mas, como tudo isso já se refere a uma outra
tarefa da reflexão, deixemos assim incompleta a nossa observação, e deixemos para
uma outra ocasião a tentativa de tematizar esse assunto.
Acima dissemos: quando se diz “trata-se do que vale para cada pessoa como es-
sência do seu ser”, isso equivale a dizer: vale para todas as pessoas. O que vale para
cada pessoa – como essência do seu ser – vale para todas as pessoas! Que coisa é essa?
Dizemos é o comum. Essa coisa comum é real, é algo que está em cada um dos indiví-
duos? Se dissermos sim, é real, é algo, e entendermos o real como algo, dentro da
perspectiva do sentido do ser da coisa, entendida como a extensão quantitativa, acima
descrita, então cada pessoa-coisa coincide com todas as pessoas-coisas enquanto
extensão quantitativa coisa, mas diferem entre si apenas numericamente. Disso se se-
gue que indivíduo é 1; comum é mais do que 1, é: 1+1+1+1. Comum é maioria. E o
que determina a comunidade, a qualidade de ser comum é número. Esse tipo de
comunidade pode ser chamado de generalidade. Comum é o geral10.
10 Aqui se entrecruzam dois tipos de modo de ser comum, o da generalização formal matemática e o do uni-versalda ontologia substancialista, mas já no esquecimento da sua própria origem.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 13-23, jan./jun. 2010 21
Quando, porém, nos libertamos da dominação do sentido do ser determinado,
acima descrito como constitutivo do modo de ser quantitativo-extensional-numéri-
co, começamos a ver uma comunidade toda própria, que coincide com a unidade,
formando um todo que não é soma dos algos 1+1+1, mas toda uma paisagem,
denominada mundo, a saber, universo, uni-verso, verso, virado, vertido ao uno. Aqui, o
que conta não é a qualidade diferencial de um ente para com outro, mas o que denomi-
namos de diferença de cada ente no seu ser; é a prenhez, a pregnância de cada ente no
seu ser, a densidade da participação na tonalidade fundamental, que retraída no fundo
caracteriza o colorido dominante da paisagem, mas que não ocorre em e por si como
uma coisa ao lado, no fundo, atrás dos elementos constitutivos da paisagem; neles,
porém, em toda parte, cada vez de jeito próprio, se torna, vem à luz, vem a si como
tônus vital entificante, em sendo. Deixar ser o mundo, cada vez no seu próprio ser é a
essência do homem, enquanto o homem é o ponto de salto da eclosão do mundo a
partir e dentro do sentido do ser que o toca como uma das insondáveis possibilidades
de ser. Esse modo de ser da passagem como realização da realidade, do abismo inson-
dável e inesgotável da possibilidade de ser é o que a grande tradição do Ocidente cha-
mou de razão. Estar no uso da razão é por isso uma ação universal, tarefa de respon-
sabilidade comum, a cura do espírito (leia-se: do sopro vital) de uma valoração, validez
e valentia em receber e assumir o próprio valor e a própria vocação de cada homem
de pensar por si mesmo na plena e ab-soluta liberdade. Exercer essa tarefa inalienável
é o que no texto se denomina: o uso público da razão.
O uso público da razão:
Kant define o que é o uso público da razão, dizendo: “Entendo (...) sob o nome
de uso público de sua própria razão aquele que qualquer11 homem, enquanto escla-
recido12, faz dela diante do grande público do mundo letrado”. Assim, primeiramen-
11 Leia-se: cada homem.12 O termo aqui traduzido por sábio é em alemão Gelehrter; a inconveniência de traduzir Gelehrter por sábio é que,para muitos de nós, a palavra sábio sabe à sabedoria, no sentido quase místico, digamos como o modo de saberque não fica somente no racional, mas recebe a unção toda própria da vitalidade e do sentimento, do coração. Se,porém, entendo o sábio, como aquele que sabe, e entendo o saber como o que foi conquistado com grandeempenho de aprendizagem, que em vez de me fazer um poderoso sabe-tudo, e um ‘ensinador’ prepotente e‘onisciente’, me conduz ao aprender e, em aprendendo mais e mais, me leva a ensinar o aprender como cordial eradical busca de se assumir, de se usar, e se tornar sempre mais clarividente em assumir o privilégio de ser atinenteao logos, à razão universal, então o termo sábio está dizendo o que o termo Gelehrter quer dizer. Esse modo de serna responsabilidade cordial e radical de estar no uso da razão, digamos na ética da razão, é o esclarecimento. Essemodo de ser se chama mundo letrado, i. é, totalidade dos que livremente se assumem como aqueles que lêem:Leserwelt. Com outras palavras, são o mundo, o modo de ser dos que trabalham o ler ou, dito com outras palavras,o mundo da escola, do ensino e da pesquisa desse grande empreendimento humano do aprender. ar
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HARADA, Hermógenes. Autonomia do Sujeito22
te, o termo público, na expressão uso público da razão, significa universal, no senti-
do de virado, versado, concentrado no único necessário, que é a essência do ser
humano, aquilo que vale para cada homem como o que ele tem de mais próprio, a
razão. No Ocidente, na sua história o que é indicado aqui por razão em Kant recebeu
vários nomes, como logos, noûs, alma (psiché), pensar, espírito. Não se trata, portan-
to, em primeiro lugar das faculdades do homem chamadas razão, vontade e senti-
mento. Todas essas faculdades estão contidas no que aqui chamamos de razão.
Ao mesmo tempo, o termo público significa, conforme o contexto, “coisas” diferen-
tes. Mencionemos, pois, a seguir, em alguns pontos o que o termo público pode estar
dizendo: 1. No caso em que, pois, público significa universal, não se trata propriamente
de publicidade, não está indicando se são todas as pessoas, se muitas ou poucas ou
apenas uma única pessoa que faz(em) o uso da razão, mas, sim indica o acontecimento
de – seja uma, poucas, muitas ou mesmo todas as pessoas – cada vez pessoalmente (i.
é, não terceirizando a responsabilidade de usar bem a razão i. é, assumindo o vigor de
compreender, querer e fazer livremente como a sua própria causa) estar no empenho e
desempenho da essência universal do ser humano: da razão. Público pode significar
ainda: 2. a massa de gente reunida; 3. a maneira de manifestação, de apresentação do
ser humano, em se ajuntando para formar coletividade de vários tipos, delimitando essa
coletividade em seu interesse, finalidade e estruturação, como um todo: trata-se, pois,
de público privado ou privativo, por exemplo, cargos públicos, profissões etc. Quando
cada pessoa esclarecida assume a tarefa de servir à humanidade, engajando-se num
encargo público privado, ela está fazendo uso privado da razão. Por isso, diz Kant:
“Denomino uso privado aquele que o esclarecido pode fazer de sua razão em um certo
cargo público ou função a ele confiado”.
Conclusão
Propor uma conclusão na leitura de um texto filosófico não significa que se resol-
veu um problema e se chegou ao fim de uma questão, de tal sorte que se fechou uma
questão, podendo-se assim com segurança e tranqüilidade construir a sua própria
vida, depois de corrigir uma falha. Concluir uma leitura filosófica de um texto signifi-
ca, antes de tudo, ir ao fundo de nossos problemas e ali no fundo abrir-se à questão.
A questão que se nos abre no fim da leitura desse pequeno texto de Kant, vem
exposta na seguinte conclusão:
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 13-23, jan./jun. 2010 23
Ao falar do uso privado e público da razão, Kant não está tratando do problema
de como resolver e harmonizar uma compreensão madura e assumida entre a nossa
vida particular e a nossa vida social. Ele fala, sim, da responsabilidade pessoal e
inalienável de nascer e crescer na capacidade de assumir nossa liberdade e nos tor-
narmos nela esclarecidos, i. é, tornar-nos esclarecidos na autonomia do uso da razão.
Com outras palavras, aqui não se trata da nossa vida privada, particular, subjetivo-
“pessoal”, mas da tarefa uni-versal, que toca a cada um de nós no mais íntimo e no
mais próprio da essência humana, a saber, alcançar a maturidade do esclarecimento.
De que se trata? Que questão, i. é, que busca é essa que se nos abre ao lermos uma
afirmação de Kant como essa, quando ao se tratar do uso público da razão, ele nos
diz: “Ouço, agora, porém, exclamar de todos os lados: não raciocineis! O oficial diz:
não raciocineis, mas exercitai-vos! O financista exclama: não raciocineis, mas pagai!
O sacerdote proclama: não raciocineis, mas crede! (Um único senhor no mundo diz:
raciocinai, tanto quanto quiserdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!)”.
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Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 25-36, jan./jun. 2010 25
Rachel Gazolla *
Resumo: Este artigo analisa o conceito de liberdade como um valoratual, e suas relações com o tema da violência e do imaginário. NaGrécia Antiga, ser livre correspondia a não ser escravo; na sociedademoderna, ser livre significa ser cidadão entre outros cidadãos. Todaviaisso não expressa toda a verdade. Segundo Freud, liberdade tem a vercom imaginário, que é um fator do poder de sublimação da psique.Sublimação é saber escolher um objeto para a psique, quando não setem o que se quer; a liberdade e a violência têm a ver com essa boa oumá escolha sublimatória da psique. No nível da sociedade, porém, apsique é bombardeada por avalanches de sugestões de desejos, for-mando um processo imaginário moldado ao mundo circundante. Tra-ta-se do assim chamado processo de massificação de valores e ações.Nesse ponto, o artigo toca na questão da massificação: um processoque retira os contornos próprios, as qualidades específicas, as diferen-ças individuais e identitárias de cada um. É um processo de alienação eabdicação de si próprio, via de regra sem consciência disso. Talvez esseseja um dos piores modos de violência no que tange à liberdade.
Palavras-chave: liberdade, imaginário, sublimação, violência,massificação.
Abstract: This paper analyzes the concept of freedom as a presentvalue, and their relationship to the topic of violence and the imaginary.In ancient Greece, being free meant not being a slave; in modernsociety, being free means being a citizen among other citizens. Howeverit does not express the whole truth. According to Freud the conceptof freedom is related to the imaginary, which is a power factor ofsublimation of the psyche. Sublimation is how to choose an object,when you do not have what you want; freedom and violence arerelated to this good or bad choice sublimating. But at the societallevel the psyche is bombarded by an avalanche of suggestions ofdesires, forming an imaginary process shaped to the world aroundthem. This is the so-called process of massification of values and actions.At this point, the article touches on the issue of massification: a processthat takes the personality, the qualities specific, the individualdifferences and the personal identity of each. It is a process of alienationand abdication of its own, usually without knowing it. Perhaps this isone of the worst forms of violence, with regard to freedom.
Keywords: freedom, imaginary, sublimation, violence, massification.
Reflexões em torno da liberdade,violência e imaginário
* Rachel Gazolla é prof. dra.em História da Filosofia Antigana PUC-SP([email protected]). ar
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GAZOLLA, Rachel. Reflexões em torno da liberdade, violência e imaginário26
Introdução
Somos livres por natureza, afirmaram John Locke no século XVII e Rousseau no
século XVIII. Essa idéia, na qual acreditamos e pensamos ou queremos praticar, é um
valor indiscutível nos dias de hoje e ninguém, em sã consciência, o desprezaria, ape-
sar de não estar completamente objetivado. No entanto, nem sempre esse valor teve
o sentido que hoje tem. Há uma história a ser feita sobre essa noção, e se ela veio a
ser importante e avidamente procurada, isso se deve ao fato de que não a vivemos
plenamente. Afinal, só se procura o que não se tem facilmente à mão. Liberdade é
um valor que nossa civilização ainda não efetivou como gostaria – se é que efetivará
–, é um paradigma para um tipo de sociedade datada historicamente, da qual somos
os herdeiros mais diretos: a sociedade que fundou o Estado Moderno e que carregou
no bojo de sua bandeira a classe burguesa.
Sabemos o que significa liberdade? Apesar de seu valor específico para nós ter
data recente, a palavra existe ao menos desde a Grécia arcaica, se tomarmos a Grécia
como raiz da civilização ocidental. Ser livre é não ser escravo: este é um primeiro
sentido que recolhemos, mas é uma resposta pouco esclarecedora. Foi essa a noção
das antigas fratrias. Ou se era livre ou escravo de guerra, eram as duas noções que
apareciam juntas. Pensadores mais próximos a nós, os citados acima, diferenciaram
liberdade de licenciosidade e criaram o contrato social e a nomeada sociedade civil,
como se sabe, marcando os valores da igualdade, da liberdade e da fraternidade que
transportam o homem a uma nova visão do mundo, criadora do éthos moderno.
Nesse éthos, o valor “liberdade” vem marcar o que chamamos de subjetividade, isto
é, uma interioridade que sabe de si mesma, que tem responsabilidade para com o
outro e se vê igual a todos no tecido social, como se o gênero humano pudesse
transformar-se em átomo social e tivesse a identidade dada pelo contrato social: ser
cidadão. Mais que homens, somos cidadãos.
A esfera cívica nessa estrutura, com seu público e privado a princípio mal deline-
ados (como será visto adiante), passa a assentar-se na preservação de cada cidadão
como indivíduo livre, igual ao outro cidadão e fraterno, partícipe de uma mesma
totalidade que expressa nosso ser social, que é, afinal, nossa racionalidade, nossa
subjetividade. Dizer isso parece óbvio exatamente porque é essa a nossa atual ideo-
logia. Ser livre depende, assim, de um tipo de relação específica entre os homens
pertencentes a certa ordenação histórica, e só a essa ordenação. Ser licencioso, ao
contrário de ser livre, implica no desprezo ao outro quanto à sua subjetividade ou
racionalidade. Sem saber do outro, ou desprezando o outro, a ação estará à margem
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 25-36, jan./jun. 2010 27
da cidadania. A licenciosidade caminha, desse modo, a par e passo com a falta de
amizade e contra a liberdade cidadã do Estado Moderno.
Mas dizer isso não é tão esclarecedor como parece. Se prezamos a liberdadecomo cidadãos, devemos prezar a liberdade de cada um como pessoa e não só comocidadão, o que é bem mais difícil para teorizar e praticar. A dificuldade está no fato
de que a cidadania é uma roupa necessária que vestimos modernamente, mas nempor isso nosso ser como pessoa – e não como subjetividade individual, o que é dife-
rente – segue essa roupagem. Talvez queiramos, em muitos momentos da vida, aquebra da ordem ético-política em nome de nossos desejos de liberdade imediata,dessa liberdade primária, pode-se dizer, que veio a ser o nome para licenciosidade.
Então, por mais que respeitemos em pensamento a noção de liberdade, de amiza-
de, de cidadania, o que sentimos não parece ser isso. Talvez, não seja suficiente explicarliberdade sem a vontade que temos de quebrá-la, e se assim fizermos adentramos no
que denominamos violência. Nesse novo ângulo, temos que refletir em dois camposentremeados por um terceiro: a) liberdade; b) violência; c) sentimentos.
Ora, o sentir está intimamente relacionado ao que imaginamos ao sentir, ao quesabemos para sentir. E o que sabemos, de fato, sobre o que nos ocorre? O imaginário
aparece como ferramenta primeira para pensar os três campos acima citados, pois aoagirmos temos imagens, sentimentos e pensamentos fundando nossa ação. Apresenta-
remos alguns aspectos do problema, dada sua complexidade, mas esperamos que se-jam suficientes para abrir um diálogo. Para isso, elencamos sete itens que devem orde-nar esta exposição e facilitar a reflexão sobre o imaginário em relação à liberdade, vio-
lência e sentimentos, caminhando também por campos tangenciais à filosofia.
1 Freud, o processo de sublimação e a liberdade
Pode-se dizer que para Sigmund Freud, o imaginário é o campo da nossa psique
formado pelas imagens, figurações de todo tipo, sendo o receptor das afecções sen-
síveis externas, e por vezes internas, a partir das quais se cria e se guardam as ima-
gens. Para a psicanálise, e escolhendo o texto “O ego e o id”, de 19231 para melhor
explicar o que queremos, é dito:
...Todas as percepções que são recebidas de fora (percepções sensórias) e de dentro –
o que chamamos de sensações e sentimentos – são conscientes desde o início. Mas, e
1 In Obras Completas, volume XIX, São Paulo: Ed. Standard Brasileira, 1976, p. 13-80. arti
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GAZOLLA, Rachel. Reflexões em torno da liberdade, violência e imaginário28
aqueles processos internos que podemos... resumir sob o nome de processo de pen-
samento? Eles representam deslocamentos de energia mental2 que são efetuados em
algum lugar no interior do aparelho (psíquico) à medida que essa energia progride
em seu caminho no sentido da ação. Avançam eles para a superfície, fazendo com
que a consciência seja gerada? Ou a consciência abre caminho até eles?... (p. 32)
Claro que tal pergunta é filosófica, e Freud sabe de sua dificuldade. Um pouco
mais adiante, ele afirma que “...pensar em figuras... é apenas uma forma muito in-completa de tornar-se consciente. De certa maneira, também elas se situam maisperto dos processos inconscientes do que o pensar em palavras” (p. 34-35). Desse
modo, as percepções externas que ajudam a formar o ego ou o consciente, para ele,costumam ser muito ricas, mas há os “acontecimentos” internos, que dizemos serem
subjetivos, e estes também incidem no sistema perceptivo consciente e pré-conscien-te e não são externos. Produzem, inclusive, sensações e processos psíquicos muito
profundos que não têm fundamento na realidade empírica. Claro está que tal visãorealmente torna complexo pensar nosso conhecimento e sentimentos.
No sentido de esclarecer nossa reflexão, usaremos a expressão memória imaginá-ria para indicar quer sejam as sensações, imagens, sentimentos, pensamentos advin-
dos e moldados pelas próprias afecções que nos chegam, quer nascidos dos própriosprocessos internos que incidem no imaginário e na sua memória figurativa, pois
externo e interno não vão, neste caso, um sem o outro. Freud parece dar ao imaginá-rio um tom negativo mais que afirmativo, como veremos. Esse campo de imagensvem a ser o conjunto de fantasias ou representações recebidas, eventualmente repri-
midas e sublimadas e que, apesar de nossa consciência, costumam trabalhar interna-mente quase por conta própria, ou seja, de modo inconsciente para o ego e seus
pensamentos e linguagem.
Como se sabe, a sublimação é um processo de defesa fundamental para nossasobrevivência, é um processo civilizatório que pressupõe um feixe pulsional, ou ener-gético, ou libidinal em sentido amplo3, que deseja algo mas se vê obrigado a trocar o
desejo objetal por outro objeto. Por vezes, troca bem, outras vezes, troca mal. Bem emal são ditos, aqui, no sentido de maior ou menor sobrevivência psíquica, maior ou
menor sofrimento psíquico (logo, também corpóreo). Como as pulsões pressionam ohomem sem que o ego venha a saber sobre elas enquanto tal, somente percebe, e
quando percebe, seus sinais na forma de uma espécie de “pressão” que se canalizará
em busca de algo desejável para estabilizar-se.
2 Sabe-se que energia mental é o que, em Psicologia de grupo e análise do ego (1921), Freud nomeará de libido.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 25-36, jan./jun. 2010 29
Assim, desejar algo que se sabe o que é já é indicativo de um longo caminho
anterior. Este caminho se oculta e vem a emergir, quando conscientizado, como de-
sejo de algo determinado, que vejo e posso agir para obter, sendo tal objeto capaz de
retirar a pressão sentida como dor ou pressão ou desprazer: a sede se acalma com
água, a saudade com a visão do ser amado, a pergunta, com a resposta, e assim por
diante. Esse “algo” que acalma a pressão pulsional-desejante é, por vezes, “escolhi-
do” pelo homem e conseguido por ele. Mas nem sempre, de modo que aparente-
mente sem exercermos a escolha ou sem termos o objeto desejado, a pressão pode
desaparecer e o desejo se acalma. Por quê?
Quando bem conduzidas, as pulsões chegam a bom termo, no sentido de que o
objeto escolhido cumpre o propósito do processo; se mal conduzidas, a pressão con-
tinuará mesmo após a escolha do objeto de desejo, e é aqui que a sublimação tem
entrada, pois se o homem busca e jamais se tranqüiliza, adoece necessariamente. O
processo de sublimação é, por isso, um processo de defesa importante.
Mesmo que essas colocações sejam muito gerais, o que se nota é que o homem
é um ser de carência e de busca de não-carência, o que a filosofia, desde a Grécia,
não negaria. Para Freud, a sublimação é um processo necessário à civilização porque,
para ele, civilizar-se é aprender a reprimir-se, é saber escolher bem um objeto de
desejo quando não se pode ter aquele que se quer, ou no momento em que se quer.
É, ainda, saber trocar de um objeto desejado para outro que venha a confortar a
psique e estabilizar a pressão pulsional. É um processo difícil para o ser humano e
indica, segundo Freud, nossa maturidade ou imaturidade. Uma sublimação, quando
conveniente, liberta-nos de algum modo das frustrantes repressões a que estamos
continuamente sujeitos; ou é ineficiente nos caminhos que se escolhe para defesa do
sofrimento, de modo que o objeto que servirá para o processo de sublimação não
cumprirá sua “função tranqüilizadora da psique”.
Esse dinamismo psíquico vai formando uma espécie de “geografia” de cada psi-
que, quer no sentido de construí-la, ou de destruir nossa vitalidade psíquica. Em
sendo assim, essa leitura da face negativa do imaginário aparece a partir dos jogos
variáveis de repressões-desejos-sublimações, jogos que nem sempre conhecemos e
nem sempre ganhamos quando conhecemos. Essa memória imaginária, como disse-
mos, é sempre uma válvula de escape para a repressão, quer seja eficiente ou não em
seu modo de processar impulsos desejantes. E se o poder do imaginário tiver um
3 Veja-se ensaio de S. Freud Psicologia de grupo e análise do ego. arti
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GAZOLLA, Rachel. Reflexões em torno da liberdade, violência e imaginário30
colorido mais negativo que positivo, como talvez tenha, cremos que isso se dá por-
que quase nunca sabemos do que realmente se passa em nós, ou não lembramos, e
a sublimação que deveria ser criativa na sua troca de objeto, transformadora e vital,
costuma repetir-se no modo de trocar objetos desejantes, o que faz de uma pessoa
um ignorante sobre si mesmo, ingênuo em suas interpretações do mundo e do Ou-
tro, viciado em suas leituras. As conseqüências para o agir costumam ser desastrosas,pois somos mais determinados do que determinamos nossa vida, nessa perspectiva.
Mas é preciso explicar melhor este último ponto, uma vez que nele está imbricada
a noção de liberdade e violência, como já se adivinha.
Metaforicamente, esse poder de sublimar pode dirigir-nos como marionetes ao
automatizar pensamentos e ações segundo princípios que desconhecemos, compro-
metendo a leitura de nós mesmos e do mundo, logo, nosso processo de sublimar osdesejos. O imaginário, a partir do qual sublimamos, costuma ser hegemônico, de
modo que nossas interpretações emergem dele de modo dogmático. Expliquemos.
Se o imaginário é criado a partir de sensações, sentimentos, figurações e pensamen-
tos sobre as coisas que nos afetam; e se os impulsos buscam, pela via do desejar, sua
realização, tem-se que são as imagens que permeiam os pensamentos para que se
encontre ou não a coisa desejada, ou outra coisa para colocar no lugar da desejada,se for o caso. Se desejo um sorvete e não posso porque estou febril, terei que subli-
mar tal desejo e procurar outro objeto compensatório: busco a imagem de algo para
trocar pelo sorvete (um pudim, por exemplo) ou nego esse desejo ou o reprimo,
como faz a raposa na fábula das “uvas verdes”, o que não é uma boa saída.
Então, a raposa não fez uma boa sublimação porque negou seu desejo sem
trocá-lo por outro, racionalizou, como dizemos, mas, na fábula do corvo e do queijo,
ela acaba conseguindo algo quando obriga o corvo vaidoso a abrir o bico para cantar
e ela apanha o queijo que cai. A astuciosa raposa, nesta última fábula, resolve bem
seu problema, o que nem sempre conseguimos resolver.
Há casos extremos em que pessoas imaginam objetos impossíveis: um homem
delirante, por exemplo, quer voar com seus próprios braços; um homem sem dinhei-
ro e com oitenta anos de idade deseja seduzir uma jovem de dezoito. Como será o
processo de sublimação? Não terá bom resultado. Temos mais dificuldades se
estruturamos imagens impossíveis ou inexistentes, e nem sempre sabemos que assim
fazemos. Então, as sublimações de cunho neurótico ou mesmo psicótico são aquelas
viciadas, ou eivadas de sombras que nada conseguem como compensação nas trocas
possíveis. Claro que as trocas, quando há, não resultam em vitalidade para a psique,
e os impulsos desejantes se acumulam sem bons caminhos, pressionando para saí-
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 25-36, jan./jun. 2010 31
rem, o que leva à dor. Aquele que não tem critérios para saber do bom uso desse
importante processo de sublimação, não saberá o que é melhor para si nas escolhas.
Ora, a ética está comprometida nessa leitura. Como pensar a liberdade em relação
ao imaginário? Por que a psicanálise pode servir de ajuda para esta reflexão? Já adianta-
mos que o imaginário tem um lado determinador de nossas ações e, ao mesmo tempo,
tem potencialmente quase tudo de que necessitamos para a tranqüilidade da alma se e
somente se soubermos usar de bons critérios para escolher, na medida do possível,
nossos objetos de desejos e suas trocas. Vejamos, então, o segundo item.
2 Imaginário e massificação
Na obra A razão cativa, S.P. Rouanet é feliz. Recolhe o problema que nos interes-
sa com referência ao imaginário e a ponte com o social quando pergunta se esse
processo imagético-sublimador, exposto em detalhes por Freud com grande amos-
tragem de casos clínicos, tem ressonância nas classes sociais? Explicando melhor: se
o imaginário, quer no sentido destrutivo, não vital, quer no criativo, muda de cor em
função do poder econômico de uma classe social e de seu modo específico de viver?
O conteúdo – e não o processo – da sublimação é social? A raposa poderia, em última
instância, exercer sua astúcia com o corvo se não soubesse o que é um queijo? Um
operário que vive entre sua casa e a fábrica, tem família, filhos, amigos e uma rotina
determinada, apresenta um universo de imagens possíveis para o processo de subli-
mação: os objetos desejados e suas trocas nascerão das situações de repressão nas
quais é obrigado a viver e terá imagens, percepções, sentimentos, pensamentos es-
pecíficos, e tanto faz que ressoem os objetos de desejo das situações no trabalho,
familiares, de amizade.
As representações construídas, as imagens e suas misturas alquímicas lhe são
específicas? Terão o teor da vida da classe operária? É específico o recorte do mundo
de um operário, de um camponês, de um banqueiro, de um filósofo, de um pai de
família, de um solitário, de um político?
A resposta pode ser: formalmente, sim. No entanto, a qualidade do imaginário
de cada homem parece diferenciar-se, uma vez que o modo de vida, as situações
representadas e as repressões necessárias e sublimadas não serão as mesmas nos
exemplos apontados. Ou seriam? Tudo indica que não. Os processos de sublimação
parecem variar dependendo do tipo de objeto de desejo a ser eventualmente repri-
mido e sublimado, e da biografia de cada um. Um intelectual como Gramsci, quando
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GAZOLLA, Rachel. Reflexões em torno da liberdade, violência e imaginário32
esteve na prisão e em contato mínimo com o mundo, escreveu Cartas do cárcere: sua
psique já era extremamente rica de conteúdos diversificados. No filme brasileiro Abril
despedaçado, o personagem “Menino”, do seco sertão de um só horizonte em que
os bois desenham círculos na terra o dia todo, se suicida pensando no mar e na
sereia, únicos objetos de desejo construídos por um imaginário carente de represen-
tações. O yuppie da bolsa de valores de NY pode drogar-se para superar seus desejos
nascidos da incansável multiplicação da virtualidade em que vive. A adolescente em
busca do grande amor pode considerar que não se casará por ter a imagem de si
mesma muito prejudicada, de modo que em estado depressivo se gastará, sem subli-
mação possível, no curto horizonte de um espelho... e assim por diante.
Se tivermos razão quanto à variabilidade dos modos de repressão e, conseqüen-
temente, de sublimação de desejos nascentes, sem bons canais para bons objetos de
troca; e se há dependência de vivências específicas socialmente, isso significa admitir
que o modo de produção em relação ao modo de viver determina a qualidade do
imaginário. Assim, o social e sua divisão em classes produtivas facilitará ou dificultará
as convenientes ou inconvenientes sublimações. Ora, se voltarmos à questão da li-
berdade, já se percebe que ela está a par e passo com o imaginário no sentido que
expusemos, e pode comprometer-se – e em geral está comprometida – com a leitura
que se faz do mundo. Essa leitura, por sua vez, depende não só das circunstâncias da
vida social, mas da dinâmica psíquica de cada um.
Deliberamos para agir, ou ao menos assim pensamos fazer, e como a liberdade
depende da relação com o outro (homem, cidade, cosmos), nossos processos inter-
nos se conformam, bem ou mal, com o que lhes afeta e como trabalha, sujeito a
circunstâncias variáveis e, por que não dizer, a certas determinações biológicas. De
modo que a nomeada liberdade não é tão fácil de definir, não é tão vasta nem trans-
parente como pensamos e queremos quando lemos a constituição de um país dito
democrático.
Há décadas atrás, foi feita uma pesquisa com operários de baixo salário do ABC,
à época do Natal. A pergunta: se ganhassem naquele momento na loteria, o que
fariam no Natal? As respostas foram, para a grande maioria: aumentaria a comida na
ceia de Natal, compraria bicicleta para os filhos, que mudariam para um colégio
melhor, bons presentes para a família, uma viagem, automóvel, moradia. Não é pre-
ciso comentar muito: a projeção desses desejos está calcada no modelo de outra
classe social, a pequeno-burguesa. Seria interessante continuar esse tipo de pesquisa
aprofundando-a para outros segmentos sociais para saber algo sobre as respostas de
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 25-36, jan./jun. 2010 33
uma minoria social. Outro exemplo: numa favela, a mãe pobre e astuciosa coloca
num copinho de plástico, cuja embalagem é de uma multinacional conhecida, um
pouco de mingau doce para a criança que chora porque quer o iogurte que aparece
na televisão.
Trata-se de um ponto de nascimento de desejos reprimidos que vem a adquirir
contornos, figurações específicas, dependendo da sociedade em que se vive e como se
vive. Certos modos de sublimar uma repressão do desejo dependem do modo de comu-
nicação de uma sociedade, e a repressão do desejo pode mergulhar na via da astúcia ou
do ressentimento. Então, já é hora de levantar uma grave questão: se compreendemos
parte do problema da liberdade e sua relação com o imaginário – ou ao menos circuns-
crevemos um campo possível para refleti-los de modo mais articulado –, será que pode-
mos, ainda, falar em classes sociais numa sociedade massificada?
