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Roberto Nunes Bittencourt Inês de Castro Relicário da Saudade Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Letras do departamento de Letras da PUC-Rio. Orientadora: Cleonice Serôa da Motta Berardinelli Rio de Janeiro Março de 2007

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Roberto Nunes Bittencourt

Inês de Castro

Relicário da Saudade

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Letras do departamento de Letras da PUC-Rio.

Orientadora: Cleonice Serôa da Motta Berardinelli

Rio de Janeiro Março de 2007

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Roberto Nunes Bittencourt

Inês de Castro

Relicário da Saudade

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Letras do Departamento de Letras do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.

Profª. Drª Cleonice Serôa da Motta Berardinelli Orientadora

Departamento do Letras – PUC-Rio

Profª. Drª. Marília Cardoso Rothier Departamento do Letras – PUC-Rio

Profª. Drª. Luci Ruas Pereira

UFRJ

Profª. Drª Pina Coco Departamento do Letras – PUC-Rio

Prof. Dr. Paulo Fernando Carneiro de Andrade Coordenador Setorial do Centro de

Teologia e Ciências Humanas

Rio de Janeiro, 23 de março de 2007

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Todos os direitos reservados. É proibida e reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização do autor, da orientadora e da universidade.

Roberto Nunes Bittencourt Graduado em Letras na Universidade Gama Filho (2004) com Bacharelado (habilitação em Análise de Sistemas Semióticos) e Licenciatura Plena em Língua Portuguesa e Literaturas de Língua Portuguesa. Desenvolve pesquisas relacionadas ao imaginário português. Associado, desde 2006 ao CiFEFil (Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Lingüísticos). É membro do Corpo Editorial da revista Teia Literária.

Ficha Catalográfica

CDD: 800

Bittencourt, Roberto Nunes Inês de Castro : relicário da saudade / Roberto Nunes Bittencourt ; orientadora: Cleonice Serôa da Motta Berardinelli. – 2007. 90 f. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Letras)–Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006. Inclui bibliografia 1. Letras – Teses. 2. Inês de Castro. 3. Literatura. 4. Saudade. 5. Mito. 6. Cultura. 7. Imaginário. I. Berardinelli, Cleonice Serôa da Motta. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Letras. III. Título.

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Paulo Roberto Bittencourt Sandra Maria Nunes Bittencourt Renato Nunes Bittencourt Pai, mãe e irmão. Companheiros nesta jornada para compreender a Vida e tudo aquilo que somos. Raquel Cristina dos Santos Pereira O meu Graal – missa e oração na comunhão com o Amor. “Vida da origem da minha inspiração!” Ofereço Dedico Consagro Por tudo o que têm sido para mim.

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Agradecimentos

Agradeço a Cleonice Berardinelli – pelo carinho, pelo olhar atento, pelas doces

correções, pela disposição. Como disseram nossos amigos da UFRJ, tenho plena

certeza de que “quanto mais vos pago, mais vos devo”. Recordarei sempre com

grande carinho o nome de Cleonice Berardinelli, que, “natural como um dia

mostrando tudo”, iluminou meu caminho. Fiquem estas palavras como uma singela

homenagem.

A Jorge Valentim e Luci Ruas Pereira, por todo o carinho e por depositarem em mim

larga confiança. Amigos nesta caminha intelectual, mostraram-me que é ensinando

que se aprende.

Às professoras Marília Cardoso Rothier e Pina Coco, por terem concordado em

participar da banca que avaliará este trabalho.

À PUC-Rio, à CAPES e ao CNPq, pelo fundamental apoio neste curso de pós-

graduação.

A secretária de pós-graduação, Francisca Ferrerira de Oliveira – a Chiquinha –, e a

assessora de Direção Digerlaine Tenório – a Di –, por toda a dedicação e pelo carinho

com que sempre me receberam.

A Solange e Vanie, por toda a atenção dedicada.

Aos docentes – e amigos – do Colégio Gama Filho e da UGF, onde cresci e me

formei intelectualmente. Um especial carinho por Roberto de Luca Guidoreni, Célia

Maria Franco Moura, Saumir Mello Portugal, Rosa Maria Ferrão, Alexandre do

Amaral Ribeiro e Ianne da Hora Alves Lima, por sempre acreditarem em meu

trabalho.

Aos professores, pesquisadores e amigos do Conselho Editorial da Revista Teia

Literária.

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A João Felipe Rito Cardoso e Célia Cohen, amigos, no sentido fraterno da amizade.

A Daniele de Oliveira dos Santos, pelos esclarecedores diálogos neste meu percurso

inesiano.

A Daniel Maretti Dias, Diógenes Ivo Fernandes de Sousa Silva, Flávio Henrique

Barboza da Silva, Felipe Batista Galvão, Leonardo Tôrres de Carvalho, Antônio

Marcos Vieira de Oliveira, Viviane Guedes de Sena, Vanessa de Carvalho Gama,

Felippe Ferreira, Virgínia Duarte Sant'Anna, Ana Suzart, Priscilla Maria da Costa

Lobo, Carla Beatriz da Nobrega Martins, Fernanda Franco, Elton Lima Barreto –

amigos de longa data.

A Angélica Rua Pinheiro e Anita dos Santos Ferreira, amigas.

A André Caldas e Tatiana Alves, por me incentivarem e me oferecerem sempre suas

mãos amigas.

A Sheila Moura, pelo carinho.

A Fátima Borges e José Fernandes, amigos, por todo o carinho e apoio.

A Paulo Roberto Bittencourt, Sandra Maria Nunes Bittencourt, Renato Nunes

Bittencourt e Raquel Cristina dos Santos Pereira – baluartes, sempre.

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Resumo

Bittencourt, Roberto Nunes; Berardinelli, Cleonice Serôa da Motta. Inês de Castro: relicário da Saudade. Rio de Janeiro, 2007. 90 p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

Inês de Castro: relicário da Saudade é uma dissertação que discute aspectos

histórico-culturais da simbologia da saudade advinda do episódio dos amores de

Pedro e Inês de Castro. Pela força da criação literária – capaz de transformar a

História – fatos e ficções envolveram-se em brumas. Passados 650 anos da morte da

“mísera e mesquinha”, o Ano Inesiano da Cultura reavivou reflexões em torno de

questões como “Alma Nacional”, “Identidade Cultural” e “Sentimento Português”.

No presente estudo, privilegiar-se-ão alguns textos históricos, filosóficos e líricos

portugueses, que abordam aspectos de uma cultura que faz da Saudade a sua força

vital.

Palavras-chave

Inês de Castro; Literatura; Saudade; Mito; Cultura; Imaginário

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Abstract

Bittencourt, Roberto Nunes; Berardinelli, Cleonice Serôa da Motta. Ines de

Castro: Myth and Memory (original title Ines de Castro: relicário da

Saudade). Rio de Janeiro, 2007. 90 p. Master’s Dissertetion – Literature Department, Pontifical Catholic University of Rio de Janeiro.

Ines de Castro: Myth and Memory (original title Ines de Castro: relicário da

Saudade) is an essay that intends to discuss description-cultural aspects of “saudade”

symbology from the love affair between Pedro and Ines de Castro. By the force of the

literary creation – capable to transform History – facts and fictions had been involved

in mists. Passed 650 years of the death of “poor and stingy”, the Inesiano Year of

Culture revived reflections around the “National Soul”, “Cultural Identity” and

“Portuguese Feeling”, contents of a culture that makes “saudade” its reward.

Key-words

Ines de Castro; literature; “saudade”; myth; culture; imaginary

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Sumário

1. Introdução 11

2. “Pera tão longo amor, tão curta a vida” 14 2.1. Inês de Castro e D. Pedro: mártires do amor 15 2.2. Razões do Estado, razões do afeto: “o grande desvayro” 20

3. “A lenda se escorre a entrar na realidade” 29 3.1. Literatura, Imaginário e Cultura 30 3.2. Portugal: memória e Saudade 38

4. “Estavas, linda Inês... ” 46 4.1. Inês: o olhar de Orfeu 47 4.2.O manto do amor, o Reino da Saudade 66 4.3. A Literatura Brasileira no rastro de Inês 72

5. Conclusão 81

6. Referências bibliográficas 83

7. Anexo 89

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Calem-se agora todas as tubas destes amores de prata! Vou falar-vos da obra do abraço de água e de fogo de onde brota o ouro do amor ofuscante. Porque se digo Pedro digo Inês; e se a esta nomeio nomearei o coração que por ela ainda sangra no horizonte do mais magoado dos mitos, tão eternos se fizeram estes amantes um no outro.

Natália Correia

É a noite eterna de Alcobaça, recamada de estrelas acesas, com os túmulos de pedra a vogar no espaço galáctico, com dois invólucros astrais, enquanto cá fora se sucedem os anos, os séculos, os milénios, na esperança de que um dia possa raiar a madrugada do fim do mundo e a trombeta do arcanjo anuncie o final dos tempos. [...] É um capítulo eternamente em aberto, dum drama sem fim, que começou com dois tegumentos vegetais, dois embriõs ovulares, e termina com dois corpos congelados, em órbita, em cápsulas de pedra, à espera de acordarem na última galáxia do tempo e do espaço. Nesse dia, quando já não houver humanidade para recordar o caso de Inês e Pedro, os astros hão-de contar com pasmo, uns aos outros, a fábula do seu amor. O romance de Inês e Pedro tem uma porta que se abre para a noite cósmica, original, profunda, que contém as almas universais antes da diferenciação, e uma outra que dá passagem para a noite una, final, em que tudo se perpetuará pelo vazio da saudade.

António Cândido Franco. A rainha morta e o rei saudade

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1 Introdução

Não importa o que se ama. Importa a matéria desse amor. As sucessivas camadas de vida que se atiram para dentro desse amor. As palavras são só um princípio – nem sequer o princípio. Porque no amor os princípios, os meios, os fins são apenas fragmentos de uma história que continua para lá dela, antes e depois do sangue breve de uma vida. Tudo serve a essa obsessão de verdade a que chamamos amor. O sujo, a luz, o áspero, o macio, a falha, a persistência.

Inês Pedrosa, Fazes-me falta

No dia 15 de janeiro de 2005 foi realizado, na Cidade de Alcobaça, o

“Colóquio Inês de Castro”, cuja direção coube a Maria Leonor Machado de

Sousa, catedrática jubilada da Faculdade de Ciências de Lisboa e vice-presidente

da Academia Portuguesa de História, além de grande pesquisadora do tema

inesiano na cultura portuguesa e da sua projeção na Europa. Na cerimônia

inaugural, realizada no Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça, Eunice Muñoz leu

poemas de autores portugueses, cuja temática girava em torno dos amores de Inês

e Pedro, do encontro, da saudade, do desvario, da paixão inconsolável.

As Câmaras de Coimbra, Alcobaça e Montemor-o-Velho, o Ministério da

Cultura e a Quinta das Lágrimas reuniram-se nesse projeto de resgate do tema,

tanto em sua historicidade, em sua carga simbólica e em seu valor mítico,

projetando-o no futuro, o que fez com que as comemorações do Ano Inesiano

seguissem uma linha que percorria um caminho muito além do simples relato dos

acontecimentos históricos ou de suas personagens. Buscou-se, mais que isso,

mostrar a carga simbólica e mítica deste episódio, refletindo as relações entre

paixão e tragédia, desejo e morte, amor e poder. Pensar Inês de Castro é, assim,

uma forma de valorização da História de Portugal.

Para as atas do “Colóquio Inês de Castro” escreve Joaquim Veríssimo

Serrão que

No conjunto monumental português, merece a Cidade de Alcobaça ser vista como uma das mais refulgentes jóias do nosso patrimônio cultural. À sombra da veneranda casa-mãe de Cister, o País engrandeceu-se com a riqueza da livraria claustral; com as granjas saídas do labor dos “monges brancos” e com as peças de

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arte que valorizam o recheio da Abadia alcobacense. Entre tantas e valiosas relíquias, como não exaltar os dois “moimentos” que guardam os restos do rei D. Pedro e da “Rainha” Inês de Castro, personagens do “grande desvayro” que ainda hoje comove a alma dos portugueses? Para recordar a tragédia amorosa que os envolveu, justifica-se a nossa ida ao mosteiro de Alcobaça, onde para sempre descansam os dois enamorados, cujas almas há muito repousam nas mãos de Deus.1

Elaborou-se, além disso, uma grande mostra que reunia obras de artistas

plásticos portugueses de várias gerações, dos consagrados aos mais jovens. Entre

seus organizadores destaca-se o nome de Alexandre Melo, grande autoridade em

arte contemporânea de Portugal. A mostra teve lugar no Pavilhão Centro de

Portugal em Coimbra e na Galeria de Exposições Temporárias da Ala Sul do

Mosteiro de Alcobaça. Como mote, a exposição valeu-se de um verso camoniano,

forte referência para os amores de Pedro e Inês de Castro: “O nome que no peito

escrito tinhas”.

Nuno Crespo, ao discutir os limites entre a História e o Mito e a relação do

episódio inesiano com a memória cultural portuguesa, destaca que:

Seja qual for a categoria em que se insere o episódio da paixão desvairada de Pedro e Inês – e perdoem-nos os historiadores –, este mito é uma construção estética. Não é por acaso que, excluindo os relatos históricos pouco numerosos, nada fidedignos e muito contraditórios, são os poetas e alguns artistas plásticos, agora em maior número, as melhores “fontes” do central e elementar desta tragédia.2

Se “um país forte é feito de artistas fortes e imagens fortes”, como disse o

diretor do instituto de Artes, Paulo Cunha e Silva, o amor desvairado de um

Infante por uma Dama – e tudo que envolve esse episódio –, estruturante da

Identidade Nacional Portuguesa, é um tema que vem do passado para reavivar

reflexões em torno de mito, ficção e nacionalidade, assuntos que são, como define

Haquira Osakabe, “território em que situamos a maior parte das questões

relevantes para a compreensão dos problemas culturais em Portugal.”3

Inês de Castro figura entre as personagens femininas de maior destaque nos

campos da História e da Literatura Portuguesas. Viveu com o Infante D. Pedro de

1 SERRÃO, Joaquim Veríssimo. In. SOUSA, Maria Leonor Machado de (dir.). Colóquio inês de

Castro. Alcobação, 15 de Janeiro de 2005 – Actas. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 2005. 2 CRESPO, Nuno. Mito, História ou Verdade?. In. O nome que no peito escrito tinhas. Coimbra: Ministério da Cultura – IPPAR, 2005, 16. 3 OSAKABE, Haquira. “A pátria de Inês de Castro”. In. IANNONE, Carlos Alberto, GOBI, Márcia V. Zamboni & JUNQUEIRA, Renata Soares (org.). Sobre as naus da iniciação. São Paulo: Unesp, 1998, p.107.

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Portugal um verdadeiro amor de perdição, culminado com a tragédia de 7 de

janeiro de 1355, quando, por razões de Estado, foi cruelmente executada. Do triste

episódio surge uma frase que soa como um refrão, significando qualquer coisa de

tardio e irreversível: “Agora é tarde, Inês é morta”.

Morta foi Inês, mas não o seu nome e a sua memória. Tanto a Literatura

quanto as demais expressões artísticas trataram de imortalizá-la, lendo sempre

com grande interesse a história desses protagonistas de uma das mais belas

histórias de amor. Comparada à de Romeu e Julieta, Tristão e Isolda, Abelardo e

Heloísa, a história de Inês e Pedro atravessa as fronteiras ibéricas, transcendendo-

se e sacralizando-se como um dos maiores mitos trágicos marcados pelo amor-

paixão.

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2 “Um trecho de História pôsto em Arte”

“Este inferno de amar” Este inferno de amar – como eu amo! Quem mo pôs aqui n’alma... quem foi? Esta chama que alenta e consome, Que é a vida – e que a vida destrói – Como é que se veio a atear, Quando - ai quando se há-de ela apagar? Eu não sei, não me lembra: o passado, A outra vida que dantes vivi Era um sonho talvez... – foi um sonho – Em que paz tão serena a dormi! Oh! que doce era aquele sonhar... Quem me veio, ai de mim! despertar? Só me lembra que um dia formoso Eu passei... dava o Sol tanta luz! E os meus olhos que vagos giravam, Em seus olhos ardentes os pus. Que fez ela? eu que fiz? – Não no sei; Mas nessa hora a viver comecei...

(Almeida Garrett, Folhas Caídas)

O texto que segue é o que se poderia chamar “pequeno ensaio histórico”,

ainda que, a bem da verdade, não o seja. Explicamos: seguindo delimitações

espaço-temporais, longa é a data que nos separa destes amores de Pedro e Inês de

Castro – são mais de 650 anos. Poucas são as referências fidedignas a respeito

deste episódio histórico de amor e morte e muitas são as conjecturas para aquilo

que se chamou “razões do Estado e razões do afeto”.

Ao pensar-se em um “esboço” biográfico de Pedro e Inês, era necessário

refletir em relação a que caminho seguir: aquele cheio de brumas e ao qual se

chama histórico, ou um de terreno extremamente fértil, a que se chama literário,

ficcional. Ousamos seguir o caminho do meio, utilizando as meias-verdades,

criando, talvez, a nossa própria vereda.

Transitando entre fatos e ficções fizemos nossa travessia. E, talvez, por nos

situarmos entre ambos, estivéssemos todo o tempo em ambos. Procuramos,

entretanto, manter em nossa narrativa – ou leitura, se for mais conveniente assim

dizer – aquilo que de essencialmente passou à História como fato. Deixemos as

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lendas aos artistas, para que as elevem a tal ponto que se confundam com a

realidade.

Surge, então, uma dúvida: como distinguir a ficção da realidade? Quatro

autores nos foram fundamentais: Fernão Lopes, Carolina Michaëlis de

Vasconcelos, Antero de Figueiredo e Maria Leonor Machado de Sousa.

Fernão Lopes, tido com justiça como o patriarca dos historiadores

portugueses, por todo o rigor com o qual buscava escrever suas crônicas. Disso,

voltaremos a falar no momento oportuno. Carolina Michaëlis de Vasconcelos

realiza uma atenta pesquisa abrangendo os aspectos filológico, poético e mítico

“do mais enigmático dos enigmas portugueses”: a Saudade. Antero de Figueiredo

foi um daqueles autores em que os olhos atentos do historiador se deixaram levar

pela alma do poeta. Escreve um romance, em prosa que se pode dizer poética, em

que muitas vezes a Arte predomina sobre a História. Muito devemos também às

investigações de Maria Leonor Machado de Sousa, a maior estudiosa de Inês de

Castro na atualidade.

Certamente, em maior ou menor proporção, servimo-nos de outras fontes

para chegar ao texto que ora apresentamos, como, por exemplo, as investigações

de historiadores e críticos propiciadas pelo “colóquio Inês de Castro” e a edição

organizada e dirigida por A. Pedro Gil – Os grandes julgamentos da História: o

processo de D. Inês de Castro –, que trazem novas luzes para esta tragédia de

amor que tem comovido corações através dos tempos.

2.1 Inês de Castro e D. Pedro: mártires do amor

A 8 de abril de 1320, nasce em Coimbra o Infante D. Pedro, filho de D.

Afonso (futuro rei) e D. Brites, neto do rei-trovador D. Denis e de D. Isabel.

Somente aos quatro anos o Infante foi conhecido pelos avós, que o levaram à Sé

de Lisboa e o ofertaram ao mártir São Vicente. A ocasião foi celebrada com

grande festa. Diz-se que dos olhos de D. Denis caíram lágrimas de júbilo, por ali

ter o futuro rei de Portugal, e de perdão, por ter encontrado a paz com o filho D.

Afonso, após dura guerra entre ambos, que se alastrou por Portugal de 1320 a

1324, com alguns raros intervalos de paz. D. Afonso revoltara-se contra o pai por

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lhe atribuir a intenção de preteri-lo na sucessão da coroa portuguesa por D.

Afonso Sanches, seu irmão bastardo. Conforme ressalta José Hermano Saraiva

[...] os poucos episódios que se conhecem mostram que a luta excedeu as proporções de uma questão de família. O País dividiu-se em dois partidos e o infante revoltado contava com a força dos concelhos. O mentor da revolta era um plebeu que o infante fizera seu chanceler, um advogado de Beja, filho de um carpinteiro. Fontes coevas acusam-no de, “por formosas palavras”, ter induzido muitos dos concelhos e também fidalgos. As acusações dos revoltosos não eram só relativas à predilecção do rei por D. Afonso Sanches, eram também as de que a justiça deixara de reinar no País; ora a palavra justiça tem, nessa época, muitas vezes a acepção de ordem social, equilíbrio entre grandes e pequenos. Com o apoio das forças populares (que em alguns casos expulsaram os alcaides dos castelos), apoderou-se de muitas povoações: Leiria, Coimbra, Montemor-o-Velho, Feira, Gaia, Porto. Os moradores de Guimarães tinham também prometido entregar-lhe a vila, mas um nobre fiel ao rei, ajudado por grande número de cavaleiros, impediu a realização do plano; tal facto fê-lo incorrer em tal ódio dos povos que o rei autorizou a afortalezar a residência, para poder resistir à vingança doa moradores da região. Numa Segunda campanha, o infante avançou sobre Lisboa; o rei saiu-lhe ao encontro, mas as tropas do concelho, que o acompanhavam, desertaram e passaram-se para o lado de D. Afonso. O último episódio da luta desenrolou-se em Santarém, que também tomara o partido do infante. O rei penetrou com os seus cavaleiros na povoação, contra a vontade dos moradores. Houve um combate sangrento e D. Dinis foi obrigado a ceder, decretando a expulsão do reino e o confisco de bens de D. Afonso Sanches, a demissão do nobre que se distinguira na defesa de Guimarães. Deram-se garantias de guerra lado a lado e perdoaram-se mutuamente as ofensas. 4

Morto D. Denis, pouco depois de 1325, o pai de D. Pedro ascende ao trono

português como D. Afonso IV. Imediatamente, o rei pensa em arranjar o

casamento do filho. Para tanto, consegue do Papa João XXII uma bula permitindo

ao infante casar-se com qualquer mulher, ainda que com certo grau de parentesco.

O rei pretendia que o filho tomasse por esposa a princesa de Aragão ou de

Castela, parentas mais ou menos próximas da coroa portuguesa.

