Universidade do Estado do Pará
Centro de Ciências Sociais e Educação
Programa de Pós-Graduação em Educação
Linha de pesquisa Saberes Culturais e Educação na Amazônia
Roberta Isabelle Bonfim Pantoja
PARA TIRAR A POESIA DO OLIMPO: POÉTICAS AMAZÔNICAS
POR UMA EDUCAÇÃO SENSÍVEL
BELÉM – PA
2018
ROBERTA ISABELLE BONFIM PANTOJA
PARA TIRAR A POESIA DO OLIMPO: POÉTICAS AMAZÔNICAS POR UMA
EDUCAÇÃO SENSÍVEL
Dissertação apresentada como parte dos requisitos para
a obtenção do título de Mestre em Educação no
Programa de Pós-Graduação em Educação pela
Universidade do Estado do Pará da linha de pesquisa
Saberes Culturais e Educação na Amazônia, sob a
orientação da prof.ª Dra. Josebel Akel Fares.
Belém
2018
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)
Biblioteca do CCSE/UEPA, Belém - PA
Pantoja, Roberta Isabelle Bonfim
Para tirar a poesia do olimpo: Poéticas amazônicas por uma educação sensível
/ orientadora Josebel Akel Fares, 2018
Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade do Estado do Pará,
Belém, 2018.
1. Poesia – Estudo e ensino 2. Ensino fundamental 3. Estética. I. Fares,
Josebel Akel (orient.). II. Título.
CDD. 23º ed.372.64
Regina Coeli A. Ribeiro – CRB-2/739
ROBERTA ISABELLE BONFIM PANTOJA
PARA TIRAR A POESIA DO OLIMPO: POÉTICAS AMAZÔNICAS POR UMA
EDUCAÇÃO SENSÍVEL
Dissertação apresentada como parte dos requisitos para
a obtenção do título de Mestre em Educação no
Programa de Pós-Graduação em Educação pela
Universidade do Estado do Pará da linha de pesquisa
Saberes Culturais e Educação na Amazônia, sob a
orientação da prof.ª Dra. Josebel Akel Fares.
Data da aprovação: ____/____/____
Banca Examinadora:
_________________________________________– Orientadora – UEPA
Profa. Dra. Josebel Akel Fares
Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
_________________________________________– Examinadora Interna – UEPA
Profa. Dra. Denise de Souza Simões Rodrigues
Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará
__________________________________________– Examinador Externo—UFPA
Prof. Dr. José Denis de Oliveira Bezerra
Doutor em História Social da Amazônia pela Universidade Federal do Pará
_______________________________________– Examinadora Convidada –UEPA Prof.
Renilda do Rosário Moreira Rodrigues Bastos Doutora em Ciências Sociais pela Universidade
Federal do Pará
Belém
2018
À palavra que vive.
A poesia está guardada nas palavras—é tudo que
eu sei.
(Manoel de Barros)
A poesia é o presente.
(Ferreira Gullar)
Poesia pra mim é voar. Flutuar na leitura.
(Hermes, 6º ano)
PARA AGRADECER...
Para iniciar, bato cabeça para os meus Orixás.
À mamãe Oxum, dona de minha coroa, protetora e guia que me ilumina com seu
ouro e guarda com amor em suas águas. Ora yê yê ô, rainha do meu congá!
Ao Pai da justiça, que por sua misericórdia permite que siga o caminho que meu
coração dita. Ouço seu brado meu pai, Kaô Cabelicê, Xangô!
Um colar de beijos e corações à Osmarina, pérola negra que me trouxe ao mundo,
minha fortaleza. Sabe o que deixa o meu coração feliz? O seu coração, mãe!
Uma prece ao meu pai Roberto, que de Aruanda olha por mim.
Todos os jasmins que puder colher para Fábio Lima, que Incansável cuida de mim,
em alimento para o corpo e o pensamento. Meu bem, meu coração se enfeita para te ver,
obrigada por me tocar com teu azul.
Gratidão em cor à minha consciência, Lívia Mendes. Que desde a seleção do
mestrado me incentiva, ajuda, colore meus dias em sua presença vibrante e, que revisou
e se emocionou comigo até a última página desta escritura. Amiga, laço-luz e bella ciao!
Um giro dançante para minha irmã das águas Lívia Faro, que pensou e sonhou
comigo a forma luminosa para embalar meus escritos. Amiga, te entrego minha gratidão
em em rosas brancas. Minha criança interna dança sempre quando te vê.
À casa Toya Jarina e Ogum Beira-Mar, minha família do santo. Pela gratidão de
sentir juntos para vocês eu canto: “Ô gira deixa a gira girar!”
À Muriel, meu sol noturno, pelas noites ao meu lado. E à Lisbela por me ensinar
sobre o tempo.
Gratidão aos irmãos, Pedro e Diego. O primeiro por ser exemplo e o segundo por
ser cuidado.
Aos barrigudos, Paulo e Izabela, pelas vezes que desfizeram minha tensão com
bom humor. Minha gratidão para vocês, górdos é em convite para comer.
À Luciana Martins, meu obrigada embalado em algodão doce, laço e fita pela brisa
leve que traz no sorriso e no abraço.
Estrelas brilhantes para a polarínea Nathália Lobato, por materializar em imagem
o que não coube nas palavras.
À Kátia e Paulo Lima, por todo apoio, carinho e cuidado que dedicaram a mim
fazendo eu me sentir em casa.
Ao amigo Ozzu, gratidão pela companhia espaçosa.
Um abraço quente como café preto, que nunca faltou nas tardes, na tua casa, Bel
Fares. Você fez de meu voo-pesquisa mais seguro ao me mostrar que é possível ser
“puxada por ventos e palavras.” Quem fica ao teu lado sai encharcado de poesia.
Um abraço longo e um salve à Dani Lobato, pela nossa caminhada, por cima das
folhas, unidas pelo poético.
Um poema-abraço à Dia Favacho pela ressonância da voz e às minhas
miçangueiras favoritas: Margareth, Tereza e Patrícia de parceria e close certo!
Abraço a cada navegante do Rio, turma 12 do mestrado, por descontruir a máxima
tradicional do par concorrente e criar a nossa: Mestrado poder ser leve!
Aos profs. Denis Bezerra e Renilda Bastos, agradeço pelas contribuições e por me
inspirarem, desde a graduação, a subverter o que está posto.
Gratidão em flor à Denise Simões, que com sua espada brilhante, me incitou, no
primeiro encontro, ainda na entrevista de seleção, defender o que acredito com a força de
uma guerreira. Professora, “eu estou feliz porque eu também sou da sua companhia.”
Ao CUMA, núcleo de pesquisa, em que construí verdadeiras relações de afeto.
À FAPESPA, pelo suporte financeiro.
Aos meninos da secretaria do PPGED: Joaquim, Jorginho e Carlos sempre
dispostos a ajudar com um abraço ou um café quente.
À professor Atena por deixar-me entrar em sua sala de aula.
Aos intérpretes que trouxeram a poesia pulsante para estas páginas.
E uma braçada de flores a você leitor. Agora, senhor deste texto.
Saravá!
RESUMO
A partir das poéticas amazônicas trabalhadas no espaço-escola, a escritura desta
dissertação analisa como a experiência com a poesia pode contribuir para a educação
sensível. De uma abordagem qualitativa, a pesquisa tem como lócus uma escola da rede
estadual, localizada na região metropolitana de Belém, e, como intérpretes, alunos de uma
turma do 6º ano do Ensino Fundamental e uma turma da quarta totalidade da Educação
de Jovens e Adultos (EJA). O que se quer é mostrar as chaves que servem à poesia desde
os conceitos da crítica literária, a movência e maneira que ela socialmente é transmitida,
bem como questões que envolvem a sua escolarização. Diante dessas questões trazemos
a estética da recepção como metodologia apoiada na categoria experiência a partir dos
estudos de Larrosa (2017), que se mostra pela recepção que os intérpretes tiveram do
texto poético, resultado que se tece tanto em texto escrito quanto em desenho. Como
aporte teórico utilizamos como base, principalmente, os escritos de Paul Zumthor (1993)
e de autores que contribuem com o debate das poéticas, da estética da recepção e da
educação sensível, entre os quais citamos: Antônio (2002), Araújo (2008), Barthes
(2015), Eco (2001), Zilberman (1989), Lajolo (2001), Loureiro (2001) e Paz (2012).
Neste estudo demonstro de como a poesia mexe com os sentidos, vaza para o papel, e o
branco da página põe-se a florescer.
PALAVRAS-CHAVE: Poesia. Estética da Recepção. Educação Sensível.
ABSTRACT
Based on the Amazon poetics worked in the space-school, the writing of this dissertation
analyzes how the experience with poetry can contribute to sensitive education. From a
qualitative perspective, the research has as locus a school of the state network, located in
the metropolitan area of Belém, and, as interpreters, students of a sixth grade class of
elementary school and a group of the fourth totality from Education of Young and Adults
(EJA). What is wanted is to show the keys which serve poetry from the concepts of
literary criticism, the movement and manner that it is socially transmitted, as well as
issues that involve its schooling. Considering these issues we bring the reception
aesthetics as a methodology based on the experience category from the studies of Larrosa
(2017), which is shown by the reception that the interpreters had of the poetic text, a result
that is woven both in written text and in drawing. As a theoretical contribution, we mainly
use the writings of Paul Zumthor (1993) and authors who contribute to the debate of
poetics, reception aesthetics and sensitive education, among whom we name: Antônio
(2002), Araújo (2008), Barthes (2015), Eco (2001), Zilberman (1989), Lajolo (2001),
Loureiro (2001) and Paz (2012). In this study I demonstrate how poetry affects the senses,
leaks into the paper, and the white of the page begins to bloom.
