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158 RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO Por meio dos falhamentos e de obras ligadas à abertura de poços artesianos, penetram resíduos poluentes decorrentes das atividades humanas, tanto agrícolas quanto industriais, comprometendo, assim, a qualidade do grande aqüífero. Por outro lado, em se tratando de águas superficiais, a bacia do rio Piracicaba constitui-se num dos mais importantes tributá- rios do principal rio do Estado de São Paulo: o Tietê. O rio Piracicaba pertence à Unidade de Gerenciamento dos Recursos Hídricos das Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí – UGRH-5, que abrange uma extensão territorial de 15.320 km² (14.040 km² no Estado de São Paulo e 1280 km² no Estado de Minas Gerais). Além do rio Piracicaba, destacam-se seus afluentes com suas respectivas áreas de micro- bacias: o rio Corumbataí, principal manancial de abastecimento urbano; o rio Guamium, cujo curso, integralmente inserido no município, apresenta várzeas alagadiças ainda em condições de preservação; o Córrego do Enxofre, que deságua próximo ao Centro Cívico e ao Parque do Trabalhador; o Itapeva (escondido debaixo da Av. Armando de Salles Oliveira); e o Piracicamirim, maior microbacia de contribuição do município, com 121 km², que, por sua extensão, absorve atualmente o grande vetor de crescimento populacional, podendo trazer conseqüências, a médio e longo prazo, que preocupam a atual gestão. A evolução da apropriação do rio e impactos decorrentes Desde a sua fundação, em 1767, a cidade de Piracicaba apresenta uma posição geográfica estratégica em relação ao avanço da civilização no continente sul americano. O povoado de Piracicaba servia de ponto de apoio para as embarcações que desciam o rio Tietê, bem como dava retaguarda ao abastecimento do Forte de Iguatemi, na fronteira do Brasil com o Paraguai. A posição de Piracicaba como ponto de cruzamento de rotas terrestres e fluviais está re- gistrada na história do Brasil desde o período pré-colombiano, fazendo parte da trama do Peabirú, o lendário caminho indígena que ligava o litoral brasileiro ao Paraguai e à rede de caminhos do Império Inca nos Andes. No século XVIII, Piracicaba fazia parte do roteiro do ouro, uma vez que por aí passava o “Picadão de Cuiabá”, que, segundo a tradição, cruzava o rio Piracicaba em frente ao atual Largo dos Pescadores. Situada às margens do rio Piracicaba, esta cidade cresceu e chegou a uma população da ordem de 328 mil habitantes, constituindo-se, portanto, numa cidade média, preservando de certa forma as margens do rio Piracicaba e o traçado de seu curso original (Figuras 99 a 101). O modelo de desenvolvimento urbano adotado seguiu os parâmetros urbanísticos dos grandes centros urbanos brasileiros, durante a segunda metade do século XX, que, aos poucos, retificaram, canalizaram e tubularam a maior parte dos cursos d’água.

RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃOtede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2632/15/Maria Cecilia... · como medida de ampliação da drenagem superfi cial por infi ltração

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RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

Por meio dos falhamentos e de obras ligadas à abertura de poços artesianos, penetram

resíduos poluentes decorrentes das atividades humanas, tanto agrícolas quanto industriais,

comprometendo, assim, a qualidade do grande aqüífero. Por outro lado, em se tratando de

águas superfi ciais, a bacia do rio Piracicaba constitui-se num dos mais importantes tributá-

rios do principal rio do Estado de São Paulo: o Tietê.

O rio Piracicaba pertence à Unidade de Gerenciamento dos Recursos Hídricos das Bacias

dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí – UGRH-5, que abrange uma extensão territorial de

15.320 km² (14.040 km² no Estado de São Paulo e 1280 km² no Estado de Minas Gerais).

Além do rio Piracicaba, destacam-se seus afl uentes com suas respectivas áreas de micro-

bacias: o rio Corumbataí, principal manancial de abastecimento urbano; o rio Guamium,

cujo curso, integralmente inserido no município, apresenta várzeas alagadiças ainda em

condições de preservação; o Córrego do Enxofre, que deságua próximo ao Centro Cívico e ao

Parque do Trabalhador; o Itapeva (escondido debaixo da Av. Armando de Salles Oliveira); e

o Piracicamirim, maior microbacia de contribuição do município, com 121 km², que, por sua

extensão, absorve atualmente o grande vetor de crescimento populacional, podendo trazer

conseqüências, a médio e longo prazo, que preocupam a atual gestão.

