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RITA FERRO UMA MULHER NÃO CHORA Nunca se ama como nas histórias: nus e para sempre. Amar é lutar constantemente contra milhares de forças escondidas que vêm de nós ou do mundo. Contra outros homens. Contra outras mulheres. Jean Anouilh

Rita Ferro - Uma Mulher Nao Chora

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RITA FERRO

UMA MULHER NÃO CHORA

Nunca se ama como nas histórias: nus e para sempre. Amar é lutar constantemente contra milhares de forças

escondidas que vêm de nós ou do mundo. Contra outros homens. Contra outras mulheres.

Jean Anouilh

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I Saí de casa nessa noite com a sensação dramática que nada de extraordinário me iria acontecer. Pode parecer fútil, mas nenhuma outra coisa me é tão difícil de suportar. Tinha-me falado a Mafalda para me desafiar para uma borla no Tivoli. Não era teatro, desta vez,

mas uma orquestra de câmara tocando não sei o quê de Beethoven. Nessa época, fugia dos clássicos sempre que podia. Obrigavam-me a ceder a uma coisa mais forte do que eu e era possível que não tivesse nascido com

humildade para isso. Talvez o génio me fizesse sentir inferior, não faço ideia. A verdade é que experimentava sempre a mesma relutância em abdicar de mim mesma para me

entregar a todos aqueles sons portentosos que me comoviam como a uma criança e me imobilizavam como um colete de forças.

Só os concertos a meio da tarde me aliciavam. Dissolviam-me a ansiedade aos primeiros acordes e, às vezes, faziam-me dormir profundamente.

Fui ter a casa da Mafalda com meia hora de atraso; a Pilar já chegara. Era um junho quente e ambas tinham calçado meias de vidro, como mandam as noites de gala. Vendo-me chegar com uma saia de sarja e uma camisola de linha verde-claro, desataram aos gritos,

furiosas, dizendo que aquela minha figura as tornava patéticas. Tive de concordar, ainda que o contrário fosse mais verdade - aquilo no Tivoli era uma estreia. Desculpei-me com um dia absolutamente masculino que começara às seis da manhã e que, pelos

vistos, ainda não tinha terminado. Estava assim vestida desde que me levantara e nem me ocorrera mudar de roupa. Impressionada com o meu desmazelo, pedi à Mafalda: - Empresta-me um vestido, depressa, mas nada de espampanante! Não quero nem encarnados nem

verdes, que ainda me ponho para ali a chorar... Interessaram-se vagamente: - O que é que tens? - estranhou a Pilar. - Que tal este azul? - propôs a Mafalda, abrindo o armário e puxando de um cabide. Ainda nos rimos porque foi o cabo dos trabalhos encontrar um vestido que me servisse. Logo por

azar, a Mafalda tinha o corpo exactamente contrário ao meu: ancas largas e peito pequeno. Escolhi um vestido de linho café-com-leite com casaqueta igual, de bandas brancas, não por ser o

mais bonito, mas por ser o único que me cabia em três metros de roupeiro. - O fecho está estragado, mas com o casaco disfarça contemporizei, endireitando as costas ao

espelho e disfarçando o cansaço. - O que dizem vocês, minhas paspalhos? - O pior de tudo são os sapatos... - disse a Pilar, chumbando-os sem complacências. - Esses sapatos

não vêm a propósito... Tinha razão. Os sapatos eram de salto alto e de ráfia azul, impossíveis de combinar com aquele bege. - Estúpidas - gritei, nervosa. - De que é que estão à espera para chamar um táxi? - Já chamámos - sossegou-me a Mafalda a remexer numa arca. E logo a seguir, magnânima: -

Experimenta estes... Eram lindos, italianos, forrados e frágeis os sapatos que ela me convidava a provar. Não havia

muitas mulheres capazes de emprestar sapatos. - Servem-te? - perguntou. - Espera... - pedi, enfiando a custo o pé direito. - Então? - Então, nada. Não me cabem. - Leva os teus, ninguém repara! - simplificou a Pilar. E já da janela da sala: - O táxi chegou,

despachem-se! Tínhamos oito minutos para descer dois andares a pé, chegar ao teatro, pagar a corrida e entrar na

sala, mas nenhuma delas me censurou pelo atraso.

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Era o que faltava: todas as mulheres do mundo fazem o mesmo. Antes de entrar no táxi a Mafalda escorregou na calçada e, para não se estatelar no chão, colocou

mal um dos pés e partiu um salto. O motorista estava impaciente porque um coro de buzinas furiosas zurrava atrás de si. Com a pressa, a Pilar fez uma malha na meia com a garra do anel, ao pousar a carteira no chão, e eu,

assim que entrei no carro, verifiquei que naquele pequeno trajecto tinha perdido um brinco de ouro. Passei o resto da viagem a enfiar as mãos nos estofos, cheia de nojo, para ver se o encontrava, e por isso nem tempo tive de perguntar o que ia ouvir. Quando chegámos, estava com medo de que alguém reparasse, por debaixo do bolero da Mafalda,

no fecho-éclair desapertado. Contra tudo isto, Beethoven? Adormecemos as três, não por o concerto ser mau, mas por ser bom demais; acordámos com as

luzes a trespassarem-nos as pálpebras e uma profunda estranheza. A Mafalda até tinha pregas à volta dos olhos, como quem acorda numa cama verdadeira. Rímo-nos. Ríamos também daquela pressa de viver, que nem o cansaço vergava. Estávamos ali, as três, juntas, e talvez nos lembrássemos do que isso valia. - E agora? Vamos já para casa? - Vamos jantar! - Onde? Pedimos bifes. - A partir da meia-noite já ninguém faz dieta! - disse eu, proibindo os escrúpulos. - Nem pode. Nesta cidade, as batatas fritas são obrigatórias! Era indiferente o que se dizia. Havia coisas mais importantes que se trocavam ao mesmo tempo. * * * A Mafalda conhecia os jornalistas da mesa ao lado e eu reconheci apenas um deles. - Aquele não é o ... ? - É. Não digas o nome. Cala-te. Não fales alto... - Achas que ele é ... ? - De certeza. Não se vê logo pelo gestos? É assim a conversa das mulheres: rápida, cifrada, inclemente. - E o outro? - Espera.... - Não é aquele que escrevia crónicas de cozinha no...? Citaram-se três jornais. Nenhuma de nós conseguia lembrar nem o nome da coluna, nem o do jornal, nem o do autor, e muito

menos há quanto tempo fizera ele crónica gastronómica. Este tipo de pormenores não é importante para as mulheres. Podia ter sido há dois anos ou há dez.

O homem fizera sucesso só isso. Tudo de que precisávamos para o passar a pente fino. A Pilar disse que ele não sabia escrever; a Mafalda, que lhe faltavam maneiras; e eu, como se não

bastasse, acrescentei que a gravata era obscena. Nada que, realmente, lhe retirasse interesse. - Está a olhar imenso para ti... - disse à Mafalda. - Não olhes - rogou ela. - Não dês confiança... Rindo, concordávamos que apesar da gravata de um e dos trejeitos do outro, estaríamos receptivas

a uma abordagem qualquer. * * *

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Foi o cronista quem primeiro se levantou para nos cumprimentar. Disse qualquer coisa que nenhuma ouviu muito bem. Estava ali. Nas nossas mãos. E a excitação era essa.

Perguntou se podia sentar-se. Depois, sem sair da nossa mesa, apresentou-nos o amigo que tinha ficado na dele. O amigo juntou-se a nós e, com ele, um terceiro cavaleiro que chegara mais tarde e me chamou a atenção por ser escuro, distraído e absolutamente desconhecido.

Fixei-me nesse. Sempre que deparava com um estranho à minha frente apetecia-me imediatamente dizer-lhe:

“Obrigada! Obrigada por seres uma cara nova e eu nunca te ter visto! Nem calculas como te estou agradecida! Nem sonhas como é bom saber que vocês não acabam, que quando se pensa que acabam há sempre mais! “

Falou-se de jornais, de revistas, de artigos de opinião. Dissemos coisas que outras pessoas já tinham dito. Mesmo assim, os cavalheiros pareciam

agradados. - Tenho de me ir embora - disse a Pilar levantando-se. - É a terceira noite que me deito tarde. E

quem paga são os meus alunos! Talvez estivesse sentida por nenhum deles se lhe dirigir directamente. Perdia em relação a nós e

nenhuma mulher aguenta. - É professora? - interessou-se um. - Sim, de jornalismo... - respondeu ela, recuperando o sorriso. E voltando a sentar-se: - Mas não me

gabo... Mais meia hora a falar de Educação, de política, de ninharias. A Mafalda e eu disfarçámos bem que não percebíamos nada do assunto. Tão bem que eles ficaram

balbuciantes ao pé de nós, impressionados. Por muito que se evolua, os homens continuam a espantar-se com mulheres espertas. Era, aliás, uma das nossas perfídias mais típicas: fingirmos que sabíamos mais do que sabíamos, e

demonstrar-lhes que os conhecimentos deles de pouco valiam ao pé da nossa intuição. Não era sempre verdade, mas com alguma experiência até parecia. Começaram as anedotas. Primeiro de alentejanos, depois de irlandeses, a seguir de belgas, e teriam começado as de

africanos se eu não me tivesse insurgido: - Cuidado! Não é a mesma coisa... Concordaram e eu ganhei pontos pelo meu carácter um verdadeiro brinde com que não contava. * * * Era estúpido. Os estranhos não eram melhores do que os outros. Nem piores. Mas enquanto

durava a dúvida valia a pena acreditar. - Olá! - Olá, boa noite... - Costuma vir aqui? - Quase nunca. já reparou que a sala não tem uma única janela? Que bom que era! Poder começar do zero a qualquer momento, fazer tábua rasa de todas as imperfeições, e tentar

uma versão mais depurada junto de alguém que não andava, porque não podia, atrás de mim de espelho em punho.

- Como é que se chama? - Vasco. - Vasco? - Sim, Vasco. E você? - Eu chamo-me Ana. Mas não sou Ana Maria, nem Ana Cristina, nem Ana Teresa. Sou só Ana...

Era curiosa aquela minha capacidade de me reinventar através dos outros, de estrear uma personalidade nova aos olhos de alguém que acreditava apenas no que

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via e no que ouvia até lhe provarem o contrário. - Ela está na defensiva, percebe? Desde pequena que detesta o nome que tem! Fora a Mafalda que falara, mas poderia ter sido a Pilar. Ao lado de um homem novo, qualquer uma

se transfigura. - É verdade - concordei sem afinar. - Ana é um nome curto demais e sem qualquer mistério... Mas o Vasco dizia, cavalheiro: - Eu gosto do seu nome, sinceramente. Tenho uma avó chamada Ana que sabe fazer arroz-doce

como ninguém... Nós e a culinária: um estigma de que nunca nos livraríamos. - Não calcula a ternura que me faz ver-me associada à sua avó... - brinquei. - Não se importa de, a

partir de agora, passar a chamar-me avó Ana? Tem outro peso específico...! E enquanto o Vasco sorria, prestando-se com mansidão àquele jogo, a Mafalda reincidia: - E a verdade é que já podias ser avó! Os conhecidos, esses sim, imobilizavam-me. Inibiam-me de arriscar outras ideias, de recrutar outras facetas, de me libertar de uma vez por

todas do estigma empedernido das minhas características. Bastava-me olhar as minhas amigas para me aperceber do risco que havia nas velhas relações:

qualquer tentativa que implicasse novidade de atitude era acolhida com desconfiança, tomada por pose ou exibição e invariavelmente punida.

Havia pessimistas que sustentavam que o contacto com os outros era pura perda de tempo, mas eu nunca achara. Para suportar os velhos amigos, precisava ciclicamente de renovar o meu cardápio de relações para me oxigenar em pessoas novas.

- Fuma? - Não fumo. - Nunca fumou? - Sim, durante dez anos. - E tem saudades? A verdade é que a pessoa nova podia não me aceitar tão incondicionalmente, mas revitalizava-me

por isso mesmo; não me conhecia e esperava tudo de mim, não me exigia coerência porque não podia conferi-la, não se surpreendia porque nunca fora desapontada, trazia-me notícias de outros mundos e de outros moldes de vida e, mesmo que me desiludisse, acrescentava-me sempre qualquer coisa.

* * * Olhava para ele e a minha expectativa aumentava. Tinha cabeça, tronco e membros como os outros, mas qualquer coisa me dizia que lutava para

sobreviver à massificação dos corpos e das palavras e resistia. Talvez estivesse ali para se fingir parecido. A normalidade é importante, sobretudo quando se pretende conservar secreta uma qualquer

dissidência. É mais segura. Mas também era possível que estivesse ali para aprender a ser igual. Não sabia, nem poderia comprová-lo. Naquele momento, sabia apenas que ele não se ria como os outros nem dizia tantas coisas. - Se tenho saudades de fumar? - Sim? - Às vezes. Depois de um bom jantar. Não era bonito nem feio, mas trazia os dentes em bom estado e as calças engomadas. Daí, eu só

podia depreender que não se tratava de um delinquente ou de um artista. Era pouco. Isolei-me da conversa para o observar, e as minhas amigas acharam que eu não estava tão divertida como parecia ao principio; mas eu precisava do tempo que

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levaria a desmenti-las. Disse-lhes apenas: - Estou só calada. Sem querer, começava a ajustar o meu comportamento ao de alguém que, sem fazer nada por

isso, se impunha aos meus olhos e exaltava a minha curiosidade. É mais bonita - Você - segredou-me ele de repente. - É mais bonita do que as suas amigas...

Não sou - neguei, corando. E chegando a boca ao seu ouvido: - Mas você só vai descobrir quando eu deixar...

Podia não ser uma atracção vulgar. De vez em quando acreditava que o ser humano era capaz de encerrar e transmitir coisas mais

fecundas do que o sexo, e que a pele, quanto muito, podia servir de ponte para o descobrir. Quando o olhar é deficiente, o tacto pode ajudar alguma coisa. É amigo deles? - perguntei, com a voz diferente. Talvez - respondeu ele. - Hoje em dia exige-se tão pouco de uma amizade... Podia ser esta frase, ou outra mais breve ainda, mas eu fascinava-me sempre ao verificar que dez

palavras escolhidas podiam significar muito mais do que dez palavras quaisquer - a resposta do homem lançava-me uma escada.

Dei comigo a hesitar. Devia acender um cigarro para reprimir a tentação de subir o primeiro degrau, mas não resisti e

levantei o copo que tinha nas mãos. - Gosta disto? - Não bebo. As palavras eram as mesmas de tantos outros, mas eu apostava que, dessa vez, os motivos

poderiam ser mais interessantes; mas não sabia se era esperança ou intuição, nunca se sabe nada. Ignorava se ele era abstémio, se cumpria uma desintoxicação, ou se, pelo contrário, tinha fibra

suficiente para se sentir desfasado num sítio e aguentar, sem álcool, esse desajuste. Sem querer, dei comigo a observá-lo com os olhos muito abertos. - Por que me olha assim? - perguntou, admirado. - Não sei - balbuciei, apanhada em flagrante. - Às vezes olhamos para as pessoas, outras vezes

isso não basta... E atrapalhada: - Nunca lhe acontece? Mas ele não respondia; limitava-se a suspirar com o ar esquivo de quem acha que não vale a pena,

e eu lastimava que a anterioridade das pessoas fosse um país tão distante. Por muito que me esforçasse, nunca conseguiria desbravar aquele homem em tão pouco tempo. - Deixe lá - disse, para o safar. - Tenho a mania de me aventurar, mas ainda não sou boa nisto... Dizia-o renunciante, derrotada mesmo, com um profundo desgosto de me sentir incapaz de

comunicar com aquele ser. Mas ele fez-me uma festa na cabeça naquele momento, meiga e inesperada como um prémio de consolação, e a conversa soltou-se de repente.

Já não havia embaraço, mas a chave do mistério deixara subitamente de ser tangível. - Gosta de cinema? - Adoro! - Já viu o último Lynch? - Deus me livre! Agora falávamos e ríamo-nos como os outros, mas fugiríamos juntos, certamente, daquela sala

impropícia. - Acredita em Deus? - Não. Acredito na minha mãe que me jurou que Ele existia! Se tudo corresse bem, já poderia sair com ele durante anos, viver a seu lado, ter filhos seus, mas

o que ficara por dizer naquela noite não voltaria a ser aflorado; deixara fugir a única oportunidade de auscultar aquela alma porque o esforço que ele faria para me agradar naquela noite continha o de me desagradar no futuro. E isso turvava as águas, impedia-me de as ver à transparência...

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- Você tem umas mãos bonitas. - Você também. - Está a brincar. As minhas, são de lenhador! - Por isso mesmo. Que alguma coisa vos tenha ficado! Agora, sim. Poderia vir a amá-lo não pelas coisas que ouviria da sua boca, mas por essas outras que estivera

prestes a ouvir e que, por acidente ou incapacidade, não lhe conseguira arrancar. Era importante, até porque sabia que me poderia limitar a amar uma suspeita e a entregar corpo

e alma a uma probabilidade sem confirmação. Não me apetecia, mas já não ia a tempo. Ao contrário dos pesadelos, que parecem durar noites inteiras e que demoram instantes, há

momentos da realidade que se esboroam em segundos e nos podem iludir para sempre. * * * Começavam todos a olhar para os relógios quando arranjei coragem: - Apetece-lhe ir a outro sítio? Não tenho sono nenhum... Com a Vida tem de ser assim: incitá-la e esperar pela reacção. - Dançar? - perguntou ele, alarmado. - Passear! - propus cheia de energia. A Mafalda e a Pilar olhavam uma para a outra, cruzando códigos, mas eu abordei-as sem tirar os

olhos dele: - Alguma de vocês quer vir connosco? Excluía os outros, que me não interessavam, e dava-lhes a elas uma hipótese cínica de me

acompanharem. Felizmente, nem uma nem outra se lembrou de me dar uma lição. Poderia voltar-se contra elas e

não estiveram para isso. - Não. Nós vamos indo... Os outros surpreenderam-se por uma tão rápida debandada. Ainda não tinham percebido que eu estragara tudo. - Têm carro? Querem boleia para algum lado? Mas elas já nem os ouviam: - Foi óptimo este bocadinho! - Continue a escrever para nós continuarmos a engordar! E esses dois, que se tinham levantado por cortesia quando a Mafalda e a Pilar saíram, olharam

para nós e desanimaram. A tal ponto que já não tiveram coragem de se voltar a sentar. Despediram-se. Um deles ainda amargou, levemente despeitado, referindo-se ao meu acompanhante: - Tome cuidado com esse aí, que não é flor que se cheire... E eu logo: - E a sua? A que cheira a sua flor? A frase não tinha intencionalidade alguma, mas soara mal. Despediram-se num esgar, tão gorados quanto elas, e eu tinha pesado tudo antes de fazer o que

fiz. Confessei-lhe logo: - Desculpe esta maldade mas, de toda esta gente, sinceramente, apeteceu-me ficar sozinha

consigo... Paciência. Já lá ia o tempo em que era capaz de prescindir de tudo só com medo de uma avaliação

desfavorável. - Ora, que importa isso! - disse ele, com um sorriso terno. - Houve uma selecção natural.... Muitas vezes, demasiadas vezes, preocupara-me em não fugir às expectativas dos outros,

cobarde em contrariar os seus veredictos, desmoralizada pelo seu cepticismo, acorrentada à sua

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aprovação, como se o gozo da vida não fosse explorá-la permanentemente e a todo o custo e ela própria não fosse um trabalho para se ir corrigindo.

- Você também pensou o mesmo? Também lhe apeteceu ficar sozinho comigo? Ele riu-se, contagiado por tanto ardor, e eu também, espantada com a minha audácia. Provocara

toda aquela situação e agora tinha um pouco de medo do que se iria passar. Reparando na minha expressão perdida, ele sondou: - Está arrependida ou com medo de mim? - Não, não - disse eu. - Mas confesso que essa pergunta me sossegou. Pelo menos, tem

sensibilidade... E sem querer pensar mais: - É pessoa para me levar à praia a esta hora? Tem carro? Gostava tanto de ouvir o barulho do

mar... E atordoando-o: - Está uma noite bonita, não está? Mas estava era com medo de que ele achasse que eu era daquelas destrambelhadas que se

encontram à noite, com apetites extravagantes. E não era? Mas ele não pensava nada disso, que mania a nossa. Sem que eu esperasse, olhou-me nos olhos para

me perguntar se eu acreditava no destino. A pergunta era tão antiquada que cheguei a alarmar-me: o homem seria parvo? - Sei lá. Prefiro não acreditar... Quis perceber e eu expliquei-lhe: ainda que houvesse um sortilégio divino, uma conjugação astral ou

um qualquer poder misterioso que fixasse de modo irrevogável o curso das nossas vidas, reagia sempre com a maior rebeldia a tudo aquilo que pudesse fazer de mim uma folha ao vento.

E ele riu-se, tacteando: É então por uma questão de orgulho que não acredita no destino? - Não - neguei, frustrada. - É que para além da morte, da doença, ou quanto muito do escrúpulo, o

que lhe posso dizer é que ainda não conheci nada de verdadeiramente inevitável nesta vida... - Nunca? - estranhou ele. - Nunca - sustentei. - Chame-me simplória, se quiser, mas acredito sinceramente que não existe

força superior à da nossa vontade... E ressalvando: - Se você me disser que o meu destino deste dia foi tê-lo conhecido e ter gostado de si, nessa

altura eu rendo-me sem resistência. Mas só depois de você me provar que isso estava traçado na palma da minha mão, compreende?

Ele ria-se, eu defendia-me: - Repare: se houve um destino nisto, foi só porque eu arregacei as mangas e colaborei! Ele meditou durante um instante para condescender sorrindo: - Talvez. Talvez que para o homem livre o destino já não passe de uma proposta facultativa. Mas... - Mas, o quê? - perguntei, curiosa. - E tudo o resto que determina a existência? Os acasos, as coincidências, as circunstâncias e os

infortúnios que juntam ou separam as pessoas? - Tudo isso - disse-lhe -, longe de expressar um sentido oculto, tem pelo contrário uma total

coerência... E agarrando-lhe na mão, sem dar por isso: - Não é destino, é vida! Ele não insistiu e eu reparei que parecia cansado quando pagou a conta e se levantou, respondendo a

algo de que já me esquecera por completo: - Tenho carro. Mas temos de encontrar uma bomba aberta, porque eu não imaginava que ia partir

de viagem... Perguntei por instinto: - Não é casado, pois não? - Sou - disse ele. E notando o meu ar petrificado. Assustei-a?

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- Não, não... - fiz eu. Mas naquela atrapalhação revelei mais do que queria revelar; não estava desapontada por ele não

representar uma companhia plausível, mas por implicar mais trabalho do que imaginara. - Desiste? - desafiou ele. - Não sei... - disse, desalentada. - Mas tem de me incentivar um bocadinho, porque as minhas pernas

já não me obedecem... Era verdade. Tinha dito o que realmente me ia no coração, mas isso não constituía, em si, virtude alguma. Queria

muito ir passear com ele, mas aquela história já me fora contada tantas vezes que já lhe sabia o fim de cor e salteado.

Era uma anedota que eu já conhecia. - A minha mulher não está na cama à minha espera, se é isso que a preocupa - disse ele. - Está a

divertir-se a esta hora, com um grupo de amigos, e só volta para casa de madrugada... Mas não era a mulher que me preocupava: - Porque não foi com ela? Ele não respondeu e eu aprovei. Ninguém percebe coisas tão depressa. * * * Já no carro ele falou, num tom que não pretendia comprometer-me: - Sabe? Vocês hoje em dia são muito mais despachadas do que nós! Quando me juntei à vossa

mesa, nem me passou pela cabeça ter hipóteses com alguma de vocês... - Hipóteses? - Não, não é o que está a pensar. - disse ele, aflito. E explicando: - Hipóteses de vos despertar

qualquer espécie de curiosidade... - Porquê? - provoquei eu. - Não costuma fazer sucesso com as mulheres? Mas ele não tinha acabado: - ... Nós não podemos saber, percebe? Se vocês têm namorado, se gostam de nós, se embirram

com a nossa gravata, se não nos gozam nas costas. E essas vossas alianças são tudo menos eróticas, sabia? - Tem medo de levar tampas? - abreviei, muito prática. - justamente - confessou ele. - É muito

desagradável levar uma tampa. Ficamos assim, desajeitados, como se não percebêssemos nada a vosso respeito...

E rematando: - Ninguém gosta de fazer figura de parvo! * * * Estava perante um homem possível, via-se logo. - Você é querido, você não abusa... - disse-lhe, descendo o espelho. - Só se você não deixar. . confessou ele, expedito. Mas o diagnóstico acabara, já não tinha medo dele. - Deixe lá as coisas correrem, isto não é nenhuma urgência! - Não é? - Não. Você é casado, não é? - Sou - disse ele. - Mas tenho a mesma urgência que você tem... - De quê? - De que alguém me ajude a sentir bem! - É mesmo isso? E ele confessou, infantil: - Para já é o que eu sinto, desculpe. Você desafia-me a imaginação, não tenho culpa... Gostara daquela resposta. Revelava aquela incapacidade de mentir com eficácia, tão própria dos

homens, por que qualquer de nós era capaz de se apaixonar.

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Nem era bem incapacidade; era falta de empenho e, por muito que os motivos nos rebaixassem, pareciam-me, naquele momento, mais nobres do que os nossos.

Toquei-lhe com os dedos no pescoço, sem querer, e ele encostou imediatamente à berma. já tínhamos passado a ponte.

- Tem a noção do que está a fazer? - confirmei, prudente. Não me referia exactamente à berma, e ele percebeu ao que eu aludia: - Tanta como você.., E eu ri-me, para disfarçar: - A verdade é que, até agora, você não fez nada que me levasse a arrepender de ter tomado a

iniciativa... Era quase sempre assim a conversa de uma mulher que acabava de descobrir um homem: táctil,

jocosa, elaborada.. Não ouvi mais nada, e, contudo, falámos ainda durante algum tempo. Mas ele escutava-me a tocar-

me na cabeça e na cara ao mesmo tempo e os ouvidos não devem funcionar muito bem nessas alturas. E enquanto falava, puxava-me a cabeça para o peito e encostava a boca aos meus cabelos: - É bom estarmos aqui, não é? Olha se eu não tenho ido jantar fora!.. - Olha se eu não tenho ido ao Beethoven! - falei baixinho. E alarmada por a sua mão me estar a

chegar às costas: Não vá por aí! Tenho o fecho encravado! - Como vamos resolver isso? - perguntou ele. - Não sei - disse eu. - Não quero saber... E dei-lhe exactamente o beijo que me apetecia.

- Linda. Você é linda... - sussurrou-me ele, como se a beleza fosse o que ele sentira - Estamos às escuras - lembrei. - Como pode saber? * * * No hotel aquela cama impositiva, enorme, de uma parede à outra, constrangedora. - Quer ir primeiro à casa de banho? Ele, muito atento a coisas que não se viam nos filmes, a coisas necessárias. - Obrigada, demoro um minuto... E agora? Despia-me ali e aparecia nua, assim, sem mais nem menos? Ou saía vestida da casa de

banho e aproveitava para me despir quando ele fosse? Eram questões diplomáticas, numa primeira noite. Não queria despintar-me, queria era tomar banho. Depois do banho, a pele fica menos submissa... Abri a porta da casa de banho e arrisquei: - Apetecia-me tomar banho... Ele já estava nu, claro; tão nu que me fez baixar os olhos. Tinha um pouco de barriga, mas

estava-se nas tintas. Só esta atitude desculpa as fealdades. Os complexos nada têm de atraente, de facto.

- Já toma, venha cá... - disse ele, com uma expressão cómica. Acedi e, ainda vestida, apaguei algumas luzes do quarto. Depois sentei-me na cama e, chegando-me

a ele de costas, pedi-lhe que tentasse desencravar o fecho. - Não o estrague mais - implorei, sem lhe contar que o vestido não era meu. Há tantas coisas que os homens não sabem a nosso respeito. Nem querem. Nem precisam de

saber. No entanto, nós pretendemos saber tudo acerca deles. E enquanto eles reconhecem o nosso mistério e o temem, nós contornamos o deles como se fossem desalmados.

Desencravou o fecho com um despacho que me banzou. Pensei na mulher dele. Não pensei mais na mulher dele. Queria fazer perguntas. já não queria fazer perguntas. Ele resolveu o assunto, estendendo-me na cama para conhecer o meu corpo.

- Eu não lhe dizia que você era bonita? Eu vejo às escuras, sabia? - Não é você, são as suas mãos... - Talvez. Mas elas acabam de descobrir que você perdeu um brinco!

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- É verdade. Desde ontem que ando só com um... - Dorme com eles? - Com o quê, com os brincos? - Sim? - Às vezes - respondi. - Quando me esqueço de os tirar... Mas aproximava-se a prova de fogo, o preservativo, e não podia distrair-me desta vez. Tinha de

me apressar ou seria obrigada a fazer o teste novamente. Mais cinco minutos e seria tarde demais. - Tem medo da sida? - comecei. - Medo da sida? - Sim, medo da sida. Eu tinha. Revoltava-me que a Doença começasse a revestir-se de um estatuto de imoralidade concludente,

com vantagem dos sedentários sobre os errantes, mas sabia que me bastava arriscar uma única vez na vida para estar tão sujeita a contraí-la como um promíscuo qualquer.

Não queria correr riscos. - Quer dizer - suspirou ele, esfriado. - Não é um fantasma que me persiga constantemente ... E percebendo finalmente a alusão: - Quer que eu ponha aquilo, é isso? É melhor... - disse-lhe, penitente. E fechei os olhos. Doravante, todas as minhas relações estariam condenadas ao desespero da noiva que beija o

namorado na prisão com um vidro espesso a separá-los. - Tem a certeza? - tentou ele, em agonia. Era natural. Assistia com uma certa perplexidade ao conformismo das pessoas em geral, como se aquela

manga de plástico escorregadia e traiçoeira não comportasse a mínima possibilidade de afectar o desempenho do homem ou desfalcar o prazer dos amantes.

- Tenho - sustentei, ao vê-lo às voltas com aquilo. E animando-o: - Sabe que isso que você está a fazer não é tão pouco romântico como parece?

- Não é? - duvidou ele. - Não - disse eu. - Devia até ser encarado como um gesto do mais belo e nobre cavalheirismo! Ele riu-se sem vontade: - Assim como devolver o lenço a uma senhora? - Não - expliquei. - Assim como estender a capa no

chão para ela não molhar os pezinhos... Ele fechou os olhos por instantes, interrompido no seu transe, e eu fiquei com a sensação de que,

apesar de todo o meu esforço civilizacional, o mais certo seria ele tomar-me por chata ou hipocondríaca. - Pronto, já está! Nos primeiros encontros as coisas ou são muito fluidas, ou um pouco penosas. O que vale é que

toda aquela descoberta mútua era ainda, por enquanto, mais excitante do que o sexo. - Vamos ver como me porto. Se não desiludo esta menina... E só depois quis saber: - É casada? Tem namorado? E eu disse que gostara muito, claro, sem pensar no sexo propriamente dito. A verdade é que

gostara dele. Do sexo já não me lembrava muito bem. * * * Seguia a meio de um cruzamento quando uma ambulância apitou atrás de mim. - Atrás? Não sabia se era atrás, se à frente, se ao lado. Só sei que parecia silvar dentro de mim. - Ó minha senhora, afaste-se! Não vê que é uma urgência? Lembro-me agora. Levava no carro a minha sobrinha Leonor e perguntei-lhe, assarapantada: - Ó Leonor, vê lá se consegues perceber donde vem a ambulância...