KEY WORDS: Poetry. Reception Aesthetics. Sensitive Education.
Lista de Imagens
Imagem 01 — Livro didático I.......................................................................................64
Imagem 02 — Livro didático II.......................................................................................65
Imagem 03 — Livro didático III.....................................................................................66
Imagem 04 — Livro didático IV.....................................................................................67
Imagem 05 — Livro didático V......................................................................................68
Imagem 06 — Livro didático VI....................................................................................69
Imagem 07— Livro didático VII....................................................................................70
Imagem 08 — Poesia amor.............................................................................................81
Imagem 09 — La bamba.................................................................................................82
Imagem 10 — Borboletário.............................................................................................99
Imagem 11 — Mônica e a borboleta...............................................................................100
Imagem 12 — Poesia pra mim é voar. Flutuar na Leitura............................................115
Imagem 13 — Lugar lindo de se viver..........................................................................117
Imagem 14 — Poesia é isso...........................................................................................118
Imagem 15 — Lua.........................................................................................................120
Imagem 16— A história do boto cor de rosa.. ..............................................................122
Imagem 17 — Boto cor de rosa 1..................................................................................122
Imagem 18 — Boto cor de rosa 2..................................................................................122
Imagem 19— Boto cor de rosa 3...................................................................................123
Imagem 20 — Boto cor de rosa 4..................................................................................123
Imagem 21 — Boto cor de rosa 5.................................................................................124
Imagem 22 — Boto cor de rosa fim.............................................................................124
Imagem 23 — Som de Chuva.......................................................................................129
Imagem 24 — Chuva de pipoca....................................................................................130
Imagem 25 — O som das cigarras.................................................................................131
Imagem 26— Uma árvore de sons................................................................................131
Imagem 27 — O som da peteca....................................................................................132
Imagem 28 — O som da pia..........................................................................................133
Imagem 29— Quadrinho A Baladeira 1........................................................................136
Imagem 30— Quadrinho A Baladeira 2........................................................................137
Imagem 31— Quadrinho A Baladeira 3........................................................................138
Imagem 32— Pulf........................................................................................................ 141
Imagem 33— Uma flor..................................................................................................142
Imagem 34 — Quadrinho procissão do senhor morto 1................................................144
Imagem 35— Quadrinho procissão do senhor morto 2................................................ 145
Imagem 36— Quadrinho procissão do senhor morto 3.................................................146
Imagem 37— Dois dias depois......................................................................................147
Imagem 38— Fim..........................................................................................................149
Imagem 39— Era um comedor de fogo........................................................................151
Imagem 40 — Lembrança de um espantalho................................................................151
Imagem 41— The end...................................................................................................153
SUMÁRIO
PROCURA DA POESIA ............................................................................................... 14
1 TROUXESTE A CHAVE? ......................................................................................... 24
1.1 A herança de Apolo: a poesia da letra .................................................................. 31
1.2 O caminho para o Olimpo ..................................................................................... 40
2 ESTÉTICA DA RECEPÇÃO: uma experiência poética ............................................. 51
2.1 Letras que contam: formação do leitor ................................................................. 56
2.2 Caminho de Ítaca: por uma educação sensível ..................................................... 75
3 UMA PÁGINA EM BRANCO LANÇADA: a recepção livre ................................... 89
3.1 O desenho do verbo ................................................................................................ 112
3.2 O fogo de Prometeu: Eles escrevem em versos! .................................................... 155
CHAMA POÉTICA ..................................................................................................... 169
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 172
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PROCURA DA POESIA
“Certa palavra dorme
na sombra de um livro raro.
Como desencanta-la?
É a senha da vida
A senha do mundo
Vou procura-la.”
(Carlos Drummond)
“A poesia pertence a um pequeno número de atividades totalmente
desinteressadas, improdutivas” (ZUMTHOR, 1997. p. 34). Para quem aceita o desafio de
aproximar-se, de tomá-la como estudo, ela se torna uma aventura de descobrimento, de
revelação, de encontro. Bem como uma ventura, pois ela pode nos levar por caminhos
inesperados. E uma vez tocados pelo verbo, os nossos sentidos são despertos. Para mim,
a ventura se deu quando decidi fazer seleção para o Programa de Pós-Graduação da
Universidade do Estado do Pará, período em que eu ainda estava vivendo meu reencontro
com o poético. Um dos primeiros entraves que tive foi sobre o que pesquisar, visto que
um dos critérios para escolha do objeto de pesquisa é a sua relevância acadêmica e social.
Estava afastada da universidade e não sabia por onde começar.
No entanto, percebi que o objeto de pesquisa estava comigo há muito tempo,
mas não sabia se o que ansiava investigar seria de interesse para a Academia, já que o que
me movia era um tema que parecia estar em outras paragens. Uma certeza eu tinha: só
conseguiria levar uma pesquisa adiante para fazer o que gosto. E, assim, deixei os receios
de lado e decidi arriscar no que acreditava. Ao iniciar a produção, percebi que estava
escrevendo mais que um projeto, o que colocava naquelas linhas era a história de uma
relação.
Era a minha história com a poesia, que trago, literalmente, escrita no corpo: “a
poesia é o presente” (GULLAR, 2010, p.28). Precisei olhar para o que está posto, para a
maneira que verbo adere à vida das pessoas, pois, o tema não nascia apenas deste afeto
prazeroso, surgia principalmente de uma angústia que guardava há muito: por quê a
poesia, com a qual tanto me identifico, é considerada difícil para a maioria das pessoas?
A causa dessa angústia é de tempos distantes e, para falar sobre isso com
segurança, precisei fazer um mergulho mnemônico e, nele, perceber que o encontro com
a poesia foi tardio. Tarde, porque só adulta descobri que passei a vida toda acreditando
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que poesia era somente o que havia nos poemas dos livros didáticos da escola. E, quando
lembro dessas atividades, percebo que havia poemas, mas e poesia?
O meu primeiro contato com o texto poético foi no verso da letra, ainda nas
séries iniciais do Ensino Básico e, na época, ao invés de ser estimulada a descobrir as
possibilidades daqueles poemas, tinha apenas que desenvolver a competência gramatical
imposta nas tarefas da aula. E a cada encontro, a gramática rompia o sonho e a fruição
que poderia haver com o poético.
Entre tantas situações que me afastaram da poesia, uma deixou sua marca, como
se a deusa Mnemosyne tivesse se encarregado de guardar esse dia. Aconteceu quando tive
o encontro com os modernos. Mesmo com o desconforto com as atividades envolvendo
poesia, Literatura era uma das minhas disciplinas preferidas e, nesse dia, conheci um dos
poemas mais famosos de Drummond. Ao ler que No meio caminho tinha uma pedra
(ANDRADE, 2013, p. 36) a sala de aula ficou pequena para tudo o que esse poema
despertou em mim. Até que a professora perguntou-me o que o poeta queria dizer com a
pedra. Tentei, em vão, falar de minha recepção desses versos, porém tudo que senti ao lê-
los foi inútil para a finalidade que a professora esperava. Frustrada, só sentia toda a poesia
indo embora e, dali em diante, disse para mim mesma que poesia era difícil demais. Já
não sentia segurança para escrever o que sentia ao ler poemas. Parei de ler. Essa memória
marcou e me afastou da poesia por anos.
Com o tempo essa angústia cresceu, virou um nó, pois vi que essa poesia da
escola não era difícil apenas para mim. Trouxeste a chave? (ANDRADE, 2013, p. 12),
perguntava-me Drummond e não via nem mesmo a porta. O poema estava lá, mas a poesia
não. Seguimos separadas. E para colocar um ponto (final?) na relação veio o vestibular.
Teria que saber todas as características das escolas literárias, precisar decorar a biografia
dos autores, lembrar os textos célebres. Havia tantos e tantos poemas. Mas poesia nada.
Eu era uma leitora. Passeava pelos clássicos, gostava de um romance como ninguém. Mas
evitava a todo custo a poesia do verso, não conhecia a prosa poética, bastava ver um texto
em verso que fechava o livro. Fiz de minha experiência negativa minha própria pedra.
Era o momento de escolher uma profissão. Como era uma péssima calculista e
também não me encontrava com as biológicas, sabia que precisava ir para as Ciências
Humanas. Tive um raciocínio prático: quem gosta de ler faz Letras (!), acabei escolhendo
o curso de Licenciatura em Letras, Língua Portuguesa, por eliminação.
Cheguei à Universidade do Estado do Pará me agarrando às Letras como a ponte
para ter um curso superior. No primeiro ano, encontrei um professor que era a erudição
16
em pessoa em suas concepções literárias universais1, foi a gota d’água. Até a Literatura
passou a estar num lugar distante, passei a ver a minha companheira como uma senhora
fina e cheia de caprichos, e estava cada vez mais longe da poesia.
Mas esse era só o primeiro ano, ainda estava para encontrar outros mestres, três
grandes personagens que viriam mudar minha história. A primeira, uma Eneida com olhos
de cigana. Usava saias compridas, feito sua risada. Fazia uma roda de leitura na sala de
aula e discutia os textos com uma verdade que fazia seus olhos brilharem. As cópias, que
para nós deixava, eram cheias de comentários graciosos. Essa Eneida me ensinou sobre o
valor da Literatura Infantil e me apresentou seus velhos amigos, os clássicos, que agora
sim, pareciam como os Pretos Velhos que tem muito para ensinar e estão perto da gente.
