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1 ROBERTO MC KEE e BETTY MILAN (Londres,Stanhope Gardens, 18 de abril 2011) I RM: Você fala na apresentação da sua peça de uma mulher que não tem direito de ser mulher pois o que se espera do primogênito numa família árabe é que ele seja homem. É irracional. BM: Completamente. RM: Isso acontece em muitas tradições… A protagonista esconde o sexo feminino vestindo-se como homem? BM: Não. Ela simplesmente não engravida, porque a gravidez torna a feminilidade evidente. RM: Foi isso que me intrigou. E a protagonista vai ao psiquiatra por causa dessa confusão em relação ao gênero. O drama então vai se passar entre a paciente e o psiquiatra, na tentativa de redefinir a identidade sexual e o futuro. Ao ler isso, gostei muito. Qual a origem do drama? BM: Sou neta de imigrantes libaneses, e, embora eles fossem cristãos, procediam como os muçulmanos em relação às mulheres. A posição da mulher no imaginário das pessoas de cultura árabe é a mesma. RM: Então, foi mais a partir da observação do que a partir da experiência pessoal que você escreveu? BM: Não fui desconsiderada pelos meus pais. Mas a minha irmã caçula foi. Quando ela nasceu, disseram: « Mais uma mulher!». Foi o que aconteceu com a princesa Diana. Ou melhor, os pais da Diana não disseram « Mais uma mulher!», mas não anunciaram o sexo da criança quando ela nasceu. RM: Estou tentando entender você como autora. A peça está mais baseada na observação ou na experiência pessoal?

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ROBERTO MC KEE e BETTY MILAN

(Londres,Stanhope Gardens, 18 de abril 2011)

I

RM: Você fala na apresentação da sua peça de uma mulher que não tem

direito de ser mulher pois o que se espera do primogênito numa família árabe é que ele seja homem. É irracional.

BM: Completamente.

RM: Isso acontece em muitas tradições… A protagonista esconde o sexo feminino vestindo-se como homem?

BM: Não. Ela simplesmente não engravida, porque a gravidez torna a

feminilidade evidente.

RM: Foi isso que me intrigou. E a protagonista vai ao psiquiatra por causa dessa confusão em relação ao gênero. O drama então vai se passar entre a

paciente e o psiquiatra, na tentativa de redefinir a identidade sexual e o futuro. Ao ler isso, gostei muito. Qual a origem do drama?

BM: Sou neta de imigrantes libaneses, e, embora eles fossem cristãos, procediam como os muçulmanos em relação às mulheres. A posição da

mulher no imaginário das pessoas de cultura árabe é a mesma.

RM: Então, foi mais a partir da observação do que a partir da experiência pessoal que você escreveu?

BM: Não fui desconsiderada pelos meus pais. Mas a minha irmã caçula foi.

Quando ela nasceu, disseram: «– Mais uma mulher!». Foi o que aconteceu com a princesa Diana. Ou melhor, os pais da Diana não disseram «– Mais

uma mulher!», mas não anunciaram o sexo da criança quando ela nasceu.

RM: Estou tentando entender você como autora. A peça está mais baseada na observação ou na experiência pessoal?

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BM: Os dois. Existe a observação das outras mulheres da família e a minha

própria experiência.

RM: Como assim? Você é a primogênita?

BM: Antes de mim, minha mãe concebeu um homem. Mas ele nasceu morto. Quando fui concebida, a única coisa que importava para os meus

pais era que eu estivesse viva. Seja como for, havia o prestígio do homem no grupo familiar e era melhor me identificar com o sexo masculino.

RM: Você foi educada no Brasil? Foi à escola no Brasil?

BM: Estudei primeiro numa escola americana. Depois, fui a uma escola

brasileira, entrei na faculdade, fiz Medicina. RM: Você é médica?

BM: Sou.

RM: Que especialidade?

BM: Psiquiatra.

RM: Você é psiquiatra?

BM: Sou, mas eu sempre exerci como psicanalista. Comecei, aliás, a

praticar com 20 anos. Entrei na Sociedade de Psicanálise bem cedo, mas fui convidada a me retirar. Era irreverente demais. Saí da Sociedade Brasileira de Psicnálise e fui ter com Lacan.

RM: Lacan é um neofreudiano. Um revisionista.

BM: Revisionista, não. Ele dizia que o trabalho dele era um retorno a

Freud. Lacan era contra a Psicanálise do ego. Mas eu estou falando demais…

RM: Tudo bem.

BM: Para Lacan, o que importava eram as palavras, e não a significação.

RM: Ele estava ligado aos semiologistas…

BM: O fato é que eu fui vê-lo e isso mudou a minha vida.

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RM: Verdade?

BM: Rapidamente eu me tornei paciente dele, assistente na universidade de Vincennes e sua tradutora

RM: De que língua?

BM: Do francês para o português. Era muito difícil.

RM: Seria muito difícil em qualquer língua…

BM: Porque ele era um poeta. Depois de quatro anos de análise, achei que

não podia ficar na França, porque não queria viver como os franceses. O peso da convenção na França é muito grande.

RM: Estou surpreso.

BM: Por quê?

RM: Porque pensei que a peça Adeus, Doutor estava baseada na sua observação, e não na sua experiência. A história não parece verdadeira,

falta credibilidade. Achei que isso se devia a uma falta de conhecimento da Psicanálise, e é exatamente o contrário. Vamos ter que descobrir o que

explica a minha sensação. A Mia me disse que a peça foi montada no Brasil…

BM: Houve uma leitura no Brasil e outra na França, no teatro do Rondpoint. Foi muito aplaudida. Ela deve ser montada no Brasil e talvez

em Avignon, no próximo ano (2012).

RM: Mas se a peça está sendo aplaudida e as pessoas estão reagindo bem a ela, por que você está aqui? Estou perguntando isso porque eu posso estar

inteiramente enganado.

BM: O que me trouxe foi o que você me escreveu sobre a peça. Disse que ela «não cumpre a promessa da premissa».

RM: O primeiro parágrafo da sua a presentação à peça dá a entender que

vai ser um drama entre um psiquiatra e um paciente sobre itens quentes… levar à insanidade, desespero, suicídio. Trata-se da história de uma mulher

que nasceu numa família libanesa tradicional, se comporta como um homem e está mal por causa da sua identidade contraditória… não

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engravida por ter uma reação histérica. Deixa o Brasil e vai a Paris, na

esperança de que o maior psiquiatra do mundo possa curá-la.Se não conseguir resolver sua questão, ela se suicida. Por outro lado, se alguém vai

contar uma história sobre um paciente e um psicanalista, a história não pode deixar de atingir o psicanalista, que vai ter problemas por ter tratado a

paciente.

BM: Mas o psicanalista é treinado para não ter problemas.