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A miúda rodou a cabeça até poder, mas também não percebeu. E eu, transida por tanta pressão, ia afrouxando o acelerador e piorando as coisas.

Estava atrás de mim, afinal. Quando me dei conta de que aquela hesitação provocara uma densa fila de trânsito, virei dali em

sentido contrário direita à esquina de um passeio; e, apesar de estar em contramão, só me deu para travar e desligar o carro.

Os condutores que passavam eram obrigados a curvar drasticamente para não bater no meu carro, atravessando assim, no meio da rua.

Os insultos e as buzinadelas não me afectaram. A Leonor era muito parecida comigo. No meio da confusão toda que eu criara e do perigo a que a

sujeitava também, dizia-me: - A tia perdeu um brinco. Ou só usa um de propósito? E eu, sem responder, sabia que aquele rio na minha cabeça nada tinha que ver com o homem que

conhecera na véspera e me deixara em casa ainda há bem pouco tempo. Era cansaço, um cansaço absoluto, e há muito que eu vivia acima das minhas possibilidades. - É a minha cabeça que não está bem. Não é normal, na minha idade... E preocupada: - Tenho de ir ao médico... E a Leonor, achando que eu me referia à assimetria de brincos, julgava-me a delirar: - Não exagere, tia, a mim também já me aconteceu! Que querida, a Leonor. Tinha-a levado à estação para ir ter com o namorado. Pedira-me dinheiro emprestado para o

bilhete e eu dera-lho sem sacrifício nem mérito. Um sucesso como se lhe tivesse oferecido uma viagem ao Brasil:

- A tia tem a noção de que acaba de me fazer a pessoa mais feliz do mundo? - Sabes? - disse-lhe eu, contagiada. - Eu ontem conheci uma pessoa... Deu um grito como se acabasse de ser assaltada e lhe encostassem uma pistola à nuca: - Não acredito! - E rogando, agarrada à mim: - Conte, tia, conte-me tudo! - Tudo, não posso - disse-lhe. - Ainda não cheguei ao tudo... - Ainda não? - perguntou, desconfiada. - Ainda não aconteceu nada de extraordinário - disse eu. E suspirando, desanimada: - E, no entanto, todo o extraordinário já aconteceu! - A cama? - transgrediu ela. - Não - ri-me eu. - A expectativa! - Já sabe tudo a respeito dele? - desconfiou a miúda, lépida a seguir-me, mas apesar de tudo mais

nova. - Já - E estranhando-me: - já estou cansada dele e só sei que se chama Vasco... - Vasco? - Sim, Vasco - E insegura, eu que já perdera toda a distância para julgar aquele homem: - É um

nome estúpido? - Não, não é - sossegou-me a miúda. Voltava a ligar o carro, mas só porque avistara um polícia. Podia estar ali a tarde toda com os

homens aos palavrões à minha volta que não me faria diferença. Nem à minha sobrinha. Se fosse minha filha, não seria mais parecida.

* * * A Mafalda telefonara no dia seguinte, a sondar o que se passara: - Ontem. Acabou em romance? - Não exactamente - respondi. - Era simpático?

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- Por acaso até era... Desligou quase a seguir, despeitada com a minha reserva. O Vasco falara depois, estranhíssimo como todos os homens. Não me pedira o número de

telefone, procurara na lista: - Está lá? - Estou, quem fala? - Sou eu. Típica dos homens, esta convicção absoluta na sua exclusividade. - Viva, bom dia! - Gostou da noite de ontem? Tão directo que, instintivamente, levei a mão à carteira para procurar um cigarro. A nós, mulheres, é-nos sempre difícil a naturalidade. De tal forma que chegamos a acreditar que

nesta primeira fase, débil, uma frase mal colocada pode deitar tudo a perder. - Noite? Que noite? - brinquei. - Não me lembro de noite nenhuma... Ele riu-se e perguntou: - Então, foi tudo sonho? - Tudo não - ri-me. E desafiando-o: - Adivinhe o que não foi sonho... - O fecho encravado? - Não, o brinco! Encontrei o brinco! E logo ele, aproveitando: - Então, temos que festejar! Quer jantar esta noite? Era sempre possível encontrar uma monotonia, mesmo em coisas daquelas. - Se não se importar de jantar tarde, só saio com os meus filhos encaminhados... - Por mim está óptimo - disse ele. E sem transição: Vou buscá-la? Enquanto lhe rezava a morada pensei na mulher dele. Quis perguntar-lhe se ele sabia o que

estava a fazer, mas era uma questão para colocar a mim mesma. - Dez horas é tarde? - propus. - Um bocado - achou ele. E logo a seguir, tornando-me cúmplice da sua conspiração conjugal: -

Não faz mal. O pior que me pode acontecer é jantar duas vezes... Fingi que não percebi porque não queria jogar aquele jogo. Que chato. Ele desconhecia os meus

óbices e eu fazia tenção de o poupar a todos. Castiguei-o desligando bruscamente, o que o deve ter desconcertado. Mal poisei o auscultador, tocou a Leonor: - Então? O seu namorado falou-lhe? - Não tenho namorado - respondi. E era verdade: o substantivo não se aplicava. * * * Na manhã seguinte o Vasco voltou a falar-me, a querer agarrar-se ao pouco que houvera entre

nós. Se não fosse ele, tinha a certeza, as coisas não teriam sequência. - Foi bom, não foi? - O quê? - perguntei para chatear. - Nós. Ontem. Lá. - Não lhe digo. Só lhe digo quando me perguntar onde achei eu o brinco... - Na sua carteira? - Como adivinhou? - Está sempre lá tudo. As carteiras das mulheres são labirintos escarninhos, pelo menos é o que

tenho ouvido... - Gostei - disse, respondendo quando eu queria e não quando ele queria. - Gostei imenso, foi bom. - E eu queria voltar a ver-te - disse ele, estreando aquele tu que nos excita. - Hoje também... Engoli em seco para desprender a voz:

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- Eu também gostava, mas... Ele seguia-me, ansioso: - Mas ... ? - Mas numa tasca qualquer porque não me apetece trocar de roupa. Quero ir como estou... E testando-o, como se o dia seguinte dependesse da sua resposta: - Importas-te? Mas os homens são mansos, enquanto não lhes chega a indiferença ou a vontade de nos punirem.

Desde que não nos achem feias ou velhas, tudo o resto é indiferente: - Importo-me só se não vieres. Não quero saber dessas coisas... Era verdade, via-se que era verdade, e eu comecei a gostar dele aí, precisamente, a partir

daquela resposta. Como se explicava isto a alguém? Que me apaixonara por ele graças a uma resposta que traduzia

algum desprendimento? E ainda por cima era relativo esse desprendimento que eu lhe atribuía. Naquele momento havia

prioridades, isso sim. E, para o Vasco, ter o meu corpo despido era, por enquanto, mais importante do que ter o meu corpo bem ou mal vestido.

- Então, está bem. Vou contigo... - Que bom - disse ele. - É bom estarmos juntos! - É bom - concordei. Era verdade, mas não interessava muito. Também era bom ir ao cinema, ou comprar um vestido,

ou ler um livro, ou estar com as minhas amigas. Antes do amor, as prioridades baralham-se. - Até logo, miúda - disse ele, embalado. - Até logo - devolvi eu, despindo a frase de qualquer vibração. Espantoso. Toda a dissimulação que nós fazíamos não podia ser senão sobrevivência. Muitas vezes, aquele nosso discurso obscuro e absurdo, composto de avanços e retrocessos,

paradoxal e enlouquecedor para qualquer homem e com poder suficiente para o enfeitiçar e exasperar, mais não é do que uma manobra feminina inconsciente com dois sentidos ocultos: preservação e desforra.

* * * Estava a ver televisão quando desaguou na minha alma uma tristeza completa, calamitosa. Via o filme Pandora, com a Bisset e o Michael York, uma gravação da Cabo que eu trouxera do

último jantar da Iga e onde tudo me parecera invenção: as pessoas, os aventais, os relvados, os penicos. Era tudo falso, para variar, e toda aquela beleza me entristecera como quando se descobre um

dos pais a mentir. Via-se um filme de três horas e meia, ou lia-se um livro de seiscentas páginas, e agarrava-se,

quanto muito, uma ideia. Apenas uma ideia. O filme era sobre uma casa que não merecia as pessoas e só essa eu fixaria. Falou-me a Pilar, e ainda duas ou três vozes insípidas para a minha filha adolescente. E até nisso eu cumpria, caramba! Como se a minha voz, ao telefone, desamparada de gestos e expressões, precisasse de ser

enfatizada para demonstrar alguma idoneidade aos amigos da minha filha. - Fala mais tarde. Correu-te bem o teste? Quando é que apareces? já tiraste os pontos do

joelho? Os teus pais tiraram-te a moto? Era isso. Eu era mãe de todas aquelas crianças, a Iga tinha razão. As crianças eram de todas,

pertenciam a todas, eram todas nossos filhos, saídas dos nossos úteros. Ninguém tinha autoridade para dizer meu, a não ser que as amasse como eu.

Mas a minha tristeza grande, completa. Sugestionada pelo filme, olhei para a minha casa e tive saudades de tudo, no caso de perder tudo.

As coisas estavam ali e eu senti, de repente, medo de as perder.

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Pensei nos santos e em todo o seu despojo. Pensei que Cristo nunca falava no amor pelas coisas, como se não existisse

E existia. Era um amor como outro qualquer. Era o que de mais constante tínhamos, que diabo, as minhas

coisas, as minhas testemunhas, as minhas fases! Para quem não tinha grande memória do passado - ou o enterrava como eu - as coisas adquiriam

uma importância crucial. Vieram-me lágrimas aos olhos. Eu era infeliz? Não, não era infeliz, era assim. Como toda a gente, aliás: menos infeliz do que

supunha. Há anos que me agarrava às adversidades para justificar a relação penosa que tinha com a vida,

mas, olhando para trás, com ou sem problemas, fora sempre assim. E a minha mãe? Dava-me ternura, ou era eu, afinal, que lha dava a ela? Não interessava. Agora, eu também sabia que tudo podia ser mais prioritário do que os filhos.

Os filhos só eram prioridade na medida em que ameaçavam as nossas prioridades. E as minhas, no fundo de tanto mimo e atenção para com eles, afinal, nunca eram eles.

Via-se isso, claramente, nos divórcios. Um para cada lado e deixava-se de ir à missa, de comer à mesa, de hidratar a pele, de lhes falar nos pássaros e de Deus.

O arquétipo era demasiado forte. Os filhos eram a família, infelizmente, não valiam por eles e para valerem era preciso muito

esforço. Já sabia como era. A prioridade era alguém que dormisse connosco, entrasse na nossa casa de banho, nos amasse e

nos deixasse voar para onde quiséssemos. Talvez injusta, mas essa. Tinha lágrimas nos olhos e a certeza absoluta de que me poderia desatar a rir com verdadeira

vontade no próximo telefonema que me fizessem. Era assim a minha infelicidade: sempre preparada para a felicidade. E só aparecia nos intervalos. * * * - Sim? - novo telefonema, outra vez do Vasco. - Vasco? Não me digas que queres estar comigo

outra vez, isto começa a arrastar-se... Eu também não gostava daquilo. Viver simultaneamente a amar, a defender a pele, a vingar as mães e a ajustar contas era uma

coisa cansativa. Mas era assim que eles nos obrigavam a viver: a despertar neles, constantemente, a necessidade de nos conservarem.

E o Vasco tacteava, corajoso: - Mas, como é que foi com os outros? Também eram assim? Descartáveis? - Depende - disse eu. Incrível: centenas de livros lidos, de viagens, de discussões, de demanda pessoal, cósmica e

universal para, nestas alturas, só valeram as patacoadas e tudo o resto ser supérfluo? Quer dizer: eu estava-me nas tintas para a reacção dele. Era uma espécie de operação-suicida,

de um bluff em que poderia ganhar ou perder tudo e pô-lo a fugir a sete pés. Um afecto de uma mulher logo nos primeiros dias é algo de aterrador para qualquer homem.

Veríamos como reagiria este. Apetecia-me dizer-lhe gosto de ti porque era quase verdade, mas não lhe disse porque me

comprometeria a dizer mentiras a partir desse instante. Além disso, estava com uma dor de cabeça desde manhã que tornava tudo relativo.

Eu não o amava, mas estava-lhe agradecida. Estava cheia de ternura, sim. No fundo, era isso: eu amava-o, amava-o com todas as minhas forças, que eram nenhumas.

É assim, muitas vezes, a cabeça das mulheres: todas as contradições possíveis no mesmo

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sentimento. Desde pequena que os paradoxos da vida me atormentavam. Não sabia se aquilo era geral e se se

passava com toda a gente, mas eu tomava-o como um karma pessoal persecutório. Desconhecia até se era um vício meu, se da própria vida que estava minada deles e se podia

subverter em todas as situações. Ser e não ser. Amar e não amar. Poder e não poder. Existir sempre razão numa realidade e no seu

contrário. Mudei de ideias. Resolvi experimentar o Vasco, não tinha nada a perder. Sentia-me masculina e feminina ao mesmo

tempo - uma deusa sem precedentes na mitologia: - Sabes? Eu gosto de ti! Ele calava-se, eu insistia: - A sério! Conheci-te há dois dias e já gosto de ti ...

E preservando-me: - Quer dizer, não é amor-amor, mas é também amor, percebes? Ouve: nós demos beijos,

adormecemos agarrados um ao outro, que diabo! Se isto não é amor, então o que é? Achas possível dar-se beijos a alguém de quem não se goste?

E a isto, a que tantos chamam perversidade, dever-se-ia em rigor chamar prudência; não significa que não amemos os homens, mas antes que o que mais desejaríamos no Mundo era poder, tal como eles, entregarmo-nos sem arriscar a vida.

As palavras eram importantes para mim e ele já o tinha percebido. A sua voz estava portanto lenta, assustada. Mas lá conseguiu dizer:

- Eu... eu não sei muito bem. Talvez seja cedo de mais para garantir, mas eu acho que também gosto de ti...

Nenhuma mulher aguentaria aquilo. Falava assim, com uma sinceridade escrupulosa que me comovia, e ganhava-me a olhos vistos.

- Ouve - disse-lhe, nas tintas para o recato. - Sabes onde moro, não sabes? Estás a trabalhar, não estás? Então sai daí neste momento, desse escritório repetitivo, e vem ter comigo agora. A sério, queria tanto que viesses aqui. E agora mesmo, pode ser? Logo pode ser diferente, não prometo nada. Vem já, tem de ser já...

Falava depressa, para o aturdir a ele e não me ouvir a mim mesma: - Vens, não vens? - Eu vou - resolveu ele. Estava louco, ele também estava louco. Deixar o escritório assim sem mais nem menos era

arriscado. De um momento para o outro poderia voltar-se contra mim. - Queres mesmo, querido, queres? - confirmei, vacilando. Mas depois perdi-me naquilo. Não me aguentava em jogos por muito tempo. - Ou será que estás com medo? Eu gostei de ti, caramba! Isso não é tão esquisito assim, pois

não? Eu gostei de ti, tens um corpo quente, uma pele de miúdo, colaste bem a mim, quando abri os olhos fazias-me festas nos cabelos, pagaste o hotel sem que eu me apercebesse, mandaste-me descer só depois de te certificares de que não havia ninguém na recepção, és sensível e eu apetece-me amar-te! Neste momento é a mesma coisa, entendes?

Ele respirou fundo, não aguentando o meu fôlego, a minha vibração e o meu discurso torrencial, à espera de uma brecha para perguntar:

- Moras no terceiro esquerdo? E ainda acrescentou qualquer coisa ao desligar. Pareceu-me “Seja o que Deus quiser”, mas não

tive a certeza. * * * Deitei-me no sofá, a ferver de febre. Queria-o dentro de mim outra vez, pela primeira vez. Era uma história nova, tudo recomeçava ali, naquele instante, e ao novo não se resiste.

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Não era casada, nem tinha ninguém determinante no momento, mas mesmo que tivesse talvez não pudesse resistir àquilo.

E distorcia tudo, para me absolver. Céus, a fidelidade! O que podia ter de asfixiante, e de letárgico, e de redutor, de tantas outras cargas negativas a grilheta da fidelidade para o resto da vida... “Devia ser proibida, condenada como um genocídio”, delirava eu. E a transgressão podia ser uma coisa higiénica, convencia-me. Qualquer dia os ecologistas teriam

de o reconhecer. Os cardiologistas diriam que fazia bem ao colesterol e à hipertensão arterial, e os oncologistas também acabariam por dizer que a paixão, qualquer paixão, criava defesas contra as células cancerígenas. E, mais tarde ou mais cedo, acabariam por reconhecer que o próprio Evangelho, levado à letra, diminuía a esperança de vida das pessoas.

A religião não poderia comportar esse contra-senso tão grande por muito mais tempo e o próprio Papa haveria de vergar com o axioma.

Afinal não, que estupidez: que sentido faria uma transgressão consentido? Mas, não só a transgressão: a mentira era também importante. Ser sincero a todo o preço era

uma coisa desumana... * * * Tocaram à porta. Eu sabia que era ele, não o conhecia bem ainda, mas sabia que era ele. O toque, o mesmo toque da

campainha do primeiro dia. O mesmo toque dentro de mim. Era ele, só podia ser ele... Era ele. Vinha arquejante de subir as escadas a correr, com uma aflição tal que me agarrou a cabeça. Depois, tirou-me a camisa, puxou-me o soutien para cima sem calma para o desapertar, rebentou-

me o fecho das calças ao tentar descê-las, balbuciou “Onde é o teu quarto? Estamos sozinhos?” e ia-se despindo ao mesmo tempo.

Deitava-me no chão enquanto eu lhe dizia “É ali”, mas não esperava, arrancava a gravata, arrancava os botões da camisa e das calças, e eu ria-me “Vais sair daqui esfarrapado, sempre quero ver como vais tu sair daqui”, tudo muito depressa, sem tempo para nos envergonharmos um do outro, melhor, muito melhor do que no hotel, e, de repente, o telefone a tocar ali ao lado e eu estúpida, tão estúpida a atendê-lo:

- Sim? Como? Do colégio? Aconteceu alguma coisa ao meu filho? Caiu? Já o trataram? E o Vasco a perceber que não era nada de grave e a beijar-me o corpo inteiro, a percorrê-lo com

os dedos, já a cheirar a suor, a descer por mim abaixo, “Pára!”, gritava eu, “Pára!”, e a mulher sem perceber, “Não era consigo, minha senhora, a minha outra filha está a passar por aqui neste momento com um tabuleiro nas mãos e vai entornar os copos todos, meu Deus, pára!”.

- Vou buscá-lo agora mesmo, obrigada. Mas ele está mesmo bem, ou está-me a esconder alguma coisa?

E o Vasco a continuar, e eu a odiá-lo, e a mulher a estranhar, e eu a gritar-lhe: - DIGA AO AFONSO QUE EU VOU BUSCÁ-LO AGORA MESMO! Ficamos como mortos, esgotados, fuzilados sobre o tapete. Não conseguia levantar-me. Levantei-me. Ele ficou no chão, fez-me uma festa na perna e disse-me

“Estamos feitos, isto vai ser um sarilho, tu és linda, linda ... “, como se no sexo estivesse a verdadeira beleza, e eu fui-me arranjar, aflita, a pensar no miúdo.

Tirei as meias, estavam rotas, tirei as cuecas que me pendiam de um pé e arrastavam pelo chão, estavam úmidas, corri a cortina, entrei para o duche, fechei os olhos, deixei a água correr, ele quis entrar por ali dentro ainda meio vestido e eu disse-lhe “És tonto, és maluco de todo? Como vais sair daqui nessa figura? Não vês que tenho de ir buscar o miúdo ao colégio?”, e ele disse-me “Não interessa, não interessa, isto para nós é muito mais raro do que vocês podem imaginar ... “, e quis voltar a ter-me ali, debaixo da água

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que corria... Mas a vida é feita de histórias, as pessoas precisam de histórias para se sentirem vivas, e eu já

poderia viver daquela por algum tempo, uns meses talvez... E ele a dizer-me “És linda, julguei que gostava dela e afinal não, és lixada, acabas de me estragar a

vida e eu estou-te tão agradecido, mas tão agradecido ... “, e eu, furiosa pela alusão, a empurrá-lo do duche e da minha vida:

- Tenho de me ir embora, não percebes? Agora, chega! O meu filho é mais importante do que tu, desculpa lá...

* * * Fui buscar o Afonso ao colégio sem ter braços nem pernas, a garganta estrangulada, o suor a

escorrer, uma batida tão forte no coração que receei que ele a ouvisse. - Olá, meu querido, que susto, anh? Como é que foi? Foi a jogar à bola? E ria, apesar de tudo ria sem parar. As mãos tremiam-me ainda, todo o gozo estava ainda ali, intacto, a comprometer-me. Ele olhava-me espantado, muito espantado, “De que é que a mãe se está a rir, pode-me dizer?” E amuado, nos seus nove anos cheios de razão: - Acha graça a eu estar assim? Com esta ferida? Arregaçou as calças até o joelho, mostrou-me o golpe que eu ainda não vira, era grande e fundo,

inofensivo, e eu ria, ria num esgar desenquadrado que magoava a criança e me desvirtuava aos seus olhos pensando que era duro, muito duro viver com pessoas tão pequenas que não nos podiam perdoar.

* * * Filhos. O jantar da Iga tinha sido quase todo a falar deles. Havia um José Maria, junto com uma Luísa há menos de seis meses, a transferir a paternidade de

um filho perdido num divórcio para os filhos da sua nova mulher. As coisas que ele dissera. O que eu me rira com o sistema que inventara para que as crianças não chamassem a mãe mais de

seis vezes por dia, distribuindo cartões a cada uma, e do estratagema da mais nova que os poupava à tarde para depois, uma vez deitada, chamar a mãe seis vezes seguidas durante o filme da noite.

Fora depois destes pequenos prosaicos que a conversa resvalara para assuntos incómodos, como a desordem dos miúdos, espelho da nossa, ou o gosto pelo feio, pelos brinquedos-monstros-armados em vez dos pinóquios, grilos e sininhos da nossa infância, ou pelos vídeoclips com cantores vestidos de templários, com cruzes ao pescoço e dentes escorbúticos, em vez da Julie Andrews a cantar “Just a spoon full of sugar helps the medicine go down ... “

Aquilo era sério, e era grave, quase tão grave como um poente que um dia me apanhara desprevenida e me deixara de rastos.

- Por que é que eles agora gostarão do feio? - perguntava eu, como se o belo tivesse que ser só a harmonia e logo por sorte a minha.

- Porque é o feio que eles testemunham em nós, não percebes? Nas nossas discussões com maridos e ex-maridos, no nosso exemplo a contrastar com os nossos sermões, na nossa batota toda, no que os usámos para retaliação, a trocá-los por fagueiros e camilhas, a negociar as idas ao pai com verbas para livros, remédios e calçado...

Não tínhamos, de facto, o direito de lhes roubar a infância só porque andávamos nervosos e perdidos.

Não tínhamos? E alternativa, tínhamos? E o Zé Maria, e a Luísa, e eu, e a Iga, todos de olhar perdido a duvidarmos da nossa

responsabilidade, sem querermos confessar a nossa impotência para lhes ensinar o belo, a nossa impossibilidade, melhor dizendo, para lhes transmitir qualquer espécie de espiritualidade ou de maravilhoso

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ou de fantástico ou de esperança ou de verdade. - Mas tu, por exemplo, és óptima mãe... - dizia-me a Iga. Óptima mãe? - estranhava eu. - Óptima mãe, ou mãe simplesmente? E tinha dúvidas, claro. Às vezes, sentia-me desconfortada com as considerações demasiado poéticas que se teciam a

respeito das mães em geral, como se uma mãe não fosse uma transgressora como outra qualquer, e, sobretudo, como se esse estatuto tantas vezes involuntário bastasse para nos absolver de todas as faltas e quase santificar.

Definitivamente, uma mãe não é a desesperada da enfermaria seis que expulsa aos berros uma massa ensanguentada - essa ainda não é mãe, mas candidato -, nem tão pouco a indigitada que vigia o sono, dá o peito a beber, muda as fraldas do recém-nascido incontinente: qualquer ama é capaz de fazer isso, por afecto ou por dinheiro.

Uma mãe é, quanto muito, para além da sua condição de hospedeira acidental, programada, imposta, resignada, relutante ou babada de um futuro ser pensante, alguém com coragem suficiente para investir a fundo perdido em desconhecidos.

Desconhecidos, sim: o que são os filhos senão desconhecidos, que podem um dia vir a negar-nos, bater-nos, esquecer-nos, roubar-nos, ou ainda, na melhor das hipóteses, amortalhar-nos em vida juntamente com outras múmias?

E vivia com aquela dúvida. Seria que, como mãe, eu tentava corresponder a esse modelo de generosidade e desinteresse por

verdadeiro amor, ou apenas para tentar merecer o tal estatuto inimputável que se concedia indiscriminadamente a todas as mães do Mundo?

Não agiria eu, na maior parte das vezes, por sujeição a comportamentos morais instituídos e legítimo pavor da desclassificação social?

Sim: o que seria dos filhos, sem a censura do Mundo? Não, não era isso: no fundo, no que eu não acreditava era que houvesse, que alguma vez pudesse

existir uma prova material que distinguisse a boa mãe da geratriz briosa, técnica ou galinácea, ou seja algo que nos conseguisse demonstrar, preto no branco, se uma mãe, quando triunfa, o consegue por amor, por orgulho ou por bambúrrio.

- Mãe. Mãe! ó mãe, não me ouve? A verdade é que fossem as mães as mais generosas, abnegadas e altruístas personagens desta

vida ou as mais déspotas, perversas e castrantes criaturas do Universo, o Mundo conceder-lhes-ia sempre um benefício de dúvida ao abrigo do qual elas poderiam cometer os crimes mais hediondos.

- Ouço, meu querido, ouço-te sempre... Mas, não importava. Desde que fossemos sabendo que o exercício da maternidade começava só depois daqueles nove

meses de enjoo e lágrima fácil e não se restringia ao acto de dar à luz naquela “hora pequenina”, mas até à morte de um filho, era possível que, um dia, aprendêssemos a controlar melhor o nosso instinto de lobas para podermos merecer, então, talvez, todas essas qualidades hiperbólicas que os miúdos nos dedicam em verso ou em prosa em cartões com laços e corações comprados em cima da hora nos centros comerciais, e que, por vezes, só servem para embaraçar as mais honestas.

- Então, fomos nós? - perguntava o Zé Maria, aflito, como se tivesse pensado nisso pela primeira vez e já não fosse a tempo de reparar a distracção. - Será mesmo por nossa causa que eles estão assim?

- A culpa é do século - garantia a Iga. - Neste século passou-se tanta coisa que não nos foi possível digerir. Para nos adaptarmos, tivemos de os lesar a eles...

E eu a concordar, angustiada: - E tudo isto que agora lhes reprovamos e tentamos inverter sem sucesso, esta droga da

televisão, dos CD, dos jogos electrónicos e dos computadores, tudo isso fomos nós que inventámos para que os miúdos nos deixassem dormir pelo menos ao sábado!

E de repente o meu filho ali, a fazer beicinho: - A mãe não ligou nada à minha ferida...

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E eu a lembrar-me do Vasco a encostar à berma e da empregada da secretaria a falar ao mesmo tempo, e da minha sobrinha a perguntar, de certeza, no dia seguinte, “E agora? já me pode contar do seu namorado?”

E eu a encostar outra vez num sítio estúpido, com os carros a apitarem novamente atrás de mim, zangados, pensando que havia poucos desastres, que afinal havia muito poucos desastres e em como seria possível que as pessoas não endoidecessem todas ao volante ou chocassem de frente umas com as outras, e na nossa inconsciência em conduzir no meio de tanta gente desesperada ou distraída, no meio de tanta gente em suspensão como eu naquele momento que poderia matar o primeiro cego que encontrasse por causa de meia dúzia de viagens num tapete de kilim.

- Meu querido. A tua ferida é uma coisa importantíssima. A mãe está-se a rir porque não é grave e sabe que és corajoso! Vamos lanchar para eu te poder dar todos os bolos da pastelaria. Quantos queres? Dez? Doze? A mãe esqueceu-se de trazer a carteira, mas vai roubá-los para ti, queres? Vai ser uma aventura! Tu ficas a vigiar se há algum empregado a olhar, e a mãe rouba, num instante, seis bolas de Berlim para ti e seis palmiers-recheados para a mana!

E sedutora: - Queres, meu querido? E o meu filho a ceder, enfim, no fundo agradecido por eu não me parecer como as mães dos seus

amigos que se levantavam às cinco da manhã para lhes refogar as marmitas e lhes perguntavam à tarde “lanchastes, filho?”

Dessas. Que bordam toalhas enquanto os maridos se cosem com outras, com a casa num brinco e todo o corpo, incluindo o pouco que eles beijam na cama, a cheirar a lixívia, e o Vasco a desaparecer do horizonte como que por encanto, sem consistência ainda para entrar na minha vida, sem contextura para rivalizar com o meu filho, e eu a convencer-me, e eu a estranhar, quem é o Vasco, não conheço nenhum Vasco, não existe Vasco nenhum, afinal.

* * * - Tia! Agora já me pode contar do seu namorado? - Conta-me tu do teu: ouvi dizer que está doente... - Tem uns caroços no pescoço e ninguém sabe o que é. Mandaram-no repetir as análises. Tia ... ? Está-me a ouvir, tia? Eu estar, estava. Mas não tinha coração para aquilo e fingi que o telefone se desligara. Quando a miúda voltou a falar e não atendi, deixou-me o seguinte recado no gravador: “Tia. Percebi perfeitamente que desligou e que por esta altura já deve estar com remorsos. Mas

compreendo-a tão bem que não me zango consigo. Adoro-a!” Vá lá, a minha sobrinha desculpava-me. Ainda bem, porque havia alturas em que nem os problemas dos mais chegados conseguiam seduzir

a minha generosidade. Solucei até os meus filhos me perguntarem se eu me tinha zangado com o Nuno. - Nuno? Que Nuno? - perguntei, esquecida. E foi só nessa altura que me lembrei que tinha um namorado relativamente estável que deveria

chegar nessa noite para jantar. Fui despintar-me rapidamente, e, quando o telefone tocou, no fim do meu dia, apanhou-me

desfeita. Era o Nuno, claro, a querer combinar as coisas, mas eu não era capaz de falar mais nem de trair

ninguém. Antes não lhe mentira porque nem sequer me lembrara dele, mas a partir dali, sim, estaria a

fazê-lo. E falei tudo muito explicadamente porque já era tarde, conhecia o temperamento dos homens

desde o princípio dos tempos e, sobretudo não tinha fôlego para nenhuma réplica.

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Era preciso que o discurso fosse suficiente e inapelável: - Ouve: tenho uma coisa para te dizer. Conheci uma pessoa que me impressionou. Não sei o que é,

nem me interessa, mas há qualquer coisa. Aguenta-te. Vocês vão para a tropa para quê? É que entre isto e andar a mentir-te achei preferível dizer-te. E não me perguntes se eu ainda gosto de ti e essas perguntas tipo sim-ou-não, porque as mulheres não funcionam assim. Digo-te já que não sei, e nem sei se vou saber tão cedo. Gosto de ti porque foste meu, e gosto de ti porque poderás voltar a sê-lo um dia, se quiseres ou achares que vale a pena. Agora não gosto tanto, porque como penso noutra pessoa não tenho consciência de mais nada.

