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ROBERTO AMARALramaral.org/wp-content/uploads/2012/09/Controversias-socialistas.pdf · rio-geral da Comissão Executiva Nacional do Partido Socialista Brasileiro. ... - Quadro partidário

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ROBERTO AMARAL

CONTROVÉRSIAS SOCIALISTAS

BRASÍLIA- 1992

Roberto Amaral, jornalista e escritor, é Secretá­rio-geral da Comissão Executiva Nacional do Partido Socialista Brasileiro. O texto Teses Controversas foi apresentado à Convenção Nacional do PSB, reunida em Brasilia, DF, em junho de 1992.

O autor agradece as colaborações de César Gui­marães e Antônio Houaiss. Evidentemente são de sua inteira responsabilidade as deficiências persistentes.

SUMÁRIO

TESES CONTROVERSAS

A QUESTÃO SOCIALISTA ............. .......................... ............ . 1. Introdução ....................................... . 2. Democracia .................. ........ ................................. .............. .

11. REPENSANDO A INSTITIJCIONALIDADE .................... . 1. Ética e necessidade 2. Recusando o catasrrofismo ...

IIJ. OS· SOCIALISTAS EO "PROJETO NACIONAL" ... 1. A pauta dos anos 50, ou As raízes do "nacionalismo" .. 1.1 -A saga industrialista ............ .... .................... . 2-A primeira surpresa: o industrialismo não-nacionalista .. 3-A "revolução" dos anos 60 interrompida pelo golpe

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milirar .................................................................. ........................... ..... .. 39 4- As surpresas dos anos militares ............................................... 43 4.1- Industrialismo e dependência .. 43 1.2- E ... fez-se a "reforma" agrária ... 5-Os "anos Geisel" 6-Aaliança burguesa na Constituinte ...................................... . 7-As novas relações econômius influenciando os no-vos projetos ............................................................. . 7.1-A nova geopolítica ........................................ .. ...... .. 7.2 -As novas relações de prod11qão , .. ......................... .. 7.3-O registro de dois "modelos" .......... ........... ..

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IV. O PROJETO NACIONAL DOS ANOS 90 ... .. . 1 - Introdução .. 2 . - Idéias para uma proposta de projeto nacional brasi­

leiro .....

2.1-lntrodução .. 2.2 -Democracia e institucionalidade .. 2.3 -Algumas estratégias 3-Por uma pauta nacionalista para os anos 90 ..

V. OS SOCIALISTAS E A SOCIAL DEMOCRACIA .. VI O ESPAÇO DO PSB ..

l. Introdução ..... ......... ............... ... . 7. - Quadro partidário no qual operam nossas escolhas .. l .i -Do PCB ao"""' .................. ................................ ............ . 2.2 -O populismo de esquerda .. . 2.3-O socialismo dificilmente "democrático" .. 2.4 - O novo petismo ..................... . .. ................. .

Vll ALGUMAS POUCAS QUESTÕÉS TÁTICAS .. 1. Introdução : ... , ........................................ . 2. A armadilha parlamentar .. 3. Parlamentarismo .. 4. A via parlamentar ..

Vlll. APOSTANDO NO FUTIJRO 1. Introdução (ou o Catastrofismo n• 2) ........................... " 2. O fim da perspectiva eleitoral socialiSta ...... ...................... . 3. As perspectivas eleitorais de 1992

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O Vl'l.HO ESTADO DO NEOLffiERAL!SMO E O NOVO S!ND!CA· USMO DO Vl'l.HO CORPORATIVlSMO

TESES CONTROVERSAS

TESES CONTROVERSAS

"Se há coisa certa é que num futuro remotís­simo o proprietário de terra será um ente tão mitológico quanto o proprietário de homens."

Joaquim Nabuco

I. A QUESTÃO SOCIALISTA

1. Introdução Temos como vencida, ou pelo menos como muito

bem encaminhada, transitando em todo o Partido, a questão do socialismo. Não nos referimos à opção programática, tão-só, mas, caminhando um pouco além, à definição daquilo que o conjunto da militãncia tem definido como "O socialismo que queremos". Essa discussão foi enfrentada, de forma muito rica, aliás, já no Primeiro Congresso, e voltou a receber contribuições decisivas com as reflexões provocadas pela débâcle do, chamado "Socialismo real" do leste-

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europeu. O PSB foi dos poucos partidos de esquerda, e particularmente da esquerda socialista, que não pa­deceu qualquer sorte de abalo sísmico em face daque­las transformações e de suas trágicas conseqüências na geopolítica do poder internacional. Mas não será correto supor que o impacto da implosão daquele modelo de Estado, de partido e de organização social não ditaria ensinamentos para o observador que, recu­sando o dogmatismo impermeável à inteligência, recu­sava também a alienação de que se viu vítima grande parte da esquerda brasileira, pensando que sobrevivia e se "modernizava" na medida em que absorvia, como seus, categorias, modelos e valores do liberalismo e do conservadorismo, descaracterizando-se, por medo ou fragilidade ideológica, senão por um oportunismo próprio de quem não acredita no processo histórico.

2. l)emocracia Dentre as contribuições que teriam sido reco­

lhidas pelo Partido, supomos poder indicar o reforço da idéia democrática: se as formas de conquista do poder são ditadas pelas condições históricas objetivas - e, assim, é, de certa forma, um idealismo, a prede­finição por um tal ou qual caminho - ao homem ser-coletivo, agente do processo histórico, sempre se oferecem condições de escolha, de sua escolha dentro do processo. Estamos querendo afirmar não apenas a possibilidade mas, a necessidade, da construção do socialismo que chamaremos de democrático, traba­lhando com um conceito de democracia que, sem apartar-se das bases do pensamento social, também nãQ renegue certas conquistas que, se remontam à Revolução francesa, estão hoje incorporadas ao patri-

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mônio do pensamento social, também não renegue cer­tas conquistas que, se remontam à Revolução francesa, estão hoje incorporadas ao patrimônio da humanidade. E, quando nos referimos à Revolução francesa, não estamos nos reportando aos direitos burgueses, cons­trutores de uma "igualdade" especialíssima, constituí­da de "cidadãos passivos", titulares apenas dos direitos civis, e "cidadãos ativos", aqueles únicos que possuem direitos civis e políticos, entre os quais o direito exclu­sivo de eleição para a Assembléia, da qual só eram eleitores os que podiam pagar uma contribuição direta igual a três jornadas de trabalho, privilégio de apenas 16% da população francesa de então. Queremos nos referir muito mais àquelas aspirações que remontam à Montanha, sotopostas pela Restauração, revigoradas modernamente, crescentemente alargadas pela luta so­cial.

No plano ideológico, no plano da guerra ideoló­gica contemporânea, que parece momentaneamente perdida por marxistas e socialistas em geral, uma das derrotas mais sentidas por certo terá sido a da questão democrática, ironicamente ganha pela direita. A direita reacionária e conservadora, a direita antiprogressista, a direita guerreira, a direita dos regimes autoritários, incorporou ao seu patrimônio a defesa das liberdades civis, dos direitos dos cidadãos, do "mundo livre", em oposição ao mundo "socialista" do "muro", da ditadura e da "ditadura" do proletariado, identificação esta última que nós próprios elegemos ...

Quando o socialista, porém, afirma, ou retoma, a questão democrática, ainda quando podendo aceitar determinadas categorias da concepção originariamen-

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te burguesa de democracia, ele não pode fazê-lo, seja aceitando as limitações dessas categorias de forma a­crítica, seja renunciando às categorias do pensamento marxista, e ignorando as próprias contribuições socia-

. listas ao pensamento liberal, superando-o. Queremos assinalar que a experiência contemporânea deve ter ensinado a nós todos, socialistas revolucionários, que a realização da democracia social- como tal represen­tando a igualdade de oportunidades e a satisfação das necessidades sociais e econômicas básicas, muito pró­xima do "idealismo-utópico do "de cada um de acordo com suas possibilidades, a cada um de acordo com suas necessidades" - é básica, primária, essencial, mas não suficiente para a realização da democracia socialista, que também requer a abolição do centra­lismo democrático, a efetiva liberdade de criação e manifestação artística e científica, a liberdade de ex­pressão religiosa e política, a organização partidária livre. Mas afirma-se, igualmente, que a aparente con­cessão desses direitos, isto é, sua vigência formal nas chamadas democracias representativas ocidentais, não pode ser confundida com o projeto de liberdade polí· tica dos socialistas; ao contrário, cabe-nos mais do que nunca denunciar a falácia da efetividade desses direi­tos, direitos efetivos de uma minoria, historicamente direitos de uma só minoria, exercidos graças ao esma­gamento político, ~conômico e social da grande maio­ria da sociedade.

Os socialistas afirmam que, se esses direitos são, realmente, direitos, deles devem ser titulares todos os indivíduos, todos igualmente cidadãos. A demo­cracia burguesa, porém, conhece indivíduos mais cida-

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ans do que outro>, e, por isso, mais titulares de direitos do que outros. Se admite os direitos civis para muitos restringe os direitos políticos a poucos, muito poucos, valendo-se de expedientes os mais diversos, como o voto censitário, a limitação do sufrágio a renda ou propriedade ou instrução, separando os indivíduos até mesmo por sexo e raça. O liberalismo jamais corou, por exemplo, diante do escravismo, que praticou, ou do colonialismo que depredou nações e povos. As teses dessa burguesia, valendo as liberdades sempre apenas para ela mesma, foram sempre instrumentais quando diziam e dizem respeito ao resto das popula­ções, quando os segmentos sotopostos destas -parti­cularmente trabalhadores e camponeses - se organi­zam e na organização adquirem forças para fazer face aos seus direitos. Nessas oportunidades, o liberalismo esquece sua pregação e se transforma em autorita­rismo, em ditadura, em fascismo, em nazismo. O auto­ritarismo claro, objetivo, é o estado latente do capita­lismo, prestes a vir à tona, com toda a sua força, como arma de defesa do sistema de classe, ameaçado, em face das pressões sociais decorrentes dos momentos de crise (uma recessão prolongada, por exemplo) e de possível disfunção ou desmoronamento. Neste pon­to se nivelam Brasil, Bolívia, Chile, Alemanha, Itália, Suíça, Suécia ...

Há, portanto, uma diferenciação básica entre a concepção de direitos burgueses e socialistas; aqueles, poderão enlarguecer-se infinitamente, são sempre os só direitos de minorias, enquanto no quadro de valores do socialismo são direitos aquelas prerrogativas que

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efetivamente podem ser gozadas, e gozadas são pela universalidade dos cidadãos.

E há uma segunda diferenciação básica: para nós a "democracia" política, ainda que necessária, não é terminal, não se justificando por si mesma; ela se afir­ma, em nossos países, como instrumento necessário e, talvez, insubstituível, como um caminho para atingir outras questões mais amplas. E destacamos entre essas a emancipação social de nossos povos.

É preciso lembrar que a direita em todo o mundo, e no Brasil, tem estado comprometida tanto com a democracia, quanto com o autoritarismo, variando de acordo com o que pragmaticamente tem considerado como o seu caminho mais conveniente. Como também é preciso lembrar que inumeráveis vezes, certas formas do exercício político democrático têm-se transfo rma­do em formas eficientes de consolidação das injustiças e das desigualdades sociais mais profundas, formas e instrumentos comprovadamente eficientes de con­tenção de demandas e necessidades angustiantemente inadiáveis da grande maioria de nossas populações.

Aprofundando nosso distanciamento do libera­lismo, a tarefa da esquerda socialista no Brasil de hoje parece ser, de par com a ratificação e radicalização do exercício das práticas democráticas clássicas, a cria­ção, ocupação e palmilhamento de um caminho novo em busca da formulação e realização de uma política institucional, social e econômica que possa assegurar a participação perseguidamente universal de todo o povo em todas as esferas da vida social, a começar da vida mesma, a vida física. O proJeto "democrático"

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que não almeje a tanto será tão simplesmente um projeto liberal ou, se quiserem, neoliberal, conser­vador e não-progressista, um sistema de garantias le­gais para a elite controladora do jogo político.

li. REPENSANDO A INSTITIJCIONAUDADE

A denúncia a isso que chamamos de ditadura in­tt::rna da burguesia - titular de todos os direitos -donde o nosso desapreço por essa "democracia", não abona o descuido da legalidade, que é uma outra ques­tão. No regime burguês, nada obstante todas as suas limitações, limitações que não cessam mesmo quando o liberalismo é fatualmente obrigado a incorporar cate­gorias sociais, cabe-nos lutar pela sustentação da legali­dade, mesmo da legalidade do estado de classes, como instrumento, mesmo ela, de defesa dos interesses dos trabalhadores.

Nós, os sodalistas, também não temos apreços por essa legalidade, nem podemos nos iludir com as limita­ções da institucionalidade liberal - estado, governo, parlamento, parlamentarismo, presidencialismo -, que hoje, lamentavelmente, tanto encanta uma certa esquerda perdida entre a alienação e a fantasia da "modernidade", tese sem demonstração, idéia sem jul­gamento, conceito (pré-conceito) que o neoliberalis­mo lhe impôs.

Mas nas limitações desse formalismo legal, mes­mo nele, fica mais difícil a repressão, e, daí decorrente,

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tornam-se mais factíveis a organização operária, a vei­culação de suas reivindicações, a denúncia das violên­cias de que são vítimas as massas trabalhadoras, e, por fim, o exercício do direito de greve e da organi­zação partidária.

Usando-as conscientemente, o socialista não pode deixar-se aprisionar seja por essa legalidade, seja por essa institucionalidade. Cabe-nos pensar em outras e novas instãncias do exercício político para além do circulo de giz caucasiano das formas burguesas que reproduzimos. Aparentemente, em face de mais uma derrota ideológica, deixamos de considerar uma das evidências incontestáveis do chamado mundo moder­no que é a falência do estado, o E! Cid da teoria política burguesa, sustentado artificialmente porque sua mor­te só pode ser decretada pela voz do próprio sucessor. Destacar, portanto, a crise da institucionalidade, e nela, de sua própria dimensão, e eleger como questão cru­cial da vida política a "governabilidade", e ainda asso­ciar nossas dificuldades a óbices decorrentes do consti­tucionalismo de 1988 é, no geral, ignorância política ou má-fé. No caso da esquerda, estultície que chega às raias da autofagia.

Não podem os socialistas fazer tabula rasa da teoria do regime representativo. Embora seja ele, nos quadros de nossas sociedades, a única forma de assegu­rar o mínimo de participação popular no processo constitutivo do poder, ele é mesmo apenas isso, e freqüentemente suprimível quando as massas vão além dos limites toleráveis pela institucionalidade burguesa (lembremos as histórias recentes do Brasil e do Chile de]ango e Allende). Exercendo-o e explorando-o nos

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limites da política, é preciso denunciá-lo como mani­pulador da soberania popular, expressão necessária dos interesses econômicos que controlam a expressão eleitoral.

Por que não pensar em novas formas de represen­tação e exercício da democracia, como se à huma­nidade não fosse possível produzir o que quer que fosse de diverso, e, aí, sim, a história tivesse efetiva­mente findado para a filosofia e a teoria política?