O conteúdo do imaginário, ao menos do imaginário nos lugares onde a
massificação e a globalização já se impuseram, está diferenciado? Se estiver, teremos
diferentes leituras de mundo, logo, diversos modos de reprimir desejos, sublimar,
agir. Se não estiver diferenciado, haverá uma uniformidade no interpretar e no agir,
dado o fato de o imaginário estruturar de modo homogêneo as mensagens-imagens
recebidas do olhar, da audição, do gosto, do tato, do cheiro e, finalmente, do pensa-
mento. O nó górdio é que a diferença de classes sociais e sua variabilidade cultural
estão esgarçadas na sociedade massificada, fato que temos de analisar.
Como nota Ortega y Gasset, estamos no mundo da quantidade, do grande nú-
mero que alcança todos os espaços anteriormente ocupados pela bem delineada
classe burguesa e pequeno-burguesa. Homens massificados não têm classes bem
delineadas, e os desejos por mercadorias – essas, sim, podem variar – transformaram
antigos gostos, possíveis virtudes e os vícios, objetivos, independente da classe a que
pertencem ou pertenciam. Não há novidade nisso, apenas coordeno algumas refle-
xões já feitas. Marx, nos Manuscritos econômicos filosóficos, afirma (no terceiro ma-
nuscrito):
...É evidente que o olho humano goza de modo distinto que o olho bruto, não huma-
no, que o ouvido humano goza de maneira distinta que o bruto etc.. o homem se
afirma no mundo objetivo não apenas no pensar, mas também com todos os senti-
dos... É somente graças à riqueza objetivamente desenvolvida da essência humana
que a riqueza da sensibilidade humana subjetiva é em parte cultivada e em parte
criada, que o ouvido se torna musical, que o olho percebe a beleza da forma, em
resumo, que os sentidos tornam-se capazes de gozo humano, tornam-se sentidos
que se confirmam como forças essenciais humanas. E não só os sentidos, como tam- arti
go
s
GAZOLLA, Rachel. Reflexões em torno da liberdade, violência e imaginário34
bém os chamados sentidos espirituais, os sentidos práticos (vontade, amor etc.), em
outras palavras... a humanidade dos sentidos...
Assim sendo, e focalizando a liberdade civil, é ela que está em jogo, pois a ela se
atrelava o modo de ler a si e ao outro, de uma só vez, na sociedade moderna que nasceu
liberal e democrática: somos livres, iguais e fraternos. Ora, se não há como escapar do
poder da psique de criar o imaginário em ângulos variados, negativo ou positivo, com
ou sem a incidente de classes, necessariamente com incidências biológicas, quer para o
bem quer para o mal, então, o que merece ser perguntado é até que ponto vai o poder
de massificar o imaginário e até que ponto a espinha dorsal da liberdade civil e de
outras noções que a acompanham se quebram com a massificação de ações e valores.
O que é massificação? E entramos no último item de nossa exposição.
3 Massificação e violência
Carlos Drummond de Andrade, o poeta, não foi um homem massificado, nem
Guimarães Rosa, nem os artistas consagrados, em geral. Também não são massificados
o coronel do fundo do sertão nordestino, nem o catarinense agricultor descendente
das famílias alemãs do interior do seu Estado. E pressupõe-se que um intelectual não
seja massificado. Um clã, uma tribo, não conhece a massificação, uma vez que a
comunidade é extensão de si mesmo, faz a identidade de cada um dos seus compo-
nentes. Massificação é outra coisa, pois deixa um indivíduo como o configurou a
modernidade, sem contorno, sem qualidade específica. Que são, então, homens
massificados? De um ângulo, são quantidades, números. De outro, são seres huma-
nos que trabalham, desejam e agem segundo valores e propósitos. Parte da pergun-
ta sobre massificação já foi respondida antes: massificar é homogeneizar, é transfor-
mar a diferença em semelhança, uma vez que ninguém é igual ao outro de fato, nem
tem os mesmos valores e desejos. Por meio de uma abstração – como a idéia de
cidadania – temos a consciência de sermos iguais e livres e simbolizamos a liberdade
cívica.
No homem massificado, essa capacidade de abstração está prejudicada, mas
vêm a nascer nele valores e desejos como se fossem imagens e pensamentos próprios
e que, de fato, lhe foram incutidos por violência, por repetição infindável, quer ex-
posta ou oculta. Ele nada sabe sobre si ou sobre o outro, mas ao imitar o que pensa
desejar e o que pensa pensar, vive e cria uma identidade alheia que pensa ser própria.
É esse o processo de alienação, no rigor dos termos.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 25-36, jan./jun. 2010 35
Ao mimetizar, ao imitar, suas afecções, imagens, desejos, valores, ações são pro-
dutos prontos provenientes do exterior e se interiorizam sem passagem, pois a vio-
lência da repetição, como toda violência, se dá in brutu. Mas, nesse processo parado-
xal, esse ser regurgita o que pensa ser si mesmo mas é o que guardou por imitação.
Nada há de novo. A massificação torna previsível o ser de cada um, dispensa a leitura
do social pela via das classes sociais que, afinal, não têm mais linhas definidas no
gosto, no olhar, no tato, nem no desejar, apesar de, economicamente, a definição de
classe ser preservada. O ângulo de leitura deve ser, agora, outro, que possa ler por
dentro o que antes nomeávamos com clareza “classes sociais”.
A massificação é nebulosa em muitos aspectos porque estamos dentro dela, ou
seja, como a vida para a sobrevivência, a vida do trabalho, é técnica e repetitiva,
nosso processo de pensar é técnico e repetitivo, ou seja, fabricamos pensamentos,
valores, ações e até desejos. Fabricar é produzir algo a partir de um material que
recebe uma forma do fabricador tendo em vista um fim. É o que fazemos conosco.
Por exemplo, ao perguntar quem sou, o processo de pensamento é, em geral, que
matéria tenho: Meu corpo, meu dinheiro, minha casa, meu carro, meu diploma, meus
amigos etc.; que forma darei a essa matéria? Um corpo sarado, mais dinheiro, outra
casa, troca de carro, aplausos no trabalho, mais um carro, mais amigos etc., é o que
pretendo produzir como fabricante de mim mesmo. Forma e fim formam o mesmo
na circularidade do processo técnico.
Estamos tão acostumados com esse modo de processar a realidade que não sa-
bemos sobre outro, mas há outros, muitos outros. Então, como ficam o imaginário e
a liberdade nesse quadro? A liberdade tende a esvaziar-se, isso é claro. Já o imaginá-
rio empobrece na sua capacidade de multiplicar as vias de sublimação, de criativida-
de quanto às defesas, o que torna pouco viável a manutenção da complexidade vital.
Vitalidade é também forças pulsionais “livres”, ou, em outro modo de dizer, “desejos
livres” para objetos não tão fáceis de conseguir. Na sociedade massificada a multipli-
cação de objetos de desejo é infindável, de modo que quanto mais se tem mais se
quer. O processo de sublimação está comprometido, não se pode ter tudo mas a
tudo se deseja sem critérios.
Creio que há uma capacidade de desejar e obter atualmente destrutiva, na medi-da em que a psique perigosamente se automatiza, se repete viciosa no querer, emimagens estruturadas para serem desejadas, imagens de coisas e de pessoas-coisas.O imaginário vai tomando a forma do que a sociedade produtora de mercadoriasdeseja, contra ela mesma, diga-se de passagem. De seres em abertura para o errar ouacertar nas ações, para pensar, para criar valores e desejar sempre em perigo de ar
tig
os
GAZOLLA, Rachel. Reflexões em torno da liberdade, violência e imaginário36
conseguir ou não, de bem sublimar ou não, viemos a ser previsíveis, seres de poucasvias e poucas transformações.
Somos determinados no que desejamos, queremos o que desejamos e não pode-mos ter o que desejamos porque o desejar tornou-se infinito em objetos de desejos etomou conta do imaginário. As pulsões procuram todos os objetos sem critério, e oimaginário tem comida suficiente para elas, mas nosso ser não suporta tal peso. É acivilização, portanto, que não suporta tal peso.
Há muitos seres que não se civilizaram. Diz Aristóteles na Metafísica A, livro I, queos animais não lógicos têm os sentidos, têm memória, representam muito pouco enão criam a experiência como saber que une conjuntos de representações. Ou, sequisermos lembrar o livro I da Política, do mesmo Aristóteles, os escravos por nature-za são aqueles a quem é dado somente obedecer, à falta de pensamento de conjun-to, de relações mínimas entre as coisas e os pensamentos. Nós nos civilizamos eparece que não suportamos isso, pois criamos um modo de deixar aflorar o não-civilizado na forma da obediência ao que nos afeta primariamente. Nosso imagináriose estrutura, agora, numa paisagem de poucas cores, o que nos leva a desejar muitascoisas mas sempre com poucas cores.
Será que algo tem a dizer um poema de Drummond, nomeado Science fiction?
Vejamos o que ele nos diz:
O marciano encontrou-me na ruae teve medo de minha impossibilidade humana.Como pode existir, pensou consigo, um serque no existir põe tamanha anulação de existência?
Afastou-se o marciano, e persegui-o.Precisava dele como de um testemunho.Mas, recusando o colóquio desintegrou-seno ar constelado de problemas.E fiquei só em mim, de mim ausente.
Drummond facilita o que quero dizer, e ao finalizar quero refletir sobre a ausência
de si mesmo, o modo mais violento e menos livre que temos para nossa destruição.
São Paulo, verão de 2009
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 37-48, jan./jun. 2010 37
Gilvan L. Fogel *
1. É com vergonha, é escondendo mãos e cara que
escrevo o título e inicio estas breves considerações. Ver-gonha, pois, apesar de professor, preciso confessar que
entendo muito pouco de educação. Mas creio ser este ocaso de muitos, talvez da maioria dos professores. Sabe-se que são muitos os professores, os docentes, e pou-
cos, raros os mestres, entenda-se, os verdadeiros edu-cadores. E é perfeitamente possível, e mesmo corrente,
ser um grande educador sem entender, isto é, sem serversado, culto e bem informado a respeito do tema. Em
geral, é isso que acontece. Pressionado, porém, nãodeixo de emitir algumas poucas e vagas opiniões sobreo tema. Opiniões que não deveriam ser publicadas, mas
permanecer no recinto da conversa íntima, pois a publi-cação já dá ares de solenidade e lembro-me de
Montaigne afirmar não haver mal nenhum em se dizerbobagens, tolices (“sottises”) – o mal estaria em dizê-las com solenidade. Mas, enfim, aí vão as opiniões cur-
tas e breves – sem solenidade, espero.
2. Começo ponderando que o tema “educação” cos-tuma vir à baila no âmbito da chamada “filosofia da
educação”. A filosofia, desde seu nascedouro grego,sempre foi um esforço de compreensão de realidade.Isso vem expresso na fórmula canônica “amor ao sa-
ber” e também “amor à verdade”, à busca da verdade.
A verdade é o real na sua realidade ou no movimento
de sua realização, isto é, na sua essência.
Notas a respeito de educação
* Professor de Filosofia do IFCS,UFRJ.
arti
go
s
FOGEL, Gilvan L. Notas a respeito da educação38
Educação, educar, fala de levar, conduzir para. Também isso, educação, esta con-
dução do homem, foi realização grega, principalmente em torno do século V a. C.,
no contexto da sofística, aí incluídos Sócrates e Platão. O que chamamos educação, o
grego chamava “paideia”, que costumamos também traduzir por “formação”. Aqui,
porém, é preciso entender “formação” no sentido preciso, verbal, de dar forma,
enformar, mesmo cunhar, modelar, e isto no sentido de determinar. Entenda-se, pois:
dar forma ou determinação ao homem, formar, en-formar a sua humanidade, a sua
hominização. “Paideia”, formação, isto é, encaminhar, pôr (o homem) a caminho,
num caminho – o da verdade do homem para o próprio homem.
Através desta formação, “a paideia”, o grego visava a conquista da “areté”, isto
é, da virtude, que, tal como “valor”, quer igualmente dizer “força”. Através da educa-
ção, a areté! Não que educação fosse meio para se atingir um fim (a areté); um
instrumento para se obter uma meta, um objetivo, a areté, que estivesse projetado e
programado fora e além da educação e que fosse outra coisa (idealizada!) que a
própria educação, paideia. Não. A educação, paideia, já é areté. O movimento para a
coisa já é a própria coisa, isto é, o movimento para a areté, a paideia, já é ele mesmo
areté. Areté é, pois, formação, educação; educação, formação, é, pois, areté. E areté,
dizendo virtude, força, claro, não pensa ou subentende força no sentido bruto ou
físico, mas força no sentido de força de ânimo, de alma, que é força vital, vitalidade.
Isso, para o grego, está ligado à excelência, à nobreza ou ao aristocrata, isto é, ao
forte. Mais uma vez, aristocracia, nobreza, aqui, são termos que, de modo algum,
tem conotação étnica, social ou política, mas, sim, antes, filosófico-vital ou existenci-
al. Referem-se pois à essência do homem, à vitalidade humana. Nobre, aristocrata,
forte, é o homem mais homem, isto é, aquele que mais decidida e mais essencial-
mente realiza a sua humanidade. Educar é cultivar isso, cuidar disso.
Nesse contexto, a educação, a “paideia”, visa conquistar e realizar a “areté” e
isso através da transformação do homem pelo homem, ou seja, através da transfor-
mação da humanidade do homem pelo próprio homem e isso quer dizer: através de
seu saber radical ou fundamental a respeito da realidade como um todo e de si
próprio, em particular – isso, porém, é a filosofia. E aqui, agora, começa-se a enten-
der a expressão “filosofia da educação”, de cunhagem recente, como a conjugação
das duas noções.
O caminho de realização desta proposta ou deste ideal grego, sendo norteado
pela filosofia, pelo saber essencial ou radical, se faz pela via da conquista da verdade
no exercício da liberdade. O caminho é, pois, a verdade e a liberdade. Melhor: a
liberdade para a verdade ou, ainda, a verdade como realização e concretização da
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 37-48, jan./jun. 2010 39
liberdade. Isso, a saber, este ideal, esta conjugação de saber, condução da vida, ver-
dade e liberdade – a excelência (“areté”) da vida! –, que o Ocidente herdou dos
gregos e que moderna e contemporaneamente se converterá no propósito implícito
na “filosofia da educação”, foi exemplar e emblematicamente formulado no “mito
da caverna”, de Platão.
Desde esta formulação de um projeto educacional humanista (a Grécia clássica,
os sofistas), este, grosso modo, se tornou ideal e norte de praticamente todas as
épocas da história ocidental-européia e, grosso modo, praticamente quase todos os
filósofos, quase todas as escolas filosóficas, uns ou umas de modo mais explícito e
outros ou outras menos, se ocuparam e pré-ocuparam com temas-problemas de
educação, de formação, inseparáveis do humanismo, entendendo-se este como o(s)
movimento(s) de promoção da humanidade do homem a partir de uma certa pré-
compreensão-definição deste próprio homem. Neste sentido amplo e geral, foram
preocupações de gregos, de medievais, modernos e o é dos contemporâneos. Na
modernidade e na contemporaneidade, chama a atenção a Alemanha e seus pensa-
dores, de Leibniz e Kant até Heidegger, passando por Hegel, Schelling, Schopenhauer
e Nietzsche. Todos tematizaram o problema da educação.
3. Hoje se fala da informática na educação. Fala-se da educação na era da socie-
dade informada e informatizada, forjada pela informação instantânea e, quantitati-
vamente, quase infinita. Fala-se de revolução na educação a partir do poder transfor-
mador da informática. Associa-se a isso, com razão, o fim do lápis, da borracha, do
giz, do quadro negro, do caderno, do livro, discute-se o prazo de validade do profes-
sor, com a entrada na sala de aula (?!) e a expansão do computador portátil. Cada
aluno, e também cada professor, com seu respectivo laptop. A partir disso, fala-se de
educar para o tempo, para a época e, mais, para o futuro. Mas o futuro, no caso, não
passa do presente projetado e super, e hiperdimensionado. O tema da educação,
agora, é a tecnologia da informação e a internet como as novas ferramentas na arte
do ensinar e do aprender, a velha educação – e nisso e no daí decorrente uma revo-
lução sem precedentes. Em meio a tudo isso, muito exercício de futurologia, de adi-
vinhação, de mirabolantes projeções, às vezes escatológicas, até mesmo um pouco
de jogo de búzios e de cartas. Faz-se um verdadeiro frenesi em torno do futuro, isto
é, do superpresente, e da revolução educacional, p. ex., a partir do laptop.
4. Bem, é possível que educar, tal como pensar, não seja algo que se faça, seguin-
do a corrente e a onda, isto é, indo solto e largado a favor, ao encontro do tempo, da
época, mas, antes, indo contra o tempo, contra a época. O educador, tal como o
pensador, talvez precise ser o que Nietzsche chamou, designando o pensador, “a arti
go
s
FOGEL, Gilvan L. Notas a respeito da educação40
consciência malvada de sua época”, “o crítico e o sátiro do momento”. E isso não por
caprichoso bel-prazer, mas para manter o tempo, a época alerta, viva, acesa em rela-
ção a si mesma, a seu próprio tempo ou época, isto é, em relação a seu passado,
presente e futuro.
Mas o que seria isso: pensar (e educar) contra seu tempo, contra sua época? Não
deve ser por meros ideais libertários e revolucionarescos. Não deve ser por uma pura
e simples autoafirmação reativa. Mas ... Mas o que? Como?
Retifiquemos e melhoremos um pouco este encaminhamento. Pensar (e tambémeducar?) é sempre pensar com um tempo, com uma época, a saber, a minha, a nossa,
a de cada um, e também contra este mesmo tempo, esta mesma época. Assim, pen-
sar (educar?) é um ir ao encontro e um ir contra, quer dizer, é, precisa ser, ao mesmo
tempo, compreender e desestabilizar, fazer e desfazer, construir e desconstruir – o
tempo, a época. Nesse sentido, pensamento, enquanto o diagnóstico e o prognósti-
co do tempo, da época, e educação, a condução de um tempo, de uma época, deuma geração, devem andar juntos, compassados. Assim sendo, a educação, assim
como o pensamento, não deve ser a porta-voz oficial e mesmo a advogada e a
ratificadora, endossadora das idéias vigentes ou dominantes, melhor, das opiniões
de uma época. Em suma, a educação não deve ser a defensora, a propagadora e a
propagandista do que se chama, em sentido pejorativo, a ideologia de seu tempo, de
sua época, ou seja, o que no tempo, na época, se diz, se pensa, se fala a torto e adireito e, assim, se torna como que o uni-forme, a farda da época, do tempo. A
educação, assim como o pensamento, não pode, não deve vestir este uni-forme, esta
farda, empunhar esta bandeira...
5. A opinião vigente, a idéia fixa da época, isto é, o uniforme, a farda e a futilida-
de do tempo é a informação. Hoje se diz e se pensa que conhecimento é informação
e que educar é, deve, precisa ser transmitir, divulgar e aumentar conhecimentos, ou
seja, acumular informações. Opções! Quanto mais memória, mais conhecimento,
mais educação! Peito estufado, boca cheia, fala-se de produzir conhecimentos, isto
é, gerar informações. Isto provoca um culto e uma beataria da, pela informação.Portanto, diz-se, acha-se, informação é conhecimento e adquirir e gerar mais e novos
conhecimentos é acumular, capitalizar (memória!) mais e novas informações, quer
dizer, dados, pois informação, por princípio e definição, é o dado, ou seja, o feito, o
cristalizado. O informado na informação é o registrado, o fixado ou o coisi-ficado no
dígito, como dígito.
Pois bem, contra isso há que pensar; isso é preciso desestabilizar, e educar precisa
ser um levar e um conduzir contra isso, a saber, contra a defesa e a consolidação de
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 37-48, jan./jun. 2010 41
um tal modo de ser e de pensar, que se transforma na defesa, na propagação e na
consolidação do cadáver, da morte – a morte da vida, que, por seu lado, é essencial-
mente c r i a ç ã o. O contra é a favor da criação. Este, esta é o sim. Só na dimensão
da criação é preciso conceber o verdadeiro conhecimento e compassado com este
modo de ser, a criação, precisa andar e falar a educação.
Suposto que informação seja a transmissão do feito, do dado e, então, do morto
e que, portanto, não pode constituir o verdadeiro, o autêntico conhecimento, é pre-
ciso, é saudável que se faça um certo ceticismo, um pouco de desconfiança e de
descrédito em relação ao furor e à beataria da internet, em relação ao furor da pes-
quisa (internet e pesquisa são identificados, com razão!), que não passa de acúmulo,
de entulhação de informações, de dados. Esta atividade desenfreada, compulsiva, na
melhor das hipóteses, é distração ou do tédio ou do furor, melhor e mais precisamen-
te, é cumprimento do furor do tédio (o “aborrecimento humano” é “voluptuoso”, já
disse Machado de Assis!), convertido em pesquisa (memória!), jamais gerando o
verdadeiro conhecimento, o autêntico saber, desde e como criação.
Façamos uma retificação e uma concessão. É verdade que a vida, a criação, não
podem abrir mão do feito, do dado, pois este ou isto é seu necessário ponto de
partida. Assim, a partir do dado, vida recebe e transmite, herda e lega. Ela precisa,
porém, do feito e do dado para superá-los, para ultra-passá-los, enfim, para perdê-
los, esquecê-los e assim, leve e faceira, poder se auto-pro-mover. Isso é criação. A
perda, o esquecimento, o abandono e o desentulhamento são constitutivos da cria-
ção, da espontaneidade vital. A disposição da criação, o só que precisa ser promovi-
do e fomentado pela boa educação, ensina a, no tempo certo, perder, abandonar,
largar – esquecer. Tal disposição ensina a, saudavelmente, ou seja, em favor da saúde,
não mais precisar daquilo que, no acúmulo, entulha, paralisa, embota, enfim, mata.
Assim sendo, em relação à informação, ao feito (ao dado, ao realizado), é preciso
dele precisar para imediatamente dele abrir mão, jogá-lo fora, desfazer-se dele, perdê-
lo, esquecê-lo, para não entulhar, não asfixiar, e, assim, inibir e mesmo paralisar a
ação, a atividade criadora. É preciso poder viajar, navegar pela internet, nosso super,
nosso hiper, nosso panmercado, como Sócrates, o grande educador, altivo, orgulho-
so, mas também sóbrio, simples, cheio e seguro de si, andava pelo mercado na ágora
de Atenas, contemplando admirado, mas dizendo satisfeito: “Quanta coisa que eu
não preciso!”
6. Incluído como um aspecto do educar para o tempo, para a época, entende-se
também educar para a vida e sob educar para a vida costuma-se entender e suben-
tender o educar para a sociedade, para a sociedade constituída, com suas necessida- arti
go
s
FOGEL, Gilvan L. Notas a respeito da educação42
des e exigências. Também aqui, para a saúde da sociedade e da educação, aplica-se
aquele princípio do pensar-educar contra.
É louvável, é mesmo necessário uma dose de pragmatismo educacional e social,
p. ex., indo ao encontro de certas necessidades sociais, introduzir no ensino, a certa
altura da formação do jovem, a profissionalização. Escolas técnico-profissionais são
necessárias, úteis e precisam ser implantadas e cultivadas.
Por outro lado, a formação, a educação voltada para a preparação do ingresso
nas universidades, me parece, não deve se submeter às exigências do profissionalismo
acadêmico, isto é, às reivindicações estreitas que visam atender ao mercado e aos
chamados profissionais liberais, “executivos”, deixando correr solto, sem eira nem
beira, o pragmatismo e o carreirismo. Alimentar isso é coisa pequena.
Vê-se muitas escolas, de classe média e alta, subservientes a este pragmatismo e
carreirismo, servis à coletividade definidora de ondas e de correntes de profissões e
de carreiras. Parece-me, nada mais decadente e desvirtuante do que a identificação
de educação com um tal pragmatismo e imediatismo sociais, voltados para a tal
carreira, para o sucesso social, enfim, o carreirismo que, em geral, forma, isto é,
produz e gera deformando e degenerando, um tipo, claro, socialmente bem ajusta-
do, bem adaptado, bem-sucedido e que costuma ser, sobretudo do ponto de vista da
vitalidade, um tipo certo, melhor, certinho; um tipo asseado, limpo – limpinho; ajus-
tado – ajustadinho; bom – bonzinho! É, costuma ser o protótipo, o arché-tipo do
idiota, do medíocre – mas bem-sucedido!
Todo processo educacional, de condução de uma vida, mesmo no nível das esco-
las técnico-porfissionais e na preparação para a universidade, visando a formação
dos chamados profissionais liberais, me parece, deve deixar brechas e fomentar oca-
siões para muitas e grandes inutilidades. Não sei, não saberia enumerar quais, mas
inutilidades próprias do espírito livre, lúdico e criador (mostrar o próprio saber, o
próprio ver e o próprio compreender como dimensões lúdicas da vida, do homem),
para ventilar, para arejar e transformar (revolucionar!) também o profissional, a pro-
fissão, que costuma ser a atividade que se faz, que se cumpre de maneira automáti-
ca, certa, certinha, seguindo à risca o manual e a bula, sem nenhuma reflexão, me-
lhor, sem inovação ou criação alguma. As inutilidades podem abrir caminho para
estas inovações, para verdadeiras renovações no âmbito da esclerose de uma profis-
são, ou seja, renovações e transformações no âmbito do próprio automatismo pro-
fissional, inaugurando assim a alegria de um caminho nunca d’antes percorrido, de
um mar nunca d’antes navegado...
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 37-48, jan./jun. 2010 43
7. Falando-se de informática na educação, de tecnologia da informação, de esco-
la-educação informatizada e de aluno e professor, cada qual, com seus respectivos
computadores portáteis a tiracolo, fala-se de educação “para os desafios do mundo
novo”, do “mundo futuro”.
Em meio a isso, não cabe recusar ou desdenhar as evidentes, as incontestáveis
conquistas em recursos técnico-materiais, virtuais, que evidentemente estão além do
giz, do quadro negro, do caderno, do mapa-múndi plano, pendurado e chapado na
parede, do singelo e, hoje, primitivo desenho do núcleo da célula na página do livro
etc. etc... Em meio a tudo isso, o que se contesta, o que é preciso provocar para uma
grave desconfiança, é a superestimação da informação; a carga, mais, a sobrecarga
até à exclusividade da informação no educar.
Antes de voltar a isso, porém, uma pequena observação. Falando de futuro, de
mundo novo, novíssimo, fazendo, como já dito, futurologia, com fantásticas anteci-
pações, previsões escatológicas, enfim, falando euforicamente disso, vem-nos ainda
uma ponderação de imediato senso comum: o mundo novo, o admirável mundo
novo, também é velho! Aliás, não seria, não poderia ser novo, se não fosse igualmen-
te velho! O mundo futuro é também passado – não seria, não poderia ser futuro, não
fora, de algum modo, presente e passado! Idem em relação ao homem e à educação.
Assim sendo e dando-se um pouco de crédito ao Conselheiro Acácio, isto é, ao
óbvio, ousa-se dizer que pelo menos duas coisas parecem estáveis neste mundo ne-
buloso, volúvel e volátil do futuro: a) no futuro, tudo indica, o homem será homem;
b) no futuro, tudo indica, educação será educação.
Isso parece ser elementar. Para este elementar queremos chamar a atenção. Cabe
voltar-se para o elementar e perguntar-se, re-perguntar-se, sempre: O que é o ho-
mem? O que é a educação? É preciso alguma orientação clara a respeito do elemen-
tar. Elementar, lembremos, é o que constitui o próprio elemento, o próprio medium
de alguma coisa. Neste sentido, o elementar é o essencial. E essência não é um algo
recôndito, um indeterminado X atrás e além das coisas. Afinal, não é sequer nenhum
algo, mas a própria coisa se realizando, se fazendo, vindo a ser isso que ela é. Essên-
cia é o que, apesar de todas as mudanças e sobretudo graças a todas as mudanças,
permanece e precisa permanecer e, enquanto tal, precisa ser cultivada e promovida
para que a coisa permaneça e insista nisso que é, que precisa ser ou vir a ser. Essência,
portanto, fala o que a coisa propriamente é ou o que está sempre necessariamente
sendo, a cada passo, a cada instante, a cada ato de seu vir a ser, de seu fazer-se ou
existir. Essência é o verbo-coisa. Então, algo imediato e concretíssimo.
arti
go
s
FOGEL, Gilvan L. Notas a respeito da educação44
Ao abrirem-se estas considerações/anotações, vimos que o grego, buscando es-
sência, encontrou o caminho de realização da transformação da humanidade do
homem (o homem vindo a ser homem desde sua essência, como essencialização de
sua essência) através da “paideia”, da educação, e esta, igualmente em sua essência,
se fazendo através do cultivo do saber radical ou essencial, a filosofia, que, por sua
vez, se realiza pela conquista da verdade no exercício da liberdade. Dissemos, então:
“O caminho é, pois, a verdade e a liberdade. Melhor, a liberdade para a verdade ou,
ainda, a verdade como realização e concretização da liberdade”.
Um dos aspectos reveladores da liberdade, em constituindo a essência do ho-
mem, é ver no homem coisa nenhuma, algo nenhum, mas só e tão-só um poder-ser,
uma aptidão que se revela um insistente movimento de transformação e de alteração
(= vir a ser outro!) desde si e para si (é isso vida!) e que se chama criação. É da
essência da liberdade humana a criação.
Toda educação, em sendo essencial e em sendo exercício da liberdade que é o ho-
mem, precisa ser aceno, insinuação, convite à criação. Educar, acompanhando a essên-
cia do homem, co-fazendo-a, precisa ser sempre um despertar para a criação. Despertar
via aceno, insinuação, convite, pois ninguém, a rigor, ensina, pode ensinar criação.
Mas porque é e precisa ser despertar para a criação – por isso, educar só pode, só
precisa ser algo, ainda que a partir de informação, de dado ou de coisa, além, para
além da informação. A educação não pode, pois, ser algo centrado, concentrado,
uni-formizado na informação, isto é, norteado por aquilo que é cristalizado, fixado,
coisi-ficado no dígito, como dígito e assim passado e repassado adiante como coisa
feita, como dado, como cadáver e fóssil. A informação é justo o que precisa ser
perdido, abandonado, esquecido. É preciso não precisar, poder não precisar dela.
8. Educar, formar. Educação, formação – a ação, a atividade de dar forma, de
enformar, que é, sim, modelar, cunhar um caráter. Esculpir um homem. Como enten-
der isso, este trabalho, este esculpir?