Mas ela passou por mim feito um cometa brilhante, em razão de minha turma imatura que
não soube aproveitar tudo que ela tinha para nós. Eneida que era, nem se despediu e
seguiu para outras turmas. No entanto, com sua saída pude conhecer o segundo
personagem:
“Todas as crianças crescem, menos uma” (BARRIE, 2013, p.11). Ele foi meu
Peter Pan. Um ser absolutamente jovem. Em tudo. Com seu vocabulário peculiar, fez-me
entender que podemos saber muito sem precisar saber tudo, que a Literatura é para todos.
E que os livros são tesouros que devem ser partilhados.
Por fim, o último personagem que mudou completamente minha vida e minha
relação com as letras. Um artista! Era diferente de todos os professores que tivera, sua
disciplina: Literatura Amazônica. Quando falava mexia o corpo todo. Nunca sentava-se,
a sala era um palco. Certa vez, trouxe vários poemas de escritores amazônicos, sugerindo
que começássemos por Paulo Plínio Abreu. “Alguém gostaria de compartilhar sua
leitura?” Receosa, li tateando O comedor de fogo. Ao fim, diferente da professora do
Ensino Básico, não ouvi perguntas sobre o que o poeta queria dizer, muito menos sobre
o que significavam os cães doentes no poema. Ele somente entoou: “Mais alguém?”. E
outras pessoas pediram a voz. A cada leitura, um tom diferente e a cada olhar, um novo
poema. Foi ali que a poesia renasceu para mim.
Ainda na graduação, quando comecei a fazer os estágios de prática docente,
percebi que a relação que tive com a poesia no período escolar não era uma
particularidade minha. O espaço-escola no qual atuei fazia parte da rede pública e, ao
observar os textos trabalhados, não via fruição na leitura dos alunos. Para além desta
1 Concepções Literárias Universais é uma disciplina que faz parte da grade curricular do Curso de
Licenciatura Plena em Letras Língua Portuguesa da Universidade do Estado do Pará.
17
prática, também percebi que o material utilizado não incluía o contexto amazônico. Isto
é, o que acontecera comigo se repetia com muitos leitores. Entendi que o primeiro contato
deles com a poesia contempla, geralmente, apenas o texto escrito. Desta forma, o primeiro
equívoco que temos na escola é confundir poesia com poema — O poema, na maioria das
vezes escrito em versos, é uma composição em linguagem multívoca. Poesia, ainda que
se chame, de forma genérica, ao gênero lírico, está para além dos limites do poema, é o
efeito estético, podendo estar em muitas formas de linguagem —. O segundo é a comum
utilização do texto poético como pretexto para trabalhar conteúdos de Gramática.
Com as experiências de professora e leitora, percebi que a poesia está em um
lugar distante do leitor comum, onde apenas os “eruditos” podem chegar, como se
estivesse na morada dos deuses, o alto Olimpo. E me perguntava: se a poesia nasceu da
tradição oral, se muito antes de estar no texto escrito está na voz, como foi parar ali?
A montanha do Olimpo, cujo topo alcança quase três mil metros de altitude, é
considerada o ponto mais alto da Grécia. Escolhi essa metáfora por entender que,
conforme coloca Kury (1990) sobre a mitologia grega, o monte abriga os principais
deuses de seu panteão e é visto pelos gregos como uma mansão de cristais maciça, bela e
imponente, lugar ideal para a majestade dos imortais. A poesia para grande maioria dos
leitores encontra-se em num lugar distante como o Olimpo.
A inquietação que atravessou minha proposta era a forma como a poesia vem
sendo apresentada na escola aos leitores; a separação que há entre eles; a não-fruição. A
pesquisa, então, nasceu do desejo de tentar contornar essa ruptura e buscar no debate
teórico-conceitual uma compreensão aplicada da temática, uma resposta que possa ser
um alento ao que, para mim, sempre soou como uma injustiça ao leitor: a perda do olhar
poético que ele traz quando criança e que a instituição enquadra e limita.
Para compreender a referida temática, chego à questão-problema da pesquisa:
como a experiência de educar pelo poético pode contribuir para a formação do leitor no
contexto escolar amazônico?
Direcionada pela pergunta, bem como pela situação exposta, chego aos objetivos
da pesquisa, em que apresento como objetivo geral: oferecer condições para que a poesia,
enquanto experiência estética, possa se entrelaçar às vivências do leitor e que este a
perceba para além dos padrões estabelecidos pela escola. Como específicos, proponho:
oferecer aos leitores uma aproximação com a poesia, despertando-os para o universo
amazônico; identificar, a partir da teoria da Estética da Recepção, como a experiência
com o texto poético pode contribuir para a educação sensível.
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Os estudos de crítica literária apontam para análises mais restritas ao texto
literário, estudar a Estética da Recepção pela fruição do leitor abre espaço para novos
horizontes de expectativas previsto em Jauss (1979). Com a experiência de professora e
de leitora, notei que a pesquisa precisava desenvolver-se no espaço-escola onde,
normalmente, o leitor tem seu primeiro contato com o texto poético. Desta forma, o objeto
de pesquisa concentra-se na recepção da poesia. O corpus de análise do estudo se
constitui, pois, das teorias que fundamentam a Estética da Recepção e aqui incluímos
também como um método.
Assim, comecei a pesquisa e, como um dos primeiros passos, busquei fazer o
estado da arte. O levantamento foi realizado em bancos de dados de universidades
brasileiras, a partir dos descritores relacionados ao tema e, de forma mais minuciosa, no
repositório da Universidade do Estado do Pará (UEPA). Observei que as pesquisas das
universidades que abordam a poesia no contexto escolar, geralmente, focam na análise
dos Parâmetros Curriculares Nacionais e tem, principalmente, o professor e o currículo
como objeto. Tal abordagem não contempla esta pesquisa, visto que minha perspectiva
para o estudo é a recepção que aluno terá de textos poéticos. Já as dissertações
encontradas no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED) tem uma
aproximação maior com o estudo, abordam as poéticas amazônicas a partir da educação
sensível e incluem os processos educativos vivenciados no cotidiano do aluno amazônico.
Cito, adiante, algumas pesquisas com as quais senti uma aproximação maior com
meu objeto e foram como portas abertas para o caminho que segui, textos que trazem o
debate da educação pelas poéticas amazônicas, dissertações apresentadas ao PPGED da
UEPA, orientadas pela Profa. Dra. Josebel Fares: O lugar dos saberes amazônicos no
ensino da disciplina literatura, Eliana Pires de Almeida (2012); Imaginário Poético em
Antônio Juraci Siqueira, por uma abordagem literária na educação da Amazônia, Ivone
Caldas Carvalho (2013); As mitopoéticas na obra de Paulo Nunes: ensaio sobre
literatura e educação na Amazônia, Nathália da Costa Cruz (2013); Cartografias poéticas
em narrativas da Amazônia: Educação, Oralidades, Escrituras e Saberes em diálogo,
Danieli dos Santos Pimentel (2013). Era uma vez... A Cobra Grande na voz dos pequenos
intérpretes cametaenses, Kezya Thalita Cordovil Lima (2014); Educação, Memórias e
Saberes Amazônicos: Vozes De Vaqueiros Marajoaras, Délcia Pereira Pombo (2014);
Boto em gente, gente em boto saberes, memória e educação na Amazônia, Zaline do
Carmo dos Santos Wanzeler (2014); Tessituras poéticas: educação, memória e saberes
em narrativas da ilha grande/Belém-Pará, Andréa Lima de Souza Cozzi (2015);
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Educação Sensível na voz de calados: poesia e memória em regime crepuscular, Dia
Errmína da Paixão Favacho (2017).
Ainda na UEPA encontrei projetos de pesquisa que promoveram atividades de
fruição com a literatura amazônica, entre os quais destaco: O lúdico na literatura infantil
– projeto de extensão (2007/2009), que, através de oficinas, implementou ações que
buscavam refletir os conceitos da infância a partir da história da literatura infantil e de
obras de autores infantis, inclusive os da Amazônia; Leitura e memória – projeto de
extensão (2010), atividade que partiu das ações desenvolvidas pelo CUMA, com início
em 2005, no projeto Arte no Pão, realizado no Asilo do Pão de Santo Antônio, que
promoveu uma integração entre estudantes, professores e idosos do asilo por meio da
leitura.
Também como fonte de material, utilizei projetos de iniciação científica como:
Literatura e recepção das poéticas amazônicas: uma experiência de leitura (PIBIC/
2007); Literatura: recepção, memória e imagens da escola (PIBIC/2008/09); Memória
de Cordel: recepção e ensino (PIBIC/2009/10) Lúcia, Lindanor e Eneida: memória,
recepção e leitura (PIBIC/2010/11); Símbolos culturais na literatura amazônica
(PIBIC/2010/11); Faustino, Barata e Plínio: Educação e recepção da poesia amazônica
(PIBIC/2011/12).
Além das dissertações e projetos encontrados na UEPA, outras pesquisas
realizadas dentro e fora do estado também abordam o tema das poéticas amazônicas
como: Memórias de rios e de lagos na construção romanesca: leitura de narrativas da
Amazônia paraense, Elizabete de Lemos Vidal (2008) da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Poéticas Amazônicas: espaços da memória, oralidade e identidade na
prosa de Maria Lúcia Medeiros, Lylian José Félix Da Silva Cabral (2013), da
Universidade Federal de Pernambuco. Mitopoética dos Muyraquitãs, Porandubas e
Moronguetás: ensaios de etnopoesia Amazônica, Harald Sá Peixoto Pinheiro (2013) da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Entre partidas e chegadas: matrizes
poéticas de imigrantes de Paragominas-PA, Aida Suellen Galvão Lima (2014) da
Universidade da Amazônia.
Constituir o estado da arte foi fundamental para que não me deixar cair na
vaidade do ineditismo, pois como foi demonstrado, as pesquisas citadas são apenas um
pequeno recorte de todo arcabouço teórico que há sobre as poéticas amazônicas.
