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Richard Rorty e a Linguagem

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Richard Rorty e a Linguagem

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    Joaquim Eli Cirne de Toledo Junior

    Linguagem, contexto e razo: Richard Rorty e a virada lingustica

    So Paulo

    2008

  • Joaquim Eli Cirne de Toledo Jnior

    Linguagem, contexto e razo: Richard Rorty e a virada lingustica

    Dissertao apresentada ao programa de Ps-Graduao em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para obteno do ttulo de Mestre em Filosofia sob a orientao do Prof. Dr.Caetano Ernesto Plastino

    So Paulo

    2008

  • ndice

    Agradecimentos ...................................................................................................... 3

    Resumo................................................................................................................... 4

    Introduo............................................................................................................ 6

    1. A crtica da filosofia cientfica ...................................................................... 11

    2. A virada pluralista de Richard Rorty ............................................................. 41

    3. Ceticismo, relativismo e etnocentrismo.......................................................... 74

    4. A transformao da filosofia ........................................................................ 120

    Concluso........................................................................................................ 154

    Referncias bibliogrficas................................................................................ 168

    1

  • Something forever exceeds, escapes from statement, withdraws from definition, must be glimpsed and felt, not told. No one knows this like your genuine professor

    of philosophy. For what glimmers and twinkles like the birds wing in the sunshine it is his business to snatch and fix. And every time he fires his volley of new vocables

    out of his philosophical shot-gun, whatever surface flush of success he may feel, he secretly kens at the same time the finer hollowness and irrelevance.

    William James

    2

  • Agradecimentos Ao orientador deste trabalho, Prof. Caetano Ernesto Plastino, pelo estmulo a

    meus interesses e projetos desde a iniciao cientfica, e pela disposio e

    pacincia como orientador de um sujeito que confessadamente demora a entender

    algumas coisas, principalmente as difceis;

    A todos do ncleo Direito e Democracia, do CEBRAP, um espao multidisciplinar,

    democrtico e estimulante do qual tenho sido participante, se calado, curioso e

    entusiasmado. Espero que de alguma forma meu trabalho seja uma contribuio

    aos debates;

    Pela ajuda e companhia durante os ltimos cinco meses de elaborao deste

    trabalho, na biblioteca Joseph Regenstein da Universidade de Chicago: Joshua

    Abrams, Regina Greene e David Daniell, Prof. David Ingram, Robert Mazurek,

    Ismail Xavier, Isaura Botelho e Bruno Simes;

    Aos meus colegas e alunos da Escola da Vila;

    s famlias Gaspari, Toledo e Guaciara;

    Carol.

    3

  • RESUMO

    TOLEDO JR, J. E. C de. Linguagem, contexto e razo: Richard Rorty e a virada lingustica. 2008. 173 f. Dissertao (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2008. A virada lingustica da filosofia contempornea implicou a recaracterizao de

    problemas epistemolgicos em termos da natureza e estrutura da linguagem

    (lgica), assim como em termos de interpretaes das prticas lingusticas

    concretas (pragmtica). Nesta ltima forma, a concepo da linguagem como

    instrumento de interao social, somada constatao do carter contextual das

    situaes de interao, conduz em alguns casos a um tratamento das diferentes

    linguagens como jogos fechados em si mesmos, dotados de regras prprias e,

    nos casos extremos, incomensurveis. por esse caminho que Richard Rorty

    conduz a sua verso da virada lingustica. Para Rorty, os desenvolvimentos da

    filosofia analtica em especial, a forma como W. O. Quine, W. Sellars e D.

    Davidson carregam o basto que julgam receber das Investigaes filosficas de

    L. Wittgenstein apontam para uma concepo holstica (contextual) da

    linguagem e, consequentemente, da racionalidade. Essa maneira de entender a

    linguagem tem, naturalmente, implicaes para o tratamento de outras questes

    filosficas morais, polticas e para a caracterizao da prpria atividade

    filosfica. Este trabalho procura reconstruir e indicar deficincias das elaboraes

    de Rorty em relao a tais questes.

    Palavras-chave: virada lingustica, contexto de justificao, racionalidade, verdade,

    pragmatismo

    4

  • ABSTRACT

    TOLEDO JR, J. E. C de. Language, contexto and reason: Richard Rorty and the linguistic turn. 173 f. Dissertao (Mestrado) Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2008. The linguistic turn in contemporary philosophy entailed the restatement of

    epistemological problems in terms of the nature and structure of language (logic),

    and in terms of interpretations of linguistic practices (pragmatics). In the latter form,

    the conception of language as an instrument of social interaction, together with the

    contextual understanding of interaction situations, leads in some cases to the

    treatment of different languages as closed games endowed with their own rules

    and, in extreme cases, incommensurable. This is the path down which Richard

    Rorty takes his own version of the linguistic turn. For Rorty, the developments of

    analytical philosophy most importantly, the way W. O. Quine, W. Sellars and D.

    Davidson follow the lead of Wittgensteins Philosophical Investigations point to a

    holistic (contextual) understanding of language and, as a consequence, of

    rationality. This way of understanding language is related to Rortys treatment of

    other philosophical issues (moral and political) and to his characterization of

    Philosophy itself. This dissertation aims at reconstructing (and pointing to

    shortcomings of) Rortys understanding of these issues.

    Key words: Linguistic turn, context of justification, rationality, truth, pragmatism.

    5

  • IntroduoShort views, for Gods sake, short views.

    Sydney Smith (1771-1845)

    O nico truque literrio que sobra para um autor de uma dissertao de

    mestrado um gnero altamente codificado a vantagem de poder escrever por

    ltimo aquilo que o leitor ver primeiro e, com o privilgio da viso retrospectiva,

    sugerir na sua Introduo maior coeso no trabalho do que realmente antevisto e

    planejado ou, talvez realizado. mais fcil defender a existncia de um

    argumento central no trabalho depois que todas as partes a incio no claramente

    articuladas esto, pelo menos fisicamente, organizadas em um corpo nico.

    Deve ser mais do que recorrente a impresso de que, ao escrever as

    ltimas sentenas do trabalho, uma repentina viso do que deveria ter sido feito

    quais questes deveriam ter assumido o primeiro plano, quais deveriam ter sido

    subordinadas s primeiras, como melhor indicar, no meio de diversas questes

    marginais, o que que afinal est em jogo vem tona. Assim, gostaria, de forma

    breve, indicar o que parece ser, afinal, a questo central da qual este trabalho se

    ocupa.

    A continuidade entre as duas supostas fases da obra de Richard Rorty (da

    filosofia analtica ao pragmatismo) continuidade que, ao contrrio da usual

    sugesto de ruptura, revela as razes por trs da importncia que seus trabalhos

    tm para o debate filosfico contemporneo pode ser indicada pela forma como,

    a partir da dcada de 1980, a sua reabilitao de temas do pragmatismo

    6

  • americano se relaciona s suas reflexes lingusticas e epistemolgicas

    elaboradas na dcada de 1970.

    A virada lingustica na filosofia, como se sabe, desencadeia um processo

    de reviso dos problemas tradicionais da filosofia epistemolgicos mas tambm

    morais e polticos segundo um novo paradigma. So inmeras as

    consequncias dessa virada. Rorty procura aprofundar e considerar uma delas em

    particular: como a constatao da centralidade da linguagem fora a

    reconsiderao e o questionamento da noo de autoridade epistmica ou,

    dito de outra maneira, das concepes tradicionais do processo de justificao de

    crenas.

    Rorty considera que existem duas verses tradicionais dessa concepo (a

    e b abaixo), e sugere que a virada lingustica introduz uma terceira (c). A sentena

    s p pode ser considerada a expresso de uma crena justificada se

    (a) essa sentena a expresso de uma certeza subjetiva imediata. Eu sou,

    eu existo ou sinto dores so expresses paradigmticas dessa

    concepo de justificao.

    (b) essa sentena um relato de observao (neutro). Vermelho aqui agora

    um exemplo desse tipo de enunciado que, dada sua objetividade,

    expresso de uma crena (por isso mesmo) justificada.

    (c) essa sentena pode ser defendida, de forma argumentativa indicando a

    sua compatibilidade e coerncia com uma rede de crenas compartilhadas

    e, pelo momento, no questionadas , intersubjetivamente. Nessa

    7

  • concepo, a justificao de crenas no uma questo nem subjetiva

    nem objetiva, mas social.

    Para Rorty, a concepo social de justificao, resultado central da

    adoo de uma concepo da linguagem como meio de comunicao, no

    apenas se soma s duas primeiras (subjetiva e objetiva) como as cancela

    os processos sociais de justificao podem dar origem a infinitas formas

    de autoridade epistmica. Por mais absurda que parea aos nossos

    olhos, uma forma de justificao revelao divina, por exemplo pode ser

    adotada por uma comunidade de forma racional, isto , consensual,

    regular, coerente. Foram meros acidentes histricos a inveno da noo

    (cartesiana) de mente, o desenvolvimento da cincia moderna que

    fizeram com que a tradio filosfica moderna desse primazia, por sculos,

    s concepes subjetivistas e objetivistas. E foi a virada lingustica e,

    mais especificamente, aquilo que Rorty chama de destranscendentalizao

    da filosofia analtica, para ele o ltimo passo para a secularizao cultural

    iniciada com a prpria filosofia moderna que permite a dissoluo dessa

    iluso do carter necessrio das formas subjetiva e objetiva da autoridade

    epistmica.

    Para Rorty, essa constatao desencadeia um processo de

    desconstruo da prpria filosofia. Ora, se filosofia coube

    tradicionalmente a investigao da natureza da justificao vale lembrar

    que, para as concepes a e b, justificao implica verdade das crenas

    em sua batalha contra a opinio ou a superstio, a constatao da

    8

  • natureza contingente, historicamente determinada das formas de

    justificao parece retirar dela o seu objeto. Assim, no primeiro captulo,

    exponho e comento a crtica que Rorty desenvolve filosofia cientfica,

    uma determinada forma de compreender a tarefa da filosofia que para Rorty

    tanto no consegue corresponder s suas prprias exigncias de rigor e

    xito quanto se dissolve a si mesma uma vez constatada a historicidade

    dos critrios de justificao.

    No segundo captulo, procuro mostrar o papel que a noo de

    vocabulrio desempenha na obra de Rorty. O ponto de partida um artigo

    em que Rorty simultaneamente critica o tratamento dado noo de mente

    pela tradio analtica um tratamento cujo equvoco principal assumir

    que a existncia ou no de um domnio mental uma discusso

    ontolgica, e no epistemolgica e apresenta a sua concepo contextual

    do sentido e da justificao. Mente, para Rorty, a condensao de uma

    noo epistemolgica incorrigibilidade em uma suposta substncia.