De imediato, a tendência é imaginar que se deva planejar e realizar um plano, um
projeto ou um programa, p. ex., um tal ou tal projeto educacional. Ou seja, imagina-
se educar, formar, como se fora perseguir um ideal, uma meta, subentendendo tal
meta como se fora o mencionado plano ou projeto que fixa um ponto em algum
lugar e que, então, se põe a perseguir, a correr atrás deste ponto para preencher o
ideal, o plano, a meta, isto é, o estereótipo. Os chamados “humanismos” costumam
proceder assim. Mas isso, a saber, tal procedimento, é sempre princípio de degrada-
ção, de degeneração, de de-formação. Não.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 37-48, jan./jun. 2010 45
Para educar, no sentido grande de formação, de enformar, ou seja, de encami-
nhar para a conquista da excelência do homem, da vida – para tal, é preciso não ter
“objetivo” nenhum, nenhuma meta, isto é, não se pôr à busca ou à perseguição de
nenhum algo previamente fixado como objetivo ou resultado final a alcançar. For-
mar, educar, precisa ser, sempre, despertar para a criação, para a liberdade para a
criação e, então, alimentar, promover, no sentido de possibilitar ou de liberar condi-
ções de possibilidade para que se faça uma vida enquanto e como a dinâmica de um
vir a ser, que virá a ser se vier (!!), isto é, se se fizer, se se conquistar em se
autorealizando. Ou seja, se este próprio vir a ser, melhor, se esta própria possibilidade
revelada, despertada, se fizer a si própria vir a ser – pôr-se a si própria em obra. Isso
é que é vida, ou seja, movimento que se move a si próprio desde si próprio enquanto
e como autoconquista e autorealização. Pura irrupção, pura emergência, pura
transcendência – ação, atividade de liberdade na e como criação. E isso como que
para a própria alegria da vida, para seu próprio gáudio. É um fazer que é, ao mesmo
tempo, autoliberação e, assim, cunhagem de uma identidade ou de um próprio, à
medida que afirma, como autoconquista, a diferença que é.
Educação, formação, portanto, como um pro-mover, que é cuidar para que um
tal poder-ser venha a ser. E isso quer dizer: atenciosamente, cuidadosamente, mas de
modo largado e despojado, deixar ser o que precisa ser, precisa vir a ser. Isto constitui
o movimento de forma (= gênese ontológica) vindo a ser forma, fazendo-se forma.
Forma e/ou essência. Educação, formação, portanto, é essencialização, realização ou
concretização de poder-ser, que é a essência do homem enquanto e como liberdade
de, melhor, p a r a criação. Cultura, cultivo da espontaneidade: deixar ser o que
precisa ser, precisa vir a ser. O educador precisa ser este ‘cura’, este curador. O com-
putador não vê, não sabe, não pode isso. Sobretudo, ele não pode ver, saber isso.
Isto transcende a informação, o cálculo, pois é de outra ordem, de outra natureza.
Interpõe-se aí um salto, um salto qualitativo, que abre o âmbito próprio da humani-
dade do homem, o âmbito de criação e de liberdade. Melhor e mais precisamente: de
liberdade para criação.
9. Assim se cumpre um educar, um formar, que é “deixar aprender”, isto é, um
ensinar que é fazer com que se aprenda o aprender1.
Aprender a aprender não é, como hoje às vezes se diz e eu já ouvi de um experto,
aprender (subentenda-se: ser destro e hábil na arte de!) a colecionar informações;
1 Sobre ensinar como “deixar aprender”, assim como ensinar e aprender, de modo geral, ver Heidegger, M., Washeisst denken?, Tübingen: Niemeyer, 1971, p. 50 e também Que é uma coisa?, Lisboa: Edições 70, 1987, p. 75 a82, principalmente 79/80. ar
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FOGEL, Gilvan L. Notas a respeito da educação46
aprender (i.é, ser destro, hábil!) a, no meio da selva, das miríades de informações,
separar o joio do trigo, quer dizer, no caso, discernir e separar, isolar, a informação
boa da ruim, a que interessa ou é útil, da que não interessa ou é inútil, supérflua,
desinteressante. Não. Aprender a aprender é, precisa ser coisa de outra ordem; é,
precisa ser coisa de outra musa! E, por falar em musa, aprender a aprender é, precisa
ser, como na poética de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, um insisten-
te exercício de desaprendizagem. É, portanto, um insistente aprender a desaprender.
Aprender a aprender ou, como formulamos agora, aprender a desaprender! Mas
é preciso perguntar: Como isso? Quem aprende a aprender, o que é que aprende?
Quem aprende a desaprender, o que é que desaprende e, por isso, graças a isso,
aprende ou se dispõe a aprender?! Tudo isso, no entanto, começa a se esclarecer
quando se entende o que é aprender.
Tal aprender é, na verdade, entrar no movimento de um fazer, de uma ação;
conquistar, assim entrando, a força de um fazer, a dinâmica de uma ação ou a pró-
pria ação da ação – uma autêntica formação. É, a partir do feito, do dado, p. ex., a
informação, conquistar a força do fazer. Na verdade, é ser tocado e tomado por tal
força, por tal poder e apropriar-se disso, qual seja, colocar-se sintonizado e sincroni-
zado com tal movimento, ser “in statu nascendi”. Assim vai acontecer o transformar,
o criar, o procriar.
Aprender a aprender não é, pois, ser dotado de uma certa destreza para escolher,
não é ser capaz de uma certa técnica para distinguir e selecionar (escolher, decidir
sobre) informações boas; não é ser esperto, i. é, vivo, sabido, e experto na selva da
informática, no infindável tecido da rede. Ao contrário, aprender a aprender é ga-
nhar a disposição de insistentemente perder o feito (i.é, o dado, a informação) a
favor do fazer, a favor do criar, do acontecer de vir a ser, enfim, do pro-criar. É isso, a
saber, o feito, o dado, a informação, que é sempre, a cada passo, perdido, esquecido
– desaprendido. Para Caeiro, que mencionamos acima, é perder, esquecer,
“desaprender” o sinal, o símbolo – a informação!
Portanto, quando se aprende a aprender não se aprende coisa nenhuma, não
nos fazemos donos de nenhum dado, de nenhuma informação; não nos tornamos
proprietários de nada fixado ou registrado como regra ou norma de controle, mas
subitamente nos transpomos ou somos transpostos, transportados para uma dimen-
são, para um modo de ser, que não é nada, que não é coisa nenhuma, mas tão-só um
participar e um co-fazer o movimento do nascer ou do fazer-se disso que se faz tal
como se faz, tal como se quer fazer, tal como precisa se fazer. Isso, este modo de ser,
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constitui a própria essência do homem. É isso mesmo o realizar-se e consumar-se de
sua liberdade, a liberdade para a criação. Cabe, na real aprendizagem, a do aprender
a aprender, apropriar-se disso e tal ato é um autoapropriar-se por parte do homem,
do aprendiz, para assim poder, para assim precisar vir a ser o que é, a saber, homem,
vida humana, homem humano.
Promovendo o aprender a aprender, neste sentido, a educação promove uma coisa
ínfima, um algo nenhum, que, no entanto, por menor, por mais ínfimo ou por um nada
que seja, constitui o essencial, o só que importa, pois este ínfimo marca ou define a
identidade, i.é, a diferença, do homem, o seu próprio, que é justamente não ser coisa
nenhuma e, portanto, em hora nenhuma poder ser reduzido a coisa alguma. O homem
não é coisa e, então, não pode alimentar sua hominização como se fora coisa. Ao
contrário, ele precisa realimentar-se insistentemente de sua própria essência, de sua
própria força ou identidade (i.é, sua diferença!), que é a liberdade – a liberdade para a
criação, para a transformação, ou seja, para a alteração ou diferenciação. Educar precisa
ser sempre a tarefa de renovação desta necessidade frágil, que se faz convite, indicação,
aceno. Assim, educação, tal como “a divindade que mora em Delfos” (Heráclito, frag.
93), não esconde, não pode esconder nada e não revela, e não pode revelar, no sentido
de escancarar, nada, mas só pode e precisa acenar – apontar, insinuar, e assim convidar
para a aventura de ser coisa nenhuma e que é a aventura-homem, enquanto e como
história, isto é, devir, suceder. O aceno é, precisa ser a bandeira da vida criadora – sem-
pre o aceno e o convite para a liberdade para a criação. Fazer, co-fazer o que, desde
nada, por pura doação e transcendência (graça!), se faz. Nisso, com isso, a informação
é o que precisa ser abandonado, perdido, esquecido – superado. Ela se torna entulho,
lixo. Como entulho, como lixo, precisa ser descartada, jogada fora. E aqui não cabe
salvar, não há reciclagem – é perda total!
10. Pode-se perguntar: quem educa, quem conduz para a criação, para a liberda-
de para a criação? Não é o “professor”, não é o “graduado”, o “erudito”, o “pós-
graduado”, o “doutor”, o “pós-doutor”. É, sim, o educador, um tipo simples, muito
simples (pode perfeitamente também ser “graduado”, “doutor”!) que é, sim, mestre,
um grande mestre e que, silencioso, discreto, praticamente despercebido, tal como
“passo de pombo, que traz grandes acontecimentos assim como grandes pensamen-
tos” (Nietzsche), e ainda tal como a já mencionada divindade de Delfos, que nem
esconde e nem escancara, mas acena, só acena. Quem tem olhos de ver, que veja!
Quem tem ouvidos de ouvir, que ouça! Insinua, acena, aponta e assim rege, assim
dirige – silencioso, manso, imperceptível. Sobretudo ele, também ele sobretudo, ou-
vindo, obedecendo, seguindo... silencioso, manso, imperceptível. arti
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s
FOGEL, Gilvan L. Notas a respeito da educação48
Finalizando, este quem educa, conduz, não é tampouco, principalmente não é o
cara que, como eu, aqui, fica a falar, a tagarelar sobre criação, liberdade, educação.
O verdadeiro mestre, o verdadeiro educador jamais fala nisso, disso. Não precisa.
Não pode. Não é o caso... Falando, vendo desde grave experiência, disse
Heidegger que, na presença de um grande, de um autêntico mestre, de um grande,
de um autêntico educador, tem-se sempre a impressão que se está diante de nada,
de ninguém e que, na verdade, não se aprende coisa nenhuma...
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Emmanuel Carneiro Leão *
Dio kai philomythos philosophos pós estin(ARISTÓTELES, Metaph. 9, 2, 982b, 18).
Provindo do mistério temporal da realidade, os mi-
tos nos remetem para fontes inesgotáveis de inconsci-
ência e consciência históricas. São criações da experiên-
cia humana com os movimentos de seu próprio princí-
pio e os gestos de suas transformações. Pelo mito, a
sobrevivência se recolhe à densidade do verbo, em que
se concentra toda a autoridade da história, a força cria-
dora da linguagem. Para o mito converge a diversidade
essencial das experiências do homem com a realidade.
Do mito corre hoje o sangue de ontem para um novo
amanhã: possibilidades de vida e condições de herança
para o advento de uma história sempre já vigente e sem-
pre ainda por vir. Com o mito nos chega “o amor ainda
não aprendido, a dor não conhecida”, sabor deste mis-
tério insondável da realidade da vida-morte. Sem o mito
nem a música da história ressoa nas festas nem a dança
da capoeira ginga nas celebrações dos projetos.
Todo mito é uma avalanche da linguagem que toma
corpo e se encarna numa história. Lei significa recolher-
se à escuta desta encarnação, na medida em que vai
desaparecendo na própria carne a dicotomia entre cor-
po e alma, carne e espírito, linguagem e história. Reco-
lher-se a tal escuta é o que faz a filosofia, quando pensa
Mito e filosofia grega
* Professor de filosofia do IFCS,UFRJ. Agradecemos à editoraDaimon pela permissão em pu-blicar esses textos. Trata-se detextos que irão compor um vo-lume sobre “filosofia grega” aser publicado em breve pelaDaimon Editora. ar
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LEÃO, Emmanuel Carneiro. Mito e filosofia grega (Logos, mythos, eros)50
a realidade em suas realizações. Por isso também Aristóteles nos diz no capítulo 29
do livro 19 de sua Metafísica: dio kai philomythos philosophos pós estin!
É que a filosofia vive a vida que desperta com os acordes e se acorda com as vibra-
ções de cada som da realidade. Toda obra é mítica por ter a vida própria do pensamen-
to, a vida da vida; por alcançar suficiente autonomia a ponto de desligar-se da biografia
de indivíduos e da história de comunidades; por transcender para a universalidade da
vida de todos os homens, para aquela vida, portanto, donde no momento oportuno ela
mesma assomou a fim de concretizar-se numa história humana. É esta universalidade
concreta, esta autonomia transitiva que decide a verdade do mito. Isso significa: a obra
do mito nos liberta não apenas de todas as coisas já prontas e acabadas: substâncias,
individualidades, sistemas, mas nos liberta sobretudo para o verbo de todas as coisas,
seu nascimento, sua vibração e morte. É com a arte dessa libertação que os mitos pre-
senteiam os filósofos. É nessa profundidade que os gregos teceram as relações entre
mito e filosofia para toda a história do Ocidente.
Em suas realizações o mito é anônimo. Não tem autor. A atribuição não é obra
mítica. É apropriação. Uma obra do mito só possui mesmo a autoridade da história,
tem apenas a autoria da convivência humana. Pois nela nos chega o desafio de con-
viver com o outro no tempo na medida em que nos convoca a sermos mais livremen-
te o que fomos, descortinando o que seremos no horizonte do que somos e não
somos. Só escutaremos o sentido originário do mito aceitando esta convocação, co-
locando-nos em questão, submetendo à força do questionamento nossas pretensas
sabedorias. Ler um mito não é nem ver nem ouvir ou sentir realizações, mas ser em
tudo isto e em tudo o mais o desafio que a realidade nos faz a cada instante. Deste
poder do mito advém a estranheza nunca domesticada de sua obra: o mito acabado
não acaba, nunca deixa de provocar novos sentidos, de rasgar novos horizontes, de
gerar outras possibilidades. É a independência transbordante e difusa de sua obra.
Dela sabem os criadores de todos os tempos, com um sabor feito de criações.
Do mito valem as palavras de André Gide da arte: “a obra de arte acabada tem a
propriedade misteriosa de nos proporcionar sempre mais do que pretendia seu cria-
dor”. Esta experiência pertence às grandes surpresas do encontro da filosofia com o
mito desde a primeira vez. Surpresa é algo inesperado que não pode ser controlado.
Com a surpresa nós nos poderemos encontrar às vezes depois do primeiro contato,
às vezes após muitos contactos, mas sempre na tentativa de escutar-lhes as pausas
sonoras de expectativas musicais.
Mas, sem dúvida, toda obra do mito não é apenas transcendente. É também
imanente às épocas, ou melhor, sendo fiel às épocas é que a obra do mito as trans-
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 49-59, jan./jun. 2010 51
cende. No grau de inserção desta imanência o discurso mítico presta esclarecimentos
sobre as épocas, dá informação sobre mentalidades, indica maneiras de estar no
mundo com os outros, anuncia concepções de homem, de vida e de mundo. Mas, se
os discursos do mito nos proporcionam tudo isso, uma leitura guiada apenas por
todos esses interesses passaria à margem da obra criadora do mito. E por quê? –
Porque não concentraria a escuta, a visão e a sensibilidade na obra do mito, na arte
de ser “novo princípio, gesto de transformação”. A ironia de toda tentativa interes-
seira de leitura está na segurança de sonâmbulo com que evita encontrar-se e medir-
se com a originariedade do mito e a criatividade de sua obra. Isso porque ambas só
existem encarnadas nas realizações reveladoras da linguagem. E estas só podem ser
escutadas num único interesse, no interesse da história. Sem o interesse da história,
não se ouve o mito, só se ouve a si mesmo até no mito. As palavras do pensamento
sobre o interesse da história nos ajudam a ler o mito como obra de história mesmo
no horizonte de compulsão de repetição de muitos interesses, interesseiros e interes-
santes, que se opõem ao interesse da história nas relações com as obras: “interesse
significa: estar no meio e entre as realizações, morar e permanecer no interior do
advento da realidade. Mas para o interesse de hoje vale apenas o interessante. Inte-
ressante é o que permite ficar indiferente já no momento seguinte ao encontro e
substituí-lo por outra coisa que tanto quanto a primeira não transforma o relaciona-
mento. Hoje em dia se pretende muitas vezes valorizar especialmente uma coisa por
achá-la interessante. Mas, na verdade, já se empurrou seu encontro para a indiferen-
ça, a monotonia e a repetição”.
Uma leitura filosófica renuncia de bom grado a “explicar” o mito. Espera apenas
preparar as condições para um encontro originário com seu advento. Nesse encon-
tro, a densidade da linguagem mítica nos leva a superar o desnível e a dualidade
entre ouvido externo e ouvido interno, entre audição e escuta. A cada passo da pas-
sagem dessa leitura fazemos sempre a experiência do silêncio da fala. No mito toda
palavra só fala por já não poder calar-se. Silêncio da fala, porém, não diz ausência de
palavras. Ao contrário, diz vigência, tanto no falar quanto no calar, da obra essencial
do próprio mito. Ler filosoficamente uma realização significa também acolher nas
peregrinações dos discursos a diferença entre língua e linguagem. Significa propiciar
o diálogo entre a fala do mito e a escuta do leitor a propósito da realidade no adven-
to de realizações históricas. Mas realizações históricas nunca constituem motivos
para o mito. É que a obra de um mito não pode ser explicada por nenhum motivo. Só
se explica o que não é criador. O criador é sempre inexplicável. Tocados pelo “coração
intrépido da verdade de circularidade perfeita” do mito (alétheiés eukukleos atremes
arti
go
s
LEÃO, Emmanuel Carneiro. Mito e filosofia grega (Logos, mythos, eros)52
étor), quanto chegam à obra, todos os motivos já deixaram de ser motivos para se
integrarem numa palavra mítica.
Em nossas peregrinações de ser, não ser e vir a ser, encontramos a cada passo
uma diferença entre real, realização e realidade. É uma diferença, entretanto, e não
uma coisa entre coisas, seja dada, feita ou pronta. Trata-se do diferenciar-se próprio
de toda história de realização da realidade. Isso porque a realidade é sempre sub-
reptícia, dá-se como realização na medida e enquanto se retrai e se retira. A fortaleza
e o modo de ser de uma época se definem pela integração das obras dos homens
dentro dessa diferenciação. A existência humana é a viagem que faz o homem entre
realização e realidade. Para realizar-se e ao realizar-se, o homem irrompe na totalida-
de e nesta irrupção instala estâncias de relacionamento com tudo que existe e não
existe. Nesse sentido, o homem realiza em sua existência todas as realizações. Impul-
sionado pelo impacto oblíquo da realidade, constrói sua existência num contacto
direto da ação transformadora do trabalho com as realizações. As épocas históricas
são as vicissitudes daquele impacto oblíquo e deste contacto direto, isto é, das vari-
ações provocadas nos contactos com as realizações pelo impacto da realidade. Na
mira de suas ações o homem nunca pode ter a realidade. Só realizações servem de
alvo à suas relações. Para fazer a sua história, o homem é feito pela história. Por isso,
Marx lembrou no 18 Brumário de Luiz Bonaparte aos revolucionários de ontem e de
hoje uma frase muito citada mas pouco pensada. Uma frase tão histórica que pode-
ria figurar na Teogonia de Hesíodo e de fato figura na dinâmica de todos os seus
versos: “Os homens fazem sua história mas não a fazem arbitrariamente nas condi-
ções por eles escolhidas e sim nas condições diretamente dadas e herdadas do passa-
do. A tradição de todas as gerações mortas pesa com grande peso no cérebro dos
vivos”. Por causa dessa circulação de futuro e passado no círculo virtuoso do presen-
te, perguntaram de certa feita a Tales de Mileto: ti proteron nyx é émera; Tales res-
pondeu num círculo: Nyx mia émera proteron!
Nesta circulação, o homem é, pois, uma realização que diretamente só alcança
realizações e jamais chega à realidade. Mas às vezes produz realizações privilegiadas
que parecem abolir a diferença da temporalidade. Isso porque dão acesso, embora
indireto e oblíquo, aos mistérios da realidade. São os mitos. Em seu envio se faz a
experiência de momentos intensos de uma temporalidade não apenas povoada de
realizações mas sobretudo integrada pela realidade.
As leituras filosóficas do mito proporcionam um encontro com essa temporalidade
originária. Abordam as realizações pela taumaturgia do instante. Descolam a existên-
cia do desejo de poder e continuação em benefício da criatividade temporal. Nos
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 49-59, jan./jun. 2010 53
interstícios entre realização e realidade intervém mediadora a força criadora do mito:
sua obra não é nem ser nem não ser mas a temporalização pura do vir a ser. Na sua
dinâmica de inauguração se desvela o verbo real: a realidade, retirando-se, faz desa-
brochar o tempo das realizações, transforma o instante numa sucessão de momen-
tos abraçados criativamente por um mesmo impacto. Com força irresistível sente-se,
então, que só é possível viver os fundamentos do tempo em termos de criação. O
mito demonstra a invenção de um momento puramente ativo de ser. Ora, ação,
criação, invenção são pontes de passagem, nas palavra de Nietzsche, “o que há de
grande e amável no homem”. Entre a realização e o nada negativo age o instante
criativo. Toda a obra do mito está aí inserida na pobreza desses interstícios. A criação
histórica provém dessa pobreza. Isso porque o movimento de subtrair-se da realida-
de se dá numa aventura e é todo um salto no escuro. O instante de invenção não
apenas nunca se repete como nunca se aprende. Todo instante se improvisa num
risco e se arrisca numa improvisação. Hoje o instante de risco e improvisação se nos
propõe nas experiências, tensões e impulsos de uma passagem histórica com todas
as inseguranças, hesitações e ansiedades mas também com toda a ousadia, aventura
e fascínio próprios de toda passagem. Nosso século XX se torna cada vez mais um
século vespertino e o homem de hoje é um homem de transição, “ein Hinüber-Mensch”.
O que é um século vespertino? – Século vespertino é um século de acumulação e
esvaziamento, onde relacionamentos, afazeres, conquistas, recursos, instituições,
grupos e indivíduos, tudo enfim é protegido, promovido e favorecido, mas, ao mes-
mo tempo, perde a liberdade e fenece em originariedade. Impera em toda parte um
vazio saturado pelas dependências de ter e não ter. Por outro lado, mobilizam-se em
compensações as forças da grandeza humana e crescem os empenhos de descer e as
tentativas de passar. Só se fala do passado, dirigindo-se para o futuro em sintonia do
que está por vir.
Toda a grande filosofia grega nos liberta hoje para um encontro com esta essên-
cia originária do mito, que se revela, ao velar-se na própria funcionalidade vigente
tanto de sujeitos como de objetos. Escutando o ditado do mito nas transições da
história, o filósofo torna-se profeta no sentido de escutar o porvir no silêncio das
falas. Nesse presente de futuro se concentra toda sua autoridade. Hesíodo o sentiu
na obscuridade essencial das palavras silenciosas das musas do Monte Helicão:
Pastores agrestes, más línguas, somente ventres
nós sabemos dizer muitas falsidades como verdades,
mas, quando queremos, sabemos também dizer verdade na forma de mitos.
arti
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LEÃO, Emmanuel Carneiro. Mito e filosofia grega (Logos, mythos, eros)54
A obscuridade do mito não é negativa no sentido de mera recusa ou simples
negação de possibilidades. A obscuridade do mito é sobretudo positiva no sentido
de nos atrair e por em condições de aceitar, nos limites de que não sabemos, a doa-
ção de novas possibilidades de ser e realizar-se. Os limites não apenas nos retiram e
recusam alguma coisa. Os limites, quando o fazem, só o fazem para nos conceder e
por nas possibilidades que somos e por isso mesmo temos. Pretender eliminar obs-
curidades tão criadoras equivaleria à impotência de poder tudo, de saber tudo, de
fazer tudo. Pretender esclarecer tudo é não ver nada. Para o homem finito, definido
pela mortalidade, uma clareza sem sombras não esclarece, cega. Assim, o filósofo
não fala de moto próprio. E por isso ele se faz todo ouvido para escutar a voz silen-
ciosa, no alarido das passagens e transições, do mito. É o que nos lembra ao pensa-
mento Aristóteles na passagem em epígrafe que abriu, desenvolveu e agora conclui
essas colocações sobre Mito e filosofia grega: “Por isso, também o filósofo é de
alguma maneira amigo dos mitos!”
Logos - mythos - eros
A integração de Mythos e Eros no Logos e pelo Logos transparece em todos os
diálogos de Platão. Aparece, sobretudo, de maneira lapidar e pregnante no Simpó-
sio, no Banquete, quando Diotima, a sacerdotisa de Mantinéia, desvenda e revela a
Sócrates a profundidade misteriosa de Eros na totalidade do real e no universo de
todas as realizações.
A passagem mais densa e concentrada desta compactação encontra-se no Sim-
pósio 205 b:
Poesia é todo deixar e fazer passar do não ser de ser (ek toy mé ontos) para ser (eis to
on), qualquer que seja, de modo que as criações de todas as artes são poesias e todos
os criadores, poetas.
É a partir dessa famosa passagem do Simpósio que vamos pensar aqui e agora a
integração de mythos e eros no logos.
Mistério remete, em toda experiência, para o que se diz e se reconhece fora das
possibilidades de ser, conhecer e dizer. É que para se dar e acontecer mistério é indis-
pensável morar nos vãos da linguagem e descobrir-se no seio de logos. A forma mais
frequente de se sentir e descobrir essa morada é a narrativa do extraordinário no
mythos e a forma mais intensa de vigência da narrativa mítica é a poesia, o eros, pois
todo desempenho de um real instala poesia, é poético.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 49-59, jan./jun. 2010 55
Aqui, nestas parcas reflexões a partir da vigência do Logos, sobre as peripécias
não apenas de língua e discurso, mas de qualquer vivência humana, vamos propor
análises de pensamento desta passagem extraordinária do mistério do Eros ontológi-
co pela poesia de toda realização de um real, que nos propõe Platão no discurso de
Diotima.
Criação é uma atropelada que não tem, nem data de nascimento, nem berço de
origem. Todo criar se dá sempre numa e como uma irrupção do inesperado. É a
própria criação que faz a data e determina a origem de criadores e criações. Se a arte
de criar, a poética, fosse um rio, a obra criada não seria, nem a margem, nem o leito,
mas a correnteza e o criador seria o barco balançando na passagem das águas que
demarcam as margens e estendem o leito para o curso e percurso da criação.
Em sua travessia de ser, não ser e vir a ser, o homem, em todos nós, vive em todo
momento e a cada passo de sua passagem pela vida, a identidade e diferença entre
ser e não ser, entre realidade e irrealidade, entre real e irreal. O homem, já pregava
Zaratustra, é uma ponte e não um ponto final. Ora, ponte não é apenas instalação de
recursos para serviços. Só há e só se dá ponte onde ocorra passagem, porque acon-
tece travessia. Não se trata na passagem e travessia de dados entre dados, nem de
fatos entre fatos.
Trata-se da estranheza constitutiva e do desafio sempre antigo e sempre novo da
existência histórica, porque finita, dos homens. A poética mostra que a realidade é
sempre subreptícia. Sua vigência nunca é direta, seu vigor é sempre mediado pelas
realizações do real. Seu impacto é sempre oblíquo. A realidade se dá na medida e
enquanto se retrai nas realizações do real. Em toda poesia, o poético nem se esgota
nem se recusa de todo. Tudo que se apresenta de poesia numa realização poemática
se dá enquanto o poético se retrai. Ora dar-se no retraimento, apresentar-se na pró-
pria ausência, manter-se vigente na falta, é o vigor próprio, a força inaugural da
criação em toda e qualquer obra.
De certa feita, Nietzsche disse que o filósofo vive “nas geleiras das altas monta-
nhas”, im Eis- und Hochgebirge, tendo por companhia o monte vizinho, onde mora
o poeta”.
O que estas palavras do pensador nos querem dizer e fazer pensar? Será que as
geleiras têm algo a ver com a vizinhança de filosofia e de ética? Que poderá ser?
Sem dúvida, alimentando ambas de vida e dando vitalidade, a linguagem, o
logos, mantém vizinhos poetas e filósofos. Poética e filosofia são dois modos, embo-
ra diferentes, de ser pensamento e de estar na linguagem. arti
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LEÃO, Emmanuel Carneiro. Mito e filosofia grega (Logos, mythos, eros)56
Sem dúvida, as muitas filosofias e as diversas poéticas não são apenas maneiras
diferentes de se responder as mesmas perguntas e de se encaminhar os mesmos
desafios. São níveis diferentes de se perguntar e aprofundar as respostas dadas, sãomodos diversos de se encaminhar desafios criados pela experiência história dos ho-
mens e preservados pela linguagem.
Sem dúvida, nas palavras de Wittgenstein, “os limites da linguagem são os limi-tes do mundo”. Enquanto vivermos, pensarmos e agirmos nesta terra, só faz sentido
mesmo o que pudermos falar uns com os outros na ambiência do poético, o quepuder receber uma significação poética na e da linguagem. Não há verdade no singu-lar fora de toda envergadura de comunhão da poesia. A verdade nos é dada por
existirmos sempre na linguagem plural do poético, numa correnteza que nos arrastapara a convivência criadora das e com as diferenças.
Sem dúvida, já se tornou um desafio de pensamento para a poética e a filosofia,
a sequência lapidar da Carta sobre o humanismo: “A linguagem é a casa do ser. Nocasamento de ser e linguagem mora o homem. Os poetas e os pensadores lhe são osvigias e as sentinelas”.
Muito bem! Mas o que tem a ver geleira com linguagem? – É que ambas, tanto
as geleiras como sobretudo a linguagem têm o poder, ou melhor, são o poder depreservação radical da vida, depondo o passado e dispondo o futuro para o presente.
As geleiras conservam. Conservaram os mamudes da Sibéria e o homem da neve dosAlpes. E a linguagem preserva, em seus étimos, usos e jogos, as criações do passadoe as entrega às gerações presentes para as criações futuras.
Deste fluir e refluir da linguagem vive toda a tradição e toda a dinâmica história
da criação, recolhendo em suas correntezas culturais ta t’eonta – o que é – tat’essomena – o que será – ta pro t’eonta – o que foi antes. É a sabedoria que, no dizer
de Hesíodo, o pensamento criador, Mnemósina, passa para as musas nas nove noites
de amor (Teog. 27):
Poimenes agrayloi, kak’ elegkhea, gasteres oion.idmen pheydea polla legein etymoisin homoia.idmen d’ eyt’ ethelómen, aléthea mythésasthai.
Pastores rudes, más línguas, somente ventres,sabemos recolher muitos desvios ao seio das raízes,
sabemos também, quando nos dispomos, desvendar a verdade em forma de mito.
Um dos mistérios da história ocidental se tem concentrado na dinâmica de ex-
pansão e no poder de transformação do radical indo-europeu de leg-ó que conferetoda a criatividade poética à cultura e civilização do Ocidente.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 49-59, jan./jun. 2010 57
A experiência originária, donde provém e a que remete este radical lg, não é de
reunir, recolher e concentrar, como muitas vezes se repete. A experiência inaugural
tanto do grego legein, quanto do latim leg-ere e do alemão les-en, é a experiência de
por e depor, de dispor e propor. Uma pergunta que, então, se impõe é: como e em
que medida esta experiência originária passou a exercer e a significar a atividade
poética de reunir e dizer, de falar e ler, de narrar, de pausar e repousar?
Para se perceber e sentir esta passagem, deve-se analisar toda a experiência que
o radical denota e conota em suas muitas derivações. É que por e depor, dispor e
propor não ajuntam de qualquer jeito. Remetem para um processo ontológico de
instauração em que se leva uma coisa para o pouso de seu ser e a faz assim repousar
na vivência de sua realização.
E como se edifica e elabora tal processo?
