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Universidade do Estado do Pará Centro de Ciências Sociais e Educação Programa de Pós-Graduação em Educação Linha de pesquisa Saberes Culturais e Educação na Amazônia Roberta Isabelle Bonfim Pantoja PARA TIRAR A POESIA DO OLIMPO: POÉTICAS AMAZÔNICAS POR UMA EDUCAÇÃO SENSÍVEL BELÉM PA 2018

Roberta Isabelle Bonfim Pantoja · 2019. 8. 14. · 3.2 O fogo de Prometeu: Eles escrevem em versos! ... E uma vez tocados pelo verbo, os nossos sentidos são despertos. Para mim,

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  • Universidade do Estado do Pará

    Centro de Ciências Sociais e Educação

    Programa de Pós-Graduação em Educação

    Linha de pesquisa Saberes Culturais e Educação na Amazônia

    Roberta Isabelle Bonfim Pantoja

    PARA TIRAR A POESIA DO OLIMPO: POÉTICAS AMAZÔNICAS

    POR UMA EDUCAÇÃO SENSÍVEL

    BELÉM – PA

    2018

  • ROBERTA ISABELLE BONFIM PANTOJA

    PARA TIRAR A POESIA DO OLIMPO: POÉTICAS AMAZÔNICAS POR UMA

    EDUCAÇÃO SENSÍVEL

    Dissertação apresentada como parte dos requisitos para

    a obtenção do título de Mestre em Educação no

    Programa de Pós-Graduação em Educação pela

    Universidade do Estado do Pará da linha de pesquisa

    Saberes Culturais e Educação na Amazônia, sob a

    orientação da prof.ª Dra. Josebel Akel Fares.

    Belém

    2018

  • Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)

    Biblioteca do CCSE/UEPA, Belém - PA

    Pantoja, Roberta Isabelle Bonfim

    Para tirar a poesia do olimpo: Poéticas amazônicas por uma educação sensível

    / orientadora Josebel Akel Fares, 2018

    Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado do Pará,

    Belém, 2018.

    1. Poesia – Estudo e ensino 2. Ensino fundamental 3. Estética. I. Fares,

    Josebel Akel (orient.). II. Título.

    CDD. 23º ed.372.64

    Regina Coeli A. Ribeiro – CRB-2/739

  • ROBERTA ISABELLE BONFIM PANTOJA

    PARA TIRAR A POESIA DO OLIMPO: POÉTICAS AMAZÔNICAS POR UMA

    EDUCAÇÃO SENSÍVEL

    Dissertação apresentada como parte dos requisitos para

    a obtenção do título de Mestre em Educação no

    Programa de Pós-Graduação em Educação pela

    Universidade do Estado do Pará da linha de pesquisa

    Saberes Culturais e Educação na Amazônia, sob a

    orientação da prof.ª Dra. Josebel Akel Fares.

    Data da aprovação: ____/____/____

    Banca Examinadora:

    _________________________________________– Orientadora – UEPA

    Profa. Dra. Josebel Akel Fares

    Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

    _________________________________________– Examinadora Interna – UEPA

    Profa. Dra. Denise de Souza Simões Rodrigues

    Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará

    __________________________________________– Examinador Externo—UFPA

    Prof. Dr. José Denis de Oliveira Bezerra

    Doutor em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará

    _______________________________________– Examinadora Convidada –UEPA Prof.

    Renilda do Rosário Moreira Rodrigues Bastos Doutora em Ciências Sociais pela Universidade

    Federal do Pará

    Belém

    2018

  • À palavra que vive.

  • A poesia está guardada nas palavras—é tudo que

    eu sei.

    (Manoel de Barros)

    A poesia é o presente.

    (Ferreira Gullar)

    Poesia pra mim é voar. Flutuar na leitura.

    (Hermes, 6º ano)

  • PARA AGRADECER...

    Para iniciar, bato cabeça para os meus Orixás.

    À mamãe Oxum, dona de minha coroa, protetora e guia que me ilumina com seu

    ouro e guarda com amor em suas águas. Ora yê yê ô, rainha do meu congá!

    Ao Pai da justiça, que por sua misericórdia permite que siga o caminho que meu

    coração dita. Ouço seu brado meu pai, Kaô Cabelicê, Xangô!

    Um colar de beijos e corações à Osmarina, pérola negra que me trouxe ao mundo,

    minha fortaleza. Sabe o que deixa o meu coração feliz? O seu coração, mãe!

    Uma prece ao meu pai Roberto, que de Aruanda olha por mim.

    Todos os jasmins que puder colher para Fábio Lima, que Incansável cuida de mim,

    em alimento para o corpo e o pensamento. Meu bem, meu coração se enfeita para te ver,

    obrigada por me tocar com teu azul.

    Gratidão em cor à minha consciência, Lívia Mendes. Que desde a seleção do

    mestrado me incentiva, ajuda, colore meus dias em sua presença vibrante e, que revisou

    e se emocionou comigo até a última página desta escritura. Amiga, laço-luz e bella ciao!

    Um giro dançante para minha irmã das águas Lívia Faro, que pensou e sonhou

    comigo a forma luminosa para embalar meus escritos. Amiga, te entrego minha gratidão

    em em rosas brancas. Minha criança interna dança sempre quando te vê.

    À casa Toya Jarina e Ogum Beira-Mar, minha família do santo. Pela gratidão de

    sentir juntos para vocês eu canto: “Ô gira deixa a gira girar!”

    À Muriel, meu sol noturno, pelas noites ao meu lado. E à Lisbela por me ensinar

    sobre o tempo.

    Gratidão aos irmãos, Pedro e Diego. O primeiro por ser exemplo e o segundo por

    ser cuidado.

    Aos barrigudos, Paulo e Izabela, pelas vezes que desfizeram minha tensão com

    bom humor. Minha gratidão para vocês, górdos é em convite para comer.

    À Luciana Martins, meu obrigada embalado em algodão doce, laço e fita pela brisa

    leve que traz no sorriso e no abraço.

    Estrelas brilhantes para a polarínea Nathália Lobato, por materializar em imagem

    o que não coube nas palavras.

    À Kátia e Paulo Lima, por todo apoio, carinho e cuidado que dedicaram a mim

    fazendo eu me sentir em casa.

    Ao amigo Ozzu, gratidão pela companhia espaçosa.

  • Um abraço quente como café preto, que nunca faltou nas tardes, na tua casa, Bel

    Fares. Você fez de meu voo-pesquisa mais seguro ao me mostrar que é possível ser

    “puxada por ventos e palavras.” Quem fica ao teu lado sai encharcado de poesia.

    Um abraço longo e um salve à Dani Lobato, pela nossa caminhada, por cima das

    folhas, unidas pelo poético.

    Um poema-abraço à Dia Favacho pela ressonância da voz e às minhas

    miçangueiras favoritas: Margareth, Tereza e Patrícia de parceria e close certo!

    Abraço a cada navegante do Rio, turma 12 do mestrado, por descontruir a máxima

    tradicional do par concorrente e criar a nossa: Mestrado poder ser leve!

    Aos profs. Denis Bezerra e Renilda Bastos, agradeço pelas contribuições e por me

    inspirarem, desde a graduação, a subverter o que está posto.

    Gratidão em flor à Denise Simões, que com sua espada brilhante, me incitou, no

    primeiro encontro, ainda na entrevista de seleção, defender o que acredito com a força de

    uma guerreira. Professora, “eu estou feliz porque eu também sou da sua companhia.”

    Ao CUMA, núcleo de pesquisa, em que construí verdadeiras relações de afeto.

    À FAPESPA, pelo suporte financeiro.

    Aos meninos da secretaria do PPGED: Joaquim, Jorginho e Carlos sempre

    dispostos a ajudar com um abraço ou um café quente.

    À professor Atena por deixar-me entrar em sua sala de aula.

    Aos intérpretes que trouxeram a poesia pulsante para estas páginas.

    E uma braçada de flores a você leitor. Agora, senhor deste texto.

    Saravá!

  • RESUMO

    A partir das poéticas amazônicas trabalhadas no espaço-escola, a escritura desta

    dissertação analisa como a experiência com a poesia pode contribuir para a educação

    sensível. De uma abordagem qualitativa, a pesquisa tem como lócus uma escola da rede

    estadual, localizada na região metropolitana de Belém, e, como intérpretes, alunos de uma

    turma do 6º ano do Ensino Fundamental e uma turma da quarta totalidade da Educação

    de Jovens e Adultos (EJA). O que se quer é mostrar as chaves que servem à poesia desde

    os conceitos da crítica literária, a movência e maneira que ela socialmente é transmitida,

    bem como questões que envolvem a sua escolarização. Diante dessas questões trazemos

    a estética da recepção como metodologia apoiada na categoria experiência a partir dos

    estudos de Larrosa (2017), que se mostra pela recepção que os intérpretes tiveram do

    texto poético, resultado que se tece tanto em texto escrito quanto em desenho. Como

    aporte teórico utilizamos como base, principalmente, os escritos de Paul Zumthor (1993)

    e de autores que contribuem com o debate das poéticas, da estética da recepção e da

    educação sensível, entre os quais citamos: Antônio (2002), Araújo (2008), Barthes

    (2015), Eco (2001), Zilberman (1989), Lajolo (2001), Loureiro (2001) e Paz (2012).

    Neste estudo demonstro de como a poesia mexe com os sentidos, vaza para o papel, e o

    branco da página põe-se a florescer.

    PALAVRAS-CHAVE: Poesia. Estética da Recepção. Educação Sensível.

  • ABSTRACT

    Based on the Amazon poetics worked in the space-school, the writing of this dissertation

    analyzes how the experience with poetry can contribute to sensitive education. From a

    qualitative perspective, the research has as locus a school of the state network, located in

    the metropolitan area of Belém, and, as interpreters, students of a sixth grade class of

    elementary school and a group of the fourth totality from Education of Young and Adults

    (EJA). What is wanted is to show the keys which serve poetry from the concepts of

    literary criticism, the movement and manner that it is socially transmitted, as well as

    issues that involve its schooling. Considering these issues we bring the reception

    aesthetics as a methodology based on the experience category from the studies of Larrosa

    (2017), which is shown by the reception that the interpreters had of the poetic text, a result

    that is woven both in written text and in drawing. As a theoretical contribution, we mainly

    use the writings of Paul Zumthor (1993) and authors who contribute to the debate of

    poetics, reception aesthetics and sensitive education, among whom we name: Antônio

    (2002), Araújo (2008), Barthes (2015), Eco (2001), Zilberman (1989), Lajolo (2001),

    Loureiro (2001) and Paz (2012). In this study I demonstrate how poetry affects the senses,

    leaks into the paper, and the white of the page begins to bloom.