RM: Seja como for, a paciente vai do Brasil para a França se tratar com um gênio. A promessa desta premissa é que o gênio seja tomado pela loucura

da paciente e descubra tanto sobre si mesmo quanto ela. A ironia da historia é que ele provavelmente vai precisar mais de ajuda do que ela. No

fim, ela se sai bem e ele é destruído. BM: Mas o que você diz está ligado à sua idéia sobre a Psicanálise. Você

me disse para ler um livro – Fifty minute hour – e ver um seriado – In Treatment. Do livro, eu não gostei. Do seriado, gostei muito, só que, do

meu ponto de vista, o psicanalista faz tudo errado.

RM: O problema pode ser que, pelo fato de ser psicanalista e pelo fato de ter trabalhado com Lacan, você não tenha liberdade suficiente para ser

dramaturga.

BM: Talvez.

RM: Você está tentando impor a atualidade, os fatos, ao drama… Diz que o psicanalista de In Treatment está errrado. Mas de qual ponto de vista? O seu? Você é psicanalista.

BM: O ator que faz o psicanalista no seriado é maravilhoso. Agora, ele se

atrapalha todo, porque não desempenha o seu papel como deve.

RM: In Treatment não é Psicanálise, é drama, e é por isso que funciona bem. O seriado é brilhante. Verdade que Weston erra, não respeita o

limite… precisamente por isso é um grande drama. Pode ser má terapia. Se você insistir na Psicanálise , como ela é praticada, na sua melhor forma….

BM: Hum… Interessante. Só que o psicanalista, do ponto de vista do

Lacan, ocupa o lugar do morto, ele não tem emoções. Também não deve interpretar como Weston faz, atribuindo significações ao que o paciente

diz.

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RM: Com licença. O que você acaba de dizer é um absurdo. Você acha

mesmo que uma pessoa pode ouvir uma outra pessoa falar e não atribuir significação ao que ela diz?

BM: Pode atribuir significação, mas não deve se expressar.

RM: O simples ato de se conter terá um efeito. O que o analista não faz é

tão importante quanto o que ele faz. Eu estive em análise, fui para o divã. A minha analista era uma das líderes do movimento analítico de Londres…

Perguntei a ela por que nós não podiamos nos sentar face a face e ela respondeu que eu ia atuar como se estivesse em cena. Eu ficava no divã,

mas me dava conta de tudo o que se passava com ela. Da respiração, das notas que ela escrevia … uma parte de mim prestava atenção para saber em

que momento ela anotava alguma coisa. Queria saber o que era significativo. Entre a analista e mim havia uma comunicação… Estou sendo o advogado do diabo. Uma audiência que vê duas pessoas em cena e

vê uma que é neutra e não se deixa infuenciar pelo que a outra diz acha isso absurdo.

BM: Também estive em análise com um kleiniano e sei como funciona este

tipo de análise. O analista diz ao analisando qual o significado da fala dele. Lacan não fazia isso. Dava ênfase a uma frase, a uma palavra ou

interrompia a sessão para que o analisando refletisse sobre o que disse.

RM: Minha analista também fazia isso. Nunca dizia nada.

BM: Lacan deixava o analisando interpretar. RM: Minha analista era assim e eu ficava mendigando. Temia ser como

Woody Allen, ficar em análise dez anos. Interpretava tudo o que a analista fazia e ela ficava quieta. De vez em quando, eu perguntava alguma coisa.

Me dou conta de que as questões eram brilhantemente concebidas para me levar ao assunto que a interessava, sobretudo a minha infância e o meu pai.

Agora, se alguém gravasse minhas sessões com ela, o resultado do ponto de vista do teatro seria nulo… as sessões seriam as mais aborrecidas.

BM: Sua análise durava uma hora, a minha durava cinco minutos.

RM: Pouco importa. Só faz sentido escrever uma peça para filtrar a vida

através da estrutura dramática e expressar algo que, do contrário, permaneceria encoberto.

BM: Queria mostrar nessa peça que o inconsciente existe.

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RM: Então, por que não escrever um monólogo? Nós não precisamos do analista no palco. Se você tirar as falas do Doutor, dá no mesmo. Não há

nada que ele diga que seja dramaticamente necessário. Ele se limita às questões. Quando ela fala com a empregada, no primeiro ato, é exposição.

Depois, quando começa a análise, fala das dificuldades de se expressar em francês. Quem está no auditório se pergunta por que a protagonista foi a

Paris.

BM: Ela precisa descobrir por que foi…

RM: O que é que ela descobre?

BM: Descobre que foi para Paris por causa do culto da França pelos ancestrais Por outro lado, descobre, no fim da peça, a razão pela qual escolheu o analista francês

RM:Qual?

BM: Analisando-se com um francês, ela continuaria velada.

RM: Quer dizer que ela saiu do Brasil e foi para a França consultar o gênio,

passou por tudo isso só para descobrir que desejava evitar uma confrontação consigo mesma? Por que o espectador vai assistir a esta peça?

BM: Isso acontece porque o inconsciente existe.

RM: Ninguém está contestando isso. O que nós queremos saber é da batalha entre a consciência e o inconsciente. Por que o inconsciente da

pessoa atrapalha tanto? A consciência pode ter controle sobre o inconsciente? Chamo o inconsciente de hidden self, porque quero que o

escritor escreva do ponto de vista do personagem. Quero que ele se dê conta de que o inconsciente é uma mentira. E o inconsciente funciona

ininterruptamente, todos os minutos de todos os dias. Tem vida própria. O que eu quero ver nessa peça é isso, a protagonista lutando com seu próprio

inconsciente.Afinal, quem vai ganhar? Existe uma diferença entre o que as pessoas dizem e o que elas fazem e existe um mecanismo do cérebro para

denegar.

BM: Sim

RM: Acho ingenuidade do psicanalista imaginar que ele pode ficar neutro e a salvo.

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BM: Não é uma questão de ficar a salvo. Se o analista é suficientemente treinado…

RM: Há uma falácia na semiologia. A idéia de que o significado de uma

palavra é o segredo da mente, de que a língua revela o pensamento é falaciosa. Uma pessoa afásica pode criar grandes obras de arte. Não é

necessário ter a língua para criar. Há imagens, sons… Colocar a língua acima de tudo é coisa dos franceses, eles idealizam a língua, a própria

língua. Lacan, Saussure, Lévi-Strauss… Mas o importante é você entender o que é um drama. A meta do drama é chegar a coisas que são essenciais…

Antes de ter a linguagem, os seres humanos tinham a história, que eles podiam expressar desenhando, dançando, tocando…Antes de tudo, vem a

história; a língua é um meio para chegar à história. BM: Um ponto de discórdia… A minha protagonista só descobre que ela

foi à França para não fazer uma análise através da linguagem. Isso é revelado pelas palavras.