Através de ordenamentos e de diferenciações! O reunir de leg- não amontoa
simplesmente unidades a esmo. Colhe e escolhe para acolher e recolher, diferencian-
do por parâmetros, selecionando por princípio de ordem. Trata-se, portanto, de um
acolhimento diferenciado por identidade, que não só aceita as diferenças, como pro-
move e estimula a diferenciação. É a vitalidade do poético. Na raiz de todo é e/ou não
é age a força de leg-ein, a força de produzir tensões e integrar conflitos. Nas vicissi-
tudes e peripécias de realização deste radical vive o poder criador e destruidor da
linguagem de gerar posições e compor oposições. É por isso que a forma medial, leg-
esthai, diz e pode dizer a experiência de assentar-se no recolhimento do repouso de
si mesmo e dos outros. Talvez agora se possa perceber com alguma transparência por
que um derivado de leg-ein constitua a palavra grega para o leito, a capa, o repouso,
o lekh-os, e outro derivado, o lokh-os, que diz a tocaia e emboscada, onde repousa
uma armadilha.
Assim a experiência originária do radical indo-europeu se desdobra em três cons-
telações irradiadoras de muitos derivados, todos articulados pela dinâmica poética
da linguagem através do movimento de por e depor, dispor e propor.
a) a constelação de reunir, colher e concentrar;
b) a constelação de pousar, assentar e repousar;
c) a constelação de relacionar, narrar, listar.
Exemplos de sentido de reunir encontramos na Ilíada, XXIII, 239, e na Odisséia
XVIII, 359; na forma medial, Ilíada, II, 125, XXIV, 793; VIII, 507 e 547, e Odisséia XXIV,
507 e 547, e Odisséia XXIV, 108. Esta última passagem é famosa: Ulisses havia retor- arti
go
s
LEÃO, Emmanuel Carneiro. Mito e filosofia grega (Logos, mythos, eros)58
nado para Ítaca e encontrara no palácio os nobres pretendentes à mão da rainha,
dilapidando os bens de sua substância. Com ajuda de Telêmaco e do fiel porcariço os
elimina com o arco e a flecha, um a um até o último descendo para o mundo subter-
râneo; os pretendentes mortos encontram entre as sobras do Hádes Agamenon, que
logo os reconhece e lhes fala numa pergunta:
Amphimedon, ti pathontes ephemén gaian edyte,
Pantes kekrimenoi kai homélikes;
oyde ken allós krinmenos lexaito kata ptolin andras aristoys.
Amfimedão, tendo sofrido o quê, mergulhastes na terra escura, todos distintos e da
mesma idade? Alguém procurando numa cidade não poderia reunir varões tão nobres!
O verbo reunir está na forma lexaito. É o optativo meio do aoristo de leg-ó.
Numa composição com a partícula enclítica ?e? forma o potencial: poderia reunir!
Aqui não é possível traduzir leg-ó por dizer e falar. Não daria sentido algum.
Um outro exemplo do sentido originário de leg-ó, reunir, concentrar, recolher,
encontramos no fragmento 114 de Heráclito de Éfeso, que equipara a dinâmica de
recolhimento do pensamento à lei, princípio de ordem e organização de uma pólis:
Xyn noói legontas iskhyrizesthai khré tói xynói pantón, hokósper nomói polis.
É mister que aqueles que recolhem com o viço criador do pensamento se fortaleçam
pela coesão de todos, tal como uma pólis pela lei.
Heráclito faz aqui um jogo de palavra e sentido com o eco das expressões xyn
noói (= com viço criador do pensamento) e xynói (= com coesão). No jogo deste eco
o que realmente ecoa é o vigor originário de leg-ein, exercendo-se tanto na força de
recolhimento do pensamento, como no poder de conjugação das realizações. Qual-
quer dicionário de grego traduz xynos por comum e geral. O sentido originário, po-
rém, nos remete para a dinâmica de reunião de toda experiência de real e realização
na realidade. Não é que seja impossível traduzir xynos por comum e geral. É possível
desde que se pense em toda sua envergadura o processo gerador da comunhão e
dinâmica de generalização. É o que nos confirma o fragmento 103, um dos mais
antigos aforismas da poética de todos os tempos:
Xynon arkhé kai peras epi kykloy periphereias.
Reunidos em si, coincidem princípio e fim na periferia do círculo.
Como princípio de ordem e força de organização do real em sua realização, leg-
ein remete sempre para o “casamento de ser e linguagem”, onde mora o homem, no
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mais elevado grau de sua explosão na poética das criações humanas. Por isso a vigên-
cia poética de leg-ein revoluciona não apenas a fala e o discurso mas também o
ouvido e a escuta. Nas peripécias da criação ouvir é escutar a ação de leg-ein, seguin-
do o advento de sua força de reunião e poder de recolhimento no curso da história.
O simples ouvir, no sentido de captar e registrar sons se dispersa na variedade múlti-
pla e diversa dos ruídos e vocábulos. Ouvir apenas com os ouvidos é não pensar nem
compreender. Equivale, no dizer de Heráclito, a ouvintes surdos. Desta função origi-
nária de leg-ein nos dá um exemplo Aristóteles na Física, VII, 1, 252 a 13:
Táxis de pasa logos.
Toda ordem, porém, é uma força de reunião!
Dessas 3 constelações de leg-ein nos vários níveis da experiência criadora do
Ocidente vive e se realiza a poética. Dela poderemos colher, seguindo a experiência
originária dos gregos, quatro sintonias essenciais para o desempenho criador do
poético em todos os exercícios de invenção e descoberta da verdade do real:
1º leg-ein vive em toda força de reunião como a conjunta de integração. É a
conjugação ontológica de ser e pensar, de que falava o Poema de Parmênides,
em tudo que, de alguma maneira, é e se realiza.
2º pertence a leg-ein coesão e consistência de estruturação.
3º leg-ein diz sempre a realidade que impera na totalidade do real e no universo
das criações.
4º a Linguagem é a operação primordial nas línguas de todos os códigos e nos
discursos de toda realização deste legein inaugural que instala ordem e desor-
dem, coesão e dispersão no mundo.ar
tig
os
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 61-73, jan./jun. 2010 61
Jaime Spengler *
1. É de nosso conhecimento a apresentação que
realiza Pascal do que seja espírito de geometria e espíri-
to de finesse. Ele procura caracterizar um e outro em
alguns de seus pensamentos e em outras obras pontu-
ais. Procuramos aqui apresentar uma síntese de um e
outro espírito, sem, num primeiro momento, entrar no
mérito do modo de apresentá-los. Num segundo ins-
tante procuraremos elencar alguns elementos que pos-
sam, talvez, caracterizar um e outro.
2. O espírito de geometria – Os geômetras, se-
gundo Pascal, estão acostumados a só raciocinar de-
pois de terem visto bem e bem manejado os seus prin-
cípios, pois procuram determinar exata e exaustivamente
todos os axiomas e noções. Estes têm um espírito reto à
medida que se lhes expliquem bem todas as coisas por
definições e princípios. O modo de proceder guiado pelo
espírito de geometria, no seu modo típico de proceder,
raciocina corretamente; mas não possui uma boa vista.
Os geômetras não raciocinam mal sobre os princípios
que conhecem, mas não vêem o que está na frente
deles, pois estão acostumados aos princípios nítidos e
grosseiros, próprios da geometria. No âmbito desse
modo de proceder se procura demonstrar os princípios
e as deduções que daí se realizam, seguindo uma or-
dem, uma marcha do raciocínio. Os geômetras raramen-
te são sutis, pois querem tratar geometricamente coisas
Espírito de geometria e espíritode finesse
* Professor de filosofia no Insti-tuto de Filosofia SãoBoaventura da FAE – CentroUniversitário.
arti
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s
SPENGLER, Jaime. Espírito de geometria e espírito de finesse62
sutis, procurando começar pelas definições e, em seguida, pelos princípios e por isso
se tornam ridículos.
Este modo de proceder deriva com exatidão as consequências, partindo de pou-
cos princípios, pois é servo da razão. Segue um modo de proceder, o qual rende asdemonstrações convincentes. Ela conhece as verdadeiras regras do raciocínio; por
isso, quem possui a geometria, vence e adquire um vigor novo, embora o seu modode proceder seja lento, duro e inflexível. De fato o seu método consiste, teoricamen-
te, em provar todas as proposições e de dispô-las na melhor ordem.
Esta ordem consiste no manter-se no ponto justo, isto é, não querer definir ascoisas claras e entendidas por todos, isto é, os termos primitivos, e de definir todas asoutras; e de não demonstrar todas as coisas conhecidas pelos homens e de provar
todas as outras. Ora, as definições são feitas somente para designar as coisas que sãonomeadas e não a sua natureza. Por isso, não é a natureza destas coisas que é conhe-
cida por todos, mas somente a relação entre o nome e a coisa.
O espírito de geometria... propõe o que é perfeitamente demonstrável, ou com aluz natural ou com as provas. E se este modo de proceder não define e não demons-
tra tudo, é só porque tal empresa é impossível.
3. O espírito de finesse – Segundo Pascal, para o modo de conhecer guiado pelo
espírito de finesse os princípios são de uso comum; estão diante dos olhos de todomundo. Basta, para percebê-los, virar a cabeça, sem nenhum esforço; trata-se so-
mente de ter boa vista, mas que seja boa, pois os princípios são tão sutis e em tãogrande número, que é quase impossível não nos escaparem alguns. Ora, a omissão
de um princípio leva ao erro; assim, é preciso possuir a vista bem clara para ver todosos princípios e também o espírito justo para não raciocinar erroneamente sobre prin-cípios conhecidos. (...) Os espíritos sutis seriam geômetras, se pudessem volver a vista
para os princípios desusados da geometria. Eles não podem de todo voltar-se para osprincípios da geometria. Já os geômetras (...) perdem-se nas coisas da finura, onde os
princípios não se deixam manejar como no modo de proceder geométrico. Eles sãoapenas entrevistos; mais pressentidos do que vistos; é preciso um esforço infinitopara torná-los sensíveis a quem não os sente por si próprio: são coisas de tal maneira
delicadas e tão numerosas, que é necessário um sentido muito delicado e muitopreciso para senti-las, e para julgar reta e justamente de conformidade com esse
sentido, sem poder, o mais das vezes, demonstrá-las em ordem, como na geometria,porque não lhes possuímos do mesmo modo os princípios, e tentá-lo seria um não
acabar mais. É preciso, num instante, ver a coisa num só golpe de vista, (...) ao menos
até certo grau. (...) O sentimento só pertence a poucos homens.
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Os espíritos sutis, (...) acostumados a julgar com um só golpe de vista, ficam tão
espantados (diante do modo de proceder da geometria), que se afastam e se desgos-
tam. (...) Os sutis, que são apenas sutis, não podem ter a paciência de descer aos
primeiros princípios das coisas especulativas e de imaginação, que nunca viram no
mundo e que estão completamente fora de uso.
O espírito de finesse deriva com exatidão as consequências das coisas em que há
muitos princípios; ele julga com o sentimento e por isso não entende nada das coisas
do raciocínio, pois quer logo chegar a perceber com um golpe de vista e não tem o
hábito de procurar os princípios.
O espírito de finesse... sente os princípios e os colhe em unidade...; estão diante
dos olhos... É preciso num instante, ver a coisa num só golpe de vista, e não pela
marcha do raciocínio, ao menos até certo grau!
O espírito de finesse “possui uma ductilidade de pensamento que se adapta ao
mesmo tempo às diversas partes amáveis daquilo que se ama; dos olhos vai até o
coração e dos movimentos exteriores conhece o que acontece no interior”. Este modo
de colher, de sentir os princípios “não se adquire através do costume; se pode somente
aperfeiçoá-lo”. Ele “é um dom da natureza e não uma aquisição através da arte”.
“Quando se possuem um e outro (espírito) juntos, que prazer dá o amor! Porque
se têm juntas a força e a flexibilidade do espírito”.
4. Vamos tentar levantar alguns aspectos/pontos que possam, talvez, ilustrar/
caracterizar um e outro modo de proceder.
O espírito de geometria, agindo com exatidão, colhe os princípios e os elementos
singularmente, exigindo rigor na apresentação dos dados recolhidos. Ele propõe o
que é perfeitamente demonstrável, ou com a luz natural ou com as provas. E se este
modo de proceder não define e não demonstra tudo, é só porque tal empresa é
impossível1! Esse rigor exigido significa aqui clareza. Ora, clareza é possível através
da constituição de sistemas racionais, aos quais o método geométrico-matemático
serve de modelo, isto é, através desse método, a natureza é assumida como objeto
de investigação a partir do princípio da calculabilidade.
O conhecimento iluminado pelo espírito de geometria evita equívocos e confu-
sões, possibilitando a apresentação dos resultados colhidos através da investigação
1 PASCAL, B. “De l’esprit géométrique et de l’art de persuader”, in: Oeuvres complètes I, (a cura de M. Le Guern)Gallimard, 1998, p. 351. ar
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SPENGLER, Jaime. Espírito de geometria e espírito de finesse64
de forma coerente, clara e distinta, e isto por dois motivos básicos: o primeiro é
representado pela razão que aciona este modo de investigação; a razão em si é um
instrumento, uma faculdade formal sem conteúdos próprios; mais ainda: ela de-
monstrará tudo o que se desejar, segundo os princípios que lhe serão fornecidos
como fundamento; o segundo motivo advém da necessidade que brota da própria
investigação: seu caráter de rigor e clareza, e consequentemente, capacidade de-
monstrativa (...)
A ciência, como expressão da consciência moderna, isto é, guiada pelo princípio
matemático-geométrico, não pode ter a pretensão de alcançar o domínio da nature-
za na sua totalidade, pois ela conhece somente o dado fenomênico, condicionado.
Não inutilmente Descartes, na segunda regra da sua obra Regulae ad directionem
ingenii, afirma que é necessário ocupar-se somente daqueles objetos 0a respeito dos
quais para o certo e seguro conhecimento parece ser suficiente a nossa inteligência.
Por isso, à ciência restará sempre um saber parcial, devendo renunciar a toda preten-
são metafísica.
A consciência moderna, guiada pelo princípio do método geométrico-matemáti-
co, não possui, porém, nenhum início absoluto e nenhum fim, ela está sempre a
caminho2. Por isso, os pressupostos com os quais a ciência trabalha são sempre pres-
supostos lançados a partir de uma decisão de um ente. Entre os pressupostos que
garantem à ciência o seu desenvolver-se e a originária abertura a partir de onde os
termos de uma proposição são definidos, existe um abismo! Consequentemente pode
Pascal afirmar: “(...) existem palavras que são incapazes de serem definidas; e se a
natureza não tivesse suprido tal dificuldade com uma idéia correspondente que ela
deu a todos os homens, todas a nossas impressões restariam confusas; enquanto
elas são usadas com a mesma segurança e a mesma certeza como se fossem explica-
das em um modo perfeito e privo de equívocos; porque a natureza mesma nos for-
neceu, sem palavras, uma inteligência mais precisa do que aquela que nos fornece a
arte com as suas explicações”3.
A ciência moderna, embora não possua um início absoluto nem um fim predeter-
minado, senão aquele da evidência, possui um valor prático inegável. Porém, o que
2 Fr. 72: “(...) Todas as ciências são infinitas na amplitude de suas investigações. (...) São infinitas também namultidão e na delicadeza de seus princípios, pois quem não percebe que aqueles que se consideram últimos nãose sustentam sozinhos, mas se apóiam em outros, os quais, tendo por sua vez outros por apoio, nunca são osúltimos? Nós, porém, consideramos últimos os que parecem últimos à nossa razão, tal qual fazemos com as coisasmateriais, em que denominamos ponto indivisível aquele para além do qual os nossos sentidos nada mais distin-guem, embora continue divisível independentemente por sua própria natureza” (PASCAL, 1961).3 PASCAL, B. De l’esprit géométrique et de l’art de persuader, op. cit., p. 350.
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deve ser considerado criticamente é a presunção, a pretensão absolutista deste modo
de proceder que se arroga a possibilidade de ser o critério único de toda proposição
verdadeira, pois este procedimento representa sempre uma perspectiva de indagação
da verdade, mas que não pode de antemão excluir outras, talvez mais penetrantes e
compreensíveis. Tarefa das ciências é verificar os dados que o próprio contato com os
entes nos oferece. A ciência jamais poderá ter a pretensão de poder tematizar a totalida-
de dos entes. Mais ainda, e isto é importante ressaltar, o modo de relacionar-se com os
entes não é idêntico ao âmbito próprio do nosso mundo vital; trata-se de campos diver-
sos. E isto por uma razão muito simples: À ciência restará para sempre uma expressão
privilegiada da capacidade humana da razão e, enquanto tal, participa da condição
humana, isto é, limitada; ela pode, sim, oferecer respostas a inúmeras questões que
abraçam a existência humana; todavia, ela não possui competência suficiente para
oferecer ao homem respostas sobres as “primeiras e últimas coisas”.
É a partir de tais considerações que podemos melhor compreender a crítica feita
por Pascal a Descartes4, embora ele também tivesse abraçado com entusiasmo o
ideal que a nova possibilidade de fazer ciência, segundo uma ordem lógica e linear
oferecia: “...que não somente cada homem progrida dia a dia nas ciências, mas que
todos os homens juntos façam nelas um progresso contínuo, à medida que o univer-
so envelhece”5. A partir da descoberta do Cogito, sob o princípio da evidência, Des-
cartes pretendia edificar o inteiro edifício da ciência, que forneceria ao homem a
chave do universo. Pascal critica não a ciência, a qual permanecerá limitada no cam-
po da experiência, mas a sua pretensão de querer alcançar uma explicação ampla e
definitiva do mundo. A causa de seu modo próprio de proceder restará condicionada
a um progresso constante; cada época, cada geração oferece uma sua contribuição,
a fim de aperfeiçoar o seu próprio avançar. Isto porque os segredos da natureza
estão velados, mas o tempo os revela de época em época, pois com o avançar do
mesmo, o espírito humano vai se enriquecendo à causa das experiências que se mul-
tiplicam em continuação. Este aspecto da ciência moderna evidencia o fato de que o
conhecimento humano, fruto do metodológico trabalho científico, é sempre históri-
co, mutável, e, portanto, sujeito à dinâmica do progresso e aos limites da razão.
Pascal descreve o modo de proceder da ciência guiada pelo espírito de geome-
tria, tendo como princípio a necessidade da definição dos termos da proposição e
4 Fr. 78: “Descartes: inútil e incerto”. Fr. 79: “Descartes: - Cumpre dizer, grosso modo: ‘Isso se faz por figura emovimento’, porque isso é verdadeiro; mas dizer quais e montar a máquina é ridículo, pois é inútil e incerto epenoso (...)” (PASCAL, 1961).5 PASCAL, ‘Préface sur le Traité du vide’, in: Oeuvres complètes I, (a cura de M. Le Guern) Gallimard, 1998, p. 232. ar
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SPENGLER, Jaime. Espírito de geometria e espírito de finesse66
demonstração, e não partindo da intuição. Isto concede a possibilidade de lançar o
ponto de partida da pesquisa lá onde o arbítrio humano decide, pois “não estamos
seguros senão acerca do que vemos com nossa vista” (PASCAL, 1961, Frg. 80). Daqui
podemos vislumbrar as razões da crítica de Pascal a Descartes: “Escrever contra os
que aprofundam demais as ciências. Descartes” (PASCAL, 1961, Frg. 76). Por quê? Por-
que Descartes parte de um conceito prévio, tido como seguro, mas não investigado,
sobre o qual pode apoiar a constituição de um saber universal, inaugurando assim
uma nova metafísica, que pode servir de fundamento às ciências. Pascal critica esta
metafísica, pois o seu fundamento resta sempre algo de inseguro e inconstante. Ele
entrevê os limites desta impostação cientifica, pois tudo o que não pode ser objetiva-
do segundo a determinação matemática passa a ser considerado indigno de ser sub-
metido ao trabalho cientifico. Este modo de impostar a busca de compreensão do
ente representa um ataque do homem à natureza, o qual é guiado somente pelo
método experimental e pela pretensão de alcançar o domínio sobre a mesma. Esta
pretensão pode representar uma ditadura do espírito que degrada o espírito e o
reduz a operador de cálculos, organizador de conceitos operativos e representante
de um modelo operativo predefinido. À base de tal crítica está o princípio cartesiano
da redução dos corpos à extensão, impedindo assim a tematização de toda existência
individual. Todavia, pode-se apontar ainda para uma motivação ainda mais radical
por parte de Pascal na sua crítica a Descartes. Pascal permite entrever que Descartes
não só não fundamenta a sua filosofia da natureza, mas também não funda nem
justifica a existência humana. A incerteza invocada por Pascal traz consigo a sua
inutilidade, pois, “é não somente impossível, mas também inútil conhecer Deus sem
Jesus Cristo” (PASCAL, 1961, Frg. 549); “impossível” porque, partindo de um princípio
hipotético, não se tem a sua evidência; “inútil” porque, supondo que se possa conhe-
cer Deus de tal modo, resta ainda uma grande distância entre o conhecê-lo e o amá-
lo! Desse modo, Descartes se torna “inútil e incerto” (PASCAL, 1961, Frg. 78). Pascal
está indicando a existência de competências; desejar provar a existência de Deus é
algo de inútil, do mesmo modo como seria inútil a Jesus Cristo ser reconhecido rei em
geometria ou a Arquimedes príncipe no espetáculo ostentativo da política, pois, para
ele, a única coisa que conta é o amor de Deus. A crítica de Pascal a Descartes não
representa uma acusação de ignorância de Deus, mas de O utilizar para regular a
máquina do mundo e não para submeter-se6.
6 Fr. 77: “Não posso perdoar Descartes; bem quisera ele, em toda sua filosofia, passar sem Deus, mas não pôdeevitar de fazê-lo dar um piparote para pôr o mundo em movimento; depois do que, não precisa mais de Deus” (cf.MARION, J.-L. Sur le prisme métaphysique de Descartes. Paris: PUF, 1986, p. 316).
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Existe também, segundo Pascal, uma dimensão sutil da existência que não se
deixa manejar como gostaria o geômetra, pois ali mais se observa do que se discerne.
O geômetra necessita realizar um enorme esforço para poder penetrar em tal dimen-
são. Isto porque ele procede a partir de pressupostos não evidentes. Ao lado deste
modo de proceder, mas não em oposição, Pascal descreve um outro modelo de co-
nhecimento, extremamente fecundo e que denomina espírito de finesse.
Segundo Pascal, para o modo de conhecer guiado pelo espírito de finesse osprincípios são de uso comum; estão diante dos olhos de todo mundo. Basta, parapercebê-los, virar a cabeça, sem nenhum esforço; trata-se somente de ter boa vista,
mas que seja boa, pois os princípios são tão sutis e em tão grande número, que équase impossível não nos escaparem alguns. Ora, a omissão de um princípio leva ao
erro; assim é preciso possuir a vista bem clara para ver todos os princípios e tambémo espírito justo para não raciocinar erroneamente sobre princípios conhecidos. (...)Os espíritos sutis seriam geômetras, se pudessem volver a vista para os princípios
desusados da geometria. Eles não podem de todo voltar-se para os princípios dageometria. Já os geômetras (...) perdem-se nas coisas da finura, onde os princípios
não se deixam manejar como no modo de proceder geométrico. Eles são apenasentrevistos; mais pressentidos do que vistos; é preciso um esforço infinito para torná-
los sensíveis a quem não os sente por si próprio: são coisas de tal maneira delicadase tão numerosas, que é necessário um sentido muito delicado e muito preciso parasenti-las, e para julgar reta e justamente de conformidade com esse sentido, sem
poder, o mais das vezes, demonstrá-las em ordem, como na geometria, porque nãolhes possuímos do mesmo modo os princípios, e tentá-lo seria um não acabar mais. É
preciso, num instante, ver a coisa num só golpe de vista, (...) ao menos até certograu. (...) O sentimento só pertence a poucos homens.
Os espíritos sutis, (...) acostumados a julgar com um só golpe de vista, ficam tãoespantados (diante do modo de proceder da geometria), que se afastam e se desgos-
tam. (...) Os sutis, que são apenas sutis, não podem ter a paciência de descer aosprimeiros princípios das coisas especulativas e de imaginação, que nunca viram no
mundo e que estão completamente fora de uso.
O espírito de finesse deriva com exatidão as consequências das coisas em que hámuitos princípios; ele julga com o sentimento e por isso não entende nada das coisas
7 Temos aqui uma visão panorâmica daquilo que Pascal, sob o título “Espírito de Finesse”, apresenta nos fragmen-tos de 1 a 3. ar
tig
os
SPENGLER, Jaime. Espírito de geometria e espírito de finesse68
do raciocínio, pois quer logo chegar a perceber com um golpe de vista e não tem o
hábito de procurar os princípios7.
O espírito de finesse é conduzido por uma dinâmica própria de conhecimento;
“ele sente os princípios e os colhe em unidade”, manifestando uma amplidão de
espírito que lhe permite penetrar com vivacidade e profundidade nas consequências
dos princípios. Trata-se, pois, de intuição, de imediatez que não depende simples-
mente de uma disposição arbitrária do que ‘está aí diante dos olhos’, mas é algo com
o qual já desde sempre somos confrontamos: “estão diante dos olhos”. Este mostrar-
se do que está diante dos olhos acontece já antes que a ‘subjetividade’, a partir de si,
saiba deste fato!
Pascal afirma que, segundo o modo de proceder do espírito de finesse, a multi-
plicidade dos princípios é colhida em uma unidade, sem nenhuma intervenção pre-
determinada da subjetividade; trata-se de princípios que se sentem, que se impõem
a nós, e por isso não são vistos em seus nexos lógicos. Todavia, apesar da não evidên-
cia de seus nexos lógicos, este modo de proceder representa um modo fecundo de
conhecer. É preciso num instante, ver a coisa num só golpe de vista, e não pela
marcha do raciocínio, ao menos até certo grau! Trata-se de uma espécie de intuição.
Em um outro texto, Pascal precisa que o espírito de finesse “possui uma ductilidade
de pensamento que se adapta ao mesmo tempo às diversas partes amáveis daquilo
que se ama; dos olhos vai até o coração e dos movimentos exteriores conhece o que
acontece no interior”. Este modo de colher, de sentir os princípios “não se adquire
através do costume; se pode somente aperfeiçoá-lo”. Ele “é um dom da natureza e
não uma aquisição através da arte”. O modo de proceder do espírito de finesse se
caracteriza por uma dinamicidade que está numa constante atenção para acolher na
sua totalidade o que pode se manifestar! Através deste espírito se tocam realidades
complexas, que se exprimem de modo singular, de forma subtil, fugidias, caracteriza-
das por nuanças que escapam a uma análise metódica. O próprio Pascal afirma que,
para penetrar nesta dimensão, é necessário um “sens” (sentido) muito delicado e ao
mesmo tempo muito preciso (PASCAL, 1961, Frg. 1), capaz de discernir o emaranhado
das relações e oferecendo uma compreensão da totalidade antes que se entre em
considerações metódicas. Estamos, pois, diante de um segundo uso, ou melhor, de
um segundo nível do espírito, correspondente a um segundo grau de interiorização.
Podemos, portanto, sugerir que, se de um lado o modo de proceder geométrico
carrega em si um limite, pois jamais poderá superar as fronteiras que caracterizam a
sua organização prévia, isto é, procede por distinções, por outro lado necessita man-
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ter-se aberto a um campo de conhecimento, onde o espírito de finesse pode encon-
trar o chão para a possibilidade de superação dos dados adquiridos e organizados
metodicamente, aprofundando e penetrando dimensões novas: “Quando se possu-
em um e outro juntos, que prazer dá o amor! Porque se têm juntas a força e a
flexibilidade do espírito”. Um e outro modo de proceder estariam assim, profunda-
mente empenhados autenticamente na busca do sentido do modo do ser.
A razão adquire assim uma posição particular: de um lado, se empenha na refle-
xão para a formulação das definições, distinções e organização dos dados recolhidos
a partir da experiência externa e científica; do outro lado, pode também ser constan-
temente despertada para acolher, a partir desta compreensão da finesse, a possibili-
dade de vislumbrar dimensões novas, de onde a experiência existencial lhe concede
sempre de novo a possibilidade de investigar.
Os princípios colhidos pelo Espírito de Finesse são de tal modo finos e sutis,
afirma Pascal, que a gente os pode mal e mal sentir. Ora, este sentir impõe a necessi-
dade de uma abertura à dimensão do sentimento. Com o termo sentimento designa-
mos um conjunto de atos, onde acontecem as emoções intelectivas, as experiências
de valores e do querer8. O sentimento tem as suas leis e objetos próprios; deste modo
constitui-se também um mundo singular tão real quanto aquele constituído pela
dimensão meramente racional. Existe entre o sentimento e o seu objeto específico
uma imediatez própria, independente das leis psíquicas do indivíduo. Basta recordar,
a título de exemplo, o fragmento 276: “O Sr. Roannez dizia: ‘as razões vêm-me de-
pois: antes, a coisa me agrada ou me choca sem que eu saiba a razão, e, no entanto,
choca-me, por essa razão que descubro a seguir’. Não creio que a coisa choque pelas
razões que se descobrem depois e sim que só se encontram essas razões porque a
coisa choca”.
O sentimento oferece os conteúdos fundamentais que constituem o homem na-
quilo que ele é; mais ainda: lhe concedem a possibilidade de conhecer aquilo de que
ele necessita para subsistir (PASCAL, 1961, Frg. 72)9; nesse sentido, o homem se cons-
titui enquanto sentimento; este existe por si mesmo e se basta a si mesmo. As expe-
riências de sentimento constituem o homem como sujeito de emoções; nelas nos
encontramos, por exemplo, em dor, em alegria, em confiança etc. São estas experiên-
8 Seria interessante ampliar a compreensão do que seja sentimento...9 Sabemos da grande importância de uma boa compreensão do que seja sentimento para uma justa compreensãoda estrutura da existência humana. O sentimento é algo constitutivo da estrutura ontológica da existência huma-na. Cf. M. HEIDEGGER, Sein und Zeit, § 29. ar
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SPENGLER, Jaime. Espírito de geometria e espírito de finesse70
cias que abrem um horizonte de compreensão da condição humana, difícil de ser
compreendido por quem não se deixa conduzir pelo princípio da finesse. A dimensão
do sentimento representa uma imediata presencialidade dada que agarra o homem,
onde, como afirma Pascal no fragmento 01, “os princípios são apenas entrevistos;
mais pressentidos do que vistos; é preciso um esforço infinito para torná-los sensí-
veis a quem não os sente por si próprio”. Esta dimensão do conhecimento parte de
uma compreensão de totalidade para chegar ao particular. Tal descrição apresenta
uma tensão do pensamento proporcionada pelo sentimento: ele está sempre em
ação, mas não em uma pressa desmedida; ao contrário: está sempre novamente e de
forma nova procurando checar cada possibilidade, indagando-as nas suas variadas
manifestações. Assim, nenhuma solução parcial pode ser satisfatória, pois não é pos-
sível permanecer junto à parcialidade. O pensamento assim acionado aspira a “um
sempre mais além”, não considerando como progresso o simples fruto do raciocínio
lógico-matemático, mas sondando as possibilidades de vislumbrar dimensões novas,
onde uma compreensão mais ampla dos entes na sua totalidade possa ser alcançada.