    A crtica de Rorty procura vincular o projeto epistemolgico moderno

    inveno da noo de mente. Ainda neste captulo, procuro analisar

    algumas consequncias que essa concepo contextual da justificao tem

    para a noo de racionalidade.

    No terceiro captulo, indico o caminho que leva dessa noo

    contextual da justificao (e, como procuro mostrar no segundo captulo, da

    racionalidade) tese do etnocentrismo que Rorty passa a desenvolver na

    dcada de 1980. Para Rorty, a desconstruo das iluses universalistas da

    9

  • filosofia moderna devem, necessariamente, desde o epicentro

    epistemolgico, repercurtir na esfera da moral e da poltica.

    No quarto e ltimo captulo, abordo a concepo que Rorty

    desenvolve da atividade filosfica. Essa concepo est diretamente ligada

    ao seu tratamento lingustico dos demais temas, assim como sua recusa

    de uma imagem cientfica da atividade filosfica.

    Creio que uma das fragilidades do presente trabalho a oscilao

    entre o tratamento mais detido das consequncias da passagem de uma

    concepo mentalista, subjetivista e objetivista para uma concepo

    linguistica e intersubjetiva da autoridade epistmica, tema central da obra

    de Rorty, e a preocupao com indicar a relao dessa questo com outros

    temas caros ao autor (democracia, filosofia, etc.). Aproveito, ento, para

    sugerir de forma mais explcita que a questo que est em jogo aqui

    justamente as consequncias algumas positivas, outras problemticas

    da atribuio de centralidade comunidade lingustica no processo de

    justificao de crenas.

    *

    A fim de exibir a relevncia do tema (e, consequentemente, da obra

    de Richard Rorty), procurei introduzir em cada um dos captulos

    contrapontos com outros filsofos que compartilham muitos, mas no todos,

    dos pressupostos de Rorty. Igualmente, na concluso procuro indicar

    alternativas mais sistemticas concepo contextualista da racionalidade

    noo que podemos associar, no contexto deste trabalho, justificao

    de crenas de Rorty.

    10

  • 1. Acrticadafilosofiacientfica

    Richard Rorty no o primeiro nem o nico filsofo a diagnosticar, no

    sculo XX, uma crise da tradio filosfica moderna. O tema , alis, bastante

    recorrente nos escritos de autores das mais variadas filiaes: aqueles que

    escrevem sob a influncia de filsofos to diversos como Nietzsche, Heidegger, o

    Wittgenstein das Investigaes filosficas, Horkheimer e Adorno, para citar alguns,

    parecem compartilhar da opinio de que h um esgotamento daquilo que

    poderamos chamar de o paradigma da filosofia moderna1. A maneira como essa

    expresso deve ser glosada, no entanto filosofia do sujeito, logocentrismo,

    filosofia cientfica, etc. j um ponto em disputa. As propostas de superao

    dessa tradio e de redefinio das bases sobre as quais fundamentar a filosofia

    depois do fim do paradigma moderno, igualmente, so variadas e, em muitos

    casos, incompatveis. De qualquer maneira, uma caracterstica comum a boa

    parte da produo filosfica contempornea a construo de um diagnstico

    dessa crise e a sugesto de formas de super-la. O objetivo desse trabalho ,

    fundamentalmente, localizar Richard Rorty nesse cenrio histrico-filosfico.Para

    isso, fundamental compreender, em primeiro lugar, a caracterizao da tradio

    filosfica moderna oferecida por Rorty; em segundo lugar, as razes que Rorty

    oferece para indicar que essa tradio chega a um beco sem sada; e, em terceiro

    lugar, sua proposta de redefinio da natureza e funo da filosofia.

    1 Podemos ver variaes desse tema na obra, por exemplo, de M. Foucault, J. Derrida, J. F. Lyotard e J. Habermas. A esse respeito, conferir a coletnea After philosophy: end or transformation? (BAYNES, K et alli, (org.). Cambridge (MA), The MIT Press, 1987).

    11

  • A inteno deste captulo expor a crtica de Rorty noo (que Rorty

    considera tipicamente moderna e que, em seu estilo muitas vezes

    propositadamente generalizante e alusivo, chama de tradio platnica-

    kantiana2), segundo a qual a filosofia deve ser cientfica, seja porque se ocupa

    com descobrir, de forma definitiva, a linha que demarca a fronteira entre opinio

    e conhecimento e definir um mtodo para alcanar a segunda (Plato), seja

    porque assume como tarefa fundamentar todo conhecimento verdadeiro (Kant).

    Para colocar em termos mais precisos, Rorty identifica a tradio filosfica

    moderna com a pretenso de construir uma teoria da racionalidade que pudesse

    tanto municiar o filsofo com um mtodo preciso que lhe permitisse resolver

    problemas filosficos quanto coloc-lo na posio de guardio da racionalidade e

    juiz de toda pretenso de conhecimento. Para Rorty, a tradio lgico-lingstica

    de G. Frege e B. Russell a assim chamada filosofia analtica a ltima

    encarnao dessa pretenso, e os impasses a que essa tradio chega indicam

    as limitaes mais profundas de todo o projeto moderno de construir uma teoria da

    racionalidade em um sentido forte, universalista. Para Rorty, a superao dessa

    concepo da filosofia obriga a uma reabilitao do pragmatismo.

    Para uma reconstruo da crtica de Rorty tradio moderna (e mais

    especificamente, tradio da filosofia analtica) e para uma anlise inicial de sua

    proposta de redefinio da natureza e do papel da filosofia, este captulo tratar,

    em primeiro lugar, do artigo Metaphilosophical difficulties of linguistic philosophy

    (RORTY 1967) que inaugura, por assim dizer, o seu movimento explcito de

    afastamento crtico da tradio analtica, ento hegemnica no meio acadmico 2 Conferir, por exemplo, a introduo a Consequences of pragmatism (RORTY, 1982).

    12

  • norte-americano, e que abre, com o esprito de um necrolgio, a coletnea The

    linguistic turn, e em segundo lugar, da coletnea Consequences of pragmatism

    (RORTY 1982), na qual Rorty expande sua crtica filosofia moderna e prope, de

    forma mais sistemtica, a reabilitao do pragmatismo. Sero colocados em

    questo neste captulo, no entanto, tanto a forma como Rorty relaciona filosofia

    moderna e cincia quanto sua verso do pragmatismo.

    No toa que o livro que oferece uma verso herica do movimento

    analtico, sugerindo que toda a histria da filosofia da boa filosofia, centrada

    mais na lgica do que na retrica, mais na cincia do que na literatura, mais em

    Kant do que em Hegel culmina, por fora, na filosofia analtica, intitulado The

    rise of scientific philosophy. Nele, o emigr Hans Reichenbach teria

    argumentado, segundo Rorty, que a tarefa apropriada da filosofia resolver um

    conjunto de problemas identificveis, problemas que tm origem na atividade e

    nos resultados das cincias naturais (RORTY [1981] 1982: 211). O perodo

    especulativo da filosofia basicamente os dois milnios e meio que separam as

    primeiras tentativas rudimentares de fazer filosofia de Frege e Russell teria sido

    uma etapa necessria, mas devidamente superada, que permitiu o surgimento do

    instrumental adequado para enfrentar os problemas filosficos fundamentais:

    [O presente livro] sustenta que a especulao filosfica uma etapa passageira, que ocorre em

    uma poca em que problemas filosficos so levantados sem que estejam disponveis ainda os

    meios lgicos necessrios para resolv-los. Sustenta que h, e sempre houve, uma abordagem

    cientfica da filosofia. E pretende mostrar que deste solo brotou uma filosofia cientfica que na

    13

  • cincia de nossos tempos encontrou as ferramentas para resolver aqueles problemas que em

    pocas anteriores haviam sido objeto de mera adivinhao [guesswork]. Em uma palavra, esse

    livro foi escrito com a inteno de mostrar que a filosofia avanou da especulao para a cincia

    (REICHEMBACH 1951, citado em RORTY [1981] 1982: 211).

    Apesar dos evidentes exageros de Reichenbach terem sido objeto de

    crtica, sua concepo de filosofia cientfica, segundo Rorty, ser assumida como

    pressuposto metafilosfico fundamental de grande parte a parte dominante da

    produo filosfica norte-americana a partir da dcada de 1950. Segundo esse

    pressuposto, a filosofia se caracteriza por abordar um conjunto de problemas

    identificveis e recorrentes, que foram tratados de forma desajeitada e pouco

    sofisticada em tempos passados, e que esto sendo atacados agora com preciso

    e rigor at ento desconhecidos (RORTY: [1981] 1982: 212). A atividade filosfica

    e todo o currculo construdo a fim de formar filsofos dentro dessa concepo

    passou a ser identificada com a capacidade de resolver problemas filosficos. A

    verso norte-americana da profissionalizao da atividade filosfica estaria

    relacionada, embora no exclusivamente, chegada dos professores europeus

    fugidos do clima incerto do entre-guerras Carnap, Hempel, Feigel, Reichenbach

    que traziam consigo a associao entre lgica, matemtica e filosofia

    caracterstica do positivismo lgico e a idia de que os desenvolvimentos recentes

    nos dois primeiros campos prometiam fazer do terceiro uma atividade acadmica

    mais respeitada isso , mais cientfica e menos especulativa. Fazer historia da

    filosofia passou a ser visto como uma atividade no melhor dos casos subsidiria e,

    no pior, intil uma repetio estril de idias equivocadas:

    14

  • Por volta de 1960, um novo conjunto de paradigmas filosficos estava em voga. Um novo tipo de

    formao em filosofia se apresentava no qual Dewey e Whitehead, heris das geraes

    anteriores, j no eram lidos, no qual a histria da filosofia foi claramente desprestigiada, e no qual

    o estudo de lgica assumiu a importncia que antes era atribuda ao estudo de lnguas (...) Como

    resultado, a maior parte dos professores universitrios americanos assimilou alguma verso da

    imagem de Reichenbach da historia da filosofia. Eles foram educados acreditando que tinham

    sorte em poder participar do incio de uma nova era filosfica a Era da Anlise, na qual as coisas

    finalmente seriam feitas de maneira apropriada. Eles eram recorrentemente levados a desprezar o

    tipo de pessoa que estava mais interessada na histria da filosofia, ou mais genericamente na

    histria do pensamento, do que em resolver problemas (RORTY [1981] 1982: 215)

    Essa suposta Era da Anlise, ento, trazia consigo uma imagem da filosofia que

    dependia de trs pressupostos bsicos, que justificariam suas pretenses de

    cientificidade:

    (1) A crena na existncia de problemas filosficos (recorrentes, isto ,

    naturais, no-histricos, necessrios) que tm origem na atividade

    cientfica, isto , problemas epistemolgicos;

    (2) A crena no s na possibilidade de se construir um mtodo rigoroso e

    seguro para resolver esses problemas, mas tambm em que esse mtodo

    j estaria disponvel, ainda que precisando de desenvolvimentos (lgica e

    anlise lingstica);

    (3) A crena de que os resultados da atividade de soluo de problemas

    filosficos, quando devidamente conduzida segundo os mtodos

    15

  • apropriados, desembocaria em um acordo racional definitivo em torno da

    soluo para os problemas em questo.