Não o deixava falar de propósito, e fugia para a frente, apavorada. O drama era dele, mas o cansaço era meu e naquela altura valiam o mesmo. - Isto dura há três dias. Não comeces já a perguntar-te se já se passava há mais tempo, nas tuas

costas. Aconteceu há três dias, compreendes? Não estavas cá, estavas fora. Desculpa-me, se puderes... O drama era dele? Talvez que esta nova ciência da Matemática Difusa, que ensaia novas valorações para as coisas

até agora não mensuráveis, como o amor ou a dor, me possa um dia esclarecer sobre o que é que custa mais: deixar ou ser deixado.

Ser deixado custa mais no momento, mas deixar custa o resto da vida e talvez seja isso o envelhecimento.

Na verdade, se a idade das pessoas se medisse pelo número de abandonos às casas, às coisas, às pessoas e aos sonhos eu talvez já pudesse ser centenária.

O telefone voltou a tocar, enquanto eu desafiava o espelho para ver se me seria possível rasgar um sorriso alegre enquanto estava com a alma num frangalho.

E era possível, santo Deus! Eu podia rir-me, fazer brilhar os olhos, afectar tranquilidade em toda a minha expressão,

enquanto recolhia ao quarto, nessa noite, a desejar que Deus, ou o meu cérebro, ou ambos, não me retivessem lúcida depois dos sessenta.

Mas não era o Nuno, era o Vasco, e a enxaqueca latejava. - É chato falar a esta hora? - É - aproveitei, baixando o tom. - Mandei o Afonso para a cama e agora não dá muito jeito... Claro que as crianças dormiam as duas a sono solto e que o Vasco não poderia suspeitar que

aquela fêmea de há poucas horas era a velha senhora que, antes de morrer uma vez mais, ainda arranjaria coragem para preparar novo penso para colar no joelho do “neto” sem o acordar.

* * * Estávamos todos em casa da Mafalda, no campo, e eu babava-me de gozo a olhar para as minhas

amigas. A Mafalda com toda aquela leveza imoral, velha e nova, antiga e moderna, eterna, a assumir a sua

casta como nunca vira a ninguém desde a Revolução, de vison por cima da camisa de noite, redentora. E a Pilar, exprimindo-se naquele discurso articulado que era tão bonito como um quadro ou uma

paisagem, um quadro imensamente belo, destes cheios de pormenores subtis para se admirarem, mas que levam tempo a encontrar-se, sustentando a uma Iga queixosa:

- Essa entrega toda que tu fazes aos homens ainda não é amor! Amor é outra coisa muito diferente! Isso significa apenas que queres muito ser amada, isso não é amor!

E apaixonada, como se estivesse zangada, quase histérica E com as mãos a tremer: - Aliás, quando uma mulher encontra o homem da sua vida ela já ama há que tempos! E ama mais e

com mais ardor por que o seu défice é antigo! E é capaz de amar qualquer coisa - uma casa, um vestido, um homem - porque precisa de, melhor ou pior, ir debelando o seu crédito!

E comovida: - Sabes quem me ensinou a amar? Saberás por acaso quem me ensinou a amar? Não foi o Manuel

nem o João, foi o meu filho Henrique que tem seis anos e anda na primeira classe! E prosseguindo, exaltada:

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- Além disso um homem não se escolhe por ser inteligente, menina, e tu não podes profanar as hierarquias!

- Hierarquias? - perguntava a Iga, perdida. - Não sei de que é estás a falar... E a Mafalda a ouvir do corredor e a abrir a porta, solícita, para lhe recitar a cartilha: - Primeiros os santos, depois os heróis... Mas a Pilar obstinada, a levar aquilo a sério: - Vocês não podem esperar tudo do amor, caraças! O amor não dá o que a pessoa não tem! E incrédula: - Será que nunca vais perceber isso? E ela ainda, pujante, solar e apaixonada a desistir, estafada: - Sabes o que te digo? Sabes o que te digo? Eu, agora, de há uns tempos a esta parte, só discuto

quando não tenho razão! E a Mafalda a rendê-la para chocar a Iga, de propósito: - E fica a saber que raramente escolhemos, menina! Na maior parte das vezes, o amor não é mais

do que fogo nem os homens mais do que lenha: mata, ou capim, arde tudo o que estiver ao lado! E a Iga a esconder a cara, derrotada, traduzindo toda a sua incapacidade de se justificar, e a

Pilar a agarrá-la mesmo assim e a suster-lhe os soluços para lhe dizer: - Adoro-te, Iga, adoro-te, ainda bem que choras. Caramba: há quanto tempo não choravas tu? E o Eduardo e a Isabel, único casal presente, defronte da lareira a olhar o fogo como se vissem

televisão, embrutecidos, fartos da vibração do mulherio, e o mesmo Eduardo a levantar os olhos ao céu para prevenir a mulher:

- Sabes? Este desassossego todo está-me a cansar e eu vou-me deitar... E a Isabel, a leste, excluída daquelas cenas apenas por ser casada e ter todas as vantagens e todas

as perdas decorrentes, a levantar-se para atear o fogo da lareira para que ela não se extinguisse antes de admitir a impressão que as mulheres divorciadas, exibindo todo aquele luxo de disponibilidade para o novo e o imprevisto, lhe causavam, e a repisar, azeda:

- Largam os maridos porque pensam que vai ser melhor, não é? Agora não se queixem, bolas! Foram vocês que quiseram, não foram?

E a Mafalda a cair sobre ela, demolidora: - Ouve, menina: o casamento não é ir à igreja trocarmo-nos por eles e sair de lá contentes! E depois a Iga no quarto, e a Pilar no mesmo, com duas camisas de noite tão brancas como as

colchas da cama, a lembrarem as gémeas da Enid Blyton no Colégio de Santa Clara, absolutamente virgens com aquela idade, absolutamente iguais apesar de uma ser morena e a outra não, irresistíveis para qualquer homem naquele momento mas sem a presença de um único, esbanjando para ninguém toda a sua feminilidade:

- A mim não me interessa, Pilar! Não me interessa o Mundo, nem a cultura, nem a carreira, nem as paixões, nem nada, percebes? O que me interessa é voltar atrás, todos os dias dar um pequeno passo para voltar atrás, com uma cautela infinita para não me enganar nem tropeçar, todos os dias dar um pequeno passo atrás até regressar à barriga da minha mãe que foi o único sítio - o único sítio, entendes? - o único sítio onde fui feliz!

E a Pilar a sorrir com a mesma idade aparente, mas infinitamente mais velha e cheia de pregas na alma, a percebê-la e a protegê-la ao mesmo tempo:

- Nada disso é bem como tu dizes. Mas eu percebo que tu estás nervosa e esgotada e a compreensão das coisas não interessa muito nestas alturas. O que tu querias era chorar e às vezes isso só se consegue à custa de muita asneira, não é?

E a Iga grata à Pilar, tão grata por ela não se lembrar de rever as palavras e os significados como as mestras de província, e fazer aquilo que só alguns sabem fazer, que é ler os livros ao contrário e procurar a verdade por detrás das coisas de grande efeito que se escrevem e se dizem, e desmontar a forma como a mentira se alojou no exercício diário da fala e da vida, por vezes oposto a tudo o que realmente se sente.

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- Obrigada, desculpa, olha: se calhar, aproveitei isto para chorar a morte do meu pai, admira-te! E insistindo, depois de um pequeno soluço que lhe devolvia a infância: - Mas apetecia-me provar à Isabel que sou mais feliz do que ela que tem um homem ao lado,

percebes? Eu choro, eu sofro, eu luto e arrependo-me de tudo em todos os dias da minha vida, e ela não faz nada disso, mas apesar de tudo eu posso estar mais pacificada do que ela, e viva, e inteira, e completa, e ela tem de perceber isso e parar de ter pena de nós para não ter pena de si própria porque isso nos magoa, entendes?

E ainda a Pilar, enternecido, a apoiá-la: - É muito mais pela lástima que inspiramos do que pelo nosso suposto desamparo que nos sentimos

tão tristes, não é? E a Mafalda ali de novo, a interromper, desdenhosa: - Os homens são países e a Isabel nunca saiu do bairro onde vive! Não pode saber isto porque não

vê mais nada, mas a verdade é que um pouco mais de mundo só lhe faria bem... E reflectindo, absorta: - Mas não há dúvida de que ela também tem a sua razão... - Qual? - duvidava a Pilar, - A partir de certa altura a gente perde o direito de chorar... E olhando a Iga, com dureza: - Porque é que deixaste o teu marido? - Mafalda, estás doida? - Porque é que o deixaste? - Tu sabes... - Não, não sei. Ele batia-te? - Não, Mafalda, não batia... - Tinha outras? - Não, não tinha outras, Mafalda. - Então bebia, era isso? - Mafalda: queres parar com isso? - Responde! - Nem sequer bebia álcool! - O que é que ele te fazia, então? - Fazia, como? - Em que é que ele te chateava, porra?! - Sei lá. Deixava o chão da casa de banho encharcado, por exemplo... - E depois? - E depois eu não gostava, achava aquilo humilhante! - E o que é que lhe dizias, exactamente, nessas alturas? - Ó Mafalda, não me tortures! - O que é que lhe dizias? Faz um esforço para te lembrares, que é importante! - Dizia: João, voltaste a alagar o chão! - E o que é que ele te respondia? - Respondia: custava-te muito apanhar a água? - Aí tens! - Aí tens, o quê? - Tudo! - gritava a Mafalda, enervada. E insistindo: Dá outro exemplo! - Outro exemplo, como? - Outro exemplo do teu desencontro com ele! - Não sei. A nossa comunicação era estranhíssima... - Estranhíssima, como? - Eu dizia-lhe: ó João, eu já te pedi tantas vezes que não atirasses a roupa suja para o chão..! - E ele, o que é que te respondia? - Respondia: E tu? Não chegaste ontem atrasada a casa?

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- Voilá! - Voilá, o quê? - Na maior parte das vezes não é o amor que falha... - É o quê, então? - É o sistema nervoso! E a Pilar gorada, a salvar aquilo: - Mas tu também tens que perceber, mas tu também tens que perceber... E a Iga alarmada: - O quê, agora? - Que a paixão é emoção e que o amor é sentimento, e que, ao princípio, toda a gente faz a mesma

confusão! - Então... - digeria ela, insegura. - Então o que é que interessa classificar as coisas se no fim se

mistura tudo e ninguém dá pela diferença? E a Isabel a ouvir tudo isto antes de recolher ao quarto, silenciosa, e a fechar a porta

imediatamente para que não ouvíssemos os roncos do marido porque a metáfora era óbvia demais e a humilhava.

Uma Isabel a formular mentalmente, para nos dar jeito: - Ganharam. Vocês sofrem mais, mas também se divertem e se calhar crescem mais depressa.

Eu confesso que trocaria de boa-vontade a minha comodidade pelo vosso sofrimento e pela vossa possibilidade de ainda poder esperar tudo da vida, se não fosse o medo de lutar sozinha...

E eu, eu a varrer a lareira e a arrumar os tarolos, a olhar para os cinzeiros que transbordavam e a verificar que, na vida, mesmo entre amigos se fuma o dobro, e a pensar, uma vez mais a pensar que a solidão-mesmo, sem homens e sem ninguém, ainda ia sendo a melhor forma de nos aguentarmos sem fumar e sem morrer.

E foi assim, debruçado sobre as achas que a Isabel não conseguira atear e com a cabeça já em brasa, a varrer as últimas cascas de castanhas, que eu descobri - sim, que eu descobri, porque felizmente na vida de quem anda a marrar contra a parede desde que nasceu se descobrem todos os dias coisas novas -, que eu descobri que precisava dos homens, sim, mas para continuar a viver sozinha.

E a Mafalda a sair da casa de banho para se aliar a mim naquele momento impartilhável, a tentar devassar a minha impossibilidade de falar sobre o que se passara, com a Pilar e a Iga ainda a chorarem no quarto abraçados uma à outra, porque já se ouviam também os soluços da Pilar, e a Isabel a tentar dormir apesar dos roncos do Eduardo, e ela, Mafalda, ainda de vison, a chegar-se a mim para me subornar:

- Reparaste no estado de abatimento total em que a Isabel recolheu ao quarto? Até agora, a nossa infelicidade servia-lhe para se contentar com a sua vida, mas a partir de hoje isso já não lhe vai ser possível, viste?

E eu a rir, para não chorar: - Somos então três mulheres felizes? - Não somos - disse ela. - Mas somos mais do que ela e isto também foi importante para nós

porque acabámos de o descobrir! E assumindo toda a sua incoerência de uma forma heróica: - E eu cá nem sou como vocês: eu persigo a paixão! E eu em agonia de repente, com uma esganada urgência de lhe perguntar: - Mas a gente gosta de homens, caramba, não gosta? - Claro que gosta - respondeu ela para me sossegar. Só que gostamos mais de nós e não nos

podemos amar a nós, compreendes? E eu sempre a querer mergulhar mais fundo, mais fundo, mesmo sem oxigénio: - Porque é que então não nos podemos amar a nós? E a Mafalda a dar-se tempo para pensar, acendendo um cigarro. Era enternecedora aquela nossa necessidade de nos exprimirmos com correcção, escolhendo

sempre, ao contrário da Isabel e da Iga que se perdiam invariavelmente nos nossos xeques-ao-rei, o substantivo próprio, o adjectivo exacto, briosas nas palavras como se fossem a superioridade visível da nossa emancipação, e pudessem, de certa forma, atenuar as barbaridades que trocávamos:

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- Não nos podemos amar umas às outras porque nos percebemos demasiado bem. E como se descobrisse a pólvora: - Nós não gostamos deles por eles, percebes? Gostamos deles pelo mistério que encerram, pelo

trabalho inacabado que comportam, pela sua incapacidade de nos perceberem, pelo repto intelectual que nos garantem até ao resto da vida!

E rindo-se, maliciosa: - Uma mulher não nos dá isso e tu sabes muito bem! E eu a desatar a chorar porque era verdade e a verdade, assim descoberta, mesmo que fosse

efémera, provisória ou falaciosa, comovia-me sempre: - Ó Mafalda! Nem calculas o peso que me tiras de cima! - Claro - ria-se ela. - Ou julgavas que a gente não ia para a cama umas com as outras só porque não

éramos fufas? E eu a rir-me, a gaja era lixada, as mulheres eram tramadas e eu nunca na vida poderia amá-las

porque elas percebiam as nossas coisas antes mesmo do que nós e só os homens é que tinham, de facto, humildade para se deixarem esventrar.

E a Iga de novo ali, ouvindo tudo, escandalizada: - É então por isso que vocês gostam dos homens? E eu aflita por ela, ressalvando logo: - Não faças caso, Iga. A gente sabe lá o que é o amor! E a Mafalda lembrando-lhe,

escusadamente: - Duma coisa podes estar certa, menina: todo o amor é interesseiro! - E o amor a Deus? - perguntava a Iga, incrédula. O amor a Deus também é interesseiro? E a Mafalda logo, antes de mim, precipitando-se: - Promete-nos a vida eterna, caramba, queres mais interesseiro do que isso? * * * Ao deitar-me, quando os seis telemóveis retemperavam cordas nos recarregadores espalhados

pelas tomadas da casa inteira, tive, como todos temos, aquele pensamento sem nenhum valor estético ou intelectual, daqueles que servem apenas para nos interromper o transe e despojar-nos das ansiedades do dia:

- Quando chegar a casa vou lavar a despensa, que já precisa. O Afonso entornou cacau nas prateleiras e aquilo está que não se pode...

E adormeci com a almofada dobrada em duas, porque embora soubesse que dormir tão alta assim me fazia mal às costas ainda sentia a factura dos quarenta tão longe como dos meus dezoito anos.

E só muito depois, a meio da noite, ao acordar com uma sede enorme por causa da porcaria do radiador que deixara ligado por distracção na temperatura máxima e me levantei para ir beber água à cozinha, é que ouvi, enfim, as lágrimas que a Isabel só assim, sem testemunhas, pudera enfim chorar.

E foi então que lhe bati à porta do quarto muito delicadamente para lhe perguntar: - Isabel? Queres vir à sala fumar um cigarro? Isto já às cinco da manhã, com aquela preocupação tão pouco viril de saber como passam as

nossas vítimas, aflita por ela, ouvindo os soluços do outro lado a calarem-se por dignidade, e tudo aquilo a lembrar-me que o sofrimento é solitário e silencioso e que as testemunhas só o podem prolongar.

Quem fumou o cigarro fui eu, sozinha, de olhos perdidos nas brasas sobreviventes, a pensar que a vida era extenuante e a perguntar-me admirada porque é que os outros também não se matavam como eu naquele dia e em todos, ponderando, ao mesmo tempo, na saúde que poderia haver naquele último cigarro fumado na maior lucidez.

* * * Na manhã seguinte, tudo parecia resolvido, A Mafalda, a Pilar e a Iga acordaram radiosas porque a infelicidade era uma mentira tão

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duradoura como a felicidade, o Eduardo e a Isabel pareciam mais próximos um do outro, também porque nós queríamos que eles parecessem e a Isabel também devia querer que o pensássemos, e eu disfarçava como elas, cismando naquela fatalidade que a mim me parecia generalizada e que consistia em precisarmos de nos destruirmos todas as noites para acordarmos inteiros na manhã seguinte.

E cada uma de nós, isoladamente, vestiu a sua pele outra vez: - Como é que era, Pilar, aquela frase do Malraux? E a Pilar, tão especial, a aplicar para mim o seu francês: Un homme n'est pas ce qu'il coche. Un homme est ce qu’il fait, car, au fond de nos âmes, nous sommes tous un peu les mêmes. E toda a gente a lembrar-se do que se passara naquela noite e do que se tinha percebido ao todo,

apesar da visita ao desfiladeiro e à barragem, apesar do requeijão em bola e das trouxas de ovos, apesar da criada que nos fazia as camas nunca nos dizer bom-dia, apesar do esparguete de tomate e da última canja bebida em conjunto, apenas esta frase, invocada por mim e proferida pela Pilar em bom francês, apenas esta frase ficaria de todo aquele fim-de-semana em que tínhamos gasto cerca de quarenta contos por pessoa sem contar com as portagens e que, mesmo assim, custara uma pechincha.

* * * Há alturas, e estas coisas ninguém confessa a ninguém, em que se vai para a cama com um homem a

seguir a uma combinação forçada e que depois de nos sondarmos superficialmente chegamos à conclusão de que não sentimos absolutamente nada e que é o vazio que precede esses momentos.

Num esforço de civilização e moral, porque a moral nunca foi espontânea, interrogamo-nos como é que aquilo é possível, como é que aquilo é possível connosco e porque nos sujeitamos nós àquilo, pensando que talvez fosse melhor termos ficado em casa a ver televisão porque a emoção seria igual senão maior no caso da programação nos reservar uma surpresa, e damos connosco a averiguar a razão por que fomos ainda assim, mesmo depois de confirmarmos toda aquela gratuitidade humilhante.

Já uma vez me acontecera. Na dificuldade logística de nos encontrarmos em qualquer das casas, um amigo e eu, querendo

ambos encontrarmo-nos para nos deitarmos juntos, andámos semanas e semanas a protelar o encontro sem consciência nenhuma, pedindo as chaves de apartamentos de amigos e combinando sucessivos locais para as deixarmos - uma vez num café, outra num restaurante, outra ainda no lado esquerdo do andar em perspectiva -, e diversos chaveiros foram, ao longo de semanas, depostos em lugares estratégicos e retirados dias depois, sem que nenhum dos dois, por uma razão ou por outra, os levantássemos jamais, desmarcando o encontro a todos os pretextos até ao dia em que eu arranjei coragem para parar com aquilo:

- Vê-se que, no fundo, nenhum de nós quer muito estar com o outro. Ou seja: quer e não quer, mas não quer mais do que quer e por isso vamos suspender isto, concordas?

E como esse abençoara a minha decisão: - Ana, ó Ana! Pode até ser um dia qualquer! Basta que um de nós queira muito e que esse desejo

seja tão sentido que contagie o outro... Eu ri-me, e ele riu-se também, e ambos nos sentimos aliviados por não precisarmos de provar que

não se tratava de desamor ou desinteresse, porque na realidade não era isso que sucedia, mas a impossibilidade, pressentida por ambos, de estarmos juntos sem a intimidade necessária.

Ir para a cama sem se querer muito, sabe-se cedo, tem aquele sabor de se comer sem se ter fome que nos faz sentir alarves.

A gente despe-se com eles a olhar para nós sempre a leste do que nos vai na alma, o que representa uma solidão terrível, tira a camisa, tira a saia, tira as meias e os sapatos, a matutar até ao último minuto o que nos levou ali apesar do amor que nos liga a todas as pessoas do Mundo e a eles também, até ao momento preciso em que paramos de pensar e que um animal qualquer nos encarna para viver, ele sim, com todo o direito que os animais que nos habitam têm de viver e de brincar, a legitimar assim tudo o que se viverá nesse intervalo.

E, então, torna-se emocionante descobrir como é que eles, com os seus braços fortes e cabelos moles e timbres diferentes, quase só por isso e por terem condições anatómicas para nos invadirem, nos

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vão a pouco e pouco amolecendo até à entrega total para logo a seguir nos devolverem a vacuidade. Foi nesse espírito preciso que fui ter com o Nuno nessa noite, como se lhe devesse uma

despedida, com ele desconfiado a pensar que aquele encontro seria absolutamente decisivo para si já que o estaria a pôr à prova por comparação.

E quando, enfim, me rendi aos seus beijos, descobri que tanto se me dava que fosse ele ou o Vasco desde que qualquer deles me fizesse esquecer o outro.

É assim que a gente pensa, muitas vezes, apesar das nossas juras de amor eterno, por razões que passam por outros lugares distantes que nem sempre podemos descortinar e que só raramente têm que ver com o que realmente se passa entre duas almas.

Isto, ao mesmo tempo em que o Nuno me dava repetidos beijos no cabelo e eu lhe dizia, convicta, serás sempre o homem da minha vida.

Mas o Nuno tinha esse defeito terrível que certos homens têm de não perceberem que na cama, só na cama a gente tem direito a dizer exactamente o que nos vai na cabeça, e a ser tudo, e que isso é muito importante porque nos ajuda, fora dela, a sermos pessoas verdadeiramente saudáveis e fiéis.

Mas ele não percebia, coitado, e digo coitado por saber que isso o vedava a alguma beleza, e tive então que lhe dar muito mais festas do que o costume, e fingir que estaria a provocá-lo para aumentar o seu desejo, e ele acabou por convencer-se em aderir àquilo fechando os olhos e agarrando-me como quem se agarra a si próprio para não se atirar duma ponte abaixo.

A cena fora sórdida, violenta, desonesta, e eu pensava que o mais estranho de tudo era que nunca o Nuno atingira antes um fervor tão grande, senão enquanto estava a sentir-se traído como naquela altura, o que me demonstrava à sociedade que, não fosse a infracção, haveria com certeza homens e mulheres que morreriam sem grande conhecimento de si próprios o que à data me parecia imperdoável.

Comigo foi diferente porque enquanto ele comprovou naquela noite que me amava só a mim, eu descobri que não o amava a ele nem ao Vasco, o que me obrigou a estrear, por circunstâncias que tinham contribuído para aquilo e me transcendiam, mais uma semana de desconfortável indignidade pessoal.

O Vasco era novo, com tudo o que prometiam as novas possibilidades, e o Nuno era velho, e conhecido, como a casa onde me podia estender sem sapatos ou usar um Soutien esbambeado na máquina sem que nada disso fosse notado ou punido, o que também me era agradável, senão imprescindível.

Uma voz qualquer dizia-me que teria de escolher, mas como a minha indiferença aumentava a necessidade de ambos por mim, eu dispunha-me a ficar assim até que o tempo ou qualquer sinal facultado pela vida me demonstrasse claramente se eles prefeririam a privação de minha pessoa à escolha de um só ou ao abandono dos dois.

Não pensava em mim, e o que resultou foi que me voltei a vestir com o mesmo vazio em que me despira, deixando o Nuno na ressaca daquele prazer que eu lhe dera e que nada tivera que ver com empenhamento, nem com amor, nem mesmo com desejo, porque nem sempre o que se sente é claro ou se pode desmontar facilmente.

Estava fria quando passado pouco tempo me meti no carro, e só não me senti perdida no trânsito nem com vontade de rir como quando fora buscar o Afonso ao colégio, porque toda aquela intensidade não resultara de uma descoberta, mas do luto de uma confirmação.

Quando voltei para casa, me estendi no sofá e liguei a televisão, o vazio instalava-se para, logo a seguir, me restituir uma paz interior maravilhosa por estar de novo ali e saborear aquele repouso luxuoso que sentimos quando, apesar de amadas, sabemos que nenhum homem imporá a sua presença continuada nas nossas casas, nas nossas vidas ou junto dos nossos filhos.

Foi nessa altura que me levantei para, completamente alvoroçada pela liberdade que experimentava naquele momento, ainda sem riscos, informar o meu filho que nos meados do século XVI Portugal só tinha milhão e meio de habitantes, e depois, com muito mais entusiasmo, mas isso já deveria ser observado à luz de outras filosofias, entregar-me de alma e coração à tarefa de arear as pratas que mobilizava todas as minhas redentoras e primitivas qualidades de castelã.

O Vasco ainda me falou para me convidar para jantar no dia seguinte, e eu aceitei apenas por me parecer esse o passo lógico de uma equação que alguém haveria de resolver por mim, dizendo-lhe que também gostava dele inteiramente convencido de que havia de gostar um dia, apostada naquele investimento a médio prazo que se faz no início de qualquer relação.

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Deixei as pratas mais brilhantes do que a minha alma e desafiei o meu filho para um gelado na Baixa, que me apetecia mais a mim do que a ele, a pensar que as coisas que lhes dávamos, de ternura ou de cuidados, eram ternuras ou cuidados de que nós precisávamos, como o casaco de malha que os mandávamos vestir quando nós, e não eles, começávamos a sentir frio.

* * * Os ciúmes tinham, para mim, dois problemas gravíssimos: além de entrarem em conflito com certas

qualidades que me tinham ensinado a admirar - como o respeito pela liberdade alheia e pela autodeterminação moral do outro -, eram impossíveis de controlar nos quadros de insegurança ou de dependência afectiva que, por si só, desencadeavam.

Era ver os mais sólidos e lúcidos indivíduos chegarem ao homicídio, a negarem pai e mãe, a desconhecerem os filhos ou a desfazerem vidas laboriosamente construídas movidos por impulsos incontroláveis.

A solução poderia passar por uma estratégia que combatesse o ciúme com o ciúme, se a inteligência alguma vez conseguisse subalternizar os vexames e se esses jogos não acabassem sempre por nos degradar.

Invejava as pessoas que os não sentiam, mas não as admirava: eram quase sempre conduzidos a circunstâncias caricatas de irresponsabilidade ou negligência, susceptíveis de precipitar, por sua vez, ameaças concretas.

Não era o caso do Nuno, para quem o ciúme era uma via sem regresso, capaz de destruir a sua vida e de desmembrá-la com muito mais eficácia do que uma tragédia efectiva.

A existência de um Vasco na minha vida provocava-lhe um abalo tão forte no ego, no amor-próprio, nas convicções e nos projectos, que de um momento para o outro se tornou irreconhecível como ser racional dotado de bom-senso e guiado por leis morais.

No caso dele, decorria mais da agonia da suspeita do que do golpe da confirmação. Bastava-lhe projectar no Vasco uma qualquer qualidade carismática susceptível de me arrebatar,

para me permitir assistir, a toda a hora, ao degradante espectáculo do seu respeito por mim a transformar-se em desprezo, a ternura em acidez, a paixão em ódio, sem que isso comprometesse ou desfalcasse, pouco que fosse, o verdadeiro sentimento que o ligava a mim.

Foi talvez por tudo isto que, nessa noite, o Nuno apareceu em minha casa já com as crianças deitadas, e só me lembro distintamente da tareia que me deu porque, receando estigmatizar os meus filhos, não gritei nem pedi ajuda.

O Afonso ainda acordou para pedir que puséssemos a televisão mais baixo - o estardalhaço que fazíamos devia ser idêntico ao de qualquer série americana -, e ficámos os dois a brincar à estátuas enquanto o miúdo não se retirou, o Nuno com um pé no ar, atrasando o pontapé, e eu a escudar-me entre os cotovelos para que não me atingisse na cara, coisa que já acontecera momentos antes e que manchara de sangue as almofadas de seda bordadas com pássaros e flores que eram a melhor recordação que eu guardava da minha avó enquanto as cosia e me contava, sorrindo, histórias de princesas felizes.

- Ah! - dizia o meu filho, espantado. - O Nuno está cá? No dia seguinte tinha um farrapo sentado à minha frente no café do bairro a implorar-me perdão

sem eu ouvir o que dizia. Curiosamente pacificada e bem dormida, aproveitava o silêncio que me assistia para especular

sobre se seria possível existir uma alegria escondida no coração das vítimas. Uma espécie de ascendente adquirido. Um poder saboroso sobre o escrúpulo de um carrasco...

Enquanto ele falava e plissava a cara em esgares de súplica, “Eu adoro-te, fiz aquilo porque te adoro”, eu esforçava-me por compreender, essencialmente, o que as minhas pisaduras dificilmente poderiam sublimar.

* * * Pensava que sofríamos na pele a disfunção entre as nossas vidas sobrecarregadas e a fragilidade

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de músculos que nem das agressões nos defendiam, e que a doçura, essa doçura que durante tantos séculos fora o nosso maior trunfo para seduzir, converter ou desarmar os homens, seria praticamente impossível de recuperar em padrões de vida tão masculinos.

De facto, era alarmante imaginar em que é que se poderia transformar a mulher se continuasse, por muito mais tempo, a ser obrigada a sair de casa para procurar pão e lenha, numa luta varonil que já fora formalizada pelo uso das calças e que não se sabia se não terminaria, a médio prazo, com a perda dos nossos próprios caracteres sexuais, convertendo-os um dia em criaturas musculadas com pêlos nos braço, timbres graves e bigodes.

Mas havia ainda outro risco implícito em toda esta viragem: o do homem, mais lento na adaptação às mudanças por razões filosóficas ou simplesmente orgulhosas, não assimilar a dignidade que se esconde por detrás da nossa persistência e exigir o regresso da mulher fatal ou da formiguinha, remetendo-nos para um terceiro, quarto ou quinto género maldito sem direito a ele.

E disse alto ao Nuno, sem me aperceber: - Para conquistar a nossa integridade, temos então de renunciar ao vosso amor? A verdade é que já avançáramos alguma coisa. A mulher já demonstrara que podia produzir o mesmo, se estivesse disposta a abdicar de certas

prerrogativas, e o homem já se ia safando em casa sem ela, se não tivesse que mexer em lixívia. Pelo que conhecia das mulheres, sabia que a maior parte nem se importaria de renunciar à frente

profissional para se encarregar de tarefas fundamentais para o bem-estar da família e para o equilíbrio do Mundo, desde que o homem chegasse a casa e lhe beijasse os olhos.

Então, sim, talvez pudéssemos admitir que fizéramos falta aos nossos filhos e que o seu sacrifício nos destroçara.

E não só: voltar do trabalho com mais disposição para encher de malmequeres a jarra da entrada ou passajar meias sem azedume.