Assim, o sentimento representa não aquilo que um certo tipo de psicologia compre-
ende quando utiliza tal termo, mas o fundamento mesmo da existência humana e de
suas possibilidades; o chão a partir do qual a existência humana se constitui.
O pensar comum esquiva-se da tensão do pensamento; tal pensar tenta sempre
escapar do encontro-desencontro das oposições, pois procura sempre uma certa via
média, representada pela ciência com suas certezas. Ora, o pensamento autêntico
não pode jamais esquivar-se da tensão que domina os seus contrastes fundamentais;
estes contrastes são tão evidentes que é impossível não os considerar10.
O sentimento se realiza num corpo; melhor dizendo, é no corpo que se dá o
sentir. O corpo, portanto, não pode ser considerado simplesmente no seu modo
exterior de se apresentar; do mesmo modo o sentimento. É da unidade de corpo e
sentimento que surge uma totalidade nova11. O corpo, assim considerado, torna-se a
porta de entrada para o mundo. É através dele que são dadas ao homem as possibi-
10 Fr. 72: “Daí a confusão generalizada entre quase todos os filósofos que misturam as idéias das coisas, falandoespiritualmente das coisas corporais e corporalmente das coisas espirituais. Dizem, ousadamente, que as coisastendem a cair, que aspiram ao centro, que fogem à sua destruição, que temem o vácuo, que tem inclinações,simpatias, antipatias, qualidades todas que somente ao espírito pertencem. E, referindo-se ao espírito, conside-ram-no como se estivesse em determinado espaço, e lhe atribuem a capacidade de movimentar-se, coisas quepertencem apenas aos corpos. Em vez de recebermos a idéia pura das coisas, tingimo-la com nossas qualidades eimpregnamos de nosso ser composto todas as coisas simples que contemplamos” (PASCAL, 1961).11 Fr. 512: “A união de duas coisas sem mudança não permite dizer que uma se transforma na outra: assim a almaestá unida ao corpo, o fogo à lenha, sem mudança. É preciso uma mudança que permita que a forma de uma setorne a forma da outra: tal como a união do Verbo ao homem” (PASCAL, 1961).
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lidades de confrontar-se com os entes que o cercam; é nele e com ele que experimen-
tamos, por exemplo, as possibilidades e os limites da nossa condição; nele experi-
mentamos os pressupostos dos talentos, dos impedimentos insuperáveis, da condi-
ção de raça, nacionalidade, costumes; é no corpo que vivemos as relações com nosso
grupo social e familiar. Portanto, o corpo não é simplesmente qualquer coisa de
material e por isso espacial. O corpo representa a possibilidade de abertura do ho-
mem para o mundo, segundo os modos primitivos da quantidade, temporalidade,
espacialidade e mensurabilidade. Esta abertura para o mundo, possível no e através
do corpo, o homem deve aceitar assim como ela é; trata-se de algo que lhe é dado:
lhe é natural. O homem não pode, a partir da sua subjetividade, mudar esta condi-
ção; ela não depende de uma sua decisão, pois lhe é o fundamento. Por isso, afirmar
que a compreensão pascaliana do homem como corporeidade reflete a concepção
bíblica do homem como unidade de corpo e alma, não significa um andar para além
daquilo que ele descreve como sentimento, porque podemos afirmar que corpo e
sentimento formam uma unidade, são sinônimos. Tarefa do homem é conservar esta
sua condição, pois ela pode ser corrompida: “como se estraga o espírito, estraga-se
também o sentimento” (PASCAL, 1961, Frg. 6).
Se as considerações sobre o sentimento nos conduziram novamente ao tema da
corporeidade, é porque esta nos provoca a refletir sobre a sua dimensão da finitude
e de vulnerabilidade não como uma restrição, mas como amplitude. Por que amplitu-
de? Porque, segundo o proceder geométrico, a “ratio” é já sempre guiada por pres-
supostos dados, enquanto que no âmbito da finitude se está sempre na disposição
para uma abertura originária do que caracteriza o homem enquanto tal, isto é, finito.
A ciência no seu agir positivo, jamais poderá explicar completamente os desejos e
interesses do homem, ou seja, o seu ser lançado no mundo.
A possibilidade de compreender a nossa vida é algo que nos é concedido somen-
te à medida que vivemos. As teorias, os sistemas com seus métodos e organização
não nos dão o acesso ao elementar da nossa existência enquanto tal. A vida tem um
seu modo próprio de esclarecimento, segundo uma medida própria. Por isso afirma
Pascal: “a verdadeira eloquência zomba da eloquência, a verdadeira moral, zomba
da moral;(...) zombar da filosofia é, em verdade, filosofar” (PASCAL, 1961, Frg. 4). Não
se trata de refutação ou oposição entre um e outro modo de investigar as diversas
situações vitais; trata-se, sim, antes de tudo, de modos distintos e originais de proce-
der; ou em outros termos: Pascal não concebe a atividade do pensar como uma mera
organização racional dos entes, mas como um movimento vital, como um modo de
ser que, em avançando na tarefa de autoconhecer-se, faz irromper dimensões sem- arti
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SPENGLER, Jaime. Espírito de geometria e espírito de finesse72
pre mais amplas da própria existência. Assim sendo, a tarefa do pensar emana da
plenitude da vida e a ela deve conduzir e dar-lhe condições de se conservar.
Esta tentativa de compreender o modo de proceder denominado espírito de finesse
nos mostra que não somos nós que possuímos as formas de clarificação da existência
enquanto tal, mas que somos guiados por dinâmicas originais de sua compreensão.
Ao mesmo tempo, podemos entrever que semelhante interpretação não pode ser
facilmente reconhecida pela razão positiva; para esta a “finesse” é cega e como tal
poderá ser identificada com o instinto. Deste modo, podemos compreender Pascal
quando afirma que “duas coisas instruem o homem acerca de sua natureza: o instin-
to (espírito de finesse) e a experiência (espírito de geometria)” (PASCAL, 1961, Frg.
396). E ainda: “instinto. Razão - Temos uma incapacidade de provar, que nenhum
dogmatismo pode vencer. Temos uma idéia da verdade, que nenhum pirronismo
pode suplantar” (PASCAL, 1961, Frg. 395).
Pode-se vislumbrar mais uma vez aquela importante função que tem o conceito
de finitude do homem na obra de Pascal; essa finitude não poderá jamais ser extinta:
na verdade, é ela que constitui o homem enquanto homem. Ao mesmo tempo,
tematizando a questão da finitude, Pascal lança uma forte critica àquele modo de
conceber o ente somente enquanto representado pelo “eu”, trazendo deste modo
novamente à luz a questão da incapacidade natural da razão de provar os princípios
originários. Estes requerem uma idéia de verdade que a pura razão, guiada somente
pelo espírito de geometria, não pode alcançar; para poder entrever tais princípios
originários, o homem goza das possibilidades que lhe são oferecidas pelo instinto.
No fragmento 4, Pascal afirma que ao juízo pertence o sentimento. O que signi-
fica aqui juízo? Não estaria aqui implícito um modo próprio de movimentar-se no
chão da vida? Não seria possível entrever nesta afirmação que é a partir de um agir
que conduz a uma clarividência da vida ela mesma, que podemos compreender o
que significa sentir, sentimento, corpo? Se assim é, então o juízo pode ser compreen-
dido como resultado de uma decisão. A partir da decisão, é possível um entrar no
movimento da abertura originária da natureza, no equilíbrio de toda particularidade,
naquilo que significa “finesse”. Mais ainda: o próprio modo de proceder científico se
torna possível, somente através de uma intuição imediata dos primeiros princípios,
isto é, tempo, espaço, movimento, número, igualdade própria do espírito de finesse;
assim sendo, ainda que o modo de proceder geométrico-matemático, possa parecer
mais convincente, este não pode desconsiderar a intuição originária que lhe possibi-
lita o avançar. Trata-se de algo que nos ultrapassa, sim, mas que não pode ser igno-
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rado. Com tais observações, Pascal, possibilitou a compreensão da abertura de uma
dimensão do conhecer tão real quanto aquela denominada positiva, a qual, todavia,
possui uma forte tendência a impor-se como única e evidente12. Esta nova dimensão
do conhecimento, guiada por uma mais ampla profundidade de espírito, Pascal de-
nominou com a expressão coração.
Referências
PASCAL, B. Oeuvres complètes I (a cura de M. Le Guern), Gallimard, 1998.
PASCAL, Pensamentos. (trad. portuguesa de S. Millet), 2. edição, São Paulo: Difusão
européia do livro, 1961. (Esta mesma versão, juntamente com A vida de Pascal escri-
ta por G. Périer, foi publicada em 1973, pela Abril S.A. Cultural e Industrial, São
Paulo, na coleção Os Pensadores – História das grandes idéias do mundo ocidental).
12 Fr. 281: “Coração, instinto e princípios” (PASCAL, 1961).
Fr. 282: “Conhecemos a verdade, não só pela razão, mas também pelo coração; é desta última maneira queconhecemos os princípios, e é em vão que o raciocínio, que deles não participa, tenta combatê-los. Os pirrônicos,que só têm isso como objetivo, trabalham inutilmente. Sabemos que não sonhamos; por maior que seja a nossaimpotência em prová-lo pela razão, essa impotência mostra-nos apenas a fraqueza da nossa razão, e não acerteza de todos os nossos conhecimentos, como pretendem (...)” (PASCAL, 1961).
Fr. 283: “A ordem. Contra a objeção de que a Escritura não tem ordem - O coração tem sua ordem; o espírito tema sua, através de princípios e demonstrações; o coração tem outra. Não se prova que se deve ser amado expondopor ordem as causas do amor: seria ridículo” (PASCAL, 1961). ar
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ARTIGOS-RESUMO DEMONOGRAFIA
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 77-103, jan./jun. 2010 77
Robson Luiz Scudela *
Resumo: O presente artigo tem por objetivo desenvolver uma refle-xão a respeito do homem, a partir das obras de Dostoiévski. É motiva-do pelo trecho das Memórias do subterrâneo: “Nas recordações decada homem há coisas que este não descobre a ninguém, a não ser aseus amigos” (DOSTOIÉVSKI, 1963c, v.2, p.688). A reflexão abordará,neste aspecto, a história pessoal de Dostoiévski e o contexto social noqual ele viveu, a fim de compreender de onde surgiram as principaisinfluências em seu pensamento. É apresentada a relação filosofia-lite-ratura, buscando superar a concepção de que ambas se opõem. Éelaborada, também, uma reflexão no que diz respeito à relação deDostoiévski e a filosofia.
Palavras-chave: Dostoievski, homem, antropologia filosófica, filoso-fia, literatura.
Abstract: This paper aims to develop a reflection on the man, fromthe works of Dostoevsky. It is motivated by the passage of the Memoirsof the underground: “In memory of every man there are things thathe does not reveals anyone, unless your friends” (Dostoyevsky, 1963c,v.2, p.688). In this aspect the discussion will address of Dostoevsky’spersonal history and social context in which he lived, to understandwhere it came from the main influences of his thinking. It shows therelationship philosophy-literature, seeking to overcome the idea thatboth oppose. It produced also a reflection regarding the relationshipof Dostoevsky and philosophy.
Keywords: Dostoyevsky, man, philosophical anthropology, philosophy,literature.
O conhecer a si mesmo, emDostoiévski
* Estudante da ProvínciaFranciscana da ImaculadaConceição do Brasil, atual-mente estagiário na missãoda Província, em Angola.email: [email protected]. O presente artigo foi ela-borado originalmente apartir do trabalho de con-clusão de curso apresenta-do ao Instituto de FilosofiaSão Boaventura da FAE –Centro Universitário Paraná. ar
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SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski78
Introdução
Antes, talvez, da leitura das linhas que seguem, seria de maior proveito se o leitor
as deixasse de lado e, saindo de casa, fosse andar por uma das ruas na qual o encon-
tro com outras pessoas pudesse acontecer. Se isto se tornar realidade, não se preocu-
pe, no encontro com elas, dizer-lhes algo ou querer que lhe o digam. Apenas ande e
veja que as pessoas são tão desiguais que seria inconcebível chamá-las assim, subme-
tendo-as a um conceito.
Sob o conceito pessoa há um homem que surge em sua individualidade, em e de
seu jeito próprio, o que o torna único. Se, pois, o que observa e que é observado é
este individual, este único em seu próprio, a questão homem torna-se, evidentemen-
te, a que mais clama por uma resposta, uma vez que faz referência àquele que a
elabora.
Nessa perspectiva, não há, primordialmente, outra questão que provocaria o
homem, a não ser a do conhecer-se.
O diferencial dessa questão é que ela não é de simples solução. O homem, por
mais que queira, não consegue submeter seu viver aos conceitos e aos fatos exter-
nos. É uma fonte borbulhante que, se impedida em algum lugar de sair, encontrará,
por necessidade, outro.
A descoberta do homem, por Dostoiévski, encontra-se neste caminho, no qual a
fonte borbulhante do viver é maior que qualquer limite racional ou pré-determina-
ção. O homem vive numa dinâmica cuja vivacidade encontra-se no próprio homem.
Assim, o conhecer-se não poderia ser entendido como uma possibilidade do homem
que, ao realizá-lo, estaria em condições de pré-determinar-se. O conhecer-se é o pró-
prio homem que se vê libertado daquela “antiga-pré-definidora-presente” impressão
de que em si há apenas o homem santo ou somente o pecador.
O homem é viver. Por mais que houvesse o objetivo de defini-lo em sua dinâmica,
pelo bom senso racional, este jamais seria realizável. O viver sacrifica o bom senso em
seu altar, para o louvor de si.
Se, porém, o homem é viver, qualquer busca por ele seria inútil e insegura. A
possibilidade de colher frutos é incerta, uma vez que é impossível pré-definir as atitu-
des humanas, e uma descoberta, facilmente, perderá o seu norte diante do agir hu-
mano que pode surgir. Todavia, está aí a desafiadora tarefa à qual deve-se acender a
vela e fazer a prece. A tarefa é a busca do homem não no conceito, mas na sua
vivacidade.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 77-103, jan./jun. 2010 79
Não é objetivo desta abordagem realizar a adjetivação da essência humana, mas
sim, perceber como esta acontece, e como nela o homem surge, não havendo mais
uma roupa científica que o vista, dando, assim, a ele, a capacidade de surpreender,
tornando-o capaz de, apesar das poucas peças, dar o xeque-mate e o convite para
uma nova jogada.
Dostoiévski, contemplando o homem em suas obras, dá a ele espaço para acon-
tecer. O homem não é objeto colocado no mundo, mas sim, é acontecimento e,
neste, revelação.
Sendo assim, para melhor ver o homem, a partir de Dostoiévski, o presente estu-
do se inspira no trecho das Memórias do subterrâneo: “Nas recordações de cada
homem há coisas que este não descobre a ninguém, a não ser a seus amigos. Há
outras também que nem a seus amigos descobre, e apenas a si próprio as confessa,
e isto ainda em segredo. Mas há finalmente outras que o homem receia confessar a
si próprio, e todo homem guarda na sua alma uma pilha dessas coisas” (DOSTOIÉVSKI,
1963c, v.2, p. 688).
No primeiro momento, “nas recordações de cada homem há coisas que este não
descobre a ninguém, a não ser a seus amigos”, serão abordadas as questões presen-
tes nas “conversas” do-dia-a dia, quando, diante de seus amigos, o homem encontra
espaço para abordá-las. Nesta abordagem, será apresentada a vida de Dostoiévski,
suas obras e o contexto social no qual viveu. Apresentar-se-á, também, uma reflexão
no que diz respeito à relação entre filosofia e literatura durante a história, e como
esta acontece nas obras de Dostoiévski.
O segundo momento, “há outras também que nem a seus amigos descobre, e
apenas a si próprio as confessa, e isto ainda em segredo”, será dedicado às questões
que o homem não revela aos seus amigos, confessando somente a si, em segredo.
Será apontado, nessas questões, o mal, o sofrimento, o bem, a liberdade e Deus,
como questões presentes no homem e que dele exigem uma resposta.
No terceiro e último momento, “mas há finalmente outras que o homem receia
confessar a si próprio, e todo homem guarda na sua alma uma pilha dessas coisas”,
serão abordadas a questão do homem, a relação dele com seu próximo e a relação
com o si mesmo, em uma perspectiva de, nestas questões, também, conhecer-se.
Com isso, deseja-se que o presente estudo seja uma possibilidade de o próprio
homem ver-se e conhecer-se, sentindo-se provocado pelo viver.
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SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski80
1 “Nas recordações de cada homem há coisas que estenão descobre a ninguém, a não ser aos seus amigos”1.
Cada homem é único. O que o torna único são as milhares de diferenças presen-
tes em todos, que, quando “ordenadas”, os identificam, não no sentido matemático
que vê a perfeição somente ao chegar no resultado preciso e esperado, mas sim
quando se depara com o “aparecer” motivado por uma realidade anterior, sustentadora
do aparecimento, a essência2, no momento em que é compreendido que quando
“dois e dois são quatro não é vida, [...] mas o começo da morte” (DOSTOIÉVSKI,
1963c, v.2, p. 684).
Ver o homem nesta perspectiva abre a possibilidade de, a partir das obras de
Dostoiévski, fazer uma reflexão provocativa e instigadora de excelentes frutos para a
antropologia filosófica, uma vez que, nas obras deste autor, o homem não se reduz à
soma de partes matemáticas que possuem um resultado eternamente único. Ele vive e,
pelo fato de viver, expressa a “fundamental ambiguidade do homem, em virtude da
qual não existe sujeito bom que de algum modo não está estimulado pelo mal, nem há
um delinquente tão degradado que não possua, em algum sentido, o bem” (PEREYSON,
2007, p. 225, tradução nossa3). É a ambiguidade presente no ser humano, comprovada
quando se vê que um mesmo homem pode tomar uma atitude de compaixão huma-
na e, logo depois, outra que poderá levá-lo ao desprezo do humano.
Porém, para chegar a esta visão do homem, a própria vida de Dostoiévski revela
fatos que potencializam a questão da ambigüidade humana, gerando esse esplendor
visionário, único que não permite àqueles que conhecem sua alma e suas obras,
ambas proféticas, sair delas de algum modo não transformado, questionado pelos
problemas filosóficos presentes nas “malditas” questões de Dostoiévski, ou, ainda,
não se ver espiritualmente nu.
Pelos apontamentos destas primeiras linhas, percebe-se que o presente estudo
não buscará ser, em seu objetivo principal, um ensaio de história literária ou uma
crítica literária, mas sim, apontar como nas obras de Dostoiévski encontram-se ques-
tões que auxiliam o homem no processo de conhecer a si mesmo, possibilitando à
filosofia antropológica um galgar as “escadas do horizonte” e chegar, assim, em um
lugar perfeito para “sentar-se” e refletir a questão: o homem!
1 DOSTOIÉVSKI, 1963c, v.2, p. 688.2 “Essência é aquilo que faz com que uma coisa seja o que é, aquilo pelo qual um ente tem determinado grau deperfeição” (PIRES in: LOGOS, 1990, v.2, p. 256).3 Do original: “fundamental ambigüedad del hombre, en virtud de la cual no existe sujeto bueno que de algúnmodo no esté influido por el mal ni hay delincuente tan degradado que no posea algún sentido del bien”.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 77-103, jan./jun. 2010 81
Antes, porém, de entrar-se por este “buraco de agulha”, requer-se conhecer a
paisagem que a antecede, o caminho que conduz até ela, ou seja, a vida de Dostoiévski
como homem na história, para, assim, poder daí colher algumas direções facilitadoras
para a reflexão.
1.1 Dostoiévski
E eis que de súbito ecoou um grito novo [...] um grito fraco, inarticulado, o vagido de
uma criança. [...] O aparecimento de um novo ser na terra é um grande e inexplicável
mistério (DOSTOIÉVSKI, 1975d, v.3, p.1280).
1.1.1 Um grito novo e primeiros anos de um mistério
Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski, aquele que viria a ser o maior metafísico russo,
o escritor dos Irmãos Karamazov, nasceu na cidade de Moscou em 11 de novembro(30 de outubro, segundo o calendário Juliano) de 1821, no seio da família Dostoiévski,
originalmente católica da Lituânia, descendente de um sacerdote grego ortodoxo,cultivador de um gênio orgulhoso, intolerante e devoto. Era uma família pobre, umatribo de intelectuais nômades que ia aonde os impulsos a levasse, “para o céu ou
para o inferno, mas nunca para a obscuridade” (THOMAS, 1957, p. 171).
Mikhail Andreievitch, pai de Fiódor, era médico no chamado Hospital dos Pobres;um hospital que se dedicava aos cuidados dos indigentes de Moscou. Viveu lá com
sua mulher, Maria Fiodorovna Netchaier, “uma figura doce, sofrendo em silêncio odespotismo doméstico do marido avaro, que não lhe dá o dinheiro necessário para oprovimento da casa” (NUNES, in: DOSTOIÉVSKI, 1963, v.1, p. 26), além das crises de
ciúme injustificadas que esta sofria.
Havia, no hospital, o “Jardim dos doentes”, lugar onde estes passavam as horas,marcadas pela tristeza das doenças; esta situação, este ambiente visto por Dostoiévski,
ficaria marcado em sua memória, aquela realidade do espantoso paradoxo da vida: “Osofrimento do homem no meio da formosura da natureza” (THOMAS, 1957, p. 172).
Em 1931, Dostoiévski, já com dez anos, mudou-se com os quatro irmãos paraTula, perto de Moscou, onde puderam desfrutar de uma vida livre do autoritarismo
paterno que, se não chegara aos castigos físicos, chegou à aspereza, à rigidez morale ausência de calor humano.
A alegria de Dostoiévski começa a nascer no mesmo período em que ingressa no
Liceu Tchermak, em Moscou. Essa alegria, porém, não encontra alimento para se
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SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski82
manter. No dia 27 de fevereiro de 1837, sua mãe, Maria Fiodorovna, falece, deixando
profundas marcas de ausência no jovem, uma vez que este era mais ligado, pelos
sentimentos familiares, a ela do que ao pai. A morte de seu pai, contrária à da mãe,
representou a Dostoiévski uma libertação.
Para Fiódor, a morte da mãe trouxe um verdadeiro drama existencial que provoca
profundas influências na psique do jovem.
Dostoiévski, em criança, teria assistido às cenas de despotismo paterno, teria visto
por várias vezes a sua terna e submissa mãe chorar. Quer por sua natureza afetiva e
excessiva, quer por sua qualidade de filho e de rapaz, era natural que tomasse o
partido da mãe contra o pai. Num temperamento como o seu, este amor pela mãe
tornar-se-ia exclusivo e teria mesmo como reverso o ódio pelo pai (NUNES, in:
DOSTOIÉVSKI, 1963, v.1, p. 27).
No colégio, Dostoiévski encontra em sua personalidade outro aspecto doloroso,
a sua incapacidade de sociabilidade, o que o levava ao isolamento. Troyat afirma que
Dostoiévski gostaria de arranjar amigos, mas era afastado desses pelo seu “amor-
próprio” excessivo e uma certa desconfiança doentia (NUNES, in: DOSTOIÉVSKI, 1963,
v.1, p. 29). Tinha um desejo de conhecer, dedicar-se ao outro, porém, retraía-se,
fechava-se dentro de si. Tinha medo das múltiplas possibilidades que a vida oferece
em seus imprevistos.
Em 1837, é aprovado na Escola dos Engenheiros Militares de São Petersburgo,
onde encontrou mais uma vez a dificuldade de se adaptar aos ambientes coletivos, o
que, neste local, foi reforçado pelo protótipo de seus companheiros que, motivados
pelos interesses econômicos e pela sucessão na carreira, despertavam, em Dostoiévski,
o desprezo por eles. “Entrega-se antes aos seus anseios e devaneios infinitos e lê
muito: Balzac, Vitor Hugo, Goethe, Racine, Corvelle” (NUNES, in: DOSTOIÉVSKI, 1963,
v.1, p. 29).
A estreia literária de Dostoiévski, para toda a Rússia, aconteceu no ano de 1846,
com a publicação de sua primeira obra, Pobre gente, que fora escrita no ano de
1844, quando o escritor tinha apenas 23 anos, no Almanaque Petersburguês, que
estava sob coordenação de Nicolai Nierkrássov. Esta novela foi elogiada por muitos
críticos da época, Bielínski foi um deles que, quando a leu, exclamou que aí surgia um
novo Gógol.
Um dos motivos que levaram o crítico Bielínski a glorificar o primeiro romance de
Dostoiévski, parece que foi o fato de tê-lo considerado como um romance de caráter
social, pois ele era também um socialista russo do seu tempo. Entretanto um roman-
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 77-103, jan./jun. 2010 83
ce como Pobre gente não pode classificar-se de social, no mesmo sentido, por exem-
plo, da Ressurreição de Tolstói. O lado psíquico dos personagens, o estado de sua
solidão moral íntima, a captação do fundo bondoso nuns, malévolo ou maldoso e
egoísta noutros, considerados independentes do meio social, é qualquer coisa que
atenua sempre, tanto nesta primeira obra como em todas as seguintes, o seu aspecto
social. O que se vê, desde já, é a sua compenetração amorosa no sofrimento dos
humilhados e oprimidos (NUNES, in: DOSTOIÉVSKI, 1963, v.1, p. 127).
Depois de Pobre gente, Dostoiévski publica outros romances, que, juntamente
com este, são, depois, considerados como novelas da juventude. São eles: O duplo; O
Senhor Prokháetchin; A dona de casa; Um romance em nove cartas; Polzunkuv; Cora-
ção frágil; O ladrão honrado; A mulher alheia; A árvore de natal; Noites brancas;
Nietotchka Niezvânova; O pequeno herói; O sonho do tio e A granja de
Stiepântchikovo, escritos na Sibéria na tentativa de lhe abrir novamente as portas da
literatura; e Humilhados e ofendidos, que são consideradas como “transposição au-
tobiográfica e prefiguradora dos grandes temas e de certos caracteres de protagonis-
tas ou de personagens secundários, desenvolvidos em toda a sua plenitude na obra
da maturidade” (NUNES, in: DOSTOIÉVSKI, 1963, v.1, p. 156). A repercussão destas
outras novelas da juventude não foi tão aplaudida quanto a de Pobre gente.
Na leitura destas novelas, percebem-se certos temas que abrem a possibilidade
de encontro com as ideias filosóficas. Encontram-se aí: “O valor ético da confissão, o
resgate do pecado pela humildade e pelo sofrimento, apologia à fraternidade univer-
sal, crença no destino, [...] crítica à literatura empolada e afastada da vida real” (NUNES,
in: DOSTOIÉVSKI, 1963, v.1, p. 157). Percebe-se desde o início da carreira literária
uma presença filosófica nas obras de Dostoiévski, comprovada nas atitudes de seus
personagens.
Em uma carta que escreve a seu irmão, Mikhail, neste período, afirma: “Vou no
terceiro ano de minha carreira literária e ando como no meio de um nevoeiro denso,
não descubro a vida, não tenho ocasião para parar e refletir. A minha arte perde-se
‘por falta de tempo’” (NUNES, in: DOSTOIÉVSKI, 1963, v.1, p. 33). Porém, o destino,
que em Dostoiévski se apresenta como o fruto de cada minuto, o leva à prisão, onde
encontrou o tempo que desejara para refletir, o que lhe assegurou bons frutos para a
obra Memórias da casa dos mortos que escreveria.
Para melhor compreender o que levou Dostoiévski à produção das Memórias da
Casa dos mortos, faz-se necessário, antes, apresentar o contexto histórico da Rússia,
como ela era vista pelo autor, a relação entre ambos, para poder, assim, apresentar a
Casa dos mortos e o que dela provém.
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1.1.2 Sim, a Rússia: um fenômeno extraordinário
E se existe no mundo um país desconhecido para os demais países, afastado dos
vizinhos, ignoto, inexplorado, incompreendido e incompreensível, esse país é, sem
dúvida, a Rússia. [...] Sim, acreditamos que a nação russa... constitui um fenômeno
extraordinário na história de toda a humanidade (DOSTOIÉVSKI, 1975a, v.4, p. 1235).
A Rússia nesse período é marcada por uma grande agitação social. Como na
Europa, na Rússia surgem também grupos clandestinos motivados por ideias socialis-
tas e progressistas. Porém, o czar não admitia que houvesse outras cabeças, a não ser
a dele, que pensasse o futuro da Rússia. Visando este fim, criou a “Ochrana”, isto é,
a polícia política, que dedicava cuidado especial às ideias de revolução provindas dos
intelectuais.
Em meados do ano de 1840, os grupos revolucionários, apesar da atuação da
polícia czarista, se apresentavam em número elevado, formados de jornalistas, estu-
dantes universitários, funcionários, escritores e pequenos burgueses. Um destes gru-
pos é o de Pietrachévski, no qual Dostoiévski começa em 1847 a fazer parte. Todavia,
este grupo não era um dos mais revolucionários e perigosos. Era mais um grupo de
cabeças quentes apoiadas no lírico, em que o falar sempre estava acima do agir.
“Alguns rapazes reúnem-se em torno de Pietrachévski, fumando e bebendo chá, fa-
lam de literatura, de política, criticam o regime [...] nenhum programa definido, ne-
nhum plano de ação” (NUNES, in: DOSTOIÉVSKI, 1963, v.1, p. 35). Apesar de
Dostoiévski participar desse grupo e reconhecer a sua visão humanística, ele acredita-
va que essas ideias não seriam a total solução para a Rússia, já que esta se encontra-
va, segundo Dostoiévski, na própria história. “Nós acreditamos com toda a força na
alma russa” (DOSTOIÉVSKI, 1975a, v.4, p. 1238), alma esta que perpetua a história e
apresenta a salvação.
Entretanto, a polícia do czar via essas pessoas como das mais revolucionárias e
perigosas da história, argumento este que causou a prisão do grupo no dia 23 de
abril de 1849, ficando retido na fortaleza de Pedro e Paulo, onde aguardaria a orga-
nização do processo Pietrachvskistas. Neste presídio temporário, Dostoiévski escreve
uma carta a seu irmão na qual apresenta uma breve impressão do que se passava
consigo: “já imaginei três novelas e dois romances. Há uma vitalidade surpreendente
na natureza do homem. Nunca suporia que existisse tanto, mas agora o sei por expe-
riência própria” (TROYAT, in: NUNES, in: DOSTOIESKI, 1963, v.1, p. 35).
Segundo Nunes, a instauração do processo durou cinco meses. “Dostoiévski é
acusado de tomar parte em reuniões onde se criticavam atos do governo, a instaura-
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ção da censura e a servidão; de ter lido numa dessas reuniões uma carta de Bielinsky4,
a qual continha injúrias contra a Igreja Ortodoxa e ao poder supremo” (in:
DOSTOIÉVSKI, 1963, v.1, p. 36).
A Dostoiévski, após o término do inquérito, coube a pena de quatro anos de
trabalhos forçados na Sibéria como prisioneiro, e, depois, quatro anos ainda como
soldado raso. Porém, o imperador desejara dar, antes da prisão, uma lição que con-
sistiu na simulação de fuzilamento. Para dar caráter verossímil, foi feita a representa-
ção do detalhe da bandeira branca autorizando o rito sumário. No auge da tensão,
leu-se uma carta em que se ressaltava a “clemência” do czar5.