    Rorty, evidentemente, desconfia dessa imagem da atividade filosfica como

    cincia. Sua estratgia crtica ser dupla: de um lado, enfrentar o adversrio em

    seu campo, procurando mostrar as inconsistncias internas do projeto analtico; de

    outro, em um esprito historicista, deweyano, procurar mostrar como a tradio

    analtica vtima de um auto-engano gerado pela ignorncia voluntria de sua

    filiao com determinados pressupostos metafilosficos que, segundo revelar

    uma abordagem histrica, compem uma concepo possvel, entre inmeras

    outras, da atividade filosfica. Essa abordagem histrica tem sua importncia por

    colocar em perspectiva as pretenses universalistas da filosofia cientfica e, por

    extenso, da filosofia moderna em geral.

    A adoo da anlise lingstica como mtodo filosfico teria trazido no

    apenas prestgio acadmico3 como tambm a esperana para toda uma gerao

    de filsofos de que a filosofia teria sido finalmente colocada no caminho seguro

    da cincia. A expresso filosofia lingstica (linguistic philosophy), recorrente no

    artigo Metaphilosophical difficulties of linguistic philosophy (RORTY 1967) indica,

    segundo a definio de Rorty, a concepo de que problemas filosficos so

    problemas que podem ser resolvidos (ou dissolvidos) ou por uma reforma da

    linguagem, ou por ampliar nosso conhecimento sobre a linguagem que utilizamos

    atualmente (RORTY 1967: 3). A virada lingstica expresso utilizada para 3 Essa questo ser retomada no ltimo captulo deste trabalho.

    16

  • indicar a mudana paulatina, iniciada no sculo XIX e que tomou impulso no

    sculo XX na filosofia, em direo a essa concepo introduziu a idia segundo

    a qual a anlise lingstica seria definitivamente capaz (ou definitivamente

    incapaz, e nesse caso a filosofia deveria ser abandonada como um produto

    cultural dispensvel) de servir como um mtodo adequado para a soluo dos

    problemas filosficos.

    Para Rorty, porm, o sucesso dessa tentativa de cientifizao da filosofia

    dependeria de seus adeptos serem capazes de mostrar que o mtodo de anlise

    lingstica neutro no sentido de que no repousa sobre nenhuma tese filosfica

    substancial que precisasse, ela prpria, de demonstrao (a fim de evitar

    circularidade) e que esse mtodo capaz de conduzir a acordos racionais em

    torno da soluo de problemas filosficos. Para Rorty, nem uma coisa nem outra,

    no final das contas, acontecem.

    Quais seriam ento os pressupostos metafilosficos no-assumidos que

    contaminariam mais essa tentativa de resolver os problemas filosficos

    tradicionais? E seriam os critrios de sucesso estabelecidos realmente capazes de

    promover um consenso racional em torno da soluo desses mesmos problemas?

    O conceito-chave da tradio analtico-lingistica , talvez mais at do que

    a noo de linguagem4, a noo de anlise. O que todos os filsofos que apostam

    na virada lingstica precisam fazer, na avaliao de Rorty e o que no

    conseguem fazer de forma satisfatria, ao menos do ponto de vista de um projeto

    filosfico cientificista oferecer uma definio de anlise ou, ao menos,

    4 Como veremos, essa tradio pode ser dividida em duas linhagens, uma que defende a necessidade da construo de uma linguagem ideal ou formal e outra que defende a necessidade de um esclarecimento filosfico da prpria linguagem ordinria ou natural.

    17

  • critrios que permitam saber se uma expresso lingstica foi devidamente

    analisada. Em suma: se para os filsofos de orientao lingstica os problemas

    filosficos podem ser resolvidos por meio de uma anlise das expresses

    lingsticas, ento a tarefa central, antes que se possa realmente fazer filosofia,

    isto , abordar os problemas clssicos, construir uma noo satisfatria de

    anlise.

    Podemos nos restringir a resumir duas tentativas de formulao de uma

    noo de anlise que Rorty reconstri e critica: primeiro, o projeto de Rudolf

    Carnap da definio de uma sintaxe formal, que pode servir como uma forma de

    analisar expresses e decidir a respeito de seu sentido ou sua falta de sentido; e,

    em segundo lugar, a estratgia de A. J. Ayer de construir regras semnticas que

    possam igualmente submeter expresses da linguagem ordinria anlise de seu

    sentido.

    A crtica de Rorty incide menos sobre aspectos pontuais da teoria de

    Carnap do que sobre seus pressupostos metafilosficos. Carnap aposta no valor

    de uma linguagem ideal na medida em que ela possibilitaria mostrar se uma

    expresso tem ou no sentido. Um dos alvos de Carnap seriam os enunciados da

    metafsica. Carnap diferencia a sintaxe lgica das expresses lingsticas

    determinada pelo sistema de regras formais da linguagem de suas formas

    histricas, a forma como as expresses so de fato utilizadas, seja pelos

    filsofos, seja pelo senso comum. Uma expresso uma afirmao da metafsica,

    por exemplo tem sentido se puder ser reconstruda adequadamente segundo os

    critrios dessa sintaxe lgica. Cabe ao filsofo (ou ao praticante de lgica da

    cincia, como Carnap preferia se referir filosofia) descobrir essa sintaxe formal

    18

  • e proceder anlise do conjunto das expresses suspeitas de serem vazias de

    sentido.

    Ayer, por sua vez, aposta em um procedimento semelhante, embora

    descarte a necessidade da construo de uma linguagem ideal. Prope que os

    problemas filosficos devem ser avaliados segundo a regra: uma expresso no

    tem sentido se no podemos estabelecer um mtodo para sua verificao (ou

    confirmao), mtodo que deve ter o rigor da deduo matemtica ou da

    confirmao emprica.

    O alcance desses recursos, porm, julga Rorty, limitado, e se restringe a

    questes tcnicas internas a essas teorias lingsticas. O projeto de usar esses

    recursos na soluo (ou dissoluo) de problemas filosficos fica comprometido

    pela confuso acerca dos critrios que definem se uma expresso foi devidamente

    analisada: a mera impossibilidade de discutirmos algumas questes tradicionais

    da filosofia nessa linguagem purificada no implica que essas questes sejam

    sem sentido. O critrio segundo o qual os problemas exaustivamente abordados

    pelos filsofos seriam sem sentido apenas por no poderem ser discutidos nessa

    nova linguagem no satisfatrio. Deixando de lado, novamente, os detalhes das

    diversas propostas de construo de uma noo de anlise, todas elas pecariam

    por pressupor que a tarefa da filosofia seria resolver, definitivamente, problemas

    filosficos ou ento e, no mais, esse parece ter sido o resultado mais recorrente

    deste tipo de abordagem dissolver os problemas por denunciar sua falta de

    sentido. De que serve uma linguagem que no nos permitiria discutir os problemas

    que tm sido tradicionalmente discutidos? Ironicamente, Rorty pergunta: uma

    19

  • linguagem que no nos permitisse praticar a paleontologia seria, apenas por isso,

    uma linguagem purificada?

    Um dos valores, talvez, deste tipo de posio seria a contestao da idia

    segundo a qual os problemas filosficos so reais, por serem produtos naturais

    ou do senso comum ou da cincia; problemas aos quais no se poderia escapar

    justamente porque tm sua origem no no interior do discurso filosfico, mas fora

    dele, e a filosofia apenas indicaria maneiras de abord-los apropriadamente. Na

    formulao de alguns autores ligados filosofia lingstica (o caso paradigmtico

    o primeiro Wittgenstein), esses problemas teriam origem nas imperfeies da

    linguagem. Uma linguagem reformulada seria capaz de evitar esses problemas:

    segundo essa viso, dizer que problemas filosficos so problemas de

    linguagem simplesmente dizer que so questes que nos incomodam porque,

    historicamente, falamos a lngua que falamos (RORTY 1967: 7)5. O projeto de

    reformar a linguagem em direo a uma dissoluo dos problemas andinos que

    os filsofos teimam em tentar resolver indicaria uma postura metafilosfica

    interessante, desontologizando, por assim dizer, o discurso filosfico em direo

    a uma filosofia definitivamente ps-metafsica, que no aposta na existncia de

    seus conceitos e problemas como o discurso religioso aposta na existncia de

    deuses e entidades sobrenaturais. O beb, como costuma acontecer, no entanto,

    vai pro ralo junto com a gua da bacia: no final, sobra apenas a idia segundo a

    qual a filosofia, depois da purificao da linguagem, revela-se um monumental

    5 Uma resposta a essa tentativa de dissolver a prpria atividade filosfica seria dizer que a filosofia

    uma atividade que tem valor por sim mesma; mas o esprito cientificista dessa corrente filosfica

    exclui por ora essa opo.

    20

  • equvoco. Rorty prope que da constatao da contingncia dos problemas

    filosficos ns retiremos outras concluses.

    Antes de passarmos s primeiras formulaes de Rorty a respeito do futuro

    da filosofia depois da derrocada dessa ultima verso do projeto filosfico

    cientificista, esboadas j no artigo de 1967, consideremos a defesa explcita que

    Michael Dummett, no artigo Can analytical philosophy be sistematic, and ought it

    to be?6, de 1975, faz do projeto analtico e de suas perspectivas cientificizantes

    para a filosofia.

    Para Dummett, apesar de alguns desvios de percurso em relao rota

    segura esboada por Frege, a filosofia analtica conseguiu estabelecer para si um

    programa de pesquisa e o esboo de um mtodo que a teriam colocado em um

    caminho promissor. Considerando que filosofia analtica , em uma definio

    sucinta, filosofia ps-fregeana (DUMMETT [1975] 1987: 194) e que a conquista

    mais relevante do prprio Frege teria sido ter alterado nossa concepo de

    filosofia, e ter substitudo, como ponto de partida da disciplina, a epistemologia por

    aquilo que chamava de lgica (idem), Dummett cr que, apesar de Frege no

    ter, de fato, completado a tarefa de nos fornecer nem mesmo um esboo geral de

    uma teoria da significao do tipo que defendia (idem: 202), teria ainda sim

    conseguido provar que a filosofia da linguagem o fundamento de toda a filosofia

    porque apenas pela anlise da linguagem que podemos analisar o pensamento

    (ibidem: 195).