Há que se destacar que o casamento de príncipes era basicamente uma

instituição política, sendo a forma mais comum de selar os acordos de paz entre os

reinos. Se no reinado de D. Denis se arranjou casamento com o reino de Aragão,

visando a que ambas as coroas pudessem ter proteção mútua contra Castela, D.

Afonso IV fê-lo diretamente com a coroa castelhana. Acordou-se que o monarca

português concederia a Afonso XI, que já tinha casamento marcado com D.

Constança Manuel, filha de D. João Manuel – senhor de muitas terras, além de

4 SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. 23. ed. Sintra: Europa-América, 2005. p. 88-89.

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cronista e poeta – a mão da infanta D. Maria, o que o fez preterir a noiva em favor

da filha de Afonso IV. Nessa nova situação, D. Pedro se casaria com D. Branca,

filha do Infante D. Pedro de Castela e prima do rei Afonso XI.

Ainda criança, D. Branca é levada à corte portuguesa. Estabeleceu-se que,

quando completassem doze anos, o casamento seria sacramentado. Desde cedo, no

entanto, D. Branca mostrou-se de saúde fraca. Quando finalmente completaram a

idade para se casarem, decidiu-se que seria mais conveniente esperar por mais

dois anos, na esperança de que D. Branca pudesse ter sua saúde restabelecida. Não

aconteceu. Decidiu-se em conselho, então, desatar de vez o matrimônio.

D. Afonso IV tratou, desde logo, de arranjar outro casamento para o seu

filho. Mais uma vez o monarca português fez-se valer da política de casamentos.

Consultados os conselheiros, pensou-se para mulher de D. Pedro a filha do rei de

Aragão, a irmã do rei de França ou a filha do duque de Milão. Optou-se, afinal,

por Constança Manuel, a mesma que tivera seu noivado desfeito com Afonso XI.

Tal casamento seria uma tentativa de se estabelecer a paz entre Portugal e Castela.

Conforme destaca Manuela Mendonça, o monarca castelhano casou-se com

D. Maria de Portugal em 1328, o que selou, temporariamente, a paz entre os

reinos.

Porém, este consórcio não foi marcado pela felicidade, sendo certo que o rei preferiu uma amante, D. Leonor de Gusmão, impondo à real consorte um permanente retiro em Sevilha. Aí viveu a filha de Afonso IV com seu filho, Pedro, que nascera em 1334. Entretanto, Afonso XI teria, com a amante, dez outros filhos. Tal situação desagradava profundamente o rei de Portugal, que abriu um claro conflito com o genro. Esse conflito iria agudizar-se quando o rei português escolheu para noiva do sucessor régio, D. Pedro, a D. Constança Manuel. Era a jovem filha do poderoso D. João Manuel, tio de Afonso XI, com quem antes fora acordado casamento para a mesma jovem. Ora o rei de Castela preterira a noiva a favor da infanta D. Maria, o que levara D. João Manuel a perfilar-se no grupo que, em Castela, se opunha ao seu rei. O descontentamento do rei de Portugal pelo modo como Afonso XI procedia com D. Maria terá encontrado eco no fidalgo castelhano ofendido, o que viria a contribuir para a união de forças feita, que foi selada com o casamento do herdeiro português com D. Constança Manuel. Tal frente de oposição não agradou, naturalmente a Afonso XI, que decidiu dificultar a vinda da noiva para Portugal. De facto, feita a negociação do casamento em 1335, o mesmo só viria a realizar-se em 1340. Entretanto, D. Afonso IV decidira usar a força das armas, enfrentando o genro, para resolver o conflito. 5

5 MENDONÇA, Manuela. “O tempo de Inês de Castro”. In. Colóquio Inês de Castro: actas 15 de janeiro de 2005. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 2005. p. 21-22.

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18

A paz entre Portugal e Castela sobreveio apenas quando ambos os reinos

sentiram a necessidade de unir forças para conter os muçulmanos que, no sul da

Península Ibérica, constituíam uma séria ameaça para os reinos cristãos. Afonso

IV intervém, por intermédio de D. Maria, junto ao genro. Em 30 de outubro de

1340, as coroas ibéricas saem vitoriosas da batalha que passou à História como do

Salado. D. Constança Manuel pôde, finalmente, entrar em Portugal e receber todas

as honras devidas a uma descendente dos reis de Leão, Castela e Aragão.

Em sua comitiva veio a dama galega Inês Pires de Castro, filha natural de D.

Pedro Fernandes de Castro, dito da Guerra, grande senhor galego, e de D. Aldonza

Soares de Valadares. Da mesma mãe tem como irmão D. Álvaro Pires de Castro,

além de dois meios-irmãos, frutos do casamento do pai: D. Fernando e Joana de

Castro. Vem, por parte do pai, de uma linhagem antiga e nobre, descendente do

famoso D. Rodrigo Dias de Bivar, o Cid Campeador. Além disso, é bisneta do Rei

Sancho IV de Castela. Desde tenra idade passa a ser criada por Tereza de

Albuquerque, viúva de Afonso Sanches – o bastardo do rei D. Denis, meio-irmão

do monarca português Afonso IV –, a quem Inês chamava mãe.

Com as bênçãos nupciais do arcebispo da Sé de Lisboa, o Infante e

Constança se casam. O rei D. Afonso IV e D. Brites sentiram um especial

contentamento, já que o filho se casava com uma mulher forte, vigorosa, em tudo

diferente da fraca e estéril D. Branca de Castela. A nobreza e o povo assistiram à

cerimônia, em tudo bela. A corte portuguesa estava em festa, mas não o coração

do príncipe. O casamento, arranjado para apaziguar os ânimos de constantes

conflitos entre o monarca português e D. Afonso XI não agradara ao Infante D.

Pedro, que pretendia, por si mesmo, escolher sua mulher. Casou-se sem amor,

pois nunca havia visto aquela que lhe davam em casamento. Tal fato o faz afastar-

se cada vez mais de D. Constança.

Logo, o príncipe retomou a sua vida de monteiro, dedicando-se às caçadas

diárias. Acima de tudo, queria manter-se afastado da corte. Acostumou-se a

crescer livre, cavalgando pelos campos, pelos outeiros e pelas serras. Impetuoso,

tudo que pudesse ser uma prisão não lhe agradava, tal como o seu casamento

político, pelo bem da paz do reino. A princesa acostumou-se a viver assim,

bastante só, encontrando satisfação em ser esposa do Infante de Portugal e, por

isso, futura Rainha. Contentava-se, simplesmente, em ver a alegria do marido após

um dia de montaria.

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Rezam as lendas que foi em um dia de inverno, ouvindo os longos serões do

Paço, onde se declamavam cantares de amor sem fim, que os olhos de D. Pedro,

pela primeira vez, se encontraram com os de Inês de Castro. Ao lado de D.

Constança, a dama usufruía os lazeres do dia-a-dia na corte. Sua formosura, seus

encantos – os loiros cabelos a cair pelos ombros, os olhos verdes e brilhantes, o

porte sereno e suave como o de uma garça a andar pelos jardins do paço, a pele

branca como a da mais bela pérola, os lábios graciosos, a beleza com qualquer

coisa de divino – fizeram-lhe valer o cognome “colo de garça”.

O Infante não tardou em mostrar grande simpatia e afeição pela bela Inês,

que correspondia, em tudo, a esses sentimentos. O fogo da paixão arde no peito do

casal. As razões do coração falam mais alto que os compromissos de Estado. O

Infante passa a enfrentar todas as convenções da Corte, dispondo-se a desafiar a

tudo e a todos por seus sentimentos.

O amor entre Pedro e Inês não fica despercebido de D. Constança. Talvez

tudo fosse um impulso momentâneo, queria acreditar, e, por isso, passageiro.

Talvez o Infante não fosse capaz de viver um tão grande amor. Ledo engano!

Frustraram-se todas as tentativas de Constança Manuel de trazê-lo para si.

Descobrindo-se grávida, encontra um fio de esperança para que seu desejo se

realize. A criança haveria de acender em D. Pedro o sentimento paterno. Quando

nasce o pequeno Luís, a mulher do Infante, na tentativa de separar o casal,

convida Inês para madrinha do menino, criando entre os três um laço espiritual. D.

Luís, entretanto, não sobreviveu ao primeiro ano de vida.

Os amores de Pedro e Inês ficaram conhecidos. D. Afonso IV, percebendo o

escândalo que se tornara a paixão de seu filho pela dama e ouvindo as vozes que

julgavam a relação do casal como uma afronta à moral e aos dogmas religiosos,

força a moça ao exílio. D. Inês esconde-se no Castelo de Albuquerque, onde

passara a infância. Contudo, a distância não foi capaz de separar o apaixonado

casal. Inês e Pedro, por intermédio de amigos, continuaram comunicando-se por

cartas.

Pouco a pouco D. Constança Manuel sucumbe, mais a uma fraqueza moral

do que física. Lamentosa, saudosa de sua terra natal, descobre-se novamente

grávida. Nasce a criança, uma menina, a quem dão o nome de Maria. Talvez fosse

para a mãe a esperança e a alegria de viver.

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O Infante vê-se, afinal, liberto das obrigações do matrimônio quando lhe

morre a mulher, ao parir D. Fernando. Com a morte da esposa, D. Pedro traz a

amada Inês de volta a Portugal, às terras de Lourinhã. Tempos depois se dirigem a

Coimbra, instalando-se em uma Quinta próxima ao Mosteiro de Santa Clara, o

mesmo em que vivera a veneranda rainha D. Isabel de Aragão.

Seguiram-se tempos felizes para o casal, em que puderam entregar-se àquele

amor que pulsava em seus peitos. Longo tempo viveram o suspiro, a sensualidade,

o gozo de um idílio. Saíam juntos a montear pelos campos. Freqüentemente eram

vistos a assistir às orações clericais. Conquistavam, cada vez mais, a simpatia da

arraia-miúda das terras do norte, capaz de entender os corações do príncipe e de

sua amada Inês. O Infante criava cada vez mais uma corte unida e forte, tratando a

gente do povo com igualdade e zelo.

Quando partia solitário para as caçadas, por vezes D. Pedro ausentava-se

durante algum tempo, às vezes dias. Daí vem uma imagem que a arte tratou de

imortalizar:

Inês, para disfarçar as horas nocturnas da ausência, – para iludir saüdades – desce dos Paços com suas aias até à borda do rio e, leve, regaçando com brancas mãos de anéis, sôbre o bico de um pequenino borzeguim recamado de prata, sua fraldilha de sêda amarela, entra num barco que, na quietação da noite clara, desliza na corrente mansa do Mondego. No céu alto, as estrêlas lucilantes falam de Deus. É a hora dos místicos silêncios... Os corações pensam. As águas coaxam nos remos lentos; distantes, soluçam os sapos nos lameiros, e os rouxinóis cantam nos choupos das ínsuas nevoadas. Longe, nos montados da Beira, D. Pedro lembra-se da amada e o seu amor é forte e fragueiro como os penhascos das serras bravias!6

2.2

Razões do Estado, razões do afeto: “o grande desvayro”

Repugnando a mancebia do filho, D. Afonso IV mostrou-se interessado em

que o Infante novamente se casasse. Buscou, para tanto, nomes de moças de

sangue real. Uma vez mais, queria arranjar para o filho um casamento com forças

políticas para Portugal. D. Pedro, porém, rejeita-as todas. D. Afonso IV resolve,

6 FIGUEIREDO, Antero de. D. Pedro e D. Inês: “o grande desvayro”. Lisboa: Bertrand, 1917. p. 91-92.

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então, casá-lo com Inês de Castro. Envia emissários a D. Pedro, instando-o a

legitimar sua união.

Ao tempo que ha Jfamte Dª Constança, molher do Jfamte D. Pedro, feleçeo, ele fiquou moço de trimta e tres anos, idade muj comueniente pera ajmda auer de casar. E posto que delRey e da Rainha, seu padre e madre, e dos princypaes homens de Portuguall fose pera yso e com justas rezões acomselhado, e asym por elRey seu padre, requerido e amoestado que casase, ou dysese se Dª Jnes era sua molher, pera ser por yso homrada e tratada de todos como ela mereçya, em vyda delRey sempre denegou, que ho casamento amtre eles era feito. Nem tam pouquo quis com houtra molher casar, pera que daua escusas e pejos que há soo sua vomtade e afeição sem mays rezões fauorecyão. E ysto tudo era soo por nom deixar Dª Jnes de Crasto, a que queria gramde bem, e de que tinha os tres filhos e huma filha que dyse, a qual era sua sobrinha, filha de um seu prymo comjrmão7

O Infante não seguiu o conselho do pai. Para a recusa de D. Pedro, alguns

fatores têm sido apontados: o fato de Inês ser filha natural, ainda que descendente

de rei; o grau de parentesco que entre ambos havia, sendo primos, já que D.

Beatriz (sua mãe) era tia de D. Pedro Fernandes de Castro; o laço espiritual que os

unia; o fato de o Infante estar seguro de si o suficiente para não temer pela

segurança de Inês de Castro. Ou, ainda mais provável, D. Pedro já estava casado

com Inês, em um enlace realizado em segredo, não cabendo, portanto, casar-se

uma segunda vez com a mesma mulher. D. Pedro haveria, um dia, quando já fosse

rei, de tornar público o casamento, podendo então amar e honrar sua mulher como

Rainha de Portugal.

Diante da recusa do filho, temendo a presença da dama galega em Portugal e

a influência dos Castros, receando que os irmãos de Inês dominassem D. Pedro a

ponto de se colocar a Coroa portuguesa em xeque, D. Afonso, ouvindo seus

conselheiros, aconselha ao filho que Inês saia de Portugal. Para o bem do reino,

acreditava ser necessário que se separasse D. Pedro de Inês de Castro. Mais uma

vez, o Infante não obedece ao pai, percebendo que as ameaças não haveriam de

ser executadas.

Corriam os anos e o impasse se mantinha. Consultado por seus conselheiros,

D. Afonso IV pensou em enviar a Roma uma carta, rogando ao Papa que não

permitisse a D. Pedro casar-se com Inês, acreditando que a melhor afastar decisão

era a de afastar o casal, não lhes permitindo a união pelo matrimônio. Justificaria

7 TAROUCA, Carlos da Silva (ed.). Crónica dos sete primeiros reis de Portugal. Lisboa: Casa Cadaval, 1953. p. 365.

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ao pontífice ser o relacionamento de ambos uma desonra para o reino de Portugal.

Recua, porém. Prefere ir até a Inês de Castro. Queria muito bem à moça, mas as

razões de Estado eram mais importantes que as do coração. Sugeriu uma

separação, afinal D. Pedro não queria se casar com nenhuma moça. E todas as

vezes que o rei procurava por Inês – sempre na ausência do Infante – a conversa

terminava em impasse.

Havia, ainda, um outro fato desagradável ao monarca português: os irmãos

de Inês incitavam cada vez mais D. Pedro para que ele lutasse pela coroa

castelhana.

Sendo esta uma família de grande relevo em Castela, temia-se que pudesse vir a ter descendente em Portugal por via da influência de D. Inês sobre o futuro monarca. Com efeito, logo após a morte de Afonso XI em 1350, os irmãos bastardos do rei, D. Henrique, conde de Transtâmara e D. Fradique, mestre de Santiago, juntamente com o fidalgo português D. João Afonso de Albuquerque, conjuram contra a coroa. Fazendo Inês de Castro parte de uma família poderosa e descendente, apesar de ser por via bastarda, do rei Sancho IV de Castela, e havendo ligação com a família Albuquerque por via de Afonso Sanches, o bastardo de D. Dinis que casara com uma Albuquerque, o mesmo que levara D. Afonso IV a lutar contra o pai. Ora a revolta que estalara em 1350, em Castela contra o rei Pedro I, tinha como chefe precisamente João Afonso Albuquerque, filho de Afonso Sanches e, portanto, uma espécie de irmão adoptivo de Inês de Castro. Estranho seria que João Afonso não tivesse usado a influência sobre Inês para conseguir conquistar a simpatia de D. Pedro para a sua causa. O plano era relativamente simples: depois de terem conseguido destronar o filho de Afonso XI, iriam oferecer a coroa a D. Pedro, neto legítimo de Sancho de Castela. É nesse sentido que D. Álvaro Pires de Castro faz a proposta ao Infante D. Pedro. Tratava-se, sem dúvida, de uma proposta tentadora, mas [o Infante] não a aceitou, como era desejo de seu pai.8

D. Pedro recuou somente após muitos conflitos contra o pai. Afonso IV

receava somente pela estabilidade do reino, que poderia ser ameaçado pelas

coroas vizinhas. Por muitas vezes D. Afonso IV reuniu-se com seus conselheiros,

buscando uma solução possível que não uma tragédia sangüinária. Talvez

expulsar de vez Inês das terras lusitanas, enviando-lhe de volta à Espanha. Idéia

que agradara a parte do conselho, mas desagradável à corte, que queria Inês

morta. Os conselheiros mais íntimos de D. Afonso IV, Pero Coelho, Álvaro

Gonçalves e Diogo Lopes Pacheco pressentiam grande perigo para o Reino,

acreditando que os ambiciosos irmãos de Inês, intriguistas como eram, levariam

Pedro a ser um mau rei. Continuamente os conselheiros incitaram D. Afonso IV –

8 MONTEIRO, Miguel Corrêa. “Razões de Estado e razões do Coração”. In. Colóquio Inês de

Castro. p. 42-43

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que muito prezava as razões de estado – a uma atitude que lhes parecia inevitável:

executar Inês de Castro.

Ressalta o professor Ângelo Ribeiro que os conselheiros mais íntimos de D.

Afonso IV, Pero Coelho, Álvaro Gonçalves e Diogo Lopes Pacheco

[...] presentiam grande perigo para Nação no predomínio crescente dos Castros no ânimo do príncipe. Intriguistas e ambiciosos como eram, levá-lo-iam a ser um mau rei, e, como o único esteio legítimo da dinastia era o pequeno infante Fernando, fácil lhes seria desfazem-se dele, para que sucedesse a D. Pedro, em caso de morte, um dos sobrinhos, filhos de Inês de Castro Com o contínuo resmungar destas razões, desvairaram os conselheiros o espírito sensato de Afonso IV, para o qual a razão de Estado era tudo; e às repetidas sugestões dos cortesãos, no sentido de fazer desaparecer a amante do filho, cedeu o monarca finalmente.9

Logo que D. Afonso IV concedeu a palavra régia, organizou-se um processo

político contra Inês de Castro. Ressalta A. Pedro Gil que:

Não existe um só documento escrito que constitua o verdadeiro "processo" de Inês de Castro, como não existe uma só peça do seu julgamento, pois que embora Inês houvesse sido julgada, as circunstâncias especiais implicaram uma apreciação do seu caso por D. Afonso IV e pelos do seu conselho, mas sem que das deliberações havidas se tenha qualquer relato escrito autêntico.10

Foi no dia 7 de janeiro de 1355. Esperar-se-ia apenas pela ausência do

Infante, o que não tardou. Partindo de Montemor, o rei segue para Coimbra com o

bispo do Porto, sacerdotes, nobres – dentre os quais Diogo Lopes Pacheco, Pero

Coelho e Álvaro Gonçalves –, além de homens de armas. Chegando aos Paços de

Santa Clara, o monarca ordena que se cerquem as casas. Diz-se que, por muitas

vezes, pensou em recuar. Não queria derramar o sangue de uma inocente. Afonso

IV sabia ser Inês inocente. E isso fazia crescer o rancor do pai para com o filho.

Quantas e quantas vezes o Infante fora aconselhado dos perigos que Inês corria...

Quantas e quantas vezes D. Pedro teimou em desobedecer as ordens do pai...

Tudo agora era um triste desconcerto. Sobem ao Paço o rei e o meirinho-

mor, com a sentença na mão. O que se segue é uma das mais tristes cenas de que

se pode haver. Ao dar-se conta de toda aquela atmosfera de gravidade, Inês

9 RIBEIRO, Ângelo. “O episódio de Inês de Castro”. In. Os grandes julgamentos da história: o

processo de D. Inês de Castro. Lisboa: Amigos do Livro, s/d. p. 107. 10 GIL, A. Pedro (org). Os grandes julgamentos da história: o processo de D. Inês de Castro. Lisboa: Amigos do Livro, s/d, p. 13-14.

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desespera-se, apela, suplica em favor dos filhos. O rei hesita. Ela é inocente,

afinal. Pressionado, porém, D. Afonso IV deixa vencerem as razões do Estado e

morrer a do afeto. A bela dama é cruelmente assassinada.

Ao tomar ciência da crueldade, o coração de D. Pedro encheu-se de dor e

ódio. Depressa retorna, com seus homens, ao Paço de Santa Clara. Desespera-se

em agonia cada vez mais, e a cada vez em que clama por sua amada resta apenas o

silêncio. Não há sítio que seja maior que o seu pesar. Assombrado pelo remorso, a

culpa cai sobre o Infante. Não lhe faltaram avisos para proteger Inês contra a triste

sina. Não havia, afinal, dignificado sua amada. Inês estava, agora, morta e

enterrada.

Diz-se que D. Pedro, prostrado por uma grande febre, tocou as raias da

loucura. Pelo curto período de tempo em que estava enfermo, não pensava em

nada mais que no seu desejo de vingança. Uma obsessão, uma sede que haveria de

ser saciada. Levantaria um exército contra o seu pai. Uma vez restabelecido, assim

o fez. Apoiado por nobres que lhe eram caros, dentre os quais D. Fernando de

Castro e D. Álvaro de Castro, o Infante, partindo do norte e indo em direção ao

Porto, aumentava cada vez mais o número de partidários. Em cada vilarejo que D.

Pedro e Inês eram queridos, o povo sofre da dor do príncipe. Aumentava-se o ódio

contra o rei, contra os conselheiros régios e contra todos aqueles que consentiram

na morte da amada de Pedro. O sonho da justiça guiava os paços daquele exército,

composto de todo tipo de gente. Nobres e plebeus uniam-se por uma causa,

uniam-se em um grito de justiça e vingança.