Exemplo dessa paralisia intelectual, ou desse colo­nialismo inteleCtual, é aquela má perspectiva que leva setores supostamente progressistas a entender como verdade científica a afirmação da superioridade do regime das chamadas "democracias representativas", pelo simples fato de que seus "representantes" são eleitos em eleições ditas gerais e atuam em parla­mentos supostamente governantes. A nenhum dos no­vos corifeus da modernidade sobra coragem para a defesa de experiências menos canônicas, como a via cubana, por exemplo, que todo progressista brasileiro não-marxista afirmará como não-democrática em face, por exemplo, do modelo paradigmático da "demo­cracia" norte-americana. Porque para essa lógica passa a ser irrelevante o fato de na "ditadura" cubana 95% da população participar do processo eleitoral, sem que o voto seja obrigatório, contra os 50% que ainda se interessam pelas eleições definidas antes do voto na democracia norte-americana.

1. Ética e necessidade A concepção axiomática do determinismo histó­

rico, mais positivista do que científica, um cientifici~uno pedante que sugere a existência de pré-respostas a

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demandas ainda não oferecidas, ademais de haver arre­fecido a pulsão revolucionária, abriu ensejo, nos parti­dos ortodoxos do marxismcrleninismo, no poder ou fora dele, à emergência de lideranças burocratizadas, que "já podiam ser burocratizadas, posto que, se não existia a ordem natural das coisas, existiria uma "or­dem revolucionária das coisas", inelutável. O trãnsito da revolução para o reformismo seria um passo em muitos casos apressado pelo corporativismo imedia­tista, pondo em xeque a destinação substantivamente revolucionária do proletariado (mas não do sindica­lismo), ou dos partidos que se apresentavam como sua vanguarda ou expressão única. Ontem e hoje, lá e aqui.

Esse mesmo positivismo ensejou o economicis­mo, na análise e na prática, a falsa interpretação da história determinando uma intervenção desapartada da realidade, que teimava em não corresponder aos nossos pré-modelos, uma discronia entre a vontade e o fato, a análise e a realidade, o projeto e as condições objetivas. A revolução, por fim, não se dava onde deve­ria dar-se, e, onde se deu, se deu mal, respeitadas as exceções sobreviventes ... , reatualizando questões que pareciam superadas pela objetividade histórica. São as discussões em torno do caminho da revolução em um só país, contrapondo-se ao "Proletários de todo o mundo, uni-vos", a reacendida discussão entre a petrificação do socialismo e a denúncia da permissi­vidade de práticas capitalistas no socialismo que leva, até, a uma recuperada crítica ideológica da NEP leni­nista e sua perversão dialética, antítese que se tornara

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de um socialismo, do que a débâc/e de agosto seria a síntese de previsão quase "científica".

O cientificismo-positivista destruía a utopia, o re­formismo travava a revolução. O determinismo supri­mia a necessidade, tornando supérflua a crítica ética ao capitalismo, base do humanismo (marxista) socia­lista.

O que estamos propondo é exatamente esta (re) inversão de pólos; e quanto mais ideológica ou ilumi­nista for a crítica ao "socialismo" real, mais profunda deve ser a nossa busca do humanismo socialista, com a denúncia ética do capitalismo. Uma coisa, aliás, é a outra.

A recuperação da ética como valor político, a cujo pleito os socialistas e a esquerda renunciaram, por receio de reforçar o moralismo idealista (e inconse­qüente) da classe média, abre caminho à recuperação do humanismo socialista, sotoposto, não só entre os socialistas, pelas concepções científico-positivistas, mas, sobretudo, junto à opinião pública, pelo concerto ideológico do capitalismo autoproclamado triunfante.

Nenhum progresso, no capitalismo, será possível, nenhuma riqueza será produzível, se em sua base não estiver a acumulação da mais-valia e com ela a explo­ração do homem pelo homem, de poucos homens, sobre muitos homens, de poucos países "eleitos", so­bre a humanidade inteira. Esta obviedade determina a oposição intransponível do humanismo socialista, radical, porque não se trata de modelo corrigível; daí, também, a incompatibilidade estratégica do socialismo com quaisquer formas de "humanização" do capita­lismo, pois nenhuma reforma pode alterar sua essên-

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da, nada obstante possam, e devam, no plano tático, os socialistas lutar pelas transformações possíveis no estado de classes ainda não revolucionado.

O humanismo socialista é, assim, integralmente revolucionário, e ao mesmo tempo a única possibi­lidade da realização plena do homem como projeto, que, se se realiza em condições sociais historicamente determinadas, determina seu próprio projeto também a partir de uma subjetividade, posto que, se não existe uma "natureza" humana abstrata, fixa e imutável, como o demonstrou o marxismo, existe uma natureza huma­na que é o conjunto das relações sociais, vale dizer, um fato histórico comprovável; mas o homem não é um autômato da história, pelo contrário, ele é seu principal agente, podendo, portanto, alterar as condi­ções objetivas, intervir na sucessão dos fatos, alterar sua ordem, em síntese, agir revolucionariamente, isto é, contrariando a realidade objetiva, alterando as "rela­ções sociais historicamente determinadas". A inexis­tência dessa natureza humana dada, universal e imutá­vel, deriva do fato de, no homem, sua existência -isto é, a sua maneira de ser no mundo, de relacionar-se com as coisas e as pessoas, trabalhar e produzir etc. - preceder sua essência e determinar sua liberdade, porque, assim, não há determinismo; o homem é livre em determinadas condições favoráveis.

Queremos dizer que a consciência de classe não é o só determinante. Se a· classe operária, como clas~e. isto é, como coletivo (e isto é uma abstração), é revolu­cionária, o operário, o indivíduo posto em face de seu projeto, não é, necessariamente, isto é, indeclina­velmente, revolucionário, tanto quanto o pequeno-

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burguês não é, necessariamente, "por definição", anti­revolucionário pelo simples fato de ser pequeno-bur­guês (até porque entre pequenos-burgueses contam­se tantos e tantos revolucionários .. . ).

Todos somos chamados a escolher, o pequeno burguês e o operário que é diariamente chamado a escolher entre a greve e o emprego, entre os interesses de sua corporação e os da revolução.

Nessas circunstâncias, o indivíduo não escolhe necessariamente em função dos seus interesses ime­diatos, pessoais, familiares ou de classe.

O que nos leva a ser, quase todos nós, ou a maioria de nós, classes-médias, pequenos-burgueses e mesmo burgueses, frutos e beneficiários da classe dominante, o que nos leva a ser adversários dos nossos próprios interesses de classe, aliados a uma classe historica­mente•antagônica (proletariado) num projeto revolu­cionário de destruição de nossa própria classe (ou classe originária), e lutar pela construção de uma nova sociedade, na qual nada temos, como classe, para ga­nhar, e muito temos, como indivíduos, para perder?

O socialista não discute as possibilidades de o capitalismo promover o desenvolvimento econômico; denuncia a sua base irrecuperavelmente imoral: a ex­ploração do homem pelo homem. O socialista não discute a possibilidade de o capitalismo promover a riqueza em um determinado país; afirma que a essa riqueza correspondem dezenas de guettos, Harlems, Bronxs, Brooklins, os Los Angeles de todos os Estados Unidos da vida, os 30% dos pobres e muito pobres ingleses para os quais os muito ricos norte-americanos e ingleses não têm qualquer política social. O socialista

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não discute a evidência da industrialização européia; denuncia a imoralidade de suas bases, a depredação das "grandes navegações" e do mercantilismo, a imora­lidade do escravismo, o genocídio da revolução indus­trial, a imoralidade do colonialismo e do neocolo­nialismo e do imperialismo. O socialista denuncia a imoralidade de uma riqueza que nasceu da pobreza dos explorados e da vida que depende da morte: os subdesenvolvidos de hoje, colônias ontem, financia­ram o desenvolvimento de suas metrópoles. É imoral que três quartas panes da população do mundo este­jam às portas da fome, porque uma só nação consome 40% de toda a produção mundial de alimentos e três quartos da energia total do mundo.

O marxismo não é apenas uma teoria econômica, uma teoria política e um projeto revolucionário. É também uma teoria de valores. Este talvez seja o seu lado oculto que nos incumbe iluminar.

Diante dos direitos civis e políticos do liberaljsmo burguês, o socialista denuncia a divisão de classes que distribui desigualmente esses direitos; o socialista re­clama a necessidade de sua universalização e afirma que não basta proclamar esses direitos ou mesmo dizer que a eles todos podem aspirar; nós afirmamos que esses direitos só são direitos reais quando podem ser gozados e são efetivamente usufruídos por todos. O gozo universal dos direitos é a condição que os torna reais, e só na sua universalização é que deixam de ser burgueses. E a história mostra que toda vez em que esses direitos são expostos à fruição, eles revelam os antagonismos de classe que estão na essência do projeto burguês. E o socialista afirma que muitos dos

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chamados direitos burgueses não são direitos, mas privilégios, privilégios de classe, como o "direito" à propriedade privada dos meios de produção, que a moral socialista quer ver transformada em proprie­dade social.

O processo de recuperação da ética e o revigora­roemo da ética socialista não se encerram, não podem estar encerrados, como instrumentos (valiosos) de condenação do capitalismo. (E não se discute aqui a sua capacidade, do capitalismo, de tornar os pobres mais pobres e os ricos ainda mais ricos, graças ao empobrecimento dos pobres, tanto quanto não se dis­ane, no absoluto, o fracasso dos regimes do "socia­lismo" real do leste europeu em construir,paripassu., urna sociedade tanto justa quanto livre. Ele deve esten­der-se a toda a política, à res publica, ao trato das questões do estado. A ética deve ser percebida, pelos socialistas, em suas raízes políticas, e nesse sentido ela é escudo da cidadania contra o arbítrio e a arbitra­riedade do poder, e dentro dele, movendo-o, da classe dirigente. Queremos dizer que a recuperação da ética pela política (o que não pode ser um projeto burguês) é também uma tarefa revolucionária, enquanto implica confronto de interesses, acirrando o conflito de classes, pois necessariamente oporá à ética do domihante, a ética irreconciliável do dominado, a ética do opressor comraditada pela ética do oprimido.

2. Recusando o catastrofismo

A prática socialista se vê assaltada, mercê da vitória ideológica do neoliberalismo e do anticomunismo,

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por duas ordens de aifrmações, ambas catastrofistas, que levam a opinião pública à desinformação e, mesmo entre militantes, ao desãnimo. Diz-se (a) que "o comu­nismo" (e, portanto, o socialismo, ou, vice-versa) aca­bou e (b) que as esquerdas perderam a vez no Brasil, e o que se diz no Brasil se diz em todo o mundo, posto que aqui apenas são repetidas as sentenças que vêm do centro do mundo. Neste ponto, a direita brasi­leira não marca pontos.

Para enfrentar a primeira falácia, admitamos, por exercício de lógica, lógica formal, a raiz do raciocínio catastrofista da direita, e com ela admitamos o fracasso das experiências contemporâneas ditas do socialismo. E se tal é admissível, o socialismo (ou o comunismo) morreu. Ora, para aceitarmos tal afirmação como ver­dadeira, estaremos deixando de considerar a necessi­dade, primeiro, de defmir "qual socialismo", e que socialismo realmente fracassou. Ou seja, é preciso pre­viamente renunciar ao direito de questionar concep­tualmente e fatualmente as experiências contempo­râneas, e a todas indistintamente aplicar o rótulo de "socialistas", para a seguir apor o epíteto de "fracas­sadas". Admitamos. Mas, e continuamos na lógica for­mal, se todas as experiências são igualmente socialistas, são socialistas não só as experiências do leste, findas ou interrompidas, mas, igualmente, as demais, sobrevi­ventes, e se essas experiências, contemporâneas, são experiências de socialismo, e o são, pelo menos o são tanto quanto as do leste que o liberalismo não admite que não o sejam, não são elas experiências fracassadas, ou, em outras palavras, nesses países não se pode dizer que o socialismo fracassou ou findou.

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E se ele ali subsiste, ele não acabou no mundo contem­porâneo

Deixemos de lado, porém, essa lógica formal. Admitamos, agora, que não exista socialismo nes­

ses países, neles não exista ou não exista mais. Admita­mos mesmo que jamais tenha existido. Nesse caso, não existiria, disponível, uma só experiência de socia­lismo. O socialismo, então, teria acabado?

Não. Para tal era preciso que a história fosse uma mera sucessão de fotogramas, congelados.

O momento de hoje é diverso do de ontem, e este, do de amanhã. Este truísmo é argüido para lem­brar que só haveria uma hipótese de sustentação da sentença "morreu o socialismo"; :~ m01lc prévia da história. Diz a direita canibal yue a história teria mor­rido como conseqüência do fim do "socialismo" (ou seja, da oposição capitalismo/socialismo, com a vitória daquele), mas, na verdade, para que o socialismo tives­se desaparecido era preciso, antes, que tivesse morrido a história, ou seja, que este momento que se diz con­temporâneo fosse momento único, sem ontem nem amanhã: o fotograma que fica congelado eternamente, a cena que saiu da tela para ficar aprisionada na foto­grafia

Aos flébeis, aos tíbios e aos tolos, e aos muito-sa­bidos, digamos que a existência de experiência con­creta de governo socialista não é condição sine qua da luta socialista. Esta precede aquela, dela indepen­dendo.

Mas o socialismo é a experiência de governo e sociedade intentada, contemporaneamente, em uma série diversificada de países, na Europa, na América

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Lalina, na Ásia, na África. Mas não é só isso. Antes e d~is, o socialismo é uma filosofia, é uma teoria polílica, é uma teoria econômica, é, dissemos, uma axiologia, um projeto diverso de governo e sociedade, que, de forma sistemática, a partir dos meados do século passado, é o pensamento social revolucionário e libertário da h),lmanidade, que dele se tem valido para enfrentar e contraditar os interesses .do libera­lismo, do libeJiismo, do livre-contratualismo e do individualismo. Nesse sentido, ao contrário, é a grande idéia, ou doutrina, ou filosofia vitoriosa em nosso sécu­lo, vencendo em todo o mundo e vencendo nos países capitalistas desenvolvidos, quando a noção de Estado social se sobrepõe ao Estado liberal do século XIX, é a idéia vitoriosa quando se afirmam os valores do direito social, da supremacia do coletivo sobre o priva­do, do público sobre o individual; é o pensamento vitorioso quando o capitalismo faz concessões ao pro­letariado. E quando a socialdemocracia avança social­mente, ela o faz renegando o liberalismo e assimilando categorias do socialismo que se expressam nas con­temporâneas legislações trabalhista e previdenciária, por exemplo, conquistadas, uma e outra, à custa de muita luta, luta de anos, de dezenas de anos, de séculos, lideradas ideológica e teoricamente por sodalistas, co­mandadas politicamente por socialistas, que por isso conheceram perseguições de toda ordem, o cárcere, a tortura e o assa<>Sinato.