    A convico de Dummett depende, explicitamente, de sua opo pelo

    programa filosfico fregeano em detrimento daquilo que considera ser o programa 6 Republicado em BAYNES et alli, 1987, p. 189-215. As tradues dos trechos citados so minhas.

    21

  • do segundo Wittgenstein. Dummett acredita que a proposta de Wittgenstein de

    partir de uma concepo de linguagem como jogo cujo uso envolve elementos

    lingsticos e no-lingsticos inviabiliza a possibilidade de uma teoria geral da

    linguagem. A mistura de semntica com pragmtica (no sentido lingstico, isso ,

    como uma teoria dos usos contextualizados da linguagem) impede a definio de

    um campo lingstico puro e, para Dummett, uma teoria da linguagem que fosse

    merecedora do nome deveria atentar apenas para aqueles princpios gerais

    governando o uso de sentenas da linguagem (p. 206):

    Se, assim, existem tais princpios gerais dos quais todo falante tem um domnio implcito, e que

    servem para conferir s palavras de uma linguagem seus sentidos variados, difcil ver como pode

    haver qualquer obstculo terico explicitao desses princpios; e uma formulao explcita

    desses princpios cujo domnio implcito constitui o domnio de uma linguagem seria, precisamente,

    uma teoria completa do sentido para a linguagem (p. 207).

    Por essa razo, Dummett cr que, qualquer que seja a herana de

    Wittgenstein, ela no servir para dar continuidade a um programa coerente de

    pesquisa filosfica:

    Isso significa dizer que os jogos de linguagem elaborados por Wittgenstein a fim de oferecer uma

    explicao de alguns pequenos fragmentos de linguagem no parecem ser um modelo para uma

    explicao sistemtica de uma linguagem toda; e se nos finais das contas forem, o prprio

    Wittgenstein no nos mostrou como deveramos nos guiar por eles. (idem)

    22

  • A preferncia de Dummett por Frege em detrimento de Wittgenstein se

    deve, ento, ao fato de o primeiro oferecer uma razo para acreditar no apenas

    que a filosofia analtica, em sua verso lingstica, pode ser conduzida de forma

    cientfica com a elaborao explcita de programas e mtodos mas tambm

    que a filosofia da linguagem , ela prpria, filosofia primeira, o fundamento no

    apenas de toda filosofia, mas tambm de outros campos do conhecimento:

    Se minha anlise correta, a tarefa mais urgente que os filsofos so agora chamados a cumprir

    elaborar aquilo que tenho chamado de uma teoria sistemtica do sentido, quer dizer, uma

    explicao sistemtica do funcionamento da linguagem (...) (DUMMETT [1975] 1987: 210)

    que deve ser assumida como um empreendimento coletivo, da mesma maneira

    que os avanos nas cincias so tambm resultado de esforos coletivos (idem,

    ibidem). E, irradiando desde a pesquisa sobre a linguagem, esse carter cientfico

    h de ser assumido pelos demais ramos da filosofia:

    Esses comentrios se aplicam diretamente apenas filosofia da linguagem, e no a outros ramos

    da filosofia; mas eu falo na condio de um membro da escola analtica de filosofia, a respeito da

    qual j afirmei ser o lema fundamental a idia de que a filosofia da linguagem o fundamento para

    todo o resto da filosofia (DUMMETT [1975] 1987: 210, grifos meus),

    uma vez que

    23

  • a correo de uma anlise levada a cabo em outra parte da filosofia no pode ser plenamente

    determinada at que saibamos com razovel certeza qual forma uma teoria correta do sentido para

    a nossa linguagem deve assumir. (DUMMETT [1975] 1987: 211)

    Dummett, no entanto, termina com a ressalva cautelosa:

    Se, uma vez que tenhamos obtido acordo em torno de uma teoria do sentido, as outras partes da

    filosofia assumiro um carter cientfico semelhante, ou se continuaro a ser exploradas apenas da

    maneira menos sistemtica que tem sido tradicional na filosofia h sculos, no posso dizer.

    (DUMMETT [1975] 1987: 211)

    Deixando de lado certa circularidade do argumento o estilo de Frege de

    fato mais adequado caso se deseje conceber a filosofia nos moldes da cincia

    bastante claro que Dummett assume a perspectiva de uma filosofia cientfica nos

    moldes esboados por Reichenbach em 1951 e j em funcionamento, por assim

    dizer, desde a aurora da filosofia analtica. curioso, no entanto, que Dummett

    no tire conseqncias positivas de uma diferena flagrante no estilo de

    Wittgenstein: se Wittgenstein apresenta um esboo do que pode ser considerada

    uma teoria da linguagem, ao mesmo tempo grande parte de sua obra voltada a

    desestimular os filsofos que desejam fazer da filosofia um empreendimento

    sistemtico, cientfico. Falando do estilo de Wittgenstein, Dummett diz:

    Esse estilo foi o resultado no apenas de sua personalidade nica, mas tambm de suas doutrinas

    gerais a respeito da natureza da prpria filosofia. Como expliquei anteriormente, essas doutrinas

    gerais se apiam na convico de que a filosofia no se ocupa de nenhum tpico a respeito do

    qual uma teoria sistemtica seja possvel. (DUMMETT [1975] 1987: 209)

    24

  • Para Richard Rorty, justamente a insistncia em querer fazer da filosofia

    uma atividade sistemtica que caracteriza no apenas a filosofia analtica, mas

    toda a tradio moderna de filosofia cientfica. Ao contrrio do que afirma

    Dummett (para quem Frege, em detrimento no s de Wittgenstein, mas tambm

    de Carnap e Austin, ofereceria o ponto de partida definitivo em direo a uma

    filosofia cientfica), para Rorty um dos indcios da inconsistncia dessas tentativas

    o fato de que os esforos de vrias dcadas para definir um nico paradigma a

    ser aceito e compartilhado em um empreendimento coletivo resultaram na

    existncia de uma pluralidade de paradigmas, no mais das vezes incompatveis

    entre si:

    Nas reas da tradio analtica que se sobrepem - epistemologia, filosofia da linguagem, e

    metafsica existem hoje tantos paradigmas quanto departamentos de filosofia. (RORTY [1981]

    1982: 216)

    Rorty associa esse projeto de cientifizao da filosofia a uma tendncia

    mais antiga, remontando ao sculo XVIII, de se tentar fazer da filosofia uma

    disciplina autnoma, com seu prprio objeto e mtodo. O modelo, evidentemente,

    a tentativa de Kant de fazer, para a filosofia, aquilo que Newton teria feito para a

    fsica encontrar seus fundamentos e ao mesmo tempo constituir um tribunal da

    razo dedicado a avaliar toda pretenso de conhecimento. Na epistemologia

    enquanto disciplina pura e fundamental, a filosofia teria encontrado o seu objeto

    exclusivo; na anlise transcendental, o seu mtodo. Essa conquista teria

    25

  • significado a constituio da filosofia como um Fach, uma disciplina autnoma,

    pura:

    Desde que a filosofia se transformou em uma disciplina autoconsciente e profissionalizada, pela

    poca de Kant, os filsofos tm tido prazer em explicar o quo diferente seus assuntos so de

    outros menos importantes, como as cincias, as artes e a religio. Filsofos esto sempre

    afirmando terem descoberto mtodos que no exigem pressupostos, ou que so perfeitamente

    rigorosos, ou transcendentais, ou de qualquer maneira mais puros do que aqueles de no-filsofos.

    (RORTY, [1976] 1982, p. 19)

    Para Rorty, um dos filsofos que fornece uma rota de escape a essa auto-

    imagem da filosofia que, como vimos no exemplo da tradio analtica, acaba

    por gerar mais confuso do que consenso a respeito de quais seriam esses

    assuntos e mtodos o prprio Wittgenstein. A leitura de Rorty enfatiza

    justamente aquilo que, para Dummett, era mera idiossincrasia: sua recusa em ver

    na filosofia um empreendimento sistemtico, cientfico.

    Em Keeping philosophy pure: an essay on Wittgenstein (RORTY [1976]

    1982: 19-36), Rorty procura dar sentido idia segundo a qual a obra de

    Wittgenstein teria significado o fim da filosofia. Para Rorty, as intenes

    teraputicas de Wittgenstein teriam o propsito de oferecer uma perspectiva

    segundo a qual os problemas tradicionais da filosofia, e o anseio dos filsofos por

    solues definitivas destes problemas, seriam vistos como resultados de uma

    certa imagem do mundo e do conhecimento que nos tm mantido cativos h

    alguns sculos: Dizer que as Investigaes filosficas podem dar um fim

    filosofia significa dizer que esse livro pode, de alguma maneira, ajudar-nos a nos

    26

  • livrarmos da imagem que nos mantm cativos a imagem do homem que gera

    os problemas filosficos. (RORTY [1976] 1982: 32). Assim,

    para deixar claro o que a possibilidade de um fim da filosofia significa, e para entender o anseio por

    uma filosofia pura (...) necessrio pensar a filosofia como o nome do estudo de certos problemas

    definidos e permanentes. (idem)

    Esse tipo de abordagem da filosofia que Rorty, no presente caso, atribui a

    Wittgenstein passa a introduzir na argumentao de Rorty contra a tradio

    filosfica moderna cientificista um vis historicista. No apenas suas

    inconsistncias sua incapacidade de se adequar a seus prprios critrios de

    rigor e clareza mas tambm sua especificidade histrica, sua origem em uma

    determinada imagem contingente da filosofia, mostram a fragilidade do projeto a

    que a tradio analtica quer dar seqncia. Voltaremos a esse tipo de crtica com

    mais cuidado no segundo captulo desta dissertao, que tratar, entre outras

    coisas, da reconstruo histrica da tradio epistemolgica moderna que Rorty

    oferece em Philosophy and the mirror of nature, obra de 1979. Vale ressaltar, no

    entanto, que por meio da disputa pelo sentido da obra de alguns filsofos

    Wittgenstein, no caso, mas tambm Heidegger e Dewey em outros momentos

    que Rorty constri grande parte de sua crtica tradio moderna.