A evolução da apropriação do rio e impactos decorrentes

Desde a sua fundação, em 1767, a cidade de Piracicaba apresenta uma posição geográfi ca

estratégica em relação ao avanço da civilização no continente sul americano. O povoado

de Piracicaba servia de ponto de apoio para as embarcações que desciam o rio Tietê, bem

como dava retaguarda ao abastecimento do Forte de Iguatemi, na fronteira do Brasil com

o Paraguai.

A posição de Piracicaba como ponto de cruzamento de rotas terrestres e fl uviais está re-

gistrada na história do Brasil desde o período pré-colombiano, fazendo parte da trama do

Peabirú, o lendário caminho indígena que ligava o litoral brasileiro ao Paraguai e à rede de

caminhos do Império Inca nos Andes.

No século XVIII, Piracicaba fazia parte do roteiro do ouro, uma vez que por aí passava o

“Picadão de Cuiabá”, que, segundo a tradição, cruzava o rio Piracicaba em frente ao atual

Largo dos Pescadores.

Situada às margens do rio Piracicaba, esta cidade cresceu e chegou a uma população da

ordem de 328 mil habitantes, constituindo-se, portanto, numa cidade média, preservando

de certa forma as margens do rio Piracicaba e o traçado de seu curso original (Figuras 99

a 101). O modelo de desenvolvimento urbano adotado seguiu os parâmetros urbanísticos

dos grandes centros urbanos brasileiros, durante a segunda metade do século XX, que, aos

poucos, retifi caram, canalizaram e tubularam a maior parte dos cursos d’água.

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Figura 99: Orla do rio Piracicaba, presença da atividade pesqueira

Fonte: Levantamento fotográfi co realizado em 10 jul. 2007, pela autora.

Figura 100: Engenho, patrimônio arquitetônico de Piracicaba

Fonte: Levantamento fotográfi co realizado em 10 jul. 2007, pela autora.

Figura 101: Vista da orla do rio em direção ao salto de Piracicaba

Fonte: Levantamento fotográfi co realizado em 10 jul. 2007, pela autora.

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RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

De maneira geral, com a industrialização, a cidade voltou às costas para os rios e passou a

valorizar o sistema viário, fazendo dos rios seus canais de esgoto e depreciando suas mar-

gens, tornando-as insalubres e degradando sua paisagem. O rio Piracicaba teve seu fl uxo

alterado na década de 1960, pela construção do Sistema Cantareira10, sofrendo com isso

graves conseqüências em sua cadeia ecológica, além de prejudicar o abastecimento dos

aqüíferos, que vêm sofrendo nas últimas décadas pelo impacto da poluição hídrica.

As atividades econômicas predominantes em Piracicaba são a indústria canavieira de produ-

ção de açúcar e álcool e a indústria metalúrgica. No entanto, a médio e longo prazo, outra

indústria acena com amplas perspectivas de geração de divisas, de emprego e de integração

social: a indústria do turismo e do ecoturismo. A área principal de expansão do turismo

situa-se ao longo do rio Piracicaba e caminha, a partir da cidade de mesmo nome, na direção

oeste, conectando-se ao circuito de Águas de São Pedro, Brotas e Barra Bonita.

Atualmente, o município mantém uma importante posição no Estado de São Paulo, pela sua

caracterização ambiental, econômica, cultural e urbanística. Esse perfi l, desde que integran-

do todas as dimensões, tem o potencial de promover o crescimento dos setores de turismo e

ecoturismo do município de Piracicaba e de sua microrregião administrativa.

4.1.2 Motivos que levaram à elaboração do Plano

O Projeto Beira-Rio surgiu da necessidade de se utilizar de forma racional os recursos na-

turais inerentes ao rio, visando à sustentabilidade ambiental, econômica e cultural, cuja

principal meta é o equilíbrio do binômio rio-cidade.