O socialismo é uma parte da história da humani­dade, responsável por alguns de seus mais notáveis progressos. As idéias socialistas, em geral, e a sistema­tização do Manifesto de 1848, são a mais contundente

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análise do preço humano cobrado em vidas e miséria pela Revolução industrial e a mais contundente denún­cia do liberalismo e do livre-cambismo.

O pensamento socialista promove a mudança, a partir daí, em proveito das massas e do progresso, do direito e da teoria do estado burgueses. Com a Revolução de outubro mudam os próprios estados capitalistas, com medo do contágio revolucionário. A socialdemocracia, um passo à frente em face do libera­lismo tout court, é uma conseqüência sua, como os avanços que em todo o mundo se operam nas relações sociais.

A União Soviética impediu por muitos anos o im­pério de uma Pa:x: guerreira sobre a humanidade, e o esforço bélico a que se obri~ou, responsável em muito pela sua débââe, foi responsável também, nos últimos 70 anos, pelo mínimo de relações respeitosas entre nações poderosas e nações pequenas e pobres. Sem a sua existência teria sido impossível a experiencia da hoje insidiosamente difamada teoria da autodeter­minação dos povos, como os inumeráveis movimentos de libertação nacional aos quais deu apoio militar, econômico e político. Sem o bloco socialista, maior teria sido a sobrevida do colonialismo, como maior será a vida do neocolonialismo. A humanidade deve muito de seu progresso, neste século, a esses países, mas não só a eles. Também aos milhares e milhares de patriotas que morreram nas revoluções nacionais de independência e na luta contra o colonialismo. Não há um só movimento libenário, nos dois últimos séculos, que não tenha tido à sua frente os socihlistaS,

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que conheceram, antes da vitória, o exílio, o cárcere, a tortura e a morte.

O socialismo, por fim, sobrevive, está vivo, vivíssi­mo, porque ele é o outro lado do capitalismo, ele é o seu antídoto inevitável como o anticorpo que prote­ge o organismo sadio, ele é sua negociação; é da essên­cia do capitalismo gerá-lo, pois não há possibilidade, sequer teórica, de relações de produção capitalistas sem contradição, sem a oposição capital-trabalho, pois não há capitalismo, selvagem ou "civilizado", sem a apropriação capitalista da mais-valia ...

A esse catastrofismo anistórico, acientífico, toni­truado pelos meios de comunicação de massa, a prática socialista deve responder com a denúncia do capita­lismo em suas bases éticas e econômicas. Não há um só exemplo de sucesso capitalista em um só país do Terceiro (terceiro?) Mundo, como não há um só exem­plo de um só país capitalista rico contemporãneo que não tenha cimentado seu desenvolvimento, no passa­do, na exploração mercantil predatória da América Latina, Ásia e África e do colonialismo em todo o mun­do; contemporaneamente, depois dessa acumulação de séculos de riqueza expropriada, exercem as práticas do imperialismo, o controle dos preços dos produtos dos países subdesenvolvidos, das tarifru;, das taxas e sobretaxas impostas aos exportadores pobres, o con­trole do meio circulante internacional, o controle das patentes e da tecnologia, o consumo predatório das reservas naturais dos países periféricos, a depredação do meio ambiente, o consumo exaustivo das fontes finitas e não renováveis. E ainda mais a guerra, agora a guerra "legal", legalizada pelos organismos interna-

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donais sob controle, chanceladores das decisões do centro do mundo, terapia contra os mais recalcitrantes.

Tirante as razões éticas e históricas que impedem a repetição, contemporânea, do modelo de desenvol­vimento observado pelos países capitalistas hoje ricos, ainda assim podemos perguntar: onde qualquer um desses países ou regimes pode declarar-se vitorioso, onde realizou a libertação social e econõmica do ho­mem, onde a democracia é um atributo de toda socie­dade, onde foram eliminadas a fome e a pobreza?

Do outro catastrofismo, caboclo, trataremos adiante.

lll. OS SOCIAUSTAS E O "PROJETO NACIONAL"

1 -A pauta dos anos 50, ou as raízes do "nacio­nalismo"

Várias podem ser as abordagens daquilo que dora­vante pretendemos significar com a "pauta" do pensa­mento de esquerda predominante nos anos 50 brasi­leiros. Dentre todas, uma questão se sobressairá, mar­cando profundamente este período: o nacionalismo. Esse período, de inequívoca afirmação política e ideo­lógica do nacionalismo, pela esquerda, tem início, se­gundo entendemos, no segundo governo Vargas -e malgré /ui (o Presidente) même - e encontrará seu termo (termo aparente, tentaremos demonstrar adiante) no período dos governos militares, os quais, deste ponto de vista, não constituem uma unidade,

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como sugerem as análises à vol d 'oiseau, e a vontade de seus ideólogos. Nosso objeto, portanto, é uma saga que já excitara emoções na campanha pela entrada do país na guerra contra' o Eixo, reavivada com a cam­panha do "Petróleo é nosso" e, finalmente, com a criação e consolidação da Petrobrás. Atrás desse nacio­nalismo- emoção e razão- havia o que talvez pobre­mente pudéssemos chamar de idéia-motriz: o indus­trialismo, e o industrialismo como o abre-te-sésamo do desenvolvimento nacional, com todas as suas conse­qüências supostamente imanentes, a saber, a riqueza, a felicidade, o bem-estar e, talvez até, uma sociedade justa. Ou, se não tanto, menso injusta. Trataremos ini­cialmente desse industrialismo, como projeto nacio­nalista.

1.1 - A saga industrialista Diremos que o pensamento dominante da esquer­

da brasileira, da esquerda de então- que, numa pers­pectiva de hoje, diríamos que era mais nacionalista do que socialista, e quando socialista sempre naciona­lista, salvo alguns mal-estares de puritanismo teórico -era esse industrialismo e com ele queremos expres­sar a convição dominante de que o desenvolvimento industrial (para o qual era fundamental o controle das reservas energéticas), por si só, e, associadamente, por induzir transformações na estrutura agrária (leia­se, forçar a reforma agrária), eliminaria o que então supúnhamos fossem os resquícios de atraso social da sociedade brasileira, dual, uma sociedade que certos serores do pensamento brasileiro e da vida política orgânica equivocadamente chegavam mesmo a classi­ficar como feudal. Ou parcialmente feudal , para os

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menos afoitos. Refirimo-nos à esquerda nacionalista, ou ao nacionalismo da esquerda. Por sem dúvida que o nacionalismo não era uma militância exclusiva da esquerda.

O projeto industrialista proporcionava a mediação entre agentes os mais importantes da economia e da política, associando aos nacionalistas, supunha-se, e os empresários candidatos a industriais, finalmente ombro a ombro com seus futuros adversários histó­ricos, por enquanto meros ex-camponeses, migrantes, lumpens, artesãos, biscateiros candidatos a operários. Associados na empresa também estariam os campo­neses -vocábulo de curso político ainda pouco cor­reme-, pois os empresários, necessitados de matéria­prima, mão-de-obra e mercado consumidor, inevitavel­mente seriam - haveriam de ser - os primeiros prógonos da reforma agrária. Adversários evidente­mente teria o projeto, inevitáveis, os latifundiários e o capital estrangeiro, aqueles interessados em manter a estrutura improdutiva da sempre arcaica propriedade fundiária brasileira, desinteressado este num desenvol­vimento industrial que poderia revogar a nossa condi­ção de mercado consumidor cativo de seus produtos. Aqui, como em toda parte, esse industrialismo exigia a participação intensiva do Estado na economia. altos investimentos sociais na preparação de uma custosa infra-estrutura, e proteção alfandegária para os produtos nado­nais , recuperando o defenestrado pleito do Rui Barbosa Ministro da Fazenda do Governo provi­sório do Marechal Deodoro, a lei do similar nacional.

As conseqüências desse modelo na concepção marxista orgânica - digamos assim - da Revolução

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· brasileira, e de suas alianças necessárias, estavam a caminho. Já se ouvia o seu galope.

Esse industrialismo era ainda portador de um ape­lo político de alto conteúdo nacionalista, capaz de mo­bilizar as massas e outros conhecidos segmentos da vida política brasileira, esses muito pouco afeitos a cenas extravasões das ruas, muito mais habituados a intervir, e decidir, nos pequenos comités dos palácios do poder: autonomia :-.acionai. Entendia-se que a in­dustrialização por si só definiria o destino da naciona­lidade. Isso que o ISEB chamaria, mais tarde, de "Pro­jeto de destino", é o pensamento dominante de toda a esquerda brasileira; era dominante mesmo junto ao pensamento "progressista", simplesmente "avançado" (termo da época), sem vinculação com o sodalismo. Nada obstante as resistências do Partido Comunista, que começa a sofrer dissensões e só conceberá a for­mulação de uma "esquerda nacionalista" no final da década, já aí, e irremediavelmente, muito a reboque do movimento sodal do qual se pretendia condutor. Senão guia iluminado.

Na busca de uma contextualização histórica de movimento tão importante para a construção do País de hoje, que ninguém, evidentemente, desejou tal qual, talvez não seja exageradamente ousado afirmar que ele era a versão brasileira e econômica de uma reali­dade que destacava a política internacional da época, marcada pela acentuação conflituosa da descoloniza­ção e a conseqüente emergência de novos estados, civilizações que se abriam para o mundo, lideranças que ascendiam ao pódio à frente de longas, sofridas e sangrentas guerras de libertação nacional, constru-

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toras de formas efetivas de um nacionalismo objetivado no poder e identificado com a história de seu povo. Só no final dos anos 50 estancará a sangria da guerra e afirmar-se-á a libertação da Argélia com a liderança de Ben Bella: é de então o "novo" .Egito de Naser, liberto dos ingleses e dos Faruk, a Indonésia de Sukarno, o Gana de krumah. E a Iugoslávia do dissidente Tito, reafirmação de nacionalismo, de independência e de não-alinhamento, oroieto que se desenvolve de par com a autodeterminação dos povos, à qual não ficarão alheios o pensamentq político e a diplomacia brasileira. No réveillon de 1958/59 a América Latina descobre a revolução social, e o mundo, entre atônito e incrédulo, começa a repetir os nomes de dois jovens que irão fazer reforma agrária, nacionalizar as proprie­dades norte-americanas e finalmente implantar o socia­lismo em uma bela e perdida (e pobre) ilha do arqui­pélago caribenho.

Jânio e ]ango serão uma inclinação. Mas ainda não chegamos lá.

A história, no Brasil, como de resto em parte ne­nhuma do mundo, se repete; só que aqui ela é recor­rente.

As correntes nacionalistas não podiam perceber, naqueles anos, fenômeno cuja contemplação só o distanciamento histórico nos proporciona: a impor­tação, alienada, de modelos e pensares. A mágica indus­trialista era, naqueles anos, a "modernidade" e a "pós­modernidade" de nossos dias. Estamos dizendo que o industrialismo se apresentava entre nós com essas características - isto é, como a fórmula do progresso, da modemidde (modernização do país era a expressão

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da época), isto é, up-to-date, simplesmente porque ele estava se processando na Europa... Era tanto o Plano Marshall quanto a reconstrução européia pela via endó­gena. Ainda não conhecíamos o "fenômeno" japonês, para o qual só despertaríamos nos anos 70, mas já provo­cavam impaao e exerciam fascínio sobre nós a nova Alemanha "saída das cinzas", a nova França, com seu fone movimento socialista e comunista convivendo com o capitalismo industrial, as socialdemocracias do Norte. Eram, pois, descontadas a alienação e a importação meca­nicista, razões suficientes para nos convencer de que a industrialização era a saída de um país que precisava saltar etapas, que, "vencendo" a guerra, se via superado pelos países que ajudara a derrotar.

No final dos anos 50 já estavam amadurecidas as reflexões que iriam construir o que chamaremos de ideologia do industrialismo, ou seja, a concepção de que a independência e autonomia do País, e a emancipação de seu povo, via industrialização, seriam conseqüências de uma ampla aliança de classes e seg­mentos de classes, reunindo a burguesia industrial, as classes médias progressistas, o proletariado urbano, e mesmo as massas rurais, cujo revolucionarismo terá adeptos à esquerda do Partido Comunista, a quem se deve essa formulação. Seu dirigente máximo por quase toda uma vida, Luís Carlos Prestes, em momentos de "política de alianças" mais exaltada, chegará mesmo a admitir, até, a participação de "setores do feudalismo (sic)" nessa espécie de "freme única" de libertação nacional. Assim, nosso País, que se dizia então "semi co-

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lonial", se aprestava para também ele fazer a sua "revo­lução nacional", indo juntar-se àquela ilustre galeria de nações, povos e países asiáticos e africanos emanci­pados, isto é , descolonizados.

Imanente a esta visão- e assim retomamos ques­tão antes só aflorada - era a formulação da contra­dição intracapital, opondo interesses capitalistas distin­tos, entre empresariado nacional e empresariado inter­nacional. Aqui estão as bases do projeto nacional de uma revolução nacional antiagrária e antiimperialista, sobrevivendo até 1964. Seu redator será ainda o Partido Comunista. Em abono de seus ideólogos, porém, re­lembre-se que os vínculos mais ostensivos do imperia­lismo, no Brasil, eram com o que chamávamos de "burguesia agroexportadora", com vínculos estreitos com a "plutocracia rural paulista".

Nós não sabíamos, ou não tínhamos olhos para ver, que as bases desse industrialismo, se tinham víncu­los com o getulismo, tinham também muitas de suas raízes no governo consabidamente conservador do General Dutra, em algumas iniciativas suas pioneiras na administràção estatal, como o Plano Salte, e no encontro de técnicos de origem e formação tão diver­sas quanto os economistas da Comissão Mista Brasil - Estados Unidos e da Cepa! (escola de opção latino-a­mericana, nacionalista e industrialista), que estarão juntos também na assessoria ao Governo Vargas e na montagem do BNDE, cujo papel decisivo no processo de desenvolvimento econômico e particularmente in­dustrial brasileiro não precisa ser posto de manifesto, por abusivamente óbvio. Por esse então se cruzam

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em projetos comuns técnicos de formação - e proje­tos - os mais distintos, como Roberto Campos e Rô­mulo de Almeida, Lucas Lopes e Celso Furtado, entre os jovens que sobreviveriam.

2 -A primeira surpresa: o industrialismo não-na­cionalista

Se a primeira metade dos anos 50 pode ser carac­terizada como a da fixação das bases teóricas e técnicas do industrialismo, a segunda marcará, como talvez ne­nhuma outra, a fase desenvolvimentista, indissoluvel­mente dependente do projeto industrialista que, por seu turno, finalmente será levado a cabo. Seu coman­dante, aparentemente contrariando a "ordem natural" da política, será o representante do poder rural brasi­leiro, mineiro e pessedista ... Mas essa ainda não será a primeira das muitas surpresas que estão reservadas aos nacionalistas brasileiros. Como tal elegemos a asso­ciação, realizada por Juscelino Kubitschek, entre o industrialismo, que empolga em seu governo, e as concessões que, precisamente em nome dele, fará ao capital estrangeiro. Realizava-se assim, em país perifé­rico, um projeto industrialista sem contradições com o imperialismo! O episódio do atrito com o FMI é irrelevante, no quadro, e apenas denotativo da força política então da esquerda nacionalista, comprometida com seu governo conservàdor- por sinal fortemente atacado pela direita com vínculos castrenses - e por isso mesmo carente de um mínimo de aceno governa­mental para a manutenção da boa moral de suas bases.