Mas era se o fizéssemos de livre vontade e não com revólveres encostados à fonte. - Desculpas-me? Desculpas-me o que eu te fiz? Era um raio de uma subtileza que lhes custava a assimilar, produzira milhares de vítimas de palmo

e meio e lavrara rugas prematuras em muitas mulheres da minha geração, mas que valeria a pena. - Ouve lá: tu não me estás a ouvir! Queres que me humilhe, é isso? Que me ajoelhe aos teus pés? Não eram já muitas as que lutavam, porque a necessidade de justiça para algumas mulheres não

era ainda mais importante do que o corpo dos homens, a protecção dos homens, a companhia dos homens. E era vê-las, tantas vezes, a recuar a meio dos seus percursos de autonomia, como se, sem eles,

não tivessem forças para lutar mais. - Gostas de mim, Ana? É a terceira vez que te pergunto! A mulher sempre falara do amor, mas eu perguntava-me se todas estas mudanças não nos

mobilizariam, neste fim de século, a fazer o balanço de toda essa indigestão e a expressá-lo de uma forma nova.

Dantes falávamos dos homens, dos nossos sonhos e privações; agora, temíamos esse pacto que tínhamos feito em nome da nossa integridade ignorando se lhe poderíamos sobreviver.

Como se, só agora, descobríssemos que a libertação não era ainda a Liberdade, e como se Ela, uma vez conquistada, fosse absolutamente inglória sem a protecção dos homens.

- Está bem, eu perdoo-te - disse, para o calar. - Não se fala mais nisso! - Perdoas-me mesmo, minha querida? - perguntava o Nuno, de olhos molhados, como se uma

simples afirmativa lhe resgatasse a ordem interior. - Perdoo-te, sim, já disse - sustentei, de óculos escuros por atenção ao bairro, mesmo sabendo

que aquele falso perdão o tornaria insuportável aos meus olhos. Seria isso que eu queria? * * * Não, não era isso que eu queria, e fora só a meio de reler o livro que tinha em mãos que o

descobrira. Era um volume pequeno publicado há mais de vinte anos, cuja autora começava logo por arriscar a

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pele na primeira página dedicando-o “Aos poucos homens que não se deixam amestrar, às poucas mulheres que não se vendem, e aos felizes que não têm valor de mercado, porque são demasiado velhos, ou feios, ou doentes”.

Nele, a escritora contava a história ao contrário. Para reforçar a sua ideia de que “O amor para a mulher significa pretexto para exploração

comercial, e para o homem um álibi impregnado de emoção para a sua escravatura”, a autora tinha a coragem de contrariar os ventos da contestação feminina para chapar no livro alguns comportamentos que até os mais cegos defensores da mulher não podiam deixar de reconhecer: que muitas de nós utilizavam os filhos como reféns, o mundo profissional como coutada de caça, o sexo como recompensa e a Fé como álibi.

Mas o que mais a indignava, como ser humano envergonhado do seu género, era o talento que certas mulheres tinham para reduzir o homem a uma máquina de trabalho de primeira categoria, manipulando-o sem compaixão até ao enfarte.

Dizia ela: “É repugnante ver como os homens, esses sonhadores maravilhosos, traem no seu dia-a-dia tudo aquilo para que nasceram. Como eles renunciam a todas as suas enormes capacidades e ajustam voluntariamente o seu corpo e o seu espírito às necessidades primitivas das mulheres”.

Isto, para não falar de certo engenho pérfido de que muitas se servem para rentabilizar a seu favor os escrúpulos masculinos, e ainda de certa energia perniciosa que a autora se esquecera de mencionar e com que nós alternávamos a nossa suposta doçura: a violência.

No homem aparentemente mais física, mais primária, mais impulsiva, mais desesperada e mais arrependida, em nós mais verbal, urdida, erosiva, castrante e triunfal.

Como eu a deitar-me com o Nuno, nessa mesma noite, inerte como uma morta e imune a todos os beijos.

* * * Por vezes, a paixão por um homem não traduz mais do que a necessidade imperiosa de se esquecer

outro. O meu entusiasmo pelo Vasco aumentava na razão inversa do meu apego ao Nuno, como num

elementar sistema de vasos comunicantes. Falávamos constantemente e a toda a hora para os telefones de um e doutro, líamos os horóscopos

de cada um, deixávamos recados quentes e inflamados nos gravadores, jazíamos na cama sem possibilidades de dormir pensando no outro ao mesmo tempo, conferíamos todos estes sortilégios no dia seguinte, e tudo isto, talvez, só porque a Mafalda um dia me dissera com a sua liberdade contagiosa:

- Nunca, apesar de todas as morais, alguma vez me furtei a conhecer um homem que eu queria ou me intrigava! Nem mesmo quando me dizem que pertence a outra, porque nesse momento ele me pertence a mim e seria a mim que ele enganava!

Era incrível o efeito que as palavras tinham em mim, a forma com que a oralidade dos outros, expressa com convicção, me conseguia infectar, mas daquela vez não arranjava palíativos para me justificar.

O que eu fazia era crime, sim, e que não me viessem com o argumento de que os casamentos nunca eram estragados por ninguém de fora.

Os casamentos poderiam não ser, talvez, mas os homens e as mulheres podiam, sim, ser lesados, uma vez que quando os de fora os desafiavam nem sempre se dispunham a ficar com eles para o resto da vida.

Arriscava-se muita coisa, só por um calor no peito. O Vasco adorava-me com convicção e folclore e todos os dias me trazia presentes bons ou

ridículos: ou comprava no avião um perfume em duplicado - um para mim, outro para a mulher -, ou me oferecia uma caixa de música com uma bailarina em tou-tou esvoaçante, ou trufas que eu detestava, ou ainda um livro sem substância nenhuma, escolhido pelo título e apenas para se declarar através dele.

Quando voltava para casa, era certo e sabido que não chegava a retirá-los do papel, e que os guardava numa cómoda, assim mesmo.

No fundo, sentia que aquilo não ia durar muito e que dificilmente ele poderia vir a conferir se eu usava ou guardava os seus presentes.

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Mas espantava-me: como é que se podia gostar de uma pessoa, e, ao mesmo tempo, desconsiderá-la a este ponto?

Talvez fosse simples: ao enganarem as outras era como se nos enganassem também. Às vezes saía daquilo e, nas mesas dos restaurantes que já me começavam a fartar, eu olhava o

Vasco como se o visse pela primeira vez, pensando que era inteiramente impossível amar-se um homem desconhecendo-lhe os precedentes.

A infância faz falta para conhecer muita coisa, sem termos de comparação não é possível avaliar-se os resultados de um percurso, e, no caso dos homens, nunca se pode apreciar devidamente o amor que nos têm ignorando por completo o que dedicam às outras.

Numa noite dessas, instado por mim, ]e caíra na arara de me levar fotografias da família, e eu senti-me subitamente derrotada por aquele peso todo, vergada pela pose da madame ainda a seduzir o marido e agarrada a ele com medo de que fugisse, e, sobretudo, desencorajada pelo sorriso das crianças mais o do cão,

Mais tarde, ao lembrar os retratos, tentava convencer-me de que nada daquilo era verdade, que os sorrisos se abrem muito mais para as câmaras do que para os maridos de há vinte anos, que aquele deveria ter sido o único dia em que o cão entrara na sala, que os meninos tinham todo o ar de lhe dar pontapés e não só disso, de fazerem concursos de escarretas à janela em direcção a velhinhas, e a mãe de ficar histérica e a espumar da boca sempre que o Pastor entrasse na sala com as patas enlameados do jardim.

E depois fazia troça das cortinas, e dos napperons nos braços dos sofás, e das flores falsas por toda a casa, como se o mau gosto em que ele era capaz de viver já me permitisse dispensá-lo, e acabava por me convencer de que eles não estavam bem de mão dada e que aquela sombra indefinida, no canto da fotografia, tanto poderia ser a mão dele sobre a dela como o bico da almofada cor-de-pêssego, e depois agoniava-me comigo mesma e proibía-o, terminantemente, de alguma vez na vida me voltar a sujeitar a uma humilhação daquelas, apesar de ter ficado mais de dez minutos a inspeccionar cada cópia como se fossem cartas de Tarot, reveladoras de todo o meu futuro.

Mas era assim, graças a estas cenas criadais, que eu descobria que os meus ciúmes eram muito piores do que os do Nuno, afinal, já que não se tratava de cobiçar nada de meu, mas de outra, nem de sentir o meu território invadido, mas de ser eu a invadir o dela, nem do terror da perda do objecto amado, porque ainda não era possível amá-lo tanto como a mulher, e tudo isso mostrava-me o perverso e repulsivo da situação em que embarcara.

Mas o mais exasperante de tudo era quando ele se referia à mulher dizendo a minha mulher - Não voltes a dizer “a minha mulher” porque isso é saloio, percebes? Ou dizes “uma das minhas

mulheres”, porque tens duas pelo menos, ou então referes-te a ela como “a Gi”, “a Guidinha”, ou “a Margarida”, que é ridículo, mas sempre é melhor, entendes?

E ele despistado, arrependido do lapso que não era bem lapso, da mentira que podia ser verdade e da verdade que podia ser injusta, e eu a concluir, infeliz, que nada daquilo era amor e que mais valia que acabasse tudo ali.

Mas depois olhava para ele e via-o tão adorável e tão sincero e percebia que aquela situação tinha o condão de convocar o pior de mim.

- Não se fala mais nisso, desculpa. Hoje, acordei com mau feitio... E ele a beijar-me as mãos, e os nós dos dedos, e cada unha de sua vez, silencioso, e a pedir a

conta ao criado num gesto tão pequenino, e a levantar-se, estóico, e a envolver-me as costas para que eu me levantasse sem frio e sem esforço, e eu a amá-lo por lhe dever isso, com a certeza absoluta de que ele não era capaz de ser tão venenoso como eu em nenhuma circunstância, e eu a amá-lo, imagine-se, por comparação comigo mesma.

E desta vez a Pilar, ali ausente ao pé de nós: - Tenho razão ou não? Devemos estar todos muito doentes porque de outra forma não seríamos

capazes de querer tanto o que nos faz sofrer! Ou então a contrapor, sombria: - Mas suponho que o homem deve ser o único animal ir. racional do planeta, já que é o único dotado

da faculdade de fazer mal a si próprio... A Pilar.

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Como seria bom emprestar-lhe o Vasco por uns tempos, deixá-la dormir com ele durante um mês sem risco de o perder ou de a perder a ela, para depois conferirmos juntas o que haveria ali, naquele homem, na forma como nos olhava, nos beijava e nos despia.

A Pilar não servia: compreendia os homens bem de mais. Dizia-se “Fulano espancou-a”, “Fugiu com a secretárias ou “Viajou com a outra para França, que

era onde costumava levar a mulher”, e a Pilar disparava, tremendo: - Burras! Vocês são burras! Está-se mesmo a ver que ele é uma pessoa que sofre, que não tem a

certeza de ser amado e que vive atormentado por isso! A Pilar não servia. - O Vasco, sinto-me tão cansada. Chateei-te a cabeça, não chateei? E o Vasco, esgotado, a esconder a cara entre as mãos e a disfarçar o cansaço: - Chateia! Chateia à vontade se isso te faz bem. Eu não me importo... Mas eu ainda a querer que ele fosse pior do que eu, prementemente, para que daquela situação

saísse eu vítima, sem consciencializar nada na altura, mas já em vias de me arrepender: - Se achas que eu te chateio... E ele pela primeira vez impaciente, certamente a comparar-me com a mulher e a pensar “Para que

saio eu duma para me meter noutra”, e eu irritada com ele por essa ideia que cruzava unicamente o meu espírito, e a vingar-me dela como se fosse dele fechando a porta do carro com a força com que gostaria de lhe bater e largando para o acirrar:

- Que merda de chauffage é esta que só começa a aquecer meia hora depois de se ligar? E ele, já nervoso: - Vou levar-te a casa, já percebi! É isso que queres, não é? E a minha voz a perguntar, mesmo sem razão: - Está na hora de voltar para a tua, não é, meu cobardolas? E ele a explodir finalmente, abrindo um precedente que me alarmava e me extasiava ao mesmo tempo, num tom de voz farto e desabrido: - Precisamente! Transgrediria todos os horários para estar contigo, mas assim, sinceramente, não

vale a pena! E a ligar o carro: - Para quê? E eu a dar comigo a pensar que talvez não tivesse querido irritá-lo mas, simplesmente, obrigá-lo a

revelar algo que precisava de reconhecer em todos os homens do Mundo: uma autoridade que lhes vinha unicamente do timbre, mas que, mesmo assim, era capaz de nos conter os excessos.

E agradavelmente assustada pela forma como o vi a acelerar pela cidade na pressa de me deixar, dei-lhe, à despedida, um beijo que o surpreendeu só a ele, já que, meia hora depois, estendida na cama a olhar para a imagem de Cristo que diariamente testemunhava a minha desordem e Se ria dos meus propósitos de emenda, Lhe perguntava, sincera:

- Isto ainda não é amor, pois não? Mas se a gente não tem, a gente tem de inventar, não é? Era também nesta linguagem grosseira que eu falava com os meus botões, mas isso ninguém

saberia. Cristo não era delator e, em público, eu esforçava-me por falar com correcção. * * * - Cabra - dizia o Nuno, descobrindo que eu improvisava desculpas para não sair com ele. - Ainda

andas com o mesmo gajo, não andas? Afinal, não eram só as opiniões proferidas com veemência que me impressionavam, como as da

Mafalda ou as da Pilar; também os mimos com que eles nos brindavam por vezes provocavam na minha alma verdadeiras ventanias.

Em alturas assim, não era a primeira vez, regressava à infância para me esconder numa árvore privativa e chorar de medo.

Às vezes, nem eram bem as palavras que feriam, mas o tom em que eram despedidas: - Puta, não passas duma puta!

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- Estás enganado. Eu nunca peço dinheiro... Quando nos gritam, a expressão que nos fazem ou o tom que nos desferem pode ter muito mais

importância do que o valor facíal das coisas que se dizem e causar mais dor e mais ressentimento do que uma bofetada em pleno rosto.

Sabia-o por mim, que poucas vezes me lembrava do que os outros me diziam e constantemente ilustrava as minhas queixas com explicações pormenorizadas sobre a forma desagradável ou antipática com que os outros se me dirigiam, não fosse esse, essencialmente, o ónus da ofensa.

Todavia, recorrendo às mulheres-bruxas, as que arrepanham o cabelo e espumam da boca gritando impropérios aos maridos poderiam não ser tão violentas como a atitude deles que simulam não as escutar e continuam a ler o jornal, imperturbáveis.

Ou do pai que pune os filhos aplicando-lhe os mais severos castigos sem levantar a voz ou perder a compostura.

Ou das mães que, depois de baterem nas crianças desalmadamente, lhes começam a falar com súbita doçura porque chegou alguém de fora.

Ou até do Nuno que, no fundo, me queria dizer “Eu, a amar-te assim, desta forma desesperada, e tu completamente nas tintas para o meu sofrimento! “ e que, por orgulho ou preconceito, se limitava a insultar-me.

Daquela vez, nem fora bem o palavrão que me ferira, mas a dor que, apesar de tanto escrúpulo, fora capaz de lhe causar.

E, cobardemente, desliguei o telefone escudada no álibi da ofensa que o calibre do vernáculo comportava.

Limpei as lágrimas e fui arrumar a gaveta dos talheres, para, logo a seguir, depilar as sobrancelhas a pensar que a mulher do Vasco era parecida com a menina que mas arranjava no cabeleireiro.

* * * E depois, no meio da nossa péssima administração das relações, há sempre um ou dois cavalheiros

que nos rondam sem nenhuma razão muito evidente. Quando uma mulher não é extraordinariamente bela fica com dúvidas, não sabe mesmo para quê, e

quando é extraordinariamente bela fica com mais ainda, porque o sabe bem de mais. Enfim: sei que fui apresentada a este cavaleiro andante no fim-de-semana no campo, num almoço

em casa de amigos, e que, por inércia, o fui deixando arrastar na minha vida. Não há explicação para isto. Quando os homens descobrem que, tal como eles, também somos capazes de manter estas

gavetas secretas, ficam muito desconcertados; não compreendem se nos deixamos erotizar por esses zorros ocasionais, se será por armazenagem ou por simples cabritice que os conservamos.

No meu caso não era por nenhuma dessas razões, mas por algo mais indigente ainda: comoviam-me sempre os afectos dos outros, sobretudo os que me eram dedicados.

Este homem, em particular, não me arrebatava. Era bonito, talvez, mas tratava-me por “a menina” e chamava-se Vítor ao mesmo tempo. Impingiu-se para subir, depois de me levar à porta, e cravou-me um whisky. Eu não gostava de os receber em casa não só por causa da solidão das vizinhas, mas sobretudo

porque tinha as crianças a dormir a essas horas e, se fosse pequena, também não gostaria de acordar a meio da noite para fazer chichi e dar de caras com um desconhecido esparralhado na sala a falar com a minha mãe numa voz estranha.

Comecei por lhe dizer que era tri-divorciada, o que era mentira, que a minha vida era um caos, o que não era tão verdade assim, e que os meus amigos me chamavam “a viúva-negra” por causa da minha raiva contra os homens, o que era absolutamente inventado.

Era um quadro falseado, sim, mas absolutamente moral dada a minha incapacidade de formular recusas explícitas, e eu carregava nas tintas para ver se o desmotivava.

Mas aquilo em lugar de o assustar - todos os homens se apavoram com mulheres enredadas em teias de problemas parecia descomprometê-lo:

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- Então, temos mesmo que celebrar, não temos? É a mesma geração que se encontra e eu tenho também uma vida complicadíssima que gostava de lhe contar!

Valha-me Deus. O homem era, calcule-se, botânico, e eu confesso que a última coisa de que me apetecia falar às

duas e meia da manhã, hora a que chegara de fora, era da vida maravilhosa das plantas. Não consegui evitá-lo. Torturou-me duas horas seguidas com uma conversa absolutamente esquizofrénica sobre

tubérculos e colmos, e era o meu polimento, o mesmo polimento que tantas situações ambíguas já me criara no passado, que me retinha ali, a falar com aquele emplastro.

- Você não está a ouvir nada do que eu lhe estou a dizer... Pudera. Ele acabara de me explicar que os pássaros comem o fruto e engolem a semente sem contudo a

digerirem, devolvendo-a beneficiada pelos sucos digestivos, e insistia, dramatizando: - Com um pouco de sorte, a semente agarra-se ao torrão onde foi depositada, ou àquele para onde

o vento a arrastou, e a nova planta, graças ao seu amigo pássaro, pode enfim deitar raízes e conquistar o seu lugar ao sol longe da sombra nefasta dos ramos maternos!

Que deleite. E como esse, ainda por cima, tinha daqueles olhos que se grudam às pessoas e não nos deixam

sequer desviar os nossos para os pousar nos quadros, o esforço que eu fazia para conservar os meus no mesmo plano causava-me um sono invencível.

Ouvia-o portanto num estado de modorra hemiplégica, ou seja, com metade do corpo a dormir e a outra metade acordada apenas o suficiente para lhe poder ir dizendo “que giro” ou “ah, sim?”, mas ele era tão desatento que não se apercebia do meu sono nem da minha fadiga, ou pior, fingia que não se apercebia porque o whisky era velho e a solidão egoísta.

- É tão bom falar com quem nos compreende!... - suspirava ele, gratíssimo. Era o tipo de situação absolutamente impossível de se passar com uma mulher: sempre que

sentimos que maçamos ou pesamos, detectamo-lo antes do homem. - Pois é - dizia eu, no limite. - Mas olhe que dormir é quase tão importante como isso e já é tão

tarde... - O que interessam as horas? - chocava-se ele, recostando-se no sofá. - O que interessam as

horas se este tempo que aqui passamos juntos nos faz recuperar muito daquele que perdemos? Falava evidentemente por ele porque, quanto a mim, começava a amaldiçoar aquela silhueta

desfocada pelo sono, embora toda a minha expressão aparentasse o contrário e se esforçasse por transmitir uma imagem cortês e atenciosa.

- Quer outro whisky? Sentia-me devassada mas, sempre que ele se calava, via-me na obrigação de lhe mostrar que

acompanhava a conversa e tornava-me patética, absolutamente patética e com uma náusea que subia por mim acima e me chegava aos olhos:

- Ainda me lembro de que, no fruto, a semente é dividida em tegumento e amêndoa, não é? Mas rapidamente estragava tudo, traindo o meu desinteresse: - Tem graça como eu ainda me lembro destas merdas! Quando era pequena fazia tanto esforço

para não as decorar, e, mesmo assim, colaram-se a mim... E já cruel: - Isto e os Caminhos de Ferro de Benguela que, neste momento, devem estar todos intransitáveis! Partiu-se dos frutos para a política e desta para os divórcios de um e doutro, e eu apercebia-me

de que, ao mesmo tempo, ele aproveitava para tirar informações a meu respeito com sucessivos “Há quanto tempo vive nesta casa” ou “Esta casa é sua ou do seu marido” e a minha crispação aumentava enquanto a minha educação me tolhia os movimentos e a própria fala.

Respondia por sínteses brevíssimas e quase enigmáticas na esperança de que ele atingisse que não estava disposta a partilhar com ele absolutamente nada da minha vida privada, mas ele era tão desconcertante que assinou a sua sentença de morte desta forma sexy:

- E só por curiosidade: quanto é que ganha por mês?

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Fiquei interdita a olhar para ele pensando que nenhuma mulher do mundo seria capaz de uma cavalidade daquelas, e, de tão furiosa, a única coisa que me ocorreu foi fechar os olhos para o fazer crer que a sua conversa me adormecera profundamente.

Mas quem acabou por ser enrolada fui eu, que passei desse pequeno truque ingénuo a um adormecimento efectivo, para acordar três horas depois e deparar com ele a remexer nos meus CD como se estivesse em casa, e a fumar um charuto cujo cheiro nauseabundo não escaparia, no dia seguinte, ao faro vigilante dos meus filhos.

Faltava meia hora para acordarem quando o expulsei dali com uma delicadeza já firme, um ressentimento a trepar por mim acima e todos os ossos do meu corpo a protestarem contra a infeliz ideia de me ter deixado dormir sentada por cima das pernas, de sapatos calçados e com as costas desamparadas de almofadas.

No dia seguinte acordei com uma dor nas costas escarninha e a voz do próprio ao telefone, e, à tarde, não me consegui livrar de um convite seu para almoçar, apesar de toda a criatividade investido na alegação de compromissos, começando por dizer que segunda não, e terça também não, e quarta que então me era completamente impossível, mas ele descobriu-me uma brecha que não me foi possível declinar porque, por qualquer mecanismo incompreensível, perdera entretanto a coragem:

- Sexta? Sexta talvez. Onde? - Onde a menina quiser. E foi só quando ele se fez aparecer à hora combinada, com o ar de quem abre uma excepção e de

que não faz parte dos seus hábitos atravessar a cidade para se encontrar com alguém que só lhe dispensa duas horas miseráveis, que eu lhe declarei guerra por cima de uma feijoada de lebre e debaixo de um contentamento postiço, aproveitando uma altura em que ele, dissertando sobre a sua personalidade, mencionara o alter-ego:

- Está-se a referir à consciência crítica, não está? - interrompi. Ele pestanejou e reagiu com orgulho: - Precisamente. - Então, era super-ego que você queria dizer... - Não era. - Ai isso é que era, desculpe... - Não era. - Está bem, pronto, não era... Mas ele queria ganhar, precisava de ganhar, e com toda a razão, talvez: - Desculpe: você não sabe ao que eu me referia... - Não sei porquê, claro que sei, ouvi-o perfeitamente! Ri-me, subindo o tom. E alarmando a tasca

inteira: - O que você queria dizer era super-ego e eu tenho absoluta certeza do que lhe estou a dizer! Não percebo nem de plantas, nem de frutos, nem de troncos, nem de sarmentos ou espiques, mas percebo alguma coisa, note-se, apenas alguma coisa de psicologia e sei do que estou a falar!

- Sabe? - Sei. - Tem a certeza? - Tenho! - Como é que pode ter a certeza? Aquilo era um calvário, um verdadeiro calvário: - Porque ainda não me esqueci do Freud, infelizmente! A defesa era confrangedora: - Espere lá: mas o super-ego não pode ser também aquela espécie de duplo onde nos revemos? Mas eu já não disfarçava, fervia: - Não. Isso é o alter-ego!!! Finalmente, ele percebeu que o que estava em causa não era propriamente a definição do termo

utilizado, mas a da sua imagem aos meus olhos: - O que eu não percebo é o que significa essa agressividade toda contra mim... E já sem hipóteses nenhumas: - Fiz-lhe algum mal?

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No fim daquele almoço interminável, em que ele tentara desesperadamente resgatar a sua imagem entre o flã e o descafeínado, provando-me que era erudito em muitas outras matérias, levantei-me da mesa com uma vontade imensa de tomar banho para ver se me desenvencilhava não de fragmentos dele no meu corpo, como costumam ansiar as violadas, mas dessa menoridade que me perseguia desde sempre para me fazer cair em situações que apenas acentuavam a minha solidão.

- Então, até sempre! Foi muito agradável... - Mas, não quer repetir o almoço um destes dias? - perguntou ele, gorado. - Comportei-me de uma

maneira que a esfriou, foi? Como é que eu lhe podia responder honestamente sem o incapacitar para a vida? - Não, não, pelo contrário: este almocinho foi até muito simpático! Mas não tive tempo de lhe dizer

que tenho um namorado, sabe? E um namorado ciumento que não percebe nem quer perceber estas coisas paralelas que de vez em quando sucedem a todos nós, compreende?

- Compreendo - disse ele. - Eu também tenho uma namorada. Olhei-o interdita, pensando: um homem parvo e ainda por cima partilhado? Ficou parado a ver-me entrar no carro, cheia de pressa, e só em casa consegui reconstituir a sua

última frase: - Espere! Trazia aqui um livro para lhe oferecer ... * * * Eu renascia nos braços do Vasco, pensando que o sexo era mais uma prova insofismável do génio

de Deus, essa coisa de se poder vivê-lo com a mesma expectativa de sucesso ou insucesso, sem privilégios de instrução, inteligência, plástica, berço ou saldo bancário.

Mas precisava de não o desbaratar porque o sexo era, de facto, uma dádiva. Uma dádiva na força que tinha para derrubar fronteiras e classes, na autonomia de que gozava

para dispensar instrutores, na virtualidade que continha para se parecer com o amor. - Foi a única perversão de Deus - garantia a Mafalda. - A única: esconder o amor dentro do sexo.

E fora. Fazem-se exactamente os mesmos gestos, dão-se exactamente os mesmos beijos a uma pessoa

que amemos ou que apenas nos atraia. É talvez esse mistério que o torna tão inexoravelmente indeclinável: o facto de ser igual e

diferente para toda a gente, limitado e infinito, sagrado e sacrílego, húmido e doce, suado e bestial, lúcido e insano, extenuante e sempre insuficiente.

É redentor constatar, embora no dia seguinte nos repugne admitir, que fomos capazes de beijar, abraçar e apertar com devoção pessoas que nos são estranhas, pessoas que não são nossas.

E mesmo a mais ardente das entregas, e mesmo a mais crua das palavras, por muito viciosa ou sórdida que pareça, tem sempre a sua candura própria, uma raiz infantil, uma qualquer razão que a ser vital nunca pode valer nem mais nem menos do que a razão em si.

E, em última análise, estaremos sempre credores dos seus poderes terapêuticas, energéticos, profilácticos, alquímicos.

Também porque o sexo gera gente de carne e osso, primeiro pequena e depois grande, ou primeiro grande e depois pequena que é outro dos seus mistérios, mas não o maior: o maior são as pulsões, a inspiração renovada pelo bater do coração, a fusão da alma com o espírito e com a inteligência artesanal das festas que se fazem, o pudor e a libertação, os dois ou três esconderijos do corpo que nos permitem encontrar o belo no grotesco, a mágoa na violência, a ternura na pressa, e adorar tudo isso da mesma forma cerimoniosa e aos poucos e poucos voraz.

Na cama, tudo o que se quer é gente de carne e osso ao nosso lado, abandonada, desarmada, feliz, esquecida das suas dores e acima de tudo nossa.

Dure o que durar, nossa. Verdadeira ou falsa, ignorante ou sábia, mas igualmente capaz e sempre nossa em qualquer dos

casos. E é só na cama, talvez, que a beleza pode ser irrelevante, a imperfeição bela, a verve

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desnecessária, a cultura vã, o poder ridículo. Na cama, tudo o que se quer é ter ao lado uma pessoa que nos queira. É possível que no dia, que no momento seguinte todo o mal reapareça, todo o nosso egoísmo e

crueldade e escárnio e oportunismo regressem intactos, mas o dia ou o momento seguinte é tão longe naquela altura que não importa, nada importa, nem mesmo, como nos demonstra o Mundo de antes e de depois da Doença, nem mesmo a morte importa.

E nem o amor consegue cegar tanto! O sexo é o abandono, a rendição, as pazes com o Mundo e com nós mesmos, a companhia, o perdão

e a desforra sem propósito de vingança, o paradoxo da posse descarada ou da prepotência máxima que nem sempre faz vítimas e às vezes até consola.

É tão grande, e é tão mágico, e é tão profícuo, que através dele aprendemos a amar, a estimar, a ler, a conhecer, a compreender e a perdoar a imperfeição do Mundo, a fragilidade das pessoas e sobretudo a nossa, e só por isso vale o que vale: vale-nos.

E é tão recente, o sexo. Só há pouco saiu dos livros para as salas, dos filmes para as conversas, dos homens para as

mulheres, das casas para as ruas, da cama dos outros para a nossa. É até compreensível que poucos se interessem em decifrar-lhe os enigmas, aprender-lhe os

truques, seguir as instruções dos manuais, ou fazer batota com a ajuda de afrodisíacos ou arsenais porque o que está em causa somos nós, é isso que o sexo tem de mágico e criador, a nossa capacidade de dar vida a uma massa inerte, a nossa intrepidez para nos desenrascarmos sozinhos numa barcaça no mar alto, de nos atirarmos de pára-quedas pela primeira vez, em cada corpo que passa, em cada coração convalescente, apavorado.

Devia ser morto quem lhe chamara relação ou intercourse, devia ser abençoado quem lhe chamara aventura. Não se deveria cair no lugar-comum de lhe chamar descoberta se o lugar-comum não fosse, sempre, um achado de evidência inquestionável.

É descoberta, sim, porque o sexo é uma estante a convidar-nos a ler, a compreender o ser humano em toda a sua miséria e grandeza, em toda a sua suficiência e dependência, sem contudo se querer nunca violar o mistério, sem contudo se querer nunca desvendá-lo completamente, porque é na sua, por assim dizer, opacidade, que se esconde o segredo do seu perpétuo aliciante.

E as pulsões são simples, afinal: vêm de tudo o que não pudémos, de tudo a que não chegámos, de tudo o que não devemos, de tudo o que nos falta ou a que nos afeiçoámos, de tudo o que não nos deram ou deram a mais ou de nada de especial.

Porque isso varia de pessoa para pessoa e de nós em nós, porque, fundamentalmente, é no sexo que está, que esteve sempre, a única escola não cabotina da liberdade, a única catequese não beata da generosidade, a única faculdade não teórica da psicologia, e é através dele, dele e da tão reprimida e mais do que nunca perigosa infidelidade, que todos nós, queiramos ou não, acabamos por nos beijar uns aos outros.

E as chamadas zonas erógenas, que também se podem chamar teclas ou cordas para fingir que a coisa é mais artística do que é, que talvez nos inquietem por de vez em quando nos recordarem a nossa condição de brinquedos - dás corda ao ursinho e ele bate palmas -, isoladas e estimuladas maquinalmente como quem faz respiração boca-a-boca, ou seja, como quem beija para recuperar um afogado, são para os desfavorecidos que partem para a cama de manual de instruções debaixo do braço.