O impacto do Sistema Cantareira e, principalmente, o despejamento do esgoto in-natura,

sem tratamento, dos municípios vizinhos, Campinas e Americana, em tributários ou no pró-

prio Piracicaba, contribuíram para o alto nível de poluição das águas, alertando para a ne-

cessidade de um plano capaz de reverter a situação de degradação visível.

Como colocado, o rio Piracicaba conta com a atuação do Comitê das Bacias Hidrográfi cas

dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (CBH-PCJ, implantado em novembro de 1993), que

envolve o Estado, os municípios e a sociedade civil.

O CBH – PCJ, de âmbito estadual, atua em parceria com o Comitê Federal de mesmo nome,

em prol da melhoria dos rios da bacia, o que extrapola o Estado de São Paulo, envolvendo

Minas Gerais.

10 O Sistema Cantareira é responsável pelo abastecimento da RMSP e faz a transposição entre duas bacias hidrográfi -cas, importando água da bacia do Piracicaba para a bacia do Alto Tietê, desde 1976, quando se iniciaram as barragens dos rios Jaguari e Jacareí, tributários do rio Piracicaba. Disponível em: www.mananciais.org.br/site/mananciais_rmsp/cantareira - acesso em 17/11/2007.

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Figura 103: Vista das orlas do rio Piracicaba

Fonte: Levantamento fotográfi co realizado em 10 jul. 2007, pela autora.

Figura 102: Vista das margens do rio para o centro de Piracicaba. Em destaque o edifício Prefeitura

Fonte: Levantamento fotográfi co realizado em 10 jul. 2007, pela autora.

A mobilização desses fóruns possibilitou o contacto com a ANA (Agência Nacional de Águas),

cujas ações integram o Programa Nacional de Despoluição dos Rios Brasileiros, garantindo

a futura captação de recursos fi nanceiros para obras de saneamento nos municípios das

referidas bacias.

A partir da constatação da importância cultural do rio para a população local, revelada em

estudo antropológico11 realizado em 2001, o Projeto Beira–Rio foi ampliado, resultando no

Plano de Ação Estruturador (PAE), que contém objetivos e diretrizes para a recuperação do

rio Piracicaba.

11 A elaboração do estudo antropológico foi coordenada pelo antropólogo Arlindo Stefani, que animou encontros, seminários, percur-

sos e viagens a pé e de barco por toda a orla municipal, coletando informações e redescobrindo uma Piracicaba da qual os próprios

piracicabanos não se lembravam mais. Ao fi nal, a extensa gama de informações foi sintetizada no volume “A cara de Piracicaba”

(PAE, p.14).

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RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

4.1.3 Atores

A mobilização inicial pró-recuperação do rio partiu da população, da imprensa e de indús-

trias locais, resultando no Projeto Beira-Rio, mais tarde ampliado para o PAE – Plano de

Ação Estruturador – com a participação do Poder Público e da Sociedade Civil.

O Poder Municipal atuou por meio do Instituto de Pesquisas e Planejamento de Piracicaba

(IPPLAP), da Secretaria Municipal de Defesa do Meio Ambiente e da Secretaria Municipal

de Planejamento. Já a participação da Sociedade Civil ocorreu por meio do tripé empresas,

organização não-governamental (ONG - Piracicaba 2010) e instituição de ensino (ESALQ/

USP – Escola Superior de Agronomia Luiz de Queiroz).

Além disso, o projeto contou com o monitoramento do Ministério Público do Estado de São

Paulo (ator Indireto do processo). São também importantes atores nesse processo o CBH-PCJ

e o Consórcio Intermunicipal.

4.1.4 Objetivos

O PAE estabelece seis objetivos principais que correspondem, cada qual, a diretrizes especí-

fi cas:

Recuperar a qualidade da água;

Preservar o Cinturão meândrico;

Reestruturar o tecido urbano;

Incentivar o rio como caminho;

Conservar a Paisagem;

Conectar o cidadão ao rio.

4.1.5 Diretrizes

Diretrizes para recuperar a qualidade da água:

Recuperar a qualidade da água priorizando o saneamento, concluindo o sistema de inter-

ceptores paralelos ao rio e a construção da ETE Estação de Tratamento de Esgotos, e implan-

tando a coleta seletiva, a reciclagem do lixo e a industrialização dos resíduos sólidos.