Escolher o lócus de pesquisa foi como voltar para casa, a instituição escolhida
foi onde havia realizado os estágios de prática docente da graduação (entre 2010 e 2011)
20
e onde também trabalhei como voluntária do Programa Mais Educação do Governo
Federal 2(de 2013 a 2015). Durante os anos envolvida nesse projeto pude contar com o
apoio de uma professora, que em muitas ocasiões dividiu ou cedeu espaço para que
realizasse as atividades relacionadas à prática docente.
Então, minha entrada em campo foi possível graças ao espaço que essa docente
cedeu. Importante dizer que durante toda a pesquisa ela esteve comigo em sala de aula,
de forma que as atividades eram feitas nos minutos finais de sua aula e por não poder
conduzir as atividades sozinha em muitas situações a interferência da professora precisou
ser tolhida de forma polida, práticas que não puderam ficar de fora de minha narrativa. E
por essa circunstância, muitos momentos me colocaram diante das situações que critico
nesta pesquisa, e por isso optei por não divulgar o nome da instituição, o nome dos alunos
e nome da professora. Assim, escolhi um nome fictício para a Instituição: Escola Olímpia.
E à professora que me acompanhou chamei de Atena.
Localizada em perímetro urbano, Olímpia conta com uma infraestrutura básica
(vinte salas de aula, laboratórios de informática e ciências, biblioteca, auditório, quadra
de esportes, refeitório e etc.), os alunos são em sua maioria moradores dos arredores e dos
bairros próximos.
Atena abriu as portas de sua sala, assim pude contar com as turmas que ela
disponibilizou. Com carga horária completa, a professora leciona no turno vespertino
tanto para turmas do 6º ao 9º ano, como para as três séries do Ensino Médio, com as
disciplinas: Língua Portuguesa, Literatura e Redação. E no período noturno, para as
turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Por isso, as possibilidades para realizar
a pesquisa eram inúmeras e tornaram a escolha difícil. Que critérios utilizar?
Desta forma, para escolher os intérpretes, mais uma vez a memória foi guia.
Lembrei-me de minha experiência e, assim, optei pelos alunos do 6º ano do turno da
manhã e alunos da quarta totalidade da EJA no turno da noite. A escolha de crianças do
6º ano leva em consideração a fase de transição que elas passam, “na ingenuidade
primeira que devem ser consideradas as imagens fantásticas” (BACHELARD, 1990. p.
60), além do que, tem um olhar mais livre e uma perspectiva que ainda não foi tão
formatada pela escola. Em contrapartida, os intérpretes da quarta totalidade são alunos
2 O Programa Mais Educação, criado pela Portaria Interministerial nº 17/2007 e regulamentado pelo
Decreto 7.083/10, constitui-se como estratégia do Ministério da Educação para indução da construção da
agenda de educação integral nas redes estaduais e municipais de ensino que amplia a jornada escolar nas
escolas públicas, para no mínimo 7 horas diárias, por meio de atividades optativas nos macrocampos: acompanhamento pedagógico; Fonte: http://portal.mec.gov.br acesso em 06.03.2018.
21
que, em sua maioria, já passam pelo ensino regular e ao retornar, geralmente, trazem certa
resistência à leitura. Por isso escolher a EJA, além de um contraponto dentro da pesquisa,
é uma forma de proporcionar a aos intérpretes novas experiências com a palavra poética.
Utilizo o termo “intérprete”, por entendê-lo como a expressão que mais se
aproxima ao campo das poéticas, empregado a partir do conceito proposto por Zumthor
(2010, p. 239). Para ele, “é o indivíduo de que se percebe, na performance, a voz e o
gesto, pelo ouvido e pela vista. Ele pode ser também compositor de tudo ou parte daquilo
que ele diz.” Contexto em que o intérprete possa experimentar essas possibilidades de
recepção do poema.
A escolha de períodos e intérpretes distintos visa que, a partir do caráter artístico
e dialógico do texto poético, a poesia possibilite que eles possam sentir-se leitores na
construção de sentidos para o texto e para as suas vidas, isto é, a educação sensível, que
não busque apenas a transferência de conhecimento, mas o ato de conhecer e educar.
O objeto de estudo é a recepção do texto poético, a princípio considerou-se incluir
a poesia que está em outras linguagens como as artes plásticas, a fotografia, as produções
cinematográficas, mas após as considerações decorrentes da banca de qualificação, bem
como pelo que vivenciei em campo, percebi que a poesia que está no Olimpo é poesia da
letra, que inclui tanto o texto poético em verso como em prosa. A poesia que me refiro
aqui é aquela entendida no sentido estrito de composição verbal, vazada ao gênero
poético, como Literatura.
Os autores escolhidos para o desenvolvimento da pesquisa são que os compõem
a poesia amazônica, com textos que figuram a identidade a partir de elementos caros à
cultura. Escritores que, para Loureiro (1995), utilizam a função estética como base para
compreensão do imaginário e evocação mitológica desse imaginário, forma em que o
homem/artista amazônico é governado pelos sentidos e como os mitos vêm explicar a
realidade quando é inexplicável, numa miscelânea de real e irreal.
A escolha dos autores foi pela dimensão da memória, em textos que para mim
pudessem figurar em corpo, voz e gesto de uma poesia que tocasse os sentidos dos
leitores, assim recorri às leituras que fizeram parte de minha formação, ainda que tardia,
de leitora de poesia. Como, por exemplo, poetas que conheci na disciplina de Literatura
Amazônica como Paulo Plínio Abreu (2008), Thiago de Mello (2009), livros que me
levaram a lugares inesquecíveis como Aruanda de Eneida (1989) ou Itaira de Lindanor
Celina (1995). A intenção inicial era levar uma amostra significativa de autores
amazônicos. Ao fim do período em campo, ainda que muitos autores tenham ficado de
22
fora, cito aqueles que foram trabalhados: Adalcinda Camarão (1995); Paes Loureiro
(2008), Juraci Siqueira (2012), Paulo Nunes (2010), Dulcinéia Paraense (2011); e da
prosa: Haroldo Maranhão (1992), Maria Lúcia Medeiros (1994). Importante dizer que
para chegarmos ao resultado desse corpus, uma longa seleção foi feita, pois de cada texto,
a média de recepções foi de 15 na EJA e 25 no 6º ano.
‘O amor à palavra é uma virtude; seu uso, uma alegria.”, diz Zumthor (1993, p.
73), que por sua veia poética foi a voz essencial desse estudo, e sua ressonância é vibrante
até as últimas páginas. A poesia enquanto alimento do vivido e força motriz desse
caminhar compõe esse corpus, também como teoria, pois há percepções que as palavras
que tinha já não serviam para dizer o que precisava, coisas que só cabem no poema, assim
para que essas experiências não de desgastassem ou se fossilizassem recorri à poesia. Para
além disso, todos os textos partilhados com os intérpretes compõem as sessões. No mais,
a estrutura textual deste trabalho se organiza em três sessões.
Na primeira sessão, intitulada Trouxeste a chave? começo por uma breve
apresentação, em que exponho como a poesia é concebida a partir da Teoria Literária por
nomes consagrados pela crítica como T.S. Elliot (1991), Alfredo Bosi (2000), Ezra Pound
(2006), usando como aporte principal Mário Faustino (1976) a partir do livro Poesia-
Experiência. No item A herança de Apolo: A poesia da letra, a partir dos escritos de A
letra e a voz de Zumthor (1993), percorro o caminho que a poesia fez da tradição oral
para a escritura. Ainda nesta sessão, no item O Caminho para o Olimpo, mostro uma
discussão em torno das racionalidades científicas e dos motivos que influenciaram o lugar
que a poesia ocupa nas instituições de ensino e a forma que é recebida pelos leitores.
No segunda sessão, Estética da Recepção: uma experiência Poética, apresento as
teorias que fundamentam a Estética da Recepção e as poéticas amazônicas, fazendo esse
percurso teórico com autores como: Hans Robert Jauss, traduzido por Luiz Costa Lima
(1979), Regina Zilberman (1989), Paes Loureiro (1995), Josebel Fares (2008), Umberto
Eco (2001), Marisa Lajolo (2001), Paul Zumthor (2014), trazendo as primeiras
experiências realizadas no lócus, com alunos de uma turma de Educação de Jovens e
Adultos.
No item Letras que contam: a formação de leitores, analiso sobre essa temática
tão discutida no âmbito da educação, trago autores bem como conto da intempérie que foi
recomeçar com turmas novas, pois por uma situação burocrática não pude continuar com
os primeiros intérpretes. O que se coloca não é propor um debate das deficiências e
23
ausências da formação já conhecidas por todos, mas trazer os estudos que abordam a
resistência contra esse modelo.
O último item da sessão: Caminho de Ítaca: por uma educação sensível, anuncio
a categoria que fundamenta a Estética da Recepção como um método: a experiência. E
como primeiro passo, explico como a categoria, a partir dos escritos de Larrosa (2015),
mostra que pelo poético a educação sensível pode ser um percurso que olhe mais para o
vivido no caminho da educação do que para os seus resultados.
Na próxima sessão Uma página em branco lançada: a recepção livre, mostro
como o leitor se comporta diante da página em branco, sem que se crie sobre ele uma
expectativa de resposta dirigida. Livre para falar de seu sentir, consegue fazer uma
conexão mais íntima com o texto poético. Para me conduzir por esses escritos conto com
Paz (2012) e as iluminuras que O arco e a Lira trouxeram para mim.
Em O desenho do verbo, acompanhada de Bachelard (1986) e Manoel de Barros
(2013) trago as recepções dos intérpretes do 6º ano, a partir de seus desenhos, que foram
a maneira que eles ficaram mais à vontade para expressar como a poesia os tocou.