Também o são para nós, claro, já que todos lhes somos vulneráveis, mas sem uma inteligência a pressenti-las, uma sensibilidade a indicá-las, uma intuição a descobri-las, valem, quando muito, o choque eléctrico provocado por umas mãos molhadas em contacto com um fio descarnado, uma coisa com a mera dimensão de coisa de que não fica lembrança nem saudade.

O que me interessa na carne é o espírito, mentia a Mansfield. Na cama a pessoa nunca é só carne, a pessoa nunca é só espírito. Nela, cada pessoa gosta de uma coisa diferente, precisa de uma coisa diferente, quer tímida e

desesperadamente uma coisa diferente, de si ou do outro, e quer sobretudo dissolver todos os pudores para poder descobrir o outro e revelar-se a si mesma.

Quando é falado, comungado, chorado ou rido, pode-se viver do sexo dias, semanas, meses ou

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anos só com a simples evocação. E quando se experimenta aquela espécie de gratidão que vem a seguir e que torna duas pessoas

eternas na memória de ambas, convém até não vandalizar, não profanar, não sobrepor com outras pessoas, não dar outros beijos logo.

Porque é de certeza aquele o quadro mais belo, o soneto mais perfeito, a ária mais sublime, o livro mais grato.

Embora seja ainda mais do que um quadro, porque se pode tocar a pele das figuras da tela, mais do que uma ária, porque se encostarmos a cabeça com cuidado podemos escutar distintamente o coração dos músicos, e até mais do que um livro porque, não tendo letras nem enredo nem estampas, é nele que estão todas, ou quase todas, as respostas da vida.

Mas o Vasco pedia-me, delicado, que avaliasse o seu desempenho : - Foi bom? E eu respondia só assim, porque a vida era outra coisa: - Foi. * * * As pessoas bem podem lamentar que os seus actos não correspondam a movimentos interiores

transcendentais, mas é a ordens menores que quase sempre obedecemos. Deixara entrar o botânico em minha casa, naquela noite interminável, apenas para fugir ao

imperativo moral e só moral de escolher entre o Nuno e o Vasco - um, impossível por não ter futuro, outro, inexistente por não ter passado.

O mais certo seria não gostar nem dum nem doutro e servir-me do botânico para iludir esse vazio. Mas se, por um lado, me era penosa a ideia de não amar ninguém, por outro sentia alívio. No dia seguinte, era até possível que nada daquilo me beliscasse: já não havia Nuno, já não havia

Vasco, já não havia hormonas nem fantasias porque, na realidade, só a vida me arrebatava. Era a esse desafio, o da Vida, a esse jogo de glória apaixonante que eu estava grata realmente. As pequenas vitórias impartilháveis, os sortilégios que só a mim me diziam, as coisas que não tinham

significado na altura e que o adquiriam mais tarde, a renovação sistemática que os outros me facultavam, o tempo a revelar-me a pouco e pouco, tudo isso era capaz de despertar em mim vibrações mais intensas do que o sexo ou do que os homens.

Mas, apesar disso, dava comigo a ligar o número do botânico, envergonhada com as misérias da minha alma e confessando-o logo:

- Olá, sou eu. Falei-lhe nem sei bem porquê... Sabia, achava que sabia. No fundo, o que eu queria era dizer-lhe: “Eu sei que não podes, coitado,

que não tens possibilidades; mas faz uma pirueta qualquer e ajuda-me, por favor! Mas faz uma pirueta qualquer e ajuda-me, por favor! Ajuda-me a sair desta, porque não tenho mais

ninguém ... “ Mas só de ouvir a sua voz a reconhecer a minha, pressurosa, arrependia-me. Afinal, o único

interesse dele era ter outra mulher. - Olá, Ana! Sinceramente, julguei que já nem se lembrava de mim... Era verdade, e nem ele nem eu sabíamos quanto. - Não era para nada, a sério. A situação com o meu namorado mantém-se. Mas como, no outro

dia, a seguir ao almoço, o ouvi dizer que tinha um presente para mim... Não estava zangado. Os homens ou estavam em nós ou estavam fora e este ainda estava comigo: - Tinha um livro para si, tinha, e sabe o que era? - perguntou, criando mistério. - O quê? - interessei-me a medo. Respondeu apoteótico, como se me satisfizesse um velho sonho: - Um livro antigo sobre açucenas! - Ah! - fiz eu, atónita. - Que giro... E logo ele, entusiasmado:

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- Sabia que o ramo de açucenas mantém o seu significado nas cerimónias nupciais? Não, não sabia, não me interessava, e desejava ardentemente que todo aquele vestibular não

servisse para, no fim, me brindar com uma alusão descabida. - Sim, talvez. Tinha uma vaga ideia... - Mas não fazia ideia de que eu ia pedi-la em casamento nesse dia, pois não, Ana? Fiquei de boca aberta de telefone na mão, primeiro afónica e depois indignada: - Mas, estará louco por acaso? Você nem me conhece - Aí é que a menina se engana - disse. - Conheço-a muito melhor do que julga... Nada me irritava mais do que aquela frase calista. - Não conhece nada! - protestei, furiosa. - Se as pessoas fossem capazes de me conhecer assim,

tão depressa, quase que não valeria a pena viver! Não me pode conhecer e muito menos gostar de mim! E provando-lhe: - Eu nem sequer fui simpática consigo! - Está bem - admitiu ele. - Mas eu gosto de si independentemente do que você é ou faz... Outra mentira, outra impossibilidade absoluta! - Então é indiferente ser eu ou outra qualquer, percebe? Tudo aquilo me parecia tão imbecil que nem sequer chegava a comover-me. - Oiça, Vítor: não estamos outra vez muito sinfónicos, para variar. A última coisa que eu faria

agora era casar-me. E, além disso, se quer que lhe confesse e se conseguir não se ofender, a verdade é que não gosto de ninguém. Nem de si, nem mesmo dos meus namorados...

- Namorados? Estava no seu direito de estranhar o plural. - Sim, namorados! Não lhe contei para não o escandalizar, mas neste momento ando às voltas com

duas pessoas ao mesmo tempo... E abreviando: - Duma talvez goste, mas atrapalha-me na mesma... - Nesse caso - interrompeu, orgulhoso -, retiro-me já e não se fala mais nisso... - Exactamente! - aproveitei. - Não se fala mais nisso e, quando se deixar de romantismos,

telefone-me para irmos ao cinema! E sem o querer perder, apesar de tudo: - Quer? * * * Acontecera numa tarde vulgaríssima em que fora ao centro comercial com o meu filho disposta a

comprar-lhe umas sapatilhas de basquete, mal vestida e desmazelada, num daqueles dias em que as mulheres se convencem, talvez por estarem com os filhos, que não vão encontrar ninguém que conheçam ou repare nelas.

Estava pois a olhar para a montra da loja concentrada na escolha, com o miúdo a apontar-me as sapatilhas mais caras do escaparate e eu a convencê-lo de que, a crescer como estava, não era absolutamente imprescindível que fossem eternas, quando distingui, pelo vidro da montra, a silhueta do Vasco a deslizar atrás de mim.

Virei-me imediatamente para acreditar nos meus olhos: estava com a mulher, de braço dado! Passeavam os dois muito calmos, vendo as montras como peças de museu, rindo e trocando graças,

numa atmosfera tão amiga que me gelou o sangue. Mas o Afonso queria que eu entrasse na loja naquele instante, puxando-me pelo braço, impaciente. E tinha razão: a selecção já fora feita da montra e só faltava provar. - Venha, mãe, já sabemos quais são! Venha... - Espera - pedi-lhe, sem pulsação. E já a tremer das pernas: - Espera, que eu estou a ver uma

pessoa que já não vejo há muito tempo... O Afonso preparava-se para ser malcriado quando lhe apertei o braço, severa: - Não faças fitas, os sapatos não fogem! Não saías daqui, que a mãe já vem... Corri então direita a eles como um fuso, sem escutar nem os protestos do meu filho nem as

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premissas da minha alma, e foi só no fim do corredor que os alcancei. Já arfava, ao abordá-los: - Sabem dizer-me onde fica a loja dos discos? Queria ver a reacção dele e a surpresa da patroa, mas nunca por nunca me passara pela cabeça

que ela pudesse ser melhor ao natural. Foi o Vasco quem primeiro reagiu, ao mesmo tempo lívido e corajoso: - Olá, Ana... A mulher rodou imediatamente a cabeça na minha direcção, para perceber o que se passava, e

passou os olhos por mim, desinteressada. - Aí, era você? - perguntei ao Vasco, teatral. - Desculpe, não reparei. Só os vi de costas... E justificando-me: - Já ando aqui há meia hora às voltas e não consigo dar com o raio da loja! São as terceiras

pessoas a quem pergunto! E estendendo-lhe a mão: - Está bom? A mulher agora já intuía qualquer coisa, mas não podia provar nada. O Vasco precipitou-se a

apresentar-ma da forma que eu lhe ensinara: - É a Gi... - E eu sou a Ana - devolvi, cravando os olhos no seu tailleur controverso. E para evitar dar-lhe um

beijo: - Isto está tão cheio, não está? Mas algo com que não contava ocorreu: o Afonso, farto de esperar por mim, vinha ao meu

encontro para me tirar a febre: - Ó mãe! E os sapatos? já se esqueceu? A deixa comprometia-me, tive de disfarçar: - Olha. Fala a estes senhores, que são amigos da mãe ... O Afonso disse olá e ela sorriu, polida, subitamente enternecida com a presença dele: - Que idade tens? - Nove. - Já andas na escola? Era estúpida, devia ser muito estúpida aquela mulher. - Bom - abreviei eu, no limite de tudo ficar perceptível. - Sabem então dizer-me onde fica a loja?

- Aqui - respondeu o Vasco, vingando-se. - Precisamente aqui... E, de olhos acesos, apontava-me a loja ali ao lado. - Obrigada - disse eu, com um sorriso ictérico. - Despisto-me sempre que ando nestes corredores... E apressando as despedidas: - Adeus, até qualquer dia! Mas, para meu azar, o meu filho voltava a reincidir na presença dela: - Loja? Que loja? A mãe andava a procura de uma loja e deixou-me ali sozinho? Não disse que

tinha visto um amigo? - Cala-te - rosnei, já depois de lhes ter virado as costas. Não podes compreender tudo o que se

passa à tua volta! E furibunda: - Vamos lá comprar os teus sapatos! De regresso a casa, intoxicada pelo cheiro pestilento de uns sapatos podres trocados ali mesmo e

atirados para a trascíra do carro, só pensava na síntese que o Vasco faria para me justificar aos olhos da mulher.

De todas, intuí esta: - É advogada. Trabalhou lá no escritório durante uns tempos. É meio desmiolada... E a madame a pontificar, implacável: - É trapalhona e arranja-se mal. Esmagada pela impossibilidade do Vasco, cheguei a casa e chorei durante algum tempo, trancada

no quarto.

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O Afonso estranhava o meu nervosismo desde a cena da sapataria. Muito delicadamente, o que não era seu hábito, bateu à porta e perguntou baixinho:

- O que é que a mãe tem? - Nada - soluçava eu, dramática. - A mãe não tem nada, a mãe não tem nada de nada! Mas o miúdo percebia, tão pequeno, o alcance do trocadilho: - A mãe tem-me a mim...

Mas eu, estúpida, em vez de me mostrar contente, redobrava o pranto e abafava os soluços na almofada:

- Ó meu querido, tu tens uma mãe maluca! Tens a certeza de que não queres outra? - Não quero! - recusava o miúdo, chocado. - Não quero outra, quero esta!

E impondo as suas condições: - Quero esta, mas sem estar a chorar! - Então é impossível - gritei. - Todos nós nascemos a chorar! Mas depois suspendi os soluços, lembrando-me de que não tinha o direito de impressionar a

criança. As mulheres precisam destas cenas como de pão para a boca, mas os filhos não, os filhos sofrem com elas.

Abri a porta com um ar reabilitado para a vida, peguei nele ao colo com uma guinada nas costas e anunciei-lhe, com uma nova força:

- Amanhã, vou dar-te dinheiro para comeres no bar! Estás farto da cantina, não estás? E ele riu-se então, desconfiado, como se reconhecesse aquela música: - Está outra vez a comprar-me um sorriso? - Estou - admiti com desplante. - Para que é que serve o dinheiro, senão para comprar sorrisos? - Mas não é justo - protestou o miúdo -, eu a si não lhe posso comprar nenhum sorriso! A mãe,

esta semana, esqueceu-se de me dar a semanada... E, sem querer, o meu filho lembrava-me: também os sorrisos que me faziam eram pagos por mim. * * * O Vasco procurara-me logo, abismado com o meu topete: - Que bicho te mordeu? Quiseste conhecer a Gi, foi? - Sim - respondi, crispada só de ouvir aquele nome talvez... Irritou-o o meu ar ausente: - Mas, se queres conhecê-la, não há problema nenhum: convido-te para jantar um dia destes... - Ai, sim? - gritei. - E quando é que podia ser? Resolveu baixar a voz, alarmado pela minha: Estás a gritar, Ana. Não podemos falar civilizadamente? - Civilizadamente? - formulei, incrédula. E berrando-lhe, irracional: - Moisés foi civilizado quando

partiu as tábuas da lei? Cristo foi civilizado templo? Preparava-se para responder como eu merecia, mas não lhe dei tempo: - Quando? - perguntei. - Quando é que podia ser? Ele olhou-me prudente, eu aproveitei: - O que lhe disseste a meu respeito? - O que querias tu que eu lhe dissesse? Apanhaste-me assim, completamente desprevenido... - Mas o que é que lhe disseste? - insisti. - Que eras advogada e tinhas trabalhado em tempos lá no escritório...

- Tenho cara de advogada? - perguntei, ferida, sem saber porquê, no mais fundo da minha alma. - Não podias ter inventado nada mais prestigiante?

- Ana - lembrou ele, baixinho. - Eu também sou advogado... Ri-me por reflexo, não por estar divertida: - Que comentários é que ela fez? - Nenhuns - respondeu, puxando pela memória. Perguntou-me de facto quem tu eras, disse-me que

não se lembrava de nenhuma Ana, e depois...

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- E depois o quê? - ameacei. Mas aqui foi ele que se riu: - Disse-me que não devias ser uma mãe por aí além... - Uma mãe por aí além, foi isso que ela disse? - perguntei, chispando ódio. - A tua mulher é um

bocado estúpida, não é, Vasco? E ele safou-se assim: - Qual delas? Acontecia-me sempre quando ele chegava para mim, não sabia perder: - Sabes porque é que vocês, homens, não têm nunca tanto interesse como poderiam ter? - Porquê? - perguntou ele, armando-se de coragem para a estocada final. - Diz lá porquê... - Porque nos aturam. E demoníaca: - Um verdadeiro homem não nos atura! * * * O Vasco passou a buscar-me para jantar nessa mesma noite, sem rancores. - Como te arranjas em casa para nunca me faltares? perguntei-lhe, arrependida. - Estás a ter

problemas por causa de mim? Percebi que sim, pela expressão que fez, mas via-se que não queria confessar-mo. As mulheres eram resistentes, mas os homens eram estóicos, caramba! Deus, quanto o amava. Quanto o amava pela sua coragem, pela sua sinceridade, pelo esforço que fazia para me conservar

apesar do cardo em que me tornara ultimamente - ou talvez só por ser homem, quem sabe, e estar ali ao pé de mim...

- Sabes - aproveitou ele -, as mulheres sabem sempre tudo. A Gi deve estar a coleccionar as contas todas para mas fazer pagar ao mesmo tempo...

E procurando-me os olhos, receoso: - É-te familiar, este tipo de cobrança? Claro que sim, em certas coisas éramos todas iguais; mas nem morta o confessaria. - Queres desistir? Ainda estás a tempo... – desafiei cobardemente. Ele declinou a minha “generosidade” de uma forma que me assustou: - Eu sei que estou sempre a tempo, não precisas de mo lembrar... - Ouve, Vasco - disse eu. - Aqui há tempos, levei uma sova de um homem... Vieram-me lágrimas aos olhos, mas não sabia se era fita. Não, não era fita: de vez em quando

precisávamos de chorar para que acreditassem em nós. - Lembras-te quando te disse que andava com conjuntivite? O Vasco levantou-se imediatamente, nervoso: - Tens outro homem? Não era a minha dor que ele sentia, era a dele. Talvez por isso tive que mentir só um bocadinho.

Exactamente do que ele precisava e nem mais um palavra. - Tinha. Agora já não tenho. Acabou contigo. Foi por causa de ti... - Quem é esse gajo? - perguntou ele, transfigurado, esticando os punhos e o pescoço ao mesmo

tempo. - O meu antigo namorado. Uma coisa arrastada, sem transcendência nenhuma... - Vou-lhe à cara - disse. - Desfaço-lhe as trombas em dois tempos, tu não me conheces.. E pronto. já não era preciso que o fizesse. já me tinha provado que o faria. já me sentia vingada. - O que ganhas em estar comigo? - perguntei-lhe, quando se preparava para me deixar em casa. - Aprendo que a infidelidade é impossível, com mulheres como tu ao lado... A resposta era uma faca de dois gumes, mas não me desagradou inteiramente. - Isso é muito curto. Isso já tu sabias. Isso também é verdade com qualquer outro tipo de

mulher! - Não é - negou peremptório. - Eu já tive outro tipo de mulheres a insinuarem-se...

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- Quem? - saltei. - Gajas - respondeu ele. - Gajas que não nos levam a ser verdadeiramente infiéis. Gajas que não

substituem ninguém... Desgostava-me que se referissem assim às mulheres e reagi por todas elas: - Por serem feias? Por serem ordinárias? Ele suspirou antes de responder: - Não, Ana. Por não nos fazem sofrer o suficiente. Para se ser infiel, se a nossa mulher não

sabe, a outra tem de nos fazer sofrer o suficiente... Ficámos assim, naquele dia, sem mexer mais dentro de nós. Despedi-me com um beijo que lhe

pedia perdão por todos os excessos. E também por não me limitar a ser gaja. - Amo-te - disse ele. Mas aquilo soou-me a “Gosto de ti, apesar de tudo” e eu confirmava que amar um homem sem

retaliação não era possível, até porque eles precisavam dela para expiar as suas culpas. * * *

É sempre de manhã, depois de acordar e antes de abrir os olhos, que tomo consciência das minhas

fragilidades. Era nessas alturas, em que faço um balanço impiedoso de mim própria, que deveria tomar as

grandes resoluções da minha vida; mas estou sempre ensonada demais para evoluir e depois de lavar os dentes já não há nada a fazer: calço com os sapatos a personalidade da véspera e moldo-me sem resistência àquela plasticina parecida comigo.

Mas sei a que me sabem esses momentos. É um angústia localizada na garganta, de medo do futuro e de completa desprotecção, e isso

talvez se deva à falta objectiva que um homem me faz dentro de casa. Não para fazer voz grossa aos outros homens, nem para me dar dinheiro ao fim do mês; para me

proteger fisicamente dessa ameaça que sentem todas as mulheres do mundo a viverem sozinhas com os seus filhos, e que passa, talvez, pela consciência de uma inferioridade muscular, o medo latente de assaltantes, de guerras, de falta de saúde e de catástrofes.

A mesma aflição que deveria sentir a mulher do cow-boy, a viver com os dez filhos no rancho da pradaria, ao vê-lo partir para caçar e ficando à mercê da vingança dos índios, da libido dos forasteiros ou da fome dos lobos.

Era um fantasma que eu afugentava constantemente como se, daí até ser velha, tivesse tempo de sobra para encontrar um companheiro.

No entanto, ainda não me sentia capaz de trocar a paixão pela paz do amor, e queria estar disponível para a vida, fosse ela boa ou má, para a surpresa da vida, para a imensidão da vida, como se a união a um mesmo homem me ceifasse todas as possibilidades de lhe pertencer.

Não é a liberdade que é criativa, é a luta - dissera-me um dia uma senhora de setenta anos, casada há cinquenta anos com o mesmo marido e alegre como um cuco.

Em que é que ficávamos? O casamento também podia ser criativo? Sim, talvez, mas tinha então de ser muito infeliz para converter essa dor em criação. E os casamentos nunca nos faziam sentir verdadeiramente infelizes, apenas outras.

Contudo, se por um lado devia alguma coisa do que era ao egoísmo dos homens, por outro as forças começavam a faltar-me.

Andava simultaneamente preguiçosa da ideia do Vasco e do futuro arriscado que ele representava, e efectivamente dependente.

Era uma clivagem que me desfazia em mil pedaços e me doía como um espinho sempre que saía de junto dele e a magia se quebrava, tornando-o um estranho na minha vida e na minha memória.

* * * - A mãe não tem nada para eu arranjar? - perguntava-me o meu filho, num arroubo súbito pela

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marcenaria. Tinha de ser uma coisa velha, que ele pudesse consertar e espatifar ao mesmo tempo. - Toma a chaves da arrecadação. Vai lá buscar uma cadeira que lá está, que era da avó. É a mais

estragado de todas. Vê se lhe consegues colar a perna. Era óptimo se lhe conseguisses colar a perna... - E empresta-me a sua caixa de ferramentas? Aquilo ia dar-me um trabalhão. Quase sempre, as brincadeiras das crianças implicam trabalho

acrescido para os pais. As delas e as nossas, pensava eu, a arranjar coragem para me separar do livro que tinha nas mãos

e lhe possibilitar um entretenimento estimulante. - Toma. Tem cuidado para não martelares nenhum dedo... A diversão dele empatou-me o domingo todo. Primeiro, exigiu-me que o acompanhasse à cave para trazer não uma, mas todas as cadeiras que lá

tinha. Eu já previa o logro da empreitada, mas era obrigada a fingir que acreditava no seu expediente. Educar um filho passava por tudo isto. Segundo, deixou-me a sala de pantanas, com fagulhas enterradas na alcatifa, os sofás sujos de

serradora, duas cadeiras mais estragados do que estavam, uma desistência súbita agora já chega, agora quero ir lanchar -, e ainda um golpe na mão com o serrote ferrugento que me obrigou sucessivamente a trocar de roupa, a levantar dinheiro da máquina, a pôr gasolina e a procurar uma farmácia de serviço.

Danada pela devassa que representava alguém arrancar-me à minha solidão e à minha tristeza - merda, estava eu tão bem aqui a sofrer -, uma profunda comoção por aquele dez reis de gente que era simultaneamente a minha testemunha e o meu herói.

- Dá cá um beijo. Sais ao teu pai com essa mania de arranjar as coisas em casa... Aquele miúdo, qualquer criança merece toda a generosidade do Mundo; até porque quando lhes

damos alguma coisa, estamos a dar à criança que já fomos e que morreu cedo demais. Todo o amor era interesseiro, a Mafalda tinha razão, e eu começava a fartar-me dessa

desmontagem permanente que fazia de todos os meus gestos, como se constantemente duvidasse da minha virtude.

Quando finalmente o vi na cama pronto para dormir e ele me pediu para lhe contar uma história, desanimei:

- Agora já chega, querido. Estive todo o dia ao teu serviço, não achas que já chega? O Afonso não achava. - Conte-me só uma. Pequenina... O telefone tocava ao mesmo tempo e era o Vasco, de certeza. - Tenho de atender o telefone... Passou-me os braços por detrás da cabeça e apertou-me contra si, para me reter: - Só uma, está bem? Pequenina... Era completamente impossível resistir àquilo. Não tinha disponibilidade mental para ele, mas

resistir àquilo parecia-me criminoso. - Não. Agora vais dormir. Sonha com coisas boas. Sabes que os sonhos se podem escolher? Era mentira; mas obrigá-lo a inventariar ideias gratas antes de dormir parecia-me, naquela

pressa de me ver sozinha, compensador. Mas, antes de fechar a porta, reparei que o meu filho tinha a mão ligada estendida na minha

direcção e um sorriso alusivo. Fechei os olhos: o Afonso queria um beijo na mão ferida, como se os meus beijos tivessem

propriedades cicatrizantes. E tinham. Lembrava-me daquela situação em pequena, com a minha mãe, e em adulta, com os meus homens.

Era uma necessidade que permanecia, muito depois das mães morrerem. Aproximei-me dele, como se carregasse uma mochila de pedras. A irmã já dormia, e aquele cotomiço continuava ali, a exigir-me inteira. Bolas, os meus filhos.

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Como continuar a lutar sem os esquecer, a trabalhar sem os negligenciar, a conservar a doçura desentupindo ralos e mudando pneus, a educá-los sem transportar para eles toda a minha revolta, por um lado, e toda a minha necessidade de protecção,

por outro? Ninguém poderia imaginar o esforço que eu fazia para lhe dar um beijo naquele momento. O telefone deixara de tocar, e eu nunca poderia contar a ninguém que o beijara nessa noite cheia

de raiva e ressentimento, amando-o como o amava. - Boa noite, meu querido. - Boa noite - disse ele. E informando-me: - Não vou adormecer já. Se entretanto lhe apetecer

contar-me uma história, conte-me aquela das três laranjinhas de ouro, lembra-se? - Lembro-me, filho, lembro-me - despachei, sem a menor intenção de lhe fazer a vontade.

- Não feche a porta! - pediu ainda. - Gosto de adormecer a ouvir os barulhos da casa! - Está bem, filho, a mãe não fecha. Dorme, que a mãe não fecha... Mas já na sala e de livro em punho, voluptuosa daquele luxo, vi tudo recomeçar como se o demónio

me tentasse: - Mãe! Ó mãe! Esqueci-me de lavar os dentes! E também me esqueci de lhe pedir dinheiro para

pagar a excursão ao Aquário! E a mãe passou-me as minhas calças verdes? Para os dentes estava-me nas tintas; para as calças também; para o Aquário era diferente e fui

obrigada a levantar-me outra vez para procurar a carteira, que nunca estava onde pensava. - Pronto! - explodi. - Agora já chega! Não inventes mais pretextos, não? E fechando a porta do quarto já furiosa, indiferente aos seus protestos tão ternos, ainda o ouvi

dizer: - É que custa-me tanto separar-me da mãe todas as noites... * * * E se agora, pensava eu, por algum passo de magia, tivesse tempo para fazer tudo aquilo que não

fazia por falta dele? Realizar as milhares de coisas aparentemente proveitosas que empreenderia se tivesse outra

disponibilidade? Tempo para tratar do corpo, fazer ginástica ou diagnóstico precoce? Tempo para contar

histórias aos filhos, passear com eles, ouvir os seus dramas? Tempo para ler, fazer paciências, escrever cartas? Tempo para passear sem destino, viajar sem pressas, conversar com estranhos? Tempo para ouvir os pássaros, escutar o mar, fruir o silêncio? Tempo para a gratidão, para a invenção, para a preguiça?

Seria que tudo isso me restituiria a ordem interior? Me faria mais feliz, mais completa, mais humana? Ou seria que todo esse tempo serviria apenas para confirmar o meu egoísmo, confrontar-me com a minha pequenês, reencontrar as minhas incapacidades?

Não seria o tempo, ou a falta dele, o álibi onde gostava de me perder para nunca me encontrar? Para que queria eu o tempo? Por que o perseguiria eu? Achar-me-ia mais forte, independente e

criativa do que os outros para o enfrentar e desfrutar? Não me chegava todo o tempo que havia, o mesmo de toda a gente? E, se tivesse mais, seria que não me faria falta a falta de tempo? Ou seria que todas essas coisas que eu faria com o tempo não eram verdadeiramente essenciais?

Ou pelo menos não tão essenciais como aquelas que fazia sem ele? Mas, se toda essa disponibilidade me trouxesse verdadeira felicidade eu não a teria já alcançado?

Ou começaria a ser normal conceber o paradoxo de que a felicidade me poderia tornar deslocado, perdida, infeliz?

De outra forma, porque razão insistia em privilegiar as coisas que me não traziam alegria em prejuízo daquelas que me poderiam trazer paz?

Por exemplo: por que é que eu ainda alimentava o que me causava dor? Sim, até eu já compreendera que a hora era breve, o instante único, a oportunidade irrepetível;

mas seria possível que a felicidade fosse uma noção demasiado abstracta para mim? Demasiado suspeita?

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Demasiado indemonstrável? Seria possível que houvesse em mim um qualquer crivo misterioso que, observada a instância e

medida a possibilidade, ditasse à minha intuição que, apesar de bela, essa possibilidade me não convinha? Ou seria o conceito de Deus que me tolhia as forças e desanimava?

Seria possível que eu tivesse dificuldade em ver-me tão perfeita que me desse vontade de rir essa versão misericordiosa e sábia de mim mesma?

Mas, porque é que o espectro da perfeição me aterrorizava tanto? Porque seria que, deliberadamente, eu atrasava o passo?

O que haveria de medonho no cumprimento de mim própria? De sinistro na virtude? De monótono na sabedoria? De perverso na graça?

Porque é que eu não conseguia? Porque é que eu não conseguia nunca? Seria por culpa da falta de tempo, ou, pelo contrário, seria a essa inesgotável desculpa que eu

deveria agradecer a possibilidade não poder ser mais do que eu própria? - Mãezinha..? - Não posso acreditar: no fim disto tudo ainda não adormeceste? - Era só para perguntar uma coisa... - Diz depressa ou vou-me irritar... - A mãe amanhã conta-me a história das três laranjinhas de ouro? - Vai-te deitar, Afonso... - Mas diga-me: conta-me? - Vai para a cama e não me chateies! - Mas conta, mãe? - Conto, talvez, que chatice! Se tiver tempo! * * * A Mafalda telefonara-me um dia, indignada com o meu afastamento. - Definitivamente, não gosto desse homem! - Porquê? - Porque te impede de estar connosco. E ressentida: Eu lembro-me dele! Tinha todo o ar de

parvalhão!... Enterneciam-me as duas: ela e a Pilar. - Não é parvalhão nenhum. Eu é que não tenho tempo para tudo: os filhos, a casa, o trabalho.

Como é que eu ainda ia desencantar tempo para vocês? - Não sei nem me interessa - protestava ela. - Os amigos têm direitos! Não podem ser chutados

sempre que um novo homem aparece! Não havia hostilidade; apenas contentamento, inveja sã e muita curiosidade romanesca. - Arranja um jantar para o conhecermos melhor! Nunca mais o vimos desde aquela noite, no bar.

A Pilar está sempre a falar disso. Acho indecente... - Nunca! - gritei em pânico. - Só se fosse doida! - Não sejas parva, menina! Tens medo da concorrência?

Que ideia ingénua. Até me lisonjeava toda aquela libido em suspensão. Estavam tão ou mais excitadas do que eu...

- Seja. Esta noite em minha casa, é pegar ou largar. Trazes um doce, e pedes à Pilar que me traga whisky que o meu já acabou. A Inês faz o lombo. Ela é óptima a fazer lombo! E sopa já tenho, sirvo a que tenho em casa. É de nabiças, e os homens gostam dessas coisas com cheirinho a porteira...

- E tu, o que é que fazes, minha calona? - Eu sofro, achas pouco? Eu vou passar o resto da tarde a sofrer! - E defendendo-me: - É que é

uma estreia, percebes? A Inês não o conhece... - Já sabe que é casado? Que incómoda a realidade. - Não, nem precisa de saber. Isto não vai durar muito, tenho a certeza. Além disso, não são

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exemplos que me apeteça dar à minha filha, não achas? - Não te abespinhes, até logo! Vou dizer à Pilar! - Olha - preveni eu. -, vou estar jeans... - Problema teu - ameaçou ela. Divertia-me aquela cumplicidade de um homem partilhado por mais mulheres, até aos limites do

possível. Viviam-no através de mim, discutiam-no como se fosse delas, punham-se do lado dele e confundiam

todo aquele sexo implícito com amizade. As mulheres percebiam isso e não se importavam. Era um jogo perigoso, que nem todas sabiam jogar. Muitas descontrolavam-se a meio, por fome ou

solidão, e passavam os limites. E eu, nessas alturas, depois da explosão do ciúme, voltava a dar-me com elas.