RM: O veículo são as palavras… diálogo no teatro e descrição no romance.

Claro que é através da linguagem que os espectadores vão entender a peça e, se for a história de uma mulher que tem insight falando de si mesma, ela

tem que entender por que fez o que fez. Agora, se ela simplesmente fala e comprende, é facil demais. Acontece sem perigo, sem drama…

BM: Não, a análise não é sem perigo. Quando eu fazia análise, eu me

queimava e, às vezes, caía. Mas isso não acontecia na sessão. Acho que o meu tema não é um bom tema.

RM: Se as coisas se passam como você diz que elas se passam, não é. Mas eu simplesmente não acredito. O problema é que é dificil cortar um

diamante, requer extrema precisão. Você pode estragar uma pedra preciosa se não souber como cortar.

BM: O problema é que inner self não é inconsciente e este só se revela

através das palavras.

RM: Suponha que você acredita ser uma pessoa boa, tem um conflito com uma mulher e bate nela. Descobre, de repente, que pode perder o controle

ou não gosta de mulher. O que te faz descobrir é o gesto.

BM: Sei disso, porque fiz psicodrama. Trabalhei com Moreno e com Zerka Moreno no teatro deles em Nova York, era ego auxiliar. Agora, o

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psicodrama não permite ir tão longe quanto a psicanálise. Acho que há

assuntos que não são bons para o teatro e a literatura, mas, se eu quiser mostrar a existência do inconsciente, tenho que proceder como procedi.

Não estou falando do inner self, do que interessa aos psicológos. Estou falando de algo que de fato surpreende.

RM: Não quero discutir a sua teoria. O que eu quero é descobrir com você

como eu posso te levar a expressar num drama o que você pensa. Quero que aprenda a tornar atraente o que te interessa. No palco ou no romance.

Porque não existe um só modelo de realidade, existem muitos e nenhum é perfeito. Do meu ponto de vista, a vida escapa aos modelos, ela é complexa

demais para ser reduzida a este ou àquele modelo. A semiologia foi uma tentativa de impor o modelo da linguagem à realidade; porém, a realidade é

maior do que qualquer modelo que tenha sido criado. Sei, por outro lado, que existe uma maneira de pensar a realidade através da linguagem. A questão é saber como fazer isso através de um drama. A primeira questão

que eu colocaria é: o que acontece com a protagonista se ela não conseguir o que deseja?

BM:Ela perde a língua e o país natal dela.

RM:Se ela ficasse na França em que isso a diminuiria?

BM: Ela é uma escritora.

RM: Mas ela não figura como escritora na peça. O que aconteceria se ela

substituísse a identidade brasileira pela francesa? Muitas pessoas mudam de um país para outro e têm sucesso!

BM: Ela teria que viver de um modo que não lhe agrada.

RM: Como fazer os espectadores saberem que, se ela sacrificar a cultura brasileira, a vida dela será gravemente afetada?

BM: Isso tem que ser dito, claro.

RM: Temos que sentir a diferença entre o que significa viver na cultura

francesa e na cultura brasileira . Preciso sentir que não voltar para a cultura de origem é a danação enquanto ser humano. As pessoas fazem a vida

mudando de país. Conrad era polonês e se tornou um dos maiores artistas da língua inglesa.

BM: Nunca consegui mudar de língua.

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RM: Todo imigrante tem o problema da língua. Aposta na geração seguinte. Hoje em dia, não é mais assim. Os mexicanos querem ser

mexicanos, os russos querem ser russos, reivindicam sua especificidade. Se você quer uma protagonista que não vive sem a língua dela, você precisa

mostrar isso e não adianta expor.

BM: Há na peça um fato que pode ser explorado. Por exemplo, o de quebrar o telefone para falar com o Brasil. O Doutor é engraçado, ele não

respeita as convenções. Quando ela perde o olho, ele diz para ela telefonar para o Brasil, encomendar outro, etc.

RM: Vamos focalizar esse ponto. O fato mostra a crença dela na

superstição. BM: O interessante é que ele não é supersticioso, mas leva a sério a

superstição dela. Porque é a condição para a análise continuar.

RM: Ela precisa da crença dela . Agora, se a escolha for a de ter um Doutor que secunda a superstição da paciente, você perde uma oportunidade de

gerar um conflito. Porque não há conflito entre as idéias do Doutor e as idéias da paciente. Agora, você poderia ter uma paciente em conflito

consigo mesmo, uma paciente que não pode se impedir de acreditar na magia, embora deseje ser racional. Neste caso, o Doutor reconhece que ela

tem este conflito e procura ajudá-la a resolvê-lo. Tudo depende do que você quer fazer. Você pode escrever o que quiser. O seu problema é não pensar

em termos dramáticos, é supervalorizar a linguagem. O subtexto é sempre inefável, o verdadeiro drama.

BM: Hum… Na verdade, eu estou aqui porque o meu filho, que é diretor de cinema, me disse que eu precisava ir ao seu seminário. Me disse que eu

escrevo bem, mas não penso no que vou escrever.

RM: Isso é normal. Agora, o público tem que entender. Você precisa responder à questão que eu coloquei, ou seja, qual é o risco que a

protagonista corre se não voltar para o Brasil. Se ficasse na França, o que aconteceria com ela? Ficaria louca?

BM: Supondo que não houvesse a possibilidade de voltar, ela adoeceria.

Isso teria efeitos sobre corpo dela.

RM: Isso tem que estar na peça. Você disse que se queimava durante a sua análise.

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BM: A minha personagem ficaria doente por não estar se expressando na língua dela.

RM: Meu filho quebrava um osso cada vez que estava estressado.A pior

coisa que poderia acontecer seria a sua personagem quebrar o pescoço ou ter um câncer.

BM: Câncer é demais. Melhor ela se machucar.

RM: Segunda possibilidade seria ela se tornar uma pessoa péssima.

Terceira, seria ela destruir a própria identidade por causa de uma escolha cultural ruim. Quarta, seria ela se tornar imoral. Há várias possibilidades e

isso tem que ser realizado dramaticamente. Do ponto de vista do espectador, os caminhos subjetivos pelos quais o personagem passa são meios para o fim. O fim é a verdade da vida, o amor ou o ódio, a moral da

história, os valores. Em última instância, é a salvação ou a danação. A gente pode chegar ao resultado pela via sociológica, psicológica, pessoal,

pela via da vida interior...

BM: A peça que eu escrevi é adaptação de um romance.

RM: Curioso isso, porque eu pensei que poderia ser um romance. O texto da sua peça não é dramático, ele é passional.

BM: Como assim?