O Jmfante D. Pedro pela morte da dita D. Jnes de Castro, e por saber que por seu respeito somente, e sem [culpa] alguma dela, há matarão, foi com rezão tão anojado, e posto em tanta tristeza, que como danado amdaua pera perder ho syso e a uida, sem algum remedyo nem comforto. E porem, per alguma vimgança e satisfação sua, ajmda que fose per meos tam comtrarios a ele, buscou e procurou loguo todalas cousas em que pudese deseruir a elRey, seu padre, e destrohir seu Reino, e dar mortall castigo aos matadores dela, se pudese.11

D. Pedro, preparado para a batalha, avança com o seu povo. Atravessando o

reino, chegam ao Porto. Ali estava D. Gonçalo Pereira, arcebispo de Braga, em

nome de D. Afonso IV. Para viver ou para morrer, lutaria em nome do rei se fosse

11 TAROUCA, Carlos da Silva (ed.). Crónica dos sete primeiros reis de Portugal. Lisboa: Casa Cadaval, 1953. p.368.

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necessário. Da rainha-mãe, D. Brites, tinha uma missão: dissuadir o Infante da

luta. A guerra, afinal, seria um erro, pois sangue inocente poderia ser derramado.

E talvez isso, somente isso, tenha acalmado o coração do Infante. Pai e filho

assinam em Canaveses, no dia 15 de agosto de 1355, o acordo de paz. D. Afonso

IV delegara ao Infante grande parte do poder da Coroa. A D. Pedro restou aceitar

– e jurar – o completo perdão.

Em 1357, quando estava com 37 anos, D. Pedro ascende ao trono. Logo

ratifica os acordos políticos com os reinos vizinhos, especialmente com Castela.

D. Pedro de Portugal e D. Pedro de Castela selam aliança, além de combinarem

casamentos entre os seus filhos. Acordou-se que D. Fernando, herdeiro da coroa

portuguesa, se casaria com D. Beatriz, Infanta de Castela. D. João e D. Denis,

filhos de D. Pedro e Inês de Castro, com D. Constança e D. Isabel, filhas de D.

Pedro de Castela e de sua amante Maria de Padilla.

Todas as alianças políticas decorriam de uma idéia que lhe desvairava a

mente: o desejo de fazer justiça contra aqueles que consentiram e, sobretudo,

executaram o assassínio de Inês de Castro. Assina com o soberano de Castela um

acordo de extradição: a coroa portuguesa comprometer-se-ia a extraditar os

criminosos políticos castelhanos; Castela entregaria Pero Coelho, Diogo Lopes

Pacheco e Álvaro Gonçalves. Estes três, ainda em vida de D. Afonso IV,

refugiaram-se em Castela, a conselho do monarca português.

Cumpriu-se o acordo. Fernando Guidel de Toledo, Mem Rodrigo Tenório e

Fernão Sanches Calderon, expatriados castelhanos, foram entregues na fronteira

entre os dois reinos e sentenciados em Sevilha. D. Pedro de Castela enviou para

Portugal Álvaro Gonçalves e Pero Coelho. Reza a tradição que Diogo Pacheco

teria sido salvo por um mendigo a quem ajudava, dando esmolas, tendo ambos

trocado, entre si, suas vestes. Daí fugira para Aragão e posteriormente para a

França. Os algozes da bela Inês foram executados nos paços reais de Santarém.

Uma espantosa e macabra execução: o povo, atônito, viu Pero Coelho e Álvaro

Gonçalves terem seus corações arrancados – o primeiro pelo peito, o segundo

pelas costas – enquanto o rei trinchava e comia sua refeição, fartando-se de vinho,

assistindo à tortura dos algozes de Inês de Castro. A seguir, o rei mandou que seus

corações fossem queimados.

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Não foi por crueldade, como geralmente se supõe, que D. pedro mandou arrancar, a um pelas costas, a outro pelo peito, os corações de Pero Coelho e Álvaro Gonçalves. Êste movimento de vingança foi guiado pelas idéias do tempo – pelas leis da "justiça simbólica", que prevalecia ainda e que tinha raízes na primitiva lei de talião, cuja fórmula penal era "ôlho por ôlho", “dente por dente". O órgão delinqüente (a língua para o blasfemo, a mão para o ladrão, etc., etc.) era o principal responsável pela culpa. Tôda a alma criminosa se concentrava nesse órgão, ao qual se dirigia a justiça, amputando-o, e a vingança pessoal, cravando nêle seus rancores. [...] Na Idade-Média, o coração era, entre cavaleiros, o órgão da lealdade. Pero Coelho e Álvaro Gonçalves, conluiando-se com o rei e com outrros, para ordenar a execução de Inês de Castro, às escondidas, faltaram à lealdade para com o infante – cometeram traição. Os seus corações passaram a ser traidores, e por isso deviam ser punidos. D. Pedro estava dentro dos costumes do tempo.12

A sede de vingança estava saciada. A alma e o coração do rei estavam,

porém, inquietos. Em 12 de junho de 1360, nas terras de Castanhede, D. Pedro

declara, tendo as mãos postas nas Sagradas Escrituras, apresentando como

testemunhas D. Gil, bispo da Guarda, e Estevão Lobato, seu criado, que ainda

Infante, em data que não sabia precisar, casara-se com Inês de Castro. Realizara

um casamento secreto, somente agora declarado por não querer desgostar o pai.

Jurou-o D. Pedro solenemente.

A partir de então, o rei preocupa-se em preservar a memória de Inês de

Castro. Queria trasladar o cadáver de sua mulher do Mosteiro de Santa Clara para

um que fosse mais reservado, mais afastado das cidades. Após muito meditar,

resolveu-se por Santa Maria de Alcobaça, longe de Coimbra – que para o rei

representava terras de muitas saudades. D. Pedro passa a arquitetar como haveria

de ser o túmulo da amada. Pretendia algo magnífico, superior a todos aqueles de

que se tinha notícia. Em seus desvarios apaixonados, decidiu que mandaria fazer

um túmulo apenas, em que ele e Inês, sob suas estátuas coroadas, dando-se as

mãos, repousariam no sono da morte, até ao Dia do Juízo. Os monges

alcobacenses, a quem repugnava a idéia, considerada por eles mundana,

dissuadiram o rei de concluir a obra.

Muito se pensou até que D. Pedro decidiu como haveria de ser. Relata o

cronista Fernão Lopes que o Infante

[...] mandou fazer huum muimento dalva pedra, todo mui sotillmente obrado, poemdo emlevada sobre a campãa de çima a imagem della com coroa na cabeça, como se fora Rainha; e este muimento mandou poer no moesteiro Dalcobaça, nom aa emtrada hu jazem os Reis, mas demtro na egreja ha maão dereita, açerca da

12 FIGUEIREDO, Antero de. D. Pedro e D. Inês: “o grande desvayro”. Lisboa: Bertrand, 1917. p. 268-270.

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capella moor. E fez trazer o seu corpo do mosteiro de Samta Clara de Coimbra, hu jazia, ho mais homrradamente que se fazer pode, ca ella viinha em huumas andas, muito bem corregidas pera tal tempo, as quaaes tragiam gramdes cavalleiros, acompanhadas de gramdes fidalgos, e muita outra gente, e donas, e domzellas, e muita creelezia. Pelo caminho estavom muitos homeens com çirios nas maãos, de tal guisa hordenados, que sempre o seu corpo foi per todo o caminho per antre çirios açesos; e assi chegarom ataa o dito moesteiro, que eram dalli dezassete legoas, omde com muitas missas e gram solenidade foi posto em aquel muimento: e foi esta a mais homrrada trelladaçom, que ataa aquel tempo em Portugal fora vista.13

Ao lado da arca tumular da amada, D. Pedro mandou construir a sua, de

igual encanto, mas diferente nos pormenores. Se a arca tumular de Inês é toda

adornada com motivos religiosos, nesta haveriam de ser retratadas cenas da vida

desse apaixonado casal. Cenas de eterna saudade. Em seu túmulo grava a crença

na eternidade: A�E·AFIN�DO MVDO – “até a fim do mundo”. Fora o ato final

do grande desvario amoroso do rei. Levantara-se o galardão do amor. Honrara-se

Inês de Castro, Rainha de Portugal.

Ainda reinou cerca de cinco anos depois da trasladação dos restos mortais de D. Inês para o formoso túmulo, no mosteiro de Alcobaça. A partir de então, dir-se-ia que a sua inquietação interior se apaziguara. Fizera à mulher amada a mais aparatosa reabilitação moral que lhe fora possível. Repousava, finalmente, das suas esgotantes angústias. Já o vergava uma velhice precoce. Aos quarenta e seis anos aparentava contar sessenta. A sua barba, tão sedosa e loura na mocidade, tornara-se de um ruço sujo, como que de estopa, como o cabelo, que, faltando-lhe nas têmporas, já o ameaçava de calvície. A epiderme, perdendo o tom rosado, volvia-se marfínea. Apagara-se a chama que outrora ardia nos seus olhos negros, que eram agora brasas amortecidas, a extinguir-se sob a cinza dos desgostos. Parecia não temer muito que a morte – a doce amiga dos que já nada esperam deste Mundo – o viesse buscar para o depor no outro formoso túmulo que o esperava junto da que fora a substância da sua própria vida.14

Depois da morte de Inês de Castro, D. Pedro não se casou outra vez. Teve,

apenas, de uma dama chamada Teresa Lourenço, um filho chamado João, mestre

de Avis, futuro D. João I, que inaugurará uma nova dinastia em Portugal. Por dez

anos reinou D. Pedro, sempre a andar pelo reino espalhando a justiça. Era juiz

inexorável castigando as mais diversas faltas. Obcecado pela justiça que não tarda

em aplicar, logo lhe vem o cognome de “Justiceiro”, porque para nobres ou

13 LOPES, Fernão. Crónica de D. Pedro I. Porto: Livraria Civilização, 1963, p. 106-107. 14 DOMINGUES, Mário. Inês de Castro na vida de D. Pedro. 2. ed. Lisboa: Romano Torres. 1961. p. 333.

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plebeus, clérigos ou leigos, a justiça é igual. Suas sentenças inclementes valeram-

lhe o nome de “Pedro, o Cru”. Reinava com absoluto poder, sabendo ouvir as

cortes. Deleitava-se nas caçadas, imaginava festas grandiosas. Punha-se

infindáveis vezes a chorar saudades de amor. Viva para o reino, pouco se

importando com políticas externas. Foi um rei amado pelo seu povo, capaz de

entender o coração do rei que viveu e sofreu pelo amor de Inês de Castro.

Amava muito de fazer justiça com direito. E assim como quem faz correição andava pelo reino; e visitada uma parte não se esquecia de outra, em guisa que poucas vezes acabava um mês em cada lugar de estada. Foi muito mantenedor de suas leis e grande executor das sentenças julgadas; e trabalhava-se quanto podia de as gentes não serem gastadas por azo de demandas e prolongados pleitos. E se a escritura afirma que por o rei não fazer justiça vêm as tempestades e tribulações sobre o povo, não se pode assim dizer deste, cá não achamos enquanto reinou que a nenhum perdoasse morte de alguma pessoa nem que a merecesse por outra guisa, nem lha mudasse em tal pena por que pudesse escapar a vida.15

Morre, de forma quase repentina, aos quarenta e sete anos, a 18 de janeiro

de 1367, em Estremoz. “e diziam as gentes, que taaes dez annos numca ouve em

Purtugal, como estes que reinara elRei Dom Pedro”.16

15 LOPES, Fernão. Crónica de D. Pedro I. Porto: Livraria Civilização, 1963, p. 46. 16 LOPES, Fernão. Crónica de D. Pedro I. Porto: Livraria Civilização, 1963, p. 202.

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3 “A lenda se escorre a entrar na realidade”

“Noite de Saudade” A noite vem pousando devagar Sobre a terra que inunda de amargura... E nem sequer a bênção do luar A quis tornar divinamente pura... Ninguém vem atrás dela a acompanhar A sua dor que é cheia de tortura... E eu ouço a Noite imensa soluçar! E eu ouço soluçar a Noite escura! Porque és assim tão ‘scura, assim tão triste? É que talvez, ó Noite, em ti existe Uma Saudade igual à que eu contenho! Saudade que eu não sei donde me vem... Talvez de ti, ó Noite!... Ou de ninguém!... Que eu nunca sei quem sou, nem o que tenho!

(Florbela Espanca, Livro de mágoas)

Na reflexão que ora iniciamos pretendemos estabelecer a relação entre

Literatura, Imaginário e Cultura, buscando pensar a Saudade como um mito

cultural português. Trazendo à luz alguns aspectos literários, históricos e

filosóficos da Saudade e da sua relação com o imaginário português, nossa leitura

focalizará um dos mitos portugueses que mais freqüentemente surge como tema

literário: a trágica história de Pedro e Inês.

Gilbert Durand conceitua o imaginário como “a faculdade de simbolização

de onde todos os medos, todas as esperanças e seus frutos culturais jorram

continuamente desde os cerca de um milhão e meio de anos que o homo erectus

ficou em pé na face da Terra”.17 Neste âmbito, entenderemos o conceito de

imaginário não simplesmente como usualmente é concebido – uma imaginação

criadora, sendo uma representação literária ou ficcional da realidade.

Partindo dessa reflexão, buscaremos uma aproximação entre Memória e

Saudade, principalmente no dito caso de que Inês de Castro e D. Pedro são

símbolos máximos. Muito nos servimos das divagações filológicas e literário-

históricas de Carolina Michaëlis de Vasconcelos n’ A saudade portuguesa e dos

17 DURAND, Gilbert. O Imaginário. 3. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2004, p.117.

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ensaios de Eduardo Lourenço na Mitologia da saudade – esta que tem sido

construída e reconstruída através do tempo, erguendo-se como uma espécie de

“brasão da sensibilidade nacional".

É Lourenço quem interpreta a saudade como o maior dos ícones da cultura

de Portugal, estando, portanto, sempre presente na trama do imaginário português.

Chega, então, à conclusão de que o universo cultural lusitano arrasta há quatro

séculos uma existência crepuscular. Cabe lembrar que há dois crepúsculos: o da

tarde que anuncia a noite, o da manhã, que anuncia o sol. E nesse entre-lugar

nascem os mitos portugueses, repletos das sombras da noite, ansiosos por respirar

o ar da manhã. É o que passaremos a estudar.

3.1 Literatura, imaginário e cultura

Denis de Rougemont, em seu clássico estudo sobre as origens do amor

romântico na cultura ocidental, destaca que

O amor feliz não tem história. Só existem romances do amor mortal, ou seja, o amor ameaçado e condenado pela própria vida. O que o lirismo ocidental exalta não é o prazer dos sentidos nem a paz fecunda do par amoroso. É menos o amor realizado do que a paixão de amor. E paixão significa sofrimento. Eis o fato fundamental. 18

O amor de D. Pedro e Inês de Castro é o capítulo da História de Portugal

que surge com maior freqüência no âmbito literário, ultrapassando fronteiras

lingüísticas e culturais. Tamanha repercussão temática se deve, em grande parte, a

toda a força simbólica que emerge do trágico episódio, concretização de um dos

mitos eternos da humanidade: o amor que resiste ao tempo e recusa a morte.. Daí

compreendermos que, passados 650 anos da morte de Inês de Castro, a trágica

história de que se tornou protagonista tem-se tornado fonte de inspiração para

diversas manifestações artísticas.

Afirma Maria Leonor Machado de Sousa que, através de um estudo

temático, é possível encontrar várias “heroínas paralelas” a Inês de Castro, que

viveram episódios semelhantes em tragédia:

18 ROUGEMONT, Denis de. História do Amor no Ocidente. 2. ed. reform. São Paulo: Ediouro, 2003, p. 24.

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[...] é possível encontrar na história dos vários países europeus episódios que, nas suas linhas gerais, se assemelham ao da crónica portuguesa, mais completos nos elementos que o constituem – o que justifica uma maior projeção internacional – mas nem por isso único nas suas implicações. Encarando as motivações que levaram ao drama das mulheres cuja paixão amorosa por príncipes acarretou a sua própria destruição, com resultados mais ou menos espetaculares, é possível encontrar na história de muitos países – talvez de todos – figuras a que se pode chamar “heroínas paralelas” da Inês de Castro galega que, pelas circunstâncias da sua vida e morte, se tornou símbolo do amor português.19

Nas Adivinhas de Pedro e Inês, romance em que muitos críticos situam entre

a História e a ficção, Agustina Bessa-Luís ratifica a difusão do tema inesiano pela

Europa, constatando que houve, também, um casal que viveu amor semelhante ao

de Pedro e Inês de Castro:

Também na Baviera houve um caso igual ao de Inês; o caso de Agnes Bernauer que casou em segredo com o Duque Alberto III em 1432. Dois anos apenas durou este idílio [...] O pai de Alberto acusou-a de feitiçaria e mandou que fosse afogada no Danúbio, aproveitando a ausência do jovem Duque.20

Unidas por um enredo trágico, estas duas “heroínas paralelas” – Inês de

Castro e Agnes Bernauer – em muito se aproximam daquelas heroínas advindas

das lendas. A história de Agnes da Baviera e do Duque Alberto III, porém, não

recebeu tecedura mítica como a tragédia de Inês e Pedro. É a constatação de que

“é a História que transforma o real em discurso; é ela e só ela que comanda a vida

e a morte da linguagem mítica. Longínqua ou não, a mitologia só pode ter um

fundamento histórico, visto que o mito é a fala escolhida pela História”.21

A história cria estórias. É justamente essa interpenetração de discursos que

nos possibilita caminhar para um campo outro: o da mitologia. Para Roland

Barthes o mito é um sistema semiológico, não um sistema indutivo – sendo,

portanto, um sistema de valores, não um sistema formal. Com isso, destaca que

[...] no mito existem dois sistemas semiológicos, um deles deslocado em relação ao outro: um sistema lingüístico, a língua (ou os modos de representação que lhe são comparados), que chamarei de linguagem-objeto, porque é a linguagem de que o mito se serve para construir o seu próprio sistema; e o próprio mito, que chamarei de metalinguagem, porque é uma segunda língua, na qual se fala da primeira.22

19 SOUSA, Maria Leonor Machado de. Inês de Castro: um tema português na Europa. Lisboa: Edições 70, 1987, p. 457. 20 BESSA-LUÍS, Agustina. Adivinhas de Pedro e Inês. Lisboa: Guimarães, 1986, p.14. 21 BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003, p.200. 22 BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003, p.206.

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Tudo pode ser mito, desde que, para tanto, encerre uma linguagem

simbólica. Há que se ter, porém, “um uso social que se acrescenta à pura

matéria”23. Ou seja, até mesmo os fatos históricos podem constituir mitos, desde

que tenham uma importância moral e afetiva para a cultura em que se inserem. No

contexto português, a História e a Literatura estão intimamente ligadas. As

fronteiras entre ambos os campos discursivos – o histórico e o literário – são

muito tênues. O discurso literário tende a penetrar em campos outros, os quais não

lhe pertencem. Investe em outros discursos.

Carolina Michaëlis de Vasconcelos24, ao discutir alguns aspectos, segundo

perspectivas histórico-culturais que envolvem a tradição inesiana, estabelece, no

23 BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003, p.206. 24 Cf. VASCONCELOS, Carolina Michaëlis. A saudade portuguesa. Lisboa: Guimarães, 1996, 13-14. Nestas páginas, diz a filóloga: “Com respeito aos dramas de Inês, considero como tradição histórica não só o amor de perdição do herdeiro da coroa e o seu desenlace sangrento; mas também os seus reflexos de além-tumba. Isto é o iníquo intercâmbio dos executores portugueses da ordem régia contra expatriados castelhanos, e à tremenda vingança neles realizada. Chamo histórico também, tanto o cortejo fúnebre imponente de Coimbra a Alcobaça, como o juramento solene, ou sacro perjúrio, enunciado pelo filho de Afonso IV, depois de entronado, com relação ao seu casamento clandestino; e a configuração de Inês, na estátua sepulcral jazente, com coroa de rainha. Três actos consecutivos, intimamente ligados entre si e com o quarto e último: o da vingança tomada nos algozes. – Actos cujo conjunto é único na historia de todas as nações, e bem merece a fórmula de “grande desvairo”, cunhada por Fernão Lopes. São os fatos, numa palavra, narrados com eloqüência, mas sem exageros por esse patriarca dos historiadores portugueses que, pela sua vez, se baseia em escritores mais antigos e em documentos coevos. A narração dele tem, portanto, “fundamento sobre a verdade”, mesmo se a tradição popular houver começado, quer na vida de Inês, quer na noite do seu enterro, a envolver os factos no seu manto diáfano. Fabulosa, fantasiosa é, pelo contrário, dramática fusão e transformação dos três actos fúnebres, distanciados na realidade, em um só verdadeiramente lúgubre: a coroação do cadáver que fora exumado. – Seis anos após o prematuro fim da mísera e mesquinha

que depois de ser morta, foi rainha! die nach dem Tod als Kön’gin trug die Krone.

Transformação de resto quasi inevitável, e de tal intensidade poética que foi sobretudo ela que se vulgarizou dentro e fora do país, e inspirou poetas e pintores. Fantasiosa também, mas sem tanto alcance, embora muito mais bela, é a lenda: que Pedro mandara colocar o túmulo de Inês, não junto ao seu, lado a lado, no cruzeiro de Alcobaça, como realmente fizera, mas pés contra pés, para que no momento de acordarem ao som da trombeta do Juízo Final, ambos pudessem, mais uma vez, confundir os seus olhos: – os pretos de azeviche do moreno justiceiro com os verde-claros da loira amada, por cuja tez branca corria o sangue azul, gótico, de d. Guterre, tronco dos Castros. Fábula é grande parte do que se conta da Quinta das Lágrimas, da Fonte dos Amores, e dos canos de água que levavam a correspondência dos dois amantes, tal qual séculos antes, na Bretanha céltica, as missivas de Tristão e Isolda.”

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seu texto, uma distinção entre o que chamou tradição histórica com “fundamento

sobre a verdade” e a “fábula” ou “fantasia”, ressaltando que neste trágico episódio

ambos tendem a se confundir. Os fatos envolvem-se no "manto diáfano" da

fantasia. Esta se transubstancia em fatos. É a arte literária penetrando o discurso

histórico.