    KEY WORDS: Poetry. Reception Aesthetics. Sensitive Education.

  • Lista de Imagens

    Imagem 01 — Livro didático I.......................................................................................64

    Imagem 02 — Livro didático II.......................................................................................65

    Imagem 03 — Livro didático III.....................................................................................66

    Imagem 04 — Livro didático IV.....................................................................................67

    Imagem 05 — Livro didático V......................................................................................68

    Imagem 06 — Livro didático VI....................................................................................69

    Imagem 07— Livro didático VII....................................................................................70

    Imagem 08 — Poesia amor.............................................................................................81

    Imagem 09 — La bamba.................................................................................................82

    Imagem 10 — Borboletário.............................................................................................99

    Imagem 11 — Mônica e a borboleta...............................................................................100

    Imagem 12 — Poesia pra mim é voar. Flutuar na Leitura............................................115

    Imagem 13 — Lugar lindo de se viver..........................................................................117

    Imagem 14 — Poesia é isso...........................................................................................118

    Imagem 15 — Lua.........................................................................................................120

    Imagem 16— A história do boto cor de rosa.. ..............................................................122

    Imagem 17 — Boto cor de rosa 1..................................................................................122

    Imagem 18 — Boto cor de rosa 2..................................................................................122

    Imagem 19— Boto cor de rosa 3...................................................................................123

    Imagem 20 — Boto cor de rosa 4..................................................................................123

    Imagem 21 — Boto cor de rosa 5.................................................................................124

  • Imagem 22 — Boto cor de rosa fim.............................................................................124

    Imagem 23 — Som de Chuva.......................................................................................129

    Imagem 24 — Chuva de pipoca....................................................................................130

    Imagem 25 — O som das cigarras.................................................................................131

    Imagem 26— Uma árvore de sons................................................................................131

    Imagem 27 — O som da peteca....................................................................................132

    Imagem 28 — O som da pia..........................................................................................133

    Imagem 29— Quadrinho A Baladeira 1........................................................................136

    Imagem 30— Quadrinho A Baladeira 2........................................................................137

    Imagem 31— Quadrinho A Baladeira 3........................................................................138

    Imagem 32— Pulf........................................................................................................ 141

    Imagem 33— Uma flor..................................................................................................142

    Imagem 34 — Quadrinho procissão do senhor morto 1................................................144

    Imagem 35— Quadrinho procissão do senhor morto 2................................................ 145

    Imagem 36— Quadrinho procissão do senhor morto 3.................................................146

    Imagem 37— Dois dias depois......................................................................................147

    Imagem 38— Fim..........................................................................................................149

    Imagem 39— Era um comedor de fogo........................................................................151

    Imagem 40 — Lembrança de um espantalho................................................................151

    Imagem 41— The end...................................................................................................153

  • SUMÁRIO

    PROCURA DA POESIA ............................................................................................... 14

    1 TROUXESTE A CHAVE? ......................................................................................... 24

    1.1 A herança de Apolo: a poesia da letra .................................................................. 31

    1.2 O caminho para o Olimpo ..................................................................................... 40

    2 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO: uma experiência poética ............................................. 51

    2.1 Letras que contam: formação do leitor ................................................................. 56

    2.2 Caminho de Ítaca: por uma educação sensível ..................................................... 75

    3 UMA PÁGINA EM BRANCO LANÇADA: a recepção livre ................................... 89

    3.1 O desenho do verbo ................................................................................................ 112

    3.2 O fogo de Prometeu: Eles escrevem em versos! .................................................... 155

    CHAMA POÉTICA ..................................................................................................... 169

    REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 172

  • 14

    PROCURA DA POESIA

    “Certa palavra dorme

    na sombra de um livro raro.

    Como desencanta-la?

    É a senha da vida

    A senha do mundo

    Vou procura-la.”

    (Carlos Drummond)

    “A poesia pertence a um pequeno número de atividades totalmente

    desinteressadas, improdutivas” (ZUMTHOR, 1997. p. 34). Para quem aceita o desafio de

    aproximar-se, de tomá-la como estudo, ela se torna uma aventura de descobrimento, de

    revelação, de encontro. Bem como uma ventura, pois ela pode nos levar por caminhos

    inesperados. E uma vez tocados pelo verbo, os nossos sentidos são despertos. Para mim,

    a ventura se deu quando decidi fazer seleção para o Programa de Pós-Graduação da

    Universidade do Estado do Pará, período em que eu ainda estava vivendo meu reencontro

    com o poético. Um dos primeiros entraves que tive foi sobre o que pesquisar, visto que

    um dos critérios para escolha do objeto de pesquisa é a sua relevância acadêmica e social.

    Estava afastada da universidade e não sabia por onde começar.

    No entanto, percebi que o objeto de pesquisa estava comigo há muito tempo,

    mas não sabia se o que ansiava investigar seria de interesse para a Academia, já que o que

    me movia era um tema que parecia estar em outras paragens. Uma certeza eu tinha: só

    conseguiria levar uma pesquisa adiante para fazer o que gosto. E, assim, deixei os receios

    de lado e decidi arriscar no que acreditava. Ao iniciar a produção, percebi que estava

    escrevendo mais que um projeto, o que colocava naquelas linhas era a história de uma

    relação.

    Era a minha história com a poesia, que trago, literalmente, escrita no corpo: “a

    poesia é o presente” (GULLAR, 2010, p.28). Precisei olhar para o que está posto, para a

    maneira que verbo adere à vida das pessoas, pois, o tema não nascia apenas deste afeto

    prazeroso, surgia principalmente de uma angústia que guardava há muito: por quê a

    poesia, com a qual tanto me identifico, é considerada difícil para a maioria das pessoas?

    A causa dessa angústia é de tempos distantes e, para falar sobre isso com

    segurança, precisei fazer um mergulho mnemônico e, nele, perceber que o encontro com

    a poesia foi tardio. Tarde, porque só adulta descobri que passei a vida toda acreditando

  • 15

    que poesia era somente o que havia nos poemas dos livros didáticos da escola. E, quando

    lembro dessas atividades, percebo que havia poemas, mas e poesia?

    O meu primeiro contato com o texto poético foi no verso da letra, ainda nas

    séries iniciais do Ensino Básico e, na época, ao invés de ser estimulada a descobrir as

    possibilidades daqueles poemas, tinha apenas que desenvolver a competência gramatical

    imposta nas tarefas da aula. E a cada encontro, a gramática rompia o sonho e a fruição

    que poderia haver com o poético.

    Entre tantas situações que me afastaram da poesia, uma deixou sua marca, como

    se a deusa Mnemosyne tivesse se encarregado de guardar esse dia. Aconteceu quando tive

    o encontro com os modernos. Mesmo com o desconforto com as atividades envolvendo

    poesia, Literatura era uma das minhas disciplinas preferidas e, nesse dia, conheci um dos

    poemas mais famosos de Drummond. Ao ler que No meio caminho tinha uma pedra

    (ANDRADE, 2013, p. 36) a sala de aula ficou pequena para tudo o que esse poema

    despertou em mim. Até que a professora perguntou-me o que o poeta queria dizer com a

    pedra. Tentei, em vão, falar de minha recepção desses versos, porém tudo que senti ao lê-

    los foi inútil para a finalidade que a professora esperava. Frustrada, só sentia toda a poesia

    indo embora e, dali em diante, disse para mim mesma que poesia era difícil demais. Já

    não sentia segurança para escrever o que sentia ao ler poemas. Parei de ler. Essa memória

    marcou e me afastou da poesia por anos.

    Com o tempo essa angústia cresceu, virou um nó, pois vi que essa poesia da

    escola não era difícil apenas para mim. Trouxeste a chave? (ANDRADE, 2013, p. 12),

    perguntava-me Drummond e não via nem mesmo a porta. O poema estava lá, mas a poesia

    não. Seguimos separadas. E para colocar um ponto (final?) na relação veio o vestibular.

    Teria que saber todas as características das escolas literárias, precisar decorar a biografia

    dos autores, lembrar os textos célebres. Havia tantos e tantos poemas. Mas poesia nada.

    Eu era uma leitora. Passeava pelos clássicos, gostava de um romance como ninguém. Mas

    evitava a todo custo a poesia do verso, não conhecia a prosa poética, bastava ver um texto

    em verso que fechava o livro. Fiz de minha experiência negativa minha própria pedra.

    Era o momento de escolher uma profissão. Como era uma péssima calculista e

    também não me encontrava com as biológicas, sabia que precisava ir para as Ciências

    Humanas. Tive um raciocínio prático: quem gosta de ler faz Letras (!), acabei escolhendo

    o curso de Licenciatura em Letras, Língua Portuguesa, por eliminação.

    Cheguei à Universidade do Estado do Pará me agarrando às Letras como a ponte

    para ter um curso superior. No primeiro ano, encontrei um professor que era a erudição

  • 16

    em pessoa em suas concepções literárias universais1, foi a gota d’água. Até a Literatura

    passou a estar num lugar distante, passei a ver a minha companheira como uma senhora

    fina e cheia de caprichos, e estava cada vez mais longe da poesia.

    Mas esse era só o primeiro ano, ainda estava para encontrar outros mestres, três

    grandes personagens que viriam mudar minha história. A primeira, uma Eneida com olhos

    de cigana. Usava saias compridas, feito sua risada. Fazia uma roda de leitura na sala de

    aula e discutia os textos com uma verdade que fazia seus olhos brilharem. As cópias, que

    para nós deixava, eram cheias de comentários graciosos. Essa Eneida me ensinou sobre o

    valor da Literatura Infantil e me apresentou seus velhos amigos, os clássicos, que agora

    sim, pareciam como os Pretos Velhos que tem muito para ensinar e estão perto da gente.