No último item, O fogo de Prometeu, a reunião das recepções que se mostraram
pelo verso, por intertextos de outros poemas bem como pela escritura de poemas autorais.
Quem me sopra os ouvidos para ler esses versos é aquele que acreditou na Utopia da
palavra, Antônio Severino (2002).
Importante dizer que esta escritura se configurou, em sua estrutura, como um
trabalho ensaístico e suas sessões foram construídas de forma interligadas, mas
independentes, como uma dança circular em que os autores chegam, fazem sua
performance, dão espaço para outros passos, mas continuam no círculo. Ao longo do
texto, também figura tal dança a alternância dos pronomes em primeira pessoa do singular
e do plural, devido aos momentos em que minhas escolhas dividiram protagonismo com
as de minha orientadora.
Para encerrar, entrego ao leitor as páginas que se seguirão, reflexo de minha
procura pela palavra mágica, de uma pesquisa que iniciou de uma angústia, um sonho e
muitas lacunas. Convido os olhos que miram esses escritos a conhecer o voo desta
aventura de descobrimento e sobretudo de encontro com o poético.
24
1 TROUXESTE A CHAVE?
Na Grécia antiga, mítica e heroica, quando a poesia — pelas manhãs de “róseos pés”
dos poemas de Homero — começava a caminhar na infância de si mesma, já estava ela
entranhada na alma das palavras e trazia o imaginário na essência da linguagem significante.
(Paes Loureiro)
Há muito tempo filósofos, poetas, críticos, ensaístas, teóricos, todos tentaram
definir poesia, e seu conceito é uma porta que pode ser aberta por inúmeras chaves. Os
filósofos teorizaram-na como forma de conhecimento, os poetas dedicaram-lhe inúmeros
versos metalinguísticos, a crítica literária tentou racionalizar sua definição e o senso
comum, geralmente, confunde poesia com poema. Por isso, antes de “vir o dia quando
tudo que eu diga seja poesia” (LEMINSKI, 2013, p. 77), necessito recorrer às vozes que,
por minha formação, ainda ecoam no pensamento, pois o entendimento acerca desse
conceito também é alimento para a pesquisa, e fazer um passeio pelas contribuições de
nomes que são fundamentais para a sua compreensão é de grande relevância para este
percurso teórico.
A procura da poesia começa com a linguagem. Gianbattista Vico (2008), em sua
Ciência Nova, conta que a linguagem dos primeiros homens foi expressa por caracteres
poéticos. É o que Nunes (2009) apresenta-nos, quando alude aos primeiros autores do
mundo civil como poetas, pois “enquanto Vico considerou na história da humanidade a
importância de tal linguagem, muitos a desprezaram por não conter os elementos que a
mathesis universalis requeria para torná-la compreensível” (p. 24-26). No entender do
filósofo, essa linguagem poética foi necessária à compreensão dos homens entre si, assim
“a natureza da poesia e do mito não foi simples ornamento nos tempos poéticos, mas
resultado de uma lógica que opera transferindo significados que lhes são familiares ao
que é percebido”(p. 24-26). Desta forma, é importante compreender que a poesia
acompanha o ser humano em sua evolução.
Segundo Ragusa (2013), a poesia, diferente do que temos agora, não era
produzida para a leitura (especialmente a leitura solitária e silenciosa). A autora se refere
a um período que data da Grécia arcaica (c. 800-480 a.C.) em que a poesia denominada
Mélica, termo que figura entre as denominações mais antigas para essa poesia que, a partir
da helenística (c. 323-31 a. C.), sob a influência dos trabalhos na Biblioteca, passou a ser
chamada de ‘lírica’. As composições dessa poesia eram destinadas à performance cantada
25
em coro, ou solo, acompanhadas pela lira em eventos das famílias aristocratas de
governantes ou em cerimônias públicas organizadas pelas cidades para homenagear um
deus. Portanto, a poesia
não era aquilo que o nome “poesia” identifica, mas algo mais próximo
à “canção” [...] inseria-se, assim numa cultura da canção, na qual
funcionava como veículo principal à disseminação de ideias morais,
políticas e sociais (RAGUSA, 2013, p. 12-13).
É possível aproximar os estudos da autora aos de Erza Pound (2006, p. 160),
quando diz que “jamais recuperaremos a arte de escrever poesia para ser cantada”. Aos
de Pignatari (2004, p. 9), quando comenta que “a poesia parece estar mais ao lado da
música e das artes plásticas. [...] é um corpo estranho nas artes da palavra”. Para
finalmente chegar aos de Paul Zumthor (2010, p. 8), quando para ele “o simbolismo
primordial integrado ao exercício fônico se manifesta eminentemente no emprego da
linguagem, e é aí que se enraíza toda poesia”.
Por todos os autores citados, verifica-se que a poesia, antes de estar na escrita,
esteve na voz. Desta forma, sua referência primeira vem das tradições orais, que a maioria
dos estudiosos relevam: a poesia oral. Ainda em Zumthor (2010, p.9), encontramos a
resposta a esta ocorrência:
em razão de um antigo preconceito em nossos espíritos e que performa
nossos gostos, todo produto das artes da linguagem se identifica com
uma escrita, donde a dificuldade que encontramos em reconhecer a
validade do que não o é. Nós, de algum modo, refinamos tanto as
técnicas dessas artes que nossa sensibilidade estética recusa
espontaneamente a aparente imediatez do aparelho vocal. As
especulações críticas dos anos 1960 e 1970 sobre a natureza e
funcionamento do “texto” deixaram de contribuir para clarear por este
lado o horizonte e ainda o embrumaram mais, recuperando, travestida
ao nosso hábito mental, a antiga tendência de sacralizar a letra.
O que o medievalista nos propõe é rever essa sacralização da ideologia letrada,
que tem na escrita seu fundamento maior e que, por praticidade, condiciona à poesia oral
a designação do termo “folclore”. Comumente empregada de forma reducionista, “a
palavra folclore se desdobrou, remetendo, por um lado, a um conceito muito vago, ao que
vários etnólogos negam qualquer valor científico e, por outro lado, a diversas práticas de
recuperação dos regionalismos” (ZUMTHOR, 2010, p. 19). Outra expressão usualmente
empregada e criticada pelo autor é o adjetivo “popular”, muito utilizado com o termo
26
poesia. Tal emprego acaba por diluir uma corrente de conhecimento, relegando-a à uma
cultura subalterna.
O que esses teóricos discutem diz respeito a uma mudança de perspectiva do
entendimento de poesia. A sacralização das letras (escritas) se interpôs a toda poética
oriunda da oralidade. Como exemplo, temos o poema trágico Fausto, de Goethe que,
mesmo baseado em uma lenda alemã medieval, é recebido como literatura clássica porque
é arte assinada. Zumthor (2010, p. 22) nos permite compreender porque aceitamos a obra
de Goethe como clássico literário, escrito baseado na cultura “popular”. O autor comenta
que
no interior de uma mesma classe de texto (apesar de não definido como
tal), será “folclórico” o que for objeto de tradição oral; “ popular”, de
difusão mecânica. Em outros lugares, “a literatura oral” será tomada
como uma subclasse da “popular”, enquanto que alguns se negarão a
ligar essas categorias ou atribuirão (despreocupados com essa petição
de princípio!) o título de “primitivo” a toda poesia “puramente” oral!
[...] O elemento perturbador em tais discussões decorre do recurso,
implícito ou declarado, que nelas se faz a uma oposição não pertinente
neste caso: a que separa o “literário” do não literário ou o que é
designado com algum outro termo, seja ele sociológico ou estético; e
neste caso, eu percebo o literário vibrante das conotações acumuladas
há dois séculos: referência a uma Instituição, a um sistema de valores
especializados, etnocêntricos e culturalmente imperialistas.
O que se faz compreender das passagens acima é que as artes firmadas no codex
literário chegam até nós com o status de literatura. Com isso, a poesia afastou-se do uso
original da compreensão dos homens entre si. Para Zumthor (2014, p. 49), poética é
o uso linguístico de uma comunidade humana como uma rede de
práticas tendo por finalidade a comunicação e a representação, porém,
estruturadas de tal modo que necessariamente uma entre elas,
metamimática, vise à linguagem como outros visam o mundo.
As definições acerca da poesia são ilimitadas e, para Bachelard (1990, p. 83), ela
“demanda uma adesão menos pesada, mais móvel e mais livre [...]. A poesia, pode-se
ainda dizer, desenvolve seus próprios mitos.” Cavalcanti (2012, p. 25) entende que “a
poesia não está nas coisas, ela é as coisas, ou uma maneira de as coisas se mostrarem em
intimidades que só o poeta, e apenas em certos momentos, a ela tem permissão de aceder”.
Para Ezra Pound (2006, p. 40), “a poesia é a mais condensada forma de expressão verbal”.
27
Como vimos, são muitas as possibilidades. Cada autor, à sua época, tem sua
própria “arte poética”, sua chave. Para delimitar a discussão a que esta sessão se propõe,
recorro a outros nomes que também estiveram à procura da poesia.
Mário Faustino (1976), em Poesia-Experiência, no capítulo intitulado “Poética”,
aborda, entre outras questões, a partir de um diálogo entre poetas, duas perguntas
fundamentais: “Para quê Poesia? e “Quê é poesia?”. Para a primeira questão, em sua
concepção a poesia
serve à sociedade testemunhando-a, interpretando-a, registrando as
diversas fases espaciais e temporais de sua expansão e evolução. Nisso
a poesia é como toda arte: um documento vivo, expressivo, do estado
de espírito de certo povo, em dada região, numa época determinada. A
poesia, aliás, é incomparável quando registra—com a capacidade
condensadora e mnemônica de que só ela é capaz—certas nuanças de
ponto de vista, de atitude, de sentimento e de pensamento, individuais
como coletivos, nuanças essas que, muitas vezes, são bem mais
expressivas de um povo e de uma época, do que os grandes
acontecimentos (FAUSTINO, 1976, p. 33).