Dessa imbricada relação entre os planos do real e do mitológico, certo é o

desenlace sangrento dos amores de Inês e Pedro e todo o eco de além-tumba;

toma-se como fato o grande desvario do Infante, que levantou um exército contra

o próprio pai, e viu-se apenas satisfeito quando, já rei de Portugal, saciou sua sede

de vingança ao ordenar a execução dos cruéis assassinos de sua amada, a um

mandando arrancar o coração pelo peito, ao outro pelas espáduas; evento histórico

e ímpar é a trasladação do corpo de Inês de Castro do mosteiro de Santa Clara, em

Coimbra, até ao de Alcobaça, em um cortejo fúnebre como igual nunca mais

houve em Portugal.

A par dos fatos, surgiram lendas nas quais pormenores infundados foram

incluídos. Diz-se que D. Pedro teria coroado a amada e feito com que todos os

nobres se ajoelhassem e lhe beijassem a mão, seis anos após a sua morte. Lenda

demasiado romântica – e, mais ainda, inverossímil – para se crer como verdade.

Além do mais, as crônicas não deixariam passar despercebida uma cerimônia tão

espantosa. Uma outra lenda, em tudo bela: a de que D. Pedro mandara pôr o seu

túmulo não ao lado do de Inês, no cruzeiro de Alcobaça, mas pés contra pés, para

que, ao soarem as trombetas do Juízo Final, seus olhos se pudessem, mais uma

vez, encontrar.

Muito esclarecedor é o texto de Antero de Figueiredo que, com extremo

cuidado, pauta seus argumentos em textos considerados coevos. Diz-nos o autor

que:

Os túmulos de D. Pedro e D. Inês de Castro estão numa pequena e sombria capela gótica feita no século XVII, no lado baixo do braço direito da cruz formada pela nave principal, capela-mor e arco cruzeiro, da igreja de Alcobaça. Estão próximos, pés com pés – posição que criou a lenda de que fôra D. Pedro que propositadamente os colocara assim para que, no Dia do Juízo, ao levantarem-se os corpos nas sepulturas, os dois amantes dessem logo com os olhos um no outro. É mais uma bela lenda...[...] Aí estariam os túmulos até princípios do século XIX, quando uma dolorosa circunstância os frades a mudarem-nos para a capela, onde hoje estão: o vandalismo da soldadesca francesa do exército de Masena, em 1810. Estando os túmulos a par um do outro, D. Pedro dando a esquerda a D. Inês, os soldados arrombaram-nos por onde melhor podiam: – pelo lado de f ora e pelos

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pés. Depois, tapados pelos frades, a pedra e cal, os grandes rombos, impunha-se esconder êsses destroços, e isto só se podia conseguir virando os sarcófagos para uma parede, ou, melhor, colocando-os ao fundo da sombria capela em que estão, com os consertos voltados para a parede, de maneira que quem entrasse não via esses formidáveis estragos. Daqui resultou ficarem os túmulos pés com pés”.25

O episódio de Inês de Castro tem sido um desses não raros momentos em

que o mito – no dizer de Fernando Pessoa, “o nada que é tudo” – assume ares de

fato. Destaca-se, quanto a isso, uma importante razão: o da imprecisão – ou

precariedade – dos registros históricos. Sob o olhar historiográfico pouco se pode

precisar. Parece, aliás, tratar-se de uma história que escapa às abordagens da

História. Muitos historiadores, inclusive, tentaram desmistificar, sob a luz da

interpretação política, os amores de Pedro e Inês. A fria leitura, porém, é sempre

desafiada por algo que parece mais forte, mais verdadeiro, sobrepondo-se a tudo o

mais: a força poética que a tradição atribui a este triste episódio.

Conforme destaca Maria Leonor Machado de Sousa:

A personalidade de Inês é-nos totalmente desconhecida. De razões que justificassem a louca paixão que inspirou só conhecemos uma beleza que parece dever considerar-se incontestável. Para além dela, é tão verosímil a rapariga frágil e ingénua que se perdeu por amor como a intriguista artificiosa e cheia de ambição que alguns historiadores nela quiseram ver, a vítima dócil de um decreto inabalável ou a mulher segura de si e do seu direito de viver, que lutou até ao fim contra o destino e uma vontade prepotente. Pelos tempos fora, vários autores tentaram dar carácter e vida à personagem cujo único retrato é a sua estátua jacente, que transmitiu um sorriso ingénuo e meigo, mas nada ficou na História que legitime qualquer dessas criações. De facto, Inês de Castro é uma figura que só chegou até nós em atitudes passivas: foi trazida no séquito de uma princesa, foi exilada por um rei, mandada regressar por um príncipe e por ele aposentada sucessivamente em diversas povoações, onde a tradição quase nada fixou, até ser morta por razão de uma vaga desconfiança política que a argumentação histórica muitas vezes tem posto em causa. A entrevista com o Rei, que poetas e cronistas relataram e que teria sido a sua primeira e última iniciativa, parece a alguns comentadores não ser logicamente admissível: não se enquadraria no processo legal e do protocolo d a época, nem tão-pouco a justificariam as relações entre Inês e a Corte, de que ela vivia anos afastada. No entanto, o peso das fontes documentais que apoiam a sua veracidade não pode ser facilmente contestado. 26

É a partir dos fatos obscuros – a personalidade de Inês, a existência ou não

de casamento entre Inês e Pedro, a ocorrência de um julgamento que a levou à

25 FIGUEIREDO, Antero de. D. Pedro e D. Inês: “o grande desvayro”. Lisboa: Bertrand, 1917. p. 277-279. 26 SOUSA, Maria Leonor Machado de. Inês de Castro: um tema português na Europa. Lisboa: Edições 70, 1987, p. 11.

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morte (execução ou assassínio?), apenas para citar alguns – que as expressões

artísticas, no nosso presente estudo, a Literatura, especificamente, procuram

preencher as lacunas deixadas pela História. Ou melhor, é a partir das brumas

históricas que a Literatura revitalizará, no contexto ficcional, a História.

Caminhando pelos territórios do mito e de suas ficções, destaca Claude

Lévi-Strauss, a respeito da mitificação de fatos históricos, que “o caráter aberto da

História está assegurado pelas inumeráveis maneiras de compor e recompor as

células mitológicas ou as células explicativas que eram originariamente

mitológicas”27. O mito de Inês de Castro, que bem ilustra a retomada das células

mitológicas de que fala Lévi-Strauss, tem servido como um mote para recuperar o

passado histórico português.

Deve-se a Fernão Lopes muito do que hoje se sabe sobre certos pormenores

da Idade Média portuguesa. Enquanto reinava D. João I, em 1418, o Infante D.

Duarte – encarregado do “conselho, justiça e da fazenda” – nomeia-o “guarda das

escrituras” da Torre do Tombo, o Arquivo Nacional português. Quando, em 1434,

D. Duarte sucede a seu pai, incumbe Fernão Lopes de “poer em caronica” a vida

dos reis de Portugal, do Fundador D. Henrique até a D. João I.

Apenas tem-se notícia de três desses textos: Crónica de D. Pedro, Crónica

de D. Fernando, Crónica de D. João. Buscando “escrever verdade, sem outra

mistura” pode-se dizer que o cronista se destaca como o primeiro historiador

português.28

É na sua Crónica de D. Pedro que se encontra uma das primeiras referências

ao drama de Inês de Castro. Concentrando a atenção na figura do rei, dedica parte

27 LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e Significado. Lisboa: Edições 70, 1987, p.60. 28 Ainda que muito se diga em contrário, concordamos com António José Saraiva e Óscar Lopes: “Como guarda-mor da Torre do Tombo, Fernão Lopes tinha ao seu alcance os arquivos do Estado, circunstância de que soube fazer uso, transcrevendo, resumindo e aproveitando a correspondência diplomática, os diplomas legais, os capítulos da Cortes, e outra documentação, que ainda enriqueceu examinando, fora da Torre do Tombo, os cartórios das igrejas e lápides de sepulturas. Com este material foi-lhe possível fazer a crítica e a correção de memórias existentes, segundo um método que se assemelha ao de dois ou três séculos mais tarde. Sempre que uma tradição ou uma memória é desmentida pelos documentos, Fernão Lopes rejeita-a; e, avançando nesse caminho, declara submeter a uma revisão metódica todos os relatos que lhe chagavam às mãos, notando as suas contradições e inverosimilhanças, e decidindo-se, à falta de documento, pela versão que julga “mais chegada à razão”. Até hoje não foi possível desmentir, em nada de importante, a informação desta obra sob o ponto de vista documental, e as polémicas que se travaram sobre o valor histórico de Fernão Lopes, quando acusado de denegrir a figura de D. Pedro ou de caluniar os inimigos de D. João I, nomeadamente D. Leonor Teles, só têm levado a confirmar o escrúpulo do cronista de se estribar em documentos autênticos, embora sem as transcrições explícitas que apenas principiarão a impor-se dois séculos mais tarde”. (Cf. SARAIVA, António José; LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. 17. ed. Porto: Porto Editora, 1996, p.124)

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da crônica a relatar o “grande desvayro” de D. Pedro. Consciente do poder

discursivo de que é dotado, Fernão Lopes glorifica o amor de Inês e Pedro,

ressaltando as atitudes deste rei quando, na morte da amada, busca preservar a

sua memória.

[...] semelhante amor, qual elRei Dom Pedro ouve a Dona Enes, raramente he achado em alguuma pessoa, porem disserom os antiigos que nenhuum he tam verdadeiramente achado, como aquel cuja morte nom tira da memoria o gramde espaço do tempo. E se alguum disser que muitos forom ja que tanto e mais que el amarom, assi como Adriana e Dido, e outras que nom nomeamos, segumdo se lee em suas epistolas, respomdesse que nom fallamos em amores compostos, os quaaes alguuns autores abastados de eloquemcia, e floreçentes em bem ditar, hordenarom segumdo lhes prougue, dizemdo em nome de taaes pessoas, razoões que numca nenhuuma dellas cuidou; mas fallamos daquelles amores que se contam e leem nas estorias, que seu fumdamento teem sobre verdade.29

Estão aí as primeiras sementes para a criação de algo que ainda estava por se

definir, mas que emerge com qualquer coisa de grandioso e de incomum. Fernão

Lopes recorre à mitologia para descrever a intensidade do amor que une Pedro a

Inês de Castro. Para tanto, toma como referência a comparação com duas

personagens-símbolo do amor infeliz: Ariadne e Dido. Parece haver uma

afinidade entre Pedro e ambas. Se elas se entregaram a um amor que ameaçava o

equilíbrio entre o desejo individual e o coletivo, Pedro também o fez, quando

renuncia a tudo o mais pela mulher amada.

Fernão Lopes preocupa-se em criar uma imagem do amor de Pedro e Inês

que contenha marcas precisas da natureza desse sentimento. Evoca, pois, a

memória, esta força da vitória sobre o tempo, como prova da permanência e

veracidade do amor. Atesta o cronista que “nenhum [amor] é tão verdadeiramente

achado como aquele cuja morte não tira da memória o grande espaço de tempo”.

É, afinal, uma crença na eternidade. A morte não é um fim definitivo. Ao

contrário, ela é a força vital desse amor, deste “verdadeiro amor [que] houve el-

Rei D. Pedro a D. Inês”.

O tema dos amores de Pedro e Inês, uma vez iniciado nas páginas de Fernão

Lopes, encontrou eco em diversas épocas e nas mais variadas expressões de Arte.

Seja em Portugal, em seu vizinho Ibérico ou, mais amplamente, na Europa, a

lenda – nascida dos elementos históricos – ganha projeção artística. Do que até

29 LOPES, Fernão. Crónica de D. Pedro I. Porto: Livraria Civilização, 1963, p.199-200.

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então se tem notícia, é Garcia de Resende em suas Trovas à morte de D. Inês de

Castro que faz estrear um tema que haveria de encontrar continuidade na Visão de

Anrique da Mota. Ambas as obras marcaram uma primeira representação na

Literatura Portuguesa: as Trovas de Resende, escritas em décimas de redondilha

maior, são o primeiro monólogo biográfico. Anrique da Mota mescla trechos em

prosa-poética – descrevendo a fantástica viagem do autor, cujo cavalo o levou a

um mundo em que lhe foi permitido ver a tragédia de Inês –, e trechos em verso –

declarações de Pedro e Inês de Castro. Além disso, a Visão “apresenta um quadro

bucólico que, a partir de Camões, ficaria indissoluvelmente ligado à história de

Inês: as flores e a água, que em Os Lusíadas seriam ‘as ervinhas’ e as ‘boninas’

dos ‘saudosos campos do Mondego’, e a Fonte dos Amores”.30

Foi justamente com Camões, n’ Os Lusíadas, que o episódio atingiu a maior

potencialidade lírica. A tal ponto que nós, leitores, esquecemos tratar-se da voz de

Vasco da Gama a contar ao rei de Melinde a História de Portugal. Em 1587

publica-se a peça de António Ferreira, Castro, obra de força dramática e

psicológica, que dá grande vazão às razões de Estado. Além disso, desponta como

a primeira tragédia clássica de Língua Portuguesa – e, transcendendo os marcos

histórico-literários, é a primeira tragédia européia escrita sobre um tema moderno.

Como sucesso internacional, vale destacar, na Espanha, Jerónimo Bermudez

com Nise lastimosa (1571) – uma releitura da Castro de Ferreira – e Nise

laureada (1577), cujo tema é a vingança que D. Pedro, sendo rei, tomou dos

assassinos da sua amada e a coroação do cadáver de Inês. Destacam-se também

Luis Vélez de Guevara com Reinar después de morir (1625) e Lope de Vega e seu

drama Doña Ynes de Catro (1618). Contemporaneamente, Alejandro Casona

escreveu Corona de amor y muerte. Na Literatura Francesa encontramos Antonine

Houdar de la Motte com Inés de Castro (1723) e Henry de Montherlant com La

Reine morte (1942). Na Itália, somam-se mais de 120 composições líricas em

torno dos amores de Pedro e Inês de Castro. A Literatura Brasileira também

encontrou motivo poético no drama de Inês de Castro. Deixemos, porém, a leitura

para mais adiante, no momento oportuno.

Importa-nos, por hora, entender a importância do tema inesiano no

imaginário português e os sentidos de seu sucesso internacional. Importa-nos

30 SOUSA, Maria Leonor Machado de. Inês de Castro na Literatura Portuguesa. Lisboa: Biblioteca Breve, 1984, p.10.

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entender de que forma os versos de Fernando Pessoa vêm para constatar uma

verdade: “a lenda se escorre / a entrar na realidade”. Como mitos da cultura

portuguesa, têm ampla projeção além-fronteiras

Não nos deixa iludir o fato de que, passados 650 anos da morte de Inês de

Castro, a tragédia de amor da qual foi protagonista tenha despertado interesse de

artistas e historiadores de outrora e de agora. A história de Pedro e Inês – os

amores e as lágrimas – é a celebração e a reabilitação do amor que, acima de tudo

humano, está para além dos tempos. Até ao fim do mundo.

3.2 Portugal: Memória e Saudade

Cantada, sentida e evocada desde sempre, a saudade, como tema literário,

nasce nos berços dos cantares d’ amigo. Ressalta o crítico Eduardo Lourenço que

“antes de se tornar no mito que já não a deixa pensar e a configura num papel

hagiográfico-patriótico, a saudade não foi mais que a expressão do excesso de

amor em relação a tudo o que merece ser amado”.31

A cantiga “Ay eu, coitada, como vivo” – Edição fac-similada do

Cancioneiro Colocci-Brancuti, n.º 456 – de D. Sancho o Velho, é um dos mais

belos lamentos de amor na ausência. Um drama íntimo que nos reporta aos

tempos do “alvorecer da poesia”. Seu autor desenvolve o tema da saudade nas

suas duas componentes principais: o cuidado e o desejo. Curiosamente, em

nenhum momento a palavra saudade é dita. São ditos, porém, os seus

significados. Saudade é desejo de regresso do ser amado. É esperar, é esperança,

portanto. Um lento morrer de amor:

Ay eu, coitada, como vivo En gran cuydado por meu amigo Que ey alongado! Muyto me tarda O meu amigo na Guarda! Ay eu, coitada, como vivo En gran desejo, por meu amigo Que tarda e non vejo! Muyto me tarda O meu amigo na Guarda!

31 LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da Saudade seguido de Portugal como Destino. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 13.

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Durante o tempo em que vigorou o Humanismo em Portugal, desenvolveu-

se a chamada Prosa doutrinária, cujo objetivo era o de possibilitar aos nobres

uma formação íntegra, seguindo discussões morais, religiosas, políticas e

psicológicas. Dessa época, destacamos o Leal Conselheiro, de D. Duarte, obra

compilada em 1437 ou 1438. Tratando-se de um escrito moral em que o rei

apresenta suas considerações pautadas em experiências pessoais e em observações

diretas dos fatos, expondo “uma teoria psicológica de inspiração tomista, segundo

a qual a vontade inteligente predomina sobre outras faculdades da alma, seguida

de um tratado sobre as virtudes e de outro sobre os pecados”.32

No Cap. XXV do Leal Conselheiro, o rei descreve o nojo, o pesar, o

desprazer, o avorrecimento e a suidade. Foi D. Duarte o primeiro que, na

Literatura Portuguesa, “tenta definir a saudade como expressão de um sentimento

contraditório e pretende fazer essa palavra intraduzível noutras línguas”33. É o que

podemos observar na seguinte passagem:

E a suidade não descende de cada uma destas partes, mas é um sentido do coração que vem da sensualidade, e não da razão, e faz às vezes sentir os sentidos da tristeza e do nojo. E outros vêm daquelas cousas que a homem praz que sejam, e alguns com tal lembrança que traz prazer e não pena. E em casos certos se mistura com tão grande nojo, que faz ficar em tristeza.34

Para D. Duarte, a saudade pode ter um caráter negativo, quando feita da

“tristeza e do nojo”, ou um caráter positivo, quando composta “daquelas cousas

que o homem praz que sejam”. Foi também este monarca português o primeiro a

entender o vocábulo “saudade” como intraduzível em qualquer outra língua.

Teoria que, embora muito repetida, hoje sabemos ser equivocada, como ressalta a

ilustre Carolina Michaëlis de Vasconcelos, em sua pesquisa sobre a saudade como

tema literário em Portugal:

É inexacta a ideia que outras nações desconheçam esse sentimento. Ilusória é a afirmação (já quase quatro vezes secular), que mesmo o vocábulo Saúdade –

32 SARAIVA, António José; LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. 17. ed. Porto: Porto Editora, 1996, p.112. 33 SARAIVA, António José; LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. 17. ed. Porto: Porto Editora, 1996, p.113. 34 DUARTE. "Do nojo, pesar, desprazer, avorrecimento e suidade". In. BOTELHO, Afonso; TEIXEIRA, António Braz. Filosofia da Saudade. Vila da Maia: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986, p.14.

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mavioso nome que tão meigo soa nos lusitanos labios – não seja sabido dos Bárbaros estrangeiros (estrangeiro e bárbaro são sinónimos), não tenha equivalente em língua alguma do globo terráqueo e distinga unicamente a faixa atlântica, faltando mesmo na Galiza e além-Minho.35

Adiante, a filóloga continua seu estudo ressaltando um outro aspecto: o

chamado morrer de amor. Nestes termos, destaca:

A saudade e o morrer de amor (outra face do mesmo prisma de terna afectividade e da mesma resignação apaixonada) são realmente as sensações que vibram nas melhores obras da literatura portuguesa, naquelas que lhe dão nome e renome. Elas perfumam o meio livro de Bernardim Ribeiro e os livros que estilisticamente derivam dele, como a Constelação de Israel de Samuel Usque, e as Saudades da

Terra de Gaspar Frutuoso. Perfumam as Rimas de Camões e os episódios e as prosopopéias dos Lusíadas. – Perfumam as Cartas da Religiosa Portuguesa e as criações mais humanas de Alemeida Garrett, a Joaninha dos olhos verdes e as figuras todas de Frei Luís de Sousa. Não faltam no cancioneiro do povo; nem já faltavam, na sua face arcaica, nos reflexos cultos da musa popular que possuímos, isto é nos cantares de amor e de amigo dos trovadores galego-portugueses, no período que se prolongou até os dias de Pedro e Inês.36

Foi justamente no episódio de Inês de Castro que a Literatura encontrou a

saudade como mito cultural. É pela saudade que se evoca a memória de figuras

míticas como imagens identitárias da cultura nacional. Daí convivem no

imaginário português as imagens do país senhor dos mares; do sonho profético e

messiânico de um país “predestinadamente colonizador e oniricamente imperial”;

de D. Sebastião, desaparecido em Alcácer-Quibir e esperado como aquele que

reerguerá o reino português; de Camões, como grande herói do povo lusitano e –

por que não? – de Inês de Castro, mitos que fazem da saudade o seu galardão.

Pedro e Inês de Castro constituem, pois, um dos grandes mitos da cultura

portuguesa. Integram o imaginário português como símbolos do amor que se

concretiza na saudade, a partir da morte daquela que poetas e trovadores

cognominaram “colo de garça”. A figura trágica de Inês de Castro – personagem

histórica ou aquela que é “pintada” pelos artistas – é a assunção e materialização

desse sentimento que caracteriza o povo português. Foi necessária a morte para

que algo maior que a vida pudesse nascer: a saudade como mito.

Dalila Pereira da Costa vê no sentimento gerado do episódio inesiano a

manifestação de uma história pátria, que traz à luz a saudade como condição

35 VASCONCELOS, Carolina Michaëlis. A saudade portuguesa. Lisboa: Guimarães, 1996, p.31. 36 VASCONCELOS, Carolina Michaëlis. A saudade portuguesa. Lisboa: Guimarães, 1996, p.33.