1.1.3 Os dias na Sibéria: a escorrer gota a gota sobre um teto
E o que eu queria era mostrar-vos o nosso presídio e tudo o que aí passei durante
todos esses anos. [...] Lembro-me, por exemplo, de que todos esses anos, no fundo
tão semelhantes, desfilaram uns atrás dos outros, tediosos, longos, tão monótonos
como a água que, depois de uma chuvarada, continua a escorrer gota a gota sobre
um teto. Lembro-me que só uma apaixonada ânsia de ressurreição, de renovação, de
uma vida nova, me fortaleceram na esperança e na ilusão. [...] Lembro-me de que,
apesar das centenas de companheiros, me encontrava numa horrível solidão, e aca-
4 Bielinsky (Vissarion Grigorievitch): “Escritor russo. Teve grande influência no movimento literário de sua pátria,exercendo verdadeiro magistério crítico, através da colaboração que deu a diversas revistas de cultura” (FERREIRA,in: VERBO, 1965, v.3, p. 1314).5 Muitos críticos afirmam que este episódio é recordado por Dostoiévski no livro O Idiota, descrito da seguinteforma: “Chegou o momento em que não lhe restavam senão cinco minutos de vida. Contava ele que aquelescinco minutos tinham-lhe parecido um espaço de tempo infinito, uma riqueza enorme; parecia-lhe que naquelescinco minutos tinha gasto tanta quantidade de vida, que nem sequer pensava em seu último momento e continu-ava adotando diferentes determinações; descontava o tempo necessário para despedir-se de seus camaradas,destinando a isso dois minutos e outros dois minutos para pensar pela derradeira em si mesmo e o restante dotempo para espalhar a vista em torno de si. Lembrava-se perfeitamente de que havia feito precisamente estas trêspartilhas e precisamente desse modo. A morrer aos vinte e sete anos, sadio e forte; ao despedir-se dos companhei-ros, lembrava-se de ter feito a um deles uma pergunta totalmente insignificante e que aguardou com muitointeresse a resposta. Depois de ter-se despedido de seus camaradas, achou-se dono daqueles dois minutos quehavia destinado a pensar em suas coisas; sabia de antemão em que havia de pensar; toda a sua ânsia era imaginar,com a maior rapidez e clareza possíveis, como haveria de ser aquilo: que ele, naquele instante existisse e vivesse e,ao fim de três minutos, tivesse de ser já outra coisa, alguém ou algo diferente... O quê? Tudo isso pensava eleresolvê-lo naqueles dois minutos, não longe daí havia uma igreja e o telhado da dourada cúpula refulgia ao solradiante. Recordava ter-se ficado a mirar, com suma atenção, aquela cúpula e os raios de sol que nela cintilavam.Não podia apartar os olhos daqueles raios de sol, parecia-lhe que aqueles raios de sol fossem para ele uma novanatureza, como se dentro de três minutos fossem fundir-se com ele... A ignorância e o horror daquela coisa novacom que dali a um momento iria defrontar-se eram espantosos, mas assegurava o homem que em todo aquelemomento não tinha havido nada de mais terrível para ele que esse contínuo pensamento: ‘E se não tivesse demorrer? E se voltasse à vida? Que eternidade! E tudo isso seria meu. Então converteria cada minuto em um século,não perderia nada, pediria conta a cada minuto, não gastaria nem um em vão’. Dizia que este pensamentochegou a inspirar-lhe tal raiva, finalmente, que a única coisa que queria era que o fuzilassem o quanto antes”(DOSTOIÉVSKI, 1975c, v.3, p. 182). ar
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bei, finalmente, por adaptar-me a essa solidão. Moralmente solitário, passava revista
a toda a minha vida passada, apercebia-me dos mais insignificantes pormenores de
tudo; apreciava o meu passado, julgava-me a mim mesmo de maneira implacável e
severa e havia até instante em que dava graças ao destino por me ter deparado aque-
la solidão, sem a qual não me teria sido possível julgar-me a mim próprio, nem chegar
àquele severo exame da minha vida pretérita (DOSTOIÉVSKI, 1963b, v.2, p. 540).
Iniciam neste período os anos de condenação na Sibéria. Como em toda a sua
vida, a dificuldade da prisão e os desentendimentos não eram superiores aos desejos
de Dostoiévski em buscar o conhecimento das almas dos que com ele viviam e, acima
disso, o seu próprio conhecimento. A prisão é, assim, o lugar propício para ele desco-
brir o ser humano naquilo que lhe é próprio.
Acontecia às vezes no presídio que uma pessoa conhecesse um homem durante al-
guns anos e pensasse que ele era uma fera, e não um homem, e que o desprezasse. E,
de repente, chegava casualmente um instante em que a sua alma descobria num
ímpeto involuntário o seu interior e se via nele tal riqueza, tal sentimento e coração,
tal clara compreensão da dor própria e alheia, que era como se vos abrissem os olhos,
e no primeiro instante nem se queria acreditar naquilo que se via e ouvia (DOSTOIÉVSKI,
1963b, v.2, p. 517).
O período na prisão foi o impulso decisivo e necessário para desabrochar o seu
gênio que, como ele mesmo anteriormente afirmara, estava em um “nevoeiro den-
so”, impedido de descobrir a vida. Assim, as suas obras passarão por uma evolução,
uma vez que, esses quatro anos, segundo Troyat, “são como o reservatório secreto
onde o seu gênio se alimentará daí para o futuro” (in: NUNES, in: DOSTOIÉVSKI,
1963, v.1, p.38). São as relações, as cenas dos dias vividos na prisão que acompanha-
rão sua vida, implicando em muitas das suas concepções a respeito do ser humano e
a sua relação com a sociedade. “O direito de impor castigos corporais outorgado a
um sobre o outro é uma das pragas da sociedade, é um dos meios mais poderosos
para aniquilar nela todo o germe de civismo e a base completa para a sua dissolução
inevitável e infalível” (DOSTOIÉVSKI, 1963b, v.2, p. 471). Nesse sentido, percebe-se
que o período de prisão instiga em Dostoiévski uma reflexão sobre como o ser huma-
no tortura e machuca o outro, um ser humano que se imagina no direito de posse do
corpo do outro humano, amparado pelo cargo estabelecido socialmente. São essas
ponderações a respeito da tortura, que o autor percebe na prisão, que o levam a
buscar o que significa o homem, a discutir os limites da sociedade que se enaltece na
degradação do outro. Todas essas considerações formam em Dostoiévski um estilo
autêntico e singular, influenciando os temas presentes em suas obras.
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Os Textos Sagrados causarão, também, uma influência decisiva na formação de
Dostoiévski. O estudo dos textos sagrados:
terá uma influência no aspecto formal das suas futuras obras. Henry Troyat define
perfeitamente esta influência: “As alegrias e os sofrimentos das suas criaturas já não
são mais estritamente terrenos. Todos os romances que fizer terão como que dois
planos. No primeiro agitar-se-á a vida cotidiana, com as suas complicações, os ciú-
mes, questões de dinheiro e de procedência, no segundo desenrolar-se-á o verdadei-
ro drama do homem: a procura de Deus, a procura do ente novo” (NUNES, in:
DOSTOIÉVSKI, 1963, v.1, p. 39).
Sua obra, Memórias da casa dos mortos, deixa transparecer esta influência:
Há pessoas que parecem tigres ávidos de beber sangue humano. Quem exerceu uma
vez esse poder, esse ilimitado domínio sobre o corpo, o sangue e a alma de um seme-
lhante seu, de uma criatura, de um irmão em Cristo, quem conheceu o poder e a
plena faculdade de infligir a suprema humilhação de outro ser, que traz em si a ima-
gem de Deus – converte-se sem querer em escravo das suas sensações (DOSTOIÉVSKI,
1963b, v.2, p. 471).
Em fevereiro de 1854, Dostoiévski sai do presídio e é enviado ao sétimo batalhão
da Sibéria, onde recebe uma autorização possibilitando sua morada fora do quartel,
em uma pequena casa onde começa a redigir Memórias da casa dos mortos.
Em novembro de 1859, depois de muitos pedidos ao imperador, é concedida a
Dostoiévski a possibilidade de retornar a Petersburgo. Neste período a Rússia se en-
contrava sob o poder do imperador Alexandre II que, apesar de possibilitar algumas
reformas liberais e conceder a emancipação dos servos, não amenizou a insatisfação
do povo russo, que continuava exigindo mudanças. Era difícil ao imperador conceder
a tranquilidade ao ânimo deste povo. Dostoiévski, neste contexto, apresenta-se sub-
misso à Ortodoxia e ao regime, considerando o imperador como o amparo do povo
russo. Segundo Troyat (NUNES, in: DOSTOIÉVSKI, 1963, p. 42) “perante os seus con-
temporâneos, assume a velha atitude. O presídio não o modificou. Não é conserva-
dor-russo. Não é liberal. É liberal-russo. Imagina uma série de reformas, não copiadas
das do Ocidente, mas extraídas dos recônditos da história”.
Ao chegar em Petersburgo, funda, com seu irmão Mikhail, a revista O tempo, nas
páginas da qual encontra espaço para divulgar suas ideias a respeito do destino da
Rússia e publicar Humilhados e ofendidos, romance que ainda não lhe devolveu a
fama perdida, que só seria alcançada com a publicação de Memórias da casa dos
mortos, livro que o levou à popularidade e ao êxito novamente, e que, segundo
comentadores, levou o imperador às lágrimas.
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Começam a surgir as obras de transição. Humilhados e ofendidos e Memória da
casa dos mortos foram as duas primeiras às quais sucederam: Uma história aborreci-
da; Notas de inverno sobre impressões de verão; e As memórias do subterrâneo.
Chega-se, assim, à maturidade de um “pequeno mundo especial”6, no qual co-
meça o “grande período criador” de Dostoiévski. Surgem Crime e castigo; O jogador;
O idiota; O eterno marido; Os demônios; O adolescente; O diário de um escritor, que
é uma produção jornalística de Dostoiévski; e Os irmãos Karamazov. Nesses roman-
ces da maturidade percebe-se, mais claramente, o quanto eles apresentam os gran-
des problemas éticos e metafísicos. As experiências das personagens não são um
mero acontecimento. Em cada uma delas está a decisiva opção pelo destino. Em cada
uma das experiências encontra-se a experiência do humano que, ao lê-las, vê nelas
sua própria existência.
O escritor está cansado, velho, doente, sofrendo de enfisema pulmonar e epilep-
sia. No dia 28 de janeiro de 1881, no fim da tarde, com 59 anos de idade, chega ao
fim a vida corporal de Dostoiévski. Começa, porém, a verdadeira vida dele, fora dos
pressupostos de tempo e espaço.
1.2 Filosofia e literatura
Não se quer apresentar aqui uma possibilidade de encontro entre a filosofia e a
literatura7. O norte deste estudo está na questão de que, acima de uma divisão cau-
6 DOSTOIÉVSKI, 1963a, v.2, p. 926.7 Durante a história, muitos filósofos dedicaram-se ao estudo desta relação. Entre eles podem-se citar: Platão,Aristóteles, Boécio, Sartre. Iniciando por Platão, percebe-se, em seu pensamento, uma certa aversão a esta rela-ção. Ele apresenta: “Se chegasse à nossa cidade um homem aparentemente capaz, devido à sua arte, de tomartodas as formas e imitar todas as coisas, ansioso por se exibir juntamente com os seus poemas, prosternávamo-nos diante dele, como de um ser sagrado, maravilhoso, encantador, mas dir-lhe-íamos que na nossa cidade nãohá homens dessa espécie, nem se quer é lícito que existam, e manda-lo-íamos embora para outra cidade, depoisde lhe termos derramado mirra sobre a cabeça e de o termos coroado com grinaldas” (PLATÃO, 1976, p. 125). Apreocupação de Platão em expulsar da cidade os poetas e não autorizar que o governo da cidade estivesse nasmãos destes, está no fato de que a cidade, sob governo dos poetas, estaria orientada pelo prazer e pela dor, “emlugar da lei e do princípio que a comunidade considere, em todas as circunstâncias, o melhor” (PLATÃO, 1976, p.475). O prazer e a dor, segundo Platão, podem colocar-se, por serem sentimentos, acima da lei, quando nohomem não há o “seu bom governo interior” (PLATÃO, 1976, p. 477). Todavia, apesar de Platão ter tido estaatitude, ele próprio usa de uma linguagem ilustrativa, não real, para auxiliar os seus na compreensão da ideia queele buscava demonstrar. Os próprios diálogos socráticos são expressão de uma nova forma de arte, de um roman-ce que surge. São louváveis as palavras de Nietzsche, que reforçam a compreensão deste trabalho: “O diálogoplatônico foi, por assim dizer, o bote em que a velha poesia naufragante se salvou com todos os seus filhos:apinhados em um espaço estrito e medrosamente submissos ao timoneiro Sócrates, conduziam para dentro deum novo mundo que jamais se saciou de contemplar a fantástica imagem daquele cortejo. Na realidade, Platãoproporcionou a toda a posteridade o protótipo de uma nova forma de arte, o protótipo do romance, que é misterconsiderar como a fábula esópica infinitamente intensificada, onde a poesia vive com a filosofia dialética em umarelação hierárquica semelhante à que essa mesma filosofia manteve, durante muitos séculos, com a teologia, isto
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sada pelas ciências positivas, há a unidade primária, aquela que esteve presente na
origem da humanidade, aquela que deu impulso a tudo.
Nesse sentido, percebe-se, desde Heráclito, a ideia de uma unidade subjacente a
tudo, portanto, a todas as ciências; no fragmento número 57, o filósofo afirma:
“Mestre da maioria é Hesíodo8; pois este reconhece que sabe mais coisas, ele que não
conhecia dia e noite; pois é uma só (coisa)” (HERÁCLITO, in: OS PENSADORES, 1973,
v.1, p. 91). E, ainda, no fragmento 50: “Se ouvissem, não a mim, mas ao logos9,
provarão ser sábios se admitirem que tudo é um” (in: BERGE, 1969, p. 259). Heráclito
aponta para esta unidade garantida pelo logos. A filosofia e a literatura não podem
ser compreendidas a não ser nessa unidade originária, em que, acima de representa-
rem conceitos próprios que buscam defendê-las, são, em sua essência, inclinação ao
“Um” originário, tal como afirmava o próprio Heráclito.
é, como ancilla (escrava, criada)” (Nietzsche, 1992, p. 88). Já para Aristóteles, “imitar, tendência natural, concernea coisas ou ações concretas e não mais a ideias abstratas. [...] Aristóteles admite uma evolução possível das formasartísticas: elas cessam de obedecer a uma forma de beleza imutável e eterna” (JIMENEZ, 1999, p. 219). Assim, apoesia em geral assume uma possibilidade mais filosófica, pois a imitação é enriquecida pela imaginação docriador. Aristóteles afirma na Poética que a epopéia, a tragédia, a poesia “todas elas imitam com o ritmo, alinguagem e a harmonia, usando estes elementos separados ou conjunturalmente” (ARISTÓTELES, 1966, p. 69).Este imitar está na origem da poesia, já que o “imitar é congênito ao homem [...] e os homens se comprazem noimitar” (ARISTÓTELES, 1966, p. 71). São estas as duas causas, o imitar e o se comprazer no imitado, ambasnaturais, que dão origem à poesia, e estão na origem do próprio homem. Assim, uma vez que todas as coisas nãosão “belas”, uma poesia pode imitar o ato mais perverso ou o mais supremo. Ao poeta cabe, então, o compromis-so de, na distinção dos atos perversos e supremos, ver-se também incluído nestes acontecimentos, para, movidopelo ânimo das personagens, viver as mesmas paixões escolhendo os atos que o levem à felicidade. Boécio, porsua vez, escreve a obra A consolação da filosofia onde aborda, em uma relação harmônica, a filosofia e a literatu-ra, mostrando-a inegável nessa obra, de tal maneira que em certos momentos elas se mesclam. Ora, a história éficcional, é uma invenção de Boécio, com personagens e diálogos, tal qual uma obra de Literatura. A filosofia e opróprio Boécio são os protagonistas da história. O uso constante de poemas e imagens se mostra como recursoficcional, próprio do gênero literário. Já a filosofia está presente tanto como personagem, quanto como no usoargumentativo dialético presente nos discursos, na persuasão e nas questões sobre vida e morte que são debati-das. Já Sartre confessa que se sentia, por vezes, orgulhoso em poder ler muitos livros, o que o levou a pensar emintroduzir-se “no campo da literatura, não como escritor, como homem de cultura” (in: BEAUVOIR, 1982, p. 175).Depois, sentiu-se motivado ao estudo da filosofia, uma vez que esta pareceu a ele como o conhecimento domundo: “eu pensava que se me especializasse em filosofia, apreenderia o mundo inteiro, sobre o qual deveriafalar em literatura. Isso me dava, digamos, a Matéria” (in: BEAUVOIR, 1982, p. 185). O romance, para Sartre,deveria “retratar o mundo, tal como era, tanto o mundo literário e crítico como o mundo das pessoas vivas” (in:BEAUVOIR, 1982, p. 186), por isso o escritor deveria ser um filósofo, que, no estudo da filosofia, encontraria adisciplina que lhe possibilitasse o conhecimento de tudo. O livro seria um belo objeto no qual se transmitiria, sobforma literária, a verdade do mundo. Sartre confessa: “Queria que a filosofia, na qual acreditava, as verdades queeu atingiria, se exprimissem em meus romances” (in: BEAUVOIR, 1982, p. 193).8 “Poeta grego, que viveu provavelmente no séc. VIII A.C., e cuja obra, produzida após o florescimento da poesiahomérica, somente em parte é atualmente conhecida, através de alguns textos de caráter religioso, didático emoral. É um dos primeiros professores e civilizadores do homem, ao lado de Homero e Orfeu, e o precursor dapoesia didática” (ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA, 1967, v.7, p. 289).9 Logos: “A razão enquanto primeira substância ou causa do mundo. [...] Foi defendida pela primeira vez porHeráclito: ‘Os homens são obtusos com relação ao ser do Logos, tanto antes quanto depois que ouviram falardele, e não parecem conhecê-lo, ainda que tudo aconteça segundo o Logos’ (Fr. 1). O Logos é concebido porHeráclito como sendo a própria lei cósmica: ‘Todas as leis humanas alimentam-se de uma só lei divina: porque estadomina tudo o que quer, e basta para tudo e prevalece a tudo” (ABBAGNANO, 2003, p. 630). ar
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Devido, porém, ao caminho que a humanidade tomou e que, por consequência,
a levou ao esquecimento dessa unidade, se faz necessário apresentar a compreensão
da filosofia e da literatura naquilo que as ciências positivas chamam de “seu pró-
prio”, criando âmbitos separados para cada ciência, tentando apontar e resgatar a
unidade originária que subjaz a toda e qualquer separação entre elas.
Definir o que é filosofia, no seu próprio, torna-se um trabalho amplo, uma vez
que esta se divide em diversas áreas, como por exemplo: filosofia da linguagem,
antropologia filosófica, filosofia política, e outras, onde cada uma delas apresenta a
sua definição própria para o termo filosofia. Porém, em todas elas é possível encon-
trar uma constante.
A abordagem que mais articula os diferentes significados do termo
é a definição comentada no Eutidemo Platônico: A filosofia é o uso do saber em
proveito do homem. Platão observa que de nada serviria possuir a capacidade de
transformar as pedras em ouro a quem não soubesse valer-se do ouro, de nada adian-
taria uma ciência que tornasse imortal a quem não soubesse servir-se da imortalidade
e assim por diante. É necessária uma ciência em que coincidam fazer e saber valer-se
daquilo que se faz, e esta ciência é a filosofia (ABBAGNANO, 2003, p. 442).
Portanto, a filosofia implica, necessariamente, a posse ou aquisição do conheci-
mento e que este seja o mais válido e o mais extenso, e, ainda, que sirva de benefício
para o homem. Nada adiantaria este conhecimento se o homem não tivesse a capa-
cidade de transformá-lo em seu proveito.
A palavra literatura, por sua vez, tem sua origem na palavra latina littera que
significa letra ou sinal impresso. Durante a história, este termo foi alvo de muitas
tentativas de definição, segundo o contexto em que fora abordado. Na busca de
definir esta palavra, muitos lhe atribuem a característica de ser uma evasão do pró-
prio homem, ou um jogo (homo ludens10), uma atividade espiritual em que o ho-
mem, em seus momentos de folga, faria uma leitura desinteressada. Porém, estas
tentativas são insuficientemente definidoras, pois podem ser também atribuídas para
as demais obras de arte.
Buscando “superar” estas primeiras impressões, a definição de Massaud Moisés,
apresenta-se precisa e superior: “Literatura é expressão, pela palavra escrita, dos con-
10 Homo ludens: Corresponde ao jogo, atividade típica do homem. “Ele (o homem) distingue-se profundamente,essencialmente dos animais, não apenas graças ao pensamento, à liberdade, à linguagem, ao trabalho, mastambém graças ao jogo. O homem inventa jogos e diverte-se como nenhum animal sabe fazer” (MONDIN, 1980,p. 215).
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teúdos da ficção ou imaginação” (in: LOGOS, 1971, v.12, p. 308). Aquilo que o ho-
mem imagina, aquilo que ele retira como fruto de sua ficção, pode ser expresso na
palavra escrita.
Segundo a enciclopédia Logos (1971, v.12, p. 308),
literatura é a perfeita encarnação sensível da ideia na palavra significante. Sensível
porque se trata de expressão imaginativa; de palavra, porque é ela a matéria-prima
desta arte; mas palavra significante, para excluirmos toda a “coisificação” abusiva da
linguagem literária; e perfeita, porque da “qualidade” dessa encarnação sensível jul-
ga a crítica, sempre no suposto de que não basta observar os preceitos para que seja
conveniente a sensibilização do ideal.
É o fruto da imaginação, da expressão imaginativa, portanto, que se encarna,
toma “vida” na palavra que possui significado. Esse processo visa sempre tornar
conveniente a sensibilização do ideal e tornar esse processo perfeito, que não encon-
tra a perfeição na simples observação, por exemplo, de alguns pressupostos grama-
ticais. Acontece a relação entre a ordem espiritual e a material que não são percebi-
das através do mundo lógico, mas se tornam evidentes na obra literária. Pode-se
dizer, assim, de uma obra literária: é o real. Real porque é a suprema imaginação
individual que se faz possibilidade ao ser transmitida às demais pessoas.
Relacionando, nesta perspectiva, filosofia e literatura, logo se percebe que a pri-
meira mostra-se como um conhecimento racional, reflexivo e a segunda uma criação
verbal do literato. Pode-se diferenciá-las, “por um lado, até a mais extrema oposição
e aproximá-las, por outro, até a mais estreita vizinhança” (NUNES, 1993, p. 191).
Todavia, os “espíritos” que são atraídos pela exigência do pensamento filosófico
e pela atração da ficção percebem que ambos os levam a uma realidade única que é
o “ventre” do mundo, único lugar em que se pode pensar esse mundo. Na atualidade
o desejo que aparenta prevalecer é o de conciliação. “O esforço de conciliação a que
hoje se admite, retira-se na sequência de uma longa tradição, responde a uma exi-
gência profunda do espírito” (BEAUVOIR, 1965, p. 80). É o espírito que clama pela
unidade originária.
Ressalta-se, ainda, a questão da relação entre as obras de filosofia e de literatura
em que ambas podem ser escritas por um mesmo homem. “Esse encontro num só
homem de um filósofo e de um literato, ambos excelentes, vem também da possibi-
lidade que lhe ofereceram a filosofia e a literatura de se encontrarem nele” (BLANCHOT,
1987, p. 189). E esse encontro é a unidade que está na origem do homem que em si,
na sua essência, não é formado por partes, mas é um todo.
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SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski92
Assim, neste possível diálogo entre filosofia e literatura, “repudiar-se-á o roman-
ce filosófico se definirmos a filosofia como um sistema completamente constituído e
bastando-se a si próprio” (BEAUVOIR, 1965, p. 87). Neste diálogo, a iniciativa parte
da filosofia originária e não de uma teoria da literatura ou teoria filosófica, logo, as
reflexões tornam-se filosóficas.
O diálogo se efetua no plano da crítica, isto é, no plano interpretativo das obras. E a
proximidade máxima ocorre, sobretudo em relação àquelas obras de acentuada “dis-
posição filosófica”. [...] O primeiro risco a se evitar é a busca de conceitos instrumen-
tais na filosofia para o exercício de uma pretensa crítica filosófica, que tentaria estu-
dar a obra como a ilustração de verdades gerais (NUNES, 1993, p. 197).
Deve-se ter o cuidado de não subordinar a obra literária aos conceitos instrumen-
tais da filosofia, o que, neste zelo, levaria a crítica a se colocar mais próxima da
“verdade”. “A busca de sua verdade como ficção legitimaria a preocupação filosófica
dessa crítica. Nada melhor do que o seu modus operandi, o seu como, para nos dar
essa ideia de exigência de verdade que a norteia” (NUNES, 1993, p. 198). O perigo é
limitar-se na busca de uma metodologia, que possibilite o acesso às obras de literatu-
ra. Assim, filosoficamente, o objeto literário permanece inesgotável. O papel da filo-
sofia se encontra na iluminação da obra literária buscando, cada vez, de forma nova,
um acesso à obra, um decifrá-la, uma reflexão, e não uma definição ou classificação
utilitarista.
Assim, superar esta visão de que há uma divisão entre filosofia e literatura, é
superar a divisão das ciências positivas, ou seja, ousar ir à origem da humanidade.
1.3 Dostoiévski e a filosofia
Sim, senhor, é aqui que, conforme penso, se encontra a dificuldade. Desculpem-
me, meus senhores, divaguei de tal maneira que me pus a filosofar, mas pensem no
que representam quarenta anos de subterrâneo (DOSTOIÉVSKI, 1963c, v.2, p. 681).
Dostoiévski marcou sua presença na história. Tornou-a imortal quando se dedi-
cou à abordagem de temas imortais. Essa sua capacidade permitiu e permite que seu
nome seja lembrado em grandes escritos literários11, religiosos12, sociais13, psicológi-
cos14, filosóficos.
11 Quando apresenta a importância de Dostoiévski para a literatura, a enciclopédia Barsa afirma que “é impossívelimaginar qualquer história da literatura sem um grande lugar reservado a Dostoiévski” (CALLADO, in:ENCYCLOPAEDIA BRITANNICA, 1967, v.5, p. 224). Essa importância se encontra, também, na peculiaridade deseus romances que apresentam seus personagens com consciência e vozes independentes. Segundo Bakhtin
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 77-103, jan./jun. 2010 93
A importância das reflexões que Dostoiévski desenvolve na sua obra, tendo re-
percussões nas mais diferentes áreas, levou também a interpretações superficiais do
autor. A busca de uma filosofia nos romances de Dostoiévski concentra-se, muitas
vezes, em uma interpretação pessoal do leitor. Esta busca filosófica preocupa, o que
é perfeitamente compreensível, muito críticos e literatos; porém a argumentação
que esta reflexão busca desenvolver se atém a uma relação profícua entre a literatura
e a filosofia, alicerçando-se em textos de comentadores de Dostoiévski e autores da
filosofia. Há que se considerar que para a filosofia é inconcebível acreditar na possi-
bilidade de entrar em contato com um pensador, um escritor, ou algo escrito por um
literato, sem com isso co-filosofar. Assim, a própria leitura pressupõe um olhar filosó-
fico que, no entanto, deve ser fundamentada para não se perder numa apreensão
(1981, p. 2): “É a multiplicidade de caráter e destinos que, em um mundo objetivo uno, à luz da consciência unado autor, se desenvolve nos seus romances; é precisamente a multiplicidade de consciências eqüipolentes (cons-ciência ou vozes que participam do diálogo com outras vozes em pé de absoluta igualdade) e seus mundos queaqui se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo a sua imiscibilidade. Também a Dostoiévski éconferida figura de “criador do romance polifônico. Criou um gênero romanesco essencialmente novo. Por isso,sua obra não cabe em nenhum limite, não se subordina a nenhum dos esquemas histórico-literários que costuma-mos aplicar às manifestações do romance europeu. Suas obras marcam o surgimento de um herói cuja voz seestrutura do mesmo modo que se estrutura a voz do próprio autor no romance comum” (BAKHTIN, 1981, p. 3).Aproveita-se o momento para mencionar que Dostoiévski é, também, abordado pelos grandes cineastas. Paranhosafirma referente a Dostoiévski: “Um romancista filósofo, autor de verdadeiros tratados de filosofia moral [...] éuma grande tentação para qualquer cineasta. [...] Memórias do subsolo torna-se Notas do subterrâneo, comroteiro e direção de Gary Walkow. [...] Crime e castigo tem uma versão brasileira, dirigida por Heitor Dhalia”(PARANHOS in: Revista Ciência e vida – Filosofia, 2008, p. 62).12 Os críticos que abordam Dostoiévski no campo da religiosidade encontram nele, também, um campo vasto deabordagem. Para Guardini, “em última instância todos os personagens de Dostoiévski estão determinados porforças e elementos de ordem religiosa, do que dependem as decisões que a eles são próprias. E, ainda mais, omundo de Dostoiévski como universo, o conjunto conexo de realidades e valores, a mesma atmosfera em que semovem as suas criaturas, tudo é, no fundo, da natureza religiosa” (GUARDINI, 1958, p. 11, tradução nossa). (Dooriginal: “En ultima instancia todos los personajes de Dostoiévski están determinados por fuerzas y elementos deorden religioso de que dependen las decisiones que les son propias. Es más aún, el mundo de Dostoiévski comouniverso, el conjunto conexo de realidades y valores, la atmósfera misma em que si mueven sus criaturas, todo es,en el fundo, de natureza religiosa”). Também, em suas obras, Dostoiévski aborda essa questão da religiosidade ede Deus com muita frequência. Em Os demônios, Dostoiévski apresenta nas palavras de Kirilov: “Cada qual pensa,depois, imediatamente, pensa em outra coisa. Eu não posso pensar em nenhuma outra. Penso a vida inteira namesma coisa. Deus me tem atormentado a vida inteira” (DOSTOIÉVSKI, 1975d, v.3, p. 890).13 Nessa perspectiva social, Dostoiévski apresenta-se solidário e preocupado com as realidades alheias. NatáliaNunes ao referir-se ao social de Dostoiévski apresenta que: “temos um Dostoiévski que luta pela dignidade doindivíduo, pelo amor do próximo, pela fraternidade humana universal, pela piedade pelos fracos e oprimidos –expondo em suas obras os quadros negros da miséria e da concepção da sociedade e satirizando vaidades emediocridades (NUNES in: DOSTOIÉVSKI, 1963, v.1, p. 68). Nessa questão social, porém, não se pode esquecerque Dostoiévski também é fruto do meio social e é, por sua vez, influenciado por esse. “A obra e as idéias deDostoiévski traduzem perfeitamente o drama desses homens russos do século XIX, que saem de um mundosemibárbaro e entram em contato com toda a moderna civilização européia, por sua vez tão carregada tambémde problemas, de dúvidas e incertezas” (NUNES in: DOSTOIÉVSKI, 1963, v.1, p. 72). “Uma Rússia que saiu doczarismo absolutista e caminha para a revolução social” (NUNES in: DOSTOIÉVSKI, 1963, v.1, p. 72).14 Freud, no escrito: “Dostoiévski e o parricídio” apresenta que “dificilmente pode dever-se ao acaso que três dasobras primas da literatura de todos os tempos – Édipo Rei, de Sófocles; Hamlet, de Shakespeare; e os IrmãosKaramazov de Dostoiévski – tratam todos do mesmo assunto, o parricídio. Em todos os três, ademais, o motivopara a ação, a rivalidade sexual por uma mulher, é posto a nu” (FREUD, 1974, v.21, p. 217). ar
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particular precipitada. É preciso considerar que as obras de Dostoiévski são motiva-
doras de uma filosofia reflexiva sobre o próprio homem. Não se quer, neste processo
de co-filosofar, preocupar-se exclusivamente com os conceitos que podem ser retira-
dos de suas obras, mas sim, nos diferentes temas, encontrar a visão do autor que vê
a própria vida como dinâmica e impossível de ser codificada, aqui o arcabouço ofere-
cido pela filosofia será útil.