    Mas ela passou por mim feito um cometa brilhante, em razão de minha turma imatura que

    não soube aproveitar tudo que ela tinha para nós. Eneida que era, nem se despediu e

    seguiu para outras turmas. No entanto, com sua saída pude conhecer o segundo

    personagem:

    “Todas as crianças crescem, menos uma” (BARRIE, 2013, p.11). Ele foi meu

    Peter Pan. Um ser absolutamente jovem. Em tudo. Com seu vocabulário peculiar, fez-me

    entender que podemos saber muito sem precisar saber tudo, que a Literatura é para todos.

    E que os livros são tesouros que devem ser partilhados.

    Por fim, o último personagem que mudou completamente minha vida e minha

    relação com as letras. Um artista! Era diferente de todos os professores que tivera, sua

    disciplina: Literatura Amazônica. Quando falava mexia o corpo todo. Nunca sentava-se,

    a sala era um palco. Certa vez, trouxe vários poemas de escritores amazônicos, sugerindo

    que começássemos por Paulo Plínio Abreu. “Alguém gostaria de compartilhar sua

    leitura?” Receosa, li tateando O comedor de fogo. Ao fim, diferente da professora do

    Ensino Básico, não ouvi perguntas sobre o que o poeta queria dizer, muito menos sobre

    o que significavam os cães doentes no poema. Ele somente entoou: “Mais alguém?”. E

    outras pessoas pediram a voz. A cada leitura, um tom diferente e a cada olhar, um novo

    poema. Foi ali que a poesia renasceu para mim.

    Ainda na graduação, quando comecei a fazer os estágios de prática docente,

    percebi que a relação que tive com a poesia no período escolar não era uma

    particularidade minha. O espaço-escola no qual atuei fazia parte da rede pública e, ao

    observar os textos trabalhados, não via fruição na leitura dos alunos. Para além desta

    1 Concepções Literárias Universais é uma disciplina que faz parte da grade curricular do Curso de

    Licenciatura Plena em Letras Língua Portuguesa da Universidade do Estado do Pará.

  • 17

    prática, também percebi que o material utilizado não incluía o contexto amazônico. Isto

    é, o que acontecera comigo se repetia com muitos leitores. Entendi que o primeiro contato

    deles com a poesia contempla, geralmente, apenas o texto escrito. Desta forma, o primeiro

    equívoco que temos na escola é confundir poesia com poema — O poema, na maioria das

    vezes escrito em versos, é uma composição em linguagem multívoca. Poesia, ainda que

    se chame, de forma genérica, ao gênero lírico, está para além dos limites do poema, é o

    efeito estético, podendo estar em muitas formas de linguagem —. O segundo é a comum

    utilização do texto poético como pretexto para trabalhar conteúdos de Gramática.

    Com as experiências de professora e leitora, percebi que a poesia está em um

    lugar distante do leitor comum, onde apenas os “eruditos” podem chegar, como se

    estivesse na morada dos deuses, o alto Olimpo. E me perguntava: se a poesia nasceu da

    tradição oral, se muito antes de estar no texto escrito está na voz, como foi parar ali?

    A montanha do Olimpo, cujo topo alcança quase três mil metros de altitude, é

    considerada o ponto mais alto da Grécia. Escolhi essa metáfora por entender que,

    conforme coloca Kury (1990) sobre a mitologia grega, o monte abriga os principais

    deuses de seu panteão e é visto pelos gregos como uma mansão de cristais maciça, bela e

    imponente, lugar ideal para a majestade dos imortais. A poesia para grande maioria dos

    leitores encontra-se em num lugar distante como o Olimpo.

    A inquietação que atravessou minha proposta era a forma como a poesia vem

    sendo apresentada na escola aos leitores; a separação que há entre eles; a não-fruição. A

    pesquisa, então, nasceu do desejo de tentar contornar essa ruptura e buscar no debate

    teórico-conceitual uma compreensão aplicada da temática, uma resposta que possa ser

    um alento ao que, para mim, sempre soou como uma injustiça ao leitor: a perda do olhar

    poético que ele traz quando criança e que a instituição enquadra e limita.

    Para compreender a referida temática, chego à questão-problema da pesquisa:

    como a experiência de educar pelo poético pode contribuir para a formação do leitor no

    contexto escolar amazônico?

    Direcionada pela pergunta, bem como pela situação exposta, chego aos objetivos

    da pesquisa, em que apresento como objetivo geral: oferecer condições para que a poesia,

    enquanto experiência estética, possa se entrelaçar às vivências do leitor e que este a

    perceba para além dos padrões estabelecidos pela escola. Como específicos, proponho:

    oferecer aos leitores uma aproximação com a poesia, despertando-os para o universo

    amazônico; identificar, a partir da teoria da Estética da Recepção, como a experiência

    com o texto poético pode contribuir para a educação sensível.

  • 18

    Os estudos de crítica literária apontam para análises mais restritas ao texto

    literário, estudar a Estética da Recepção pela fruição do leitor abre espaço para novos

    horizontes de expectativas previsto em Jauss (1979). Com a experiência de professora e

    de leitora, notei que a pesquisa precisava desenvolver-se no espaço-escola onde,

    normalmente, o leitor tem seu primeiro contato com o texto poético. Desta forma, o objeto

    de pesquisa concentra-se na recepção da poesia. O corpus de análise do estudo se

    constitui, pois, das teorias que fundamentam a Estética da Recepção e aqui incluímos

    também como um método.

    Assim, comecei a pesquisa e, como um dos primeiros passos, busquei fazer o

    estado da arte. O levantamento foi realizado em bancos de dados de universidades

    brasileiras, a partir dos descritores relacionados ao tema e, de forma mais minuciosa, no

    repositório da Universidade do Estado do Pará (UEPA). Observei que as pesquisas das

    universidades que abordam a poesia no contexto escolar, geralmente, focam na análise

    dos Parâmetros Curriculares Nacionais e tem, principalmente, o professor e o currículo

    como objeto. Tal abordagem não contempla esta pesquisa, visto que minha perspectiva

    para o estudo é a recepção que aluno terá de textos poéticos. Já as dissertações

    encontradas no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED) tem uma

    aproximação maior com o estudo, abordam as poéticas amazônicas a partir da educação

    sensível e incluem os processos educativos vivenciados no cotidiano do aluno amazônico.

    Cito, adiante, algumas pesquisas com as quais senti uma aproximação maior com

    meu objeto e foram como portas abertas para o caminho que segui, textos que trazem o

    debate da educação pelas poéticas amazônicas, dissertações apresentadas ao PPGED da

    UEPA, orientadas pela Profa. Dra. Josebel Fares: O lugar dos saberes amazônicos no

    ensino da disciplina literatura, Eliana Pires de Almeida (2012); Imaginário Poético em

    Antônio Juraci Siqueira, por uma abordagem literária na educação da Amazônia, Ivone

    Caldas Carvalho (2013); As mitopoéticas na obra de Paulo Nunes: ensaio sobre

    literatura e educação na Amazônia, Nathália da Costa Cruz (2013); Cartografias poéticas

    em narrativas da Amazônia: Educação, Oralidades, Escrituras e Saberes em diálogo,

    Danieli dos Santos Pimentel (2013). Era uma vez... A Cobra Grande na voz dos pequenos

    intérpretes cametaenses, Kezya Thalita Cordovil Lima (2014); Educação, Memórias e

    Saberes Amazônicos: Vozes De Vaqueiros Marajoaras, Délcia Pereira Pombo (2014);

    Boto em gente, gente em boto saberes, memória e educação na Amazônia, Zaline do

    Carmo dos Santos Wanzeler (2014); Tessituras poéticas: educação, memória e saberes

    em narrativas da ilha grande/Belém-Pará, Andréa Lima de Souza Cozzi (2015);

  • 19

    Educação Sensível na voz de calados: poesia e memória em regime crepuscular, Dia

    Errmína da Paixão Favacho (2017).

    Ainda na UEPA encontrei projetos de pesquisa que promoveram atividades de

    fruição com a literatura amazônica, entre os quais destaco: O lúdico na literatura infantil

    – projeto de extensão (2007/2009), que, através de oficinas, implementou ações que

    buscavam refletir os conceitos da infância a partir da história da literatura infantil e de

    obras de autores infantis, inclusive os da Amazônia; Leitura e memória – projeto de

    extensão (2010), atividade que partiu das ações desenvolvidas pelo CUMA, com início

    em 2005, no projeto Arte no Pão, realizado no Asilo do Pão de Santo Antônio, que

    promoveu uma integração entre estudantes, professores e idosos do asilo por meio da

    leitura.

    Também como fonte de material, utilizei projetos de iniciação científica como:

    Literatura e recepção das poéticas amazônicas: uma experiência de leitura (PIBIC/

    2007); Literatura: recepção, memória e imagens da escola (PIBIC/2008/09); Memória

    de Cordel: recepção e ensino (PIBIC/2009/10) Lúcia, Lindanor e Eneida: memória,

    recepção e leitura (PIBIC/2010/11); Símbolos culturais na literatura amazônica

    (PIBIC/2010/11); Faustino, Barata e Plínio: Educação e recepção da poesia amazônica

    (PIBIC/2011/12).

    Além das dissertações e projetos encontrados na UEPA, outras pesquisas

    realizadas dentro e fora do estado também abordam o tema das poéticas amazônicas

    como: Memórias de rios e de lagos na construção romanesca: leitura de narrativas da

    Amazônia paraense, Elizabete de Lemos Vidal (2008) da Universidade Federal do Rio

    Grande do Norte. Poéticas Amazônicas: espaços da memória, oralidade e identidade na

    prosa de Maria Lúcia Medeiros, Lylian José Félix Da Silva Cabral (2013), da

    Universidade Federal de Pernambuco. Mitopoética dos Muyraquitãs, Porandubas e

    Moronguetás: ensaios de etnopoesia Amazônica, Harald Sá Peixoto Pinheiro (2013) da

    Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Entre partidas e chegadas: matrizes

    poéticas de imigrantes de Paragominas-PA, Aida Suellen Galvão Lima (2014) da

    Universidade da Amazônia.