O pensamento do poeta confere à poesia relevância social, o que direciona o
leitor para a segunda questão proposta pelo autor: a definição de poesia. Esta é muitas
vezes utilizada de maneira supérflua, como forma de adjetivar algo belo, com sentenças
como “a noite estava muito poética”, ou “que música poética!”, e que, para o autor, essa
“atitude só serve para desviar, para confundir princípios”. Ele declara não ter interesse
por essa perspectiva de poesia, propondo uma aproximação relacionada ao conceito de
arte poética, apresentando a concepção da obra literária dividida em dois polos: o poético
e o prosaico, que podem ser diferenciados apenas de maneira formal, a partir de aspectos
concretos como o verso, o ritmo e a linguagem mais concentrada. Tal distinção, para o
autor, se faz por uma questão “puramente acadêmica”, mas que, para compor o horizonte
entre esses conceitos, elucida a diferença:
quando um escritor, tirando palavras do estoque de sua memória,
procura adaptá-las ao objeto de sua criação, fazendo tais palavras
circularem em torno de seu objeto, refletindo-o, comentando-o,
contando-lhe a história, analisando-o, personalizando-o, identificando-
o, etc., queira ou não queira, está entrando no prosaico [...] quando esse
mesmo escritor, colocando-se diante do objeto de sua criação, vê
nascerem em sua mente palavras como que inteiramente novas,
insubstituíveis e essencialmente intraduzíveis que não glosam o objeto
e sim o recriam em um plano verbal, batizando-o de um modo
28
inexplicavelmente novo, tirando-o do caos em que parecia encontrar-se
e colocando-o numa ordem nova — então esse escritor, queira ou não
está caindo no poético (FAUSTINO, 1976, p. 62-63).
A exposição acerca das diferenças entre a composição do escritor não tem por
objetivo dar maior ou menor valor à linguagem, ou mesmo dar um tipo de fórmula de
identificação para ela, o que lê-se são argumentos que vão personificando o poético e o
prosaico como dois lados da linguagem que, apesar de distintos, misturam-se em
confluência híbrida. Para o autor, não há exemplo de obra literária puramente poética nem
puramente prosaica.
Trago paralelo ao exposto, Ferreira Gullar (1995), em seu ensaio Uma voz entre a
natureza e a cultura, que também reflete sobre o papel da poesia e do poeta:
O poeta moderno, que desenvolveu a linguagem literária à sua condição
prosaica, realiza a poesia pela transformação da linguagem prosaica em
linguagem poética. Na concepção da nova poesia, o que há de
fundamental e permanente é a linguagem mesma – a língua – que será,
neste momento, poética e, naquele outro, prosaica. Essa alternância se
dá no âmbito mesmo do poema, já que em nenhum poema todos os
elementos da linguagem se transformam em “poesia”. Ou seja, é o
processo de elaboração da linguagem pelo poeta que transfigura os
elementos verbais e faz com que neles aflore a intensidade da expressão
poética. O poema é portanto, o lugar onde prosa se transforma em
poesia (GULLAR, 2008, p. 1082).
Retomando Faustino (1976, p. 68-69), sobre o conceito de poesia, para o qual não
é possível responder à questão
sem cair na “literatura”— ou literatice. Um estudo semântico da palavra
“poesia”, em qualquer das línguas ocidentais, muito nos afasta tanto de
sua origem etimológica, como do conceito filosófico que lhe possa
conferir. Porque a tradição, o uso, tem chamado de poesia “a beleza”, a
“harmonia”, o “pensamento profundo”, “a imaginação”, “a linguagem
metrificada”, o “verso”, “o conjunto de poemas”, o “poema, etc.—
coisas que, está claro, não tem lá muito com a poiesis dos gregos ou
com a nomeação, a recriação do objeto em palavras
A (in)conclusão do autor demonstra que mesmo que tentemos achar definições,
para ele, o poético não tem de ser compreendido, e sim percebido. O que não significa,
por sua vez, dizer que a poesia é qualquer coisa, ou mesmo limitá-la à música e à imagem,
poesia “é também pensamento” (FAUSTINO, 1976, p. 50).
O poema dá asas à linguagem, permite que a palavra comum ganhe outras
existências. Ao situar como o poema pode causar provocações, Perrone-Moisés (2000),
29
em Inútil Poesia, nos coloca diante da força do poema, das imagens por ele (re)criadas e
do ato de (re)ver a palavra sem o automatismo do cotidiano. “Como se, pela palavra, fosse
possível ao poeta (e ao leitor) reconquistar, de repente, a intuição da vida em si mesma”
(BOSI, 2000, p.136).
O poema questiona a verificabilidade e a referencialidade das
mensagens que nos chegam cotidianamente. O poema vem lembrar,
imperiosamente, que tudo é linguagem, e que esta engana. Que a
linguagem está o tempo todo fingindo-se de transparente, de prática e
de unívoca, e nos enreda num comércio que nada tem de essencialmente
verdadeiro e necessário. [...] A função do poeta moderno é opor-se a
esse comércio aviltante, e propor a utopia de outras linguageiras. Seu
trabalho consiste em “dar um sentido mais puro à palavra da tribo”,
fazer com que elas, em vez funcionar apenas como valores de
representação da realidade, instaurem uma realidade de valor.
(PERRONE-MOISÉS,2000, p.32).
Como o que Pessanha (1985, p. xxix) delineia quando diz:
não há nenhuma necessidade de ter vivido os sofrimentos do poeta para
compreender o reconforto da palavra oferecida pelo poeta — reconforto
da palavra que domina o próprio drama. A sublimação, na poesia,
domina a psicologia terrestremente infeliz. É um fato: a poesia possui
uma felicidade que lhe é própria, qualquer que seja o drama que ela seja
levada a ilustrar.
Faustino (1976) comenta que o poeta seria aquele capaz de perceber os
fenômenos naturas e sociais de maneira especialmente sintéticos, e também preparado a
exprimir em palavras organicamente conectadas, essa visão totalizadora de um mundo e
de um período. Contudo, não há intento de colocar o poeta em um lugar especial,
diferente, mas exprimir a relevância de como ele deixa impresso na história a marca de
sua época. Pois,
mesmo quando o poeta fala do seu tempo, da sua experiência de homem
de hoje entre homens de hoje, ele o faz, quando poeta, de um modo que
não é o do senso comum, fortemente ideologizado; mas de outro, que
ficou na memória infinitamente rica da linguagem. O tempo "eterno"
da fala, cíclico, por isso antigo e novo, absorve, no seu código de
imagens e recorrências, os dados que lhe fornece o mundo de hoje,
egoísta e abstrato. Nessa perspectiva, a instância poética parece tirar do
passado e da memória o direito à existência (BOSI, 2000, p. 131).
Eco (2001, p. 34), por sua vez, entende que o mundo interior do poeta é formado
e influenciado mais pela tradição estilísticas de seus antecessores do que pelas ocasiões
históricas em que suas ideologias se inspiram. Pelas influências estilísticas, o poeta
30
formaria sua maneira de ver o mundo e sua obra tanto pode ter pouca conexão com seu
momento histórico, quanto expressar uma fase posterior à sua realidade, como poderá
manifestar níveis profundo e incompreensíveis a seus contemporâneos.
Refletindo no que concerne à tarefa do poeta T. S. Eliot (1991, p. 25-37), em De
poesia e poetas, uma de suas passagens mais incisivas nos diz:
como poeta, é apenas indireta com relação ao seu povo: sua tarefa direta
é com sua língua, primeiro para preservá-la, segundo para distendê-la e
aperfeiçoá-la. Ao exprimir o que outras pessoas sentem, também ele
está modificando seu sentimento ao torná-lo mais consciente; ele está
tornando as pessoas mais conscientes daquilo que já sentem, e por
conseguinte, ensinando-lhes algo mais sobre si próprias. Mas o poeta
não é apenas uma pessoa mais consciente do que as outras; é também
individualmente distinto de outra pessoa, assim como de outros poetas,
e pode fazer com que seus leitores partilhem conscientemente de novos
sentimentos que ainda não haviam experimentado.
A experiência pelo poético pode revelar aquilo que instaurado pelo comum,
passa insípido aos sentidos, a partilha do que pode ser caro ao leitor, e causar, como diria
Barthes (2013), a fruição da escrita. E nesse sentido, a poesia amazônica para o leitor em
formação que precisa aproximar a palavra e o mundo, conhecer a letra que vem do seu
lugar, pode ser uma conexão íntima com sua experiência. Por isso a necessidade da poesia
amazônica para o nosso leitor, pois “há, nas alegorias produzidas pelo imaginário na
cultura amazônica, uma permanente tentativa de compreender o homem, o amor, a vida,
a morte, o trabalho e a natureza” (LOUREIRO, 1995, p.85).
O poeta amazônico extrai da realidade circundante suas motivações artísticas e
compõe de forma ímpar textos em que o mítico, o imaginário, a forte relação com o rio e
a floresta dividem espaço com as formas culturais da mistura advinda de outros lugares.
Esses escritos representam uma identidade local que ultrapassa as fronteiras regionais,
mas, também, externam a poética carregada por uma singularidade. Assim, é revelado o
imaginário que vai além do que é perceptível aos olhos, é transcendente, é “a terceira
margem do rio”.