Sucedendo a Vargas e sendo o seu herdeiro ,Jusce­lino realiza a conciliação quando a expectativa ideoló-

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gica era a sustentação do conflito; a Petrobrás, que Vargas por sinal pensara de forma diversa, mas que terminaria simbolizando o seu governo, até na capaci­dade de provocar antagonismos, é substituída, no qüin­qüênio mineiro, pelo projeto de construção de uma cidade, o que, ao invés de promover atritos, atende a muitos interesses agrários, resolve problemas empre­sariais de ordem várias e absorve grande parte da mão­de-obra desocupada atraída para as grandes cidades pela promessa da riqueza industrial. Brasília, assim, é simbólica de uma evidência a qual as esquerdas demoram perceber. O industrialismo brasileiro não era um só modelo, quase determinista, de desenvol­vimento, mas vários modelos; dois agora eram visíveis: o industrialismo que se antagonizava e o industria­lismo que prosperava braços dados com o imperia­lismo.

3 - A "revolução" dos anos 60 interrompida pelo golpe militar

O início dos anos 60, em um Brasil já em pleno processo industrialista, anuncia uma inflexão reacio­nária, de molde recessista e monetarista, de resto, nes­tes termos muito bem delineada pela famosa Instrução 204 da SUMOC, premonitória do que seriam os gover­nos militares e, muitos anos depois e impossíveis de serem pensados, o governo Collor. O PresidenteJãnio Quadros, todavia, não se deu tempo para executá-la. De seu governo ficou, porém, a marca mercadológica que contraditoriamente o aproximava daqueles ideais nacionalistas terceiro-mundistas empanados pela con­ciliação jusceliniana. A afirmação de autonomia e inde-

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pendência, o nacionalismo, como viabilizador de um neutralismo em face do jogo das grandes potências, a primeira formulação de uma diplomacia fundada na autodeterminação dos povos, a aproximação com os não-alinhados. O governo João Goulart, conservan­do essa política internacional, e aprofundando-a, reto­ma, principalmente no seu período presidendalista, a escola varguista, mas é impedido de concluir o gover­no que jamais esperara exercer.

No plano político-ideológico, por não poder dizer revolucionário, as esquerdas, e uma vez mais destacan­do-se o pensamento ainda hegemônico do Partido Co­munista, afirmam o caráter nacional e burguês da revo­lução brasileira - ''Tudo pelo governo nacionalista e democrático", era a palavra de ordem - e, por via de inevitável conseqüência, a aliança com "setores progressistas" da bur.guesia nacional, forma envergo­nhada que antecipa a formulação, afinal, vencedora: aliança com a burguesia nacional. A justificativa, isto é, a fundamentação, permanece a mesma: a contra­dição militante entre os interesses índustrialistaS da burguesia brasileira e os projetos do capitalismo inter­nacional para o Brasil, país dependente que assim de­veria permanecer, superando a contradição essencial capital-trabalho, ou, sem ironia, hierarquizando a ex­propriação de mais valia; o capital nacional seria, nessa lógica, menos explorador. No final dos anos 80, em plena campanha presidencial, o principal líder popular de esquerda tentará a inversão dos pólos. Mas isso é outra história. Nos anos 60 e nos anos angustiosos do final do governo Jango, competia aos mais pragmá­ticos encontrar os exemplares empíricos dessa formu-

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!ação teórica, e eles foram identificados no empresário ]osé Ermírio de Moraes, já então à frente do cartel do cimento, futuro senador pelo PTB, o Partido do Presidente, e abrigo preferencial da esquerda legal.

Descobríramos o "bom burguês". Mas o empresa­riado, parece, não nos havia encontrado.

No centro do capitalismo brasileiro, no que cena­mente é o santuário da burguesia nacional, sua alma e seu cérebro, não se co~itava dessa aliança. Pelo con­trário, ela era malvista. E o que atesta para a história a leitura das atas das reuniões da Fiesp no período É verdade que ela esteve aberta a discussões, promo­veu simpósios, e editou ou financiou o Digesto Econô­mico onde era possível ter ensaios não canônicos, ainda que necessariamente bem comportados. A seus debates devem mesmo ter participado, ao lado de polí­ticos, ideólogos do nacionalismo e personalidades do ISEB. Mas, o que interessa para a hipótese, suas delibe­rações, ademais de nada dizerem respeito ao que quer que seja das teses nacionalistas, são fortemente contrá­rias e denunciadoras de qualquer idéia que pudesse sugerir a possibilidade e plausibilidade do que quer que seja que possa sugerir a existência de qualquer sorte de aliança que divida o empresariado. Mais ainda, ela se revela muito atenta ao que entende como mano­bra da esquerda, o esforço por identificar a existência de diferenciações entre o empresariado, separando-o em segmentos distintos, como o empresariado nacio­nal e o empresariado estrangeiro, ou, de forma mais mecanicista, entre empresários nacionalistas e empre­sários entreguistas. Para ela se revela claro que a men-

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sagem da esquerda, essa mensagem que procura divi­di-la, se opõe aos interesses da burguesia como um todo, pois ela realmente é um todo.

Mas havia outras forças que não a burguesia e que não a esquerda tradicional, que também condu­ziam a idéia do nacionalismo, mas por outra via, a de aue a verdadeira industrialização (leia-se, desenvol­vimento e emancipação do país) era representada pelo setor público, vale dizer pelo estado. Os nadonalistas brasileiros não tinham visões claras e sistematizadas sobre determinadas categorias da economia muito bem trabalhadas pela tecnocracia conservadora mas, independentemente de nossa vontade, ainda hoje, e mais hoje do que nunca, nos governam: moeda, crédito púlico, câmbio, banco, mercado financeiro etc. Prefe­ríamos as questões macroeconômicas, os grandes pla­nejamentos, a intervenção do estado no poder econô­mico, indústria, comércio, produção. Mas num pomo todas as visões do nacionalismo convergiam: havia ati­vidades industriais e de serviços estratégicas, fosse para a segurança nacional, fosse para o projeto de desenvol­vimento industrial, e essas empresas haveriam de ser estatais.

Essas idéias, e mais do que elas, sua efetividade, se agradavam algumas vezes ao empresariado depen­dente dessas inversões, desagradavam ao empresaria­do, nacional ou não, que delas se via afastado; e desa­gradavam sempre, ideológica (no que se opunham ao privatismo e à religião da livre-empresa); e princi­palmente futualmente ao capital norte-americano e in­ternacional. Isto era sabido. O que parece não haver

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sido percebido pela esquerda era a existência, por trás de todas essas idéias e por trás, principalmente, das ações de governo que as implantavam, mais do que um substrato ideoló~ico , uma ordem estamental cuja percepção nossa análise de classe não favorecia. Assim, havia uma camada militar muito mais extensa e muito mais profunda e muito mais influente do que supúnhamos, favorável à empresa pública e, salien­te-se, à idéia de condução pública (leia-se estatal) do processo econômico e do desenvolvimento.

Esta má percepção dos aliados reais nos impedia de ver em tempv que esse nacionalismo tinha herdei­ros e que eles não se contariam, nos anos seguintes, nem entre a burguesia industrial, nem entre os seg­mentos tradicionais da esquerda brasileira. São as pró­ximas surpresas.

4 - As surpresas dos anos militares A esquerda descobrirá que os herdeiros do pro­

jeto nacionalista brasileiro são setores ponderáveis, os mais duros e os mais reacionários do regime militar. O nacionalismo batido pelo golpe de 1964 ressurge, fora de nossas mãos, onde não era esperado, no meio militar, empunhado por aqueles que haviam precisa­mente derrotado os militares nacionalistas ... Mas essa não é a surpresa única.

4.1 - lndustriaíiSmo e dependência Atingindo em cheio alguns postulados de nosso

ideário nacionalista, os governos militares demons­trarão a possibilidade oe um outro modelo de desen­volvimento, que associará industrialismo e integração internacional, e quanto mais o país se industrializa

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mais se integra no capitalismo internacional. Ou seja, mais se ·torna dependente. E essa dependência vem desfazer, agora pela esquerda, um dos postulados polí­ticos mais caros ao nacionalismo anterior, de influência militar ou não. Referimo-nos à destruição da crença no seu papel inelutável de construtor da emancipação, da independência, da autonomia. A esquerda dirá ago­ra, acertando: é indústria e é dependente, e quanto mais se industrializa e mais se complexifica a econo­mia, mais o País aprofunda sua dependência.

Desvanecia-se assim a ilusão, perfilada até por marxistas!, de que a indústria, por si só, resolveria os problemas da população brasileira. Fez-se a indus­trialização, e o povo ficou mais pobre. Mais pobre e mais oprimido. Fez-se a industrialização como pro­jeto de sustentação do regime autoritário, e fez-se a industrialização de forma a mais autoritária {>OSSível, mais arrasadoramente anti-social do que qualquer ou­tra experiência social conhecida, urbanização forçada miserabilizando o migrante e construindo os bolsões de miséria abjeta que sitiam as grandes cidades brasi­leiras.

4.2 -E ... fez-se a "reforma" aJUáf"ia A industrialização, de resto, também nos enganou

a todos, pois não realizou, como dizíamos que realiza­ria, a reforma agrária, pelo menos a reforma agrária do tipo que imaginávamos, e que hoje só poderia ser implantada nas áreas mais atrasadas do país, no Nordeste, no Norte já de outro ponto de vista, no Centro-Oeste. Reforma agrária que já foi feita, sob ou­tros fundamentos, no Sul, à maneira capitalista a mais

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radical, concentradora de grandes extensões de terra, violenta, expelindo gente do campo do País inteiro, transformando, entre outros, colonos gaúchos e para­naenses em trabalhadores sem terra de Rondônia, no sul do Pará, em Tocantins etc.

Se o antigo projeto de reforma agrária se tornou insatisfatório para a metade do país, a teoria da indus­trialização, como solvente de contradições, foi definiti­vamente defenestrada. Surge um novo movimento sin­dical, apartado ideologicamente das matrizes clássicas do sindicalismo brasileiro, que iria apresentar a indús­tria não como fonte de paz e alegria, mas de assalariato, de contradições conhecidas com a burguesia. As rela­ções desfetichizadas passam a opor interesses concre­tos, pelo que, no país industrializado e em recessão operários e patrões não têm por que cantar solidarie­dades reáprocas. É, finalmente, a grande, e essa sim inevitável, contribuição do boom industrialista.

5 - Os "anos Geisel" O governo Geisel consolida o modelo de desen­

volvimento econômico autoritário, fundado na teoria de fazer primeiro o bolo crescer, para, depois, um depois que não tem data, fazê-lo distribuído. É um modelo excludente da população, que privilegia as elites, para que um milhão e meio de pessoas possam ter vida nababesca. Mas os anos Geisel não foram só isso. Coube-lhe, nova surpresa, fechar o ciclo da polí­tica de substituição de importações e a busca de novos parceiros que diminuíssem nossa dependência dos Estados Unidos. Foi ainda um pouco mais, retomou a linha da política externa arquivada com a deposição

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de jango e transformada pelos primeiros governos militares em servilismo incondicional a todos os inte­resses norte-americanos. Aparta nossa política do atre­lamento aos interesses coloniais portugueses, aproxi· ma-se da África e dos países socialistas. E, para espanto generalizado, rompe o acordo .militar Brasil- Estados Unidos.

Coube-lhe ainda realizar o sonho daquele estado controlador do processo econômico. A crise interna­cional dos preços do petróleo enseja-lhe as condições para comandar o processo econômico nacional; é o governo brasile1ro quem vai ditar as alternativas, deci­dindo responder pela infra-estrutura, ampliação do papel das grandes empresas públicas, inclusive a Petrobrás, nada obstante o episódio até aqui sem conse­qüências dos contratos de risco, controle do setor de bens de capital ainda quando privado, controle da atividade financeira. Para além da Escola Superior de Guerra, o governo Geisel parece haver demonstrado a adoção militar, ou pelo menos por influentes setores militares, da tese segundo a qual determinados focos estratégicos de desenvolvimento, ou de. poder econô­mico, não podem ser repassados ao imperialismo.

6 - A aliança burguesa na Constituinte A pá-de-cal na compreensão tradicional do caráter

da "revolução" brasileira (a dijuntiva antiimperial"ista e antifeudal) e das alianças afiançadoras, foi oferecida pela Constituinte. Nela, não foi possível identificar o pro­jeto nacional da burguesia brasileira, muito menos a militância de contradições entre o empresariado na­cional e o empresariado estrangeiro, nem mesmo con-

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tradições entre um empresariado industrial, agente do progresso, e os retardatários do atraso rural. Nas questões fundamentais, quando se discutiam aproprie­dade privada e o poder po,lítico, o interesse do capital se manifestou como uno, com uma só exceção, a prote­ção ao subsolo, afinal assegurada pela direita parla­mentar (no caso, a divisão do "Centrão") e o tobbie militar que nessa matéria remaram no mesmo barco em que viajavam a esquerda e os progressistas.

Parece que a vida, ~orrigindo a ideologia, estava destinada a nos ensinar, a que custo!, que a vida era diversa daquilo que havíamos imaginado, ou com que havíamos sonhado.

7 -As novas relações econômicas influenciando os novos projetos.

O mundo mudou. A frase soa banal, para além de um truísmo; reve­

la-se, porém, necessária. Para discutir o que pode ser uma proposta de pauta para a atuação de um partido de esquerda, carecemos, ademais da (re)visã6 histó­rica, de conhecer minimamente o espaço de eleição de nosso exercício político.

7.1 - A nova geopolítica No plano político é preciso reconhecer que o

imperialismo está vitorioso, e tirar dessa afirmação todas as conseqüências políticas possíveis, a alteração da geopolítica internacional, a relativização dos proje­tos de autonomia e independência, as mudanças no caráter das relações de troca internações, a Pax ameri­ama e tudo u mais que pode advir do fato objetivo que é o fim do equilíbrio interblocos, o fim da bipola-

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ridade substituída por uma liderança única, entregue a nação que não coleciona em sua história exemplos de compromissos humanitários. Mas que, ao contrário, constituiu-se, como nação, graças ao genocídio dos povos indígenas; como território, graças à rapina de enormes áreas de outros países, e, hoje, maior potência econômica e principalmente militar do mundo, age sem o menor respeito pelas tradições das relações internacionais e ao arrepio do direito das gentes.

O outro lado dessa vitória é o retrocesso do socia­lismo, do ponto de vista da experiência de governo, do ponto de vista da estratégia mundial, do ponto de vista ideológico.

Isso significa que mais difíceis serão as condições de sustentação das experiências socialistas ainda de pé, que mais difícei5"são·as condições de sobrevivência dos movimentos nacionais de independência, e muito mais difícil ainda a sobrevivência de movimentos so­ciais, econômicos e políticos divergentes da coalizão internacional- da qual fazem parte, até, ex-potências socialistas- dominada por um estado que não encon­tra limites fora de sua própria força e de seus compro­missos com seus próprios e únicos interesses.