    Constituir o estado da arte foi fundamental para que não me deixar cair na

    vaidade do ineditismo, pois como foi demonstrado, as pesquisas citadas são apenas um

    pequeno recorte de todo arcabouço teórico que há sobre as poéticas amazônicas.

    Escolher o lócus de pesquisa foi como voltar para casa, a instituição escolhida

    foi onde havia realizado os estágios de prática docente da graduação (entre 2010 e 2011)

  • 20

    e onde também trabalhei como voluntária do Programa Mais Educação do Governo

    Federal 2(de 2013 a 2015). Durante os anos envolvida nesse projeto pude contar com o

    apoio de uma professora, que em muitas ocasiões dividiu ou cedeu espaço para que

    realizasse as atividades relacionadas à prática docente.

    Então, minha entrada em campo foi possível graças ao espaço que essa docente

    cedeu. Importante dizer que durante toda a pesquisa ela esteve comigo em sala de aula,

    de forma que as atividades eram feitas nos minutos finais de sua aula e por não poder

    conduzir as atividades sozinha em muitas situações a interferência da professora precisou

    ser tolhida de forma polida, práticas que não puderam ficar de fora de minha narrativa. E

    por essa circunstância, muitos momentos me colocaram diante das situações que critico

    nesta pesquisa, e por isso optei por não divulgar o nome da instituição, o nome dos alunos

    e nome da professora. Assim, escolhi um nome fictício para a Instituição: Escola Olímpia.

    E à professora que me acompanhou chamei de Atena.

    Localizada em perímetro urbano, Olímpia conta com uma infraestrutura básica

    (vinte salas de aula, laboratórios de informática e ciências, biblioteca, auditório, quadra

    de esportes, refeitório e etc.), os alunos são em sua maioria moradores dos arredores e dos

    bairros próximos.

    Atena abriu as portas de sua sala, assim pude contar com as turmas que ela

    disponibilizou. Com carga horária completa, a professora leciona no turno vespertino

    tanto para turmas do 6º ao 9º ano, como para as três séries do Ensino Médio, com as

    disciplinas: Língua Portuguesa, Literatura e Redação. E no período noturno, para as

    turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Por isso, as possibilidades para realizar

    a pesquisa eram inúmeras e tornaram a escolha difícil. Que critérios utilizar?

    Desta forma, para escolher os intérpretes, mais uma vez a memória foi guia.

    Lembrei-me de minha experiência e, assim, optei pelos alunos do 6º ano do turno da

    manhã e alunos da quarta totalidade da EJA no turno da noite. A escolha de crianças do

    6º ano leva em consideração a fase de transição que elas passam, “na ingenuidade

    primeira que devem ser consideradas as imagens fantásticas” (BACHELARD, 1990. p.

    60), além do que, tem um olhar mais livre e uma perspectiva que ainda não foi tão

    formatada pela escola. Em contrapartida, os intérpretes da quarta totalidade são alunos

    2 O Programa Mais Educação, criado pela Portaria Interministerial nº 17/2007 e regulamentado pelo

    Decreto 7.083/10, constitui-se como estratégia do Ministério da Educação para indução da construção da

    agenda de educação integral nas redes estaduais e municipais de ensino que amplia a jornada escolar nas

    escolas públicas, para no mínimo 7 horas diárias, por meio de atividades optativas nos macrocampos: acompanhamento pedagógico; Fonte: http://portal.mec.gov.br acesso em 06.03.2018.

  • 21

    que, em sua maioria, já passam pelo ensino regular e ao retornar, geralmente, trazem certa

    resistência à leitura. Por isso escolher a EJA, além de um contraponto dentro da pesquisa,

    é uma forma de proporcionar a aos intérpretes novas experiências com a palavra poética.

    Utilizo o termo “intérprete”, por entendê-lo como a expressão que mais se

    aproxima ao campo das poéticas, empregado a partir do conceito proposto por Zumthor

    (2010, p. 239). Para ele, “é o indivíduo de que se percebe, na performance, a voz e o

    gesto, pelo ouvido e pela vista. Ele pode ser também compositor de tudo ou parte daquilo

    que ele diz.” Contexto em que o intérprete possa experimentar essas possibilidades de

    recepção do poema.

    A escolha de períodos e intérpretes distintos visa que, a partir do caráter artístico

    e dialógico do texto poético, a poesia possibilite que eles possam sentir-se leitores na

    construção de sentidos para o texto e para as suas vidas, isto é, a educação sensível, que

    não busque apenas a transferência de conhecimento, mas o ato de conhecer e educar.

    O objeto de estudo é a recepção do texto poético, a princípio considerou-se incluir

    a poesia que está em outras linguagens como as artes plásticas, a fotografia, as produções

    cinematográficas, mas após as considerações decorrentes da banca de qualificação, bem

    como pelo que vivenciei em campo, percebi que a poesia que está no Olimpo é poesia da

    letra, que inclui tanto o texto poético em verso como em prosa. A poesia que me refiro

    aqui é aquela entendida no sentido estrito de composição verbal, vazada ao gênero

    poético, como Literatura.

    Os autores escolhidos para o desenvolvimento da pesquisa são que os compõem

    a poesia amazônica, com textos que figuram a identidade a partir de elementos caros à

    cultura. Escritores que, para Loureiro (1995), utilizam a função estética como base para

    compreensão do imaginário e evocação mitológica desse imaginário, forma em que o

    homem/artista amazônico é governado pelos sentidos e como os mitos vêm explicar a

    realidade quando é inexplicável, numa miscelânea de real e irreal.

    A escolha dos autores foi pela dimensão da memória, em textos que para mim

    pudessem figurar em corpo, voz e gesto de uma poesia que tocasse os sentidos dos

    leitores, assim recorri às leituras que fizeram parte de minha formação, ainda que tardia,

    de leitora de poesia. Como, por exemplo, poetas que conheci na disciplina de Literatura

    Amazônica como Paulo Plínio Abreu (2008), Thiago de Mello (2009), livros que me

    levaram a lugares inesquecíveis como Aruanda de Eneida (1989) ou Itaira de Lindanor

    Celina (1995). A intenção inicial era levar uma amostra significativa de autores

    amazônicos. Ao fim do período em campo, ainda que muitos autores tenham ficado de

  • 22

    fora, cito aqueles que foram trabalhados: Adalcinda Camarão (1995); Paes Loureiro

    (2008), Juraci Siqueira (2012), Paulo Nunes (2010), Dulcinéia Paraense (2011); e da

    prosa: Haroldo Maranhão (1992), Maria Lúcia Medeiros (1994). Importante dizer que

    para chegarmos ao resultado desse corpus, uma longa seleção foi feita, pois de cada texto,

    a média de recepções foi de 15 na EJA e 25 no 6º ano.

    ‘O amor à palavra é uma virtude; seu uso, uma alegria.”, diz Zumthor (1993, p.

    73), que por sua veia poética foi a voz essencial desse estudo, e sua ressonância é vibrante

    até as últimas páginas. A poesia enquanto alimento do vivido e força motriz desse

    caminhar compõe esse corpus, também como teoria, pois há percepções que as palavras

    que tinha já não serviam para dizer o que precisava, coisas que só cabem no poema, assim

    para que essas experiências não de desgastassem ou se fossilizassem recorri à poesia. Para

    além disso, todos os textos partilhados com os intérpretes compõem as sessões. No mais,

    a estrutura textual deste trabalho se organiza em três sessões.

    Na primeira sessão, intitulada Trouxeste a chave? começo por uma breve

    apresentação, em que exponho como a poesia é concebida a partir da Teoria Literária por

    nomes consagrados pela crítica como T.S. Elliot (1991), Alfredo Bosi (2000), Ezra Pound

    (2006), usando como aporte principal Mário Faustino (1976) a partir do livro Poesia-

    Experiência. No item A herança de Apolo: A poesia da letra, a partir dos escritos de A

    letra e a voz de Zumthor (1993), percorro o caminho que a poesia fez da tradição oral

    para a escritura. Ainda nesta sessão, no item O Caminho para o Olimpo, mostro uma

    discussão em torno das racionalidades científicas e dos motivos que influenciaram o lugar

    que a poesia ocupa nas instituições de ensino e a forma que é recebida pelos leitores.

    No segunda sessão, Estética da Recepção: uma experiência Poética, apresento as

    teorias que fundamentam a Estética da Recepção e as poéticas amazônicas, fazendo esse

    percurso teórico com autores como: Hans Robert Jauss, traduzido por Luiz Costa Lima

    (1979), Regina Zilberman (1989), Paes Loureiro (1995), Josebel Fares (2008), Umberto

    Eco (2001), Marisa Lajolo (2001), Paul Zumthor (2014), trazendo as primeiras

    experiências realizadas no lócus, com alunos de uma turma de Educação de Jovens e

    Adultos.

    No item Letras que contam: a formação de leitores, analiso sobre essa temática

    tão discutida no âmbito da educação, trago autores bem como conto da intempérie que foi

    recomeçar com turmas novas, pois por uma situação burocrática não pude continuar com

    os primeiros intérpretes. O que se coloca não é propor um debate das deficiências e

  • 23

    ausências da formação já conhecidas por todos, mas trazer os estudos que abordam a

    resistência contra esse modelo.

    O último item da sessão: Caminho de Ítaca: por uma educação sensível, anuncio

    a categoria que fundamenta a Estética da Recepção como um método: a experiência. E

    como primeiro passo, explico como a categoria, a partir dos escritos de Larrosa (2015),

    mostra que pelo poético a educação sensível pode ser um percurso que olhe mais para o

    vivido no caminho da educação do que para os seus resultados.

    Na próxima sessão Uma página em branco lançada: a recepção livre, mostro

    como o leitor se comporta diante da página em branco, sem que se crie sobre ele uma

    expectativa de resposta dirigida. Livre para falar de seu sentir, consegue fazer uma

    conexão mais íntima com o texto poético. Para me conduzir por esses escritos conto com

    Paz (2012) e as iluminuras que O arco e a Lira trouxeram para mim.