RM: O que você faz é exposição. O que nós queremos é dramatização. Imitando o que você considera ser uma terapia bem-sucedida, você faz o

Doutor colocar as questões que levam a paciente a reclamar sobre a língua, sobre a falta do país natal e, daí, ela tem um insight e ponto. Não é

dramatização. Drama implica positivo, negativo, conflito, estratégia…

BM: Fico achando que eu devo parar de escrever.

RM: Isso não é o que eu quero ouvir…

BM: Minha referência literária sempre foi Joyce. Na obra dele não existe plot, intriga.

RM: Como não? É a maior intriga que já foi escrita. Bloom está

constantemente discutindo consigo mesmo

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BM: Tenho a sensação de que o conflito dificulta o trabalho com a língua.

RM: Claro que não… Veja Shakespeare… Se você não quiser usar o

Doutor como alguém que é destrutitivo na vida da protagonista, conservador, racional, pouco emotivo, de onde virá o risco? Só pode estar

na cabeça da Seriema. O Doutor não está servindo para nada.

BM: Mas eu não quero escrever um monólogo. Posso manter o Doutor como ele está e ter a protagonista em conflito consigo mesma.

RM: Não. O Doutor tem que ser um personagem; caso contrário, tem que

desaparecer. A peça se chama Adeus Doutor, não se chama Adeus, Paris.

BM: Ele só pode se tornar um personagem através de solilóquios. O Doutor não pode interagir com ela, ele é um ator que faz de conta que não é um ator.

RM: Só porque você diz que é assim.Você acha que tem que imitar a

realidade. Você tem que sair desse caminho.

BM: Verdade que ele poderia ter sido seduzido por ela.

RM: Olha, isso para mim é evidente. Trata-se de uma mulher bonita, que vem de longe, de uma cultura exótica. Viaja em busca do salvador, do

gênio. Vai beber a água dessa fonte. Tem tensão sexual entre eles. Não há como controlar isso.

BM: Na verdade, quando ele se aproxima dela e ela diz que não pode falar porque ele está perto demais, é um momento de tensão sexual…

RM: Que estranho, ela é uma mulher que foi educada como um homem e

isso não aparece na peça. Como é possível? Quais são as consequências de ser uma mulher educada como um homem? Há culturas em que isso se

passa assim. Ouvi falar de mulheres educadas como homens no México, inclusive vestidas como homens. Não estou sugerindo que a história de

Seriema seja assim. Mas, se o que se esperava dela era que ela fosse um homem, se foi educada para grandes realizações acadêmicas, isso deve ter

tido efeitos negativos sobre a psicologia dela. A ponto de ir embora para Paris.

BM: No meu caso…

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RM: Não estou interessado no seu caso, estou interessado na personagem,

nas promessas que você, enquanto autora, faz.

BM: OK.

RM: A partir do momento em que você introduz na peça um Doutor, um psicanalista, e uma jovem brasileira que vai para Paris, você está gerando

expectativas. Há um livro que eu li, um romance chamado The World is Made of Glace, que eu recomendo… Seja como for, pelo fato de você ter

escolhido um homem e uma mulher, a audiência espera uma tensão sexual. A menos que o psicanalista seja homossexual. A personagem talvez deva

ser uma mulher bonita vestida como um homem ou ter algum acessório masculino. Seriema é sexualmente confusa. Você sabe qual é o gênero da

sua peça? BM: Um épico.

RM: Não, trata-se de um psicodrama.Existe desde que Freud introduziu a

noção de que os seres humanos são puzzles que precisam ser resolvidos.

BM: Mas é muito importante para mim que o psicanalista não passe dos limites.

RM: Mas Freud não respeitou os limites.

BM: Não sei disso.

RM: Jung desrespeitou.

BM: Foi uma das razões pelas quais eles se separaram. O que eu posso fazer é pôr fantasias na cabeça do Doutor

RM: Isso é muito bom.

BM: Mas ele não vai passar do limite, porque ele sabe que pode causar um

grande mal.

RM: O que me interessa é saber do mal que a paciente vai causar a ele. O psiquiatra que você criou é inumano, não tem inadequação alguma.

BM: Pode ter fantasias. Mas eu não sei ainda quais…

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RM: O que nós esperamos é isso. Queremos que aspectos da personalidade

dele se revelem. Se não pode ser assim, então, deve ser um monólogo.

BM: Preciso pensar sobre o assunto. Acho que a paciente o seduziu e ele não pode ir suficientemente longe na análise. Tenho me perguntado muito

como vou continuar no meu trabalho em geral. Escrevi ficção tendo como referência a vida real.

RM: O que é a vida real?

BM: A experiência que eu vivi. A gente talvez se iniba quando faz isso.

Mas, para onde quer que eu vá, eu topo comigo mesma. Acho que havia tensão sexual na minha análise com Lacan; porém, não era determinante.

Lacan ficou envaidecido com a minha chegada. Porque eu fui a primeira brasileira a chegar. Ele percebeu que havia algo de importante na escolha dele como analista. Por um lado, a língua francesa me permitia continuar

velada. Por outro, me dava limites que eu não tinha, por causa das minhas origens.

RM: Você entende a história perfeitamente bem… Agora, você tem o

direito de ser inventiva. Isso é o que o seu inconsciente quer. O encontro com Lacan aconteceu 35 anos atrás. Ninguém mais se importa com isso.

Você tem a vantagem de ter vivido uma grande experiência depois do encontro. O que você quer que o público leve para casa?

BM: Como eu posso dizer no final da peça que a protagonista procura o

Doutor para continuar velada sem deixar o meu público completamente decepcionado?

RM: A gente faz um jogo com o público, que vai ao teatro para ter a experiência da verdade. A gente começa decepcionando o público até

enfim dizer a verdade. São camadas …Vai numa direção, surpreende. Depois vai noutra.

BM: E os ancestrais? Você acha que podem ser mantidos?

RM: Vamos repassar cena por cena.

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II

RM:Na primeira cena do primeiro ato tem Maria, que é um personagem

clichê. Na verdade, é um sidekick character.

BM:O que?

RM: Um personagem que entra em cena e faz as perguntas necessárias para extrair os pensamentos do outro personagem. Como o Doutor Watson em

Sherlock Homes – ele existe para fazer as perguntas que permitem a Sherlock Homes dar explicações. Maria está em cena a fim de que Seriema

possa se exprimir, em função de uma exposição. Minha primeira questão é: «Além de ser um sidekick character, Maria tem outra função?». No ato 1 há 3 cenas. Na cena 1 tem a fala com Maria e a dança do espírito. De que

forma Maria serve à peça?

BM: Ela volta para dizer as palavras em ão. Em São Paulo, a mesma atriz que fez Maria fez a Pombagira e dançou maravilhosamente.