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dramática da existência e, ao mesmo tempo, redentora. É um conhecimento “de

experiência feito”, nas palavras da autora:

No amor, dois amantes ultrapassarão a vida limitada de seus anos terrestres e a levarão até à consumação do tempo, como eternidade: como limite máximo do mundo e vida. No conhecimento, um povo rebentará nos limites dum século da sua história (e cada um dos seus homens nos limites da sua vida própria) os limites postos ao mundo conhecido, como Terra, abraçando-a circularmente, desvendando-a e possuindo-a num enlace e súbita iluminação, total. Na sua história, mas nela carnalmente, dramaticamente, por cada vida dum desses homens e todos juntos e unidamente, então rebentando o que surge como o possível concedido à força humana. Será essa exigência última, a um tempo existencial e cognitiva, porque sempre do saber como vivência, o impossível sendo a dimensão da tensão que se põe no arco para o desfecho da seta – , o que informa a história pátria: como existência terrestre dum ser coletivo. Um caminhante em passagem aqui sobre a terra, ser finito e em trânsito, mas que para ela, sobre ela, trouxe uma medida do céu, como medida sem medida – a que humanamente se chama o impossível.37

É verdade que muito antes, na Literatura Portuguesa, houve D. Denis e os

cantares d’amigo, D. Sancho e o “gran cuidado”, D. Duarte e toda a concepção da

idéia de saudade; a lírica camoniana e toda a presença desse sentimento que é co-

irmão do amor; o mito sebastianista e o tão desejado regresso de um rei. E muitos

outros, que aqui não nomeamos. Parece-nos, afinal, que é nos amores de Pedro e

Inês que a Saudade emerge como algo além de um sentimento nacional: um

sentimento vital.

Mostramo-nos tributários da configuração da Saudade tal como é postulada

por Teixeira de Pascoaes, formulação, aliás, que muito interessa para nossa

discussão:

Saudade é o desejo da Cousa ou Criatura amada, tornado dolorido pela ausência. O Desejo e a Dor fundidos num sentimento dão a saudade. Mas a Dor espiritualiza o Desejo, e o Desejo por sua vez materializa a Dor. O Desejo e a Dor penetram-se mutuamente, animados da mesma força vital e precipitam-se depois num sentimento novo, que é a Saudade.38

A saudade, para Pascoaes, atinge uma dimensão ontológica e metafísica.

Este amálgama de Dor e Desejo confere ao homem a consciência de finitude, de

imperfeição e de insuficiência. Como experiência individual e coletiva, a saudade

37 COSTA, Dalila L. Pereira da. “Saudade: unidade perdida, unidade reencontrada”. In. Introdução

á Saudade. Porto: Lello & Irmão, 1976, p.97. 38 PASCOAES, Teixeira de. A saudade e o saudosismo. Lisboa: Assírio e Alvim, 1988. p. 47.

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é uma forma de conhecimento-vivência do povo português, sendo uma maneira de

recuperação, de resgate de um passado histórico glorioso ou suficientemente

trágico que se converterá em objeto estético, cuja importância é, ao mesmo tempo,

moral e afetiva para a nação.

Questões como “identidade cultural”, “alma nacional”, “sentimento

português”, têm sido, por vezes, postas em xeque, por serem consideradas

discussões que se pautam em visões de mundo demasiado marcadas

historicamente. A verdade, parece-nos, é que a Saudade se instaura como

elemento da mitologia nacional lusíada. Para Eduardo Lourenço, “habitados a tal

ponto pela saudade, os portugueses renunciaram a defini-la. Da saudade fizeram

uma espécie de enigma, essência do seu sentimento da existência, a ponto de a

transformarem num mito”.39 A Saudade é, portanto, uma “palavra-mito” do povo

português, uma espécie de “brasão da sensibilidade nacional”, sendo uma forma

de reescritura da nacionalidade portuguesa.

Ainda, segundo o ensaísta, a saudade – tanto quanto a nostalgia e a

melancolia – configura-se como um modo de ser e de interpretar o mundo.

A melancolia visa o passado como definitivamente passado e, a esse título, é a primeira e mais aguda expressão da temporalidade, aquela que a lírica universal jamais se cansará de evocar. A nostalgia fixa-se num passado determinado, num lugar, num momento, objetos de desejo fora do nosso alcance, mas ainda real ou imaginariamente recuperável. A saudade participa de uma e de outra, mas de uma maneira tão paradoxal, tão estranha – como é estranha e paradoxal a relação dos portugueses com o “seu” tempo – que, com razão, se tornou num labirinto e num enigma para aqueles que a experimentam como o mais misterioso e o mais precioso dos sentimentos.40

Seja a partir de um estudo lingüístico, psicológico, mítico, teológico ou

histórico, a saudade parece querer significar sempre uma recordação de coisas ou

pessoas distantes, que vem acompanhada de uma ânsia de tornar a vê-las ou de

possuí-las. A saudade é, outrossim, uma espécie de presença na solidão de si

mesmo. Iluminação e ilusão, encontro e separação. É epifania, revelação da

essência do homem e do mundo. É a mediadora entre passado e futuro, terra e céu,

39 LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da Saudade seguido de Portugal como Destino. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 31. 40 LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da Saudade seguido de Portugal como Destino. São Paulo: Companhia das Letra s, 1999, p. 13.

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morte e vida, homem e Deus. Mágoa cheia de luto, é capaz de unir pela dor da

separação. Presença de uma ausência, é o elo inefável entre o eu e o outro.

Almeida Garrett, belissimamente a define nos versos de Camões, nestes

termos:

Saudade! gosto amargo de infelizes Delicioso pungir de acerbo espinho, Que me estás repassando o íntimo peito Com dor que os seios d’alma dilacera. – Mas dor que tem prazeres – Saüdade! Misterioso númen que aviventas Corações que estalaram, e gotejam Não já sangue de vida, mas delgado Soro de estanques lágrimas – Saudade! Mavioso nome que tão meigo soas Nos lusitanos lábios, não sabido Das orgulhosas bocas dos Sicambros Destas alheias terras – Oh Saudade!41

A alma portuguesa é feita de Saudade. Espera-se pelo dia do Nevoeiro,

depois do qual haverá de reinar novamente a glória do Portugal dos

Descobrimentos. Espera-se pelo fim do mundo, dia em que D. Pedro e Inês de

Castro haverão de se levantar dos seus túmulos e cumprir a profecia de amor e

saudade. A alma portuguesa é feita de sonhos, exprimindo o passado que foi e o

futuro que nunca será. Paradoxo sem o qual a alma portuguesa não seria

portuguesa. Por isso, olha-se para trás. Porque recordar é trazer ao coração. Este

que é o locus nascendi da esperança de uma Nação.

Como não poderia deixar de ser, a temática da saudade penetra a música

portuguesa. Conhecida é a canção Coimbra, composição de Raul Ferrão e letra de

José Galhardo. Trata-se, aliás, de uma das canções portuguesas mais cantadas e é

a mais traduzida, viajando com o nome de Avril au Portugal – Abril em Portugal.

Coimbra do Choupal ainda és capital Do amor em Portugal, ainda... Coimbra onde uma vez Com lágrimas se fez A história dessa Inês, tão linda Coimbra das canções Tão meigas que nos pões

41 GARRETT, Almeida. Camões. Lisboa: Livreria Popular Francisco Franco, 1946, p.1-2.

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Os nossos corações à luz Coimbra dos doutores P’ra nós os seus cantores A fonte dos amores és tu Coimbra é uma lição de sonho e tradição O lente é uma canção e a lua a faculdade O livro é uma mulher só passa quem souber E aprende-se a dizer saudade42

Tão bela quanto Coimbra é a Formosa Inês, com letra de Rosa Lobato de

Faria, para música de Mário Pacheco. Canção, aliás, profundamente lírica, no

sentido mais profundo de lirismo, em que está presente boa parte dos fatos que

envolvem os amores de Pedro e Inês: a razão de Estado, a tragédia, o desvario do

Rei, a trasladação, a coroação de Inês como Rainha:

Antiga como a sina dos amantes A audácia de morder o infinito Acesa pelas noites delirantes Paixão que se fez lenda e se fez mito Depois foram razões que o Reino tece Foi o dia mais triste, o mais maldito A espada ao alto erguida e foi a prece Amor desfeito em sangue... e foi o grito D. Pedro desvairado brada e clama Leva de terra em terra a sua amada Não tem morada certa pois quem ama Saudade tem por única morada Da morta fez rainha porque é louco Porque é amante e rei e português E eu que te cantei e sou tão pouco Também te beijo a mão, formosa Inês43

42 José Galhardo para música de Raul Ferrão. A canção foi ouvida pela primeira vez no filme Capas negras (1947). Cf. SOUSA, Maria leonor Machado de. Inês de Castro: um tema português

na Europa. Lisboa: Edições 70, 1987, p. 421. 43 Rosa Lobato de Faria, para música de Mário Pacheco. Paulo Bragança no disco “Notas sobre a alma”, 1992.

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Inês e Pedro, evocados do coração do tempo como elementos da memória

nacional portuguesa, permanecem – mais que mitos – enigmas de uma forma de

pensar a existência. Alfa e Ômega, vive este amor para além dos tempos.

Nascidos da Saudade, Inês e Pedro são eternos.

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4 “Estavas, linda Inês...”

“Cantiga, partindo-se” Senhora, partem tam tristes meus olhos por vós, meu bem, que nunca tam tristes vistes outros nenhÊV�SRU�QLQJXHP� Tam tristes, tam saudosos, tam doentes da partida, tam cansados, tam chorosos, da morte mais desejosos cem mil vezes que da vida. Partem tam tristes os tristes, tam fora d’esperar bem que nunca tam tristes vistes outros nenhÊV�por ninguem.

(Joam Rodriguez de Castel Branco)

O tema dos amores de Pedro e Inês tornou-se matéria essencialmente

poética, exprimindo-se sobretudo em poesia e marcando liricamente o teatro e a

ficção romanesca. Maria Leonor Machado de Sousa destaca que “excepto no

teatro do século XVIII, a tradição portuguesa manteve-se fiel à crónica do século

XV, rejeitando influências estrangeiras fantasiosas ou francamente erradas do

ponto de vista histórico”44.

Iniciaremos esta última parte do nosso estudo com a leitura de alguns dos

mais representativos textos da Lírica Portuguesa do século XX, não sem antes nos

determos em dois autores cuja interpretação desta parte da História de Portugal

em muito influenciou – e influencia – os textos poéticos inesianos. Garcia de

Resende foi o primeiro a encontrar no episódio de Inês de Castro matéria poética,

de que Camões foi a grande voz lírica. A partir d’ Os Lusíadas, expressões como

“mísera e mesquinha”, “linda Inês”, passaram a integrar o vocabulário inesiano.

Passando só pelas cumeeiras, a partir de Garcia de Resende, e detendo-nos

em Camões sobretudo, chegamos à contemporaneidade, verificando que todas as

épocas encontraram interesse no episódio. Buscaremos caminhos de leitura para

alguns destes poemas, recolhidos quase em sua totalidade da Antologia Poética

Inês de Castro, para que sobre eles possamos tecer comentários. Privilegiaremos

44 SOUSA, Maria Leonor Machado de. Inês de Castro na literatura portuguesa. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1984, p.126.

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alguns dos contemporâneos – privilegiando aqueles textos que passam pelo

ideário da saudade –, passando pelo poeta árcade e muitas vezes (ultra)romântico,

Manuel Maria Barbosa du Bocage, de quem destacamos duas versões poéticas: a

“cantata à morte de D. Inês de Castro" e o soneto “À lamentável catástrofe de Inês

de Castro”.

No tópico seguinte, tomando por mote o pensamento de que “Portugal é

uma fonte de saudade”, aproximaremos os princípios do Saudosismo postulado

por Teixeira de Pascoaes e a peça Pedro, o Cru, de António Patrício.

Justificaremos a escolha de uma tragédia neste estudo que se propõe à leitura de

textos líricos em virtude do entrelaçamento entre o campo imaginário e o

histórico, presente na tragédia de Patrício. Obra que, refletindo questões

saudosistas, vai muito além do Saudosismo. Pautaremos nossa leitura nos

aspectos filosóficos e culturais da Saudade como marca da identidade de Portugal.

Fechando este nosso estudo da Literatura Portuguesa abriremos espaço para

a Brasileira, que encontrou no episódio de Inês de Castro motivo de criação

poética. Jorge de Lima, Ivan Junqueira e Tatiana Alves serão os autores com os

quais trabalharemos. Todos eles com muito a dizer sobre esta nossa “Musa Inês”.

4.1 Inês: o olhar de Orfeu

Comenta Octavio Paz que “a História é o lugar de encarnação da palavra

poética”45, em uma alusão à idéia de que o encontro entre ambos os campos

discursivos – o histórico e o literário –, através do diálogo por eles possibilitado é

sempre renovador e epifânico. Já tecemos alguns comentários em nosso trabalho,

por exemplo, sobre a relação entre História e Literatura, inserindo-as no contexto

português. Em toda expressão cultural, o mito sempre é fortalecido pelo campo

histórico, e não por ele anulado ou vencido. A obra literária é, em suma, capaz de

reunir todos os discursos em um só.

Só com a descoberta da História [...], só através da assimilação radical deste novo modo de ser representado pela existência humana no mundo foi possível ultrapassar o mito. Mas não é certo que o pensamento mítico tenha sido abolido [...] Ele conseguiu sobreviver, embora radicalmente modificado [...] e o mais curioso é que ele sobrevive, sobretudo na historiografia.46

45 PAZ, Octavio. El arco y la lira. 3. ed. México: FCE, 1972, p. 186. (Ao citar, traduzi) 46 ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Lisboa; edições 70, 1989, p. 27.

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O que justamente permite a sobrevivência do mito às verdades históricas é a

sua constante movência, resultante da poetização à qual se submete. O amor de

Pedro e Inês como tema intemporal tornou-se universal. História que se tornou

lenda e mito, a Literatura fez deste episódio histórico fonte de constante recriação.

Saindo do sossego – se um dia esteve nele – Inês é “ela-a-mais-de-cem”, a “mais

de mil”. Mil vezes morre Inês, para mil vezes renascer em esplendor. Se sua glória

é tornar-se texto, está, então, concretizada a previsão de Garcia de Resende nas

suas Trovas. A glória de Inês – o seu galardão – é, a partir da morte, tornar-se

motivo de (re)criações literárias.

A primeira estrofe é um prólogo em que Garcia de Resende se dirige às

damas, chamando-lhes a atenção para algo que Inês fizera, lhe dera fama:

Senhoras, s’algum senhor vos quiser bem ou sevir, quem tomar tal servidor eu lhe quero descobrir o gualardam do amor Por sua mercê saber o que deve fazer, vej’o o que fez esta dama que de si vos daraa fama, s’ estas trovas quereis ler.47

As duas estrofes seguintes são falas de Inês de Castro. Estando nos

“Infernos de Amor” – o “Inferno dos Namorados” – é por sua voz, por seu

testemunho, que a veracidade do que diz é atestada:

– Qual seraa o coraçam tam cru e sem piadade, que lhe nam cause paixam ÊD�WDP�JUDP�FUXHOGDGH e morte tam sem razam? Triste de mim, inocente, que por ter muito fervente lealdade, fee, amor ò Princepe, meu senhor, me mataram cruamente! A minha desaventura, nam contente d’acabar-me,

47 RESENDE, Garcia. Cancioneiro Geral. 4 vols., Lisboa: imprensa Nacional – Casa da Moeda, vol. IV, 1990-1993, p. 301.

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por me dar maior tristura me foi pôr em tant’altura para d’alto derribar-me. Que, se me matara alguem Antes de ter tanto bem, Em tais chamas nam ardera, pai, filhos nam conhecera nem me chorara ninguem.48 A imagem de Inês é a de uma mulher atormentada. O príncipe a elevara pela

lealdade, pela fé e pelo amor devotados, insuficientes, porém, para lhe garantir um

lugar no paraíso. Eis o que lhe resta por se ter entregado ao amor: vê-se

condenada ao Inferno. Foi justamente este amor que lhe definiu toda a vida:

elevou-a a “tant’altura” para fazê-la cair. Não é, no entanto, a morte que provoca o

maior lamento de Inês, mas a ausência dos filhos e do amado, cuja perda ela não

sabe suportar.

Inês narra a sua própria história, toda ela uma seqüência de desassossegos:

Eu era moça, menina, per nome Dona Ines de Crasto e de tal doutrina e vertudes qu’era dina de meu mal ser ò revés. Vivia sem me lembrar que paixam podia dar nem dá-la ninguem a mim. Foi-m’o Principe olhar por seu nojo e minha fim! Começou-m’a desejar, trabalhou por me servir, Fortuna foi ordenar dous corações conformar a ÊD�YRQWDGH�YLU� Conheceo-me, conheci-o, quis-me bem e eu a ele, perdeo-me, tambem perdi-o, nunca tee morte foi frio o bem que triste pus nele. Dei-lhe minha liberdade, nam senti perda de fama, pus nele minha verdade, quis fazer sua vontade sendo mui fremosa dama.

48 RESENDE, Garcia. Cancioneiro Geral. 4 vols., Lisboa: imprensa Nacional – Casa da Moeda, vol. IV, 1990-1993, p. 301-302.

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Por m’estas obras pagar nunca jamais quis casar, polo qual aconselhado foi El-Rei qu’era forçado, polo seu, de me matar.49

Bastou o primeiro encontro do olhar para que o amor se impusesse

incontrolável. Esboçava-se a tragédia – o luto e o fim. O desejo do amor, porém,

não se esgota – nem mesmo com a morte. Inês se une a Pedro através desse

sentimento sempiterno, o Príncipe une-se à sua amada pela saudade. Estando

como “princesa servida”, recatada, honrada e querida de seu senhor, Inês gozava

alegremente as alegrias de amar. Eis que chegam pelos campos do Mondego

muitos cavaleiros – e com eles o rei. A tragédia já se prenunciava: presságios,

adivinhações, tristeza e choro:

Como as cousas qu1ham-de ser logo dam no coraçam, comecei entresticer e comigo soo dizer: – Estes homeens donde iram? E tanto que preguntei, soube logo que era El-Rei. Quando o vim tam apressado, meu coraçam trespassado foi que nunca mais falei! E quando vi que decia, sahi à porta da sala; devinhando o que queria com gram choro e cortesia lhe fiz ÊD�WULVWH�IDOD� Meus filhos pus derredor de mim, com gram homildade, mui cortada de temor lhe disse: – Havei, Senhor, desta triste piadade!50

Inês traz seus filhos diante do rei. Se razões de Estado havia, talvez a

candura das crianças abrandasse o coração do velho rei. Não eram elas, porém, as

crianças, a principal razão para a sua morte de Inês?

49 RESENDE, Garcia. Cancioneiro Geral. 4 vols., Lisboa: imprensa Nacional – Casa da Moeda, vol. IV, 1990-1993, p. 302-303. 50 RESENDE, Garcia. Cancioneiro Geral. 4 vols., Lisboa: imprensa Nacional – Casa da Moeda, vol. IV, 1990-1993, p.303.

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Nam possa mais a paixam que o que deveis fazer, metei nisso bem a mam, qu’ee de fraco coraçam seem porquê matar molher. Quanto mais a mim, que dam culpa, nam sendo rezam, por ser mãi dos inocentes qu’ante vós estam presentes, os quaes vossos netos sam. E têm pouca idade, que, se nam forem criados de mim, soo com saudade e sua gram orfindade morreram desamparados. Olhe bem quanta crueza faraa nisto Voss’Alteza e tambem, Senhor, olhai, pois do Principe sois pai, nam lhe deis tanta tristeza. Lembre-vos o grand1amor que me vosso filho tem e que sentiraa gram dor morrer-lhe tal servidor por lhe querer grande bem. Que s’algÊ�Hrro fizera, fora bem que padecera e qu’estes filhos ficaram orfãaos, tristes, e buscaram quem deles paixam houvera.51

O discurso de Inês é todo aflição, apelo ao rei em nome da orfandade dos

filhos e do lamentável desgosto de amor do Príncipe. Ela, Inês, a quem dão por

culpada sem razão, não desobedecera às forças que regem o Estado. Apenas – e

sempre – manteve-se fiel ao seu amado. D. Afonso IV é demovido de querer

mandar matá-la, não havia, afinal, culpa alguma no inocente coração de Inês.

Diante da brandura do rei, um “cavaleiro desalmado” brada em nome das razões

de Estado: a morte de Inês é necessária diante da ameaça de uma guerra contra

Castela – a morte de Inês é necessária para que outras mortes não arrasem

Portugal.

Encontrando-se em difícil dilema, D. Afonso IV, incapaz de agir, entrega

Inês ao seu próprio destino:

51 RESENDE, Garcia. Cancioneiro Geral. 4 vols., Lisboa: imprensa Nacional – Casa da Moeda, vol. IV, 1990-1993, p.304.

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Dous caveleiros irosos, que tais palavras lh’ouviram, mui crus e nam piadosos, perversos, desamorosos, contra mim rijo se viram. Com as espadas na mam m’atravessaram o o coraçam, a confissam me tolheram. Este é o gualardam que meus amores me deram!52

Inês morre. E, na morte, encontra a vida. O poeta reassume a palavra e,

voltando-se às damas, demonstra que a morte de Inês foi, na verdade, o seu bem:

Por verdes o gualardam que do amor recebeo, porque por ele morreo, nestas trovas saberam o que ganhou ou perdeo: nam perdeo senam a vida, que podeera ser perdida sem na ninguem conhecer, e ganhou por bem querer ser sua morte tam sentida.53

Pelo caráter espiritualizado do galardão – o culto da memória, a

permanência como viva recordação – legitima-se o amor de Inês por Pedro. Tendo

sido por ele amada, correspondeu-lhe ao amor. E muitos foram os ganhos de

tamanha entrega. Este verdadeiro amor...

Guanhou mais que sendo dantes nom mais que fermosa dama, serem seus filhos infantes, seus amores abastantes de deixarem tanta fama. Outra moor honra direi: como o Principe foi rei, sem tardar, mas mui asinha, a fez alçar por rainha, sendo morta o fez por lei. Os principais reis d’Espanha de Portugal e Castela e Emperador d’Alemanha

52 RESENDE, Garcia. Cancioneiro Geral. 4 vols., Lisboa: imprensa Nacional – Casa da Moeda, vol. IV, 1990-1993, p.307. 53 RESENDE, Garcia. Cancioneiro Geral. 4 vols., Lisboa: imprensa Nacional – Casa da Moeda, vol. IV, 1990-1993, p.308.

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olhai, que honra tamanha, que todos decendem dela. Rei de Napoles tambem, Duque de Bregonha, a quem todo França medo havia e em campo El-Rei vencia, todos estes dela vem.54

Legitimando Inês como sua mulher, D. Pedro, assim que ascende ao trono,

faz da amada a sua rainha. Rainha de Portugal. Tudo culminado na pedra dos

túmulos, testemunha fidedigna de um amor que tem encantado corações.