    Em O desenho do verbo, acompanhada de Bachelard (1986) e Manoel de Barros

    (2013) trago as recepções dos intérpretes do 6º ano, a partir de seus desenhos, que foram

    a maneira que eles ficaram mais à vontade para expressar como a poesia os tocou.

    No último item, O fogo de Prometeu, a reunião das recepções que se mostraram

    pelo verso, por intertextos de outros poemas bem como pela escritura de poemas autorais.

    Quem me sopra os ouvidos para ler esses versos é aquele que acreditou na Utopia da

    palavra, Antônio Severino (2002).

    Importante dizer que esta escritura se configurou, em sua estrutura, como um

    trabalho ensaístico e suas sessões foram construídas de forma interligadas, mas

    independentes, como uma dança circular em que os autores chegam, fazem sua

    performance, dão espaço para outros passos, mas continuam no círculo. Ao longo do

    texto, também figura tal dança a alternância dos pronomes em primeira pessoa do singular

    e do plural, devido aos momentos em que minhas escolhas dividiram protagonismo com

    as de minha orientadora.

    Para encerrar, entrego ao leitor as páginas que se seguirão, reflexo de minha

    procura pela palavra mágica, de uma pesquisa que iniciou de uma angústia, um sonho e

    muitas lacunas. Convido os olhos que miram esses escritos a conhecer o voo desta

    aventura de descobrimento e sobretudo de encontro com o poético.

  • 24

    1 TROUXESTE A CHAVE?

    Na Grécia antiga, mítica e heroica, quando a poesia — pelas manhãs de “róseos pés”

    dos poemas de Homero — começava a caminhar na infância de si mesma, já estava ela

    entranhada na alma das palavras e trazia o imaginário na essência da linguagem significante.

    (Paes Loureiro)

    Há muito tempo filósofos, poetas, críticos, ensaístas, teóricos, todos tentaram

    definir poesia, e seu conceito é uma porta que pode ser aberta por inúmeras chaves. Os

    filósofos teorizaram-na como forma de conhecimento, os poetas dedicaram-lhe inúmeros

    versos metalinguísticos, a crítica literária tentou racionalizar sua definição e o senso

    comum, geralmente, confunde poesia com poema. Por isso, antes de “vir o dia quando

    tudo que eu diga seja poesia” (LEMINSKI, 2013, p. 77), necessito recorrer às vozes que,

    por minha formação, ainda ecoam no pensamento, pois o entendimento acerca desse

    conceito também é alimento para a pesquisa, e fazer um passeio pelas contribuições de

    nomes que são fundamentais para a sua compreensão é de grande relevância para este

    percurso teórico.

    A procura da poesia começa com a linguagem. Gianbattista Vico (2008), em sua

    Ciência Nova, conta que a linguagem dos primeiros homens foi expressa por caracteres

    poéticos. É o que Nunes (2009) apresenta-nos, quando alude aos primeiros autores do

    mundo civil como poetas, pois “enquanto Vico considerou na história da humanidade a

    importância de tal linguagem, muitos a desprezaram por não conter os elementos que a

    mathesis universalis requeria para torná-la compreensível” (p. 24-26). No entender do

    filósofo, essa linguagem poética foi necessária à compreensão dos homens entre si, assim

    “a natureza da poesia e do mito não foi simples ornamento nos tempos poéticos, mas

    resultado de uma lógica que opera transferindo significados que lhes são familiares ao

    que é percebido”(p. 24-26). Desta forma, é importante compreender que a poesia

    acompanha o ser humano em sua evolução.

    Segundo Ragusa (2013), a poesia, diferente do que temos agora, não era

    produzida para a leitura (especialmente a leitura solitária e silenciosa). A autora se refere

    a um período que data da Grécia arcaica (c. 800-480 a.C.) em que a poesia denominada

    Mélica, termo que figura entre as denominações mais antigas para essa poesia que, a partir

    da helenística (c. 323-31 a. C.), sob a influência dos trabalhos na Biblioteca, passou a ser

    chamada de ‘lírica’. As composições dessa poesia eram destinadas à performance cantada

  • 25

    em coro, ou solo, acompanhadas pela lira em eventos das famílias aristocratas de

    governantes ou em cerimônias públicas organizadas pelas cidades para homenagear um

    deus. Portanto, a poesia

    não era aquilo que o nome “poesia” identifica, mas algo mais próximo

    à “canção” [...] inseria-se, assim numa cultura da canção, na qual

    funcionava como veículo principal à disseminação de ideias morais,

    políticas e sociais (RAGUSA, 2013, p. 12-13).

    É possível aproximar os estudos da autora aos de Erza Pound (2006, p. 160),

    quando diz que “jamais recuperaremos a arte de escrever poesia para ser cantada”. Aos

    de Pignatari (2004, p. 9), quando comenta que “a poesia parece estar mais ao lado da

    música e das artes plásticas. [...] é um corpo estranho nas artes da palavra”. Para

    finalmente chegar aos de Paul Zumthor (2010, p. 8), quando para ele “o simbolismo

    primordial integrado ao exercício fônico se manifesta eminentemente no emprego da

    linguagem, e é aí que se enraíza toda poesia”.

    Por todos os autores citados, verifica-se que a poesia, antes de estar na escrita,

    esteve na voz. Desta forma, sua referência primeira vem das tradições orais, que a maioria

    dos estudiosos relevam: a poesia oral. Ainda em Zumthor (2010, p.9), encontramos a

    resposta a esta ocorrência:

    em razão de um antigo preconceito em nossos espíritos e que performa

    nossos gostos, todo produto das artes da linguagem se identifica com

    uma escrita, donde a dificuldade que encontramos em reconhecer a

    validade do que não o é. Nós, de algum modo, refinamos tanto as

    técnicas dessas artes que nossa sensibilidade estética recusa

    espontaneamente a aparente imediatez do aparelho vocal. As

    especulações críticas dos anos 1960 e 1970 sobre a natureza e

    funcionamento do “texto” deixaram de contribuir para clarear por este

    lado o horizonte e ainda o embrumaram mais, recuperando, travestida

    ao nosso hábito mental, a antiga tendência de sacralizar a letra.

    O que o medievalista nos propõe é rever essa sacralização da ideologia letrada,

    que tem na escrita seu fundamento maior e que, por praticidade, condiciona à poesia oral

    a designação do termo “folclore”. Comumente empregada de forma reducionista, “a

    palavra folclore se desdobrou, remetendo, por um lado, a um conceito muito vago, ao que

    vários etnólogos negam qualquer valor científico e, por outro lado, a diversas práticas de

    recuperação dos regionalismos” (ZUMTHOR, 2010, p. 19). Outra expressão usualmente

    empregada e criticada pelo autor é o adjetivo “popular”, muito utilizado com o termo

  • 26

    poesia. Tal emprego acaba por diluir uma corrente de conhecimento, relegando-a à uma

    cultura subalterna.

    O que esses teóricos discutem diz respeito a uma mudança de perspectiva do

    entendimento de poesia. A sacralização das letras (escritas) se interpôs a toda poética

    oriunda da oralidade. Como exemplo, temos o poema trágico Fausto, de Goethe que,

    mesmo baseado em uma lenda alemã medieval, é recebido como literatura clássica porque

    é arte assinada. Zumthor (2010, p. 22) nos permite compreender porque aceitamos a obra

    de Goethe como clássico literário, escrito baseado na cultura “popular”. O autor comenta

    que

    no interior de uma mesma classe de texto (apesar de não definido como

    tal), será “folclórico” o que for objeto de tradição oral; “ popular”, de

    difusão mecânica. Em outros lugares, “a literatura oral” será tomada

    como uma subclasse da “popular”, enquanto que alguns se negarão a

    ligar essas categorias ou atribuirão (despreocupados com essa petição

    de princípio!) o título de “primitivo” a toda poesia “puramente” oral!

    [...] O elemento perturbador em tais discussões decorre do recurso,

    implícito ou declarado, que nelas se faz a uma oposição não pertinente

    neste caso: a que separa o “literário” do não literário ou o que é

    designado com algum outro termo, seja ele sociológico ou estético; e

    neste caso, eu percebo o literário vibrante das conotações acumuladas

    há dois séculos: referência a uma Instituição, a um sistema de valores

    especializados, etnocêntricos e culturalmente imperialistas.

    O que se faz compreender das passagens acima é que as artes firmadas no codex

    literário chegam até nós com o status de literatura. Com isso, a poesia afastou-se do uso

    original da compreensão dos homens entre si. Para Zumthor (2014, p. 49), poética é

    o uso linguístico de uma comunidade humana como uma rede de

    práticas tendo por finalidade a comunicação e a representação, porém,

    estruturadas de tal modo que necessariamente uma entre elas,

    metamimática, vise à linguagem como outros visam o mundo.

    As definições acerca da poesia são ilimitadas e, para Bachelard (1990, p. 83), ela

    “demanda uma adesão menos pesada, mais móvel e mais livre [...]. A poesia, pode-se

    ainda dizer, desenvolve seus próprios mitos.” Cavalcanti (2012, p. 25) entende que “a

    poesia não está nas coisas, ela é as coisas, ou uma maneira de as coisas se mostrarem em

    intimidades que só o poeta, e apenas em certos momentos, a ela tem permissão de aceder”.

    Para Ezra Pound (2006, p. 40), “a poesia é a mais condensada forma de expressão verbal”.

  • 27

    Como vimos, são muitas as possibilidades. Cada autor, à sua época, tem sua

    própria “arte poética”, sua chave. Para delimitar a discussão a que esta sessão se propõe,

    recorro a outros nomes que também estiveram à procura da poesia.