RM: Se você quiser que a peça seja vista na Broadway ou off-Broadway,

que ela entre no repertório de boas companhias, em teatros universitários, pergunte o que acontece se você não tiver a dança.

BM: Na leitura que foi feita na França, não havia dança. O diretor usou

uma marionete para a Pombagira. Havia só quatro atores em cena: Seriema, o Doutor, Maria e um ator que representava os ancestrais. Mas eu adoraria ter uma dançarina.

RM: O que eu quero saber é se a peça se torna impossível se não houver

uma dança real ou uma marionete.

BM: Nunca tivemos Maria e uma dançarina nas leituras. No Brasil, Maria fez a dança da Pombagira.

RM: A protagonista poderia fazer um monólogo, do tipo: minha vida,

minha familia, etc. Ou seja, através dela você faria a exposição sem ter que explicar nada para Maria, que não é uma personagem dramática.

BM: Mas será que ela não pode se tornar uma personagem dramática se

expressar a falta que Seriema vai sentir dela?

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RM: Só seria dramática se estivesse em conflito com Seriema.

BM: OK. Paixão é uma coisa. Drama é outra.

RM: Pescou? Como eu digo no meu seminário, sofrimento não é drama.

Felicidade não é drama. São estados emocionais. São estados estáticos, são a matéria para a poesia, a música, a dança. Drama provoca emoção.

Sentimento existe para dar forma à emoção… Maria é um side character. Normalmente, este personagem aparece em cena durante um tempo muito

breve.

BM: Mas a cena com Maria não é longa.

RM: Acho que é. Por outro lado, a dança e a música são usadas em momentos de grande emoção. Não no começo da peça. Servem para dar vazão a um sentimento que a linguagem não consegue expressar.

Geralmente, a gente usa a música quando há uma crise que precisa ser expressada com força.Você usou a dança com o propósito de expor, dizer

«isto é Brasil», e não com um propósito teatral.

BM: Sim.

RM: Suponha que a peça se abra com a protagonista no segundo ato. Ou seja, nós cortamos o primeiro ato. Tudo o que Seriema diz para Maria pode

perfeitamente ser dito para o Doutor… A história é a de uma mulher que tem que escolher entre uma vida de européia e uma vida de brasileira, entre

se tornar uma mulher francesa ou permanecer uma brasileira. No momento em que a escolha se impuser verdadeiramente na peça, você pode introduzir algo que seja a expressão do Brasil, a dança, por exemplo.

BM: Isso pode acontecer no momento em que Seriema se refere às palavras

em português. Maria pode entrar em cena falando e dançando também.

RM: Maria e a dançarina podem ser feitas por uma mesma atriz.

BM: Foi o que o diretor brasileiro e o francês fizeram.

RM: Seja como for, a dança deve ser um elemento da dramatização da escolha que Seriema tem que fazer entre continuar na França ou voltar para

o Brasil.

BM: Nao estou com vontade de suprimir Maria

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RM: O autor tem que aprender a matar os seus personagens.

BM: Eu tendo a matar bastante.

RM: Mas nós não precisamos de dois personagens que escutam.

BM: Maria ouve de um jeito e o Doutor ouve de outro. Maria ouve

tentando convencer Seriema a não ir embora. O Doutor ouve tentando fazer Seriema se entender.

RM: Entendo. Mas a informação que eu extraio da sua protagonista é a

mesma, é pura exposição, é sobre a vida passada dela.

BM: Então, o que eu tenho que fazer para manter Maria? RM: Sugiro que você tenha dois atores, Seriema o Doutor, e cada um deles

expresse as suas fantasias, sentimentos, através de solilóquios. Se você chegar a um momento em que a relação com Maria for realmente

importante, daí, sim, Maria entra em cena. Porque ela será uma personagem útil para colocar em cena certas qualidades do Brasil.

BM: Falar da relação dela com a escravidão e fazer o contraponto com a

história de Seriema, por exemplo?

RM: Tudo isso é exposição, a menos que você ponha num contexto em que o público precise ouvir e queira ouvir. Deve fazer parte de uma dinâmica

França- Brasil, língua francesa-língua brasileira, ênfase no racional-ênfase no mágico.

BM: Então, eu preciso criar um conflito entre Maria e Seriema…

RM: No interior da peça.

BM: Mas Seriema vai embora do Brasil, ela precisa dizer «Adeus» a alguém

RM: Mas, se você começar a peça no escritório do Doutor, não precisa.

Você pode começar a peça no meio da terapia, de uma terapia que já está acontecendo há meses. Se você entrar mais tarde na história, você suscita

no público o desejo de saber o que aconteceu antes e daí, sim, pode introduzir as informações que Seriema dá para Maria. Cabe a você fazer o

público querer saber. Do jeito que você fez, cena após cena, é só exposição. Até que a gente finalmente chegue ao que interessa. Estou sugerindo que,

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por razões dramáticas, você comece no meio. Daí, através da rememoração,

de um flashback, você pode mostrar o Brasil. Ela pode estar infeliz e daí a empregada, Maria, fala com ela. Ou, da imaginação de Seriema sai a

dançarina, que faz parte da subjetividade dela . Acho que você deve começar bem perto do clímax. Daí, tudo que está no primeiro ato, é dramatizado, torna-se exposition e não ammunition. Num ponto qualquer

da história, ela vai dizer para o Doutor: «Sou neta de imigrante. Você não

entende. Você vive em Paris desde sempre e não sabe o que é ser descendente de imigrante» Ou seja, ela usa a própria história como ammunition, para fazer o Doutor entender. Indiretamente, o público ouve:

imigrante, avô etc. Você, ao contrário, pôs Maria em cena e Seriema conta

para ela uma história que Maria, sendo empregada, deve conhecer. Francamente, começar pelo começo é erro de amador.

BM: Não fiz isso no romance. Fiz no teatro, por sugestão de um diretor de teatro francês.

RM: Discordo dele. Se você introduzir Maria num momento da peça em

que Seriema estiver perdendo o controle da propria identidade é melhor. Quem sou eu? Brasileira? Francesa?

BM: Você teria feito uma primeira cena com um solilóquio…

RM: O que eu teria feito não importa… Eu estou simplesmente dando a

você as boas técnicas para contar uma história. Comece no meio da terapia. Toda a informação sobre o Brasil é dada em momentos de crise da vida de

Seriema e deve sair da imaginação dela. Você pode interromper as sessões com o Doutor e pôr Seriema falando diretamente com o público, fazendo solilóquios. Das fantasias podem sair uma dançarina, uma empregada.

Seriema agarra a empregada e diz que precisa dela. Trata-se do lado brasileiro da personalidade da protagonista, que aparece através das

relações passionais com outros personagens. Estes estão numa suprarrealidade.

BM: E os ancestrais? É a mesma coisa, não é?