Em todos seus testamentos a decrarou por molher e por s’isto melhor crer fez dous ricos moimentos em qu’ambos vereis jazer: rei, rainha, coroados, mui juntos, nam apartados, no cruzeiro d’Alcobaça. Quem poder fazer bem faça, pois por bem se dam tais grados.55

A tragédia da morte de Inês encontra na pena de artistas a garantia de uma

fecunda permanência e perpetuação, possibilitando a atualização do tema e sua

permanente revisitação. A força do discurso literário é capaz de construir muitas

Ineses. Exemplo ímpar da leitura do episódio inesiano é a realizada por Luís de

Camões n’ Os Lusíadas, que marca o início de um legado literário do qual muitos

ficcionistas não abririam mão.

Traduzindo um dos temas mais freqüentes dos versos camonianos – os

males causados pelo amor –, sendo ao mesmo tempo uma passagem histórica e

lírica, a microsseqüência56 narrativa de Inês de Castro ocupa as estâncias 118 a

54 RESENDE, Garcia. Cancioneiro Geral. 4 vols., Lisboa: imprensa Nacional – Casa da Moeda, vol. IV, 1990-1993, p.308. 55 RESENDE, Garcia. Cancioneiro Geral. 4 vols., Lisboa: imprensa Nacional – Casa da Moeda, vol. IV, 1990-1993, p.309. 56 De acordo com Cleonice Berardinelli, os versos camonianos que se referem a algumas das grandes passagens d’ Os Lusíadas – Inês de Castro e o Gigante Adamastor, por exemplo – não constituem episódios, mas microsseqüências narrativas. Vejamos o que diz a professora: “[...] tal palavra [episódio] (do grego epeisodion, “o que vem de fora”) designa uma ação incidente, ligada à ação principal, algo que não se poderia incluir nas funções cardinais, consecutivas e conseqüentes, de que fala Barthes, e que abrem sempre uma alternativa, possibilitando a opção por um de dois caminhos.” (Cf. BERARDINELLI, Cleonice. Estudos Camonianos. 2. ed.rev.ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 73-74). O texto de Roland Barthes a que se refere Cleonice Berardinelli está em “Introduction à l’analyse structurelle des récits”. In. Communications 98. Paris: Seuil, p.10)

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135 do Canto III d’ Os Lusíadas. Camões insere a passagem no contexto da

narrativa da História de Portugal. É Vasco da Gama, pois, que narra “o caso triste

e dino da memória / que do sepulcro os homens desenterra”.

Inês é a “mísera e mesquinha / que despois de ser morta foi rainha”, epíteto

que a coloca “no alto plano mítico que a lenda pretendia – elevando esse plano a

parte integrante de uma estruturação épica do mundo”57. Se a amante de D. Pedro

cometeu algum pecado, foi o de muito amar. E o Amor – o deus Amor – foi o

responsável por sua morte. Feroz deidade, não se satisfaz com lágrimas e com

tristeza. Em vez disso, exige sacrifício humano, sangue humano em seus altares –

é uma força devastadora para os corações humanos:

Tu só, tu, puro Amor, com força crua, Que os corações humanos tanto obriga, Deste causa à molesta morte sua, Como se fora pérfida inimiga. Se dizem, fero Amor, que a sede tua Nem com lágrimas tristes se mitiga, É porque queres, áspero e tirano, Tuas aras banhar em sangue humano.58

Uma das mais belas passagens das leituras do episódio inesiano é

justamente aquela que faz Inês e Pedro, na ausência um do outro, encontrarem-se

pela saudade. Ao evocar Inês de Castro, Camões cria uma atmosfera de simpatia e

piedade para com a amada do Infante, traçando com singular sensibilidade a

imagem de uma ilusória felicidade e da sua brevidade.

Estavas, linda Inês, posta em sossego, De teus anos colhendo doce fruto, Naquele engano da alma, ledo e cego, Que a Fortuna não deixa durar muito, Nos saüdosos campos do Mondego, De teus fermosos olhos nunca enxuto, Aos montes ensinando e às ervinhas O nome que no peito escrito tinhas. Do teu Príncipe ali te respondiam As lembranças que na alma lhe moravam, Que sempre ante seus olhos te traziam, Quando dos teus fermosos se apartavam; De noite, em doces sonhos que mentiam, De dia, em pensamentos que voavam;

57 SENA, Jorge de. Estudos de História e Cultura. Lisboa: Revista Ocidente, 1963, p.597. 58 CAMÕES, Luís de. “Os Lusíadas”. In. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003 (III, 119).

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E quanto, enfim, cuidava e quanto via Eram tudo memórias de alegria.59

Inês, “posta em sossego”, esperava saudosa o amado Pedro, cujo nome

guardava no peito apaixonado, repetindo-o “aos montes e às ervinhas”. A

narrativa é centrada em Inês – a quem se dirige o poeta – embora este narrador

onisciente saiba que, na alma de Pedro, também moram as lembranças dela, sabe

ainda que, distantes do olhar, aproximava-se pela recordação, o que lhes permitia

conversar nos dias de ausência, em forma de pensamentos e sonhos. Em “sonhos

que mentiam” e em “pensamentos que voavam” os dois amantes sempre estavam

um com o outro. Seja nos involuntários sonhos “que mentiam”, pois só no

imaginário existem, ou nos – muitas vezes – voluntários pensamentos, a felicidade

os guardava, já que tudo quanto faziam ou viam os deixava repletos de alegria,

trazendo ao coração de cada um a imagem e o nome um do outro. É interessante

notar que, nessa passagem, amador e amada se confundem, já que os versos que se

reportam a um também se reportam à outra. Inês e Pedro assim viviam o seu

idílio.

O príncipe D. Pedro recusara-se a casar com quaisquer “outras belas

senhoras e Princesas”, pois seu coração a Inês apenas pertencia. “O velho pai

sesudo, que respeita / O murmurar do povo e a fantasia / Do filho, que casar-se

não queria”, decide matar a bela Inês, acreditando que apenas o sangue e a morte

apaziguariam a chama de amor que une o casal.

Os “horríficos algozes” trazem Inês perante o rei, que já estava

compadecido e arrependido. “Mas o povo, com falsas e ferozes / Razões, a morte

crua o persuade”. Inês de Castro, de mãos atadas, eleva os olhos para o céu e em

seguida volta seu olhar para os filhos. Com a voz cheia de mágoa, diante dos

assassinos, e chorando mais pela saudade do Príncipe e dos filhos do que pela

própria vida, Inês suplica ao rei que a deixe viver.

Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito (Se de humano é matar ÊD�GRQ]HOD� Fraca e sem força, só por ter sujeito O coração a quem soube vencê-la), A estas criancinhas tem respeito, Pois o não tens á morte escura dela;

59 CAMÕES, Luís de. “Os Lusíadas”. In. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003 (III, 120-121).

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Mova-te a piedade sua e minha, Pois te não move a culpa que não tinha E se, vencendo a Maura resistência, A morte sabes dar com fogo e ferro, Sabe também dar vida, com clemência, A quem perdê-la não fez erro. Mas, se to assi merece esta inocência, Põe-me em perpétuo e mísero desterro, Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente, Onde em lágrimas viva eternamente. Põe-me onde se use toda a feridade, Entre liões e tigres e verei Se neles achar posso a piedade Que entre peitos humanos não achei. Ali, co amor intrínseco e vontade Naquele por quem mouro, criarei Estas relíquias suas que aqui viste, Que refrigério sejam da mãe triste60

É humano assassinar uma mulher simplesmente porque ela ama o homem

que a conquistou? É pecado deixar-se vencer pela força do amor? Inês, agarrando-

se aos seus filhos, apela à humanidade e à piedade do rei, lembrando que até

mesmo as “brutas feras” tiveram compaixão das crianças indefesas: assim foi “coa

mãe de Nino”, Semíramis, a quem as aves de rapina alimentaram e “cos irmãos

que Roma edificaram” – Rômulo e Remo – alimentados por uma loba. Preferindo

o exílio à morte, Inês suplica que a desterrem para a “cítia fria” ou “Líbia ardente”

– dois extremos – e a coloquem entre as feras, onde encontraria a piedade que não

há entre os homens. As palavras da bela dama tocam Afonso IV. “Queria perdoar-

lhe o Rei benino,[...] / Mas o pertinaz povo e seu destino / (Que desta sorte o quis)

lhe não perdoam”. Dominados por um ódio profundo, os algozes de Inês investem

contra a frágil dama.

Tais contra Inês os brutos matadores, No colo de alabastro, que sustinha As obras com que Amor matou de amores Aquele que despois a fez Rainha, As espadas banhando, e as brancas flores, Que ela dos olhos seus regadas tinha, Se encarniçavam, férvidos e irosos, No futuro castigo não cuidosos.61

60 CAMÕES, Luís de. “Os Lusíadas”. In. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003 (III, 127-129). 61 CAMÕES, Luís de. “Os Lusíadas”. In. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003 (III, 132).

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Nestes versos opõem-se duas imagens: a da fragilidade da vítima e a dos

“férvidos e irosos” matadores. Inês é aquela que ama com o mais puro amor, a que

morre só por ter “sujeito o coração a quem soube vencê-la”. O poeta iguala Inês e

o amor – note-se o tratamento “tu” para ambos – como se fosse ela, Inês, o

próprio amor. Além disso, vale-se do adjetivo “fero” para aqueles que a mataram

e para o deus Amor: não seriam, então, os algozes de Inês instrumentos do próprio

Cupido para que a amante de Pedro fosse morta? É, pois, a força crua do Amor a

causa essencial da tragédia:

Assi como a bonina, que cortada Antes do tempo foi, cândida e bela, Sendo das mãos lascivas maltratada Da minina que a trouxe na capela, O cheiro traz perdido e a cor murchada: Tal está, morta, a pálida donzela, Secas do rosto as rosas e perdida A branca e viva cor, co a doce vida. As filhas do Mondego a morte escura Longo tempo chorando memoraram, E, por memória eterna, em fonte pura As lágrimas choradas transformaram. O nome lhe puseram, que inda dura, Dos amores de Inês, que ali passaram. Vede que fresca fonte rega as flores, Que lágrimas são a água e o nome Amores!62

Tal como uma flor silvestre murcha e morre quando colhida, Inês está sem

perfume e sem cor, morta, com as rosas do rosto secas, sem rubor. As ninfas,

“filhas do Mondego”, tiveram suas lágrimas transformadas em uma fonte, que

passou a se chamar “Fonte dos Amores”, em memória da dama galega, feita

Rainha após a morte. Lágrimas de amor que dão vida às flores e que se convertem

na mais alta poesia.

Camões, com seu saber de platonismos feito, num dos inigualáveis momentos líricos de sua epopéia, ao focalizar a lenda sobre a “fonte dos amores", pôde iluminar o rosto de Eros, no episódio de Inês de Castro. O nome da fonte – Amores –, conjuga-se com memória e com poesia. O épico admite que a “memória eterna” se constrói na e pela intermediação discursiva, pois é a textualização das “lágrimas

62 CAMÕES, Luís de. “Os Lusíadas”. In. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003 (III, 134-135)

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choradas”, isto é, dos dissabores amorosos, que se transforma na “fonte pura" de novos discursos sobre os amores de Inês.63 A luz lançada sobre o episódio de Inês de Castro iluminou os versos de

muitos outros poetas. Seguindo os passos camonianos, Manuel Maria du Bocage,

com lirismo árcade na “Cantata à morte de D. Inês de Castro”, mantém a

tonalidade fundamentalmente narrativa do episódio. A estética descritiva utilizada

em seus versos assemelha-se a de Camões n’ Os Lusíadas. Mesmo as imagens

criadas – o sossego de Inês, a ilusória felicidade, os saudosos campos do

Mondego – encontram paralelo na leitura de Bocage.

É o que podemos ler nos primeiros versos da “Cantata”:

Longe do caro Esposo Inês formosa, Na margem do Mondego,

As amorosas faces aljofrava De mavioso pranto.

Os melindrosos, cândidos penhores No tálamo furtivo,

Os filhinhos gentis, imagem dela, No regaço da mãe sereno gozam

O sono da inocência. Coro subtil de alígeros Favónios,

Que os ares embrandece, Ora enlevado afaga

Com as plumas azuis o par mimoso, Ora, solto, inquieto,

Em leda travessura, em doce brinco Pela amante saudosa,

Pelos tenros meninos se reparte, E com ténue murmúrio vai prender-se Das áureas tranças dos anéis brilhantes. Primavera louçã, quadra macia

De ternura e das flores, Que à bela natureza o seio esmaltas, Que no prazer de amor ao mundo apuras

O prazer da existência, Tu de Inês lacrimosa

As mágoas não distrais com teus encantos!64

Inês está a colher os doces frutos da juventude, preenchida pelas

recordações que tem de seu amado. A companhia dos filhos, que estão a dormir

63 ALVES, Maria Theresa Abelha Alves. “Inês de Portugal: mito, tela, texto – a viagem de uma narrativa”. In. Revista Semear 7. Petrópolis: Vozes. Rio de Janeiro, 2002. p.162-163 64 BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du. “Cantata à morte de D. Inês de Castro”. In. Antologia

Poética. 3. ed. MOURÃO, Maria Antónia; NUNES, Maria Fernanda (org.). Braga: Biblioteca Ulisseia, 1998, p.165.

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no colo da mãe o sono da inocência, minora o que poderia ser o desespero da

ausência. Os amantes mantêm-se unidos pela saudade, sentimento que os

aproxima, que lhes dá vida. O coro dos ventos sopra, ameno. Nada, porém, é

consolação. Nada é capaz de preencher o coração de Inês, todo saudade pela

ausência do amado – ausência da plena felicidade. E, por isso, tudo é vão.

Debalde o rouxinol, cantor de amores, Nos versos naturais os sons varia; O límpido Mondego em vão serpeia Co’um benigno sussurro, entre boninas De lustroso matiz, almo perfume; Em vão se doira o sol de luz mais viva Os céus de mais pureza em vão se adornam

Por divertir-te, ó Castro; Objectos de alegria amor enjoam

Se amor é desgraçado. A meiga voz dos zephyros, do rio,

Não te convida o sono; Só de já fatigada

Na luta de amargos pensamentos, Cerras, mísera, os olhos; Mas não há para ti, para os amantes,

Sono plácido e mudo; Não dorme a fantasia, amor não dorme; Ou gratas ilusões, ou negros sonhos, Assomando na ideia, espertam, rompem O silêncio da morte.65

Uma visão toma conta de Inês. Ela, adornada em beleza, coroada ao lado de

Pedro, reinando com o marido e amante por todo Portugal. Tudo é graça e pompa

e glória. O clamor do povo, as dádivas ao justo. Inês, de perseguida, impera em

corações:

Ah! Que fausta visão de Inês de apossa! Que cena, que espetáculo assombroso A paixão lhe afigura aos olhos d’alma! Em marmóreo salão de altas colunas A sólio majestoso e rutilante Junto ao régio amador se crê subida; Graça de neve a púrpura lhe envolve, Pende augusto docel do tecto de ouro; Rico diadema de radioso esmalte Lhe cobre as tranças, mais formosas que ele;

65 BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du. “Cantata à morte de D. Inês de Castro”. In. Antologia

Poética. 3. ed. MOURÃO, Maria Antónia; NUNES, Maria Fernanda (org.). Braga: Biblioteca Ulisseia, 1998, p.165-166.

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Nos luzentes degraus do trono excelso Pomposos cortesãos o orgulho acurvam; A lisonja sagaz lhe adoça os lábios, O monstro da política se aterra, E se de Inês perseguia, Inês adora.

Ela escuta os extremos, Os vivas populares, vê o amante Nos olhos estudar-lhe as leis que dita; O prazer a transporta, amor a encanta; Prémios, dádivas mil ao justo, ao sábio

Magnânimo confere, Rainha esquece o que sofreu vassala66

A “fausta visão” que de Inês se apossara é cruamente interrompida: “Que

estrondo / O sonho encantador lhes desvanece!”. Despertando do sonho

encantador", Inês é tomada pela visão da morte, na figura de “três vis algozes”,

que buídos de punhais “conta a bela infeliz bramindo avançam”.

Ela grita, ela treme, ela descora, Os frutos da ternura ao seio aperta, Invocando a piedade, os céus, o amante: Mas de mármore aos ais, de bronze ao pranto, À suave atracção da formosura,

Vós, brutos assassinos, No peito lhe enterrais os ímpios ferros.

Cabe nas sombras da morte A vítima de amor, lavada em sangue, As rosas, os jasmins da face amena

Para sempre desbotam, Nos olhos se lhe some o doce lume,

E no fatal momento Balbucia, arquejando: “esposo, esposo!”67

Bocage recorre à consagrada visão de Inês como a da frágil dama que,

indefesa, tem o seu sangue derramado pelas razões de Estado e pelas razões do

coração. Os filhos, “os tristes inocentes / à triste mãe se abraçam, / E soltam de

agonia inútil choro”. Inês, a do colo de garça – Inês, a do rubro peito de murcha

flor. Não há clemência, não há desterro. Há a feroz morte de uma inocente – Inês,

“vítima de amor, lavado em sangue”.

66 BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du. “Cantata à morte de D. Inês de Castro”. In. Antologia

Poética. 3. ed. MOURÃO, Maria Antónia; NUNES, Maria Fernanda (org.). Braga: Biblioteca Ulisseia, 1998, p.166. 67 BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du. “Cantata à morte de D. Inês de Castro”. In. Antologia

Poética. 3. ed. MOURÃO, Maria Antónia; NUNES, Maria Fernanda (org.). Braga: Biblioteca Ulisseia, 1998, p.167.

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Nas cem tubas da fama o grão desastre Irá pelo universo:

Hão-de chorar-te, Inês, na Hircânia os tigres; No sertão torrado da Líbia fera As serpes, os leões hão-de chorar-te. Do Mondego, que atónito recua, Do sentido Mondego as alvas filhas

Em tropel doloroso Das urnas de cristal eis vêm surgindo, Eis, atentas no horror do caso infando, Terríveis maldições dos lábio vibram Aos monstros infernais, que vão fugindo. Já c’roam de cipreste a malfadada, E, arrepelando as nítidas madeixas, Lhe urdem saudosas, lúgubres endeixas.

Tu, eco, as decoraste, E, cortadas dos ais, assim ressoam Nos côncavos penedos que magoam: Toldam-se os ares, Murcham-se as flores: Morrei, amores, Que Inês morreu. Mísero esposo, Desata o pranto, Que o teu encanto Já não é teu. Sua alma pura Nos céus se encerra: Triste da terra Porque a perdeu! Contra a cruel Raiva ferina, Face divina Não lhe valeu. Tem roto o seio Tesouro oculto; Bárbaro insulto Se lhe atreveu. De dor e espanto No carro de ouro O Númen louro Desfaleceu. Aves sinistras Aqui piaram, Lobos uivaram, O chão tremeu. Toldam-se os ares,

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Murcham-se as flores: Morrei, amores, Que Inês morreu.68

A morte de Inês faz murchar flores, morrer amores. Porque aquela que é o

símbolo máximo do Amor está morta. O Poeta pede a Eco que decore as tristes

endeixas cantadas pelas ninfas do Mondego. Canto que, siginificando qualquer

coisa de irreversível, lembra-nos o velho refrão “agora é tarde, Inês é morta". A

força poética (re)criando Inês. O grande êxito do poema cabe, sobretudo, na força

dramática – mais que lírica – de Inês que

despertada pelos ‘ministros do furor, três vis algozes’, de um sonho que, embora lúgubre, termina com a glorificação que de facto ela já não veria, é massacrada num quadro que o poeta descreve minuciosamente, incluindo a desorientação das crianças, sempre um elemento de piedade.69

Inês vive eterna no canto dos poetas. Não lhe bastara o fino amor vivido.

Foi preciso muito mais. Foi preciso a sua morte ser sentida, chorada, cantada.

Perpetuada. Isto deu o Amor á Inês. O prêmio da eternidade. É a permanência de

Inês, sempre ditada. A lira do poeta parece ser a de Orfeu: todos param para

escutá-la. Todos com ela se encantam. Um som doce e elevado. Assim o é no

soneto “À lamentável catástrofe de Inês de Castro”:

Da triste, bela Inês, inda os clamores Andas, Eco chorosa, repetindo; Inda aos piedosos Céus andas pedindo Justiça contra os ímpios matadores; Ouvem-se inda na Fonte dos Amores De quando em quando as náiades carpindo; E o Mondego, no caso reflectindo, Rompe irado a barreira, alaga as flores: Inda altos hinos o universo entoa A Pedro, que da morta formosura Convosco, Amores, ao sepulcro voa: Milagre da beleza, e da ternura! Abre, desce, olha, geme, abraça e c’roa

68 BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du. "Cantata à morte de D. Inês de Castro". In. Antologia

Poética. 3. ed. MOURÃO, Maria Antónia; NUNES, Maria Fernanda (org.). Braga: Biblioteca Ulisseia, 1998, p.168-169. 69 SOUSA, Maria Leonor Machado de. Inês de Castro: um tema português na Europa. Lisboa: Edições 70, 1987, p. 306.

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A malfadada Inês na sepultura.70

Dois tons predominam no soneto: o da desgraça de Inês – se na “Cantata”

coube a Eco repetir seus clamores, agora clama por justiça, e todo o universo

entoa altos hinos de amor – e o da grandeza da ação de Pedro em uma gradação,

que termina com a coroação póstuma de Inês, lenda tornada cara pela Literatura:

“Abre, desce, olha, geme, abraça e c’roa”. Verso que reforça a permanência da

versão de que Inês foi uma póstuma Rainha. Se em Camões temos Inês como

aquela que “despois de morta foi Rainha”, em uma alusão maior ao sepulcro de

Alcobaça do que, cremos, às lendas, o texto de Bocage ultrapassa essa idéia: D.

Pedro agarra-se ao corpo da amada e busca reverter a morte dela em vida. Entre o

humano e o divino, Inês é o “milagre da beleza e da ternura”. A “malfadada”, mas

sempre bela, linda Inês.