    Mário Faustino (1976), em Poesia-Experiência, no capítulo intitulado “Poética”,

    aborda, entre outras questões, a partir de um diálogo entre poetas, duas perguntas

    fundamentais: “Para quê Poesia? e “Quê é poesia?”. Para a primeira questão, em sua

    concepção a poesia

    serve à sociedade testemunhando-a, interpretando-a, registrando as

    diversas fases espaciais e temporais de sua expansão e evolução. Nisso

    a poesia é como toda arte: um documento vivo, expressivo, do estado

    de espírito de certo povo, em dada região, numa época determinada. A

    poesia, aliás, é incomparável quando registra—com a capacidade

    condensadora e mnemônica de que só ela é capaz—certas nuanças de

    ponto de vista, de atitude, de sentimento e de pensamento, individuais

    como coletivos, nuanças essas que, muitas vezes, são bem mais

    expressivas de um povo e de uma época, do que os grandes

    acontecimentos (FAUSTINO, 1976, p. 33).

    O pensamento do poeta confere à poesia relevância social, o que direciona o

    leitor para a segunda questão proposta pelo autor: a definição de poesia. Esta é muitas

    vezes utilizada de maneira supérflua, como forma de adjetivar algo belo, com sentenças

    como “a noite estava muito poética”, ou “que música poética!”, e que, para o autor, essa

    “atitude só serve para desviar, para confundir princípios”. Ele declara não ter interesse

    por essa perspectiva de poesia, propondo uma aproximação relacionada ao conceito de

    arte poética, apresentando a concepção da obra literária dividida em dois polos: o poético

    e o prosaico, que podem ser diferenciados apenas de maneira formal, a partir de aspectos

    concretos como o verso, o ritmo e a linguagem mais concentrada. Tal distinção, para o

    autor, se faz por uma questão “puramente acadêmica”, mas que, para compor o horizonte

    entre esses conceitos, elucida a diferença:

    quando um escritor, tirando palavras do estoque de sua memória,

    procura adaptá-las ao objeto de sua criação, fazendo tais palavras

    circularem em torno de seu objeto, refletindo-o, comentando-o,

    contando-lhe a história, analisando-o, personalizando-o, identificando-

    o, etc., queira ou não queira, está entrando no prosaico [...] quando esse

    mesmo escritor, colocando-se diante do objeto de sua criação, vê

    nascerem em sua mente palavras como que inteiramente novas,

    insubstituíveis e essencialmente intraduzíveis que não glosam o objeto

    e sim o recriam em um plano verbal, batizando-o de um modo

  • 28

    inexplicavelmente novo, tirando-o do caos em que parecia encontrar-se

    e colocando-o numa ordem nova — então esse escritor, queira ou não

    está caindo no poético (FAUSTINO, 1976, p. 62-63).

    A exposição acerca das diferenças entre a composição do escritor não tem por

    objetivo dar maior ou menor valor à linguagem, ou mesmo dar um tipo de fórmula de

    identificação para ela, o que lê-se são argumentos que vão personificando o poético e o

    prosaico como dois lados da linguagem que, apesar de distintos, misturam-se em

    confluência híbrida. Para o autor, não há exemplo de obra literária puramente poética nem

    puramente prosaica.

    Trago paralelo ao exposto, Ferreira Gullar (1995), em seu ensaio Uma voz entre a

    natureza e a cultura, que também reflete sobre o papel da poesia e do poeta:

    O poeta moderno, que desenvolveu a linguagem literária à sua condição

    prosaica, realiza a poesia pela transformação da linguagem prosaica em

    linguagem poética. Na concepção da nova poesia, o que há de

    fundamental e permanente é a linguagem mesma – a língua – que será,

    neste momento, poética e, naquele outro, prosaica. Essa alternância se

    dá no âmbito mesmo do poema, já que em nenhum poema todos os

    elementos da linguagem se transformam em “poesia”. Ou seja, é o

    processo de elaboração da linguagem pelo poeta que transfigura os

    elementos verbais e faz com que neles aflore a intensidade da expressão

    poética. O poema é portanto, o lugar onde prosa se transforma em

    poesia (GULLAR, 2008, p. 1082).

    Retomando Faustino (1976, p. 68-69), sobre o conceito de poesia, para o qual não

    é possível responder à questão

    sem cair na “literatura”— ou literatice. Um estudo semântico da palavra

    “poesia”, em qualquer das línguas ocidentais, muito nos afasta tanto de

    sua origem etimológica, como do conceito filosófico que lhe possa

    conferir. Porque a tradição, o uso, tem chamado de poesia “a beleza”, a

    “harmonia”, o “pensamento profundo”, “a imaginação”, “a linguagem

    metrificada”, o “verso”, “o conjunto de poemas”, o “poema, etc.—

    coisas que, está claro, não tem lá muito com a poiesis dos gregos ou

    com a nomeação, a recriação do objeto em palavras

    A (in)conclusão do autor demonstra que mesmo que tentemos achar definições,

    para ele, o poético não tem de ser compreendido, e sim percebido. O que não significa,

    por sua vez, dizer que a poesia é qualquer coisa, ou mesmo limitá-la à música e à imagem,

    poesia “é também pensamento” (FAUSTINO, 1976, p. 50).

    O poema dá asas à linguagem, permite que a palavra comum ganhe outras

    existências. Ao situar como o poema pode causar provocações, Perrone-Moisés (2000),

  • 29

    em Inútil Poesia, nos coloca diante da força do poema, das imagens por ele (re)criadas e

    do ato de (re)ver a palavra sem o automatismo do cotidiano. “Como se, pela palavra, fosse

    possível ao poeta (e ao leitor) reconquistar, de repente, a intuição da vida em si mesma”

    (BOSI, 2000, p.136).

    O poema questiona a verificabilidade e a referencialidade das

    mensagens que nos chegam cotidianamente. O poema vem lembrar,

    imperiosamente, que tudo é linguagem, e que esta engana. Que a

    linguagem está o tempo todo fingindo-se de transparente, de prática e

    de unívoca, e nos enreda num comércio que nada tem de essencialmente

    verdadeiro e necessário. [...] A função do poeta moderno é opor-se a

    esse comércio aviltante, e propor a utopia de outras linguageiras. Seu

    trabalho consiste em “dar um sentido mais puro à palavra da tribo”,

    fazer com que elas, em vez funcionar apenas como valores de

    representação da realidade, instaurem uma realidade de valor.

    (PERRONE-MOISÉS,2000, p.32).

    Como o que Pessanha (1985, p. xxix) delineia quando diz:

    não há nenhuma necessidade de ter vivido os sofrimentos do poeta para

    compreender o reconforto da palavra oferecida pelo poeta — reconforto

    da palavra que domina o próprio drama. A sublimação, na poesia,

    domina a psicologia terrestremente infeliz. É um fato: a poesia possui

    uma felicidade que lhe é própria, qualquer que seja o drama que ela seja

    levada a ilustrar.

    Faustino (1976) comenta que o poeta seria aquele capaz de perceber os

    fenômenos naturas e sociais de maneira especialmente sintéticos, e também preparado a

    exprimir em palavras organicamente conectadas, essa visão totalizadora de um mundo e

    de um período. Contudo, não há intento de colocar o poeta em um lugar especial,

    diferente, mas exprimir a relevância de como ele deixa impresso na história a marca de

    sua época. Pois,

    mesmo quando o poeta fala do seu tempo, da sua experiência de homem

    de hoje entre homens de hoje, ele o faz, quando poeta, de um modo que

    não é o do senso comum, fortemente ideologizado; mas de outro, que

    ficou na memória infinitamente rica da linguagem. O tempo "eterno"

    da fala, cíclico, por isso antigo e novo, absorve, no seu código de

    imagens e recorrências, os dados que lhe fornece o mundo de hoje,

    egoísta e abstrato. Nessa perspectiva, a instância poética parece tirar do

    passado e da memória o direito à existência (BOSI, 2000, p. 131).

    Eco (2001, p. 34), por sua vez, entende que o mundo interior do poeta é formado

    e influenciado mais pela tradição estilísticas de seus antecessores do que pelas ocasiões

    históricas em que suas ideologias se inspiram. Pelas influências estilísticas, o poeta

  • 30

    formaria sua maneira de ver o mundo e sua obra tanto pode ter pouca conexão com seu

    momento histórico, quanto expressar uma fase posterior à sua realidade, como poderá

    manifestar níveis profundo e incompreensíveis a seus contemporâneos.

    Refletindo no que concerne à tarefa do poeta T. S. Eliot (1991, p. 25-37), em De

    poesia e poetas, uma de suas passagens mais incisivas nos diz:

    como poeta, é apenas indireta com relação ao seu povo: sua tarefa direta

    é com sua língua, primeiro para preservá-la, segundo para distendê-la e

    aperfeiçoá-la. Ao exprimir o que outras pessoas sentem, também ele

    está modificando seu sentimento ao torná-lo mais consciente; ele está

    tornando as pessoas mais conscientes daquilo que já sentem, e por

    conseguinte, ensinando-lhes algo mais sobre si próprias. Mas o poeta

    não é apenas uma pessoa mais consciente do que as outras; é também

    individualmente distinto de outra pessoa, assim como de outros poetas,

    e pode fazer com que seus leitores partilhem conscientemente de novos

    sentimentos que ainda não haviam experimentado.

    A experiência pelo poético pode revelar aquilo que instaurado pelo comum,

    passa insípido aos sentidos, a partilha do que pode ser caro ao leitor, e causar, como diria

    Barthes (2013), a fruição da escrita. E nesse sentido, a poesia amazônica para o leitor em

    formação que precisa aproximar a palavra e o mundo, conhecer a letra que vem do seu

    lugar, pode ser uma conexão íntima com sua experiência. Por isso a necessidade da poesia

    amazônica para o nosso leitor, pois “há, nas alegorias produzidas pelo imaginário na

    cultura amazônica, uma permanente tentativa de compreender o homem, o amor, a vida,

    a morte, o trabalho e a natureza” (LOUREIRO, 1995, p.85).

    O poeta amazônico extrai da realidade circundante suas motivações artísticas e

    compõe de forma ímpar textos em que o mítico, o imaginário, a forte relação com o rio e

    a floresta dividem espaço com as formas culturais da mistura advinda de outros lugares.

    Esses escritos representam uma identidade local que ultrapassa as fronteiras regionais,

    mas, também, externam a poética carregada por uma singularidade. Assim, é revelado o

    imaginário que vai além do que é perceptível aos olhos, é transcendente, é “a terceira

    margem do rio”.