    Por ora, nos ocuparemos ainda de duas conseqncias da crtica de Rorty

    filosofia analtica, em particular, e da filosofia cientfica, em geral. Em primeiro

    lugar, veremos como Rorty considera igualmente frgil a tentativa de vincular, na

    forma de uma tentativa de soluo, problemas filosficos particulares,

    27

  • profissionais, e problemas a que chamaremos, por hora, existenciais. A crtica a

    essa vinculao feita no contexto da anlise que Rorty faz da obra de Stanley

    Cavell e o problema do ceticismo. Essa crtica refora a desconfiana de Rorty

    com a idia de solucionar problemas filosficos e, mais especificamente,

    aprofunda o questionamento da centralidade - ou a inevitabilidade das

    questes epistemolgicas tradicionais para a filosofia. Em segundo lugar, veremos

    como, em um artigo sobre John Dewey, Rorty radicaliza sua crtica filosofia

    cientfica ao estend-la a toda tentativa construtiva na filosofia. Esse segundo

    ponto dar ensejo a uma considerao a respeito dos limites da crtica de Rorty

    tradio filosfica moderna e, mais especialmente, seus efeitos: tanto a recusa a

    toda inclinao cientfica (mesmo que renovada e livre das pretenses de rigor e

    certeza caractersticas da tradio analtica) quanto a recusa do papel construtivo,

    de elaborao terica, da filosofia, far com que Rorty proponha uma nova

    imagem da filosofia que corre o risco de retirar dela algumas de suas tarefas

    fundamentais. Esse tipo de posio significar a adoo de uma forma particular

    de pragmatismo, como veremos, e de uma concepo de filosofia que a

    desvincula de toda tentativa de construo de uma teoria da racionalidade7.

    At agora, insistimos mais na crtica de Rorty ao que seria o segundo

    pressuposto da filosofia cientfica (exposto acima), a saber, que possvel

    desenvolver um mtodo rigoroso de soluo de problemas filosficos. A crena,

    porm, na existncia desses problemas como problemas naturais, resultantes da

    7 Em um certo sentido, a crtica de Rorty idia de um mtodo filosfico puro, a-histrico e infalvel, tpico da filosofia analtica, j em si a recusa de uma concepo de racionalidade calcada no mtodo cientfico.

    28

  • interao do homem com o mundo, que seriam, no caso da tradio analtica,

    principalmente epistemolgicos, tambm alvo de crtica. Como indicamos, Rorty

    dar preferncia a uma abordagem historicista dos assim chamados problemas

    filosficos, procurando entender esses problemas antes como fruto de uma

    determinada imagem do mundo histrica e contingentemente constituda do que

    de uma relao natural do homem com o mundo.

    A crtica de Rorty a Stanley Cavell, em Cavell on skepticism (RORTY

    [1980-81] 1982: 176-190) tem uma dupla funo: de um lado, Rorty insiste em sua

    crtica idia de solucionar problemas filosficos e, de outro, ataca a tese da

    naturalidade dos problemas filosficos.

    No prefcio a Consequences of pragmatism, Rorty j havia levantado

    objees quilo que chamou de realismo intuitivo. Essa corrente, se assim pode

    ser chamada, e que tem em Thomas Nagel um de seus representantes, se

    caracterizaria por atribuir filosofia a responsabilidade de elaborar explicaes

    tericas, filosficas, para as intuies que brotam, naturalmente, da interao

    (cognitiva, em especial) do homem com o mundo. Exemplos dessas intuies

    seriam a existncia de um mundo real para alm das percepes (realismo versus

    ceticismo), a intuio de que a verdade mais do que justificao, etc. A crtica

    de Rorty consiste em identificar nessas supostas intuies o resultado de uma

    determinada tradio intelectual que nos acostumou a ver, nesses problemas,

    problemas no apenas naturais como tambm fundamentais:

    O que precisa realmente ser debatido (...) no se temos intuies como verdade mais do que

    assertibilidade, ou existe algo mais alm de estados cerebrais ou existe um embate entre a

    29

  • fsica moderna e nosso sentimento de responsabilidade moral. claro que temos tais intuies.

    Como poderamos no ter? Ns fomos educados no interior de uma tradio intelectual construda

    em torno de tais afirmaes assim como uma vez fomos educados no interior de uma tradio

    construda em torno de afirmaes como se Deus no existe, tudo permitido, a dignidade do

    homem consiste em seu vnculo com uma ordem sobrenatural, ou no se deve escarnecer de

    coisas sagradas. Mas uma petio de princpio (...) dizer que devemos construir uma viso

    filosfica que capture tais intuies (...) mais urgente que tentemos deixar de ter tais intuies,

    que desenvolvamos uma nova tradio intelectual. (RORTY 1982: xxx).

    E, mais adiante:

    (...) a afirmao de que as questes que o sculo dezenove considerou os problemas centrais da

    filosofia so profundas apenas a afirmao de que voc no ser capaz de compreender um

    determinado perodo da histria da Europa se voc no conseguir imaginar o que preocupar-se

    com tais questes. (idem, xxxi)

    Esse tipo de abordagem da filosofia, explicitamente historicista8, prepara o

    terreno para a crtica de Rorty a Cavell. Para Cavell, um dos problemas

    fundamentais da filosofia seria o problema do mundo externo (RORTY [1980-81]

    1982: 177). Diz Rorty:

    Cavell vezes parece oferecer o seguinte argumento:

    Wittgenstein to importante quanto Rousseau ou Thoreau or Kierkegaard ou Tolstoy (...)

    Wittgenstein passou bastante tempo discutindo problemas levantados por pessoas que diziam

    duvidar da existncia de um mundo exterior.

    8 Mais adiante, pretendo argumentar que o historicismo de Rorty kuhniano, e que Rorty retira dele concluses cujas conseqncias so problemticas.

    30

  • Ento melhor que levemos essas dvidas a srio. (RORTY [1980-81] 1982: 117)

    Para Rorty, essa no seria uma razo suficiente para considerar o problema

    como um problema necessariamente relevante, fundamental. Estivesse

    Wittgenstein rodeado, no ambiente intelectual em que produziu sua obra, no de

    professores de filosofia preocupados com a ameaa do ceticismo mas com

    professores preocupados com o ponto de vista transcendental, ele

    provavelmente teria escrito praticamente os mesmos livros, e dirigido a nossa

    ateno s mesmas coisas (RORTY [1981-80] 1982: 117). Cavell, no entanto,

    veria no problema do mundo externo tanto uma questo de longo alcance

    tocando em inquietaes humanas profundas quanto uma questo que caberia

    ao filosofo profissional resolver:

    [Cavell parece ter] uma atitude ambgua em relao ao lugar cultural da filosofia acadmica. s

    vezes ele usa o termo filosofia em um sentido amplo, significando a crtica que uma cultura

    produz de si mesma ou a educao de adultos. s vezes ele o usa em um sentido profissional

    estreito, segundo o qual razovel dizer que o ceticismo epistemolgico central para a filosofia

    (...) (RORTY [1980-81] 1982: 179)

    Para alm, porm, dessa desqualificao historicista da relevncia do

    problema do mundo exterior, Rorty cr que o equvoco de Cavell estaria em

    tentar relacionar trs questes:

    (a) O ceticismo do filsofo profissional criado por aquilo que Reid chamou de teoria das

    idias (a teoria que analisa a percepo em termos de dados imediatos e certos);

    31

  • (b) A preocupao romntica, kantiana, a respeito de se as palavras que usamos possuem

    qualquer relao com a maneira como o mundo em si mesmo;

    (c) O sentimento existencialista de precariedade e arbitrariedade da existncia, da

    impossibilidade de conhecer o mundo e agir sobre ele.

    (RORTY [1980-81] 1982: 179-180, modificado)

    Para Cavell, e para a tradio analtica, a soluo do primeiro problema

    tarefa que deve ser delegada ao especialista encarregado, isto , o filsofo

    profissional teria como conseqncia a cura das preocupaes descritas em

    (b) e (c). Rorty, porm, tanto por no aceitar a noo de soluo de problemas

    filosficos (que seria um resqucio da concepo cientfica de filosofia) quanto por

    ver tanto em (a) quanto em (b) e (c) o produto de uma determinada imagem do

    mundo, de uma determinada tradio intelectual, no admite a tentativa de Cavell

    de curar, nem ao mesmo de justificar, o sentimento de (b) e (c):

    O que precisamos entender como possvel chegar a isso, como seria possvel conectar (a)

    com (c), como qualquer pessoa poderia pensar que questes retiradas de livros-texto

    [textbooks] ingleses de epistemologia esto intimamente ligadas com o sentimento de

    contingncia de tudo. Meu desconforto com o tratamento que Cavell d ao ceticismo pode ser

    resumido dizendo que seu livro nunca esclarece essa possibilidade para algum que j no

    creia nela de antemo. (RORTY [1980-81] 1982: 185)

    O exemplo do tratamento de Stanley Cavell que Rorty oferece no artigo Cavell

    on skepticism mostra que Rorty passa da crtica interna filosofia analtica

    enquanto ltima verso da filosofia cientfica (indicando que essa tradio no

    consegue colocar-se altura de suas prprias exigncias de rigor e certeza) para

    32

  • uma abordagem historicista, segundo a qual apenas um determinado contexto

    intelectual no caso, o contexto da filosofia moderna que d origem quilo que

    se convencionou chamar de problemas fundamentais da filosofia.

    Mas o desconforto de Rorty com as pretenses de cientificidade da filosofia

    moderna ir mais longe, e se estender a toda proposta filosfica construtiva que

    no seja meramente uma crtica histrica teraputica, segundo-

    wittgensteiniana. Em Deweys metaphysics (RORTY [1977] 1982: 72-89), Rorty

    pretende separar o bom Dewey o Dewey historicista de The quest for certainty,

    Reconstruction in philosophy e Experience and nature do Dewey construtivo,

    terico de Psychology as philosophical method. Rorty deseja opor, de um lado,

    a parte da obra de Dewey que

    consiste, basicamente, em oferecer um tratamento da gnese histrica e cultural dos problemas

    tradicionalmente chamados metafsicos, combinado a vrias sugestes de abordagens que,

    acredita Dewey, nos ajudaro a perceber o carter irreal desses problemas (ou ao menos, a

    possibilidade de evit-los) (...) Assim, possvel ver seu livro [Experience and nature] no como a

    proposta de uma metafsica emprica, mas como um estudo histrico-sociolgico do fenmeno

    chamado metafsica. (RORTY [1977] 1982: 72-73)

    com uma parte que construtiva, em que Dewey procura ingressar no campo da

    metafsica e oferecer algo como um sistema:

    Na maior parte de sua vida, no entanto, Dewey no teria recusado essa assimilao [de sua obra

    tentativa de construo de uma metafsica emprica]. Para bem ou para mal, ele queria elaborar

    33

  • um sistema metafsico. Ao longo de sua vida, ele oscilou entre uma postura teraputica em relao

    filosofia e outra postura bastante diversa segundo a qual a filosofia deveria tornar-se cientfica

    e emprica e fazer algo srio, sistemtico, importante e construtivo. (RORTY [1977] 1982: 73)

    Dewey teria, na anlise de Rorty, incorrido na mesma iluso que cativaria

    os filsofos analticos: a esperana de que um mtodo cientfico, rigoroso,

    emprico, viabilizasse a soluo ou a dissoluo dos problemas tradicionais da

    filosofia. Dewey teria considerado fundamental, nas palavras de Rorty, construir

    uma noo filosfica dos traos gerais da existncia como demarcador do limite,

    na tradio filosfica, entre aquilo que faz e aquilo que no faz sentido ou que

    deve ser preservado ou desconstrudo como equvoco9. Rorty acha difcil

    conciliar a afirmao devastadora de Dewey segundo a qual a filosofia assumiu

    para si como funo um conhecimento da realidade. Isso faz dela um rival em vez

    de um complemento cincia com a sua preocupao de atribuir filosofia a

    tarefa de descobrir os traos gerais da existncia.