7.2 -As novas relações de produção Por sem dúvida que a natureza do capitalismo

permanece a mesma, porquanto ela é imutável embora diversas possam ser - e são - as condições de sua reprodução.

Alguns pontos incontroversos para as concepções estratégicas de poder de alguns anos atrás se afiguram hoje como desarrazoados. É o caso, por exemplo, da associação, admitida como necessária, entre território

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e poder, detenção de fontes de energia e poder político e econômico. De outra parte, supunha-se, ou aposta­va-se, na sobrevivência do poder de barganha dos paí­ses subdesenvolvidos, em face da condição desses paí­ses como fonecedores de matéria-prima e mão-de­obra barata.

O momento de hoje revela que uma só das gran­des potências se apresenta como detentora de um território que, ademais de vasto, é rico em matérias­primas e recursos energéticos, características as quais, todavia, não foram suficientes para assegurar o desen­volvimento sustentado da União Soviética, ou retirar países como o Brasil e a Índia, e outros colossos, de sua miséria. China à parte. O paradigma de grande potência contemporânea é o Japão, com sua pobreza territorial e indigência em recursos naturais, de parti­cular, energéticos. Diverso não é o quadro das grandes potências européias, Alemanha à frente. A autonomia dos países grandes produtores de petróleo- nomea­damente os países árabes - se pode haver resolvido os problemas dos Saudi e outros emires, de nada signi­ficou seja para o desenvolvimento das respectivas eco­nomias, seja para o desenvolvimento da sociedade, seja para a melhoria das condições de vida, vida abjeta, de suas populações. Mesmo o poder de barganha polí­tica, descoberta com a OPEP, decaiu, seja pela adapta­ção econômica do mundo à nova realidade, seja pela inovação tecnológica, seja pela busca e encontro de formas de produção alternativa de energia, seja por tudo isso e mais a alteração da geopolítica mundial que também alteraria a correlação de forças no Orien-

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te. A guerra do Golfo deve responder a quaisquer dúvidas.

O desenvolvimento científico-tecnológico e a eco­nomia das grandes nações industrializadas - destaca­damente Estados Unidos, Japão e Alemanha - estão reduzindo a importância das matérias-primas como fontes de produção industrial; a informática e a robó­tica estão produzindo nas matrizes, a preços iguais ou inferiores que os alcançados na periferia capitalista, com procedimentos menos avançados e emprego in­tensivo de mão-de-obra

Estamos simplesmente querendo pôr de mani­festo as alterações profundas sofridas, nos últimos 70 anos, pelo processo industrial, alterações que repercu­tiriam não só no plano econômico quanto no político, determinando mesmo alterações em nossa forma de ver as relações capitaVtrabalho, mão-de-obra/máquina.

Essas afirmações certamente serão mais facilmen­te aceitas se trabalharmos com exemplos concretos, tomando por base dois dos momentos mais significa­tivos da industrialização capitalista.

Nos anos 20, nos Estados Unidos, cerca de 60% dos custos do seu. produto industrial mais represen­tativo (e emblemático do desenvolvimento capital)­o automóvel - correspondiam a matéria-prima e a energia. Passados 60 anos, os custos da matéria-prima e energia do produto industrial representativo da déca­da- o micro-cbip- são inferiores a 2%. Os fios de cobre, cuja quantidade de matéria-prima e energia está próxima de 80%, estão sendo substituídos nos cabos telefônicos por fibras óticas, cujo total de maté­ria-prima e energia mal chega a 10%. O Japão (a cuja

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experiência retornaremos) aumentou sua produção industrial duas vezes e meia entre 1965 e 1985, embor<t os aumentos de matéria-prima e do consumo de ener­gia, nu mesmo período, tenham sido insignificantes. As concepções tradicionais de industrialização e de desenvolvimento industrial precisam considerar os avanços na informática e na robotização, transforman­do as linhas de produção nos países desenvolvidos, com vistas a viabilizar determinadas linhas de produ­ção (que se poderia considerar antieconômicas em face dos salários percebidos pelos operários dos países periféricos). Isto ilustra a nossa afirmação de que os países do Terceiro Mundo estão perdendo as vantagens comparativa da oferta abundante de matérias-primas e mão-de-obra barata ( Cf. "A Guerra do Golfo: Algumas Questões sobre a Economia Mundial e a América Lati · na" in Cadernos de Conjuntura 37 - fevereiro de 1991 - Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - IUPERT).

Evidentemente, esse quadro importa alterações nas relações de produção; uma delas é a própria dimi­nuição da classe trabalhadora industrial.

O quadro de transformações no parque da Europa industrializada pode ser antecipatório do que está por ocorrer entre nós, ou do que tende a ocorrer se final­mente conseguirmos uma modernização industrial, posto que o país, ceticismo à parte, também sobre­viverá a Collor.

As mudanças tecnológicas, a informatização er geral, a nova compreensão das linhas de montageu e a descentralização da produção (o ensembte final é a arrumação de peças provenientes de centros de

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produção os mais diversos, pensados e produzidos sem a visão necessária do produto ou dos produtos nos quais terminarão para fins e destinações raramente supostos) condenaram a grande usina, transformada em uma série de pequenos estabelecimentos distri­buídos por toda parte, assépticos, mais lembrando ter­minais de laboratórios farmacêuticos, com sua produ­ção limpa, funcionários de bata fazendo encaixes, su­pervisionando aparelhos que executam tarefas pré­programadas. A usina, a grande usina, é o metier da grande organização sindical (aliás, relembremos, é o capitalismo quem organiza o proletariado ... ), liquidada esta (a grande organização), paralelamente à emer­gência do grande setor de serviços, uma parte da classe operária se integra, se integrará inevitavelmente.

Este é o capitalismo que teria derrotado, de mo­mento, o socialismo, o socialismo-real do Leste e o "socialismo" da socialdemocracia dos países avança­dos.

so que nós não temos esta sociedade. O quadro de desenvolvimento brasileiro, capita­

lismo retardatário e atrasado, permite ainda e talvez por muito tempo uma classe operária grande e que tende mesmo a crescer nos próximos anos.

Portanto não é isto, não é ainda isto, mas pode ser isto um indicador do que pode vir a ocorrer, a postura diferenciada do proletariado do ABC paulista em face, não só de outras categorias, mas até das mes­mas categorias em outros estados. Exemplo premo­nitório de uma postura cada vez menos "revolucio­nária", e cada vez mais reformista e corporativista, entendemos, terá sido, correta esta leitura histórica,

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o recente e universalmente aplaudido entendimento entre metalúrgicos paulistas, empresários multinacio­nais e governos da União e dos estados (São Paulo à frente) visando a aumentar os preços dos autoveí­culos, diminuir a carga tributária em benefício de uma trégua nas demissões de metalúrgicos e efetiva retoma­da da venda de carros de luxo (Esta questão é retoma­da, neste volume, em texto próprio).

7.3 -O registro de dois "modelos" O projeto de desenvolvimento auto-sustentado de

qualquer país deve partir do reconhecimento da im­possibilidade, arual, seja, a) de promover o desenvol­vimento e a autonomia dentífico-tecnológica e industrial em todas as áreas; e b) competir com os Estados Unidos e a Alemanha naquelas áreas nas quais esses países já acumularam conhecimento diferenciado. Es­ses dois pontos indicam a existência de um predicado que a eles antecede e condiciona, a saber, que a maté­ria-prima fundamental dos anos 90 é o conhecimento.

Dois países, em tudo distintos, parece haverem percebido essa mudança de rota.

A base do desenvolvimento do Japão - minús­culo país desprovido de matérias-primas e fontes de energia, transformado em poderosíssima potência in­dustrial - foi sem dúvida a inversão maciça e por longos anos em educação e em certas áreas da pesquisa tecnológica, voltadas para o desenvolvimento e a apli­cação, afastando-se da competição com os Estados Uni­dos na pesquisa pura e de ponta. Sua vantagem compa­rativa com os Estados Unidos em inumeráveis pontos da produção industrial, donde as amarguras da balança

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comercial norte-americana, derivam, exatamente, do nosso ponto de vista, dessa política, que os especia­lizou em melhores fabricantes dos produtos resultan­tes dos investimentos americanos e alemães em pes­quisa pura.

Nem na Alemanha nem no Japão, o desenvol­vimento prescindiu .ou enfraqueceu o estado, senão que o fortaleceu, pela decisão política dos investimen­tos, pelo controle dos serviços, pela eleição de setores industriais estratégicos.

Feitas as devidas adaptações, foi também esta a opção recente de um país igualmente pequeno e desa­quinhoado de matérias-primas, mas, diversa e extrema­mente pobre, sem tradição industrial e submetido a igno­mioso, genocida, bloqueio militar, comercial e político da só maior potênda do mundo. Cuba, que, também privilegiou os investimentos em educação e produção de conhedmento, elegeu aquelas poucas áreas nas quais poderiam as suas condições históricas objetivas propor­danar rendimentos. Seus sucessos na medidna e na biotecnologia parecem abanadores dessa política.

IV. O PROJETO NACIONAL DOS ANOS 90

1. Introdução

As considerações desenvolvidas até aqui - consi­derações e não afirmações - tiveram como objeto proporcionar alguns elementos para uma discussão,

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coletiva, extensa, crucial da esquerda brasileira e da qual não nos podemos furtar. Estamos nos referindo, evidentemente, ao Projeto nacional dos anos 90, segun­do a óptica socialista e, de forma ainda mais limitada, segundo a óptica de nosso partido.

Não se trata de rediscutir nosso programa, mas de discutir as linhas mestras de nossa atuação, que requer, como pressuposto, nossa definição da Revo­lução brasileira, e de nosso papel na política. E mais, nossos projetos políticos e nossos projetos político-e­leitorais, nossas relações com os demais partidos e forças organizadas, nossa política no Congresso e fora dele, dentro e fora da institucionalidade.

Projeto nacional e pauta nacionalista são questões naturalmente imbricadas, e mais o são no seio do PSB, que, propondo-se a atuar em nome de todas as forças e segmentos sociais, unificando-os na ação, sen­te-se no direito de julgar-se também herdeiro das me­lhores tradições nacionalistas do movimento social e popular brasileiro.

Essa ressalva tem por finalidade lembrar que a divisão que se fará a seguir, entre projeto nacional e pauta nacionalista, -é puramente metodológica.

~. 10e1as para uma proposta de projeto nacional brasileiro

./.. 1 Introdução Uma primeira consideração pode parecer auda­

ciosa, mas na verdade ela estará na raiz das formulações que se seguirão. Queremos afirmar que qualquer pro­jeto nacional deve ter como ponto axial o princípio de que o Brasil não se propõe a ser potência de primei-

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ro grau (eu gostaria poder dizer de grau nenhum). Por uma razão que nos parece muito simples: porque não pode.

O quadro internacional recente, o mundo que se organizou após a implosão da União Soviética, a falên­cia da ONU e a guerra do Golfo reservaram para países como o Brasil papel secundaríssimo, ao qual devere­mos estar condenados por muitos e muitos anos. Diga· mos uma vez mais: o mundo é outro.

Ao contrário do que o nosso otimismo naciona­lista desejaria que pudéssemos tentar, ao contrário dos mercadológicos sonhos primeiro-mundistas de Collor (para não falar nos pesadelos dos Médicis), o Brasil de hoje se alinha com as Filipinas. com a Indonésia, com a Nigéria, com todos aqueles países continentalmente grandes, populosos e pobres econo­micamente, países que não estão mais nos escalões intermediários das potências. Estão lá em baixo. Estão atrás das superpotências, das potências, das CEI, da Europa rica e da Europa pobre, das Coréias, das Cinga­puras ... A pobreza conflituosa desses países está a exigir saídas mais radicais que o contexto internacional pode admitir, e por isso podem estar condenados a um insucesso histórico grave, ou seja, serem aquilo que Toynbee chamava de "proletariado externo".

A essa razão, que metodologicamente dispensa qualquer outra, aduzimos, ainda que desnecessariamen­te , a certeza de que a construção de potências não pode ser o projeto de nenhum partido de esquer­da, no poder, ressalvadas aquelas imposições históricas que, por exemplo, determinaram, na URSS, com as

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conseqüências sabidas, as alterações do projeto leni­nista. E não terá sido por outra razão que, em nosso país, os vocativos do Brasil-grande, do Brasil-potência e outras asneiras foram, recentemente, nos anos 70 do milagre e das dores, o prato de resistência da tenta­tiva de transformar determinado período do governo militar burocrático em uma experiência fascista pura e simplesmente.

Outro pressuposto de um tal Projeto é a obser­vação de que, no horizonte de nossas vidas, estão veda­das quaisquer alternativas de projeto de libertação na­cional fundado na luta armada. Não se trata de um juízo de valor. Diz-se tão simplesmente que esse cami­nho está vedado por conta do contexto internacional de configuração que, de tão sabida, dispensa novas demonstrações.

De outra parte não nos parece hoje razoável, co­mo o fora dantes, contar, para qualquer projeto de emancipação nacional, com qualquer sone de ajuda internacional ou solidariedade. E não se deve mais contar com o papel sofrivelmente neutro dos organis­mos internacionais. Exemplos e circunstâncias tam­bém dispensados.

2.2 - Democracia e institucionalidade Um projeto de desenvolvimento nacional é, fun­

damentalmente, um projeto político, antes de ser eco­nômico e cientítlco, tecnológico e estratégico. Ele pri­meiro precisa dizer para quem pretende desenvolver esse país, em nome de quais valores ele promoverá a riqueza. Ou seja, a quem aproveitará. É possível um projeto de desenvolvimento que vise a apenas um

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máximo de 10% da população. É esse, aliás, na verdade, o projeto de desenvolvimento nacional das elites brasi­leiras, muito bem representadas pelo governo Collor, inclusive no seu lado perdidamente corrupto.

A essência política é , irrecusavelmente, a questão democrática, que não se conforma nos quadros da pura institucionalidade, como nos propõe o neolibera­lismo, com estranha audiência em responsáveis setores do pensamento e cl:t práxis política de esquerda.

A questão cla institucionalidade, que passamos a melhor compreender nos anos da ditadura e com ela. não pode, todavia, reduzir -se a · uma discussão pura­mente formal e funcional. É verdade que mais do que nunca, em face por exemplo dos óbices de ordem internacional acima referidos, interessa ao movimento popular a preservação da institucionalidade, interessa seu fortalecimento e interessa acima de rudo a manu­tenção das regras do jogo, conservando-se o espaço em que conformamos nossa aruação. Isto é muito mas não é tudo. Os socialistas, que estão pensando em um projeto nacional não necessariamente socialista, precisam deixar claro por qual democracia lutamos, mesmo na instirucionalidade conservadora, distinguin­do-nos dos neoliberais e mesmo de setores outros da esquerda brasileira.