Coitadas das mulheres; não passavam de um velho inimigo inofensivo. * * * O Vasco chegou. Sem timidez nem aparato, chegou simplesmente. A minha filha olhou-o com curiosidade; já percebera tudo e, contudo, eu nada lhe contara. O Afonso, esse, mediu-o com a desconfiança de quem se mantém fiel ao pai. Mas não era só isso:

era também o pequeno homem a acordar precocemente, a perfilar-se na defesa da mãe. Ainda bem que era assim. Que alguém velasse por mim, ainda que tivesse metro e meio. Apesar de tudo, muito educado, ele: - Quer beber alguma coisa? A mãe já me ensinou a servir whisky... - Não bebo álcool, filho - agradeceu-lhe o Vasco, sorrindo. - A tua mãe já te ensinou a fazer

limonada? O miúdo não quis dar parte fraca e os seus olhos procuraram os meus: - Posso usar o espremedor eléctrico? Fiz-lhe que sim com a cabeça e ele, brioso, disparou a trote em direcção à cozinha. Instalado no único sofá de orelhas da sala, o Vasco pousou os olhos na minha filha e espantou-se: - Nunca julguei que fosses tão grande..! - Tenho dezoito - disse ela. E corando: - Acabei de os fazer... - Tem exactamente a idade da tua filha - lembrei eu, talvez depressa. Mas ele estava inocente. Isento, continuava a olhar para a miúda sem cautelas. - Como é que te chamas? - Inês. - Nunca te lembres de arranjar um namorado Pedro, não? Queria rir também, mas não consegui - voava-me um corvo na cabeça. - A Pilar e a Mafalda já devem estar a chegar - desviei, olhando o relógio. E virando-me para ele,

insinuante: - Interessa-te uma breve recapitulação prévia? - Força - disse ele, principiando a sentir-se confortável. - Já não me lembro bem das tuas

amigas... A Inês antecipou-se: - A Mafalda é divertida, perversa e feminina e tem um grande sentido de humor. A Pilar é mais

neurótica, mas é tão inteligente que compensa... - Às vezes, grita a discutir com a minha mãe! - completou o Afonso, estendendo ao Vasco um copo

cheio demais. - Tens alguma coisa a acrescentar a este quadro? - perguntou-me o Vasco, depois de sorver o

excesso. - Não, não, está perfeito - condescendi eu. - Eu própria não as saberia descrever tão bem! Os miúdos olhavam para mim e para o Vasco alternadamente, sondando o grau de intimidade; e,

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por detrás das suas avaliações desamparadas, eu reparava que não só se dispunham a renunciar à ideia de um mitológico regresso do pai, como a colocar o seu território à disposição da minha felicidade.

Só quem ainda não sabe nada da vida pode ser tão generoso. A campainha tocou, os miúdos foram abrir, e o Vasco segredou-me, divertido: - É a primeira vez que estou a ver a tua casa. Não tinhas na sala um violino? E esfregando a testa, esquecido: - Ou era uma harpa? - Estás é maluco! - ri-me eu. E levantei-me para abrir a porta àquelas duas que, disparatadas, se apresentavam espampanantes. - Vocês perderam a cabeça! - disse-lhes, comprometida por todo aquele exagero. E lembrando-lhes, baixando o tom: - Isto não é um pedido de casamento! A Mafalda ainda me segredou “pudera” antes de entrar na sala e rasgar o seu mais poderoso

sorriso para o Vasco: - Até que enfim! já nem nos lembrávamos das suas feições! Jantou-se bem e sem pressas, com os miúdos sempre a rir das nossas diatribes, mas o Vasco

tratava a Inês com uma delicadeza excessiva, como se fosse feita de louça e se pudesse quebrar a qualquer momento.

- Quer mais framboesas, Inês? - Quantos cafés? - interrompia eu. - Podes. Mas, sem querer, sentia uma necessidade compulsiva de a remeter para a sua idade: - Desde quando é que bebes café? A seguir ao jantar jogou-se a um jogo de perguntas e respostas, em voga na época. Sempre que

não eram questões miudinhas como a longevidade da sanguessuga ou a igreja onde o Churchill fora baptizado, o Vasco mostrava-se à vontade em todos os temas.

Isso teve o condão de galvanizar as minhas amigas que começaram a torcer por ele imediatamente, lançando gritinhos de júbilo sempre que o viam acertar. A meio do jogo, impressionada por tanta memória, a própria Inês se deixou contagiar.

E eu reincidia, inconsciente: - Não tens de te levantar cedo amanhã? Mas o jogo continuava sem ela e já só o Afonso sofria por mim, dirigindo-me as perguntas com um

pungente ar esperançoso: - A mãe sabe esta, eu sei que a mãe sabe esta! Mas eu nunca fora boa nem em data nem em nomenclatura. Não me ralava com isso, porque

sempre me interessara mais perceber as coisas do que debitá-las, mas tinha pena de desapontar o meu filho daquela maneira.

- Em que ano a China invadiu o Nepal? - Não faço a mínima ideia, meu querido. Nem nunca soube, se queres que te diga... O mulherio estalava a rir e o Afonso ficava calado, a arrumar os cartões na caixa. - E o Vasco, sabe? - perguntava ele, já sem esperanças de uma negativa. E com uma expressão

nostálgica de partir o coração: - O meu pai acertava logo nesta!.. - Deixa cá ver... - dizia o Vasco, ponderando se, dada a sensibilidade do miúdo, não deveria

renunciar ao brilharete. Mas a Pilar e a Mafalda não o deixavam ser nobre: - Responda, Vasco, responda! Aqui, a nossa Ana, precisa de uma lição de humildade! E o Vasco rendia-se então, sem qualquer fanfarronice: - Foi em 1792. Não me perguntem porquê, mas sei que foi exactamente no ano em que a França

declarou guerra à Áustria e à Prússia... Respondia sem qualquer prosápia, mas o Afonso segredava-me: - Este seu amigo é um bocado convencido, não é? Não era, mas a verdade é que acabava de ganhar a todos com vantagem e o miúdo arrumava o

jogo, silencioso.

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- Amanhã tenho futebol - disse-me, despedindo-se. Posso levar uma coca-cola do frigorífico? Levantei-me para lhe preparar um lanchinho e deitá-lo imediatamente. já eram horas. - Hoje, a mãe não me conta nenhuma história, pois não? Tem cá o seu amigo... Estava a medir forças com o Vasco e eu pensei, cansada, que talvez daquela ele merecesse

ganhar: - Não faz mal, conto-te uma rápida... - A das três laranjinhas? Abusava, porque aquela era grande e não pequena, mas mesmo assim condescendi. E só quando voltei à sala e os ouvi à - gargalhada me dei conta da extensão do meu cansaço. As

emoções do dia tinham-me feito beber demais e o vinho entorpecia-me. Resultado: minutos depois adormecia no sofá. Só no dia seguinte, portanto, pude saber como terminara aquela noite; parece que a Mafalda e a

Pilar me arrastaram para a cama e me tiraram os sapatos, ajudadas pelo Vasco, e que, depois, ainda foram os três cear a qualquer sítio.

Não me interessei em saber onde porque a história me irritara, mas duma coisa me lembrava: depois de saírem, ao acordar semi-vestida na cama, dirigi-me ao quarto da minha filha já de camisa de noite e adormeci agarrada a ela para a proteger dos meus demónios.

* * * A situação não era nova: estávamos os dois juntos, outra vez, no mesmo hotel. No entanto, já não havia o júbilo do encontro, nem o ardor da descoberta, nem o êxtase da

expectativa, nem a esperança de um milagre: o amor perdera a ingenuidade. Já sabíamos o que custávamos um ao outro e isso começava a assombrar os sentimentos. Ele olhava para o relógio, eu demorava-me. - Vamos indo que já é tarde? - Vamos... - dizia eu, distraída. Mas ele parecia preocupado: teriam faltado beijos àquele domingo? - Queres? Queres outra vez? Não, não queria. Ele era generoso na cama e não me devia nada. - Deixa, também tenho de ir para casa... No carro, o meu silêncio a pesar-lhe: - Temos de variar de hotel. Este, já deu o que tinha a dar... Não era bem isso o que ele queria dizer, fora um acto falhado; éramos nós que já tínhamos dado

tudo um ao outro. - O Vasco - perguntei, assustada. - Isto, entre nós, está a acabar? O seu espanto foi sincero. - Por que dizes isso? - Não sei, as coisas estão a ficar diferentes... - Diferentes, talvez. Mas não piores, pois não? - Não tenho a certeza. Às vezes sinto que o melhor já se foi... - Mentira - protestou ele. - Não podemos é viver sempre nas nuvens! O que acontece é que

chegou a altura de mostrarmos o que valemos! Sem facilidades, sem agentes intermediários! E apertando-me a mão, entusiástico: - A história vai começar aqui, Ana! Iria? - Isso que estás a dizer é perigosíssimo - disse-lhe, angustiada. - Sem nuvens, ficamos demasiado

nítidos... Ele continuava a guiar, atento à estrada e a mim: - Não achas que o melhor de tudo é podermos ver as nossas expectativas confirmadas? E tocando-me no joelho, devagarinho: - Não achas?

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Quais expectativas, perguntei-me eu. Mas a ele foi: - Gostas de mim? Era uma pergunta ociosa e ele podia ter-se rido na minha cara. Não o fez. Encostou o carro,

puxou-me de encontro a si e deu-me um beijo como se fosse o primeiro. E no fim riu-se, tão doce: - Vou levar-te outra vez ao hotel. Isto, hoje, não ficou bem acabado... - Não vamos nada - recusei, agreste. - Ainda hoje não vi os miúdos! - Então - disse ele, distraído. - Então, pronto, vamos para casa... Para casa? Que casa? Não tínhamos casa nenhuma e aquilo tinha que ser deslindado.

Insuportável, pedi-lhe que encostasse o carro outra vez. - Diz, minha querida... Não havia um único sinal na sua expressão que indicasse cansaço ou impaciência, mas eu abusava

da sorte: - Nunca falámos de nós. Costumas imaginarmos no futuro? Num futuro juntos? Vi-o anoitecer de repente. Eram coisas que não se permitia pensar e eu magoava-o, sem querer. - Deixa, não digas nada - pedi-lhe, sabendo que nem sempre se podia ser honesto. E quando cheguei a casa encontrei, em cima do meu travesseiro, uma caixa de chocolates com o

seguinte bilhete: Com toda a dossura que a mofe merece. Olhei para o calendário digital para experimentar qualquer coisa de parecido com a morte

cerebral: era o Dia da Mãe e eu esquecera-me! Dormira fora na noite anterior e limitara-me a deixar-lhes um recado no gravador: A Inês estragou-me as minhas botas novas, mas depois falamos. Há panados de queijo e fiambre

no frigorífico. Se quiserem, façam ovos. O Afonso que me grave a novela. Beijínhos, adoro-vos! Senti uma paulada no coração e chorei copiosamente, agarrada ao bilhete. Tinha um erro de

ortografia, não de amor. Quis acordá-los para lhes pedir desculpa, mas dormiam os dois a sono solto. Naquele momento

faria qualquer coisa para os ver rir; qualquer coisa que me removesse da alma aquela crude de culpa. Fui ao quarto dum e doutro e detive-me a olhar para eles, sem contar o tempo. Céus, como os adorava. O Afonso agarrado a um urso, já sem idade para aquilo, e a Inês com uma beatitude que

desmentia o caos do quarto. Como lastimava aquele desencontro permanente. Como esperava, com todas as forças do meu ser,

que eles percebessem uma verdade tão simples que até a mim me custava a assimilar: que o amor nem sempre podia ser demonstrado.

Deixei uma carta para os dois, colada ao espelho da casa de banho. Saíam os dois muito cedo, de manhã, e tinham sempre o cuidado de não me acordarem....

Segundo uma crença antiga, num país muito distante (agora não me lembro do nome), as Mães

podem escolher o seu próprio dia para festejarem. E eu escolhi HOJE! Encontramo-nos às cinco, aqui em casa. O meu presente para o Afonso é uma história por dia durante um mês. e o meu presente para a Inês é uma secretária nova.

Não, não servia. Apesar de adorar as minhas histórias, o Afonso repararia na desproporção dos presentes. Além

da mãe, havia de querer uma coisa. E a Inês o contrário: além de uma coisa, haveria também de querer mãe. Rasguei aquele e escrevi outro:

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Meus queridos, adorados filhos! Os calendários de todo o Mundo enganaram-se e vocês também: o dia da mãe é HOJE! Encontramo-nos às cinco aqui em casa. Preparem-se para muitas surpresas!

Não era melhor do que o primeiro, mas não era isso que interessava; o que interessava era saber

até quando se disporiam eles a colaborar. Estava outra vez a comprar sorrisos, mas não tinha outro remédio. Impotente para me redimir

pelo meu crime, naquele momento eu só queria que as coisas não fossem irreparáveis. E quando o telefone tocou, nessa mesma noite, achei que o mínimo que podia fazer pelos meus

filhos era renunciar ao último beijo do Vasco. Nem me quero lembrar do que senti quando ele me telefonou duma cabine a participar que tinha

saído de casa e que estava disposto a viver comigo. Senti-me igual àqueles homens que, ao serem notificados de que vão ser pais, não conseguem

sequer afectar contentamento. E reparei que lhe fiz a primeira pergunta como se tivesse acontecido uma catástrofe: - Como é que foi? - A Gi desmantelou tudo e quis armar-se em forte, percebes? Descobriu os nossos jantares e os

nossos hotéis através do Visa e deu-me uma semana para sair de casa. - E tu? - Eu saí naquele momento, não me perguntes porquê. E depois de um pequeno silêncio:

- Nunca te falo disto, mas para mim já estava a ser muito difícil conciliar as coisas em casa. Ultimamente, ela andava muito azeda e rebarbativa...

- E com toda a razão, coitada! Passava imediatamente para o lado dela, mas não me espantava: como não estar do lado dela se o

lado dela seria agora o meu? - Claro, não digo que não - continuou ele, vendido.

Só que não tive vegetais suficientes para o pé de vento que ela quis armar em frente das Crianças. Exactamente por ela ter razão, não me senti com autoridade moral para discutir com ela, compreendes? Fui cobarde, e aproveitei aquilo para precipitar as coisas. No fundo, estou-lhe agradecido...

- E agora? - perguntei. - Agora, não sei. Pressinto que não terás as portas abertas para me receber, por isso vou dormir

para um hotel e depois logo se vê. E esgotado: - Pelo menos, já podemos pensar em futuro! Pelo menos. - E os teus filhos? - Os meus filhos são os meus filhos, o que queres dizer com isso?

Meu Deus. A única coisa que me preocupava naquele momento era recordar-lhe todos os entraves.

- Precisas de mim ao pé de ti? - perguntei-lhe. - Não posso, tenho de trabalhar. Não te disse, mas com isto tudo tenho faltado muito ao

escritório. Preciso de lá ir pelo menos umas horas. Reza para que eu mantenha a calma e não deite tudo a perder. Ela tem razão e pode explorar isso até...

E mortificado: - Percebes o meu medo? O medo que eu tenho de me ir abaixo? - Percebo, querido, percebo. Vai trabalhar, então... - Então adeus, meu amor. Preciso de ti mais do que nunca, acreditas? Acreditava, claro que acreditava. Acreditava tanto que me senti na obrigação de lhe dizer: - Olha, Vasco: fiquei a saber que gostas mesmo de mim. Não se troca uma vida como a tua, assim, de ânimo leve... No entanto, mais uma vez, ele já me tinha provado que o faria. Precisaria de o fazer mesmo?

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- Pois não, meu amor - disse ele. E ansioso: - Mas, diz-me: achas que fiz bem? O quê? Largar uma mulher ao fim de vinte anos de vida em comum? Teria de vender a alma ao diabo para lhe responder: - Fizeste o que sentiste, não te martirizes

agora. já está, já está! - Obrigado, querida, obrigado... - dizia ele, elevando a minha mera existência à qualidade de apoio. -

Agora, tudo é possível connosco se não me deixares ir abaixo... Eu já era mãe de dois filhos e nem para isso servia. - Não, está descansado. Não te vou deixar ir abaixo... - Sinto-me perdido e preciso de ti. Vai lá

ter comigo e janta comigo, sim? - Claro que vou - prometi, fixando o número do quarto. - Às cinco? - Às cinco. - Não te demores. - Não me demoro. - Gostas de mim? - Claro, querido, que pergunta! Mas, desnorteada como estava, nem me lembrei de que era aquele o Dia da Mãe que eu escolhera

para festejar.

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II Quando uma mulher parte uma unha a lavar roupa ou a estendê-la dramatiza a ponto de pensar que

alguma coisa falhou na sua vida. O choque demora segundos, mas chega-se a chorar dele. É o tipo de coisas de que os homens nem

suspeitam: quando quebramos uma unha já grande e bem tratada, somos obrigadas a sacrificar todas as outras limando-as pelo mesmo nível e esperar cerca de três semanas para que voltem a crescer.

Pode parecer disparatado, mas algumas sentem-no como uma espécie de mutilação. Desgostosa a olhar para o indicador, lembrava-me de que nunca passara mais de uma semana sem

partir as unhas, apesar de tomar gelatina durante três meses por ano para as fortalecer, e que isso se devia certamente ao mesmo excesso de generosidade de que morriam os comandos, durante os treinos.

Das unhas, sem vir a propósito, lembrei-me da minha avó, a mesma avó que era sublime a bordar almofadas de seda, antecipando-me, lapidar, algumas etapas da vida:

- Aos vinte anos a mulher quer ser bonita, aos trinta, inteligente, aos quarenta, independente, e, aos cinquenta, equilibrada.

E de eu própria a perguntar-lhe, pensando na sua idade: - E aos noventa? - Aos noventa - riu-se ela -, aos noventa, tudo o que se quer é que os intestinos funcionem! Só agora percebia o que ela me tentava dizer; recentemente, estreava um novo capítulo da minha

vida em que vigiava os meus hábitos com a maior apreensão. A preguiça de atender o telefone, a alegria perdida na descoberta dos outros, a resistência que

tinha a sair de casa, um nervosismo parecido a fumar e a comer, o mesmo vazio defronte de um televisor ou de um amigo, o suspiro fundo que largava no banho todas as manhãs, o automatismo com que trabalhava em casa ou no escritório.

Chegara a uma fase da vida em que não me conseguia nem explicar, nem deduzir, nem demonstrar. Era uma esquizofrenia esquisita, que talvez não decorresse de nenhuma razão determinada, mas de

uma série de acontecimentos acumulados cuja digestão nunca me permitira fazer. Sim, era isso: numa síntese prosaica, era uma paragem de digestão. Como se o meu corpo e o meu coração se recusassem a prolongar uma farsa, e o meu cérebro,

subitamente consciente da importância do tempo, se negasse a viver sem ele. Não me referia ao tempo cronológico, mas à disponibilidade mental para todas aquelas coisas

decisivas para a sanidade mental de uma pessoa como o tédio, o sono, a futilidade ou as funções biológicas. Andava desfasada em relação à vida, e, por vezes, ouvia a minha voz como se fosse a de outra

pessoa e estranhava-lhe as inflexões. Isto causava-me um desajuste esquisito na minha relação com os outros e com a família, como se

uma parte de mim reagisse às ordens da vida como um soldado, comportando-se como esperavam que me comportasse, e a outra observasse aqueles gestos sem coragem para os combater.

No entanto, percebia que essa faceta cumpridora era importante para não levantar suspeitas a ninguém e garantir a minha privacidade sobre o que me sucedia interiormente.

Teria perdido a capacidade de me misturar com os outros? Era possível. Os livros passaram-me a maçar de um dia para o outro, porque comecei a achar que eram escritos

por homens tão básicos que ainda precisavam do apreço dos outros para subsistirem; neles, o motor criador não advinha de uma pulsão mágica, mas mendiga de estímulo.

Aliás, sempre achara os escritores mentirosos e incapazes de beleza; ou melhor: capazes de transmitir beleza, mas incapazes de a integrar.

Subitamente deixei de ler, e reparava que as próprias discussões entre amigos, que dantes me mobilizavam, deixavam a pouco e pouco de me reptar.

E até o espectáculo de uma inteligência em exercício, numa sala ou numa tribuna, que fora dos programas mais hipnóticos que me podiam proporcionar, já não tinha em mim o mesmo impacto.

Ao mesmo tempo, roda a minha atenção se fixava no que ainda me conseguia produzir alguma espontaneidade: uma ou outra vibração primária com os meus filhos, a dor física, a privação do conforto, o escrúpulo de pontualidade como obediência a uma ordem interior já automática, tudo coisas antigas que

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reagiam por mim. De resto, entrara num período de raras flutuações emocionais. As notas dos miúdos, os desastres aéreos, os dramas das minhas amigas, a fome no Mundo, tudo

isso tinha o mesmo valor para mim: nenhum. Poderia consultar um psiquiatra, se o que eu estivesse a viver não fosse o resultado provável de

anos e anos de uma qualquer análise que, sem mestres nem instrutores, levara a vida a fazer a mim mesma. Foi nessa época que descobri que o mais difícil da vida era esconder dos outros a nossa insanidade

mental. - Estás boa? O que é que tens feito? - perguntavam-me, por vezes, Esta pergunta, a que sempre respondera uma trivialidade qualquer do tipo “Bem, graças a Deus” ou

“Nada de especial, vai-se andando”, impossibilitava-me agora de servir um cliché. Nunca antes pensara nisso, mas, vendo melhor, “O que é que tens feito?” era uma pergunta sinistra. Ninguém tinha nada a ver com o que fazíamos e a única represália possível a uma tal indiscrição era

servir um número razoável de mentiras para convencer o interessado a deixar-nos em paz e a arrepender-se de nos ter perguntado.

Falava-se na saúde, nos estudos das crianças, nas obras da casa ou na frente profissional, mas, para além de ser impossível sintetizar o que realmente interessava, ninguém era capaz de revelar a verdade porque a verdade era penosa:

- Não tenho feito nada. Mexo-me muito, faço mil coisas por dia, chego sempre a casa extenuada, mas, por dentro, que é onde as coisas podem de facto avançar, mantenho-me de um imobilismo preocupante.

Ou, mais honestamente: - A verdade é que desde a última vez que me viste não fiz absolutamente nada. Continuo refém da

minha preguiça e prisioneira das minhas fraquezas, e se não consigo dissolver um só dos meus vícios não é por causa da minha situação profissional, nem dos problemas familiares, mas por absoluta incapacidade de vencer a resistência.

Ou ainda: - O que é que tens feito? - Morrido. Era este o balanço que eu queria à viva força evitar quando antes me lançava em relatos

intermináveis para contornar a perguntinha funesta. Nunca se iludia ninguém, porque todo o inquiridor era espelho da nossa própria estagnação, mas o

embaraço que essa pergunta me passara a causar era sintomático de que existiria dentro de mim um qualquer sentimento de repugnância por todos os anos, todas as semanas, todos os dias e a todas horas assistir à falência dos meus ideais de mudança ou de aprendizagem.

E mesmo para o inquiridor apressado que mo perguntava na rua com uma festa na cabeça, o meu olhar, perdido ou assustado, era mais eloquente do que todas as palavras.

A Pilar, que era das pessoas mais escrupulosamente honestas que conhecera na vida e que nunca se pretendia mostrar nem mais alegre ou estimulada, nem mais activa ou solicitada do que em qualquer outra fase da vida, respondia invariavelmente “o costume” a quem quer que lho perguntasse.

O tempo passava. Eu não. De vez em quando ainda dava comigo a ligar distraidamente um ou outro número da minha agenda,

mas quando as vozes se prontificavam a devorar-me do outro lado desligava rapidamente, apavorada de cair nas suas redes.

As vozes eram aracnídeas e as palavras, essas, teias pegajosas. Ao mesmo tempo, aparentemente liberta da ameaça romântica, os homens eram insolúveis em mim,

como o óleo na água. A mistura com os outros tornara-se-me portanto impraticável, e isso talvez não decorresse de um

desgosto, mas de uma qualquer impossibilidade que nem sequer era suficientemente trágica para impressionar o Mundo.

De certa maneira, padecia do mesmo mal dos suicidas: além da dificuldade de existir, a falta de um sofrimento visível que comovesse as pessoas.

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Estava incapacitada para o tipo de vida que levara anteriormente e recusava-me a experimentar qualquer outra fórmula que implicasse novidade.

O novo assustava-me agora, como um animal desconhecido. Era uma reaprendizagem completa, impossível de explicar a terceiros sem correr o risco de

parecer extravagante. Foi com este espírito que aprendi a bordar, para hilaridade das poucas pessoas que tinham sobrado

do meu passado em tantos anos de investimento afectivo. Bordava constantemente, como num exercício de paciência que simultaneamente debelava a minha

inquietude e me prometia respostas. Bordava mal, os meus avessos eram vergonhosos, mas a pouco e pouco fui evoluindo e sendo capaz

de coser almofadas não tão bonitas como as da minha avó, mas quase. Ao mesmo tempo deixara crescer as unhas e passara, pela primeira vez, a lavar a louça de luvas;

aplicava creme nas mãos todas as noites como se o seu estado traduzisse uma ordem interior recuperada. Tornei-me obsessiva nisto, e, como tinha a pele seca, passei também a tomar banho de luvas para

que a água excessivamente quente me não ressequisse as mãos ou mas enrugasse. As mãos e os meus trabalhos de costura passaram pois a adquirir uma importância de ritual, como

para resgatar um qualquer arquétipo perdido, imprescindível ao meu equilíbrio. Todavia, não eram só os gestos que eu fazia que eram importantes, eram também as palavras. Agora poupava-as como a moedas de oiro e fazia ainda mais luxo no meu vocabulário e na minha

gramática como se a qualquer momento pudesse tornar-me muda. O mundo, naquele lapso de tempo, tornara-se uma selva. Via as pessoas a correrem na rua, congestionadas, e espantava-me como nunca se olhavam nos

olhos. A pouco e pouco os outros foram-me desgostando, e instaurei uma espécie de estética própria

ajustada à minha nova sensibilidade: em minha casa não se gritava e não se corria, nem que se jantasse à meia-noite.

Os miúdos sentiam-se mais tranquilos, porque pela primeira vez na vida eu ouvia o que me perguntavam e pensava antes de lhes responder.

A televisão só era ligada aos mais nobres pretextos e o telefone tocava sem que ninguém corresse a atendê-lo.

À noite, já com as crianças deitadas, dava comigo a identificar sons e rumores esquecidos em tantos anos de prioridades erradas: o estalar da madeira, a água a correr nos canos, o voo dos insectos, o caruncho a roer-me a cómoda, o bater do coração.

Ainda sentia alguma nostalgia do êxtase das grandes vibrações, mas como aprendera entretanto a observar cada gesto e o tempo era muito maior do que eu pensava, degustava, pela primeira vez, o sabor da eternidade.

Ao mesmo tempo, preocupava-me saber o que poderia significar aquela mudança tão drástica. Falei com a minha irmã, que me perguntou se seria a menopausa, e também com a Mafalda, que

opinou sem uma dúvida: - Estás cansada por tudo o que te aconteceu na vida, é natural... Rapidamente, apercebi-me de que aquele meu estado era tomado por mais uma fase de cuja

constância todos duvidavam. Mas a transformação era evidente: os estímulos que me produziam sensações no passado perdiam

gradualmente eficácia. Progressivamente demitia-me das funções sociais, como se tivesse perdido essa vocação, e se

deixava uma parte de mim a desempenhar essa tarefa era exclusivamente para não dar nas vistas. Um dia, fui ao cinema sozinha e encontrei no intervalo a Mafalda e Pilar. Estive a conversar com elas, respondi ao que me perguntaram com penosa coerência, mas fixava os

olhos no enorme espelho veneziana pregado à minha frente e não conseguia arredá-los - quem era aquela? * * *

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A etapa mais drástica da crise que acabei de descrever passou-me em vinte e oito dias, depois de ter quebrado uma unha a enfiar dois sacos de supermercado na mala do automóvel.

Fora mais uma fase, afinal, e a Mafalda tinha razão. Parecera-me longa e definitiva, mas durara apenas um ciclo menstrual. Culminara com a chegada do período e terminara com o último tampax, depois daquele banho

santificado em que as mulheres se regeneram ao verificar que já não sangram. A ideia de um Vasco inteiro na minha vida apavorara-me e fora dela que fugira meses atrás, à

mesma hora em que combinara encontrar-me com ele no hotel e com os meus filhos em casa para festejar o Dia da Mãe.

As crianças tinham sido um impedimento real, mas não suficiente para eu nunca mais lhe ter atendido um telefonema.

Nem dele, nem do Nuno, nem mesmo do Botânico que, nessa altura, insistia em me mostrar a sua estufa e me deixava bilhetes envolvidos em folhas secas, na caixa do correio.

Soubera que o Vasco regressara a casa e à sua mulher legítima - e digo legítima sem nenhuma carga jurídica, mas moral- , uma semana depois de me recusar a falar com ele.

Respirei fundo. A verdade é que o Vasco nunca existira porque o tempo era importante e nós não o tivéramos. Ainda me escreveu, numa carta que era muito mais uma expiação das suas incapacidades do que

uma recriminação magoada; no final, dizia-me qualquer coisa sobre a eternidade, mas nada daquilo teve ressonância em mim.

O Nuno também me procurara, ligando-me com insistência, mas como eu estranhava a sua voz ao telefone desligava sem articular.

E quando, meses depois, me disseram que ele casara, senti algum alívio por confirmar que tudo se tinha consertado sem necessidade do meu sacrifício.

Nem me queria lembrar desses tempos. Entretinha a existência com o conhecido pânico de me encontrar frente a frente comigo, que é das

provações mais onerosas por que uma pessoa pode passar se não consegue passar da humilhação à humildade.

Por tudo isso retirara-me da vida, como um pinóquio que, depois de a experimentar, regressa a casa para dizer a um gepeto espantado que prefere voltar a ser boneco.

O próprio botânico me escrevera mais tarde a participar que ia casar, em seis linhas que desconsideravam a noiva e eu tomaria por vândalas em qualquer outra fase da minha vida:

“Como a menina não me quis... “ A avaliar pela pressa daqueles três, fora por um triz que eu me safara. A união a outras pessoas sempre me aterrara e chegava a altura de o admitir. Mesmo o sim imponderado e romântico que se pronunciava no cartório ou na igreja, era formulado

na mais completa ignorância do que representava estar ao lado da mesma pessoa para o resto da vida, numa idade em que a nossa solidez nunca fora testada e em que o nosso temperamento estava longe de se definir.

Sempre intuíra que o casamento não era apenas uma coincidência sentimental enternecedora, mas uma proposição que precisava de ser demonstrada diariamente, e que qualquer estado de enamoramento era susceptível de toldar a realidade.

Chegava-se ao Altar, à Conservatória, ou directamente a um sexto andar da avenida sem experiência que nos permitisse prever o grau de resistência face à corrosão conjugal.

Não havia solução para isto, o que transformava qualquer projecto convicto num acto irresponsável ou numa tômbola da sorte.