Se um dos princípios da filosofia é poder prestar atenção ao que é dado, refletir
a respeito disso, no “desabrochar-surgimento” das coisas, é estar acordado àquilo
que Heráclito apresentara no fragmento 89: “Para os despertos um mundo único e
comum é, mas os que estão no leito cada um se revira para o seu próprio” (HERÁCLITO,
in: OS PENSADORES, 1973, v.1, p. 93), por que não perceber que os personagens de
Dostoiévski, todos eles “humanos, demasiado humanos”, são possibilidade
impulsionadora de reflexão; e, ainda mais, reflexão sobre quem reflete?
No prefácio do livro O espírito de Dostoiévski, Berdiaeff ([s.d.], p. 5) confirma
esta abordagem, afirmando que: “se desde cedo, os problemas filosóficos se puse-
ram diante de minha consciência, a razão está certamente nas ‘malditas perguntas’
de Dostoiévski” e este fato se confirma quando, por exemplo, lê-se o trecho no qual
Dolgoruki, protagonista de O adolescente, reflete em suas relações com Viersilov:
Ora, acontece que aquele homem não é senão um sonho, um sonho dos meus anos
de infância. Fui eu que o imaginei desta maneira; na realidade ele é bem diferente,
bem abaixo da minha fantasia. Foi um homem honrado que vim procurar e não este.
Mas por que me deixei fascinar por ele, de uma vez para sempre, naquele curto ins-
tante em que o vi outrora, ainda menino? Esse para sempre deve desaparecer
(DOSTOIÉVSKI, 1975b, v.4, p. 72).
É na sutileza desta citação dostoieviskiana que a afirmação de Pereyson (2007, p.
34) pode ser compreendida: “Sua concepção filosófica deve ser buscada em sua arte,
porque, somente em sua arte, pode estar plenamente revelada” (PEREYSON, 2007, p.
34, tradução nossa15).
Pode-se, com esforço, compreender que surjam afirmações de uma impossibili-
dade de encontro com a filosofia de Dostoiévski através de suas obras, uma vez que
nelas encontra-se um homem santo e outro pecador, um criminoso e outro de agir
correto, personagens controversos, como uma prostituta que abraça a Bíblia. Assim
sendo, O diário de um escritor poderia, por exemplo, ser a base de uma filosofia, uma
15 Do original: “debe ser buscada em su arte, porque solo em su arte puede estar plenamente revelada”.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 77-103, jan./jun. 2010 95
vez que nele encontram-se algumas definições de Dostoiévski referentes à arte, às
relações sociais e à ética, mas é justamente neste ponto que o Diário perde a riqueza
em comparação aos romances. Nos romances encontram-se as ideias e elas são mais
filosofia, mais reflexão, uma vez que são mais vivas e não buscam o seu fim na rigidez
cadavérica do conceito.
O que é notável em Dostoiévski é que ele conseguiu transmitir a uma árida questão
de filosofia aquele mesmo ardor das suas tragédias passionais. Não é inteligência
pura, isolada que se eleva desinteressadamente nas mais profundas abstrações para
atingir este ou aquele aspecto da realidade, é o homem todo, espírito e carne, inteli-
gência e coração (NOGUEIRA, 1974, p. 46).
A filosofia ocupava um lugar especial para Dostoiévski. Em certa ocasião ele afir-
mou: “Sou bastante fraco em filosofia (mas não no meu amor a ela; no meu amor a
ela sou forte)” (Cf. BERDIAEFF, [s.d.], p. 35). Esta fraqueza de Dostoiévski na filosofia
refere-se à filosofia acadêmica, destarte sua busca e sua preocupação estavam no
caminho e, nesse caminho, encontravam espaço para demonstrar o quanto a filoso-
fia era amada por ele.
“Foi um verdadeiro filósofo. O maior filósofo russo. Deu infinitamente à filosofia,
e parece que a especulação filosófica deve ser penetrada de suas concepções”
(BERDIAEFF, [s.d.], p. 35). Essas concepções oferecem, por exemplo, uma alavanca à
filosofia moral como a que aparece na abordagem das concepções de Raskolnikov;
suscitam discussões da filosofia da religião como na questão de Deus, abordada por
Ivan, ou mesmo permeia os grandes debates da antropologia filosófica, através da
forma com que cada personagem se revela motivada por uma ideia.
“Talvez a filosofia lhe tenha dado pouco, mas ela pode tomar muito dele, se ele
lhe abandona as questões provisórias; no que concerne às coisas finais, é ela que
vive, desde longos anos sob o signo de Dostoievski” (BERDIAFF, [s.d.], p. 35). Realida-
de possível pelo fato de que “a iniciação filosófica de Dostoiévski brota daquele seu
singular sofrimento especulativo que o vincula sempre e incessantemente aos temas
mais profundos e angustiantes da existência humana” (Centro Di Studi Filosofici Di
Gallarate, 1976, p. 319, tradução nossa)16.
16 Do original: “L’iniziazione filosofica di Dostoievskij scaturisce da quella sua singulare sofferenza speculativa. Chelo ritorna sempre ed incessantemente ai temi piú profondi ed angosciosi dell’esistenza umana”. ar
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1.3.1 A ideia
E eis que de repente, uma ideia assombrosa me veio ao pensamento [...] Essa ideia
temerária foi-se apoderando de mim pouco a pouco, até o ponto de não me deixar nem
um momento de descanso. Meditava continuamente nela com angústia [...] Esse proje-
to afigurava-se-me cada vez mais possível e provável (DOSTOIÉVSKI, 1963c, v.2, p. 696).
O mundo das ideias está, para Dostoiévski, no fundamento, uma vez que elas são
vivas, pré-anunciam um destino vigoroso, possuem uma dinâmica própria, não po-dem ser resumidas ao esfriamento mecânico “dois e dois são quatro”. As ideias são
em Dostoiévski algo totalmente original. Diferenciam-se da concepção de Platão,para quem a idéia é um protótipo do ser, um fim último ao qual as coisas, quantomais semelhantes, mais perfeitas são. Para Dostoiévski, as ideias são a energia que
move e orienta o homem, são o seu destino. “Toda idéia, em Dostoiévski, está ligadaao destino do homem, ao destino do mundo, ao destino de Deus. As ideias demons-
tram esses destinos” (BERDIAFF, [s.d.], p. 8).
Assim, as ideias não se encontram no fim, mas no caminhar. A compreensãodisso não é alcançada pelas ciências positivas, como a psicologia, por exemplo, uma
vez que a abordagem das ciências positivas está no “positum”, ao contrário do quese encontra na dinâmica da ideia em Dostoiévski, que torna louvável uma atuação dafilosofia neste campo. “Ele foi o grande pintor do que é; Dostoiévski apenas se preo-
cupou do vir-a-ser. Ora, é mais fácil atingir a perfeição sobre uma matéria estática doque sobre uma matéria em evolução, [...] (ele) conhece a eterna contradição humana
que força a cada passo voltar para trás” (BERDIAFF, [s.d.], p.21). O que demonstraque, no homem, esse ser em “evolução” instável, Dostoiévski encontra a realidade daideia que está no mesmo jogo. “A vida das ideias em Dostoiévski é em altíssimo grau
dinâmica e contraditória. Não se poderia tomá-la de maneira parada e estática, epedir-lhe simplesmente um sim ou um não” (BERDIAFF, [s.d.], p. 189). O sim ou o
não, neste sentido, são apenas um julgamento daquilo que fora realizado, ou seja,daquilo que fora vivido, logo, o sim ou o não são apenas conceitos, e o mais impor-tante é a vida que acontece anteriormente.
Desse modo, os heróis, na obra de Dostoiévski, são ideias. Neles, elas tomam
vida. Em O adolescente, no diálogo entre a mulher furiosa que procurava Viersilov eo protagonista, este ressalta a importância da ideia na vida dos heróis: “Karft suici-
dou-se, por causa da ideia, imagine, Karft, um rapaz tão cheio de promessas... [...]Lê-se já na bíblia que os filhos deixem seus pais e fundem seu ninho... Quando a ideia
nos arrasta... quando existe uma ideia... A ideia é tudo, tudo está na ideia”
(DOSTOIÉVSKI, 1975b, v.4, p. 147).
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As personagens, movidas por uma ideia, buscam compreendê-la, questionam-
na, e, no questionamento, caminham para o destino. Entretanto, deve-se ter o cuida-
do de não tornar isso em um modelo transcendental da realidade, uma vez que a
ideia é “uma força vivente que produz e anima o mundo” (PEREYSON, 2007, p. 45,
tradução nossa17), pois, “a primeira imagem da qual Dostoiévski se serve para definir
a palavra ideia é a de ‘semente divina’” (PEREYSON, 2007, p. 45, tradução nossa18),
fato recordado pelas palavras de Zossima:
Muitas coisas na Terra nos estão ocultas, mas em troca nos foi dada a sensação mis-
teriosa e arcana da nossa ligação viva com outro mundo, com o mundo das alturas e
superior; aliás, as raízes dos nossos pensamentos e sentimentos não estão aqui, mas
em outros mundos. Eis porque os filósofos dizem que a essência das coisas não pode
ser compreendida na terra. Deus pegou as sementes de outros mundos e as semeou
aqui na Terra e cultivou o seu jardim, e tudo o que podia germinar germinou, mas o
cultivado vive e é animado apenas pela sensação de um contato com os outros mun-
dos misteriosos; se esta sensação enfraquece ou se destrói em ti, morre também o
que foi cultivado em ti. Então te tornarás indiferente à vida e até a odiarás
(DOSTOIÉVSKI, 2008, p. 435).
Ideia não é sinônimo de cultura, “e eu sou o primeiro a afirmar que no homem
mais inculto, no seio mais baixo, entre esses homens que sofrem, se encontram as-
pectos da mais refinada evolução espiritual” (DOSTOIÉVSKI, 1963b, v.2, p. 516). As-
sim, cada criatura tem o valor de uma ideia. Quando Raskolnikov mata a velha usurária,
ele mata a ideia presente no outro, o que, mais tarde, com o passar dos acontecimen-
tos, entrará em confronto com a ideia presente em Raskolnikov, que não suportará
mais carregar o peso de uma outra ideia pertencente ao outro; uma vez que as ideias
são “contagiosas”, cada pessoa é capaz de sustentar a ideia que lhe for particular.
Raskolnikov é movido por uma ideia de valor moral utilitarista que descartava a im-
portância das demais ideias, o que lhe causara a impressão de ser lícito o crime.
Outra concepção de ideia para Dostoiévski é que esta consiste em um segredo de
cada homem. “Para Dostoiévski um homem tem uma autêntica personalidade en-
quanto chega em seu interior uma ideia e vive sob o amparo da mesma” (PEREYSON,
2007, p. 46, tradução nossa19). O Adolescente ilustra esta concepção:
17 Do original: “una fuerza viviente que produce y anima el mundo.18 Do original: “La primera imagen de la que Dostoiévski se sirve para definir la palabra ideia es la de ‘semilladivina”.19 Do original: un hombre tiene una auténtica personalidad en cuanto lleva en su interior una ideia y vive bajo elamparo de la misma. ar
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Estava bem certo de que esta ideia, não lhe entregaria eu, não lha daria, mas podiam
elas (pessoas que estavam na casa de Diergatchor) (ainda uma vez, elas ou pessoas do
mesmo estilo) dizer-me coisas que me fariam perder confiança em minha ideia, mes-
mo que não fizessem a ela alusão. Havia na minha ideia problemas não resolvidos,
mas não queria eu que outrem os resolvesse em meu lugar [...]. A única coisa que me
consolava [...] era que malgrado tudo, a minha “ideia” me restava, sempre no meu
esconderijo e que eu não a revelara. Com um aspecto de coração, imaginava por
vezes que, no dia em que tivesse eu comunicado a alguém a minha ideia, de súbito
nada mais me restaria, de modo que seria semelhante a todo mundo e talvez abando-
nasse a minha ideia; assim, guardava-a, conservava-a e temia as falações [...] minha
ideia é um refúgio (DOSTOIÉVSKI, 1975b, v.4, p. 57).
A ideia torna-se um refúgio no sentido de que o homem encontra nela motiva-
ção para partir em direção ao viver que é sustentado pela ideia, encontrando nela
aquele “seguro” sem o qual ele não quer existir. “A minha ideia é fortaleza onde, a
qualquer tempo e a qualquer ocasião, posso fugir de todos os homens, ainda que
fosse como o mendigo morto no barco” (DOSTOIÉVSKI, 1975b, v.4, p. 88).
Assim, “as personagens são ideias encarnadas: a semente divina, isto é, a ideia
transcendente, se transforma em um segredo imanente, íntimo de toda a personali-
dade digna de tal nome” (PEREYSON, 2007, p. 46, tradução nossa20). Dostoiévski
designa com a mesma palavra duas realidades, o que leva o leitor a uma concepção
mais profunda de onde é o ponto de encontro da natureza dialética da realidade e o
exercício humano da liberdade.
1.3.2 Dostoiévski e a antropologia filosófica
Uma questão que motivou a filosofia em toda a sua história passada e que con-
tinua atual é a busca pelo esclarecimento do que é o homem. Max Scheler, em sua
obra A posição do homem no cosmos, oferece uma visão deste homem que é a
preocupação da filosofia. Para ele:
Somente o homem – uma vez que é pessoa – consegue se alçar sobre si mesmo –
enquanto ser vivo –, e, a partir de um centro como que para além do mundo espaço-
temporal, incluindo aí ele mesmo tornar tudo objeto de seu conhecimento. Desta
forma, o homem como ser espiritual é o ser que se coloca acima de si mesmo como
ser vivo e acima do mundo (SCHELER, 2003, p. 44).
20 Do original: “Las personalidades son ideias encarnadas: La semilla divina, esto es, la ideia transcendente, setransforma en el secreto inmanente, íntimo, de toda personalidad digna de tal nombre”.
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 77-103, jan./jun. 2010 99
Assim, se há um problema urgente a ser resolvido no contexto atual é o da antro-
pologia filosófica, que, segundo Mondin (1980, p. 8) é:
Uma ciência fundamental acerca da essência e da estrutura ética do homem; da sua
relação com os reinos da natureza (minerais, planta e animais) e com o princípio de
todas as coisas, da sua origem essencial metafísica e o seu início físico, psíquico e
espiritual no mundo, das forças e potencias que agem sobre ele e aquelas sobre as
quais ele age, das direções e das leis naturais do seu desenvolvimento biológico,
psíquico, espiritual e social, consideradas nas suas possibilidades e realidades essen-
ciais. Os problemas da relação entre alma e corpo (entre psíquico e físico) e a relação
entre espírito e vida estão compreendidos em tal antropologia, somente a qual pode-
ria dar um válido fundamento de natureza filosófica e, juntamente, finalidades deter-
minadas e seguras à pesquisa de todas as ciências que tem por objeto o homem.
Dostoiévski apresenta em suas obras essas mesmas preocupações que são pró-
prias da antropologia filosófica. Suas abordagens, presentes nos romances, não são
simples ilustrações de paisagens, mas demonstram o vigor de vida que move as per-
sonagens, representando os questionamentos próprios da filosofia, provocando as
perguntas que norteiam o homem.
Há uma concepção de homem e de liberdade da humanidade nas obras de Dostoiévski
que causou uma influência central na antropologia filosófica do século XX. Friedrich
Nietzsche, Max Scheler, Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre, Merleau-Ponty, Albert Camus
e muitos outros, que admitiram explicitamente que as obras de Dostoiévski tiveram
uma evidente influência na forma pela qual foram instruídos a conceber a natureza do
homem e o mundo onde o homem vive (WOLF, 1997, p. 2, tradução nossa)21.
O que esses filósofos encontram nas obras de Dostoiévski é a forma pela qual a
realidade é apresentada. Ela é a “profundeza espiritual do homem, é o destino do
espírito humano, [...] as relações do homem com Deus, do homem com o diabo, [...]
são as ideias pelas quais o homem vive” (BERDIAFF, [s.d.], p. 24), e, nesta realidade, o
homem percebe-se “limitado pela sociedade, condições econômicas, leis, história,
pela igreja e, especialmente, por Deus” (WASIOLEK, 1972, p. 411, tradução nossa)22.
É a própria realidade que “desnuda” o homem.
21 Do original: “There is a conception of man and human freedom in Dostoievsky’s work which has had a centralinfluence on twenteeth-century philosophical anthropology. Friedrich Nietzsche, Max Scheler, Martin Heidegger,Jean-Paul Sartre, Merleau- Ponty, and Albert Camus, among others, have explicity admitted that the works ofDostoievsky had a certain influence on de manner in which they leaned to conceive of the nature of man and theworld in which humans live”.22 Do original: Limited by society, economic conditions, laws, history, the church and especially by God”. ar
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SCUDELA, Robson Luiz. O conhecer a si mesmo, em Dostoiévski100
A partir da leitura de Dostoiévski, chega-se à conclusão de que sua obra “nãoassinala somente a crise, mas a verdadeira derrota da humanidade” (BERDIAFF, [s.d.],p. 69). O homem não é mais obrigado a sentir-se no centro, como ponto referencialde “boas condutas”, do qual provirá o destino do mundo. O homem assume o seulugar, e se, por acaso, este for o centro, será assumido como centro, mas não maissob a antiga obrigação. Sendo assim, Dostoiévski pode ser colocado ao lado deNietzsche, uma vez que, depois dos dois, é impossível retornar ao humanismo racio-nalista. Entre os dois há, porém, uma diferença considerável. “Dostoiévski reconhecea ilusão da deificação; explorara profundamente o caminho da arbitrariedade huma-na. [...] Nietzsche foi dominado pela ideia de super homem, que nele matava a dohomem” (BERDIAFF, [s.d.], p. 70).
Este caminho da arbitrariedade humana é aquele que desperta a preocupaçãoque o homem tem pelo seu destino que o leva ao grande desejo de querer conhecer-se a si mesmo, a fim de poder medir suas forças e compreender quem ele é, naperspectiva de ter uma prévia noção de qual caminho deverá trilhar. E é justamentenesse conhecer a si mesmo que os temas do bem, do mal, da imortalidade, da liber-dade e de Deus surgem; e é em virtude do conhecimento daquilo que surge nopróprio homem, que, nas obras de Dostoiévski, os espaços físicos externos e os acon-tecimentos são colocados em segundo plano, buscando dar importância maior àviagem que cada um pode fazer em si, ou seja, o conhecer-se.
Na influência que Dostoiévski tem na antropologia filosófica, está esse processode conhecer-se e, nesse conhecer-se, colocar-se em relação com o próximo que é“mais precioso do que o longínquo, toda a vida humana, toda alma humana valemais do que o melhoramento de uma humanidade em formação, que uma ideiaabstrata” (BERDIAFF, [s.d.], p. 116); assim, vê-se que, como um antropólogo, nãodeixa de ver cada pessoa em sua individualidade, indiferente de suas característicasexternas. É uma unicidade que se dá a partir da concepção de que cada um é uma
ideia e essa ideia move o ser.
Enquanto ainda é tempo, recuso-me aceitar esta harmonia superior. Acho que não
vale ela uma lágrima de criança, daquela pequenina vítima que batia no peito e reza-
va ao “bom Deus”, no seu quarto infecto. [...] E se o sofrimento das crianças serve
para perfazer a soma das dores necessárias à aquisição da verdade, afirmo desde
agora que essa verdade não vale tal preço. [...] Imagina que os destinos da humanida-
de estejam entre tuas mãos e que para tornar as pessoas definitivamente felizes,
proporcionar-lhes afinal a paz e o repouso, seja indispensável torturar um ser apenas,
a criança que batia no peito com seu pequeno punho, e basear sobre as suas lágrimas
a felicidade futura. Consentirias tu, nestas condições, em edificar semelhante felicida-
de? Responde sem mentir. – Não, não consentiria! (DOSTOIÉVSKI, 1975e, v.4, p. 694).
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Esta visão só se torna possível quando compreendido que em cada pessoa há um
“subterrâneo”, o que é realizado quando a motivação desta percepção encontra-se
na visão de uma antropologia, em uma visão existencialista. Com Dostoiévski
começa o ciclo de um existencialismo russo que vai seguir uma trajetória religiosa,
como a de Kiekegaard. Embora as qualidades excepcionais de suas novelas o situem
como uma das principais figuras da literatura, seu pensamento tem um lugar importan-
te na filosofia e se destaca pela influência que exerceu na mentalidade russa no fim do
século passado e no início do presente (CORREA, 1965, p. 349, tradução nossa)23.
Conclusão
Dostoiévski viveu em uma atmosfera ardente, isto é, em um contexto histórico,
social e pessoal desafiadores. É nesse contexto que vão sendo forjadas e florescem
aquelas ideias que sustentam o próprio viver humano. “Elas tornam-se para o espíri-
to um pão cotidiano, sem o qual não se pode viver. Não se pode viver se não se
resolverem as questões de Deus e do demônio, da imortalidade, do mal, do destino
do homem e da humanidade” (BERDIAFF, [s.d.], p. 277). Essas questões não se en-
contram no âmbito daquelas que o homem descobre aos seus amigos, aquelas apre-
sentadas até o presente momento e que são facilmente abordadas nas conversas
cotidianas e não exigem do homem a “nudez”. Apresentar dados biográficos, rela-
cionar conceitos, é fácil à recordação, pois não exige desta o “compromisso” com a
essência humana.
O homem, porém, não acontece somente nas questões externas ou nos concei-
tos, ou seja, naquelas coisas que ele revela aos seus amigos. Essas “coisas” apontam
para outras, que, devido à relação que o homem tem com elas, ele não as revela aos
seus amigos, mas somente a si, em segredo. Essas questões, todavia, exigem uma
resposta do homem e, nesta resposta, há a possibilidade de o homem acontecer.
Referências
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Paulus, 2003.
23 Do original: “Comienza el ciclo de un existencialismo ruso que va a seguir una trajectoria religiosa, como el deKierkegaard. Aunque sus cualidades exepcionales de novelista lo sitúen como una de las principales figuras de laliteratura, su pensamiento le da un puesto importante en la filosofía y destaca el influjo que ejerció en la mentalidadrusa de fines de siglo passado e principios del presente”. ar
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Frei Paulijacson Pessoa de Moura, OFM
Resumo: Evidenciando o caminho de Michel Henry na fenomenolo-gia, enquanto recondução da reflexão do corpo à carne, o presentetrabalho configura-se como exame de considerações e pensamentosdesse filósofo francês acerca daquele que foi o verdadeiro Leit-Motivde sua reflexão, a saber, a vida, a meditação, a filosofia da vida. Esteestudo será norteado pela compreensão e clarificação – a partir daassim chamada “virada (bouleversement) fenomenológica” do seu pen-samento – do modo sui generis em que este filósofo aborda o temada vida e aqueles que são estreitamente unidos a esse, a saber, otema da corporeidade e da encarnação. Esses temas são consideradosporque a linha de fundo da sua reflexão é uma compreensão da ma-nifestação da vida enquanto pathos. Assim, a verdade do cristianismo– a revelação de Deus como Verbo encarnado – pertence a esta ordemde revelação. Para uma compreensão elucidativa desses temas, seráanalisada a obra Encarnação de Michel Henry, que os aborda de modointenso na medida em que se dedica expressamente a uma interpre-tação filosófica do cristianismo, elaborada à luz de uma concepção davida como imanência.
Palavras-chave: Michel Henry, fenomenologia, bouleversement, cor-po, carne, encarnação, vida, etos, cristianismo, imanência.
Abstract: Showing the path of Michel Henry’s phenomenology,reconducting the reflection of the body to the flesh, this work presentsitself as an examination of considerations and thoughts of that Frenchphilosopher about him that was the real Leit-Motiv of his reflection,namely life, meditation, philosophy of life. This study will be guidedby the understanding and clarification – from the so-called “turn(bouleversement) phenomenological” of his thinking – the way suigeneris in which this philosopher addresses the topic of life and thosethat are closely linked to this, namely the theme of corporeity andincarnation. These themes are considered because the central line oftheir reflection is the understanding of the manifestation of life aspathos. Thus, the truth of Christianity – the revelation of God asIncarnate Word – belongs to this order of revelation. For an illuminatingunderstanding of these issues, will be analyzed the work of MichelHenry Incarnation, which addresses these issues intensely, trying tomake a philosophical interpretation of Christianity, in the perspectiveof a conception of life as immanence.
Keywords: Michel Henry, Phenomenology, bouleversement, body,
flesh, incarnation, life, ethos, Christianity, immanence.
Por uma filosofia da carne.A proposta fenomenológica deMichel Henry na obra Encarnação*
* O presente artigo foi ela-borado originalmente apartir do trabalho de con-clusão de curso apresenta-do ao Instituto de FilosofiaSão Boaventura da FAE –Centro Universitário; o au-tor atualmente cursa teolo-gia no ITF – Instituto Teoló-gico Franciscano. E-mail:[email protected]
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Introdução
Michel Henry mostra, a partir da obra Encarnação, que a colocação da questãoacerca do que significa encarnação, encarnar-se, fazer-se carne representa o levar àconsumação a virada fenomenológica, que lança raízes na própria essência da vida, aqual, por sua vez encontra no cristianismo uma afirmação mais profunda e rica, aomesmo tempo. Cumpre-se evidenciar que este trabalho se encaminhará como umainvestigação que considera, em modo particular, mas não exclusivo, a obra Encarnação(Incarnation) de Michel Henry. Investiga-se a intuição das considerações e dos pensa-mentos deste filósofo francês acerca da fenomenologia e de seu objeto, a saber, avida no seu próprio manifestar-se, na imediação de seu pathos, evidenciando, assim,o quanto a essa ordem de revelação imediata da vida pertence a verdade do cristia-nismo, uma vez que encarnação se identifica com a própria vida enquanto autoafeiçãoradicalmente imanente, que outra coisa não é que a carne do homem.
Deste modo, apresenta-se o que o autor entende por inversão da fenomenolo-gia, esclarece-se o que vem a ser uma fenomenologia da carne e se reflete fenomeno-logicamente o sentido cristão de encarnação enquanto revelação da vida.
1 A viragem da fenomenologia
Situando seu pensamento dentro do âmbito da fenomenologia, Michel Henry1,
depois de anos de formação dedicados ao pensamento de Descartes e Kant, cedeu
1 Michel Henry (Haïphong, 10 de janeiro de 1922 – Albi, 3 de julho de 2002) foi um filósofo francês, reconhecidocomo um dos mais importantes da época contemporânea, que pertencia à tradição fenomenológica de EdmundHusserl e Martin Heidegger. Filho de um oficial militar, Henry transcorre os primeiros anos de sua vida na Indochina.Depois da morte prematura do pai, retorna, em 1929, com a mãe, para a França, onde mais tarde estudaráfilosofia em Lille, no Liceu Henry IV de Paris e, enfim, na Sorbonne. Nesta célebre universidade terminará osestudos com a tese “Le bonheur de Spinoza” (A bem-aventurança em Spinoza). No fim da Segunda GuerraMundial, durante a qual participou da resistência, recebeu o cargo de professor catedrático em filosofia no ensinosuperior (agrégation). Depois de anos de investigação no Centro Nacional de Pesquisas Científicas de Paris, exerceo magistério, ministrando aulas no exterior e, na França, conclui seu doutorado, tornando-se docente universitá-rio na Universidade Paul Valéry, em Montpellier, nessa permanecendo até a sua aposentadoria em 1982. MichelHenry é conhecido como fundador da “fenomenologia radical da vida”, exposta em sua obra capital “L’Essence dela manifestation” (1963), em que se confronta com a ontologia tradicional e a fenomenologia histórica. A feno-menologia de Henry pode ser definida “radical” enquanto evidencia que a manifestação dos fenômenos externostem suas “raízes” na doação (la donation) da vida, compreendida de modo puro e não-intencional. Bibliografia:As pressuposições e a envergadura da diferença da reflexão do pensar de Henry podem ser lidas, saboreadas nosseguintes textos de sua lavra: 1. Textos de filosofia: L’Essence de la manifestation. Paris: Presses Universitaires deFrance (PUF), 1963 (II ed. em um volume: 1990); Philosophie et phénoménologie du corps. Essai sur l’ontologiebiranienne. Paris: Presses Universitaires de France (PUF), 1965; Marx. I. Une philosophie de la réalité. II. Unephilosophie de l’économie. Paris: Gallimard, 1976 (2a. ed.: 1991); Généalogie de la psychanalyse: le commencementperdu. Paris: Presses Universitaires de France (PUF), 1985; La barbarie. Paris: Grasset, 1987; Voir l’invisible. SurKandinsky. Paris: Bourin, 1988 (2.ed.: Paris: PUF, 2004). Phénoménologie matérielle. Paris: Presses Universitaires deFrance (PUF), 1990; Du communisme au capitalisme. Théorie d’une catastrophe. Paris: Jacob, 1990; C’est moi lavérité. Pour une philosophie du christianisme. Paris: Seuil, 1996; Incarnation. Une philosophie de la chair. Paris:Seuil, 2000. Paroles du Christ. Paris: Seuil, 2002. 2. Romances e contos: Le jeune officier. Paris: Gallimard, 1954;L’amour les yeux fermés. Paris: Gallimard, 1976; Le fils du roi: Paris: Gallimard, 1981; La vérité est un cri. Radio-France, théâtre, 1982; Le cadavre indiscret. Paris: Albin Michel, 1996.
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espaço à fenomenologia de Husserl, da qual, por sua vez, discordou a partir de uma
espécie de virada, que possibilitou, no seu dizer, a verdadeira atuação dos princípios
fenomenológicos. O primeiro de todos, a Vida absoluta, absoluta imanência e, con-
comitantemente, absoluta manifestação, enquanto fundamento da carne.
Com efeito, a sua filosofia da imanência busca se opor não somente à posiçãohusserliana que vincula a manifestação a uma exterioridade, a uma ‘transcendência’enquanto o próprio horizonte da manifestividade, mas também à tradição grega
portadora no Ocidente do monismo ontológico.