    Rorty oferece como exemplo dessa inclinao construtiva o artigo do

    jovem Dewey Psychology as philosophical method, no qual o filsofo afirma

    que a psicologia o mtodo acabado da filosofia:

    (...) [esse tipo de afirmao] expe uma falha na obra de Dewey: seu hbito de anunciar um novo e

    corajoso programa positivo quando tudo o que ele oferece, e tudo que ele precisa oferecer, a

    crtica da tradio. Psicologia como mtodo foi apenas o primeiro de uma srie de slogans

    retumbantes, mas vazios, que Dewey empregou. (RORTY [1977] 1982: 78)

    9 A semelhana com o Wittgenstein do Tractatus evidente, e ser por razes semelhantes que Rorty dar preferncia ao segundo Wittgenstein menos terico e mais teraputico.

    34

  • De fato, mesmo Dummett teria reconhecido que os filsofos partidrios da

    filosofia cientfica teriam dedicado seu tempo mais elaborao de projetos

    revolucionrios de mtodo filosfico do que ao trabalho real de aplic-lo aos

    problemas pertinentes. Mas a razo para isso, segundo Dummett, seria mais a

    imaturidade da disciplina do que sua incapacidade em chegar a esse mtodo

    capaz de unificar os esforos dos filsofos. Rorty, porm, assume uma posio

    mais radical: a pluralidade de programas de criao de uma filosofia

    verdadeiramente cientfica, e a esterilidade de todos eles, foram justamente ao

    abandono de toda inteno construtiva na filosofia, delegando disciplina a tarefa

    de crtica da tradio.

    No possvel, no contexto desta dissertao, reconstruir toda a

    argumentao de Rorty contra autores como Dummett, Cavell e Dewey. O mais

    importante para a presente argumentao , porm, justamente como a discusso

    desses autores ajuda a compreender a recusa final de Rorty de toda inteno

    cientfica na filosofia. Para retomar uma expresso que utilizamos no incio desse

    captulo, Rorty recusa filosofia o papel de formuladora de uma teoria da

    racionalidade por polmica e falvel que seja. Consideremos, ento, alguns

    pressupostos e conseqncias problemticos dessa recusa.

    Em primeiro lugar, Rorty parece sugerir que a perda da centralidade da filosofia

    como fundamentao das cincias centralidade que foi mais uma pretenso do

    que um fato implica tambm o abandono de qualquer ideal de cientificidade,

    qualquer pretenso construtiva em direo a uma teoria da racionalidade. Rorty

    35

  • oferece uma boa razo para essa recusa (que comentaremos, com ressalvas

    abaixo), mas tambm existe uma fragilidade nessa posio.

    A crise da filosofia moderna enquanto disciplina autnoma que se ocupa de

    uma determinada forma de conhecimento do mundo privilegiando, no recorte de

    Rorty, questes epistemolgicas , assim como a decadncia de algo que poderia

    ser chamado a era dos sistemas filosficos10 significa, de fato, a perda do

    privilgio epistmico, para usar a expresso de Habermas (HABERMAS 1992: 6)

    que a filosofia moderna, em seu perodo clssico, reclamou para si. De fato, a

    noo de teoria pressuposta como conhecimento verdadeiro da totalidade

    pela filosofia moderna foi colocada em questo pelo desenvolvimento de uma

    concepo procedimental de racionalidade cientfica. Como aponta Habermas:

    No perodo moderno, o conceito de teoria perde [sua] ligao com o evento sagrado (...) O que se

    mantm a interpretao idealista do distanciamento em relao ao contexto de interesses e da

    experincia cotidiana: na tradio universitria alem que chega at Husserl, o enfoque metdico

    destinado a imunizar o cientista contra os preconceitos locais supervalorizado e interpretado

    como sendo o do primado, internamente fundamentado, da teoria frente prxis. No desprezo pelo

    materialismo e pelo pragmatismo sobrevive algo da concepo absolutista de teoria, que no se

    eleva somente sobre a experincia e das disciplinas cientficas especializadas mas que tambm

    pura no sentido de ter sido purgada, de forma catrtica, de todos os traos de sua origem terrena

    (...) A filosofia moderna da conscincia sublima a independncia da conduo terica da vida em

    uma teoria que absoluta e que fundamenta a si mesma. (HABERMAS, 1992: 33)

    10 Dummett (op. cit.) distingue dois sentidos em que a filosofia pode ser sistemtica: primeiro, no sentido tradicional dos grandes sistemas filosficos do passado (Spinoza, Kant); segundo, no sentido de uma atividade conduzida segundo mtodos compartilhados pela comunidade de investigadores. Para Dummett a filosofia deve ser sistemtica em ambos os sentidos, como atesta a obra de Frege. Rorty, ao contrrio, rejeita a noo de sistema em ambos os sentidos.

    36

  • Habermas faz coro crtica de Rorty idia no apenas de uma

    fundamentao ltima de todo conhecimento pela filosofia como tambm

    pretenso de construo de uma teoria autofundamentada prpria da tradio

    analtica, cujas aporias Rorty exps no artigo de 1967. Nesse sentido, seria

    correto dizer que, de fato, aquela tradio que Rorty chama de filosofia cientfica

    se v problematizada pela decadncia dessa noo forte de teoria. O

    desenvolvimento das cincias empricas coloca em questo o lugar privilegiado da

    filosofia, ao apresentar, no lugar de um pensamento auto-referido e fundamentado

    em si, uma noo de racionalidade:

    O pensamento totalizador que tem como objetivo o uno e o todo foi posto em questo por um novo

    tipo de racionalidade procedimental, que se imps desde o sculo XVII com o aparecimento do

    mtodo experimental das cincias naturais, e desde o sculo XVIII com o formalismo na teoria

    moral, no direito e nas instituies do Estado de direito. A filosofia da natureza e o direito natural

    deparam-se com um novo tipo de exigncias para fundamentao. Essas exigncias causaram um

    abalo no privilgio cognitivo das cincias. (HABERMAS, 1992: 33)

    A lio que Habermas tira dessa perda de privilgio cognitivo ou, para

    usar uma formulao mais no esprito de Rorty, o fracasso do projeto de uma

    filosofia cientfica nos moldes esboados acima so distintas. Enquanto Rorty

    deseja fazer da filosofia uma atividade sem pretenso terica, voltada critica da

    tradio cultural, Habermas insiste na necessidade de a filosofia rever sua posio

    em relao s demais cincias sem abrir mo de sua vocao de elaborar uma

    teoria da racionalidade:

    37

  • Tais embaraos exigem que se determine hoje, de modo novo, o nexo entre filosofia e cincia.

    Aps ter abandonado sua pretenso de ser a cincia primeira, ou enciclopdica, a filosofia no

    pode mais manter o seu status no interior do sistema cientfico nem por assimilar-se a cincias

    particulares, consideradas exemplares, nem tampouco por distanciar-se de forma exclusiva da

    cincia em geral. Ela precisa associar-se autocompreenso falibilista e noo procedimental de

    racionalidade das cincias empricas; ela pode no mais pretender um acesso privilegiado

    verdade, nem um mtodo prprio ou um campo de objetos exclusivo, nem mesmo um estilo prprio

    de intuio. Somente ento poder ela entrar em uma diviso do trabalho no exclusiva e render o

    melhor de si prpria, a saber, sua persistncia em colocar questionamentos de cunho universalista,

    e seu procedimento voltado reconstruo racional do conhecimento pr-terico intuitivo de

    sujeitos dotados da competncia de falar, agir e julgar (...). Esse dom torna a filosofia

    recomendvel como uma participante insubstituvel no processo de cooperao daqueles que

    esto preocupados com a construo de uma teoria da racionalidade. (HABERMAS 1992: 38)

    Para Rorty, no entanto, tanto a vocao terica da filosofia quanto a prpria

    noo de racionalidade so questes problemticas. A adoo de uma postura

    historicista por Rorty, como dissemos, ter conseqncias relativistas. J vimos

    como Rorty recusa a idia de um conhecimento pr-terico intuitivo dos sujeitos

    dotados de competncia de falar, agir e julgar em sua discusso com Nagel e

    Cavell. Assim, para Rorty to intil perseguir a idia de autofundamentao

    quanto perseguir uma noo universalista de racionalidade. Essa pretenso seria

    caracterstica justamente daquela tradio que Rorty chama de platnico-

    kantiana:

    a tentativa intil de sair de nossas peles das tradies, lingsticas e outras, no interior das

    quais pensamos e criticamos a ns mesmos e comparar-nos com algo absoluto. Essa nsia

    38

  • platnica em escapar da finitude de nosso tempo e lugar, dos aspectos meramente

    convencionais e contingentes de nossas vidas responsvel pela distino original de Plato

    entre duas formas de sentenas verdadeiras. (RORTY 1982: xix)

    Para Rorty, a lio principal a ser retirada da virada lingstica a

    contingncia dos vocabulrios adotados em determinada poca e lugar:

    Esse coro [a respeito da centralidade da linguagem para filosofia prprio do sculo XX] no

    deveria, no entanto, nos levar a pensar que alguma coisa nova e excitante foi recentemente

    descoberta a respeito da linguagem por exemplo, que ela est mais presente do que

    imaginvamos. Os autores citados esto apenas reforando alguns pontos negativamente: eles

    esto dizendo que as tentativas de alcanar algo por trs da linguagem que a fundamente, ou

    que ela expresse ou qual ela seja adequada no tero sucesso. (idem)

    Voltaremos, nos prximos captulos, ao contextualismo de Rorty. Por hora,

    basta indicar que a recusa de Rorty em fazer da filosofia uma auxiliar na

    elaborao de uma teoria da racionalidade se explica (a) por sua desconfiana de

    toda tentativa de associar a filosofia a uma atividade cientfica e (b) a

    conseqncia que Rorty acredita advir da virada lingstica, em especial em sua

    verso wittgensteiniana, a saber, que cada vocabulrio historicamente

    contingente estabelece para si os prprios padres de racionalidade (de

    justificao) e apenas a fixao da tradio platnico-kantiana que explica a

    pretenso de se descobrir um padro de racionalidade universal presente nas

    competncias lingsticas humanas. Como sugere a citao acima, para Rorty no

    39

  • h intuies, nem mundos nem padres de racionalidade por trs ou para

    alm dos diferentes jogos de linguagem historica e socialmente determinados.