Atravessando épocas, encontramos no século XX poetas que, como Garcia

de Resende, Luís de Camões e Bocage, encontram nesses amores doce canto de

saudade. Um destes é Afonso Lopes Vieira, aquele que mais cantou Inês71.

Destacamos um de seus poemas – “Formosa Inês" – do livro de versos Ilhas de

Bruma (1917):

Choram ainda a tua morte escura Aqueles que chorando a memorararm; As lágrimas choradas não secaram Nos saudosos campos da ternura. Santa entre as santas pela má ventura, Rainha, mais que todas que reinaram; Amada, os teus amores não passaram E és sempre bela e viva e loira e pura. Ó Linda, sonha aí, posta em sossego No teu moimento de alva pedra fina, Como outrora na Fonte do Mondego. Dorme, sombra de graça e de saudade, Colo de Garça, amor, moça menina, Bem-amada por toda a Eternidade!72

70 BOCAGE, Manuel Maria Barbosa du. “Soneto à lamentável catástrofe de de D. Inês de Castro”. In. Antologia Poética. 3. ed. MOURÃO, Maria Antónia; NUNES, Maria Fernanda (org.). Braga: Biblioteca Ulisseia, 1998, p.106-107. 71 Cf. SOUSA, Maria Leonor Machado de. Antologia Poética Inês de Castro. Coimbra: ACD Editores, 2005, p.7. 72 VIEIRA, Afonso Lopes. “Formosa Inês”. In. SOUSA, Maria Leonor Machado de. Antologia

Poética Inês de Castro. Coimbra: ACD Editores, 2005, p.108.

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É bem marcante a presença camoniana nos versos de Afonso Lopes Vieira.

O poeta evoca imagens da beleza, dos amores e da morte daquela que é a “Santa

entre as santas” e “Rainha, mais que todas que reinaram”. Um outro soneto, este

de Virgínia Vitorino, retoma os túmulos de Pedro e Inês, e o repouso dos amantes.

Apenas depois da morte podem-se amar livremente, sem os grilhões sociais –

longe das razões que governam o Estado. O poema respira certa atmosfera

romântica, havendo, sobretudo, a valorização do amor que persiste, que

permanece após a morte:

Repousaram enfim. Sonham agora Aquele grande sonho interrompido. – O maior sonho que se tem vivido, Sonho que julga – em cada nova aurora! – Beijam-se os dois amantes hora a hora. E no grande sossego apetecido, Murmuram ambos eles num gemido; “Só é perfeito, imenso, o amor que chora!” Inês, oh! linda Inês! “garça real”, Que para um bem sofreste tanto mal! Dorme, dorme o teu sono tão profundo. O teu Pedro te embala, nesse Amor Que há-de ter sempre o nome de maior! Que há-de ser novo – “Até ao fim do mundo”... – 73

Nos Poemas Ibéricos, publicados em 1982, Miguel Torga publica “Inês de

Castro”, cujos versos apontam para o aspecto da permanência do canto de

celebração ao amor de Pedro e Inês, uma vez consumado e sempre repetido. A

legenda tumular – Até a fim do mundo – faz-se, de certa forma, presente. Há a

anunciação da volta dos amantes. Há a expectativa do dia em que hão-de se

levantar de suas sepulturas e concretizar a “profecia”:

Acordar... Erguer a lousa sem D. Pedro ouvir... E dizer às donzelas que o luar É o aceno do noivo que há-de vir... E que, na morte, o amor

73 VITORINO, Virgínia. “Soneto”. In. SOUSA, Maria Leonor Machado de. Antologia Poética

Inês de Castro. Coimbra: ACD Editores, 2005, p.123.

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Se levanta e caminha. Que é um outro sol a ser outro calor, Outra mulher amada a ser rainha. E que não sou Constança ou Mariana, Porque o meu nome verdadeiro é Inês, Que sou a Julieta castelhana Do Romeu português.74

O século XX mostrou-se, enfim, terreno fértil no que diz respeito à lírica

inesiana. Muitos textos, certamente, não contemplam nosso estudo. De três deles,

aliás, falaremos mais adiante, em momento que julgamos mais propício: um

soneto de Virgínia Vitorino, “Eterno Amor”; “Meditação de Pedro o Cru ante o

corpo de Inês de Castro”, de João Mattos e Silva; “Inês de Manto”, de Fiama

Hasse Pais Brandão. Encerramos nossa pequena mostra com um poema de Nuno

Júdice, “Pedro, lembrando Inês”:

Em quem pensar agora, senão em ti? Tu, que me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a manhã da minha noite. É verdade que te podia dizer: “Como é mais fácil deixar que as coisas não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos apenas dentro de nós próprios?” mas ensinaste-me a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou, até sermos um apenas no amor que nos une, contra a solidão que nos divide. Mas isto é o amor; ver-te mesmo quando não te vejo, ouvir a tua voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo esse que mal corria quando por ele passámos, subindo a margem em que descobri o sentido de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo que o tempo nos rouba. Como gosto, meu amor, de chegar antes de ti para te ver chegar: com a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu: a primavera luminosa da minha expectativa, a mais certa certeza de que gosto de ti, como gostas de mim, até ao fim do mundo que me deste.75

Repleto de palavras singelas e de extrema profundidade, Pedro, lembrando

Inês é o galardão de todos aqueles que se encantam, que se deixam apaixonar por

esta triste história de amor. Como Nuno Júdice. O poeta empresta a sua voz ao

74 TORGA, Miguel. “Inês de Castro”. In. Alguns poemas Ibéricos. Coimbra: 1952, p.18-19. 75 JÚDICE, Nuno. “Pedro, lembrando Inês”. In. SOUSA, Maria Leonor Machado de. Antologia

Poética Inês de Castro. Coimbra: ACD Editores, 2005, p.129.

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amante., ao mesmo tempo em que dela se apropria para a transformar na palavra

que se faz poética. D. Pedro é cada um daqueles amantes que aguardam, ansiosos,

o encontro com a amada. Um poema cuja poesia é encontro e rendição, regresso

ao coração, diálogo com a ausência. Visão e epifania. Unidade sagrada pelo mais

terno dos sentimentos: o amor realizado na saudade, como o de Pedro e Inês.

4.2 O manto de amor, o reino da Saudade

Aplicando-se em defender o plano espiritual da saudade, afirma Teixeira de

Pascoaes:

O homem só vê nitidamente o que perdeu; só possui em absoluto o que perdeu. E por isso, as trevas da morte revelam melhor a pessoa amada que todo o sol que a iluminou durante a vida! A morte roubou-lhe o que é efémero e transitório, a aparência, mas a Saudade revelou-lhe a eterna aparição, a sua pessoa integral e essencial. A sombra da Morte que nos esconde, esvai-se ante a Saudade que nos mostra.76 O postulado de Pascoaes coincide com o que acontece com D. Pedro quando

morre Inês de Castro. Lima de Freitas, em duas de suas composições plásticas,

ilustra bem tal leitura. Em uma delas – Ate a fim do mundo – o artista retrata uma

Inês que é, ao mesmo tempo, vida e morte. Uma possível interpretação é

justamente a da efemeridade e transitoriedade da aparência pela ação da morte e

do tempo. Pedro e Inês estão a se olhar na linguagem do silêncio, a única que,

comenta Walter Benjamin, corresponde ao herói trágico:

Ao ficar em silêncio, o herói quebra as pontes que o ligam ao deus e ao mundo, ergue-se e sai do domínio da personalidade que se define e se individualiza no discurso intersubjectivo, para entrar na gélida solidão de Si-mesmo. Este nada conhece fora de si, é a pura solidão. Como há-de ele dar expressão a esta solidão, a esta intransigente obstinação consigo próprio, a não ser calando-se?77 Em outra obra – A que depois de morta foi Rainha – Lima de Freitas

reproduz a imagem de uma Inês morta, entronada e coroada. Uma estranha luz

está a iluminar-lhe a face e é justamente essa luminosidade que atrai os olhos do

rei. D. Pedro está a contemplar Inês de Castro, na ânsia de encontrar no rosto

iluminado da amada qualquer sinal de vida. O cadáver de Inês, entretanto, o seu

76 PASCOAES, Teixeira de. Os poetas lusíadas. Lisboa: Assírio e Alvim, 1987, p.75. 77 BENJAMIN, Walter. A origem do drama trágico alemão. Lisboa: Assírio e Alvim, 2004, p.286.

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corpo em decomposição, longe da luz de sua face, denuncia uma outra forma de

olhar: ambiguamente, ao mesmo tempo em que busca a reversibilidade, parece

sabê-la irreversível. Nada tem o poder de parar – ou mesmo reverter – o tempo.

Destacamos duas composições poéticas do século XX que trazem aspectos

do modo como D. Pedro encara – ou, melhor, enfrenta – a morte de sua amada:

Vamos ao primeiro deles: “Eterno Amor", de Virgínia Vitorino

Pedro, o grande amoroso, o eterno amante, Aos pés d’ Inês, sozinho e triste diz: Fez-me Cruel o muito que te quis, e acho ainda que não te quis bastante. Não me viste morrer. Partiste adiante nem me viste chorar; foste feliz. Subiste ao céu – formosa flor de liz, sempre tão perto, embora tão distante! O leito que te dei não te merece. Devia tê-lo feito de uma prece, De saudades, de rendas, ou luar... Vai-me esperando. – A expiação redime. – tenho na vida a expiação dum crime. – O Santíssimo crime de te amar. 78

O encontro dos amantes está para além de um plano físico. Metafísico,

talvez. Certo apenas tratar-se de um plano em que todo o afastamento é

ultrapassado. O encontro dos amantes está para além do repouso tumular. O leito

em que dorme Inês quer ser, para Pedro, mais do que pedra: é sonho de

eternidade. A saudade é uma prece que permite ao Rei comungar com sua Rainha.

Porque de saudade é feito este amor que os une.

Igualmente belo é o poema “Meditação de Pedro o Cru ante o corpo de Inês

de Castro”, de João Mattos e Silva:

Nunca mais te verei. nem minhas noites serão como marés no teu corpo; nem meus dias como o vento em teus cabelos. Nem nos teus olhos se hão-de perder os meus; nem no teu colo repousarei

78 VITORINO, Virgínia. “Eterno Amor”. In. SOUSA, Maria Leonor Machado de. Antologia

Poética Inês de Castro. Coimbra: ACD Editores, 2005, p.97.

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meus sonhos e desejos; nem mais por ti hei-de buscar meu graal. Senhor tão só de mim que não da vida destes reinos inda que morta és a rainha: Inês de Portugal.79 Este meditar de D. Pedro é, também, um lamento e uma despedida –

despede-se da amada e despede-se de si mesmo. É um hino e um louvor ao mais

alto amor, em que o amado anseia por novamente estar junto daquela que é

substância de sua própria alma. Cessada a busca do Graal, cessada a busca da

própria vida. Não há mais vida, afinal, a não ser daquela que é póstuma: Inês,

como as lendas consagraram, Rainha de Portugal.

Respirando de uma atmosfera saudosista, o drama simbolista Pedro, o Cru

(1918) de António Patrício capta as discussões filosóficas sobre a saudade.

Ressalte-se, porém, que Patrício vai além do raciocínio espiritualizado para

descrevê-la. A Saudade surge com força desmedida; o que o Pedro de Patrício

busca não é simplesmente a "imagem espiritual e eterna das cousas", mas a

ressurreição da carne.

Em uma das passagens da peça, ansiando por entrar em contato com a

amada, em vê-la, tocá-la, senti-la, enfim, para desenterrá-la do esquecimento e

coroá-la Rainha de Portugal, D. Pedro penetra no mosteiro de Santa Clara e

dirige-se à abadessa:

Não sou eu que vos venho perturbar. É a saudade que me traz, é ela só [...] A minha Saudade é uma hiena; vem desenterrar o meu amor... Onde está ele? Onde me espera a que será vossa Rainha?80 A leitura de Patrício aproxima-se daquelas de Lima de Freitas. Tal como a

hiena se alimenta de carne em decomposição, a Saudade do rei encontra no

cadáver de sua amada o alimento que lhe dá vida. Gilbert Durand sintetiza os

mitos portugueses em quatro linhas, a que chamou “mitologemas”81. Destaca uma

79 MATTOS E SILVA, João. “Meditação de Pedro, o cru ante o corpo de Inês de Castro”. In. SOUSA, Maria Leonor Machado de. Antologia Poética Inês de Castro. Coimbra: ACD Editores, 2005, p.116. 80 PATRÍCIO, António. “Pedro, o Cru”: In: Teatro Completo. Lisboa: Assírio e Alvim, 1982, p.112. 81 Cf. DURAND, Gilbert. Imagens e reflexos do imaginário português. Lisboa: Hugin, 2000.

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ligada à nostalgia do impossível, da qual Pedro e Inês são representantes

máximos. Quando Pedro se agarra ao corpo da amada – corpo sem vida – agarra-

se a uma impossibilidade. Para Pedro, entretanto, não é ao cadáver de Inês – não é

a um simulacro – que ele se agarra, mas à própria Inês. O corpo morto de Inês é

ainda para D. Pedro a própria Inês. O que ele enxerga – ou quer enxergar – não é

o corpo em decomposição, mas a luz que ilumina o rosto da amada. Como em

Lima de Freitas, o olhar de Pedro é volta-se diretamente para os olhos de Inês,

desconsiderando tudo que foge a esse foco.

A experiência da morte e a desilusão amorosa têm, para Pedro, o mesmo

valor. A vida de Inês é a sua vida. A morte da amada, a sua própria morte. O amor

passa a ser, então, um exercício de alteridade: é um reconhecer-se no outro, é ser

no outro.

– É a nossa hora, Inês... Estamos sozinhos. Estás bem assim!? Tu ouves-me dormindo. Eu fico aqui, à tua cabeceira. Não bulas, meu amor, dorme assim queda – como a tua estátua ali, sobre o teu túmulo... Esta á a Casa de Deus. Deus está connosco. Ouves os sinos repicar!?... Toca a noivado. As nossas bodas agora – são eternas. Sinto na minha alma a tua alma – como a água d’uma fonte n’outra fonte, como a luz na luz e deus em Deus... Sinto-te tanto, que te perco em mim. Aqui me tens, Inês: sou o teu Pedro. O que ele tem, o que ele tem pr’a te contar!... Eu bem sei que tu sabes...sabes tudo. Os teus ouvidos, na Morte, ouvem melhor. Ouviram o desespero do teu Pedro – uma noite de pedra sobre esta alma – ouviram as suas lágrimas caladas: ouviram toda, toda a sua dor. Eu sei... eu sei... As palavras, por si, dizem bem pouco; mas acordam a alma, meu amor. Se não fosse assim, pr’a quê!?... falar... Fala-se pr’a cair no teu silêncio – no silêncio em que a alma sorri toda... O teu Pedro quer falar; deixa-o dizer... Ouve-o como, mesmo adormecida, tu ouvias a fonte do jardim, do jardim das oliveiras meigas, do teu “jardim das Oliveiras”, meu amor. (Pausa) É o primeiro serão da eternidade. Lembro a face da terra em que te amei. Vejo os campos de Coimbra ao luzir d’alva... Eu vou partir pr’a montear... digo-te adeus... As rolas cantam perto – muito triste – no pinhal vizinho, que as entende... O Mondego, ainda a dormir, já corre... O último beijo que me deste em vida, foi n’uma hora assim: caíam folhas... os pomares ofereciam-se – doirados... quando fecho os meus olhos, vejo-a sempre: dir-se-ia que forra as pálpebras. Foi n’essa hora que eu nasci pr’à dor; foi na hora sagrada em que morreste, que a minha alma nasceu pr’a te adorar.82

Voltando á leitura da legenda tumular de D. Pedro – Até a fim do mundo –

depura-se a crença na eternidade. O túmulo, que poderia querer significar

qualquer coisa semelhante a um fim, converte-se em salvação. Há a superação da

morte e o início de todo um processo poético e simbólico. Os túmulos e o corpo

de Inês são atributos de vida, mantendo viva a memória cultural portuguesa.

82PATRÍCIO, António. "Pedro, o Cru": In: Teatro Completo. Lisboa: Assírio e Alvim, 1982, p.

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É pela Saudade que o amor de Pedro e Inês será pleno. O que o rei pretende

é preservar a memória da amada, em uma expectativa de dar vitalidade ao seu

corpo morto. A trasladação do cadáver de Inês do mosteiro de Santa Clara até ao

de Alcobaça e a sua configuração como rainha na estátua sepulcral jacente são

exemplos ímpares, que parecem ter reavivado na mente do povo todo o trágico

episódio destes amores de Pedro e Inês.. Haquira Osakabe destaca que tais atos do

rei D. Pedro serviram para “dar matéria à saudade”.

a configuração de Inês, pelos funerais reais, não foi apenas a superação simbólica da sua morte por parte de seu amante. Foi muito mais. Consagrá-la rainha correspondeu à unção (e criação) definitiva de Portugal como reino do Amor e do sentimento que permite eternizá-lo: a Saudade.83 É, portanto, a saudade a força que leva Pedro à ação, na busca da

reversibilidade da morte de Inês. Retomando o pensamento de Teixeira de

Pascoaes e as considerações de Haquira Osakabe, somos novamente conduzidos à

leitura de Patrício. A saudade torna-se verbo encarnado: princípio e fim, elo entre

a vida e a morte. É a força-motriz para a unção de um novo reino, diante do qual

Portugal se revela uma província apenas. Um reino de amor que abrange a morte e

os seus mistérios – “a sua natureza de mistério". O mergulho de Pedro neste reino

é uma viagem introspectiva. Transubstanciado em Saudade, é nessa viagem que

encontra a sua Inês.

Vivi um ano assim, do teu martírio. O teu sangue, amor, era o meu vinho. A tua morte, Inês, foi o meu pão. Fugia ao sol: a luz envenenava-me. Queria estar só, bem só, murado em mim: – cavava no silêncio um fojo escuro para me poder cevar da minha dor. O meu crânio era uma câmara de tortura: – viviam lá um carrasco e os assassinos. E o carrasco era eu, era o teu Pedro. Oirava de pensar... de sentir sangue... P’ra ver se assossegava, ia montear [...] Era um lobo o teu Pedro: era uma hiena. Mas um dia, “Alguém” desceu ao fojo: – “Alguém” que era da morte e era da vida; e mais – de além da morte e além da vida... E eu vi a Saudade ao pé de mim. Nunca mais me deixou: vivo com ela. Fez-se em mim carne e sangue. Fez-se Inês. Por isso sabes a minha vida. Por isso eu sei a morte como tu. Sou o homem que viveu a vida e a morte: sou o homem-Saudade, o rei-Saudade... [...] Sou o rei... o rei do maior reino... do reino que me deste, minha Inês... Duas vezes Rainha!... Santa! Santa!... Se estou ao pé de ti – tudo foi bom!... A minha dor, Inês, beijo-a nos olhos!... beijo-a como beijei a tua boca... como – cerrando os olhos na saudade – beijei, beijei, beijei a tua alma... Tudo, tudo foi bom. Tudo eu bendigo. Oiço bater o coração do meu destino. Agora sei, Inês... agora entendo. Morreste moça – pr’a viveres na eternidade sempre moça. Bendito seja sempre o teu martírio! Bendito o lobo em mim... bendita a hiena (Mais perto dela ainda, erguendo as

83 OSAKABE, Hakira. “A pátria de Inês de Castro”. In. IANNONE, Carlos Alberto, GOBI, Márcia V. Zamboni & JUNQUEIRA, Renata Soares (org.). Sobre as naus da iniciação. São Paulo: Unesp, 1998, p.108.

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mãos) bendita tu, Inês, sempre bendita! (Pausa. N’um tom d’intimidade mística) estás outra vez no reino pequenino. Ele foi-te fiel como o teu Pedro. Cada árvore sabe a tua graça. A tarde cai lembrando o teu sorriso. A terra que tu pisaste, alimentou-me: era pão para mim, mais do que pão.84

O encontro de Pedro e Inês, dado “além da morte e além da vida", em um

espaço-tempo lacunar, tem qualquer coisa de iniciático: uma iniciação aos

mistérios da saudade. Os sagrados mistérios da Saüdade. Não é Inês que volta à

vida. Mais que isso, é Pedro que a tem na morte. Assim o amor poderá ser pleno,

porque ele é todo Saudade. Porque não há mais Pedro e Inês, mas Pedro-Inês,

indissoluvelmente.

Oiço no teu silêncio cotovias... O som e a luz casaram-se, fundiram-se: são o ar que eu respiro... o nosso ar... Oh! Asas... asas... dêem-me asas! É um abismo d’estrelas – este amor... Faz-me medo. É um turbilhão de estrelas... (Com voz de aura,

chamando) Inês!... Inês!... eu tenho medo... Sinto o vento de luz da eternidade... Um momento, estende os braços como asas; e resvala inerte no lajedo.85

Com a amada coroada – a sua póstuma consorte – Pedro deita-se ao lado de

Inês, em um transe que lhe permite entrar no mundo da amada. E estão juntos, de

mãos dadas, à porta da igreja: “É o olhar de Deus – aquela luz... É o coração de

Deus – aquela igreja...”86

Respirando dessa mesma atmosfera de fantasmagoria, “Inês de Manto” –

belíssimo poema de Fiama Hasse Pais Brandão – apresenta-nos uma Inês que, fora

do sossego, vem tornar-se texto, este "tecido dos significantes"87, que reveste a

amada de Pedro com o mais poético lirismo.

Teceram-lhe o manto para ser de morta assim como pranto se tece na roca Assim como o trono e com o espaldar foi igual o modo de a chorar

84 PATRÍCIO, António. "Pedro, o Cru": In: Teatro Completo. Lisboa: Assírio e Alvim, 1982, p. 167-168. 85 PATRÍCIO, António. "Pedro, o Cru": In: Teatro Completo. Lisboa: Assírio e Alvim, 1982, p. 169. 86 PATRÍCIO, António. "Pedro, o Cru": In: Teatro Completo. Lisboa: Assírio e Alvim, 1982, p. 173. 87 BARTHES, Roland. Aula. 11. ed. São Paulo: Cultriz, 2004, p.11.