    Loureiro (1995, p.50) também está entre os poetas que buscaram a chave para

    compreender a definir a poesia, como essência que revela a beleza escondida no mundo,

    em que para ele, “alarga o círculo da imaginação, alimentando o pensamento. Com sua

    forma, ação, linguagem e repercussão na cultura, ela torna inclusive, uma época mais

    memorável do que outra”.

  • 31

    O que tentei demonstrar nestas páginas primeiras é que o conceito de poesia não

    terá uma única chave. O que distingue a poesia de épocas diferentes e o que define sua

    singularidade está relacionado à cultura e aos costumes de cada época, e de como ela (a

    poesia) fica impressa na memória, as influências e mudanças que fazem os sentimentos

    humanos serem abordados de formas distintas.

    As transições que a poesia viveu e os meios que lhe deram suporte nos leva à

    movência da palavra, que nasce no seio da linguagem e da voz, passa para escritura.

    Transição que deu à palavra escrita o legado que sobrepôs à poesia que está na letra uma

    sina, que explicamos nas linhas que seguem.

    1.1 A herança de Apolo: a poesia da letra

    O mito de Apolo revela experiências que se relacionam com a precisão, atributo

    próprio da razão. A fantasia apolínea provém da crença na supremacia da simetria, pois é

    através da harmonia das formas que se configura a ilusão do belo. Apolo no mundo grego

    é aquele que rege a forma à medida que origina a harmonia e a “bela aparência” das

    coisas.

    A letra escrita sempre foi símbolo de poder. Muito antes da invenção da imprensa

    o ato de conhecer a letra, decodificar as palavras, saber o que está grafado permite ao que

    lê um lugar de privilégio. Pensando na história que envolve a relação do homem com a

    letra escrita, faço um retorno, uma longa volta ao passado para compreender como a

    poesia, viva na voz, passou da oralidade à escrita. Quem nos acompanha nesta volta, de

    “escritura e nomadismo”, é Paul Zumthor (1993), seguindo principalmente os estudos do

    título A letra e a Voz: Literatura Medieval.

    “A escritura não se confunde nem com a intenção nem mesmo com a aptidão de

    fazer da mensagem um texto. Ela tem seu ritmo próprio de desenvolvimento; a

    textualidade tem os seus, assim como as mentalidades escriturais” (ZUMTHOR, 1993, p.

    96-97). Para justificar nossa escolha pela poesia que está na letra, é necessário entender

    por quais processos a escritura passou e os modos de raciocínio que envolveram sua

    evolução.

    O medievalista comenta que até cerca do ano 1.000 a escritura esteve restrita aos

    mosteiros e cortes régias, e lentamente foi se expandindo para as classes dominantes dos

    Estados europeus. Sua estreita relação com a voz foi um dos fatores que favoreceu em

    sua difusão a partir desse período, mas somente na virada dos séculos XIV e XV, em que

  • 32

    surge na Europa a primeira pintura de cavalete, que expressa a predominância, da visão e

    do espaço, próxima de se concretizar. Essa primeira pintura marca um movimento da letra

    saindo de seus domínios exclusivos (clero e as cortes) e chegando aqueles que por ela

    podiam pagar.

    Essas linhas atravessam o campo da poesia: de maneira contrastante

    complexa, atuam sobre a intenção e a composição do discurso que a

    poesia comanda e (em menor medida, talvez) sobre as modalidades

    psíquicas de sua recepção. Assim, o que se encontra profundamente

    posto em questão é a relação tríplice estabelecida a partir e a propósito

    do texto—entre este seu autor, seu intérprete e aqueles que o recebem.

    Conforme os lugares, as épocas, as pessoas implicadas, o texto depende

    às vezes de uma oralidade que funciona em zona de escritura, às vezes

    (e foi sem dúvida a regra nos séculos XII e XIII) de uma escritura que

    funciona em oralidade (ZUMHTHOR, 1993, p. 98).

    E a escritura precisava funcionar como oralidade, uma vez que apenas um número

    muito pequeno dos homens no período medieval era capaz de ler suas cartas, e esse índice

    leva em consideração os profissionais da escritura, quem conseguia estruturar seu

    pensamento em palavra escrita era quem tinha poder. A prática de leitura era diferente

    para o homem medieval do que é para nós, não contavam com a onipresença da escrita

    em seu cotidiano. E apenas no século XIII que ficam legíveis os primeiros indícios de

    livros comercializados.

    Como uma prática que exige técnica e competência a escritura era uma atividade

    que demandava muito tempo, pois, nesse período as diversas fases que a compõe, como

    a feitura da tinta, a fabricação da pena e de outros objetos que eram produzidos para sua

    realização, eram confeccionados pela mesma pessoa, por isso, a escritura ficou

    dependente de seu elitismo.

    Para além disso, para o escriba não era suficiente dominar a técnica de grafar as

    letras, aquele que desenvolvesse “uma competência textual mais preciosa, fundada no

    conhecimento das fórmulas eficazes, das regras discursivas, do manejo das figuras, de

    tudo o que constitui, no sentido primeiro o estilo” (ZUMTHOR, 1993, p. 102) era ainda

    mais valorizado. Assim, a estilística desde os primeiros trabalhos escritos já era um

    elemento que consagrava o escriba, e, há de se considerar que ainda não havia as noções

    de coesão e coerência na composição dos manuscritos, muito menos o juízo de

    acabamento textual. Além dos escribas havia os copistas, que recebiam, em geral, pela

    voz de um leitor o texto a ser reproduzido,

  • 33

    o copista “domina” sua matéria: é de fato, seu mestre; e talvez,

    conforme a opinião mais comum, o seja de direito, caso se pense na

    fluidez da maioria de nossas tradições manuscritas. A reprodução dos

    textos autorais latinos testemunha aqui e ali, uma preocupação de

    autenticidade; a anotação dos textos de poesia em língua vulgar, quase

    nunca. [..] assim, a linguagem que o manuscrito fixa continua a ser,

    potencialmente, a da comunicação direta. A escrita, salvo exceções,

    constitui-se por contágio corporal a partir da voz: ação do copista é

    “tátil” (ZUMTHOR, 1993, p. 103).

    Por essa razão, a distinção entre autor, escrevente e intérprete para as pessoas

    desse período não tinha relevância, o que por muito tempo fez com que o “autor” fosse o

    intérprete na performance de uma poesia que, não precisava dizer sua origem. Nesse

    período a leitura envolvia a voz, prática que foi valorizada por muito tempo pela tradição

    monástica que considerava como uma ajuda à meditação. Segundo Zumthor (1993, p.

    105), do século XII ao XIV, com o aumento da circulação do número de escritos, aumento

    das fontes disponíveis e as universidades inserindo bibliotecas abertas aos estudantes foi

    se desenvolvendo a leitura silenciosa. E a partir do século XV a leitura silenciosa passou

    de uma maneira outra para uma imposição. É quando a relação texto-leitor passa para

    uma esfera mais íntima, bem como no meio letrado o termo “escrever” passa a ter o

    sentido de “compor”. Também, nesse período, passaram a reunir os escritos de um mesmo

    autor e atribui-lhe autoria, isto é, a escritura começa a se organizar em livro.

    A debilidade ou a aparente irregularidade do recorte do texto

    manifestam de outra maneira essa oralidade natural do uso da escrita.

    A página se apresenta de modo massivo, às vezes sem querer isolar

    sistematicamente as palavras...um pouco à maneira de numerosas obras

    literárias de hoje que, justamente, tentam assim atender uma

    necessidade vocal! A escritura medieval dissimula ao olho as

    articulações dos discursos (ZUMTHOR, 1993, p. 106).

    A escrita acaba por estender-se a duas funções: a transmissão de um texto e sua

    conservação, o que nem sempre se dava de forma concomitante. Zumthor (1993) usa

    como exemplo os textos que serviram de instrução para intérpretes de jogral, que em sua

    feitura não tinham a finalidade de conservação, mas que graças a ela manuscritos

    importantes chegaram ao nosso conhecimento.

    Para o homem medieval a escritura aparece como uma dessas instituições em que

    um grupo social pode, de fato, identificar-se, mas em que não pode, no pleno sentido da

    palavra, comunicar-se. A classe cavalheiresca, o baixo clero e a maioria dos nobres, por

    exemplo, eram analfabetos. O tipo de saber requerido ou impostos por sua situação social

  • 34

    não tinham relação com a prática da leitura. Como a letra ficava limitada aos manuscritos

    necessitava da mediação de um intérprete autorizado, ausente essa mediação ela (a

    escritura) “resiste, opacifica, obstrui, como uma coisa. Enquanto técnica, não depende da

    ordem da poesia; a poesia não tem o que fazer com ela, a não ser deixá-la simular

    utilidades” (ZUMTHOR, 1993, p. 110). Pois bem, o que o medievalista se refere é à

    poesia oral: a escritura simula uma utilidade porque ela ainda não era necessária, porque

    a poesia estava na voz.

    O prestígio da letra escrita contribuiu para mantê-la distante da massa dos

    iletrados, para eles “a letra traçada é uma coisa—significante da mesma condição que

    toda coisa criada—irrefutável mas inacessível, quase imaterial, portadora de esperanças

    ou pavores mágicos” (ZUMTHOR, 1993, p. 113). Entretanto, para os príncipes do século

    XV, era como um signo de poder: mandavam copiar luxuosos manuscritos musicais que

    eram tidos como joias.

    A passagem do vocal para o escrito não se deu como uma ruptura, mas de maneira

    lenta, pois a natureza da escritura medieval não comportava a função mediadora da voz,

    a escrita seguia como forma de registro de um discurso anunciado ou da preparação de

    textos destinados para leitura pública. A primeira onda de poesias europeias se origina de

    grandes mosteiros ou do meio real, em que os poemas eram colocados por escrito para

    reunir em torno do rei a comunidade de seus fiéis destacando seu passado heroico.

    Primeiro aparecimento, em nosso horizonte, de uma poesia e de relatos

    comemorativos aproximadamente formulados na língua viva comum;

    testemunhas imperfeitas e indiretas da presença de uma voz.