    O objetivo deste captulo foi apresentar os motivos fundamentais da recusa

    de Rorty de toda inclinao cientfica ou construtiva na filosofia. Para Rorty, foi

    justamente a pretenso de fundamentar as cincias, em um primeiro momento, e

    a nsia em colocar-se sua altura, em um segundo momento, que explicam a

    adoo, pelos filsofos, de uma imagem cientificista da reflexo filosfica. Sua

    verso da crise e esgotamento do paradigma da filosofia moderna, ento,

    consiste, ao menos em parte, na identificao dos pressupostos problemticos da

    tentativa, tipicamente moderna, de preservar o suposto privilgio epistmico da

    filosofia de fazer da filosofia uma cincia. Como vimos, no entanto, Rorty baseia

    sua crtica em uma concepo um tanto estreita de cincia, presa a ideais

    metafsicos de verdade e certeza fceis de serem criticados, dado o quadro de

    pensamento ps-metafsico contemporneo, e pouco atenta autocompreenso

    atual das cincias, para falar com Habermas, como atividades associadas aos

    ideais de racionalidade procedimental (justificao diante de uma comunidade de

    investigao) e falibilismo. Ainda, Rorty parece assombrado pelas pretenses de

    fundamentao da filosofia e, por essa razo, recusa-se a ver nela uma

    colaboradora nos esforos de construo de uma teoria da racionalidade.

    40

  • 2.AviradapluralistadeRichardRorty

    A virada pragmtica de Richard Rorty o abandono de pretenses cientficas na

    filosofia, como assumidas pelo projeto analtico, em favor de uma forma renovada

    de praticar filosofia que vai se amparar em uma reabilitao, por assim dizer, da

    tradio pragmtica norte-americana pode ser vista de pelo menos trs

    maneiras diferentes. Segundo uma primeira verso, herica (MALACHOWSKI

    2002, HALL 1994, POSNER 2007), Rorty teria adotado uma posio pragmtica a

    fim de libertar a filosofia americana do sono analtico em que se encontrava,

    trazendo sofisticao, profundidade e interdisciplinaridade a um ambiente

    intelectual rido e autista; segundo uma segunda verso, de cunho sociolgico

    (GROSS 2003), Rorty teria visto na retomada da tradio pragmtica, ento em

    baixa, uma boa oportunidade tanto de contornar certas limitaes institucionais e

    profissionais impostas pela presena hegemnica dos filsofos de orientao

    analtica nas posies estratgicas do campo acadmico filosfico norte-

    americano cargos de direo na American Philosophical Association (APA),

    empregos em universidades de maior prestgio quanto de delimitar para si um

    curral intelectual sobre o qual exercer influncia; em uma terceira verso, a

    passagem para o pragmatismo seria o resultado do esgotamento da tradio

    analtica, forando uma mudana de paradigma revolucionria que Rorty teria,

    como costuma acontecer nesses momentos de revoluo intelectual, entrevisto e

    41

  • antecipado j em seu artigo de 1967 sobre os impasses da tradio analtica

    (RORTY 1982).

    A primeira explicao sofre da evidente desvantagem de sua inclinao

    mitificao, e faz pensar nas motivaes que uma leitura sociolgica costuma por

    em evidncia a partir de certo momento, Rorty se transforma em um guarda-

    chuva intelectual, institucional e editorial atraente para filsofos de menor

    prestgio; da a tendncia a nome-lo poeta e profeta do novo pragmatismo, um

    marco no cenrio filosfico norte-americano e uma possvel carona para o

    sucesso acadmico. A segunda explicao, instrutiva o contexto institucional

    poca da publicao de A filosofia e o espelho da natureza de fato sui generis, e

    o motim contra os mandarins da tradio analtica poca em que Rorty ocupava

    a presidncia de uma diviso regional da APA de fato ajudou a minar a hegemonia

    institucional e intelectual da tradio analtica tem a desvantagem

    (aparentemente usual nos estudos de sociologia dos intelectuais) de

    desconsiderar as motivaes filosficas, ao consider-las um fenmeno menor se

    comparado aos movimentos estratgicos dos indivduos dentro da estrutura de

    prestgio em jogo. A terceira explicao sofre de uma carncia mais interessante:

    da perspectiva da prpria concepo da histria da filosofia que Rorty defende, ela

    assume os ares de uma profecia alto-realizvel, mas acima de tudo parece ser

    uma petio de princpio: Rorty s um revolucionrio se se assume, como ele

    prprio assume em diversas ocasies (RORTY 1979, 1982), que a histria da

    filosofia, como a histria da cincia pode parecer aos olhos de um leitor

    entusiasmado de Thomas Kuhn, for feita de grandes rompantes e no de um

    processo paulatino de transformaes conceituais e metodolgicas.

    42

  • Essas tentativas de explicao da assim chamada virada pragmtica na

    obra de Richard Rorty so tambm uma consequncia da prpria representao

    que se construiu em torno da reabilitao do pragmatismo nos Estado Unidos a

    partir dcada de 1970. Segundo essa representao, o cenrio filosfico norte-

    americano teria tido, em fins do sculo XIX e durante as primeiras dcadas do

    sculo XX, uma belle poque pragmatista uma gerao de filsofos nativos que

    teriam desenvolvido um estilo nacional genuno de filosofar, cujos maiores

    expoentes teriam sido Charles S. Peirce, William James e John Dewey , seguido

    de um longo e sombrio perodo de dominao analtica durante os anos que se

    seguiram Segunda Guerra Mundial (MENAND 2002) Essa dominao teria

    como causa o casamento casual mas perfeito uma afinidade eletiva comparvel

    ao da tica protestante com o esprito do capitalismo entre o estilo rigoroso de

    fazer filosofia dos emigrs europerus (Rudolf Carnap, Hans Reichembach, etc.) e

    um ambiente acadmico dominado pelo esprito tecnolgico da Guerra Fria no

    qual apenas disciplinas que pudessem atestar seu carter cientfico teriam

    chances de sobreviver dura disputa por prestgio e, mais importante,

    financiamento (GROSS 2003). Mas os ares liberais dos anos sessenta e setenta

    e, mais especificamente, um livro escrito por um dissidente da frente analtica

    provocativamente intitulado A filosofia e o espelho da natureza teriam

    redespertado o pragmatismo nas universidades norte-americanas.

    mais razovel, no entanto, como sugere Richard J. Bernstein

    (BERNSTEIN 1992) ver a tradio pragmtica menos como um conjunto de

    autores e slogans do que como um conjunto de idias que, apesar do relativo

    ostracismo de seus proponentes, esto presentes de forma ampla e contnua na

    43

  • produo filosfica do sculo XX: os pragmatistas norte-americanos clssicos

    introduziram diversos temas inter-relacionados que tm sido explorados e

    desenvolvidos de formas novas ao longo do sculo XX. (BERNSTEIN 1992).

    Bernstein, citando Putnam, indica alguns temas que formariam o ncleo do

    pragmatismo:

    Todas essas idias que a dicotomia entre fato e valor insustentvel, que a dicotomia

    entre fato e conveno tambm insustentvel, que a verdade e a justificao de idias

    esto estreitamente ligadas, que a alternativa ao realismo metafsico no uma forma de

    ceticismo, que a filosofia uma forma de atingir o bem so idias que tem sido h

    tempos associadas tradio do pragmatismo norte-americano. (PUTNAM 1990, citado

    em BERNSTEIN 1992)

    Neste captulo, pretendo mostrar como algumas teses pragmticas (no

    necessariamente todas indicadas acima) esto presentes nos escritos de Rorty

    desde antes de sua suposta virada pragmtica. Para tanto, comentarei um artigo

    de Rorty de 1970 (nove anos, portanto, antes da publicao de Philosophy and the

    mirror of nature e dos artigos de Consequences of Pragmatism) intitulado

    Incorrigibility as the mark of the mental. Nesse artigo, Rorty ofecere uma

    soluo tipicamente pragmtica para o problema filosfico por sua vez

    tipicamente analtico (do sub-campo filosofia da mente) da caracterizao dos

    eventos e propriedades mentais. Para indicar a noo de incorrigibilidade ou

    seja, o fato de que relato em primeira pessoa dos eventos mentais no pode ser

    contestado por nenhuma outra forma de investigao, o que o torna irrefutvel

    como a marca de tudo considerado mental, Rorty se valer da noo de

    44

  • vocabulrio de forma tipicamente pragmatista: a noo de mental, segundo sua

    anlise, estaria diretamente ligada noo de incorrigibilidade justamente

    porque a prpria noo de mente s faz sentido em um determinado vocabulrio

    filosfico cartesiano que quer atribuir a essa mesma noo um papel

    epistmico privilegiado, delimitando um campo de certeza ltima. No fosse a

    preocupao com a construo filosfica de um campo de enunciados (subjetivos)

    incorrigveis, a prpria noo de mente no precisaria ter sido construda. Quero

    mostrar que, com os procedimentos de anlise e argumentao pragmatistas

    adotados neste artigo, Rorty abre campo para sua virada historicista e pluralista,

    que so dois elementos mais diretamente ligados ao lado polmico e problemtico

    de sua obra. Indiretamente, espero oferecer razes para descrer tanto da idia de

    uma guinada radical em sua obra quanto da idia de que no existem razes

    internas, filosficas, que explicam a passagem de um momento a outro no seu

    pensamento, que anlises como a de Gross e a prpria narrativa autobiogrfica

    de Rorty (e, igualmente, a aplicao de seu esquema explicativo da histria da

    filosofia a sua prpria obra) parecem sugerir. Ao final do captulo, gostaria de

    discutir algumas consequncias dessa prpria noo de vocabulrio em especial

    suas implicaes excessivamente relativistas e contrrias possibilidade de

    elaborao de teorias filosficas (no-contextualistas) da racionalidade.