Nenhum projeto democratizante avançará se não promover a reforma do estado burguês, que enseje, superando os limites da representação clássica, a emer­gência efetiva das massas na arena política, cujo peso, e só o seu peso, promoverá, deverá promover, modm­cações na estrutura do estado e nos padrões de suas

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relações com a sociedade. O avanço do campo popular na política, na grande política, é o único instrumental, nas condições presentes, possibilitador de transfor­mações no papel do estado burguês, aparelho que é essencialmente o produto e o instrumento de uma relação social de dominação, atuando em todo o tecido social. Vale dizer, uma modificação radical nos papéis atribuídos aos diferentes setores e classes sociais no Brasil. Sem prejuízo da institucionalidade, mas nos libertando do seqüestro ideológico entre parlamen tarismo e presidencialismo, por exemplo. Esta, parece· nos, é a única forma de evitar q~e a democratização, isto é, o fim dos regimes militares e a retomada demo­crática, sob a égide neoliberal, transforme uma vez mais a "democracia" em instrumento dos interesses das elites, e, ao invés de ser combatida, destruída, substituída pelos setores progressistas, tenha de ser por eles preservada, por força da necessidade histórica de preservar a institucionalidade.

Por isso, o projeto democrático que deve iluminar o Projeto nacional dos socialistas deve visar ao desblo­queio das demandas e necessidades cada vez mais importantes e cada vez mais urgentes de setores cada vez mais majoritários e igualmente marginalizados de nossa sociedade. Implica a defesa da vida, do emprego, da educação, da saúde, da cidadania, enfim

Queremos assinalar que não pode haver uma dis­cussão da institucionalidade, como se estivéssemos diante de mundos distintos, apartada da questão social, as condições de extrema miséria e exploração em que se encontra a maioria da população brasileira. O Brasil

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industrial paulista tem dentro de si um Brasil social igual ao Gabão, pior do que a Índia. Nossos índices de distribuição de renda, se não são os piores, são dos piores do mundo, e os piores, incomensuravel­mente piores se comparados a países de igual desen­volvimento e produção. Ou seja, isto é uma imorali­dade, uma questão de fundo que se sobrepõe a quais­quer outras.

2.3 -Algumas estratégias Se as considerações anteriores estiverem razoa­

velmente correlatas, parece-nos também correta, como projeto de um plano nacional, a busca de alternativas para a autonomia na esfera produtiva, que serão encon­tradas, poderão ser encontradas- se não já em nenhum outro lugar - na esfera cientifica e tecnológica ~ o plano do conhecimento científico e tecnológico, no qual estamos a cada dia mais atrasados em relação ao que já fomos e ao que já são os demais países, poderá oferecer saídas com vista à produção própria, em condições de vantagens comparativas. Em outras palavras, estamos nos referindo a uma política de de­senvolvimento que, a partir da produção e difusão do conhecimento, via educação, estabeleça estratégias de investimentos preferenciais e de setores produtivos preferenciais.

Fugindo do estatismo pelo estatismo, e do moder­nismo antiestatista alienado, é preciso recuperar a liçâo - que a Europa e o Japão repetem - de que há lugares de atuação estatal e nacional estratégicos. Luga­res que são mais freqüentes, naqueles países que estão a cobrar formas de desenvolvimento acelerado.

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3. Por uma pauta nacionalista para os anos 90

Relembrando o mútuo compromisso entre as te­ses do projeto nacional e da pauta nacionalista, particu­larmente para um partido socialista com a nossa histó­ria e os nossos compromissos, tentaremos destacar, a seguir, aqueles pontos que nos parecem como pacífi­cos em uma política contemporânea, isto é, atualizada.

As propostas nacionalistas têm, em nosso pais, uma questão emblemática, que simboliza a um tempo a capacidade de mobilização de seu povo por um projeto de emancipação nacional (o monopólio estatal do petróleo) e de afirmação de sua capacidade técnica (a Petrobrás). Não há por que arrefecer a defesa desse princípio, contra o qual não se colocam, além de afir­mações puramente ideológicas, portanto impossíveis de serem demonstradas, razões de ordem política ou econômica defensáveis.

Há outras questões, todavia, que precisam ser am­paradas, e entre elas destaca-se a dívida externa, que permanece iri}pa~ável, nada obstante os entendimen­tos alcançados com os credores privados que oferece­ram ao governo brasileiro condições menos imposi­tivas, exigem do país novas cargas que não poderão ser arcadas senão com ainda maior transferência de recursos para o exterior, recursos nacionalmente es­cassos, recursos aos quais, por essa mesma razão, terão de ser enfrentados com uma ainda maior redução dos investimentos internos (portanto, é falsa a promessa governamental de retomada do desenvolvimento), o que deve ser entendido como inevitável prorrogação

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da política recessiva, de par com o risco. aumentado. de novas pressões inflacionárias. Sem qualquer segu­rança de reativação de fluxos de investimentos com­pensatórios. Certo mesmo, o maior empobrecimento do país e de sua gente. O Ministro da Fazenda, é um homem pessoalmente honrado, mas poderia não sê-lo; é Marálio Moreira homem culto e razoável conhe­cedor do metier. ma<; não necessitava sê-lo. Para o bom oesempenho de seu papel, basta-lhe seguir à risca o catecismo do FMI. O que ele faz com competência, pois sem inventividade. O que dele se requer é disci­plina.

Uma política nacionalista moderna, para o Brasil de hoje, deve considerar como prioridade o desenvol­vimento científico e tecnológico, donde a recuperação da universidade e dos centros de pesquisa.

Questão igualmente considerável para uma tal Pauta é a defesa de estratégias de autonomia econô­mica em setores específicos da economia. É evidente que não podemos pretender ter autonomia em tudo, conhecer tudo e produzir tudo. Essa questão já foi abordada em outros momentos. Neste ponto quere­mos destacar a questão do Estado, em todo o mundo, do estado brasileiro como instrumento de desenvol­vimento, embora não seja, necessariamente, de demo­cratização, como exemplifica, na história brasileira re­cente, a experiência dos governos burocrático-auto­ritários do militarismo.

O estado brasileiro desempenhou historicamen­te, e nesse ponto sua contribuição não parece esgotada,

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papel pione1ro oe promotor do desenvolvimento, in­v~tindo na infra-estrutura necessária à implantação das empresas capitalistas privadas, investiu na produ­ção viabilizando insumos indispensáveis à produção industrial capitalista privada, investiu na modernização das comunicações, indispensável à circulação de infor­mações fundamental para o processo industrial inte­grado internacionalmente, investiu em áreas estraté­gicas, para o desenvolvimento e a segurança, investiu naquelas áreas em que os investimentos maciços de retorno lento não atraíam o capital privado, nacional ou estrangeiro, investiu para assegurar a atração do capital estrangeiro e para possibilitar um desenvol­vimento capitalista nacional em harmonia com aquele. Nesse ponto, a empresa estatal, que os socialistas deve­rão lutar para que se transforme em pública, é, ainda, fator de desenvolvimento nacional e, de certa forma, de alguma disciplina, em país de economia oligopo­lizada e produção cartelizada.

E que ninguém alimente a ingenuidade de supor que, liqüidando as empresas estatais brasileiras à feição do que se fez com a Usiminas -- rentável e com valor mínimo de implantação de 10 bilhões de dólares­por 2 (dois!!!), muitos dos quais podres, iremos aliciar para o território nacional mais capital monopolista internacional, que se fará cada vez mais rogado, à busca de igual tratamento: venderemos o pais inteiro, que continuará devendG ..

Pensamos que a questão amazônica, que se torna crescentemente prioritária para qualquer projeto de

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desenvolvimento nacional deve ser vista, por uma polí­tica nacionalista, também por aqueles aspectos que consideram sua contribuição econômica. As tendên­cias da pesquisa em todo o mundo, e as discussões promovidas em torno da biodiversidade, podem estar oferecendo uma outra frente da luta ambiental, ao revelar a Amazônia como o santuário mais importante do mundo de matérias-primas alternativas para a pes­quisa biotecnológica. A pr.9ibição de acesso a seus recursos de pesquisadores ou instituições pertencen­tes a países cujos governos não tenham firmado o tratado da biodiversidade é imperativa, por ser um ato de defesa de nossa pátria e da humanidade.

Nessa pauta nacionalista não pode estar de fora a questão fundiária, com um tratamento que, diverso do ainda predominante em largos setores da esquerda brasileira, de particular a esquerda dependente dos setores católicos ligados à luta do campo, talvez ainda esteja por ser formulado de forma mais correta. Dele temos apenas a convicção de que as questões dos sem-terra, como a dos trabalhadores sazonais (bóias­frias em geral e trabalhadores da cana, no Nordeste), nada obstante a dramaticidade humana que encerram, não encerram as questões todas das relações homem/ propriedade rural. Nossa política deve igualmente con­siderar a existência já de grandes massas assalariadas, nada obstante os sinais de decadência da luta assala­riada, e de elevado número de pequenos proprietários, pois todos eles, tirante as questões éticas fundamentais que nos fazem defensores de sempre da reforma agrá­ria, conservam contradições irresolvidas com o grande

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proprietário, o proprietário clássico e a grande empre­sa que caminha do Sul na direção do Centro-Oeste e de vastas áreas da Amazônia.

A reforma fiscal não pode limitar-se à denúncia do pleito conservador do governo, mas, em face dela, nossos partidos, o PSB em particular, nada têm ainda a dizer de propositivo. Superando os preconceitos do economicismo esquerdista, opondo o f;Uso dilema en­tre economia real e economia monetária, é preciso admitir que a reforma fiscal, se pode ser e é instru­mento do fortalecimento dos interesses de classe no governo conservador, pode ser, igualmente, instru­mento reformista do qual as esquerdas podem e de­vem lançar mão. Se não nos é possível promover a redistribuição de renda - que demandaria uma nova correlação de fo~as. fi ela favorável, que obviamente não estamos em condições de promover - podere­mos, todavia, e de forma objetiva, lutar por determi­nadas reformas factíveis dentro do regime burguês. Essas nossas reformas devem visar, em conjunto e sepa­radamente, a estancar essa imoralíssima concentração de renda e riqueza, alterar as relações intra-regionais, reduzir a impunidade fiscal, punir o enriquecimento ilícito, dirigir os recursos fiscais para a promoção do desenvolvimento econômico e a melhoria das condi­ções de vida da população, promover o emprego, e reduzir os impactos desumanos da recessão. A reforma fiscal não pode ser reduzida a uma discussão entre o governo e os chamados economistas do Congresso, coevos do modernismo, tentando transformar uma questão eminentemente política em questiúncula téc­nica.

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V. OS SOCIALISTAS E A SOCIALDEMOCRACIA

A crônica política não distingue - e parece inten­cionada a não fazê-lo - as diferenças de projetos políti­cos que tentam firmar-se no atual pluralismo partidário brasileiro. Assim, passa a nomear como de esquerda as mais variadas concepções, desde as que se revelam pelo simples desejo pessoal ou de grupo contrariado, até às que participam da oposição apenas para formar uma espaço junto ao bloco dominante. Há, portanto, a esquerda que faz a opção pelo socialismo - ou seja, que pretende substituir o capitalismo por um sistema socioeconômico que solucione os graves pro­blemas nacionais e internacionais -e a esquerda que pretende apenas reformar e bem gerir o capitalismo em suas diferentes reições, nacional, multinacional, transnacional.

Essa dupla tendência reflete, essencialmente, o fato de que a internacionalização do mundo moderno é, tendencialmente também, totalizante: a humanidade inteira, em termos de detenção e de fruição dos bens da Terra, materiais e imateriais, vai do pólo rico ao pólo pobre, incluindo-se entre esses dois pólos todos os seres humanos: isso faz que um milonário Ol! mera­mente rico paquistanês - cujo país tem uma renda per capita vil, ou quase vil- se insira, política, ideológica culturalmente, no pólo rico, ou um pensador desalie­nado norte-americano ou japonês se insira no pólo pobre, os ricos brasileiros são assim outra coisa que a massa brasileira: há os servidores (e beneficiários) do capitalismo nacional que, em crise, aderem gostosa­mente ao multinacional ou transnacional, pois que

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a solução socialista dos problemas nacionais, por visar a todos e não apenas a uma grei, é extremamente mais complexa, exigindo sacrifícios não raro enormes, mas sempre menores, relativamente, para os já sacrifi­cados. A história do Brasil se desdobra dentro desse esquema, que é, no presente, de ofuscante evidência.

Inviabilizado o projeto de transição corporificado na Aliança Democrática, revelada a verdadeira face do governo Sarney, com sua subordinação aos interesses oligárquicos e antinacionais, manifestados os efeitos da composição política do partido majoritário, alguns setores progressistas oscilaram entre uma opção socia­lista e um projeto de tipo socialdemocrata. Essa dúvida decorria de manifesta incompreensão da natureza da social democracia.

A socialdemocracia surge como desdobramento das dificuldades encontradas pelo ca_pital monopolista europeu, em conseqüência da integração de suas eco­nomias no mercado internacional. As condições de concorrência a gue foram submetidos aqueles países levaram a uma coalizão de classe que assegurava, ao mesmo tempo, a formação de um grande mercado interno e uma elevada taxa de produtividade do traba­lho.

O projeto socialdemocrata europeu foi e é susten-tado por uma associação das frações monopolistas do capital nacional com estratos superiores da classe operária, representados pela burocracia sindical. Essa associação viabiliza a manutenção de elevadas taxas

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de produtividade e um mercado interno em perma­nente expansão. A crise do capitalismo no plano mun­dial é, justamente, a crise desse modelo, que nossos socialdemocraras querem, sempre discronicamente, implantar no Brasil.

É que a proposta do socialismo partia do pressu­posto de que a sua consumação ou pelo menos advento seria tanto mais factível quanto mais rápido se mundia­lizasse. As seqüelas da primeira grande guerra mundial barraram o advento do socialismo de duas maneiras: burocratizando-o e autocratizando-o se num país só - foi o caso da União Soviética - ou diluindo-o e subordinando-o ao serviço do capitalismo, castrando ao socialismo sua vocação internaciorí.alizante original e insuflando ao capitalismo "morigerado" a redução da exploração do homem pelo homem intra muros. nacionais, o que permitiu que o 'outro capitalismo, o "não morigerado", atingisse o auge da exploração colonial até após a segunda guerra mundial.

Assim, quando afirma que "a socialdemocracia contemporânea é a síntese histórica que procura supe­rar as limitações do capilismo do século XIX e os aspectos discutíveis do socialismo", o programa do PSDB insiste no equívoco. Escrevendo antes dos teóri­cos de hoje, o poeta Hélio Pellegrino a eles se anteci­pava em sua crítica irrespondível: "É cinismo sinistro apontar-se os Estados Unidos ou a Alemanha Ocidental como modelos a serem imitados - e atingidos -pelas nações pobres da Ásia, da África e da América Latina. Para tanto, seria necessário que as potências de primeira grandeza fossem colonizadas e esbulhadas

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pelos países subdesenvolvidos, invenendo a presente relação de forças" .