    Cronologicamente, nos territórios galo-românticos e germânicos (de

    longe os mais empenhados nesse projeto de aculturação) segue-se um

    eclipse, aparentemente de dois ou três séculos. Deslancha então a

    segunda onda de escritura poética em língua vulgar—sem ruptura até

    nossos dias (ZUMTHOR, 1993, p.122).

    Com essa segunda onda há o enfrentamento e a conquista da língua viva da cultura

    popular, que agora figura entre os letrados que precisam fazer um esforço de invenção

    para racionalizá-la, ter domínio sobre ela. “Nesse empreendimento, seu mais poderoso

    instrumento é a escritura; e esta, cedo ou tarde, liberta-se da mais pesada coerção vocal

    que ainda pesa sobre si: o verso. Donde a difusão de uma prosa narrativa” (ZUMTHOR,

    1993, p. 123).

    A partir dessas mudanças já não é exclusivo às tradições orais a função da

    transmissão de conhecimentos dentro do grupo social, essas tradições vão enfraquecendo,

  • 35

    e ficando cada vez mais relegadas à margem. “O seu espaço passa a ser ocupado por

    ‘ciências’ descontínuas, em número crescente, para as quais ou pelas quais o homem cria

    uma linguagem, abstrata, empenhando cada vez menos a realidade do corpo”

    (ZUMTHOR, 1993. p. 123). Realidade que coloca a escritura num lugar de

    inacessibilidade. Longe do corpo, distante da voz, a palavra carrega a legitimidade do

    discurso científico e arrasta o peso que ele traz: a forma da língua, suas movências e

    permanências e com elas as estruturas gramáticas, regras sintáticas, a rigidez vocabular.

    Octavio Paz (2012), em O arco e a lira, expõe que à mediada que a palavra escrita

    foi substituindo a voz viva nas relações humanas (quando já intensificava suas diferenças

    de hierarquia entre os interlocutores), elas foram modificadas. Para o autor, o livro impõe

    ao ouvinte uma lição única sem o direito de perguntar ou questionar. Mas essa ideia leva

    em consideração as novas técnicas que, comparadas à forma como a palavra poética era

    socializada antes da presença da escritura, criaram um distanciamento entre o homem

    comum e a poesia, pois toda palavra supõe a relação do que fala e de quem ouve, e o

    universo verbal do poema não contém os vocábulos do dicionário, mas da comunidade.

    O que o autor expõe é a diferença que a escritura impôs na relação dos homens

    com a palavra poética, que em sua origem era algo para se dizer e ouvir, ao tornar-se algo

    que se escreve e se lê, como operação particular, sua leitura vem do que vemos, para o

    mexicano, a poesia passa a entrar no corpo pelos olhos e não pelos ouvidos. Contudo, é

    importante ressaltar que a escritura não aprisiona o texto, ela lhe confere forma, para o

    letrado, ela permite a autonomia de uma recepção livre da mediação de terceiros.

    Ao texto oralizado—na medida em que, pela voz que o traz, ele engaja

    um corpo—repugna mais que o texto escrito toda percepção que o

    diferencie de sua função social e do lugar que ela lhe confere na

    comunidade real; da tradição que talvez ele alegue, explícita ou

    implicitamente; das circunstâncias, enfim, nas quais se faz escutar. O

    texto escrito comporta um duplo efeito de comunicação diferida; um,

    intrínseco, devido às polivalências geradas pela formalização poética;

    outro, extrínseco, causado pelo afastamento de tempos e de contextos

    entre o momento em que é produzida a mensagem e aquele em que esta

    é recebida (ZUMTHOR,1993, p.60).

    A comparação não pretende fazer juízo de valor ao texto oral ou escrito, mas sim

    diferenciar os efeitos de seus registros. O texto oralizado é uma recepção da recepção,

    uma vez que a voz sempre trará para quem ouve a leitura do mediador, essa forma

    comporta o elemento sonoro, o sentir e as escolhas de interpretação do mediador, a

    maneira que ele elege para colocar no seu corpo o texto e entregá-lo a quem ouve.

  • 36

    O texto escrito é recepção íntima, é o olhar o leitor sobre a palavra em que suas

    significações vão ser orientadas pela governabilidade do tempo em que ele está inserido.

    Por isso, a distinção dos registros que põe em causa poesia oral de um lado, poesia escrita

    do outro “implica evidentemente que suas formas respectivas não podem ser idênticas.

    Nem mesmo os níveis em que elas se constituem, nem os procedimentos que as produzem

    podem ser comparados a priori” (ZUMTHOR, 2010, p. 83).

    O medievalista entende que a voz poética é onipresente, integrada nos discursos

    comum pela performance, ela reúne um instante ímpar porque se diferencia das vozes

    cotidianas, função basilar da poesia. E na escritura não acorre da mesma maneira. A

    performance não cabe na escritura. Mas, não pretendemos colocá-las como opostas e sim

    em perspectiva: “Uma simbiose pode instaurar-se, ao menos certa harmonia: o oral se

    escreve, o escrito se quer uma imagem do oral; de todo modo, faz-se referência à

    autoridade de uma voz” (ZUMTHOR, 1993, p. 154). Em verdade, o que se coloca são as

    formas de movências da poesia, que para ele, é o que o leitor ou ouvinte recebe como tal:

    não remetendo a ela apenas o texto que informa, mas percebendo a trama do tempo e do

    espaço dos discursos que atravessam a matéria daquele grupo social.

    Ao olhar a poesia que está na voz e chegou à letra, por perspectivas particulares,

    o autor traça a imagem da mensagem poética “em cascata”, uma mensagem que é marcada

    por sinais que revelam a natureza figural da poesia, que localizam a partir de modalidades

    variadas, específicas de cada sociedade e de seu tempo histórico em nível discursivo e

    enunciativo. Entre esses sinais destacam-se dois: o modo restritivo, textual, que se

    relaciona à língua; e a sinalização modal, que opera sobre os meios corporais e físicos da

    comunicação: “tudo que se refere às grafias, quando se trata de escritura; à voz quando

    se trata de oralidade” (ZUMTHOR, 1993, p. 160).

    Os sinais textuais e modais carregam muitas diferenças entre si, o modo textual é

    limitado pelas imposições linguísticas, as marcas textuais, ele domina o registro escrito.

    Enquanto o modal domina as artes da voz, que pela ação vocal age sobre as maneiras que

    o corpo físico expressa o texto poético. Combinados esses modos, temos a obra. Em sua

    conclusão, o autor data o surgimento do “romance”: 31160-70 na junção da oralidade e

    da escritura. Um processo que é designado pela expressão mettre em roman (colocar em

    romance), assim os escritos eram glosados em língua vulgar, colocados por escrito para

    3 Em seus estudos, no título A letra e a Voz, o autor grafa o termo aspeado. Escolheu-se manter as aspas,

    pois em se tratando de período medieval o termo romance ainda não era uma nomenclatura utilizada.

  • 37

    transmiti-los apenas pela leitura. Atingindo os ouvintes, o “romance” recusa a oralidade

    das tradições antigas, que se atenuarão a partir do século XV.

    Nessas tradições, a presença dos contos era muito comum, não por acaso, os

    contos clássicos foram colhidos da oralidade. Assim, o surgimento do romance, com sua

    elevada exigência narrativa ou retórica, com a necessidade de longa duração de leituras e

    de audição, era destinado ao meio cavalheiresco e nobre. “O “romance” desmarca tudo o

    que, por notoriedade pública, funda-se somente na tradição oral. De fato, ele se liga

    estreitamente a esta, que permanece uma de suas fontes de inspiração” (ZUMTHOR,

    1993, p. 267).

    Fazendo um paralelo aos escritos de Benjamim (1994), no texto O Narrador, em

    que conduzido pela trama da ideia das ações da experiência:

    o primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa

    é do surgimento do romance no início do período moderno. O que

    separa o romance da narrativa epopeia no sentido estrito é que ele está

    essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna

    possível com a invenção da imprensa. A tradição oral, patrimônio da

    poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente distinta da que

    caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras

    formas de prosa—contos de fada, lendas e mesmo novelas—é que ele

    nem procede da tradição oral nem a alimenta. O narrador retira da

    experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos

    outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes.

    O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado,

    que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais

    importantes e que não recebe conselhos e nem sabe dá-los

    (BENJAMIN, 1994, p.xx).

    Apesar de referir-se a períodos distintos (medieval e moderno), os autores se

    aproximam quando pensamos na reprodutividade da palavra e na chegada da tecnologia,

    que vai afastar o homem desse convívio comunitário em que a voz é suprema. Os dois

    autores marcam o início do texto produzido para o homem solitário, que não necessita de

    uma comunidade narrativa para ler. O surgimento do romance coloca a voz como um

    instrumento subserviente ao texto escrito que ela tem como função fazer conhecer

    mediante a leitura em voz alta. A diferença consiste em

    quando da performance oral propriamente dita, teatralmente

    desenvolvida, os ouvintes percebem imediatamente, e em bloco, o

    autor, o recitante, o narrador e o texto, formando esses quatro elementos

    um todo indissociável; na leitura em voz alta, no entanto, o ouvinte só

    percebem desse modo o recitante e o texto. (ZUMTHOR, 1993, p. 265).

  • 38

    A voz perde seu status de palavra viva, fonte insubstituível de informação,

    lembrando que estamos falando de uma passagem, o texto que sai da oralidade e vai para

    a letra, torna-se cada vez mais matizado pelas cores da prosa, que lhe possibilita abstrair

    e refletir sobre si mesmo, e este fim em sim mesmo ele não possuía quando somente no

    regime da voz. “O escrito retira suas amarras, se assim posso dizer, aspira ir à deriva,

    recusa o presente da voz, complica-se, proclama sua existência fora de nós, fora deste

    lugar” (ZUMTHOR, 1993, p. 270).

    Mas, ainda com todo esse avanço da escritura, não houve um desaparecimento da

    vocalidade, pois em um período em que a leitura era um privilégio, os textos ainda

    dependiam de sua recepção por um auditório. Ainda que a presença da escritura

    constituísse uma mudança significativa para os paradigmas da época, isso não foi

    suficie