RM: Sim. Daí, são mais personagens e mais salários para pagar.

BM: Mas um único personagem pode fazer todos os ancestais.

RM: Olha, no teatro, o recurso é a linguagem. Por que nós temos que ver

um ator vestido de branco fazendo todos os ancestrais? Isso já foi feito tantas vezes… O autor pode fazer word-pictures, imagens através de

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palavras. Pode fazer vários personagens entrarem em cena, através de um

único personagem. Só com palavras. Mas isso tem que ser realizado dramaticamente, é a crise na vida da protagonista que deve tirar dela os

outros personagens.

BM: Entendi.

RM: Me dou conta agora de que o seu texto foi tirado de um romance.

BM: Escrevi duas peças diretamente para o teatro e acho que foi mais fácil.

RM:Sim.

BM: Uma coisa de que eu gosto na peça, é a maneira como o Doutor recebe Seirema na cena 3 do ato I, a maneira maluca…

RM: Há algo que eu não entendo nesta cena. Não entendo que o encontro com o Doutor já não estivesse marcado.

BM: Estava, mas…

RM: Do jeito que a peça está, a gente tem a impressão de que ela nunca

marcou o encontro e ele não sabe quem ela é. Seriema diz eu estou aqui e daí o Doutor só diz para ela ir à sessão às cinco horas. Confunde o público.

BM: Mas esta era a maneira como ele trabalhava.

RM: Você quer dizer que ele não tinha uma secretária?

BM: Tinha, mas ela não aparecia. Às vezes, ele a chamava para entregar o dinheiro, que ia empilhando em cima do mesa.

RM: Como foi que você chegou lá?

BM:Na primeira vez, fui diretamente para o consultório, porque não tinha o

telefone dele. Queria que ele enviasse um aluno ao Brasil para nos ensinar a Psicanálise à maneira dele. Lacan se valia da ambiguidade para trabalhar.

Quando atende ao telefone na cena 3, ele provoca um estranhamento… Era a maneira de Lacan trabalhar.

RM: Tudo isso está bem se a peça começar no meio do tratamento. Os dois

estão trabalhando e, logo na primeira cena, há uma reviravolta na análise. De modo que a história anterior seja dramatizada. O ritmo do texto atual é

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lento. Você deve pular na cena com os dois pés. Não faça personagens

misteriosos.

BM: Fico me perguntando se você acaso não quer que eu escreva uma outra peça. Seriema começa dizendo para o Doutor que ela chegou e não

sabe o que vai dizer.

RM: Procure se abrir para o que eu vou dizer agora. A luz acende e a primeira frase é «—Eu não sei o que dizer» Ela está sem ammunition.

Enfim, você faz o que quiser. Só estou querendo que você pegue o material que você tem e escreva da maneira mais eficaz. Depois da primeira frase, o

Doutor diz, por exemplo: «— Você sempre conseguiu falar. Por que está tão difícil falar hoje?». Você pode manter o conteúdo, mas deve mudar a

forma. BM: A fala dela pode ser: «–Atravessei o Atlântico para fazer esta análise e

não sei o que dizer».

RM: E ele poderia dizer: «–Você veio do Brasil, atravessou o Atlântico, já está aqui há 3 meses, nós estamos chegando a um ponto essencial da

análise e você não tem nada para falar?».

BM: Hum.

RM: Neste momento, você, a autora em você, está se perguntando: «– O que eu faço para guardar o máximo possível do texto que eu escrevi?» Já

tenho um diretor, uma produção… BM: Não, eu não tenho ainda a produção de que eu preciso.

RM: A grande armadilha em que os escritores caem é esta. Escrevem uma

primeira versão e depois ficam querendo preservar os achados principais. Se for possivel, tudo bem. Se for preciso reescrever tudo, reescreva... O que

está dentro de você tem que sair. Estas palavras que estão aqui no papel não são preciosas, você pode produzí-las quando quiser. Sabe se expressar. Não

se apegue a frases preciosas, é uma armadilha. Nessa eu já caí.

BM: Hum.

RM:Vamos para o ato 2, cena 1. Ela se queixa da imigração e o Doutor sugere que ela procure uma analista portuguesa. Ela não quer. Trata-se de

uma escolha que enfatiza a importância de ser analisada por ele, e não por

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outra pessoa. Acho que não é muito importante ser ele ou outro… ela é

uma esposa que se divorciou.

BM: A escolha do analista é muito importante. Será que ela precisa justificar?

RM: O problema todo é este. Eu não escolhi a minha analista. Fui enviado

a ela pela esposa de um amigo meu.

BM: Eu talvez tenha que dizer que Seriema é uma psicanalista também.

RM: Você criou um problema para você mesma e você não se libera Justifica a escolha do psicanalista na peça pelo fato de ele ser um gênio.

Nada do que ele faz na peça sugere que ele seja um gênio. Estou desapontado. Esperava que o Doutor daria um grande personagem. A peça se chama Adeus, Doutor. Esperava que este Doutor se tornasse maior do

que a vida, fosse poderoso. E eu também esperava uma série de ironias que mostrassem que o psicanalista genial não se entende. Esperava que ele

descobrisse através da peça que ele não é um gênio ou que o gênio dele é um problema, não o ajuda por uma razão ou por outra. Não sei. Pense em

Hamlet, é um personagem estupendo, como Shakespeare, mas o pensamento dele acaba com ele. Hamlet não consegue se deparar com a

verdade porque é um gênio. A mente humana é uma máquina que transforma o negativo em positivo. A realidade é horrível demais para ser

vivida e, quanto mais brilhante você for, mais ilusões vai criar. As pessoas mais inteligentes são as que mais se distanciam da verdade. O Doutor pode

se deparar com a própria cegueira e o público pode assistir à dramatização deste fato. Nada disso acontece. Portanto, ele é desperdiçado. Só a sua fidelidade à experiência explica isso. O Doutor não tem personalidade.

BM: A minha formação me ensinou que o analista não deve se abrir.

RM: Como ficcionista, você tem que trabalhar com a subjetividade do

analista. Você teve um insight quando disse que a porta do consultório fecha e o drama começa.

BM: O Doutor vai ter que fazer um solilóquio.

RM: OK. Vamos em frente. Seriema se queixa de estar na França, de estar

fazendo uma anális e em francês. A questão obvia é: « Por que ela foi para a França fazer análise?».

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BM: Isso é o que ele pergunta para ela. Na cena 2 do ato 2 ele diz para ela

que não tem certeza de que ela possa fazer uma análise em francês.

RM: Por que ela faz uma análise em francês?

BM: Ela não sabe. O tempo inteiro ela não sabe por que faz o que faz. O fato é que ele diz para ela que havia sido uma grande largada, a do Brasil

para a França, como se ele fosse descobrir a América. E, na verdade, ela vai descobrir a América.