Loureiro (1995, p.50) também está entre os poetas que buscaram a chave para
compreender a definir a poesia, como essência que revela a beleza escondida no mundo,
em que para ele, “alarga o círculo da imaginação, alimentando o pensamento. Com sua
forma, ação, linguagem e repercussão na cultura, ela torna inclusive, uma época mais
memorável do que outra”.
31
O que tentei demonstrar nestas páginas primeiras é que o conceito de poesia não
terá uma única chave. O que distingue a poesia de épocas diferentes e o que define sua
singularidade está relacionado à cultura e aos costumes de cada época, e de como ela (a
poesia) fica impressa na memória, as influências e mudanças que fazem os sentimentos
humanos serem abordados de formas distintas.
As transições que a poesia viveu e os meios que lhe deram suporte nos leva à
movência da palavra, que nasce no seio da linguagem e da voz, passa para escritura.
Transição que deu à palavra escrita o legado que sobrepôs à poesia que está na letra uma
sina, que explicamos nas linhas que seguem.
1.1 A herança de Apolo: a poesia da letra
O mito de Apolo revela experiências que se relacionam com a precisão, atributo
próprio da razão. A fantasia apolínea provém da crença na supremacia da simetria, pois é
através da harmonia das formas que se configura a ilusão do belo. Apolo no mundo grego
é aquele que rege a forma à medida que origina a harmonia e a “bela aparência” das
coisas.
A letra escrita sempre foi símbolo de poder. Muito antes da invenção da imprensa
o ato de conhecer a letra, decodificar as palavras, saber o que está grafado permite ao que
lê um lugar de privilégio. Pensando na história que envolve a relação do homem com a
letra escrita, faço um retorno, uma longa volta ao passado para compreender como a
poesia, viva na voz, passou da oralidade à escrita. Quem nos acompanha nesta volta, de
“escritura e nomadismo”, é Paul Zumthor (1993), seguindo principalmente os estudos do
título A letra e a Voz: Literatura Medieval.
“A escritura não se confunde nem com a intenção nem mesmo com a aptidão de
fazer da mensagem um texto. Ela tem seu ritmo próprio de desenvolvimento; a
textualidade tem os seus, assim como as mentalidades escriturais” (ZUMTHOR, 1993, p.
96-97). Para justificar nossa escolha pela poesia que está na letra, é necessário entender
por quais processos a escritura passou e os modos de raciocínio que envolveram sua
evolução.
O medievalista comenta que até cerca do ano 1.000 a escritura esteve restrita aos
mosteiros e cortes régias, e lentamente foi se expandindo para as classes dominantes dos
Estados europeus. Sua estreita relação com a voz foi um dos fatores que favoreceu em
sua difusão a partir desse período, mas somente na virada dos séculos XIV e XV, em que
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surge na Europa a primeira pintura de cavalete, que expressa a predominância, da visão e
do espaço, próxima de se concretizar. Essa primeira pintura marca um movimento da letra
saindo de seus domínios exclusivos (clero e as cortes) e chegando aqueles que por ela
podiam pagar.
Essas linhas atravessam o campo da poesia: de maneira contrastante
complexa, atuam sobre a intenção e a composição do discurso que a
poesia comanda e (em menor medida, talvez) sobre as modalidades
psíquicas de sua recepção. Assim, o que se encontra profundamente
posto em questão é a relação tríplice estabelecida a partir e a propósito
do texto—entre este seu autor, seu intérprete e aqueles que o recebem.
Conforme os lugares, as épocas, as pessoas implicadas, o texto depende
às vezes de uma oralidade que funciona em zona de escritura, às vezes
(e foi sem dúvida a regra nos séculos XII e XIII) de uma escritura que
funciona em oralidade (ZUMHTHOR, 1993, p. 98).
E a escritura precisava funcionar como oralidade, uma vez que apenas um número
muito pequeno dos homens no período medieval era capaz de ler suas cartas, e esse índice
leva em consideração os profissionais da escritura, quem conseguia estruturar seu
pensamento em palavra escrita era quem tinha poder. A prática de leitura era diferente
para o homem medieval do que é para nós, não contavam com a onipresença da escrita
em seu cotidiano. E apenas no século XIII que ficam legíveis os primeiros indícios de
livros comercializados.
Como uma prática que exige técnica e competência a escritura era uma atividade
que demandava muito tempo, pois, nesse período as diversas fases que a compõe, como
a feitura da tinta, a fabricação da pena e de outros objetos que eram produzidos para sua
realização, eram confeccionados pela mesma pessoa, por isso, a escritura ficou
dependente de seu elitismo.
Para além disso, para o escriba não era suficiente dominar a técnica de grafar as
letras, aquele que desenvolvesse “uma competência textual mais preciosa, fundada no
conhecimento das fórmulas eficazes, das regras discursivas, do manejo das figuras, de
tudo o que constitui, no sentido primeiro o estilo” (ZUMTHOR, 1993, p. 102) era ainda
mais valorizado. Assim, a estilística desde os primeiros trabalhos escritos já era um
elemento que consagrava o escriba, e, há de se considerar que ainda não havia as noções
de coesão e coerência na composição dos manuscritos, muito menos o juízo de
acabamento textual. Além dos escribas havia os copistas, que recebiam, em geral, pela
voz de um leitor o texto a ser reproduzido,
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o copista “domina” sua matéria: é de fato, seu mestre; e talvez,
conforme a opinião mais comum, o seja de direito, caso se pense na
fluidez da maioria de nossas tradições manuscritas. A reprodução dos
textos autorais latinos testemunha aqui e ali, uma preocupação de
autenticidade; a anotação dos textos de poesia em língua vulgar, quase
nunca. [..] assim, a linguagem que o manuscrito fixa continua a ser,
potencialmente, a da comunicação direta. A escrita, salvo exceções,
constitui-se por contágio corporal a partir da voz: ação do copista é
“tátil” (ZUMTHOR, 1993, p. 103).
Por essa razão, a distinção entre autor, escrevente e intérprete para as pessoas
desse período não tinha relevância, o que por muito tempo fez com que o “autor” fosse o
intérprete na performance de uma poesia que, não precisava dizer sua origem. Nesse
período a leitura envolvia a voz, prática que foi valorizada por muito tempo pela tradição
monástica que considerava como uma ajuda à meditação. Segundo Zumthor (1993, p.
105), do século XII ao XIV, com o aumento da circulação do número de escritos, aumento
das fontes disponíveis e as universidades inserindo bibliotecas abertas aos estudantes foi
se desenvolvendo a leitura silenciosa. E a partir do século XV a leitura silenciosa passou
de uma maneira outra para uma imposição. É quando a relação texto-leitor passa para
uma esfera mais íntima, bem como no meio letrado o termo “escrever” passa a ter o
sentido de “compor”. Também, nesse período, passaram a reunir os escritos de um mesmo
autor e atribui-lhe autoria, isto é, a escritura começa a se organizar em livro.
A debilidade ou a aparente irregularidade do recorte do texto
manifestam de outra maneira essa oralidade natural do uso da escrita.
A página se apresenta de modo massivo, às vezes sem querer isolar
sistematicamente as palavras...um pouco à maneira de numerosas obras
literárias de hoje que, justamente, tentam assim atender uma
necessidade vocal! A escritura medieval dissimula ao olho as
articulações dos discursos (ZUMTHOR, 1993, p. 106).
A escrita acaba por estender-se a duas funções: a transmissão de um texto e sua
conservação, o que nem sempre se dava de forma concomitante. Zumthor (1993) usa
como exemplo os textos que serviram de instrução para intérpretes de jogral, que em sua
feitura não tinham a finalidade de conservação, mas que graças a ela manuscritos
importantes chegaram ao nosso conhecimento.
Para o homem medieval a escritura aparece como uma dessas instituições em que
um grupo social pode, de fato, identificar-se, mas em que não pode, no pleno sentido da
palavra, comunicar-se. A classe cavalheiresca, o baixo clero e a maioria dos nobres, por
exemplo, eram analfabetos. O tipo de saber requerido ou impostos por sua situação social
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não tinham relação com a prática da leitura. Como a letra ficava limitada aos manuscritos
necessitava da mediação de um intérprete autorizado, ausente essa mediação ela (a
escritura) “resiste, opacifica, obstrui, como uma coisa. Enquanto técnica, não depende da
ordem da poesia; a poesia não tem o que fazer com ela, a não ser deixá-la simular
utilidades” (ZUMTHOR, 1993, p. 110). Pois bem, o que o medievalista se refere é à
poesia oral: a escritura simula uma utilidade porque ela ainda não era necessária, porque
a poesia estava na voz.
O prestígio da letra escrita contribuiu para mantê-la distante da massa dos
iletrados, para eles “a letra traçada é uma coisa—significante da mesma condição que
toda coisa criada—irrefutável mas inacessível, quase imaterial, portadora de esperanças
ou pavores mágicos” (ZUMTHOR, 1993, p. 113). Entretanto, para os príncipes do século
XV, era como um signo de poder: mandavam copiar luxuosos manuscritos musicais que
eram tidos como joias.
A passagem do vocal para o escrito não se deu como uma ruptura, mas de maneira
lenta, pois a natureza da escritura medieval não comportava a função mediadora da voz,
a escrita seguia como forma de registro de um discurso anunciado ou da preparação de
textos destinados para leitura pública. A primeira onda de poesias europeias se origina de
grandes mosteiros ou do meio real, em que os poemas eram colocados por escrito para
reunir em torno do rei a comunidade de seus fiéis destacando seu passado heroico.
Primeiro aparecimento, em nosso horizonte, de uma poesia e de relatos
comemorativos aproximadamente formulados na língua viva comum;
testemunhas imperfeitas e indiretas da presença de uma voz.