Não conhecia muitos casamentos de sucesso mas, quando algum resultava em cheio, gostava de imaginar a dose de bom senso, intuição e disciplina que fora necessária para o sustentar.

Em idade adulta, ou em segundas tentativas, os riscos agravavam-se: as pessoas partiam escaldadas para relações de continuidade, cheias de reservas, e a adaptação ao outro era ainda mais

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renitente. A dádiva arrefecia, a tolerância calçava as tamanquinhas, os defeitos perdiam a vergonha e os

feitios moldavam-se a ferros. Mas a grande asfixia da relação a dois, para os teimosos do sonho, era, mais do que a rotina, a

predestinação. O mistério da vida sumia-se, o futuro tornava-se conjecturável, o acaso e a aventura não

esperavam que as crianças adormecessem, os prazeres eram agendados, o sexo era atamancado nas brechas da fadiga, os sonhos passavam a deslizar numa cinta fabril e as casas podiam transformar-se de um momento para o outro em cárceres espirituais sem salvação.

E era muitas vezes utópico, sobretudo quando havia filhos a obstruir este propósito, imprimir a tónica de liberdade, improviso e renovação necessária à interacção estimulante que a teoria aconselhava.

Por outro lado, quando um casal conseguia sobreviver a um casamento de cinquenta anos sem perder o melhor da vida e de si próprio teria dado ao Mundo a maior prova de maturidade acabada.

E, para quem via na existência um estágio de aprimoramento pessoal, o casamento podia até constituir um repto intelectual irresistível para cérebros exigentes.

O problema é que nem toda a gente tinha esse escrúpulo intelectual nas ligações, como se só as provas de amor cor-de-rosa fossem importantes, e a primeira coisa que se fazia a seguir a juntar os trapos era achinelar defronte da televisão ou das salsichas e pendurar a sensibilidade no cabide.

- E a estabilidade? - perguntava-me a Mafalda, hesitante. - Não conta? - A estabilidade? - ria-me eu. - A estabilidade de que toda a gente fala não depende de um

homem, burra! Depende do dinheiro! - E a outra? - A outra não conheço! O romantismo era muito culpado disto, mas cada vez mais me convencia de que o que falhava nas

relações não era o sentimento; era a própria Vida que acabava por se arrumar na despensa juntamente com sabrinas e canas de pesca.

E eu era tão fraca, tão estúpida, ou tão céptica na altura que nem o amor, nem a Fé, nem a família me livravam da tentação de gozar, mesmo pagando, o imprevisto da vida.

* * * Fora portanto após a vertigem de um perigo que eu retomara a vida com outra colocação. As grandes travessias eram importantes, porque o que se perdia pelo caminho aliviava a bagagem. Os homens que me tinham tentado estrangular no passado já não existiam. O Nuno e o Vasco, em especial, tinham-se extinguido de vez, e eu olhava em redor da vida como

uma leoparda esganada. Nessa altura tudo me parecia comestível, até o olhar de alguns homens que não servia senão para

despertar em mim uma feminilidade que jamais lhes dedicaria. Estava empenhada em voltar a viver, com tudo o que implicasse de risco e sofrimento, porque

acabava de descobrir que a ausência da dor nada tinha que ver com a alegria. No entanto, se perdera ilusões e ganhara lucidez, as coisas eram agora mais difíceis de entender. O amor já não era romântico nem eterno, mas tão físico como a sede ou a fome; e a necessidade de

o dedicar a um homem, essa, independente do homem e mesmo anterior a ele. Das emoções, infelizmente, ainda não podia prescindir. Os meus filhos adaptavam-se, conformados, a mais uma metamorfose, e eu reparava que, nem eles,

ao crescer, eram capazes de mudar tanto. A Inês ainda me disse “A mãe está mais alegre outra vez”, mas a voz com que o dizia não estava

ainda segura. A alegria era uma coisa de infância, e a infância um estado de espírito que se ia merecendo ao longo

da vida. - E o Vasco? Que é feito dele? - perguntara-me ela, num desses dias. - Não tenho tempo para namorados - respondi-lhe, ligeira.

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E achava que, no fundo, eles gostavam de o ouvir; a recuperação da minha exclusividade compensava-os de me saberem, ainda, desencontrada com a vida. E como eu suspeitava de que nem a realização de alguns sonhos me completaria alguma vez, dava-me toda a eles, sem medo de estar a perder nada de importante.

O meu problema era antigo, como o de toda a gente, e nada que chegasse agora poderia resolvê-lo. Agora, era pelas perplexidades estampadas na expressão dos meus filhos, ainda espontâneas, que

eu aferia os meus estados de alma. A Inês, em particular, era o meu barómetro afectivo: - Se a mãe estivesse mesmo apaixonada, tinha tempo... - dizia-me ela, que já experimentara uma

forma de amor mais equivocada, mas mais segura do que a minha. - Se quer que lhe diga, eu nunca vi a mãe apaixonada...

Não era verdade. O que acontecia era que eu sempre procurara preservá-los das minhas exaltações. Mas percebia o que ela queria dizer: o ideal de viver com um homem dissolvia-se a pouco e pouco. E como o medo de me anular me fizera absolutamente irredutível à natureza dos homens,

restringia as minhas relações com eles à sua mais pobre expressão - transformava todos os meus casos em pimpinelas baratas de quimeras e desenganos, excluindo-lhes, inconscientemente, toda a construção e criação necessárias para que pudessem vingar.

Como se materializar os sentimentos fosse um crime, e a coabitação uma espécie de míldio que os matasse.

Por alguma razão fora implacável a enterrar os meus homens a minha vida contra a deles. No entanto, a esperança do impossível continuava viva, apesar de tudo. Estive mais de dois anos sem fazer amor, não porque não me apetecesse idealmente, mas porque

o meu corpo se recusava. Estava convencido de que não se tratava de uma frigidez física, mas de uma incapacidade de

sujeitar a minha alma a mais ensaios de laboratório. Os homens que tivera queriam o meu corpo para me descobrir a mim, ou queriam-me a mim para

se descobrirem a si mesmos, e embora tudo isso me tivesse empolgado no passado a desmontagem permanente dos seus estímulos tinha acabado por me ceifar os meus.

E, passado um ano do episódio com o Vasco, era como se estivesse virgem outra vez. * * * Suspeitarão os escritores que uma das valências da sua Arte é esta de nos conduzirem a assuntos

que nada têm que ver com a sua prosa? Saberão eles que, entre todos os serviços que nos prestam, esse é talvez dos melhores? Que ao maçarem-nos tantas vezes com a sua inteligência retocada nos dão asas para fugir?

Foi assim, ao desistir de um livro que me enfadava, que um desconhecido apareceu nas minhas noites.

Chegava ali sem fazer ruído, beijava-me o cabelo, segredava-me ao ouvido, tapava-me com os cobertores, e, quando voltava a sair, deixava-me a dormir.

Era uma ficção que me enchia toda, mas que estabelecia uma bitola absolutamente impossível de ser ultrapassada por um homem de carne e osso.

Para mim, era esse o Homem Perfeito, e eu ria-me da audácia dos candidatos que me apareciam durante o dia como do guarda-livros feio, mediano e pobre que se atreve a pedir a mão da princesa.

Eu tinha melhor, muito melhor, e a simples comparação tornava-os a todos ridículos. Com o tempo esta invenção foi ganhando corpo, e já não me sentia a mentir quando declinava as

propostas das minhas amigas dizendo-lhes que não queria sair porque tinha companhia. Divertia-me a sua irritarão por não conhecerem o segredo de tanta independência, e alegrava-me

por saber que aquela minha construção era bem melhor do que os cavalheiros com quem elas dançavam ou me cediam.

Às vezes chegava a sair com elas, só para o confirmar:

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- Por amor de Deus, meninas! Este vosso amigo nem sabe que a terra é redonda! Sem querer tornava-me de uma selectividade incorruptível, e começava a perceber que um

homem não era para nos proteger, um homem era para nos encantar. E quando me perguntavam, por vezes, se eu não gostaria de me apaixonar ou de encontrar um

homem que me fizesse feliz, qualquer resposta que eu servisse, negativa ou afirmativa, era inteiramente verdadeira.

* * * Estar sozinha como eu estava, por uma questão de exigência, era uma extravagância em que

ninguém acreditava; para as pessoas, mesmo as mais inteligentes, uma mulher sozinha é uma mulher que ninguém quer.

Talvez por isso, evitava acima de tudo dar-me com casais tinha a sensação de que me lastimavam como se fosse aleijada.

Dispunha-me a sair de vez em quando, sim, mas pelas mesmas razões de toda a gente: para vigiar o comportamento dos outros e saber como resistiam à vida.

Era interessante assistir a um grupo de pessoas que não se conheciam serem atiradas para uma mesma sala por razões sociais, a pretexto de uns anos ou de um jantar, e surpreendê-las a pouco e pouco a vencerem a resistência do desconhecido ou a preguiça do diferente, a tomarem contacto umas com as outras por obrigação, a vencerem os complexos ou a polirem as atitudes, a declinarem a participação nas conversas por falta de estímulo, ou a afirmarem-se social ou intelectualmente pelo humor, a cultura, a profissão, o relógio.

Era divertido observar quem se destacava imediatamente e quem se salientava só no fim da noite, assistir à disputa de dois “actores” pelo mesmo papel e o mesmo público, topar as investidos abortadas dos tímidos para contarem uma anedota, patinar com as tiradas certeiras dos reservados que desvalorizávamos pelo aspecto e nos davam lições, aturar os palermas que se exibiam, as coquettes que investiam, os trágicos que se lamentavam ou os espirituosos que nos impediam de sair da nossa concha para experimentar a glória.

Era cansativo, mas também gratificante, aquele desafio de conquistar uma audiência que nada sabia a nosso respeito e se dispunha a aderir por sede de novidade, medir a extensão exacta das nossas inibições, apurar o que as potenciava ou eliminava, reconfirmar que a cultura dos outros nos coibia, que a sua inferioridade nos descontraía ou que o seu interesse por nós nos dava brilho e incentivava.

Daí que as relações sociais fossem tão irremediavelmente desgastantes. Com um invólucro de facilidade e descontracção, eram todavia responsáveis por incómodos e

embaraços por vezes asfixiantes. Ter à frente alguém com quem não se consegue sintonizar ou cuja conversa nada nos inspira,

alguém que fala sem parar ou de um silêncio impenetrável, alguém junto de quem as nossas chalaças morrem à nascença ou as melhores histórias perdem o interesse, alguém junto de quem nos sentimos invisíveis ou de que não nos é possível livrarmo-nos por cortesia, pode deixar-nos mais arrombados do que um mês de trabalho.

A sensação que me dava era que, para atinar com certas pessoas tão radicalmente diferentes de mim e tão preocupadas com outras coisas, seria necessário regressar à infância e mudar de pais e irmãos.

- Como é que se chama? - Ana. - Ana Maria? - Não, não. Só Ana... - Tem graça. Tem cara de Ana Maria... * * * Queríamos ser mais do que aquilo mas, afinal, éramos só a nossa actualidade: - O que é um homem sexy? - desafiava a Mafalda. - Um homem sexy? - espantava-me eu.

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E a Pilar arriscava, cuidadosa: - Eu diria que o homem sexy não é aquele que provoca em nós uma atracção acéfala, superficial e

efémera, mas uma expectativa de virilidade e confiança capaz de nos prender para o resto da vida! - Ou perder - tentava a Mafalda. - Sim - anuía eu, pensativa. - Deus ou o demónio, mas sempre qualquer coisa de contínuo... - Isso é literatura! - desvalorizava a Mafalda. E materializando: - Que não seja bonito nem feio,

mas que tenha olhos! Não olhos azuis ou verdes, como já se usaram e se tornou enjoativo, mas fundos e perdidos, se possível...

- Amarelos ou cinzentos? - Talvez mais mediterrânicos? - Sim, e que chorem. Que saibam chorar! E outra vez ela, apelando ao abismo: - Também é fundamental que se lhe adivinhem dúvidas, dilemas, algum conflito em existir... - E as pestanas? - As pestanas tornam-no bonitinho e por isso as dispensamos. Mas, se tiver olheiras.... - Melhor ainda! - Pode significar que pensa ou que sofre e qualquer das coisas engrandece! - E o corpo? - O corpo pode ser alto ou baixo, ou gordo ou magro... - ... desde que pareça nosso! - concluía ela. O que não se perdoa é que não esteja limpo a qualquer hora do dia... - achava eu. - ... e perfeitamente inodoro! - achava a Pilar. Sim. Água de colónia, talvez, mas só a seguir ao banho! Exactamente. Só mesmo durante aqueles escassos minutos em que o cabelo ainda está molhado e

o corpo, mal enxuto, humedece as costas da camisa... - E a boca? - A boca, sim, tem que existir! - E os dentes? - Os dentes devem constar bem tratados, como manda o século! - Para sorrirem bem? - Sim, já não há desculpa para dentes acinzentados ou omissos, e nisso não cedemos... E eu ajudava: - Podemos contemporizar, por grandeza ou solidão, mas desgostamo-nos muito com sorrisos

velhos, não desgostamos? - Pode-se falar da roupa? - Pode-se, mas muito pouco. já ninguém liga bóia a etiquetas! - Liga a cortes, vai dar ao mesmo! - Não interessa. O que gostaríamos era de poder ver os nossos homens tão bem vestidos, tão

bem vestidos que fosse possível não se reparar nas suas roupas! - E com os relógios, sapatos, carteiras e carros é a mesmíssima coisa... - Tens razão: deviam ser invisíveis! - Como tudo o mais que é caro neles, aliás... - O quê? - A inteligência, o carácter, a sensibilidade... - Concordo! Tudo isso devia ser insinuado e não escarrado como as tais etiquetas que se

dispensam nas roupas... - Mas a coragem física é sexy, não é, meninas? - convoquei eu. E a Pilar aderia, novamente: - Sim. Mas só se não for maior do que a coragem moral! - Essa é mais rara... - E mais equívoca! - Exige mais tempo para tirar a limpo!

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- E é nessa ambiguidade que muitos cobardes se escondem... - lembrava a Pilar, pensativa. E eu desviava: - Outra coisa: eu acho os homens avarentos tão feios... - Monstros! Nós somos capazes de

depositar tudo o que temos num coração generoso! E a Pilar logo, vigilante: - Fala por ti, algumas abusam! Tentei outro tópico: - As inteligências. Nem todas são atraentes, pois não? - Não. Nem todas elas estimulam... - Algumas até adormecem! - É difícil... - Acabamos por ser mais exigentes do que eles, se calhar... - Não é verdade. Eles exigem a beleza! - Mas casam com mulheres feias, não casam? - E a Mafalda: - Mas deixam-nas. Mais tarde ou mais cedo deixam-nas! - E, se não as deixam, enganam-nas. É a

mesmíssima coisa! - Já viste alguma mulher feia e burra abandonada pelo marido? - Feia, sim... - Burra, não! - Sim, para quê? Mas a Pilar já estava noutro lugar: - Mas nós também nunca estamos satisfeitas... - É, nada nos serve... - Os mundanos agoniam-nos, os faladores adormecem-nos... - Mesmo assim: condescendemos mais do que eles! - Não podemos escolher tanto como eles, queres tu dizer! - E a timidez? Atrai, não atrai? - instiguei eu. - Pudera! Em nenhum outro terreno nos sentimos tão soberanas! - E a insegurança que eles jogam na sedução? - Achas que é jogo? - duvidei. - E a fragilidade? - A fragilidade? - A fragilidade pode ser tão doce que desculpe a falta de uma carreira... - E o sexo pode ser fraco ou abundante desde que gostemos deles! E a desgarrada prosseguia, facciosa: - Vendo bem, nós perdoamos muita coisa... - Muita coisa? - A obsessão do desporto, os jornais nos sofás... - O ressonar, a barba no lavatório... - O surro na banheira... - A hipocondria! - As camisas sem fibra! - As meias rotas no calcanhar! - As gravatas com nódoas! - A relutância de perguntar o caminho quando se perdem na estrada... - A profunda resistência à especulação psicológica! - A ataxia das mãos a levantar uma mesa... - Nunca mais saíamos daqui..! - Só não lhe perdoamos uma coisa... - A injustiça, a sensaboria, o desamor? - Só aí estão três... - Afinal, não lhes perdoamos uma data de coisas... - Não lhe perdoamos a mentira...

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- Não lhe perdoamos as amantes... - Quando as amantes não somos nós! - Não lhes perdoamos as tareias... - As tareias não contam. Nenhuma de nós tem razão de queixa, caramba! Rindo, esquecidas, concordávamos as três. E a Pilar concluía, ensimesmada: - Mas, no fundo, só há uma coisa que não lhe perdoamos... - O quê? - interessámo-nos as duas, suspensas na conclusão. - Que nos obrigem a desempenhar um papel que é deles! - Qual? Mas a Pilar, confusa, também não sabia explicar. * * * Havia quem continuasse a rondar-me, mas eu há muito que deixara de sonhar com almas

convenientes. Queria era que me fascinassem, como as estrelas do céu fazem às pessoas, ou o talento dos homens.

Não suportava aqueles perfis que não mostravam nem defeitos radicais pronunciados nem grandes qualidades visíveis.

Os que me apareciam eram quase sempre exemplares sem grandes ideias ou opiniões, nem muito estúpidos nem muito inteligentes, com poucas exigências ou caprichos de vontade, cumpridores de todos os códigos e cobardes na transgressão, facilmente influenciáveis e geralmente cordatos.

E chocava-me comigo mesma. O que haveria de errado, enfadonho ou deficitário nessas pessoas que viviam sem prejudicar

ninguém e morriam sem deixar saudades? Miméticas de tudo o que as rodeava e plagiárias da personalidade dos outros? Sem espinha para se

afirmarem e renunciantes a uma vontade própria? Perguntava-me muitas vezes se deixariam de cumprir a sua verdadeira essência por cobardia,

vacuidade ou genuína bondade. E o defeito seria delas, por carecerem de imaginação, improviso ou grandeza e levarem uma vida

semelhante a uma dieta sem sal, ou antes meu, que, sem querer, principiava a aderir a um mundo onde a proclamação do ego se confundia com o génio e a exibição das fraquezas e dos instintos deixava gradualmente de ser grosseira para passar a interessante?

Havia ainda uma outra hipótese que, tal como a anterior, se arriscava a ser injusta: a de suspeitar da virtude rotineira e da simplicidade estável como de coisas improváveis, e de conseguir ver melhor numa índole genuína, mesmo quando incomodava ou escandalizava, os elementos positivos que a integram.

Talvez por isso continuava a esperar que alguém especial encarnasse o meu sonho; mas como ao mesmo tempo não acreditava em sonhos, tinha o resto da vida para ganhar juízo.

A inteligência era sobretudo necessária para amar, e isso, às vezes, podia ser tão ou mais estimulante do que pintar um quadro ou escrever uma partitura.

* * * A Mafalda acordara-me numa madrugada qualquer, a meio de um processo de paixão que a tomava

toda, numa toada torrencial contagiante: - Não te descrevo o que isto é! Ele chega a minha casa, ocupa dois milímetros da minha mesa de

cabeceira com as chaves e com o isqueiro, pousa o estojo de barbear em vinte centímetros de cómoda, e depois enche a casa toda com a sua voz, as suas lágrimas, as suas declarações e eu sinto que vou morrer se o perder, percebes, Ana?

Eu percebia, ela continuava: - E eu vou para a casa de banho vê-lo, Ana. Vê-lo sentado no trono, Ana. Vê-lo a lavar os dentes,

vê-lo a olhar-se ao espelho, percebes, e sinto-me de repente uma desgraçada, não te sei explicar, mas dói

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tanto, tanto, Ana, a possibilidade de o poder perder um dia... Tão desmesurada, a Mafalda: - Quando se vai embora e me diz o último adeus , quando depois disso me fala do carro seis ou

sete vezes seguidas para te dizer “adoro-te, meu amor”, “adoro-te, meu amor”, quando ainda me faz o último telefonema-surpresa directamente para a cama e me acorda para desligar a seguir, eu sinto que morro, Ana, eu sinto que morro porque naquele dia eu não vou vê-lo mais e porque durante a noite ele pode morrer!

E aflita, só de imaginar: - Já viste o que era se ele morresse? Eu via, e estremecia ao mesmo tempo, pensando que tudo aquilo era verdade porque ela sentia,

que podia ser mentira um dia, mas que naquela altura era verdade e tinha força, mas ao mesmo tempo doía-me porque parecia que ela me roubava o “meu homem”, aquele homem que eu inventara para ver morrer naquele momento e daquela maneira, aquele homem que era afinal o de todas as outras enquanto durava, e eu tentava alertá-la, e eu tentava alertá-la por uma questão de sobrevivência dela e também minha, procurando entrever, por detrás daquela febre, se ele teria estofo para aguentar o que viria a seguir:

- Mas tu tens esperanças? Tens esperança nisso? - O menina, tu não estás a perceber! - chocava-se ela. - Eu encontrei um homem! Um homem,

percebes? Pela primeira vez na minha vida encontrei um homem, um homem que faz chichi na casa de banho como se fosse um cavalo e que depois, de noite, se enrosca em mim como um gato e chora só da possibilidade de me perder!

- Chora mesmo? - perguntava eu, maravilhada. Eu que sempre achara as lágrimas de um homem a manifestação suprema da virilidade: - Chora mesmo? Com lágrimas verdadeiras?

- Com lágrimas verdadeiras, dizes tu? - perguntava ela, incrédula. E castigando-me: - Com lágrimas verdadeiras, sim, menina! Com lágrimas verdadeiras de água e cloreto de sódio a correrem pela cara abaixo, de quatro em quatro! Com lágrimas grossas a encharcarem-lhe a camisa! Com lágrimas pesadas a ensoparem-me o travesseiro, percebes?

E não contente: - Um homem, percebes? Um verdadeiro homem que me beija as mãos e os pés com devoção, um

homem que me ouve a fazer-me festas no cabelo, um homem que... Tudo aquilo me fazia lembrar alguém. - É casado? - perguntou a minha voz.

- É, mas não interessa - respondeu a boca dela. - Não me interessa, porque isto que eu vivi já ninguém me tira!

E jurando-me: - Eu adoro-o, Ana, adoro-o, e fico aqui numa moléstia a olhar para o telefone, uma coisa que me

transcende, que me rouba as forças, o telefone passou a ser tudo, percebes? Os meus inimigos passaram a ser quem o ocupa aqui em casa, quem me pede para fazer telefonemas, quem se senta no sofá onde eu costumo ouvi-lo, quem se deita na cama onde ele permanece ausente...

E já insana: - A minha cama é dele, o meu corpo é dele, a minha vida é dele, e, se me perguntassem se eu

preferia viver sem ele ou morrer daqui a oito dias acompanhada por ele, sabes o que eu respondia, Ana? - O quê, Mafalda? - Que preferia morrer daqui a oito dias! Eram sempre desconformes estes diálogos, uma mulher seca de um lado, a azedar com a sua última

experiência, e a outra a exultar como se abençoada por Deus e diligenciada pelo Cupído em pessoa. - Mas, tens confiança nele? Só percebi que ela não queria ouvir isto tarde de mais, quando se calou por momentos para me

atirar, enraivecido: - Vê-se mesmo que nunca te apaixonaste e que nem mesmo reconheces a sensação! Subiu uma fúria por mim acima: - Nunca me apaixonei? Nunca me apaixonei? - Não! - berrou ela. - Nunca te apaixonaste porque se te tivesses apaixonado uma só vez que

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fosse limitavas-te a ouvir-me e nem te atrevias, ouve, nem te passava pela cabeça vulnerabilizares-me com as tuas questões previdentes nesta altura do campeonato!

Desligou-me o telefone na cara e eu fiquei com ela a arder, paralisada, a indagar dentro de mim se alguma vez me apaixonara.

* * * Até então, o coração fora uma coisa central dentro de mim, mas módica. Uma função trivial

exercida algures nas minhas entranhas, mas discreta. Um orgão vital para a circulação do sangue, mas também um músculo repugnante e de forma cónica que pulsava em mim e nos animais.

Inclusivamente, um miúdo que boiava nas canjas e se digeria com as cabidelas. Uma eminência parda em que era obrigada a reparar a certa altura porque me passava a doer de um

momento para o outro, lancinantemente, a ganhar existência histórica, a crescer, a arder, a cair-nos aos pés.

Porque o apanhava na garganta a enforcar-me a voz, porque o segurava no peito, para evitar que fugisse, porque falava com ele nas mãos, para que acreditassem em mim.

A partir daí, tornava-se uma florzinha de estufa que flectia e murchava à menor aragem, qualquer coisa que não se podia ignorar porque a sentia a toda a hora, que se impunha acima de tudo como uma ferida aberta ou um sexto sentido.

E não só ele, também o telefone. Aquilo que me parecia imprescindível apenas para dar recados, encomendar bilhas de gás, ouvir a

voz dos amigos, as intrigas dos colegas ou as recomendações da família, passara a fenómeno de sujeição. Era por isso que o telefone e o coração se tornavam cúmplices tão rapidamente: se um tocava o

outro vibrava, se um se calava o outro sangrava. Mas, não era tudo. Havia ainda outro elemento essencial nesse processo destruidor ou vital: a cama, a minha cama, a

cama da Mafalda e a cama de toda a gente que passava a ser usada não para dormir, mas para desfalecer. Eram as suspeitas que o telefone lançava, mais os sobressaltos que o coração despedia que me

obrigavam a usar a cama não como uma peça de mobiliário que me retemperava as forças todas as noites, mas como uma enxerga onde me debatia com a morte numa luta corpo-a-corpo e que só lentamente me convalescia.

O coração, o telefone e a cama: três personagens centrais desta tragédia grega chamada paixão e que tanto arrastava montanhas como me sugava o sangue.

- A mãe gostou do pai? Quando casou com ele estava apaixonada? (Meu Deus: o que é uma coisa tinha a ver com a outra?) Mas existia ainda um quarto elemento que a Mafalda se esquecera de mencionar: a voz. A voz desejada e ao mesmo tempo déspota do outro. O timbre, a entoação, os requebros, as pausas e as inflexões da voz do outro também passavam a

comandar-nos a vida como generais no activo. Se era quente e carinhosa precisava da cama para exultar sem testemunhas; se era agreste ou

apressada, precisava dela para sofrer em condições. Durante a paixão, o sofrimento era doença desejada, necessária, prioritária, que exigia um cenário

próprio para alastrar à vontade: pouca luz, conforto físico, isolamento. Sem estes requisitos, a dor da paixão era elevada ao suplício. Sofrer, duvidar, esperar, definhar, soluçar, agonizar e morrer pelo menos uma vez por dia, tudo

isso fazia parte de uma boa paixão. Além disso, a paixão era o único estado de espírito que me fazia verdadeiramente desvalorizar a

morte e esquecer tudo o resto porque o Mundo passava a ser uma só coisa: a estalagem onde o outro habitava, a ponte que me levava a ele, a estrada

Era mentira, mas estava provado: que a paixão era um abismo em que as pessoas se lançavam de livre vontade, convencidas de que a supressão do outro era uma agonia pior do que a privação da vida.

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E era verdade, sim, que o coração batia mais e não menos durante a paixão; e que nos fazia sentir tão vivos e tão humanos

e tão férteis e tão fortes e tão corajosos e tão animais e tão divinos que nem pela felicidade a trocaríamos.

Percebia a Mafalda, claro que percebia. E se insistira em lhe perguntar “irrelevâncias” sobre o seu novo namorado, era por uma única razão:

porque me lembrava distintamente das dores e das alegrias da paixão, mas já não me conseguia lembrar muito bem de quem mas provocara.

- Estava, sim, minha querida. Estava completamente apaixonada quando casei com o teu pai! * * * O namorado da minha sobrinha Leonor morreu numa sexta-feira-treze, para consolo de todos os

supersticiosos que souberam. A miúda era espalhafatosa no seu sofrimento e gritou durante todo o enterro - a verdade é que

mesmo para quem não conhecia o rapaz foi igualmente difícil aguentá-lo sem lágrimas. Para mim, não, que espantei os meus próprios filhos: - A mãe, não chorou nada... Eu própria me questionei. Seria que a dor era inibida de se espraiar quando a vida me mobilizava noutras frentes? Que o

tempo me fizera incubar anticorpos para o sofrimento? Que essa apatia era a minha forma muito própria de acusar os deuses e de declarar a minha inocência? Que existia um crédito do sofrimento até determinado montante, o qual, uma vez ultrapassado, me insensibilizara

E a dor? Poderia ser adiada como um encontro indesejável ou uma chatice vulgar? Ou seria que esse confronto com a perda ou o desgosto de alguém era uma ameaça tão

previsivelmente nociva para a minha ordem interior que era forçada a embalar a dor e a protelar essa catástrofe de ordem física, psíquica e moral pura e simplesmente congelando o coração?

Não sabia, nunca se sabe nada, mas desconfiava que a vida me levara a desenvolver um qualquer mecanismo de defesa que ou me tinha desumanizado para sempre, ou me permitiria aguentar novos e repetidos golpes por muitos e longos anos.

Duma coisa estava certa: mesmo quando parecia indolor, sofrimento era como o cancro. Alastrava sem se dar por isso e espalhava metástases por toda a alma.

* * * Tive a prova disso quando, dias depois, me desfiz em lágrimas só por encontrar, esquecidas numa

caixa, as minhas almofadas bordadas. Nessa altura, sim, pude chorar o namorado da Leonor, o desgosto dela, a minha insensibilidade tão

estranha, no funeral. Fora aquilo, como poderia ter sido outra coisa: as lágrimas adiadas rebentam sempre a pretextos

indirectos. Uma palavra desagradável, um choque com o carro da frente ou um filme com patos e criancinhas

teriam produzido, provavelmente, o mesmo efeito. Ao lado das almofadas estava também a caixa das fotografias que, por qualquer razão, nunca

juntara ao álbum. Levei-a para a sala, e, estendida no chão, entreguei-me morbidamente à tarefa de reviver, uma a

uma, as grandes pulsações da minha vida. E cheguei quase a senti-las. Um rapaz de calções, com uma fisga na mão, a roubar-me um beijo na quinta da minha infância.

Um estrangeiro apaixonado que se revelara epiléptico durante um concerto de Mahler. O meu marido a rachar lenha, em tronco nu, num fim-de-semana na serra. O Nuno e o Vasco em minha casa, em Natais diferentes, à frente da mesma árvore. Um amigo do meu pai, de colete abotoado, num recorte de jornal. Um hippie abraçado a uma viola berrando “Vou amar-te até morrer” que, no dia seguinte, perderia de vista

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para sempre. Qualquer deles, com um pouco mais de tempo, um pouco mais de jeito, um pouco mais de fé

poderia estar deitado a meu lado, naquele momento, a rir-se dos outros. E eu pensava que chorava, era certo, mas não ainda como o fazia a Leonor. * * * Loura, bonita, bege - era mesmo bege-salmão a cor da minhafilha. Cabelos desgrenhados, acabou de acordar. - Bom dia! - Bom dia... - Dormiste bem? - Dormi mais ou menos. Ensonada e árida, esta primeira entrevista. - O que vais fazer hoje? - Anh? -O que vais fazer hoje? O segundo “anh” foi para ganhar tempo. -Fiz-te uma pergunta: responde. - Devo estar com o pai e depois com o Tó, ainda não sei bem... - E mais? - E mais, o quê? Já não está ali. Quatro dedos pousados na cara, um deles a roçar a testa; no pulso direito uma fita

esfarrapada, destas que dão sorte. Sentada na cama, os joelhos levantados dentro da camisa, a tocar no queixo, quase a rebentá-la...