RM: Ah! sim. Isso tudo tem que estar dentro da peça.

BM: Redescubro a peça, porque estou sendo escutada… Isso me faz dizer

que a linguagem é o recurso mais importante que nós temos. RM: Outros diriam que é a imagem. Do ponto de vista do sucesso político,

a imagem é mais importante…

BM: Você leu A interpretação dos sonhos, de Freud? Nesse livro, Freud mostra que, para interpretar uma imagem do sonho de uma pessoa, é

preciso escutar o que ela diz. Porque é através do discurso da pessoa que nós descobrimos a cadeia significante que permite interpretar a imagem.

RM: Sei. A maneira que temos de lidar com um símbolo é mais importante

do que o símbolo em si… Tive um sonho que contei para a minha analista. Eu estava nadando e havia um tubarão (shark) que se aproximava de mim.

Alguém atirou no tubarão. Naquela época, eu estava vivendo com uma mulher que estava me deixando louco. O verbo jaw tanto designa o ato do tubarão de abrir e fechar a boca quanto o de falar incessantemente. A

analista me disse que a mulher em questão estava sempre falando e eu queria que ela, analista, desse um tiro na mulher. A chave da interpretação

é o duplo sentido do verbo jaw. Contei isso para dizer que eu não sei se é a palavra ou a imagem que conta mais. No cinema, é a imagem. No teatro e

no romance, é a palavra. Na ópera, é a música. No ballet, é a imagem. O que interessa é o contador de história (storyteller) saber o que é mais

importante para aquilo que ele vai fazer.

BM: Sim.

RM: Na cena em que ela fala da dificuldade de se expressar em francês e a pergunta «Por que fazer uma análise em francês?» se impõe, o Doutor se dá

conta de que a escolha de ir a Paris e fazer análise com ele serve para

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esconder a verdade. O meu problema é que ela se queixa repetidamente.

Por que ela se queixa?

BM: Se queixa?

RM: Sim. Tenho a esperança de que a história de ir para a França encontrar o gênio, apesar de esse fato tornar a análise mais difícil, seja revista de

modo a deixar claro que Seriema quer que seja difícil, porque não quer fazer análise.

BM: Entendi, mas, voltando à questão da queixa, eu me lembrei daquelas

mulheres árabes que vão aos enterros para lamentar o morto, as carpideiras.

RM: Se a queixa evoluir para uma lamentação pode ser interessante… cabe explorar. Mas, do jeito como está, a queixa não leva a nada e essa história, na verdade, é sobre um conflito interno entre a cultura francesa e brasileira.

Explore isso, através de mais variedade e mais profundidade, em vez de repetir a queixa…

BM: Sim.

RM: Ato 3. Ela fala de uma alucinação com o rato e estabelece uma relação

com o nome de um ancestral, Raji, e coloca o problema do ódio de si mesma Nós agora estamos começando a avançar. A ironia começa a

aparecer na peça, porque, por um lado, ela parece odiar o passado dela no Brasil e, por outro, começa a descobrir que a identidade dela está

absolutamente ligada a este passado. O conflito está aqui. Depois vem a cena do sonho com a irmã.

BM: O sonho em que ela descobre que é uma mediterrânea.

RM: Me diga uma coisa… Na sua experiência, quando você fazia análise, os pacientes mentiam?

BM: Para si mesmos? Sim.

RM: Não era sua tarefa mostrar que eles estavam mentindo para si

mesmos?

BM: Sim. Também no Consultorio Sentimental eu vejo que as pessoas mentem. Mas não estão a par da mentira.

RM: Mas o analista está.

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BM: Fui formada para não interpretar a significação da conduta … nunca prestei atenção a tudo o que as pessoas me dizem para só escutar o que

deve ser escutado.

RM: Hum… O padrão da sua cena, quando nós estamos na sessão, é o seguinte: ela fala de um sonho ou de uma fantasia ou o que quer que seja. A

partir da descrição que ela faz da experiência dela, ele deveria reagir.

BM: O que não está passando direito é o modo do meu psicanalista agir. Lacan dava ênfase a uma palavra do analisando ou interrompia a sessão

logo depois de algo que ele tivesse falado. Como não havia explicação nenhuma, o paciente pensava no que havia dito durante a sessão. Pensava

na rua. Lacan não interferia muito, mas o psicanalista da peça pode interferir mais.

RM: Olha, o público não acredita que o paciente possa se curar. Pensa que as pessoas mentem para si mesmas e resistem à verdade. Sentem-se

miseráveis, mas não querem saber da verdade. A maior de todas as verdades é que nós somos responsáveis pela nossa própria miséria. Merda!

Somos contrários aos outros e a nós mesmos, fazemos coisas que não faríamos se tivéssemos pensado 10 minutos, só que não queremos ser

responsabilizados. Queremos pôr a culpa nos outros.

BM: O que o Lacan descobriu foi que, se você disser diretamente para alguém «Isso é uma denegação», a pessoa não escuta. Ela só escuta quando

você a leva a descobrir. RM: Olha, Betty, acho que você vai ter que enfrentar o fato de que, ao

dramatizar a relação analista- paciente, você vai ter que nos ensinar o que a análise é.

BM: Sim, e eu inclusive já estou preparando o ator que vai fazer o Doutor.

RM: Importante você mostrar para o público que é preciso levar o paciente

a descobrir a própria denegação e que, do contrário, ele não dá bola. Ponha de lado todos os clichês, as idéias que nós temos sobre o que é a

psicoterapia. Você precisa nos ensinar – e não é fazendo o Doutor dizer a teoria em cena, mas fazendo o Doutor lutar para conseguir o que ele quer.

Há várias maneiras de fazer isso. Quando as pessoas falam, há sempre uma espécie de tática para conseguir o que querem. Isso é verdade inclusive

quando as pessoas falam consigo mesmas. A teoria precisa ser demonstrada para o público através das táticas do personagem.

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BM: O Doutor talvez deva duvidar do modo como ele procede.

RM: Na literatura, a diferença entre mostrar e contar é essencial. A sua tendência é de contar, provavelmente porque você escreveu muitos textos

expositivos. Você agora vai ter que nos mostrar. A diferença entre explicação e implicação é fundamental. Ninguém vai ao teatro para ouvir

uma explicação. O que o público quer é passar por um processo de autodescoberta através da significação do subtexto. Quer descobrir a

verdade do autor através do que está implícito.

BM: Claro.

RM: A mesma tática fundamental que o psiquiatra tem com o paciente para levá-lo à autodescoberta, o autor deve ter com o público.

BM: O que você acaba de dizer é tão importante que precisa ser dito no seu seminário…

RM: Boa idéia, não é?