Henry afirma não poder existir uma fenomenologia do mundo, enquanto essanão puder tomar em consideração a existência história dos homens e de seu destino
concreto2.
Essa tarefa é assumida somente a partir da fenomenologia da vida, uma vidainvisível que escapa das “garras” do pensamento. A vida, segundo Henry, não temdesdobramento entre o seu ser e o seu aparecer; nesse sentido, a vida é precisamente
aquilo que não aparece e, no entanto, se manifesta. Não aparece porque não se dáno distanciamento de si, que constitui a condição da visibilidade; a vida se manifesta
no seu único modo, a saber, aquele do pathos, da afetividade, da carne.
A relação de Michel Henry com a fenomenologia aparece, por um lado, comouma continuidade ao método proposto por Husserl, por outro lado, se propõe emtermos mais conflituais, até configurar-se aquilo que o filósofo define um
bouleversement, uma virada, que não significa abandono das premissas e dos obje-tivos da fenomenologia, mas a sua verdadeira atuação, ou seja, a busca de uma
concreta elaboração do pensamento husserliano. Destarte, com a elaboração de umafilosofia da imanência, Michel Henry propõe uma teoria da vida concebida comoabsoluta imanência e, ao mesmo tempo, absoluta manifestação.
Aparentemente trata-se de duas conotações opostas e inconciliáveis, visto que a
manifestação parece implicar necessariamente uma exterioridade, uma“transcendência” enquanto o próprio horizonte da “manifestatividade”. Mas essa é
precisamente a tese que Michel Henry busca confutar, invertendo-a de cima parabaixo, constituindo-se aqui o terreno de desconcerto com a fenomenologia de Husserl,como se evidencia nas páginas de Encarnação.
Michel Henry busca, portanto, uma teoria da verdade toda fundamentada no
próprio manifestar-se da vida na sua essência profunda, na sua imanência, que é
2 Cf. HENRY, M. “Quatre príncipes de la phénoménologie”, In: Revue de Metaphysique et Moral (1991), 1, 3-26. arti
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pathos, afetividade de cabo a rabo. Caracteriza-se, assim, a antinomia profunda que
Henry releva entre uma noção de verdade, e de manifestação, toda concentrada
sobre o fenômeno como aquilo que aparece no horizonte, no “fora” do mundo, e
uma perspectiva que se liberta de tal redução, já que a vida na sua imanência, no seu
pathos, se subtrai radicalmente a tal manifestação.
Deste modo, busca-se mostrar o quanto a vida – como sublinha Henry – não
suporta hiato, ruptura, desdobramento entre o seu ser e o seu aparecer; o quanto
essa não se coloca nunca à distância de si; aquela distância que vice-versa constitui a
própria condição de visibilidade. Nesse sentido, a vida é justamente o que não apare-
ce e, no entanto, se manifesta naquele único modo que há de se manifestar, a saber,
aquele do pathos, da afetividade na qual desde sempre se vincula no próprio abraço,
percebendo-se, experienciando-se no seu próprio viver, na sua carne.
À luz desta interpretação fenomenológica da vida, Henry busca fundamental-
mente a possibilidade de uma interpretação filosófica mais propícia do cristianismo.
O intento, portanto, é realizar um ensaio hermenêutico acerca da verdade da
encarnação cristã, o seu significado, inscrevendo-a em um horizonte mais amplo de
verdade, que se torna compreensível somente à luz de uma radical reconsideração da
própria noção de “carne”, no sentido daquela filosofia da carne que o filósofo fran-
cês elabora a partir dos princípios de uma fenomenologia da vida.
Se em C’est moi la Vérité o fio condutor da reflexão se dava a partir do autorevelar-
se de Deus no Verbo, no qual e pelo qual todos tem a vida, ou seja, são “filhos de
Deus”, em Incarnation vem a lume o tema do Verbo que “se fez carne e veio habitar
entre nós”, indissolúvel no Prólogo de João da afirmação segundo a qual “o Verbo
estava com Deus, e o Verbo era Deus”. Este é precisamente o tema de Incarnation:
evidenciar o quanto na verdade cristã a encarnação aparece estreitamente solidária
com a revelação de Deus no Verbo que se fez carne. A verdade da encarnação cristã,
o seu significado, move a busca de uma reconsideração radical da noção mesma de
“carne”, constituindo, assim, à luz dos princípios próprios de uma fenomenologia da
vida, uma reflexão que coloque em questão o que significa encarnar-se, fazer-se
carne, ou seja, a necessidade de uma filosofia da carne. Assim como já se deu em sua
obra anterior – C’ est moi la Vérité –, em Incarnation instaura-se uma espécie de
círculo hermenêutico, em virtude do qual possibilita-se à verdade cristã uma manifes-
tação do seu significado à luz de uma verdade mais ampla que se enraíza na própria
essência da vida, que, por sua vez, encontra no cristianismo uma afirmação, ao mes-
mo tempo, mais rica e profunda.
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Da própria estrutura da obra delineiam-se os motivos fundamentais da reflexão
de Henry, reelaborados à luz da problemática que Incarnation aborda. Com efeito,
esta obra em estudo pode ser considerada quase uma summa do pensamento de
Michel Henry. Na sua primeira parte, o filósofo francês declara assumir a perspectiva
fenomenológica e, ao mesmo tempo, teoriza a respeito dessa uma verdadeira e pró-
pria “virada”, repropondo e sintetizando os motivos principais de discordância com a
“fenomenologia histórica”. Já minuciosamente examinados em Phénomenologie
matérielle, pode-se afirmar que, em substância, os motivos referem-se ao que Henry
atribui à fenomenologia husserliana, a saber, a assim chamada “inversão temática”.
Pois segundo Husserl, as Erlebnisse, ou seja, as vivências, as impressões vivenciais,
chegam à manifestação somente através da redução dessas a eidos, quer dizer so-
mente quando transformadas em vivências da consciência, com a consequente “subs-
tituição” de um modo de aparecer por um outro (HENRY, 2001, p. 82). Daí sucede
que a noesis se impõe sobre o noema, ditando-lhe os modos de seu próprio manifes-
tar-se, com o qual “todas as modalidades efetivas da vida – o seu conteúdo hilético
assim como o noético, segundo a linguagem de Husser1: as impressões assim como
as operações intencionais –, se desvanecem sob o olhar do ver que procura apreendê-
las” (HENRY, 2001, p. 84). Daí a necessidade da “virada”, cujo sentido é assim defini-
do: “não é o pensamento que nos dá acesso à vida, é a vida que permite ao pensa-
mento aceder a si, de se experienciar, enfim, ser o que é a cada momento...” (HENRY,
2001, p. 96). Consequentemente, como se anuncia no título do § 15, o fundamento
do método fenomenológico outro não pode ser que “a autorevelação originária da
vida”, o seu revelar-se na sua própria essência efetiva, no seu pathos.
O ponto de partida da reflexão de Incarnation constitui-se sobretudo da distin-
ção entre “corpo” e “carne”, o grande tema husserliano que o filósofo francês assu-
me integralmente, inserindo-o, no entanto, em um contexto analítico que, como se
evidencia, se extravia do quadro definido pelo fundador da fenomenologia. No pen-
samento de Henry, com efeito, a distinção joga no sentido de tornar clara a dicotomia
entre “verdade do mundo” e “verdade da vida”, na qual o corpo pertence à primeira
ordem de verdade, enquanto a carne, à verdade da vida. Na realização dessa análise,
retoma-se, portanto, a famosa distinção husserliana entre Körper, corpo, e Leibkörper
ou simplesmente Leib, carne, na qual esta última está indicando o fato que o corpo
humano não é um corpo qualquer, simplesmente dado, que está na sua objetividade,
mas é “corpo próprio, singular”, corpo encarnado. O corpo é o objeto de experiên-
cias do homem, das suas miras intencionais, aquilo que se faz presente no horizonte
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do mundo, pelo qual o homem é no mundo: o corpo “tocado”3, que é colocado em
questão em Incarnation. O outro modo, mais originário, de ser do corpo é aquele
pelo qual esse não é “objeto de experiência”, mas sim “princípio de experiência”
(HENRY, 2001, p. 128), corpo radicalmente “subjetivo”, como se precisou desde
Philosophie et phénoménologie du corps – esse é a carne. Corpo significa, portanto,
somente o corpo-objeto, despojado de todos os atributos da subjetividade, em uma
palavra, o corpo estudado, analisado e dissecado pela ciência; o corpo subjetivo sig-
nifica, ao invés, aquele em primeira pessoa, que se sente viver, que se colhe e se
prova em uma experiência primordial e irredutível. “Corpo próprio”, que se faz intei-
ramente um com o ego e, nesse sentido, é radicalmente subjetivo, é, portanto, unica-
mente o corpo encarnado, Leib; daqui surge toda a problemática da encarnação.
Com efeito, como afirma Henry não existe carne sem encarnação, ou seja, sem o
pressuposto transcendental que torna possível uma coisa como uma carne. A carne,
não o corpo, é, pois, propriamente o tema de Incarnation, na medida em que essa se
processa no horizonte da invisibilidade que é própria da vida, não da visibilidade do
mundo. Invisível não no sentido de irreal ou fantástica, mas enquanto manifestação
de sua própria essência prática. Daí a afirmação, apenas aparentemente paradoxal,
segundo a qual “viventes, somos seres do invisível. Não somos inteligíveis senão no
invisível, a partir dele” (HENRY, 2001, p. 91).
2 A fenomenologia da carne
Da carne à encarnação, portanto, não vice-versa, visto que a encarnação “não
consiste em ter um corpo (...), mas no fato de ter uma carne – mais talvez: ser carne”
(HENRY, 2001, p. 3). Por conta disso, acrescenta Henry, “a elucidação sistemática da
carne, do corpo e da sua relação enigmática, permitir-nos-á abordar o segundo tema
da nossa investigação: a Encarnação no sentido cristão” (HENRY, 2001, p. 4). Com
efeito, é claro que aquilo que João nos diz em sua excepcional proposição – “E o
Verbo se fez carne” – não deve ser entendido no sentido de que o Verbo entrou em
um corpo, nem, muito menos, que tenha assumido as aparências de uma carne. João
diz: o Verbo “se fez carne”; o que quer dizer que a expressão tem de ser apreendida
e pensada em todo o seu rigor. Esse é um ponto de estruturação do discurso, a partir
do qual Henry tece toda a profunda diferenciação da perspectiva cristã da encarnação,
ou seja, a visão mesma do homem enquanto “filho de Deus”, em relação seja à visão
3 Cf. MERLEAU-PONTY, O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2007.
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grega quanto à hebraica. Quanto à perspectiva grega, mostra o quanto sua noção
dualística do ser humano, dividido entre alma e corpo, espírito e matéria não dá
espaço para se pensar uma verdadeira encarnação; e que, justamente por conta dis-
so, as divindades gregas, em suas epifanias ocasionais, podem somente assumir uma
forma humana, sem nunca encarnar-se realmente. Quanto ao hebraísmo, mostra o
quanto em tal perspectiva domina a idéia do corpo enquanto formado a partir da
matéria bruta e inerte, “barro da terra”, tornando-se, assim, para os hebreus radical-
mente impensável a encarnação de Deus. Com as seguintes palavras, Henry resume
essa diferenciação:
Que o eterno, o Deus longínquo e invisível de Israel, o que esconde sempre a face [...],
venha ao mundo, impondo-se um corpo terreno para nele sofrer o suplício de uma
morte ignominiosa reservada aos malvados e aos escravos, eis o que era absurdo, no
fim de contas, quer para um rabino erudito, quer para um sábio da Antiguidade
pagã. Que este homem, o mais miserável, pretenda ser Deus, eis a maior blasfêmia,
que bem merece a morte (HENRY, 2001, p. 6).
A partir dessa reflexão provém a necessidade de uma plena elucidação do concei-
to de “carne”, tendo em vista que, também para o cristianismo, a própria possibilida-
de de uma revelação é vinculada estreitamente a tal noção. Se o fato que Deus se
revela no Verbo encarnado significasse que o Verbo assumiu um corpo, como isso
poderia ser o médium de uma revelação que permitisse distinguir o Cristo de cada
outro ser humano? A afirmação de João, então, apreendida em toda a sua radicalidade,
pode somente significar que “a carne do Verbo não provém do barro da terra, mas
do próprio Verbo. (...) No barro da terra existem somente corpos, não carne. Uma
coisa como uma carne não pode vir e não vem senão do Verbo” (HENRY, 2001, p. 18).
Assim, comungando da autoridade dos escritos de diversos Padres da Igreja, Henry
considera o quanto a origem e a natureza da carne de Cristo é a mesma da carne do
homem e o quanto, encarnando-se, o Filho de Deus realmente se apropriou da con-
dição humana, comungando realmente a existência do ser humano, sujeitando-se
realmente ao peso de uma carne finita como a humana, com as suas necessidades, a
sua sede, a sua fome, a sua precariedade, com a sua morte inscrita nessa desde o
nascimento. Caso contrário, o Cristo
não morreu realmente, também não ressuscitou, numa palavra, é todo o processo
cristão da identificação real do Verbo com o homem, como condição da identificação
real do homem com Deus, que fica reduzido a uma série de aparências e, ao mesmo
tempo, a uma espécie de mistificação (HENRY, 2001, p. 136).
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3 A fenomenologia da encarnação
De um pensamento assim elaborado provém, como se mostra, o estreito vínculo,
inaugurado pelo cristianismo, entre Encarnação e Salvação, que é particularmente
examinado na terceira parte de Incarnation.
Tudo isso significa, portanto, que a carne do Cristo não tem somente a aparência
de uma carne humana, mas é realmente humana: capaz, como esta última, de sentir
e sofrer. São, pois, o sentir e o sofrer que fazem dessa não um mero corpo, mas sim
uma carne visível no mundo. “Opera-se, então, na problemática dos Padres, a vira-
gem decisiva pela qual as determinações objetivas do corpo material, mostrando-se-
nos no mundo, cedem o lugar às determinações impressionais e afetivas que se revelam
no pathos da vida” (HENRY, 2001, p. 138). De modo particular, é a capacidade de sofrer
que faz da carne de Cristo uma carne humana, “sendo o sofrimento (...) uma das tona-
lidades afetivas fundamentais, pelas quais a vida toca no seu próprio Fundo” (HENRY,
2001, p. 138): com efeito, como já se dizia no L’Essence de la manifestation, é na alter-
nância de alegria e dor, de prazer e sofrimento que a vida realiza a si mesma.
A encarnação assim compreendida manifesta, portanto, toda “violência do con-
fronto entre a concepção grega do corpo e a concepção cristã da carne” (HENRY,
2001, p. 134), visto que somente assim é superado totalmente o dualismo de alma e
corpo, próprio da herança grega e do qual o cristianismo, na sua longa história,
nunca se libertou completamente.
O corpo material e mundano dos gregos é semelhante ao pedaço de terra que se torna
carne sob o sopro divino – que é o sopro da vida. Mas quando o corpo é transformado
em carne pela operação da vida, ele só recebe a sua condição de carne da vida que lhe
permite experienciar-se a si mesmo, nela, e tornar-se carne (HENRY, 2001, p. 142).
Compreende-se, então, a estreita conexão que para o filósofo francês existe en-
tre a narração do Gênesis e o Prólogo de João, no sentido, porém, que a autêntica
compreensão da primeira é possível unicamente à luz do segundo: somente à luz da
encarnação, com efeito, é possível compreender até o fim a transformação do barro
da terra, do corpo objetivo, em corpo subjetivo e vivente. O espírito de vida não se
une do exterior a uma matéria já dada, como poder-se-ia fazer pensar a narração
bíblica ou uma sua interpretação sob o influxo da conceitualidade grega; ao contrá-
rio, a transforma a partir do interior, tornando-a em tudo e para tudo matéria viven-
te, carne. Com absoluta coerência interpretativa Henry pode afirmar que “toda carne
provém do Verbo”, se é verdade que – como se lê no Prólogo – “todas as coisas foram
feitas por meio dele e sem ele nada se fez do que foi feito”. É o que, com extrema
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 105-115, jan./jun. 2010 113
clareza, viu Irineu, para quem – observa o filósofo – existe “uma afinidade essencial
entre a criação original do homem e a Encarnação do Verbo, de modo que só a
segunda nos permite entender a primeira” (HENRY, 2001, p. 248).
Se essa colocação é verdadeira, faz-se necessário dizer, então, que “o homemnunca foi criado, nunca foi visto no mundo. Ele veio à vida. É nela que ele é seme-
lhante a Deus, feito da sua mesma realidade, a vida de todo o vivente” (HENRY, 2001,p. 246). Por isso, “as proposições iniciáticas do Prólogo de João (...) nos permitem
compreender a unidade da visão transcendental das Escrituras. É esta unidade que éposta a nu quando a ideia de criação cede o lugar à de geração” (HENRY, 2001, p.
247); impostação transcendental porque não se trata de uma gênese histórica, massim a-histórica e a-cósmica – transcendental, portanto – como é sempre o gerar-se davida na vida.
Com a encarnação de Deus se esclarece também o sentido de sua “transcendência”.
Nada é mais estranho, com efeito, ao pensamento cristão que um Deus “impassível”,que não participe da sorte dos homens, bem-aventurado na sua autosuficiência. A
transcendência não é compreendida, portanto, como na tradição filosófica, a modode um Deus artífice do universo, exterior à sua criação, que entrega aos homens atarefa de decifrar os vestígios que nessa deixou: “num sentido radical e o único acei-
tável, se se trata com efeito do absoluto, transcendência designa a imanência da Vidaem cada vivente” (HENRY, 2001, p. 128). Retoma-se, aqui, a palavra-chave “imanência”,
que recapitula toda a perspectiva do filósofo francês; palavra altamente suspeitapara os ouvidos cristãos, aos quais evoca ressonâncias panteístas, de origem pagã.Viu-se, porém, que para Henry a imanência não exclui a realidade da ipseidade, na
qual a vida se gera cada vez: o “Filho de Deus”, o Verbo encarnado é o próprioprincípio de toda ipseidade, na qual e pela qual todo ser nasce à vida. Daí a nítida
recusa, formulada já em C’est moi la Vérité, do infinito romântico, no qual a individu-alidade não encontra verdadeira consistência, uma vez que existe só para suprimir a
si mesma. Além disso, como é justamente acentuado, a originalidade do cristianis-
mo, em relação às outras formas de espiritualidade, reside próprio no fato que
a unidade absoluta entre todos os si vivos, longe de significar ou de implicar a disso-
lução ou a aniquilação da individualidade de cada um deles, é pelo contrário
constitutiva desta, visto que é na efetuação fenomenológica da vida no seu Verbo
que cada um deles está unido a si, gerado em si como este si irredutivelmente singu-
lar, irredutível a todo e qualquer outro (HENRY, 2001, p. 266).
Daí origina-se, enfim, que se a vida do homem é dada no Filho e pelo Filho, por
meio do qual todos os homens são filhos de Deus, também a salvação não é possível
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senão por meio dele, uma vez que essa é chamada a restaurar o vínculo que prende
o ser humano à vida infinita, a reconstituí-lo cada vez que tal vínculo for rompido.
A encarnação, como caminho aberto para a salvação do homem, aparece desde logo,
segundo a intuição de Irineu, como uma restauração, a restauração da sua condição
original, na medida em que o homem foi criado por Deus à sua imagem, sendo,
assim, esta criação, a sua geração na autogeração da vida absoluta no seu Verbo – o
seu nascimento transcendental (HENRY, 2001, p. 264).
Conclusão
A reflexão instituída a partir de uma conversa leitora com a obra Encarnação
nada pretende; essa é apenas o empenho e desempenho de deixar-ser o cultivo de
uma possibilidade humana de compreensão. Nesse sentido, a reflexão suscitada pela
dimensão de um cultivo não se confunde com a discussão. Como se viu, no desafio
proposto por Michel Henry enquanto um pensar a vida, nada é acidental, porque
tudo é sabor, provocação de aprender a ser. Na discussão, ao invés, há o que é impor-
tante e o que não é importante. A discussão pretende atingir uma plataforma co-
mum, uma combinação, para superar certas dificuldades. É mais atenta ao combina-
do ponto de vista da situação que à sua experiência. Daí que na experiência do enca-
minhar-se, do tornar-se de novo capaz de escutar a palavra na profundidade de nos-
sa interioridade, ou seja, na experiência de sentir a palavra na carne de nossa carne,
enquanto única possibilidade de verdade e de vida que ainda é dada, não encontra
muito sentido a necessidade de concluir. Com efeito, os caminhos dessa investigação
não querem jamais constituir um corpo fechado, mas miram antes o testemunho de
uma relação criadora da vida, sendo o que sempre ainda pode se transformar.
Conclui-se dizendo que o único escopo dessas considerações foi aquele de perfa-
zer, a partir da obra Incarnation, a linha de fundo do pensamento do filósofo francês,
em sua busca fundamental de elaborar uma interpretação radical da verdade do
cristianismo, colocando no centro da questão os temas da vida e da encarnação, ou
seja, buscando interpretar com intensidade e rigor o Prólogo joanino, no qual se
reassume contemporaneamente a verdade profunda da vida e a verdade profunda
do cristianismo.
Referências
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Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 105-115, jan./jun. 2010 115
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TRADUÇÕES
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 119-122, jan./jun. 2010 119
Heirich Rombach
Continua sendo incompreensível como até os dias
atuais a filosofia não descobriu a hermética como a for-
ma básica de todas as constituições do ser. O que pro-
curava o Heidegger, a “ontologia fundamental”, é na
verdade a hermética; e quando ele descobriu que o cri-
tério supremo do Dasein é a “autenticidade”
(Eigentlichkeit), deparou-se com uma das mais eleva-
das formas do hermético. Mas não a forma suprema,
pois esta é a unicidade.
Unicidade (Einzigkeit) não é especificidade única
(Einzigartigkeit). Não se trata de algo destacar-se na
especialidade (Besonderheit), e muito menos se trata
de assegurar-se um lugar especial através de algumas
propriedades determinadas que pertencem apenas a ele.
Isso tudo é exterior e não resulta em nenhuma unicidade.
Essa significa, ao contrário, que algo surgiu em
autogênese, num caminho que se determina a partir de
si mesmo. Dito em imagens: só se alcança o cume da
montanha em sua unicidade quando a escalamos per-
correndo um “caminho”. Quem não trilhou o caminho
da apropriação interior não alcança o cume em sua
unicidade. Quem chega lá transportado por teleférico
ou de helicóptero pousa noutro cume, não no único.
A unicidade se constitui no caminho. Quanto mais
longo e mais difícil o caminho, tanto mais elevada a
unicidade. Mas já os caminhos bem cotidianos, inclusi-
Unicidade*
* Texto extraído deROMBACH, H. DerKommende Gott. Hermetik– eine neue Weltsicht.Freiburg: Rombach Verlag,1991, p. 142-145. Agrade-cemos à Rombach Verlagpor ceder os direitos paratraduzir esse texto. Tradu-ção de Enio P. Giachini.
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ve, que percorremos em nosso mundo da vida, produzem a unicidade tanto das
coisas que estão nele quanto do mundo da vida e também de nós mesmos. Sim, um
fenômeno tão simples quanto a concentração é um primeiro empuxo de unicidade. É
só assim que podemos nos concentrar nalguma coisa ou nalguma pessoa de tal
modo que a colocamos como ponto final de um caminho. A caminho, a coisa se
desenvolve; ela cresce para uma valoração cada vez mais elevada e nos carrega tam-
bém para dentro desse curso de elevação. No caminho, que se desenvolve “entre” a
coisa e nós, a coisa vai ganhando uma unicidade cada vez mais clara, na qual partici-
pamos também nós, que percorremos esse caminho.
A essência da unicidade consiste no fato de estender ao seu redor um campo que
cresce na medida em que se desdobra a univocidade da unicidade. Assim como só se
dá a unicidade para aquele que se aproxima dela a caminho, assim também só se dá
para aquele que se move no campo que pertence à unicidade.
Duas unicidades não têm um campo comum. É bem possível que uma e a mesma
região possa ser parte de diversos campos, mas se porta de modo muito diverso, está
pois na luz de unicidades distintas. Uma cidade postada no limite entre a montanha
e o vale porta-se cada vez distintamente, quando a visitamos a partir da montanha
ou a partir do vale. Não há essa cidade. Há apenas dois lugares, dependendo confor-
me se olhe do íntimo da montanha para dentro do aberto do vale ou da amplidão do
vale para dentro do íntimo da montanha. A cidade não é simplesmente o posto
intermédio; ela é cada vez uma outra cidade, definida a cada vez pela luz de uma
unicidade cada vez distinta. (Mas isso só se aplica a cidades que possuem algo de
“único”.)
Como se portam unicidades umas com as outras? Jamais como duas unicidades
“distintas”. A essência da unicidade consiste no fato de que não há diversas coisas
desse tipo. O único é cada vez o único único. Tudo o mais é comparabilidade
(Vergleichbarkeit). Pode-se falar sobre tudo o mais, mas sobre o único não. Este só
pode ser visto, sê-lo. “Sê-lo” (“seint”) não significa propriamente que se “é” o único,
mas que se “pertence” a ele. Pertencer ao único é um modo específico único da
identidade. Não equiparação (Gleichsetuzung), mas pertença, de tal modo que tanto
o único pertence a alguém como esse mesmo pertence ao único. Falar alguma coisa
sobre isso só pode alguém que saiba falar “pertinentemente” (gehörig). Portanto,
hermeticamente.
Com os herméticos não é preciso que se fale sobre o hermético. Basta tocar no
assunto. O restante eles mesmos o dizem a si mesmos. Com não-herméticos não se
Rev. Filosófica São Boaventura, Curitiba, v. 3, n. 1, p. 119-122, jan./jun. 2010 121
pode falar sobre o hermético. Toda e qualquer palavra é ambígua e é necessariamen-
te mal-entendida. Ali nada mais há que decepção. Mas o mais decepcionante é que
não se pode falar sobre essa decepção. Ali não se pode alcançar mais nada de claro.
Com herméticos alcança-se tudo claramente, eles se movem no medium da clarida-
de, eles se firmam na claridade e no fundo não precisam de qualquer palavra. Ali
basta um aceno. Hölderlin afirma que o filho dos Alpes (o hermético) caminha “des-
temido” sobre as “pontes construídas com leveza”; basta-lhe um aceno. O falar nada
acrescenta, antes, desgasta.
Não há “muitas” unicidades. Todo único é único, sem comparação, muito embo-
ra saiba que há “muitos” únicos. O único não está num horizonte da comparabilidade
(Vergleichbarkeit). Não há caminho que vá do único para o único. Há somente um
caminho de volta para o zero. E do zero, um novo caminho para um novo único; é
apenas medido nesse que o antigo único é alguma coisa. Esse caminho do zero é um
caminho do fundo do vale, sem o qual o alpinista não quer escalar a montanha. A
hermética é uma filosofia de alpinista. Isso, muito embora de há muito que nem todo
alpinista é hermético. Se ele não o é, então ele é um aficcionado por montanhas,
coisa que provavelmente ele jamais está em condições de saber.
Só se pode escalar outra montanha quando se esquece a antiga. Esse esquecer
sabe naturalmente dos passos passados da escalada da montanha. “Sabe” disso mas
já não os possui. Na medida em que apenas ainda “sabe” disso, já entregou o antigo.
Mas essa é a condição de possibilidade para que possa conquistar um novo. Se o
antigo não estiver perdido, o novo representa apenas um “ganho” – e de antemão
estará perdido. E novamente, só quem compreende isso é o hermético.
É só quem perde doloridamente que pode conquistar o novo. O novo e seu
prazer é a transformação da dor do antigo. Prazer (Lust) e desprazer da perda (Verlust)
é um único fenômeno.
Na perda da antiga unicidade, de modo dolorido, infindo, irrecuperável, nasce a
condição de possibilidade constitutiva de um novo prazer. O novo apaga o antigo.
Na verdade ele o repete. Nesse entremeio resta apenas dor. Quem não compreende
isso, seria bom que largasse essas páginas e passasse a ler algum outro texto mais
“compreensível”.
Não há nenhum horizonte no qual as unicidades se apresentem como unicidades
distintas e onde pudessem assim possibilitar uma comparação, mesmo que ao modo
da “incomparabilidade”. A unicidade só pode ser experimentada a caminho, de certo
modo a partir de baixo. Só se dá quando se constitui, e quiçá a caminho. O caminho
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ROMBACH, Heirich. Unicidade122
é igualmente o “saindo” de uma unicidade antiga, que em si mesmo já é “rumo a”
uma nova unicidade. Cada unicidade dissolve toda outra unicidade. Só quem está
disposto a coatuar nisso está pronto para uma unicidade. Deve jogar fora a si mesmo
para ganhar a si mesmo de volta. Uma unicidade é só aquilo donde ganhamos de
novo a nós mesmos.
Essa notável relação de exclusão de unicidade para com unicidade tem seu fun-
damento ontológico no fato de que cada unicidade forma uma ontologia própria,
uma aberta (Hof) de autopossibilitação, um “campo” próprio de aproximação. Quem
não imita a configuração desse campo não se aproxima dessa unicidade. Quem imita
a configuração do campo já foi tomado pela unicidade. Quem já foi tomado pela
unicidade converte-se com ela num único, no mais elevado cimo. Não-dualidade.
O decisivo reside na ontologia distinta. Só quem admite que certos fenômenos
desenvolvem uma ontologia própria, isto é, um campo próprio de aproximação e um
modo próprio de aparição, encontra um acesso ao fenômeno da unicidade. Não há
muitas unicidades, mas sempre apenas uma única – muito embora “tudo” possa
ganhar o caráter de unicidade. Mas em hipótese alguma isso significa que o caráter
da unicidade é um algo geral aplicável a muitos ou até a tudo.
Unicidade pode acontecer a homens e coisas. Ela é imune à diferença de pessoa
e coisa. A “pátria” é tão única quanto um companheiro de vida, sim, até como um
barco. Pode ser que para alguém o bote seja sua vida, muito embora não seja nada
“especial”. É possível estar “casado” também com uma velha casa. Mas será bem
desejável não estar casado com uma pessoa que não compreende que a gente pode
estar casado também com uma casa velha. Pode-se estar casado muito bem com
uma pessoa como com uma casa velha. Uma coisa não contradiz a outra. Inclusive,
não se dão “no mesmo tempo”. Cada único possui seu próprio tempo. No tempo de
um único ocorre também o outro único, não porém como um único, mas talvez
apenas como timoneiro. No tempo do outro único se dá também o outro único, mas
talvez apenas como casa de férias. De modo bem imperceptível se dá que escorrega-
mos de um tempo para o outro, e o outro único ainda fala como o único, enquanto
que ele é ouvido ainda apenas como o timoneiro. O não perceber que se está trans-
pondo as barreiras provém da incomparabilidade dos dois únicos.
“Tudo tem seu tempo”, porque cada coisa pode tornar-se um único. Também no
mundo comum do compreender há naturalmente um tempo comum, “no” qual “tudo”
ocorre e é contido, enquanto justamente “é”. Mas isso é um equívoco. “Ser e tempo”
é um corredor, mas não na direção reta.
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