- Não faças isso à camisa de noite, que impressão! E vai pôr aquilo mais baixo. O que é que estás a ouvir?

- “Never say goodbye”. - De quem? - Do Bon Jovi. - Qual Bon Jovi? - pergunto-lhe, agreste. - Aquele! Eu já expliquei à mãe. Aquele que tem uma tatuagem no braço... Desiste, encolhe os ombros, olha através da janela. Onde pousarão os seus olhos? Nas casas, no rio, no céu? Preciso absolutamente de lhe perguntar,

não posso deixar passar nem mais um segundo: - Para onde estás a olhar? - Para uma árvore - responde-me, impaciente. E eu cáustica, nervosa: - Para o abeto ou para o carvalho? Volta-se para mim, abre muito os olhos, não quer acreditar: - A mãe não tem nada que fazer? Desmanchamo-nos as duas, já não está zangada: - Acho que era para o abeto... Posso voltar a olhá-la à vontade, já se esqueceu de mim. Mas não posso, afinal não posso de

maneira nenhuma deixar que se esqueça de mim: - Estás a pensar em quê? - Que a mãe, hoje, não me deixa em paz... Rimo-nos as duas. O amor e o humor bem síncronos, como nos melhores momentos. - Quantas horas dormiste hoje? - Nove. - Nove? Volta a olhar-me, deixa de sorrir: - O que é que a mãe tem? - O que é que eu tenho, o quê?

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- Nada... - diz ela. E propondo: - Quer vir tomar o pequeno-almoço comigo? E eu de repente, sem saber porquê, a engolir em seco: - Está bem, se quiseres ... Fazes tu os

ovos? E desta vez ela, chegando-se a mim, ralhando baixinho: - Com franqueza, mãe: todo este trabalho

para me pedir um beijo? Para além do meu filho e da minha sobrinha, a Inês, a Pilar e a Mafalda eram agora as minhas

únicas parceiras e testemunhas. Tinham sobrevivido a todas as fases da minha vida e abençoadamente viam-me ainda como a

mesma pessoa. A minha filha era eu, num tempo muito atrás, a lembrar-me a beleza perdida e a beleza a

resgatar, se Deus me desse forças. O respeito que tinha por ela, planetário, era o respeito que ainda tinha por mim e por isso a adorava.

Tudo o que tinha de puro e verdadeiro estava nela, ainda incólume, como um espólio selado. A sua honestidade, nunca corrompida, a sua pureza, nunca profanada, tinham sido eu e eram ainda

eu, se algo me restasse. A Pilar era o que eu pensava e a Mafalda o que eu sentia, apesar de tanta, de tanta contradição: - Não admira, menina: se tu visses o charme dele, os olhos dele, a cara dele, a beleza indescritível

das mãos dele... - Quando é que mo apresentas? - Qualquer dia. - Qualquer dia, não - protestei. - Hoje, em tua casa, às nove! E para não lhe dar chances de recusar: - Levo a salada. Mas ouvia a respiração dela, entrecortada. Sentia-lhe o medo do outro lado do fio: - Espera! Talvez ainda seja cedo demais... - Cedo demais? O que queres dizer com isso? - perguntei, como se não soubesse que, no início de

um homem, tudo o que saísse da eternidade de um colchão era arriscado. De facto, só mais tarde, muito mais tarde era possível misturá-los com o nosso mundo, Mas, para meu grande espanto, a Mafalda aceitava o desafio: - Seja! Seja o que Deus quiser! Venham só às nove, que ainda tenho de lavar a cabeça. Vou

encomendar tudo de fora, não arrisco. Quero estar mais bonita do que vocês porque já sei que te vais querer vingar e tenho um medo de ti que me pelo!

Ri-me, antes de desligar. Não sabia bem porque insistira naquilo, mas tinha a perfeita noção de que, da mesma forma que

perfilhava todas as crianças do mundo como se fossem minhas, também os homens das minhas amigas eram um pouco meus.

Mas, não só por isso: as descrições que a Mafalda me fazia dele eram de tal forma encantatórias que eu morria de impaciência por confirmar se todo aquele entusiasmo teria alguma correspondência com o objecto em si.

Sentia-me curiosa e excitada, e talvez por isso demorei a escolher a roupa. Depois de rejeitar aquela ideia fixa nacional de um vestido preto - ultimamente o preto pesava-

me, tremendamente -, escolhi umas calças de caxemira azul-alfazema e um conjunto de malha muito fina, da mesma cor.

As pérolas já não se usavam, mas os homens ainda não tinham percebido e por isso não me importei que a Mafalda e a Pilar, mais tarde, se rissem delas.

Limitei-me a substituir um anel de ouro antigo por dois de prata, modernos, que nenhuma conhecia, para lhes desviar as atenções.

Fora o Vasco que me dera o colar, e eu hesitava se deveria ou não usá-lo nessa noite ao recordar-me da imensa alegria com que mo oferecera nos anos.

O Vasco, caramba. Como o amava nessa época, como era impossível saber se o amava ainda ou se alguma vez o tinha

amado.

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Depois de alegrar as bochechas da cara, de espalhar na boca um báton só com brilho e de escolher o perfume, descobri ao espelho, conformada, que me arranjava muito mais para os homens das outras do que para os meus.

Era daquelas coisas que irrompiam do mais insondável feminino e de que nenhuma se censurava. Preparei a salada com requintes especiais, e cheguei a casa da Mafalda propositadamente

atrasada, com um tigela transparente nas mãos e o ar mais inexpressivo que consegui afectar. - Só agora? Bolas, são dez da noite! Chamava-se Pedro - um nome que, para mim, influenciada pela memória de uma Heidi a escabrear

nas montanhas com um amiguinho pastor, tresandava a écloga. - Pedro? Que giro! - E virando-me para a Mafalda: Nunca mo tinhas dito... Era mentira, mas eu apostava que a Mafalda apreciaria aquela displicência fingida por razões que

faziam parte do mais ancestral teatro feminino e que demorariam séculos a explicar. - Olá, Ana - disse ele. E dirigindo-se à Mafalda, sem perceber que se vingava: - Nunca me tinhas falado destas tuas amigas que, além de serem encantadoras, se vestem

maravilhosamente... - Como é possível, Mafalda? - perguntou a Pilar, fingindo que acreditava. - Como é possível que lhe

tenhas omitido as duas pessoas mais importantes da tua vida? Eram perfídias brancas, que a amizade das mulheres comportava bem; uma espécie de praxe

iniciática para os novos homens apresentados. A Mafalda estava excitada de mais para responder porque, para ela, a nossa aprovação

relativamente ao Pedro era quase mais decisiva do que a dela própria ou mesmo do que a dele a nosso respeito.

A Mafalda era uma mulher de mulheres, como eu ou como a Pilar, mas os homens pervertiam-na. À mesa, experimentei a humilhação de o não ouvir pronunciar-se sobre a salada, e de o ver dirigir

todos os elogios para a sobremesa da Pilar de uma forma que quase me engasgou: - Só a minha avó fazia assim o arroz-doce! A culpa era minha. Esquecera-me de que os nossos homens jamais vibrariam com saladas ricas e criativas,

misturadas com queijo branco, natas ou frutos secos, porque, em matéria de verduras, nada os arrebatava a não ser, quando muito, a tradicional salada de alface e agriões temperada com vinagre de vinho tinto e azeite virgem graduado.

E, espantoso: bastara-me aquela pequena desfeita para dessexualizar a sua figura aos meus olhos e passar a julgá-lo com uma exigência de sogra.

E enquanto disse à Mafalda, no dia seguinte, que o Pedro me parecera “vird”, “maduro” e “interessante”, já à Pilar não hesitei em classificá-lo de “seco”, “demasiado seguro” e “pouco feminino”.

E embora ambas as versões lhe assentassem na perfeição a Pilar estranhou o último juízo: - Pouco feminino? - Sim, pouco feminino - repeti. E sem certeza nenhuma: - O garanhão atrai as mulheres, mas é o

sensível quem as conserva! * * * A verdade é que toda a testemunha feminina não envolvida pode substituir, com menos custos e

sustos, uma vidente. Não passara uma semana desde o jantar em sua casa para que a Mafalda, a pouco e pouco, nos

começasse a dar a entender que o Pedro não era a peça que pensava. A Pilar e eu ainda tentámos dissuadi-la dessa ideia com veemência, não por acharmos que ela se

enganava, mas para prolongar o máximo que pudéssemos a ilusão que vivia. - Um homem não se conhece assim! - gritava a Pilar, com genuína indulgência. - O que se passa é que

ele se sente inseguro de ti, compreendes? Não sabe nada do teu passado, ouviu histórias a teu respeito, tem medo de ser deixado como toda a gente, e uma coisa sabe ele: a mulher pode não ser grande

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espingarda, mas oferece-lhe segurança, percebes? Segurança para viver ao lado dele até morrer e ainda tratá-lo na velhice!

E lembrando-nos: - Aos cinquenta anos, isso pode valer muito mais do que uma mulher estimulante! E eu ajudava, com os lugares-comuns habituais: - É isso! Amar é uma coisa e viver é outra! As duas coisas nem sempre são compatíveis! Mas já as três pressentíamos que o fim se aproximava quando a Mafalda, numa manhã de chuva, me

falara a participar que estava grávida. - Grávida? - articulei, incrédula. Mas, por muito que o meu tom expressasse horror, nunca conseguiria traduzir o choque que aquela

notícia me provocava. - Sim, grávida! Ainda posso ter fflhos, ou já te esqueceste? E eu, estúpida, só lhe conseguia perguntar: - E agora? O que vais fazer? - Sei lá o que vou fazer! Soube só há vinte minutos e já me querias a caminhar para a parteira? Mas, no fundo, já pressentia que o Mundo jamais se enterneceria com o seu deslize Envergonhada, pediu-nos apenas que a deixássemos ter ilusões um quarto de hora. Só por um

quarto de hora, dizia ela. Mas a lucidez produzia monstros. - Nem penses! - gritei. - Nem sequer te afeiçoes à ideia! Falo por mim e não por ti! Se não tens

confiança nele e achas que ele te vai deixar, não alimentes a ideia nem por um quarto de hora, ouviste? Não te afeiçoes à ideia, não te afeiçoes à criança, porque na realidade não estás a fazer nem uma coisa nem outra, mas a sonhar acordada!

E agoirenta: - Vais estragar tudo! - Tudo? - perguntou, raivosa. - Que espécie de tudo? - Digo-te já: vais obrigá-lo a revelar-se, a dizer-te o que deves decidir, a odiá-lo! Pára já com isso,

hoje mesmo! Os homens deixam-se no limiar de uma boa recordação e nunca depois, percebes? Nunca depois!

E suplicante, como se fosse comigo: - Não te maltrates, Mafalda. Por favor, não te maltrates ... * * * A Mafalda não estava grávida, afinal, e tanto a Pilar como eu perdêramos uma boa ocasião de estar

caladas. Por ironia, tínhamos sido nós a revelarmo-nos em vez do Pedro, só por causa de uma análise

trocada. O medo do ridículo e dos vexames fora maior do que o apoio que ela nos pedira e isso fora

imperdoável. Agora, víamo-la de vez em quando, mas já não era a mesma coisa: - Mafalda! Que é feito de ti e do Pedro? - Ele é óptimo na cama, sabias? - Mas estás bem, vives bem assim? - Bem, não vivo. Mas não tenho alternativa, pois não? E eu cegava: - Não tens alternativa? Não tens alternativa? Claro que tens alternativa! Podes sempre deixá-

lo, conhecer outra pessoa... - Não posso deixá-lo! As coisas não são assim tão simples... - Falaste-lhe do susto que tiveste? - Não - disse ela. - Porquê? Obrigava-a a dizer-me o que eu já sabia: - Porque um amante não é um amigo, Ana. Estás

satisfeita? E eu a agarrar-me àquilo, para salvar a pele: - E era aí que estava o problema, não era? Mas ela

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não caía na ratoeira, olha quem: - Não vejo porquê. Há alturas em que nem os amigos são amigos, quanto mais os amantes!

E fora só nessa noite, em casa, jantando com os miúdos e aninhando-me na sua companhia, que me lembrei de que a Mafalda nunca pudera ter filhos e do que sofria com isso.

Falei-lhe imediatamente, como se a tivesse esterilizado e quisesse reparar o meu erro: - Mafalda! Ainda bem que te apanho, queria muito dizer-te uma coisa... Não havia qualquer expectativa do outro lado do fio. - Diz lá. - É que estive a pensar melhor, e... - E enchendo-me de coragem: - Por que é que não pedes um filho

ao Pedro? E antes de a deixar reagir: - Eu sei que ele é casado. Mas, como estás no limite máxímo para engravidar, e... Mas ela não me deixou acabar: - Olha, Ana, sabes o que te digo? - Sim? - Vai à merda!

* * * Com a Pilar, o processo fora outro. Era a mais misteriosa das três, a mais discreta e secreta nos seus envolvimentos sentimentais. Isto costumava enfurecer-nos, a mim e à Mafalda: - Não há direito! Tu esventras-nos! Tu queres saber tudo a nosso respeito porque dizes que só

sabendo tudo podes formar os teus próprios juízos! - E depois tu a nós não nos contas nada! Nunca! Não nos apresentas aos teus homens! Não os

descreves! A gente ouve-te falar deles como de personagens de ficção! Não mencionas sequer o nome deles! Intelectualizas as confidências! Falas por metáforas! Bolas, isto não pode ser uma amizade unilateral!

- Não é justo, percebes? Não é justo! - A amizade tem direitos e tu sempre reclamaste os teus! Agora, chegou a tua vez de te

abrires... Era um interesse de rapina: - Vemos-te aluada... - Distraída! - Demasiado complacente... - Será possível que andes apaixonada e não nos digas? Sabíamos que ela tinha os seus casos, de vez em quando, mas a existência de um filho pequeno

sem avós sempre a tinham impedido de se entregar a paixões. Mas, ao contrário do que pensávamos, daquela vez ela dispunha-se a contar-nos o que se passava.

Criando suspense, preparou-nos: - Sentem-se, que a história é grande... A história era grande, sim, mas banalíssima, embora a cumplicidade do trio a tornasse

avassaladora. Conhecera-o no jornal onde trabalhava. É casado? Não. Está separado há muitos anos e tem a mulher a viver no estrangeiro... - Tem filhos? Tinha. Um a viver com a mãe, que só via duas vezes por ano. - Sofre com isso? - O que é que achas? - Que idade tem o miúdo? - Vinte e dois.

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- Já não te chateia. Segue... A relação partira de uma empatia intelectual e as conversas multiplicavam-se de dia para dia.

Começara a gostar dele sem se aperceber, depois de o eleger o companheiro dilecto das suas raras e programadíssimas saídas nocturnas.

- É giro? - Eu acho. - Mas é objectivamente giro? - Cala-te, Mafalda - lembrava-lhe eu. - Não és tu que dizes que os homens mais bonitos do mundo

são os nossos? Iam juntos ao cinema, ao teatro, ao ballet e à ópera; davam passeios pela cidade e liam livros a

meias, só pelo prazer de trocarem impressões. - É culto? - É mesmo o único defeito dele... Rimos as três, sintonizadas. - Como é que se chama? - Júlio. - Júlio? - Sim, Júlio, que mal é que tem? - Nenhum, continua... A Pilar temia uma segunda ligação por causa de um antecedente extenuante que acabara em

litígio. Mas isso resultara bem com o Júlio: quanto mais ela hesitava, mais ele se definia. - Vocês, já ... ? - Já. A Mafalda bateu palmas. - E foi bom? - Nem vos descrevo... - Conta! - Não conto. - Vais contar, sim, minha estúpida! - Não conto, já disse! - Mas ele é ... ? - Um mestre. Um verdadeiro mestre, sosseguem... Queria ter outro filho, casar com ela. - Por essa ordem? - Não, enganei-me. - Mas casar, mesmo casar? - Casar, mesmo casar! Feminina, ou provinciana, a Mafalda comovia-se: - Ó Pilar: dá cá um beijo, caramba! E a seguir eu, emocionada: - Chegou a tua hora, miúda! A Pilar estava feliz, via-se que estava mesmo. - Ele já conhece o teu filho? - Sim, e já o levou ao futebol! Restava-lhe decidir e esperava que a apoiássemos. Mas nós recuávamos, sem nos darmos conta: - É melhor não te precipitares, não sabes nada a respeito dele... - Antes de um ano, ninguém conhece ninguém! - E tens de concordar que Júlio é um nome estranho, não achas? Actuávamos nos medos dela, mas ela não parecia assustada. Confiante, reptava: - Querem conhecê-lo? Hesitávamos. Não sabíamos ainda porquê, mas hesitávamos.

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- Conhecê-lo? - Sim, claro! - espantava-se ela. - Quando? - Amanhã, à hora do almoço, querem? Era evidente: tanto eu como a Mafalda adiávamos a confirmação gloriosa. Se a Pilar viesse mesmo

a cumprir-se sentimentalmente, como tudo indicava, o grupo desmembrar-se-ia fatalmente e nada voltaria a ser como dantes.

- Amanhã, não me dá jeito... - Que pena! Eu também não posso ir... Mas, não era só isso: aquela alegria toda, e, mais do que alegria, a possibilidade real de uma

felicidade inteira e perdurável, magoavam a nossa condição. Talvez não fosse inveja, porque não lhe desejávamos mal, mas acabava por ser, porque lho

causávamos. Ela estranhava, abrindo muito os olhos: - Esperem lá: no fim disto tudo vocês vão dizer-me que não querem conhecer o Júlio? - Queremos, claro, mas... - Mas vocês iam gostar dele, juro-vos! juro-vos que iam gostar dele! E foi aqui que a perdemos, talvez aqui: - Não fales antes de tempo, Pilar. A princípio, todos parecem fiáveís... - Sim - repisava eu. - Antes de um ano, ninguém conhece ninguém! Ela não disse nada, mas arrecadou o sorriso e alguma coisa mudou no seu olhar. Só uma coisa nos poderia ter salvo: que o noivo viesse a decepcioná-la; mas não foi isso que

aconteceu, pelo contrário: soubemos por terceiros, um ano depois, que a Pilar tivera dois gêmeos e que chamara Júlio a um deles.

Aquele baptismo era, explicitamente, uma derrota nossa. Mais tarde ainda nos voltámos a encontrar, as três, num almoço rápido e combinado em cima da

hora, mas só para confirmar, uma vez mais, que nos tínhamos perdido. * * * Quando a vida, por qualquer razão, nos rouba os interlocutores e nos afasta das testemunhas do

nosso percurso, é um erro tentar substituí-los. Passei a dedicar-me aos filhos, como sempre fazia sempre que perdia alguma coisa, resolvendo

fazer da minha casa um lugar aprazível para se viver. Consegui-o em pouco tempo, porque era ansiosa a perseguir objectivos. Ultimamente, já não tinha grande interesse por pessoas novas; se dantes um desconhecido era uma

vereda a explorar alegremente, agora era uma montanha cuja altitude me desencorajava. Ao que tudo indicava, perdera o interesse por meter o nariz na alma dos outros. Era mais um sinal de velhice, juntamente com um reumático nas costas que, a pouco e pouco, foi

assumindo proporções alarmantes - quando as bilhas de gás chegavam para abastecer os fogões da casa, deixava-as ficar mais de três dias à entrada na esperança de que aparecesse um amigo da Inês para as levar para a cozinha.

Até virar um frango me custava, dobrada sobre o forno. O meu filho era pequeno, ainda não tinha forças, e eu começava a perdê-las. No entanto, a vida já me tinha dado o bastante e não sentia falta de nada. A amizade, o amor, a paixão, o sexo, a ternura, a liberdade e a paz, todos esses fundamentos

estafados já eu experimentara em doses suficientes para saber que não era deles que dependia a felicidade, mas de qualquer outra coisa de que precisávamos desconhecer até ao fim para nos aguentarmos em prova.

Levara os primeiros dez anos de vida a ouvir o que os meus pais me diziam, dez outros a apreendê-lo, os dez seguintes a descobrir as coisas por mim própria e mais dez a errar constantemente, e chegava a altura de capitalizar as perdas e ganhos a favor de mim mesma e dos que me tinham aturado.

Recomecei a bordar, a tratar das mãos e a ler - apesar de tudo, como se acreditasse em milagres,

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voltara a pesquisar nas entrelinhas dos livros se alguém já desvendara o mistério. O meu filho pedia-me os primeiros conselhos sobre a vida e a Inês tinha um novo namorado. - Mãe - perguntava-me ela. - Quando gostamos de alguém com muitos defeitos faz parte do amor

tentar modificar essa pessoa, ou é melhor desistir se não sentimos forças para isso? Eram questões da maior responsabilidade e eu verificava que, ao fim de uma vida inteira de

experimentação e achados, continuava a ter as mesmas dúvidas do que eles. - Mãe - puxava-me o Afonso, cansativo. - Se o Caim e o Abel eram os dois homens como é que houve

descendência? E só então descobria que, afinal, os filhos valiam por eles mesmos; ultimamente, eram até eles que

me ajudavam a rever a matéria. * * * Foi mais ou menos nesta época, já quase renunciante, que a Vida me voltou a desafiar. Conhecera um homem novo na empresa onde trabalhava. Mal reparara nele, mas o seu interesse por mim, numa altura em que já me julgava incapaz de

seduzir sem artifícios, corrompeu-me. Um dia, sem que eu esperasse, entrou no meu gabinete e declarou-se frontalmente. Era igual a tantos outros, com uma vantagem importante: fazia-me rir. À data, viviam-se momentos difíceis. As pessoas andavam inseguras e mal pagas, não respiravam sem desatar a tossir, não cabiam nas

camas onde dormiam e não viam o céu das janelas. Talvez por isso, iam ao cinema para ver matar os outros. A vida na cidade tornara-se tão alucinante que, se alguém se distraísse, morria atropelado debaixo

de um sonho ou de uma moto. O esforço que era preciso para contrariar as vocações e as brincadeiras tornava toda a gente

acabrunhada ou alcóolica. O sentido de humor e a leveza eram preciosidades que se tinham deixado de desejar. Como o campo. No primeiro dia em que me levou a jantar, quando lhe fiz a proverbial pergunta sobre o seu estado

civil, este novo homem respondeu: - Sou tudo. - Tudo? - estranhei. - Sim - disse ele - depende de si. E só quando me viu franzir a testa me elucidou: - Sou solteiro por enquanto, mas posso ser casado se você quiser, separado se você me abandonar e

viúvo se você morrer. Mais tarde, quando fomos para a cama, perguntou-me: - É virgem? Fui apanhada desprevenida, mas safei-me a tempo: - Sou. Mas se você quiser posso deixar de o ser... E até quando me entregava a ele, sem pensar em nada, ele era capaz de sabotar os momentos mais

transcendentes só pela alegria de me ver dobrar o riso: - Vê-se logo que nasceste para isto. Olha a tua perninha a tremer? Chamava-se Rui, que longa série já. - Rui era o nome do meu pai - contei-lhe. - Era também o da minha mãe. - Pois - fiz eu. - A sério! A minha mãe chamava-se Maria Rui, por muito que te custe a crer... Fazia-me rir. Fazia-me rir constantemente, e, mais tarde, passou também a fazer rir os meus

filhos: - Como é que te chamas?

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- Afonso. - Afonso, quê? - Afonso Malta. - Não conheço. Discretamente, sem nunca se impor, foi-se tornando imprescindível lá em casa. Arranjava os candeeiros, ia buscar os miúdos às festas, de madrugada, substituía as bilhas num

abrir e fechar de olhos e ajudava-me nas compras do supermercado, o que me causava um prazer tão intenso como uma noite selvagem.

Um dia, disse-me: - Agora acabou. Fazes-me uma lista e eu trago-te as coisas. Não te quero ver mais cansada! E eu desatei a chorar, num pranto que o afligiu: - Pronto. Não se fala mais nisso - disse ele. - Faço-te eu a lista a ti... Uma noite, cheguei-me à cama da Inês, e, cheia de medo do escuro, meti-me lá dentro. - Se calhar, vou-me casar com o Rui... Mas ela saltou de alegria e abraçou-se a mim a chorar. - Quando? - No fim de Abril. - Até que enfim, mãe, já não era sem tempo! * * * Afinal, o sexo é assim mesmo: quando é pouco e fraco sonhamo-lo doido, quando é muito e bom nem

nos lembramos dele. É esquecido. Esquecido como um copo de água que nos mata a sede ou um filme parvo que nos

distrai. Mesmo quando é óptimo. Estava grata ao Rui por me deixar ser tudo o que sou, de santa e de doida, sem sentir vergonha. Nós, mulheres, avançámos em tudo isto que se ve, mas continuamos a achar difícil a intimidade. Temos vergonha do corpo, da barrriga, das rugas, de cada pequena imperfeição como se fossem

crimes. Com ele, não. Esgotei todas as fantasias que me passavam pela cabeça, sem me arrepender nem do corpo que

tenho, nem da minha mente porventura torpe. Chuchei no dedo como quando era pequena, chamei por outros homens nos momentos altos,

larguei todos os palavrões que me ocorreram sem medo do inferno, troquei-lhe o nome conscientemente não sei quantas vezes, e, de quando em quando, até lhe trocava o sexo dirigindo-me a ele como se fosse uma mulher.

Um dia disse-lhe “és bonita”, com a voz embargada e as lágrimas a correr pela cara abaixo, e ele entendeu que era de mim que eu falava sem fazer perguntas nem se sentir ameaçado.

Haveria mais homem do que isto, caramba? E eu gritava. E eu gritava, não, eu expulsava todos os gritos que tinha dentro de mim, que é completamente

diferente. Incrível. Este tinha o condão de me pôr a vibrar sem precisar de fazer nada de especial. Bastava-lhe

deitar-se de barriga para baixo, entre as minhas pernas, tão perto que eu podia sentir-lhe o vento da respiração, e começar a olhar para dentro do meu corpo, interessado, como se lesse um mapa.

Era de tal maneira comovente a sensação que eu às vezes não a suportava. Dobrava as pernas de olhos fechados, como um reflexo, e atirava-o ao chão com toda a força.

E partia. Voltava à infância para fazer as pazes com os meus pais, dissolver ressentimentos, desculpar os

meus irmãos.

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Queria-o para sempre ao pé de mim porque, até agora, fora o único que, verdadeiramente, tivera a paciência e o amor de me mostrar a mim mesma.

Afinal, quanta gente - homens, mulheres, crianças e bichos - não tinha eu dentro de mim, encarcerada!

Gente que tinha esperado durante todos aqueles anos por uma oportunidade de sentir, uma oportunidade de viver.

E ele desencantou-as. Exactamente como o amor, dantes, fazia às mouras... * * * Uma semana depois de ter partilhado com a Inês a intenção de me casar, o Rui disse que vinha

jantar e não apareceu. Tinha-lhe feito uma tarte de tomate e azeitonas, receita da minha mãe. Tinha arranjado as

unhas e rematado a última almofada. Tinha-lhe comprado na Baixa a Carmina Burana para que me ensinasse a ouvir.

Não lhe falei para casa para confirmar se viria, porque eram dez da noite e ainda não perdera a esperança de que chegasse.

Comemos na sala, com o seu lugar vago, em silêncio. O Afonso foi o primeiro a quebrá-lo. Quando falou, parecia gritar quando me disse baixinho:

- Vai ver, mãe: o Rui ainda aparece por aí para jogar xadrez comigo! Vimos, os três juntos, o último filme. Deixei-os ficar na sala até muito tarde como se abrisse uma excepção, mas, no fundo, o que eu

queria era companhia para não morrer sozinha. Morri sozinha. Durante uma semana não fui trabalhar; falei-lhe todos os dias para o número de casa, que não

atendia, e para o escritório, onde nunca estava. Continuava a falar com as pessoas e a responder-lhes, mas estranhava aquele zumbido na minha

cabeça. Era como se uma mosca me tivesse entrado por um ouvido, ao engano, e endoidecesse por se ver

capturada. A expressão dele, na minha mesa de cabeceira, já não me fazia rir. Os miúdos também já se calavam. Um dia, o telefone tocou a desoras e a voz de um rapaz novo informou-me: - Naquela noite, o meu pai pediu-me que ligasse para este número para lhe dizer que estava mal e

que queria ver a senhora. Mas morreu logo a seguir, e depois, sinceramente, com toda aquela confusão... Tinha-se esquecido de me avisar. Na noite em que vinha ter connosco para me gabar a tarte de azeitonas, o Rui chocara de frente

e batera com a cabeça no volante. Não colocara o cinto porque o trajecto era pequeno. - Pequeno? - lembro-me de pensar. - Do escritório ao céu, acham pouco? No carro, encontraram umas flores sujas de sangue e um bilhete que dizia “Abril tem 30 dias, ou

trinta e um?” Morrera de madrugada, ao lado do filho, no hospital. As mulheres eram muito estranhas: o desgosto teria sido maior se ele me tivesse deixado.

Agora, choraria só de saudades, como a minha sobrinha. * * * Passou-se um tempo. Da dor passei ao cansaço, e, do cansaço, a um medo enorme. O escritório pesava-me, as costas queimavam-me mais do que nunca, e, de manhã, o meu olhar

embaciava mais depressa do que o espelho. Não o confessei a ninguém, por me parecer uma aspiração marialva, mas pela primeira vez na minha

Page 76: Rita Ferro - Uma Mulher Nao Chora

vida precisei de rectaguarda De repente, como se tivessem combinado, as pessoas da minha vida seguiam a delas. A Inês casara-se, a Leonor vivia do outro lado do rio e a Pilar desaparecera do mapa. Tão estranho. Era como se tivesse cegado de repente, e, de um momento para outro, tivesse que aprender a usar

bengala. Um dia, encontrei o Nuno, e, anos mais tarde, o Vasco. Ambos me fizeram a mesma pergunta: - Estás feliz? Respondi uma frase qualquer, mas não a verdade. Os outros eram sempre alguém a quem não se

podia contar nada, porque, mesmo quando percebiam, nunca percebiam tudo. Claudiquei passados dois anos com um médico amável, muito civilizado. Ironicamente, foi graças ao seu bom trato que o pai dos meus filhos voltou a frequentar a nossa

casa e a jogar xadrez com o Afonso, como sempre fazia antes de nos separarmos; foi também em nossa casa que ele conheceu a Mafalda e se apaixonou por ela. Um ano depois, o Afonso foi viver com eles.

- Não te preocupes com a tua amiga - sossegou-me. A Mafalda adora crianças! Espantoso. Desejara-lhe um filho em tempos, agora entregava-lhe o meu. Um dia, por qualquer razão que me escapou, dei comigo a ligar o número do Botânico. Enquanto o telefone chamou, receei já não me lembrar do nome dele. - Está, quem fala? - Sou eu - disse ele. Reconheceu a minha voz e alegrou-se de a ouvir. - Separei-me - contou-me. - Se a menina ainda me quiser... Eu não queria nada mas, mesmo assim, combinei almoçar com ele num restaurante qualquer. Continuava alto e bonito, mas igual a si mesmo. Levou-me flores nesse dia e explicou-me a que espécie pertenciam. Embevecido, falou-me do

recorte das folhas, da penugem do caule, do seu nome em latim, No fim do almoço dei comigo a pensar que ele não era tão estúpido como parecia e que o amor,

afinal, também podia ser aquilo. Talvez fosse culpa da modernidade. Os amores verdadeiros já não se fabricavam, e as imitações que se faziam eram tão perfeitas

que a maior parte das pessoas não dava pela diferença. Mas, o que eram os amores verdadeiros? Estúpida era eu, que ainda achava que os podia distinguir.