BM: Boa para mim e também boa para você.

RM: Verdade… Me comporto no seminário como você viu, porque quero

fazer as pessoas implicitamente entenderem o que elas devem fazer.

BM: A única pessoa que ensina a escrever uma história é você. Na França, ninguém ensina. Nos Estados Unidos…Bem, eu fui para Iowa, fiz um curso de creative writing.

RM: Um curso muito reputado.

BM: A diferença entre você e os outros é que você tem uma teoria.

RM: Sim, tenho. Mas eu faço o máximo que posso para usar a língua da

maneira mais clara. Tanto nos livros quanto no seminário. Acho que a clareza é o maior valor. A grande maioria dos professores

inconscientemente acredita na necessidade de ser obscuro.

BM: A formação acadêmica não ensina a clareza.

RM: O importante é você entender a analogia entre psiquiatra e autor, público e paciente. Estamos começando a chegar ao ponto, não é? Estamos

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falando do ato 3, cena 3. Sonha com o Doutor e se queixa de novo do

francês. Cena 4 ela perde o olho. Cena 5, ela fala da criança e diz que não pode ter um filho por causa da posição masculina. Deus meu, Betty, eu

desejaria que a peça fosse sobre isso. Você vê a peça fundamentalmente como uma luta de culturas…

BM: Mas eu vou trabalhar a questão da identidade sexual.

RM: Quero fazer uma sugestão: a França é masculino, racional e o Brasil é

feminino, mágico. Existe um conflito de gênero no interior da sua personagem. A razão pela qual a cultura francesa a atrai é que esta

representa o masculino. Não sei se você sente isso. Se for o caso, o conflito cultural e o sexual podem ser entrelaçados.

BM: Incrível!

RM: Educada como um homem

BM: Por isso ela não fica grávida.

RM: Por isso, a sua peça apresenta a possibilidade de um costume plot, a roupa dela pode ir mudando. A sua peça tem dois personagens que podem

se expressar com gestos, palavras e através da roupa, uma forma suplementar de expressar a arte. A roupa permitirá dramatizar a posição em

que ela está na sua luta subjetiva. Quão masculina, quão feminina, quão francesa, quão brasileira etc. Isso pode ser interessante e não precisa ser um

arco perfeito do masculino para o feminino. Pode ser mais dinâmico. E ele talvez possa também mudar de roupa.

BM: Olha, esta questão do gênero é decisiva. Quanto mais eu trabalho, mais claro fica para mim que é impossível ter uma identificação completa

com o sexo biológico. O que conta é a fantasia. Por isso, a contribuição dos homossexuais é muito importante.

RM: Mas a maneira como um dramaturgo pode lidar com este problema é

começar com uma separação clara e depois introduzir uma luta consigo mesmo.

BM: Na verdade, Maria significa a feminilidade, e o Doutor, a

masculinidade.

RM: Mas é muito desigual, porque ele está em cena o tempo todo. O conflito entre os sexos está dentro dela. Na cena seguinte, ela sonha com

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um espírito chamando-a de mãe e o Doutor considera que ela está livre do

problema de não conseguir ser mãe. Não entendi isso.

BM:O que você não entende?

RM: Não entendo como é possivel que isso de repente cure o problema sexual dela.

BM: Emi quer dizer mãe.

RM: Entendo que ela esteja reconciliada com o sexo dela, que já pode ser

mãe. Mas não entendo como o sonho é a expressão disso.

BM: Porque o sonho é a expressão do desejo. RM: Mas como isso cura ela? Tudo fácil demais. É preciso que haja luta.

Tem que doer. A cena seguinte também é fácil demais. Embora intelectualmente você comprenda o risco, você não faz o público

compreender.

BM: A melhor coisa que você me disse é que o público é como o paciente. Quer entender e entende descobrindo, por identificação.

RM: Quanto tempo você trabalhou com Lacan?

BM: Quatro anos.

RM: Uma vez por semana?

BM: Não, três ou quatro.

RM: Você é certamente uma boa psicanalista.

BM: Depois da análise com Lacan, eu quis voltar ao Brasil… Fui para a França porque queria ser livre… Mas acho que voltar foi uma decisão

certa, porque eu nunca consegui escrever em francês. Se conseguisse, a vida teria sido mais fácil, eu teria sido traduzida para outras línguas etc.

RM: Com excessão dos grandes autores (risos).

BM: Talvez.

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RM: Do modo como sua peça está escrita, a sua protagonista, no final, acha

a verdadeira identidade dela. Estou dizendo isso porque o final tem que ser crível na data em que a peça for apresentada ao público. O que você

acreditou no passado não importa.

BM: O que me interessa é escrever e acertar. Infelizmente, não posso escrever noutra língua. Só escrevo em português. Por ser apegada demais

às palavras, aos sons. Faço música, o problema é este, a língua brasileira é muito mais musical.

RM: Adoro o fado.

BM: E a relação com o corpo no Brasil é totalmente diferente da relação

com o corpo na França. No Brasil, por diferentes razões, nós nos mantemos jovens e isso é algo importante.

RM: Muito importante.

BM: O maior carnavalesco brasileiro, Joãozinho Trinta, dizia que as pessoas se mantêm bem a fim de dançar. A cultura do samba é uma grande

cultura.

RM: Verdade. Agora que nós falamos disso tudo, no clímax da sua peça, o que é que o público tem que sentir?

BM: Hum…

RM: Quando é que Seriema muda? Quando entende que no Brasil ela se sente segura.

BM: Também quando entende que pode se tornar mãe.

RM: Você quer que o público sinta que ela conseguiu o que queria?

BM: Foi o que aconteceu na leitura.

RM: Quer que o publico diga: «Maravilha, ela conseguiu!»? Isso só

acontece se, antes disso, ela estiver no inferno. Ela tem que passar do inferno para o céu. Acho que você ainda não entende isso, e é isso que você

precisa entender. Seriema passa do negativo para o positivo e a última cena tem que propiciar uma emoção intensa. O resto é secundário.

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BM: Estou trabalhando com este material há muito tempo. Escrevi o

romance em português, depois participei da tradução e reescrevi…

RM: Tende a ser biográfico.

BM: Isso é ruim?

RM: Depende da sua habilidade para separar você, como autora, da sua autobiografia. A biografia é o material, o trabalho de arte expressa uma

verdade universal, na qual os seres humanos encontrarão a sua identidade.

BM: Mas é mais fácil começar com uma história que nada tenha a ver com a vida do autor ou supostamente não tenha.

RM: É. O maior escritor de todos os tempos, Shakespeare, nunca escreveu nada de autobiográfico. Por outro lado, tudo em Shakespeare é

autobiográfico. Mas, voltando a você, o resultado tem que ser universal.