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Só a morte trouxe todo o veludo no corte da roupa no cinto justo Também com o choro lhe deram um estrado um firmal de ouro um corpo exumado O vestido dado como a choravam era de brocado não era escarlata88 Sobre o poema de Fiama Hasse Pais Brandão pode-se dizer tratar-se de uma

daquelas leituras que embelezam a história e historiam as lendas. O manto que

veste Inês não é o de escarlata – aquele designado á realeza. Inês é a póstuma

rainha, para quem se teceu o manto que é dor e pranto. O choro se tece na roca e

em pranto se converte o trono. E em pranto se fez Portugal. Porque Inês é a

Rainha de Portugal. E em que trono há-de ela sentar senão naquele em que se

converteu toda a ausência, toda a dor em pranto transformada?

4.3 A Literatura Brasileira no rastro de Inês

Em seu ensaio investigativo da projeção dos dois temas portugueses que

mais freqüentam as literaturas estrangeiras – Inês de Castro e D. Sebastião –

Maria Leonor Machado de Sousa verifica que, diante do fenômeno, há perguntas

que surgem naturalmente, como:

– Que razões podem levar um autor a escolher um tema estrangeiro: – a importância desse tema na sua própria cultura? – a semelhança com outro existente na sua tradição cultural? – características sensacionais desse tema? E ainda: – No caso de um tema ou mito importado, que influência exerceu ou de que modo foi alterado por influência de temas ou mitos afins?89

88 BRANDÃO, Fiama Hasse Pais Brandão. “Inês de Manto”. In. Barcas Novas. Lisboa: Ulisseia, 1967, p.47-48. 89 SOUSA, Maria Leonor Machado de. D. Inês e D. Sebastião na Literatura Inglesa. Lisboa: Vega, s/d., p. 9-10.

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Como realizado pela professora em relação a estes temas na Literatura

Inglesa, aplicaremos o esquema investigativo referente à produção lírica da

Literatura Brasileira, que vem encontrando interesse artístico no episódio de Inês

de Castro.

Um salto de quatro séculos separa a Inês de Camões da Invenção de Orfeu,

de Jorge de Lima, obra síntese de sua experiência como poeta, romancista e

pintor. Apontam alguns críticos tratar-se de uma biografia épica do artista em

busca de plenitude sensível e espiritual. Ressalta, inclusive, Cláudio Murilo Leal

que o poema de Jorge de Lima

está para a literatura brasileira assim como Os Lusíadas para a portuguesa. Considerados dois verdadeiros monumentos poéticos e lingüísticos, que enriqueceram para sempre o nosso patrimônio cultural, ambos os poemas celebram um compromisso entre respeito à tradição e a ousadia da renovação.90

“Permanência de Inês” – o canto IX de Invenção de Orfeu – é a própria

exaltação do fazer poético. Paradigmaticamente recriando e revitalizando o

sintagma camoniano, a Inês de Jorge de Lima não é aquela “posta em sossego”,

mas a que não ficou “nunca em sossego”.

Estavas, linda Inês, nunca em sossego e por isso voltaste neste poema, louca, virgem Inês, engano cego, ó multípara Inês, sutil e extrema, ilha e mareta funda, raso pego, Inês desconstruída, mas eurema, chamada Inês de muitos nomes, antes, depois, como de agora, hoje distantes.91

É, parece-nos, justamente esse desassossego a certeza – ou garantia – da

“permanência de Inês”. É a lenda que se fez mito – e se fez texto. Inês é verbo

encarnado, é o poema, a abertura para o texto literário: a origem da poesia.

Introspecção, prospecção e retrospecção, Invenção de Orfeu é mundividência,

expressão do Cosmos. Experiêncioa e conhecimento. Inês surge como poesia,

unida, transubstanciada:

Porém penumbra vaga ou talvez acha 90 LEAL, Cláudio Murilo. “Invenção de Orfeu: uma nebulosa cosmogonia”. In: LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. Rio de Janeiro: Record, 2005, p.7. 91 LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 359.

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celeste consumindo-se, também a própria conceição parindo baixa a real prole; de súbito ninguém nessas longínquas órbitas que enfaixa com seus cabelos, ela-a-mais-de-cem, a mais de mil, Inês amorfa e aresta, Inês a só, mas logo a sempre festa. Inês que fulge quando o dia brilha ou se acinzenta quando o ocaso avança, rainha negra, mãe e branca filha, entre arcanjos do céu etérea dança, e nos dias dos mundos andarilha, andar incandescente que não cansa poema aparentemente muitos poemas, mas infância perene, tema em temas.92

Jorge de Lima confirma o que previu Garcia de Resende: a glória de Inês é

tornar-se texto. O galardão do amor é morrer e, na morte, renascer em re-criação.

É Orfeu, o poeta-homem-criador que transforma Inês nas mil faces, amorfas,

atéreas, eternas. A visão que o sujeito-lírico tem de Inês é uma espécie de

iniciação poética. Uma viagem iniciática. Contemplar Inês é contemplar a própria

poesia. Esta poesia que é libertadora dos sentidos, porque ela, Inês, a “musa Inês”,

assim o é pela força da criação literária. Como poesia, está além do tempo, porque

não finda; está para além do espaço, porque atravessa fronteiras.

É o vislumbre da Máquina do Mundo. Inês é poesia, Inês é revelação. O

olhar é o elo entre o menino e a musa:

Ela fechada virgem, via-a em rio; eu era os meus sete anos, vendo-a vejo a própria poesia que surgiu intemporal, poesia que antevejo, poesia que me vê, verá, me viu, ó mar sempre passando em que que velejo eu próprio outro marujo e outro oceano em redor do marujo trasmontano. Meu pai te lia, ó página de insânia! E eu escutava, como se findasses. Findasses? Se tu eras a espontânea, a musa aparecida de cem faces, a além de mim e além da Lusitânia como se além da página acenasses aos que postos em teus desassossegos cegam seus olhos por teus olhos cegos.93

92 LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 359-360 93 LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 360.

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Comunhão com a existência, Inês é a epifania de muitos poetas. “Inês refaz-

se simultaneamente, / obumbra os horizontes, cobre o poente”. Resgate de um

passado, vislumbre para o futuro. É a libertação dos sentidos. Linguagem

primitiva e criação de outras – é o mito que se cria.

Amou revelação, purificou-se, nenhum amor descrito conseguiu ensombrar-lhe de angústia o olhar doce. Inês resplandecente, sempre estio, conheceu-se em seus símbolos. Amou-se, pois fora restituída. Coexistiu. Chispa inventiva, Inês florida arena marasmos espezinha. Altiva cena.94

Poema sobre poemas, Invenção de Orfeu é a recriação constante da palavra,

do discurso. Da palavra em curso. Poesia recriada através de outras. É o que

Cláudio Murilo Leal chamou de “um texto palimpsesto, que incorpora elementos

de uma prévia literatura. Isto é, em Invenção de Orfeu ressoam vozes pretéritas”95.

Vozes de muitos poemas, de muitos poetas-deuses-criadores-de-mil-criaturas.

Poetas que, colhendo os doces frutos poéticos, encontraram Inês – apenas Inês –

fora do sossego. E com ela desassossegaram-se. Fusão entre sujeito e objeto.

Permanência de Inês entre a imaginação e a memória:

Inês da terra. Inês do céu. Inês. Preferida dos anjos. Árdua rota, conúbio consumado, antevivuvez. Mas após amplidão sempre remota, branca existência, face da sem tez. Ontem forma palpável. Hoje ignota. Eterna linda Inês, paz, desapego, porta recriada para os sem-sossego. [...] Queimada viva, logo ressurrecta, subversiva, refeita das fogueiras, adelgaçada como início e meta; as palavras e estrofes sobranceiras narram seus gestos por um seu poeta ultrapassado às musas derradeiras da sempre linda Inês, paz, desapego,

94 LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 361-362 95 LEAL, Cláudio Murilo. “Invenção de Orfeu: uma nebulosa cosmogonia”. In: LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. Rio de Janeiro: Record, 2005, p.13-14.

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porta da vida para os sem-sossego.96

Inês de Castro é o tema de A rainha arcaica, de Ivan Junqueira. Como Jorge

de Lima, o poeta é instigado pelo mito inesiano, buscando reescrevê-lo – ou mais

exatamente, relê-lo, revitalizá-lo – seja na prosa poética de Fernão Lopes, nos

doces versos de Garcia de Resende ou nos de Camões. Os quatroze sonetos que

compõem A rainha arcaica oferecem uma bela leitura desse mito que, transposto

da História, ganha contornos poéticos.

Para Ivan Junqueira, “Toda esfinge exibe um signo / visível de seu enigma, /

embora quem o pressinta / jamais lhe decifre a escrita”. E assim o é com a sua

Inês. Instigando, provocando o leitor, o poeta retoma o célebre verso de Fernando

Pessoa, para quem “o mytho é o nada que é tudo”, apontando já para um caminho

de leitura desse mito que se renova a cada leitura.

“A rainha indivisa”, primeiro soneto, demonstra uma possível falência dos

desejos e das ações humanas:

E vendo-se a rainha despojada de seus haveres ancestrais e a pátria, sem feudo ou latifúndio – as glebas fartas agora à míngua, do calcâneo à escápula; e vendo-se a monarca exígua e arcaica, sem rei na alcova, tumba de alabastro, distante já dos ais de suas aias que entre águias e unicórnios fabulavam; e a soberana assim posta em desgraça, de eunucos e presságios rodeada, lívida ao gume esguio das adagas, de joelhos se pôs na orla das águas, e as vagas lhe rasgaram a ilharga: tálamo onde párias foram reis. E reis, vassalos.97

Inês, desamparada e despojada de si mesma, exígua e arcaica descobre-se

morta em vida. Ela que “ora defunta, / já foi infanta e bela como tantas”. Em

ruína, “de si própria se fez pântano”. São os indícios da falência e do luto diante

de tudo o que é efêmero, transitório. Ivan Junqueira vem provar que o fazer

poético tem o poder de reverter o irreversível. A morte de Inês é o seu galardão,

atesta Garcia de Resende. A permanência de motivos poéticos é a vitória sobre a

morte, propõe Junqueira. O poeta, como herdeiro da poética inesiana, faz da

96 LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. Rio de Janeiro: Record, 2005, p.363-364. 97 JUNQUEIRA, Ivan. “A Rainha Arcaica”. In. Poesia reunida. São Paulo: A Girafa, 2005, p.80.

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rainha a sua poesia: “o tema histórico tratado por Fernão Lopes, Garcia de

Resende, Camões e Jorge de Lima é convincentemente retomado por Ivan

Junqueira, que se insere assim numa das tradições mais caras à lírica luso-

brasileira”.98

O poema “Eu era moça, menina...”, glosando Garcia de Resende, tem como

enunciador a própria Inês de Castro. Viva – embora morta – e conhecedora de seu

destino:

Eu era moça, menina, em meus paços muito honrada, por nome Inês de Castro, quando o vi no Mondego, inquieto e esgalgo, a sitiar-me a fímbria das espáduas. Era o infante meu primo, ajaezado, o dinasta afonsino com seus gládios, seus cães de fino faro em meu encalço no afã de decifrar-me a foz do orgasmo. Ele se veio a mim como quem sabe que à fêmea apraz o macho sem alarde. Nada pediu. Quis-me. Fiz-lhe a vontade. E a sorte, bem sabeis, lançada estava quando o vi no Mondego (e já era tarde para o perdão de Portugal e o Algarve).99

Junqueira eleva ao mais alto patamar o pensamento de poetizar a História.

“A poesia é revelação da condição e consagração de uma experiência histórica

concreta”100, disse Octavio Paz. O soneto XII d’ A rainha arcaica – “Vai numas

andas...” – é a leitura do texto de Fernão Lopes que o poeta utiliza em epígrafe –

“Sempre o seu corpo foi per todo o caminho per antre círios acesos” – e

reconstitui a cena espantosa – e majestosa – da trasladação do cadáver de Inês:

Por entre a luz dos círios, sob a névoa, navega o féretro de uma donzela. Vai numas andas que os fidalgos levam em lento périplo ao redor das glebas. E voa assim por dezassete léguas que entre Alcobaça e as serras se enovelam. Vai leve o séqüito em seu curso aéreo ao som do réquiem que sussurram os clérigos. Flameja a infanta sobre um mar de flechas e nave adentro flui rumo à capela,

98 TELES, Gilberto Mendonça. “As duas vozes do poeta”. In. JUNQUEIRA, Ivan. Poesia reunida. São Paulo: A Girafa, 2005, p.245. 99 JUNQUEIRA, Ivan. “A Rainha Arcaica”. In. Poesia reunida. São Paulo: A Girafa, 2005, p.82. 100 PAZ, Octavio. El arco y la lira. 3. ed. México: FCE, 1972, p. 231. (Ao citar, traduzi)

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cerca de Pedro, que na pedra a espera e em pedra a entalha da coroa aos pés. Descansa, Inês, longe dos reis terrestres, pois que outro reino agora te celebra.101

O mistério da criação poética é desenvolvido no último soneto: “Inês: o

nome”. Nele, o poeta apresenta uma Inês que é eterna – e o que se configuraria

como um fim, passa a ser o princípio da vida poética. Eis o mistério da poesia, que

Ivan Junqueira nos revela nestes versos d’ A rainha arcaica:

Inês é nome que se pronuncia para instigar ou seduzir prodígios, é senha que as sibilas balbuciam ao decifrar enigmas cabalísticos. É mais do que isto: códice da língua, raiz da fala, bulbo do lirismo. É gênese da raça e do suplício, arché do amor e substância prima. É mais ainda: tálamo do espírito, dessa alquimia de morrer em vida e retornar na antítese do epílogo. E quem disser que Inês é apenas mito – mente. E faz dela inútil pergaminho. E da poesia um animal sem vísceras.102

Sobre esse soneto Gilberto Mendonça Teles diz:

Aí estão as imagens primordiais da nossa história poética e, também, da história poética de cada um, com seus traços, seus enxertos, seu horizonte cultural, a raiz

da fala e o seu matiz de fálus a ler-se também nessa bela imagem vegetal de um bulbo do lirismo, um caule subterrâneo engendrando a gênese da raça, na arché do amor e do suplício, nessa morte que se transforma em poesia.103

O legado inesiano encontra em Tatiana Alves a sua continuidade. Além de

ensaísta e leitora atenta das Literaturas de Língua Portuguesa é premiada escritora.

Segundo ela própria, “comete delitos poéticos há mais de vinte anos, e há sete

transgride também em prosa”. Dos seus muitos “delitos poéticos” destacamos dois

poemas a que chamamos Inesianas: “No rastro de Inês” e “No rastro de Inês II”.

O primeiro deles, um constante mover de significantes e significados. Vamos à

leitura.

101 JUNQUEIRA, Ivan. “A Rainha Arcaica”. In. Poesia reunida. São Paulo: A Girafa, 2005, p.85. 102 JUNQUEIRA, Ivan. “A Rainha Arcaica”. In. Poesia reunida. São Paulo: A Girafa, 2005, p.86. 103 TELES, Gilberto Mendonça. “As duas vozes do poeta”In. JUNQUEIRA, Ivan. In. Poesia

reunida. São Paulo: A Girafa, 2005, p.246.

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Inês de Castro Inês no claustro Inês de quatro Inês no rastro Inesquecível Inesgotável Inexplorável Inesperada Inebriante Inevitável Inexplicável Inestimável Que lastimável! Inês é Marta? Inês é morta E coroada Rainha Inês, Coroa a nós, Funestas musas, De insensatez104

Tzvetan Todorov, ao descrever a arte como um sistema semiótico que

contém em si a marca das formas abstratas da linguagem, destaca que a literatura:

[...] tem a linguagem ao mesmo tempo como ponto de partida e de chegada; esta lhe fornece tanto sua configuração abstrata quanto sua matéria perceptível, é ao mesmo tempo mediadora e mediada. Por isso a literatura é não só o primeiro campo a ser estudado a partir da linguagem, mas também o primeiro cujo conhecimento pode lançar nova luz sobre as propriedades da própria linguagem.105

Seguindo os passos de Todorov, “No rastro de Inês” é uma nova luz

lançada sobre o mito inesiano. A eufonia dos versos é re-criação sígnica: o signo

semiológico é uma constante evocação a Inês. Esta que é signo em rotação,

esvaziado e preenchido, sucessivamente. Abraçando o que diz a História e

recriando o que dizem as lendas, o segundo poema – “No rastro de Inês II” – é a

glorificação de Inês em um trono póstumo. É aquilo que permanece após a morte,

frente à perene condição do homem a um tempo que se aborta:

104 ALVES, Tatiana. “No rastro de Inês”. In. Perfil 2006: poesia. Rio de Janeiro: Oficina Editores, 2005, p.75. 105 TODOROV, Tzvetan. Poética da Prosa. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.32.

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Em seu colo de alabastro Não há quem não se conforte Esta foi Inês de Castro Do amor fez seu suporte Pelas armas de Cupido Pedro a ela se transporta Ao amor já convertido Nada mais já lhe importa Quis Fortuna que a cilada Levasse Pedro em seu rastro Descuidando da amada Não há mais Inês de Castro Pedro volta da jornada E chora por sua rainha A bela, de jóias ornada, Rege o tom da ladainha Coroada após a morte Num futuro que se aborta Uma póstuma consorte Já é tarde: Inês é morta.106

“No rastro de Inês II” é a força da irreversibilidade da morte, retomando o

velho bordão: “Já é tarde: Inês é morta”. Mas ela, Inês, é a “póstuma consorte”,

rainha depois de morta. Essa a garantia da sua volta nesse texto – em tantos textos.

Tatiana Alves atesta: Inês é mais que mito. É revelação poética – a epifania de

muitos poetas.

106 ALVES, Tatiana. “No rastro de Inês II”. In. Poiesis 2006. Rio de Janeiro: Oficina Editores, 2006, p.88.

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Conclusão

D. Inês tomou conta das nossas almas. Liberta-se

do casulo carnal, transforma-se em luz, em

labaredas, em nascente viva. Entra nas vozes, nos

lugares. Nada é tão incorruptível como a sua

morte.

(Herberto Helder, “Teorema”)

Denis de Rougemont diz que “determinadas realidades humanas que

sentimos ou pressentimos como fundamentais estão fora do alcance da crítica. O

mito exprime essas realidades, na medida em que nosso instinto o exige”107

. Ao

iniciarmos o nosso estudo, tomamos como ponto de partida a discussão de

aspectos histórico-culturais da “mitologia da saudade”, advinda do episódio

inesiano. Lenda ou História, pouco importou qual a mais verdadeira. Importou-

nos entender que o Mito se impõe à História, em um processo de transformação e

permanência, marcas de sua intemporalidade. Ao identificar-se com a Lenda,

torna-se indestrutível. Talvez por isso, o caráter trágico da história de Inês de

Castro seja fonte para a construção discursiva – literária e artística – dando origem

a múltiplas interpretações, a múltiplas recriações.

A trágica história de Inês de Castro e D. Pedro tem sido, pois, fonte de

inspiração para diversas manifestações artísticas. Daí encontrarmos, em todas as

épocas e em diferentes línguas, libretos de óperas, peças de teatro, guiões

cinematográficos, pinturas, esculturas, composições líricas, romances, canções,

enfim, diversas manifestações de Arte que tomam como referência esta trágica

história de amor e morte, de tal maneira que – destaca Maria Leonor Machado de

Sousa:

Tanto para a História quanto para a Literatura – numa palavra, para a tradição – a

verdade é que o episódio de Inês de Castro é algo que mais de seis séculos não

conseguiram ainda esgotar, e nessa medida se justifica que sobre ele se continue a

pensar e a escrever.108

107

ROUGEMONT, Denis de. História do Amor no Ocidente. 2. ed. reform. São Paulo: Ediouro,

2003, p. 31. 108

SOUSA, Maria Leonor Machado de. Inês de Castro: um tema português na Europa. Lisboa:

Edições 70, 1987, p. 434.

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Inês não está morta, como não está morto o amor. Os amores vividos, as

lágrimas choradas encontraram eco nos tempos idos. Eco, aliás, tão forte que

ainda hoje podemos ouvi-lo. Já não há mais como apagar Inês da memória da

cultura e da História portuguesa. Na metafórica condição de relicário, é a guardiã

da saudade, reafirmando-se em cada época, pelas manifestações artísticas que

tanto lhe tiram do sossego.

Em nosso trabalho, detivemo-nos na lírica portuguesa, destacando os seus

nomes mais expressivos – dos quais tomamos Garcia de Resende e Camões como

grandes mestres – que buscavam focalizar um particular aspecto: a simbologia da

Saudade. Inserimos nesse contexto António Patrício, cuja peça Pedro, o Cru é

símbolo máximo da assunção de Portugal a um reino que ultrapassa os limites do

plano físico, alcançando o plano espiritualizado da Saudade. Abrimos espaço para

algumas considerações sobre a projeção internacional deste episódio português. E

por que não optar pela Literatura Brasileira?

Outras obras pretendemos estudar em um passo posterior de nossa pesquisa,

que desde já anunciamos longa. António Ferreira (Castro), Agustina Bessa-Luís

(Adivinhas de Pedro e Inês), Rosa Lobato de Faria (A trança de Inês), António

Cândido Franco (Memória de Inês de Castro e A rainha morta e o rei saudade),

Fiama Hasse Pais Brandão (Noites de Inês-Constança) são alguns dos nomes que

destacamos. Estamos, portanto, longe de esgotar um tema que se quer inesgotável.

Fica aqui o nosso desejo de que as leituras que propusemos possam instigar

outras. E que as possíveis lacunas não sejam muitas.

Calamo-nos, enfim. Não porque não temos mais nada a dizer, mas por

preferirmos ficar como em uma prece silenciosa, com todos os sentidos

conectados ao que há de mais divino no mundo, no Homem. E no Silêncio de

nossa oração, talvez ouçamos as Filhas do Mondego entoarem hinos de amor em

memória da “mísera e mesquinha”, que “por memória eterna, em fonte pura, / As

lágrimas choradas transformaram”. Quem sabe até nos seja permitido beber destas

águas que são a origem de toda a nossa poesia. Portugal é uma fonte de Saudade.

E Inês tomou conta de nossas almas.

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7 Anexo

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Fotocópia colorida de: SOUSA, Maria Leonor Machado de. Inês de Castro: um

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