    curioso ver que a obra de Rorty, mesmo em sua assim chamada fase

    analtica, foi vtima de interpretaes equivocadas. O artigo Incorrigibility as the

    mark of the mental desencadeou um debate (por exemplo, SCHOPE 1979,

    EVERITT 1981, 1983 e SMITH 1982) a respeito do suposto mtodo que Rorty

    45

  • teria introduzido para resolver o problema da relao corpo e mente ou, mais

    especificamente, da relao entre psicologia e neurologia, ou ainda entre

    entidades tericas abstratas e entidades materiais. Na realidade, menos do que

    dar continuidade maneira como o problema era encarado no debate analtico

    (tentando resolv-lo ou introduzir um mtodo eliminative materialism que

    pudesse eventualmente conduzir sua soluo), Rorty est indicando justamente

    que toda tentativa de demarcar filosoficamente um campo ontolgico do mental

    ou de demarcar a distino definitiva entre os dois campos (mental e fsico), ou de

    provar a necessidade de reduzir um campo a outro, perde de vista o fato de que a

    prpria noo de mental s pode ser compreendida no interior do vocabulrio

    epistemolgico do racionalismo clssico, e segundo a funo que a noo

    desempenha nesse vocabulrio em relao s suas intenes filosficas. De

    certa maneira, Rorty est, j no artigo em questo, propondo que se mude de

    assunto que o debate tome um novo rumo. O fundamento desse recurso de to

    change the subject como estratgica argumentativa est justamente na indicao

    da centralidade da noo de vocabulrio para a reflexo filosfica, que aparece no

    artigo.

    De fato, neste artigo os interocutores e as referncias de Rorty so

    fortemente ligados tradio analtica, e por isso, do ponto de vista do pblico

    especializado a que Rorty se dirige, o debate pode ser classificado como

    pertencendo ao campo analtico. Mas a argumentao mais fina,

    caracteristicamente analtica, desempenha um papel muito menos estratgico na

    argumentao geral. Rorty problematiza o state of art do debate apenas para

    sugerir que:

    46

  • A noo de coisa fantasmagrica [ghostly stuff] ou de susbtncia imaterial nunca teria se

    tornado corrente se Descartes no tivesse usado cogitationes como uma ilustrao do que queria

    dizer (RORTY 1970: 402).

    Ora, segundo Rorty, a grande contribuio filosfica de Descartes foi menos a

    descoberta de um campo ontolgico at ento desconhecido do que a

    elaborao de uma concepo espistemolgica especfica, a que Rorty chamar

    e criticar amplamente em A filosofia e o espelho da natureza de

    fundacionismo11. A noo de moderna mente entrou em circulao, por assim

    dizer, em funo da criao da noo de crena incorrigvel um campo de

    certezas que no podem ser colocadas em questo por nenhuma investigao

    posterior (RORTY 1970: 414). No limite (e nesse ponto Rorty acompanha a

    argumentao de Wilfried Sellars a respeito do mesmo tpico), Descartes, ou

    qualquer outro proponente da noo de mental, a poderia ter associado a

    processos cerebrais, sem que seu sentido fundamental se perdesse. menos

    pela descoberta de um corte ontolgico profundo do real do que a elaborao de

    uma concepo epistemolgica que est em jogo. Assim, a noo de mental

    passa a ser incorporada ao jargo filosfico apenas dentro do quadro de uma

    nova prtica lingustica:

    Apenas depois do surgimento da conveno, da prtica lingustica, que determina que os relatos

    contemporneos em primeira pessoa de tais estados [mentais] so a ltima palavra a respeito de

    11 Para uma crtica da interpretao histrica e conceitual da espistemologia moderna de Rorty, e mais especificamente das deficincias de sua noo de fundacionismo, conferir HAACK 1995. importante considerar, tambm, a identificao problemtica que Rorty faz entre todo projeto de uma teoria do conhecimento e a busca por fundamentos incorrigveis do conhecimento. Espero tocar nesse assunto no prximo captulo.

    47

  • sua existncia e caractersticas, que temos a noo do mental como incompatvel com o fsico

    (...). Pois apenas tal prtica nos d motivos para dizer que pensamentos e sensaes devem ser

    sui generis o motivo principal sendo que qualquer entidade com a qual pudessem ser

    identificados seriam tais que relatos a respeito de suas caractersticas no poderiam ser

    desbancados por investigaes futuras. (RORTY 1970: 414)

    por isso que, para Rorty, a concluso de que a marca do mental a

    incorrigibilidade aponta tanto para o aspecto epistemolgico da discusso quanto

    para uma constatao a respeito da prpria natureza da atividade filosfica: em

    lugar de uma representao que v a filosofia como uma forma de conhecimento

    do mundo, Rorty oferece uma viso segundo a qual a filosofia uma atividade de

    criao de vocabulrios. Descartes no descobriu o mental; Descartes introduziu

    a noo de incorrigibilidade como uma noo epistmica. E apenas no interior

    do quadro da epistemologia moderna que faz sentido falar de entidades mentais

    aquelas entidades a respeito das quais todo relato em primeira pessoa no pode

    ser questionado; ou, de forma ainda mais precisa, no pode ser racionalmente

    questionado.

    Este litmo passo fundamental e aponta para uma caracterstica do

    pensamento de Rorty que vai assumir importncia cada vez maior em sua obra. A

    criao de um vocabulrio, segundo Rorty, no apenas introduz certos conceitos

    que passam a determinar uma forma de conceber o mundo (no caso, enquanto

    algo dividido, no mnimo, entre entidades materiais e entidades mentais, res

    cogitans e res extensa), mas tambm passam a determinar um critrio de

    racionalidade. Segundo Rorty, a noo de incorrigibilidade, fundamento da noo

    moderna de mental, deve ser definida

    48

  • no em termos de possibilidade lgica [na forma de enunciados analticos], mas dos

    procedimentos para a resoluo de dvidas aceitos em uma determinada poca. S acredita

    incorrigivelmente que p em t se e apenas se

    (i) S cr em p em t

    (ii) No h nenhum procedimento aceito cuja aplicao tornaria racional crer que no-p, dada

    a crena de S em p em t. (RORTY 1970: 417, grifos meus)

    Como qualquer leitor familiarizado com as Meditaes de Descartes sabe, o

    cogito cartesiano estabelece justamente a primeira verdade inquestionvel a

    primeira crena incorrigvel. Na anlise de Rorty, portanto, debate a respeito do

    mental, caro tradio analtica, deve tomar como ponto de partida essa

    preocupao epistemolgica moderna de encontrar um critrio de certeza para os

    enunciados subjetivos de crenas.

    Os pressupostos pragmticos da anlise de Rorty so evidentes: os

    problemas filosficos devem ser vistos como tendo origem no interior de um

    vocabulrio filosfico (no caso, o vocabulrio que inclui a noo de mental) que

    tem uma inteno especfica (delimitar um campo de certezas incorrigveis como

    critrio de conhecimento). Resolver o problema da relao entre corpo e mente

    significaria menos mostrar, pela anlise de suas propriedades, a possibilidade de

    reduzir um campo ao outro, do que recriar o vocabulrio corrente, seja mostrando

    como a noo de mental pode ser dispensada quando substituda por outra

    (processos cerebrais etc.), seja questionando a necessidade de tal noo. Mas,

    nesse caso especfico, trata-se de questionar justamente a preocupao mais

    49

  • profunda que deu origem noo de eventos mentais a associao do

    conhecimento com a noo de crena incorrigvel.

    Voltarei mais adiante crtica de Rorty ao projeto epistemolgico moderno.

    Vale adiantar que pela constatao da centralidade da noo de vocabulrio,

    gerada no interior do debate analtico como uma forma de oferecer uma

    abordagem mais adequada das questes em jogo, que Rorty passar a ver na

    reconstruo histrica o instrumento crucial da crtica filosfica, e na reforma e

    inveno de vocabulrios a tarefa cultural do filsofo. Por hora, gostaria de

    considerar mais detidamente as concluses da associao que Rorty faz entre

    vocabulrios e critrios de racionalidade. Como indicado acima, a noo de

    incorigibilidade (no caso, atributo dos eventos mentais) introduz uma tese forte:

    no existem no interior de tal vocabulrio, o vocabulrio da epistemologia

    moderna cujo modelo de conhecimento pressupe um sujeito que tem acesso

    direto e exclusivo a suas representaes mentais procedimentos racionais para

    questionar os relatos a respeito de eventos mentais. Isso porque um vocabulrio

    inclui igualmente critrios de racionalidade o conjunto das regras que

    determinam os movimentos que so ou no so vlidos no seu interior. No quero

    disputar se a noo de incorigibilidade ou no essa regra fundamental esse

    critiro de racionalidade no caso especfico da epistemologia moderna; gostaria

    apenas de considerar a insitncia de Rorty com o carter contextual dos critrios

    de racionalidade, uma consequncia fundamental de sua tese da centralidade dos

    vocabulrios para a filosofia.

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  • Segundo Rorty, uma das teses fundamentais do projeto epistemolgico

    moderno um tema filosfico cujas origens em algumas ocasies (RORTY 1982:

    xix-xlvii) Rorty retraa at a obra de Plato que possvel, e necessrio,

    estabelecer um critrio definitivo do conhecimento verdadeiro. A tese,

    evidentemente, pode ser associada busca platnica pela distino entre

    conhecimento e opinio e s idias claras e distintas que para Descartes eram o

    critrio do conhecimento verdadeiro. A inveno da noo de mente e de

    eventos mentais introduz no apenas uma nova crena um novo elemento que

    paulatinamente entrar em circulao como uma possibilidade para descrever

    determinados eventos, ampliando o vocabulrio corrente mas tambm introduz

    um critrio de justificao de crenas. Como vimos acima, o carter incorrigvel

    dos fenmenos mentais coloca a descrio contempornea em primeira pessoa

    o eu penso, eu existo de Descartes em posio de privilgio epistmico. A

    abordagem, cuja inspirao pragmatista se revela na preocupao com considerar

    a funo desempenhada pela noo de mental no interior de um vocabulrio

    especfico voltado a um projeto definido (o projeto epistemolgico moderno,

    centrado na busca de legitimao da cincia moderna como fonte de

    conhecimento verdadeiro12), tem como resultado a constatao de que a

    constituio de vocabulrios que so compostos tanto por um conjunto de crenas

    quanto por um conjunto de critrios de racion