Cronologicamente, nos territórios galo-românticos e germânicos (de
longe os mais empenhados nesse projeto de aculturação) segue-se um
eclipse, aparentemente de dois ou três séculos. Deslancha então a
segunda onda de escritura poética em língua vulgar—sem ruptura até
nossos dias (ZUMTHOR, 1993, p.122).
Com essa segunda onda há o enfrentamento e a conquista da língua viva da cultura
popular, que agora figura entre os letrados que precisam fazer um esforço de invenção
para racionalizá-la, ter domínio sobre ela. “Nesse empreendimento, seu mais poderoso
instrumento é a escritura; e esta, cedo ou tarde, liberta-se da mais pesada coerção vocal
que ainda pesa sobre si: o verso. Donde a difusão de uma prosa narrativa” (ZUMTHOR,
1993, p. 123).
A partir dessas mudanças já não é exclusivo às tradições orais a função da
transmissão de conhecimentos dentro do grupo social, essas tradições vão enfraquecendo,
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e ficando cada vez mais relegadas à margem. “O seu espaço passa a ser ocupado por
‘ciências’ descontínuas, em número crescente, para as quais ou pelas quais o homem cria
uma linguagem, abstrata, empenhando cada vez menos a realidade do corpo”
(ZUMTHOR, 1993. p. 123). Realidade que coloca a escritura num lugar de
inacessibilidade. Longe do corpo, distante da voz, a palavra carrega a legitimidade do
discurso científico e arrasta o peso que ele traz: a forma da língua, suas movências e
permanências e com elas as estruturas gramáticas, regras sintáticas, a rigidez vocabular.
Octavio Paz (2012), em O arco e a lira, expõe que à mediada que a palavra escrita
foi substituindo a voz viva nas relações humanas (quando já intensificava suas diferenças
de hierarquia entre os interlocutores), elas foram modificadas. Para o autor, o livro impõe
ao ouvinte uma lição única sem o direito de perguntar ou questionar. Mas essa ideia leva
em consideração as novas técnicas que, comparadas à forma como a palavra poética era
socializada antes da presença da escritura, criaram um distanciamento entre o homem
comum e a poesia, pois toda palavra supõe a relação do que fala e de quem ouve, e o
universo verbal do poema não contém os vocábulos do dicionário, mas da comunidade.
O que o autor expõe é a diferença que a escritura impôs na relação dos homens
com a palavra poética, que em sua origem era algo para se dizer e ouvir, ao tornar-se algo
que se escreve e se lê, como operação particular, sua leitura vem do que vemos, para o
mexicano, a poesia passa a entrar no corpo pelos olhos e não pelos ouvidos. Contudo, é
importante ressaltar que a escritura não aprisiona o texto, ela lhe confere forma, para o
letrado, ela permite a autonomia de uma recepção livre da mediação de terceiros.
Ao texto oralizado—na medida em que, pela voz que o traz, ele engaja
um corpo—repugna mais que o texto escrito toda percepção que o
diferencie de sua função social e do lugar que ela lhe confere na
comunidade real; da tradição que talvez ele alegue, explícita ou
implicitamente; das circunstâncias, enfim, nas quais se faz escutar. O
texto escrito comporta um duplo efeito de comunicação diferida; um,
intrínseco, devido às polivalências geradas pela formalização poética;
outro, extrínseco, causado pelo afastamento de tempos e de contextos
entre o momento em que é produzida a mensagem e aquele em que esta
é recebida (ZUMTHOR,1993, p.60).
A comparação não pretende fazer juízo de valor ao texto oral ou escrito, mas sim
diferenciar os efeitos de seus registros. O texto oralizado é uma recepção da recepção,
uma vez que a voz sempre trará para quem ouve a leitura do mediador, essa forma
comporta o elemento sonoro, o sentir e as escolhas de interpretação do mediador, a
maneira que ele elege para colocar no seu corpo o texto e entregá-lo a quem ouve.
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O texto escrito é recepção íntima, é o olhar o leitor sobre a palavra em que suas
significações vão ser orientadas pela governabilidade do tempo em que ele está inserido.
Por isso, a distinção dos registros que põe em causa poesia oral de um lado, poesia escrita
do outro “implica evidentemente que suas formas respectivas não podem ser idênticas.
Nem mesmo os níveis em que elas se constituem, nem os procedimentos que as produzem
podem ser comparados a priori” (ZUMTHOR, 2010, p. 83).
O medievalista entende que a voz poética é onipresente, integrada nos discursos
comum pela performance, ela reúne um instante ímpar porque se diferencia das vozes
cotidianas, função basilar da poesia. E na escritura não acorre da mesma maneira. A
performance não cabe na escritura. Mas, não pretendemos colocá-las como opostas e sim
em perspectiva: “Uma simbiose pode instaurar-se, ao menos certa harmonia: o oral se
escreve, o escrito se quer uma imagem do oral; de todo modo, faz-se referência à
autoridade de uma voz” (ZUMTHOR, 1993, p. 154). Em verdade, o que se coloca são as
formas de movências da poesia, que para ele, é o que o leitor ou ouvinte recebe como tal:
não remetendo a ela apenas o texto que informa, mas percebendo a trama do tempo e do
espaço dos discursos que atravessam a matéria daquele grupo social.
Ao olhar a poesia que está na voz e chegou à letra, por perspectivas particulares,
o autor traça a imagem da mensagem poética “em cascata”, uma mensagem que é marcada
por sinais que revelam a natureza figural da poesia, que localizam a partir de modalidades
variadas, específicas de cada sociedade e de seu tempo histórico em nível discursivo e
enunciativo. Entre esses sinais destacam-se dois: o modo restritivo, textual, que se
relaciona à língua; e a sinalização modal, que opera sobre os meios corporais e físicos da
comunicação: “tudo que se refere às grafias, quando se trata de escritura; à voz quando
se trata de oralidade” (ZUMTHOR, 1993, p. 160).
Os sinais textuais e modais carregam muitas diferenças entre si, o modo textual é
limitado pelas imposições linguísticas, as marcas textuais, ele domina o registro escrito.
Enquanto o modal domina as artes da voz, que pela ação vocal age sobre as maneiras que
o corpo físico expressa o texto poético. Combinados esses modos, temos a obra. Em sua
conclusão, o autor data o surgimento do “romance”: 31160-70 na junção da oralidade e
da escritura. Um processo que é designado pela expressão mettre em roman (colocar em
romance), assim os escritos eram glosados em língua vulgar, colocados por escrito para
3 Em seus estudos, no título A letra e a Voz, o autor grafa o termo aspeado. Escolheu-se manter as aspas,
pois em se tratando de período medieval o termo romance ainda não era uma nomenclatura utilizada.
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transmiti-los apenas pela leitura. Atingindo os ouvintes, o “romance” recusa a oralidade
das tradições antigas, que se atenuarão a partir do século XV.
Nessas tradições, a presença dos contos era muito comum, não por acaso, os
contos clássicos foram colhidos da oralidade. Assim, o surgimento do romance, com sua
elevada exigência narrativa ou retórica, com a necessidade de longa duração de leituras e
de audição, era destinado ao meio cavalheiresco e nobre. “O “romance” desmarca tudo o
que, por notoriedade pública, funda-se somente na tradição oral. De fato, ele se liga
estreitamente a esta, que permanece uma de suas fontes de inspiração” (ZUMTHOR,
1993, p. 267).
Fazendo um paralelo aos escritos de Benjamim (1994), no texto O Narrador, em
que conduzido pela trama da ideia das ações da experiência:
o primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa
é do surgimento do romance no início do período moderno. O que
separa o romance da narrativa epopeia no sentido estrito é que ele está
essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna
possível com a invenção da imprensa. A tradição oral, patrimônio da
poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente distinta da que
caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras
formas de prosa—contos de fada, lendas e mesmo novelas—é que ele
nem procede da tradição oral nem a alimenta. O narrador retira da
experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos
outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes.
O romancista segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado,
que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais
importantes e que não recebe conselhos e nem sabe dá-los
(BENJAMIN, 1994, p.xx).
Apesar de referir-se a períodos distintos (medieval e moderno), os autores se
aproximam quando pensamos na reprodutividade da palavra e na chegada da tecnologia,
que vai afastar o homem desse convívio comunitário em que a voz é suprema. Os dois
autores marcam o início do texto produzido para o homem solitário, que não necessita de
uma comunidade narrativa para ler. O surgimento do romance coloca a voz como um
instrumento subserviente ao texto escrito que ela tem como função fazer conhecer
mediante a leitura em voz alta. A diferença consiste em
quando da performance oral propriamente dita, teatralmente
desenvolvida, os ouvintes percebem imediatamente, e em bloco, o
autor, o recitante, o narrador e o texto, formando esses quatro elementos
um todo indissociável; na leitura em voz alta, no entanto, o ouvinte só
percebem desse modo o recitante e o texto. (ZUMTHOR, 1993, p. 265).
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A voz perde seu status de palavra viva, fonte insubstituível de informação,
lembrando que estamos falando de uma passagem, o texto que sai da oralidade e vai para
a letra, torna-se cada vez mais matizado pelas cores da prosa, que lhe possibilita abstrair
e refletir sobre si mesmo, e este fim em sim mesmo ele não possuía quando somente no
regime da voz. “O escrito retira suas amarras, se assim posso dizer, aspira ir à deriva,
recusa o presente da voz, complica-se, proclama sua existência fora de nós, fora deste
lugar” (ZUMTHOR, 1993, p. 270).
Mas, ainda com todo esse avanço da escritura, não houve um desaparecimento da
vocalidade, pois em um período em que a leitura era um privilégio, os textos ainda
dependiam de sua recepção por um auditório. Ainda que a presença da escritura
constituísse uma mudança significativa para os paradigmas da época, isso não foi
suficie