Diretrizes para preservar o cinturão meândrico:

Preservar o cinturão meândrico recuperando-o onde necessário e promovendo a conser-

vação ambiental da faixa territorial envolvente ao cordão meândrico do Rio Piracicaba,

criando um corredor biológico.

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RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

Diretrizes para reestruturar o tecido urbano:

Reestruturar o tecido urbano adotando o rio Piracicaba como curso principal para a im-

plantação de projetos e, posteriormente, os seus afl uentes, e elaborando um zoneamento

ecológico-econômico do município, visando um novo paradigma de ocupação antrópica do

meio físico.

Diretrizes para incentivar o rio como caminho:

Incentivar o rio como caminho explorando a visão da cidade a partir do rio Piracicaba, com

a implementação da navegação fl uvial e de novos sistemas de transporte urbano multimo-

dal, com ênfase nos veículos movidos a energia limpa e a implementação de circuitos de um

bonde turístico.

Diretrizes para conservar a paisagem:

Conservar a paisagem protegendo o patrimônio cultural e ambiental da cidade, por meio de

instrumentos de uso e ocupação do solo (diretrizes de gabarito e de densidade) ao longo da

faixa de proteção do rio, de modo articulado ao novo Plano Diretor. O objetivo é manter e

recuperar as paisagens memoráveis da cidade, e, em alguns casos, até acrescer novas obras

de arte urbana. Este item previa a geração de emprego e renda, para evitar a gentrifi cação.

Diretrizes para conectar o cidadão ao rio:

Conectar o cidadão ao rio por meio da criação de um Corredor Ecossocial, que inclui trilhas

urbanas, e do incentivo de percursos a pé, coordenando meios de transporte motorizados

com o pedestre.

4.1.6 Propostas

Assim como as diretrizes, as propostas também foram agrupadas segundo os seis objetivos

estabelecidos no PAE.

Propostas referentes à qualidade da água:

Redução do escoamento do lixo e resíduos para o leito do rio por meio de coleta seletiva e

reciclagem e industrialização dos resíduos sólidos; implantação de coletor tronco como me-

dida de infra-estrutura de saneamento; uso de pisos drenantes nas áreas de estacionamento

como medida de ampliação da drenagem superfi cial por infi ltração e plantio de árvores.

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RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

Figura 104: Proposta de recuperação do rio Piracicaba sobre a foto aérea 2000

Fonte: Proposta de Adequação Ambiental e Paisagística do Trecho Urbano do Rio Piracicaba e Entorno in IPPLAP (2003, Anexo 8)

Propostas referentes à preservação do cinturão meândrico:

Criação de APAs (Áreas de Proteção Ambiental) ao longo do cinturão meândrico do rio Pi-

racicaba, do tributário Corumbataí e demais microbacias inseridas no âmbito do município.

Propostas referentes à reestruturação do tecido urbano:

Criação de comportas ao lado do rio para controle das enchentes; dinamização dos usos na

Rua do Porto; conexão da Rua do Porto com o Parque Beira-Rio, com o Paço Municipal e

com o tecido urbano central; valorização dos percursos de pedestres e melhoria da acessi-

bilidade por meio de redutores de velocidade nas áreas de travessia das avenidas paralelas

à orla; valorização das vias transversais, visando a integração do tecido urbano; criação

de áreas destinadas a estacionamentos de veículos; desenvolvimento de novos sistemas de

transporte urbano multimodais, com ênfase nos movidos à energia limpa; implementação

de circuitos de um bonde turístico e ônibus ou trólebus para integrar as áreas perimetrais ao

eixo principal de infl uência do rio e para valorizar os circuitos turísticos; tombamento das

quadras adjacentes à Rua do Porto e incentivo à restauração das fachadas das edifi cações;

adequação imobiliária e controle da verticalização; multiplicação das áreas públicas e im-

plantação e melhoria de equipamentos esportivos.

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RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

Figura 105: Escala Urbana do Projeto Beira-Rio, dividido em oito trechos

Disponível em: <http://www.ipplap.com.br/projetos_beirario_introducao3.php>. Acesso em 12 jul. 2007