Além disso, a .socialdemocracia brasileira não coma nem com um setor monopolista do capital a quem interesse liderar uma coalizão do tipo socialde­mocrata e muito menos, ainda, com uma classe operá­ria que tenha constituído uma aristocracia sindical ca­paz de tornar viável tal projeto. O capitalismo mono­polista brasileiro - muito mais ligado aos interesses do capitalismo internacional do que a um oroieto na­cional - não se interessa (porque dele também não depende) pela formação de um potente mercado inter­no para seus produtos e muito menos investe na eleva­ção da produtividade, pois enfrenta a concorrência internacional através da associação de subsídios finan­ciados pela sociedade aos baixos salários' que paga aos trabalhadores brasileiros.

Uma vez mais um truísmo de força didática, para revelar mais uma vez os equívocos históricos daquilo que procura ser a socialdemocracia brasileira: a nossa sociedade não é a européia, nem a européia mediana, nem a européia desenvolvida muito menos. Sua estru­tura social admite ainda- e por quanto tempo quem saberá dizer? - uma classe operária grande - que vem crescendo muito desde os anos 50, e que cresceu ainda muito nos tempos milagreiros dos governos mili­tares, e que continuou crescendo mesmo sob a reces­são-, uma estrutura agrária que nada lembra as estru­turas francesa ou alemã, ou mesmo espanhola, nada obstante a redução da população agrícola e do desen­volvimento do assalariamento rural, o trabalho agr!co!a

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aqui é diverso, negativamente distinguido, com a con­vivência de formas capitalistas adiantadas com outras que transitam do bóia-fria a formas torpes de escravi­dão, subescravidão e servidão. Em outras palavras, país subdesenvolvido, o Brasil possui muitos dos proble­mas do capitalismo tradicional, e se isso é verdade, e o é obviamente, nós temos os problemas e principal­mente muitas das tarefas da esquerda tradicional, e cumpre, portanto, assumi-los e assumi-los sem pejo. Ou seja, cumpre organizar o movimento sindical tradi­cional, sim, cumpre organizar partido em torno desse movimento sindical, sim, como cumpre construir uma linguagem e um projeto específico para população de classe média, sabiamente permeável a esse discurso, como o demonstrou exemplarmente a campanha 1989, cumpre ainda desenvolver uma política de unidade dos setores proletários e urbanos, ou de aliança, alian­ça operário-camponesa como dizíamos nos anos 60, de uma forma ou de outra integrando-os, ou seja, cabe­nos essa política que, por exemplo não cabe mais na Alemanha, nem na França, nem na Espanha, nada obstante o atraso relativo desta.

O que um certo pensamento que se chama pre­sentemente de pensamento da direita "moderna" ­encantador, porém, para certos setores socialdemo­cratas e de esquerda, sequiosos do novidadeiro -tenta nos impingir é a algaravia de que somos (direita e esquerda) tão "modernos" quanto eles (a panacéia da "modernidade" socialdemocrata, irmã siamesa do primeiro-mundismo de Collor, são herdeiros do Bra­sil-grande dos militares dos anos 70), os desenvol­vidos, para convencidos, tornamo-nos compradores

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perdulários da idéia falaciosa de que ser "tradicional" como era a esquerda européia há 15 anos é um atraSeJ! Ora isso é uma tentativa de nos embutir um processo colonial de pensar. Ora, o PSB - e nenhum partido de esquerda brasileiro - vive os problemas do Labor Party inglês, e tomara que os tivéssemos, afirmando aqui o que afirmado é lá, que 70% da população vão bem mas 30% vão muito mal. Aqui, 5% da população, se tanto, vão de muito bem a muitíssimo bem e o restante vai de mal a pior. E, portamo, vários dos aspec­tos da política "tradicional" se impõem. Nos países que resolveram os problemas básicos da população, a política exige da esquerda a realização de seu ideário político, a luta pelos interesses dos outros 30%, a luta por mais liberdade, por mais igualdade. Mas entre nós 80% da população não conhecem a cidadania e se deparam diariamente com uma questão que se reno­va diariamente: a própria sobrevivência física, enfren­tando a fome, o desemprego, a doença e todas as formas objetivas e difusas da violência. O "pós-mo­derno" brasileiro não tem encantos estéticos: é menos diarréia, é menos "meninos e meninas de rua" é menos cólera. O nosso "pós-moderno" é atraso mesmo, e portamo as nossas políticas têm que estar adequadas a essa realidade sem opções. Por esse efeito a questão básica da esquerda brasileira, do PSB portanto, só pode ser a emancipação social das massas brasileiras, das massas proletária~. urbana e camponesa. Nesse sentido tudo o mais é subsidiário, inclusive o nacionalismo cuja pauta, vimos, deve priorizar a questão da dívida externa, casada com a dívida econômica. Ou seja, ou

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isto aqui é um país que tem futuro, porque recuperou seu próprio povo, dignificando-o ou o nosso futuro é um grande Gabão, depositário de pessoas pobres, de uma raça distinta, distinguida pela devastação gené­tica da fome e da subalimentação. O novo proletariado de que nos falava Toynbee. A nova divisão interna­cional do trabalho não nos reserva outras opções.

A solução da crise de acumulação por que passa a economia brasileira não se dará mediante projetos de hegemonia do capital monopolista internacional instalado no País. Esta superação exigirá passos muito mais ousados, o que aumenta significativamente nossa responsabilidade histórica, principalmente para situar a participação de cada força política dentro do atual e futuro (re)ordenamento do quadro partidário. A al­ternativa brasileira sugere movimentos aparentemente contraditórios com o que parece ser hoje o panorama da correlação de forças internacionais.

Aqui se coloca a questão crucial das intermedia­ções no quadro do estado burguês. É essa necessidade de intermediação que dá a sustentação política dos partidos que representam a socialdemocrada nos esta­dos capitalistas europeus avançados.

Esses panidos, na Europa, atendem à necessidade de intermediar, em termos modernos, a hegemonia da burguesia sobre a classe operária, cooptada em seus extratos superiores, e a quem o estado de cla8ses faz sucessivas concessões, muitas sustentadas pela so­breexploração a que é submetida a classe operária dos países periféricos. Mas, nesses estados, essa inter­mediação necessária, que nos países subdesenvolvi-

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dos, no Brasil e na Argentina de particular, vinha sendo desempenhada pelo populismo, requer que o porta­voz da classe dominante, o partido socialdemocrata, tenha condições de representatividade junto ao prole­tariado. Em outras palavras, só um partido inSerido no movimento sindical, como por exemplo o Partido Socialista Francês, pode, no estado capitalista industria­lizado, proceder à intermediação entre a burguesia e o proletariado.

Por óbvias razões, no Brasil, ademais de tudo o que foi exposto, não pode desempenhar esse papel de intermediação aquele partido de parlamentares que não dispõe de inserção no movimento sindical, nem -presença no movimento social. A burguesia exige de seu interlocutor a capacidade de parar as fábricas. Quem não pode pará-las, também não pode acioná-las.

Se, do nosso ponto de vista, pelas razões de fato acima arroladas, não é histórico, entre nós, o pleito socialdemocrata, não há espaço no Brasil de hoje para o projeto da socialdemocracia, muito menos a este pleito está habilitado o partido que em seu nome se oferece à intermediação.

Observa-se, por igual, o desgaste da alternativa populista-partidária. Não há por que a burguesia inten­tar o diálogo intermediado, se ela já pode, hoje, no Brasil, conversar diretamente com o proletariado orga­nizado.

Esse quadro parece-nos animador para os parti­dos que, recusando o papel da intermediação, ousem assumir a missão revolucionária da defesa da luta ope­rária, da abolição da sociedade de classes, da radical

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transformação da sociedade capitalista, substituída pela justiça social e pela liberdade que só se realiza em uma sociedade socialista.

Abre-se, dessa forma, para os panidos da esquerda socialista, isto é, aos não-romprometidos com o projeto da intermediação, e por isso panidos revolucionários, espaço o mais amplo possível, caminho o mais fecun­do. Esse espaço será ocupado por aquela organização moderna, contemporânea, histórica, democrática, que se identificar, diante da sociedade, dos trabalhadores, dos assalariados em geral, como habilitada, pela sua militância e pelo seu programa, pela sua inserção social e pela sua presença no movimento sindical, como ca­paz de empunhar a bandeira do socialismo e da revo­lução.

Se o Panido Socialista Brasileiro não tivesse, e tem, todas as razões históricas, éticas e estraté~icas para negar a alternativa socialdemocrata e afirmar-se como panido radicalmente revolucionário e socialista, teria ainda todas as razões da conveniência tática, dita­das pelo quadro cie realidade da política brasileira.

É o que intentaremos demonstrar.

VI. O ESPAÇO DO PSB

1. Introdução

Nossa tese é esta: não tivéssemos todas as razões estratégicas para radicalizar a opção socialista (e co-

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mo as temos!), ainda assim nos sobrariam razões táti­cas. Delas trataremos a seguir.

O PSB reafirma sua opção tática pela política de freme, de freme popular e democrática com a hege­monia de esquerda. Se esta tese exigisse um modelo, indicaríamos a Freme Brasil-Popular transitando para o palanque do segundo rurno da campanha de 1989. Esta tese reforça a compreensão da necessidade do crescimento conjunto de todos os partidos de esquer­da, condenando e jamais praticando a política, ainda vigente na esquerda, de políticas isoladas de cresci­mento que muitas vezes têm como pressuposto o en­fraquecimento das demais organizações.

O PSB também reafirma a condenação de todos os projetos exclusivistas, políticos e ideológicos. Assim não ser um "partido-único" nem reivindica qualquer sorte de exclusivismo, seja da militãncia, seja da teoria e da prática socialistas.

Nada obstante cumpre-lhe atuar de acordo com os dados da realidade, que revelam um enfraqueci­mento, senão mesmo em alguns setores o abandono, das teses do socialismo.

2. - Quadro partidário no qual operam nossas escolhas

Em que pesem as críticas tradicionais de esquerda à socialdemocracia e, no nosso caso, ademais da crítica, a denúncia da intempestividade do projeto socialde­mocrata brasileiro, verifica-se, em seu sentido, uma inflexão da esquerda historicamente socialista. De es­pecioso registre-se que essa inclinação não considera o desvanecimento da única opção partidária nomeada­mente socialdemocrata.

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2.1- Do PCB ao PPS O Partido Comunista Brasileiro, herdeiro das lutas

a que tanto nos temos reportado neste ensaio, renun­ciou ao peso dessa responsabilidade. O seu processo de crise, da crise de interpretação do processo revolu­cionário brasileiro, e da crise de identidade dele decor­rente, a crise que diremos instaurada a partir da catás­trofe teórico-prática de 1964, alcança concomitante­mente seu clímax com os reflexos, internos, da implo­são do leste-europeu e da visão de socialismo a ele imanente. O fracasso de um e de outro aprofundou, apressando seu desfecho, a crise da organização comu­nista brasileira. Não estamos fazendo qualquer sorte de crítica aos companheiros do PCB quando afirmamos que a decisão de extinguir o antigo partido e organizar o PPS significou, numa ruptura histórica, tanto o aban­dono do socialismo quanto a opção pela socialde­mocracia, como veículo e fim. Esta opção, se não está clara no discurso partidário programático, está evi­dente no discurso de seus principais líderes e, princi­palmente, em sua práxis política.

Queremos dizer que o PPS, seja porque não mais se proponha a tal, seja porque perdeu condições obje­tivas para tal, não empunha mais a bandeira do socia­lismo.

2.2 - O populismo de esquerda Também não a empunha, se em algum momento,

depois do encontro de Lisboa, realmente d~sejouem­punhá-la, o PDT, esquecido, até mesmo do SOCialismo moreno". Seus líderes, mais precisamente seu grande líder, apegado à denúncia das perdas internacionais

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(pleito que pode ser levantado por outras correntes políticas, mesmo não socialistas ou de esquerda), não apenas arquivaram o projeto socialista, como fazem questão de afirmar seus vínculos nacionais e interna­cionais com a socialdemocracia alemã, preferentemen­te.

Não é sua, portanto, a bandeira do socialismo Não o é, e os pedetistas não desejam que o seja mais. A rosa vermelha pode ser trocada por um CIAC.

2.3-O socialismo dificilmente "democrático" Empunha-a, ainda, a bandeira socialista, o PCdoB,

mas lhe faltam condições histórico-objetivas, biográ-ficas mesmo, para a defesa do socialismo democrático. Seus vínculos honestamente expostos, até ontem, com o stalinismo e a via albanesa, impõem uma revisão que, ademais do tempo, exige uma autocrítica que pode levar a uma autodescaracterização cuja conclu­são, se não aponta necessariamente para o caminho adotado pelo ex-PCB, pode levar ao enquistamento político, valer dizer, a uma sobrevivência sem condi­ções de expansão, sem a qual o projeto político, que não pode dissociar-se de condições objetivas de con­quista do poder, perde também suas condições subje­tivas e objetivas de sobrevivência.

2.4 - O novo petismo O Partido dos Trabalhadores, o maior partido de

massas do País e o maior partido da esquerda brasi­leira, não se apresenta disposto a empunhá-la. Sua opção parece mais tática do que estratégica, a governa­bilidade, construída a partir da tese de que Lula será inevitavelmente o futuro presidente da República. De-

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rivada dessa tese, ao nosso ver de factibilidade ainda carente de demonstração, vem o estabelecimento de uma tática que, a) não prejudicando a tese, b) facilite o governo, seja i) viabilizando-o eleitoralmente (afir­mando a tese de sua capacidade gorernística, calca­nhar-de-aquiles da campanha passada), ii) viabilizan­do-o institucionalmegte (isto é, premunindo-se dos anticorpos do golpismo). O que quer que seja está a exigir compromissos objetivos com a burguesia.

Este projeto, por óbvio, teria conseqüências tanto programáticas, quanto em sua política objetiva, e, por­tanto, na política de alianças. É emblemático, Pürt.anto. que esse PT, reafirmando-se oposicionista, privilegie, nas relações orgânicas de cúpula, partidos como o PMDB e o PSDB, e lideranças como Quércia e Jereissati (enquanto nas bases as alianças se dão com os partidos de esquerda) e que, no Congresso, privilegie as ques­tões exageradamente superestruturais, adotando mes­mo o discurso, originário da direita, formulado por Sarney e repetido por Collor, da ingovernabilidade decorrente do estatuto constitucional de 1989. Preocu­pados com a crise institucional -crise que é o cavalo­de-batalha da direita para a reforma constitudonal na qual as masSas nada têm a ganhar -, esse importante segmento da esquerda brasileira ignora a crise consti­tuinte, a crise decorrente da natureza do poder.

Se, a longo prazo, nós, as pessoas, estaremos mor­tas, como há tanto tempo nos lembra a sentença de Keynes, as instituições correm o risco de se surpreen­derem com os resultados de determinadas políticas de curto prazo. O oportunismo político do PMDB em

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1984- a ansiedade em face do poder imediato­pode estar afastando-o do poder definitivamente. Nin­guém parece colher a lição.

Os resultados do Primeiro Congresso do PT apon­tam para essa revisão de conteúdo e objetivos, donde também revisão de meios. A ipclinação mais ao centro implica, a um tempo, o afastamento das teses do socia­lismo e uma aproximação pragmática no rumo da so­cialdemocracia. Como bem esclareceu a lucidez de Florestan Fernandes (Ver, no BS n9 4 seu artigo 'Con­gresso mostrou força do centro'), a "promessa de 'construção do socialismo' passou por uma deflexão. Prefere-se a luta pela hegemonia à "luta de classes", como se aquela pudesse ser dissociada desta. Em con­seqüência, o socialismo equaciona-se aberta e sistema­ticamente como uma seqüência de sucessivas 'melho­rias' desencadeadas de cima para baixo. O requisito dessa orientação consiste na permanência no poder estatal".

O que parece demonstrado é que, à renúncia socialista, por esses partidos, corresponde o engarrafa­mento da via socialdemocrata, nos impedindo, ao PSB, a disputa nesse espaço, se em face dele não nos moves­sem antes outras opções estratégicas. Isto é, se pudés­semos ser outra coisa senão socialistas. Queremos di­zer que para o PSB - partido que deve ter vivos e presentes projetos de curto, médio e longo prazos, distintos e nem sempre sucessivos - estão dadas as condições objetivas para tomar a si a bandeira do socia-

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lismo democrático. Só a história, derivada de nossa prática, poderá dizer se estamos ou não à altura desse desafio.

VII. ALGUMAS POUCAS QUESTÕES TÁTICAS

1. Introdução

A esquerda brasileira, e aí nos referimos ao seu conjunto, donde não haver absolvição para o PSB, tem sido presa, em sua atividade política, por toda sorte de armadilhas. Todas elas de origem ideológica, e mui­tas já foram referidas neste texto. Por sem dúvida que todas essas armadilhas têm conseqüências na atividade política prática. Já tratamos de questões como a "mo­dernidade" e o "socialismo acabou". No geral elas representam a infiltração, no pensameto de esquerda, originariamente marxista, de categorias antiesquerdis­tas, originárias do liberalismo. Donde os nossos "des­vios" na apreciação de questões outras como a demo­cracia e a institucionalidade, sistemas de governo, pro­cesso eleitoral-representativo etc. Uma das questões graves, a tal respeito, é a atividade parlamentar.

Tirante aqueles partidos cujas bancadas, de com­posição exageradamente corporativa, têm insuperáveis dificuldades para entender o papel em si do parla­mento, perdidos que estão para uma atuação conse-

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qüente, nossa crítica se volta á imcompreensão, pela esquerda, do papel, qe um seu papel no Congresso, e. do próprio papel do. Congresso.

2. A armadilha parlamentar A primeira armadilha, ou contaminação ideoló­

gica, seria essa d~ .não perceber papéis diferenciados no Congreso, comO' se existisse essa figura única do "parlamentar", e, dela determinante, a suposição da existência de um só papel para todos os parlamentares.

Queremos dizer que os partidos de esquerda em geral- e o PSB em particular- ainda não souberam definir o papel do parlamentar de esquerda, de parti­cular socialista, no Congresso brasileiro, para assim tratarmos da questão de forma a mais objetiva possível. Ou seja, a esquerda, ou seja, para o que nos diz respeito de forma mais particular, o PSB, aceita o script conser­vador segundo o qual existiria o parlamentar brasi­leiro, donde um papel, um determinado papel a de­sempenhar.

Propomos a ruptura radical dessa compreensão que põe no mesmo plano, paralisando o primeiro, o parlamentar de esquerda e o parlamentar reacio­nário, o socialista e o liberal, como se a cada um não correspondesse uma natureza distinta de repre­sentação, e, portanto, uma natureza distinta de man­dato.

O parlamentar socialista no parlamento burguês, nomeadamente quando minoritário (o PSB tem onze parlamentares, e todas as forças progressistas vão um pouco além de uma centena de parlamentares em um colégio superior a 500 votos), tem que ter cons-

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ciência da importância, mas igualmente das limitações, de seu espaço, imponânda e limitações que exigem uma atuação diferenciada, basicamente de classe, em função dos interesses e dos segmentos sociais que representamos. Para esses segmentos pode não ser fundamental nossa atividade legiferante, e nós pró­prios devemos permanentemente pôr em questão o próprio papel legiferante do Congresso, e nele nosso papel. Tanto uma como outra coisa visam à despoli­tização da política.

Essa atividade legiferante, quando exercida, quan­do necessariamente exercida, não pode sê-lo desapar­tada de sua preeminência política, que menos visa à correção de uma determinada anomalia da sociedade de classes (embora não desprezemos essa possibili­dade quando_ se apresente) e mais reforça o seu papel didático, pedagógico, estratégico. Mais do que perma­nentemente derrotados agentes de correção do capita­lismo (mercê de uma atuação legiferente que esbarra no colégio de líderes, no controle das comissões e no plenário, nos vetos presidenciais e na distorção das máquinas administrativas quando a tudo vence) deveremos ser vitoriosos aríetes do sistema.

Parece-nos evidentemente claro que o eleitorado fluminense , para tratarmos a questão pelo método exemplar, faz uma escolha de condutas e produtos quando, deixando de votar em um Dornelles ou em um César Maia, vota em Jamil Haddad. Deste não está esperando nem a defesa do monetarismo, nem a "cor­reção" de rumos dos "pacotes" econômicos, mas a posição de vigilância ativa em defesa dos trabalha­dores.

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Queremos resgatar, com tudo isso, um certo papel de eminência política, característico da vida parlamen­tar brasileira, cassado pelos governos militares. Quere­mos, enfrentando toda a ideologia dominante, que a atividade parlamentar não se encerre nas quatro pare­des dos túneis d0 Congresso Nacional. Queremos di­zer que a atividade parlamentar se exerce dentro do Congresso (e nem sei mesmo se nele se exerce a sua melhor parte), mas se exerce também fora dele, quando o nosso parlamentar está representando os interesses que o levaram ao Congresso, quando está atuando junto à sociedade civil, contribuindo para sua organização e sua defesa, quando está, com sua pre­sença, garantindo a mobilização das massas, atuando nos confrontos sindicais, contribuindo para a constru­ção de maiores vínculos de solidariedade de classe. Estamos convencidos de que os camponeses e peque­nos proprietários rurais de Pernambuco, as massas do Recife, quando votaram em Miguel Arraes, não esta­vam esperando desse líder que se rivalizasse com Ro­berto Magalhães em iniciativas diferentes, ou que se deixasse seqüestrar no plenário, preso a horários de inutilidade política, votando o que antes o colégio de líderes decidiu que seria votado e com.o. E quando a bancada de nosso Partido se reúne para decidir como votará nesta ou naquela questão, espera-se, não pode estar sendo movida pelo processo legislativo congres­sual, mas pela oportunidade de, nele, definir-se para a sociedade. As massas desprotegidas de Pernambuco e do Brasil precisam de Arraes valendo-se do peso de sua biografia para ajudar o processo social, onde quer que ele se trave, e não poucas vezes ele se trava

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fora do plenário ele nossas casas legislativas. Livre, ca­minhando pelo país, ouvindo e falando, viabilizando projetos políticos, possibilitando o diálogo entre as forças políticas. Ao contrário, esse nosso líder é obri­gado a ficar preso em Brasília, precisamente no Con­gresso, de terça a quinta-feira de toda a semana -preso na abstração da cúpula metafórica do gênio ar­quitetônico de Niemeyer -, enquanto o mundo, lá fora, é palmilhado pelas massas agônicas, apartadas de suas lideranças. Tudo isso porque a direita decidiu, e a grande imprensa por ela ditou, que papel de parla­mentar, de todo parlamentar, portanto até do parla-mentar socialista, é nenhum, isto é, votar em votações já decididas.

À armadilha ideológica, segue-se a armadilha fi-sica.

3. Parlamentarismo A questão, evidentemente, não pode ser resolvida

nos limites deste texto, até porque envolve questões programáticas, de solução já incorporada pelo con­junto da militância.

O PSB, para que não corra o risco de cair numa armadilha idealista, não pode definir-se como simples­mente parlamentarista, sem definir que parlamenta­rismo propugna para as condições objetivas brasileiras, e sem definir também suas condições de implantação e exercício. Porque o "parlamentarismo" não é uma categoria científica, incontroversa, mas uma ideologia, e, nestes termos, definível ad nauseam, havendo defini­ções e conceitos para todos os sabores do espectro político.

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Esta definição é urgente pois estamos às portas do Plebiscito de 1993, se não estivermos mais próxi­mos da repetição de golpes legislativos como aquele do Ato adicional de agosto de 1961.

Afinal é possível que o PSB, o PSDB e o Dr. Ulysses defendam o mesmo sistema de governo?

4. A via parlamentar A última questão tática a aflorar, talvez perdida­

mente atrasada em face do adiantado do processo elei­toral nos municípios, é a reafirmação da opção eleitoral partidária nos termos hoje presentes, e nesta opção privilegiar a eleição do maior número possível de ve­readores, e vereadores orgânicos, isto é, comprome­tidos com a programática e a organização partidárias. As eleições majoritárias, principalmente nos pequenos e médios municípios, deve ser vista de forma crítica, considerando as condições objetivas de sua contri­buição para a construção partidária, as condições obje­tivas de realização em administrações diferenciadas e que se processem dentro de um complexo de coali­zação política que contemple o maior número possível de partidos progressistas. O apoio político e parla­mentar, e o apoio político-popular devem ser vistos, igualmente, como instrumento valioso na conservação dessas administrações no campo popular, resistindo ao assédio e às chantagens dos governos estaduais conservadores.

VIII. APOSTANDO NO RJTIJRO

1. Introdução (ou o Catastrofismo n9 2) ·O catastrofismo, no plano caboclo, tem duas ver­

sões, perversas, mas, nada obstante, fáceis de serem

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destruídas. Uma fala, como desdobramento do "fim do socialismo" lá na Europa, no fim da opção eleitoral socialista entre nós. Talvez seja essa uma explicação para determinadas guinadas de determinados partidos e líderes populares. Uma outra, sem vínculos neces­sários com esta, fala não para combatê-las, nas dificul­dades que estariam bloqueando os passos futuros de nosso partido. A tentativa de refutação a essas duas deturpações deverá concluir estas teses, crescente­mente controversas. Menos nestes pontos, esperamos.

2. O fim da perspectiva eleitoral socialista

A perspectiva de retrocesso do voto socialista e de esquerda pode ser refutada de plano com a simples lembrança do quadro eleitoral de 1989, com o desem­penho dos candidatos de esquerda nos dois turnos, e com o avanço que imaginamos haver sido observado em 1990, este em relação ao desempenho de 1986, quando crescemos, comparativamente, tanto nas elei­ções proporcionais quanto majoritárias.

O avanço de 1989 vale por si, mas não seria nada mal também sua comparação com o quadro político anterior, e os pleitos presidenciais antecessores.

Estamos a ver avanços eleitorais e políticos. Lembremos que até o colapso do regime de 46,

com a ascensão do militarismo, os partidos comunistas estavam proscritos, legalmente, e, a rigor, não existiam partidos de esquerda no _País. O PTB, onde militavam políticos de esquerda, era um partido que, no máximo, poderia ser considerado como majoritariamente pro­gressista. E a aliança progressista do País, no Catete e no Congresso, reunia o petebismo ao pessedismo,

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.:onservador e rural. À sua direita a UDN, liberal-con­servadora-castrense.

No Congresso, "avançada" politicamente era a Frente Parlamentar Nacionalista, opositora do ffiAD, o "Centrão" da época. Mas se era a esauerda de então, não era esquerJa que se possa comparar com a esquer­da de hoje, pois chegava a reunir a frente nacionalista, os conservadores da "Bossa nova" udenista- Sarney, Seixas Dória, Edilson Távora-, pessedistas como. Da­goberto Sales, e petebistas e os poucos comumstas disponíveis, eleitos pelas mais diversas siglas.

Não se conheciam governadores de esquerda, e como tal não se poderia considerar o Governador Brizola eleito em 1958 no Rio Grande do Sul, numa campanha em que, apoiado pelos integralistas, rene­gara o apoio e os votos dos comunistas gaúchos.

Havia, sim, Miguel Arraes de Alencar, Governador de Pernambuco, submetido a um regime de quaren­tena pela burguesia nacional, isolado dentro do gover­no Goulan, e fisicamente sitiado pelo III Exército. A fúria repressiva que se abateu sobre aquele Estado, em 1964, é por si uma explicação.

Os únicos temas ideológicos possíveis eram as teses gerais do nacionalismo, já vimos, e a reforma agrária, essa argüida mais intensamente nos anos que precederam o golpe militar.

O movimento sindical era controlado pelo que então se denominava de "peleguismo", uma liderança organizada à sombra do Ministério do Trabalho. À sua direita o resto. Entre um e outro uma pequena faixa onde atuavam os comunistas, com alguma inde-

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pendência, mas, no processo de radicalização política, que foi também um processo de cooptação, crescente­mente próximos dos interesses do PTB, isto é, do Mi­nistério do Trabalho.

Por então, nada obstante os governos democrá­ticos de Juscelino e)ango, inexistiam as centrais sindi­cais. As greves eram ilegais, e os sindicatos submetidos à burocracia federal.

Por fim, se ainda necessário, lembremos a diversi­dade das questões que encerraram as características do pleito e dos candidatos das duas últimas eleições, Jânio x Lott em 1960 e Lula x Collor em 1989.

Os partidos comunistas foram legalizados (se o PCB renunciou à saga, isso é outra história), o movi­mento sindical apartou-se do estado, as centrais sindi­cais se firmaram, e se firmaram os partidos de esquer­da, nos legislativos e nas eleições proporcionais, em­polgando prefeituras municipais, governos de Estado e podendo caracterizar-se, no Congresso Nacional, co­'mo uma bancada que reúne um mínimo de cem parla­mentares. Tudo isso de 1988 para cá, portanto após a queda do "muro".

3. As perspectivas eleitorais de 1992

Em 1990 o PSB elegeu 11 parlamentares federais, após haver incorporado aos seus quadros o ilustre Senador José Paulo BisoL Em 1986 havíamos elegido, e elegido mal, um só deputado. Naquelas eleições havíamos elegido parlamentares estaduais tão-só em Alagoas e no Rio de Janeiro. Em 1990 elegemos em Rondônia, Amapá, Maranhão, Ceará, Pernambuco, Ba­hia, Espírito Santo, São Paulo, Paraná e Rio Grande

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do sul. Hoje, temos parlamentares estaduais em Rondô­nia, Amapá, Maranlião, Ceará, Paratba, Pernambuco, Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Tocantins. Em 1988 havíamos elegido vereadores em Manaus, Macapá, Fortaleza, Recife, Ara­caju, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Hoje, falando só das capitais, temos vereadores em Macapá, Manaus, Belém, Fortaleza, João Pessoa, Recife, Maceió, Rio de janeiro e São Paulo. Disputaremos, com candidaturas próprias, as eleições de Porto Velho, Belém, São Luís, Natal, Recife e Maceió. Compondo a chapa majoritária com a indicação do vice-prefeito disputaremos as elei­ções de Belo horizonte, Macapá e Aracaju. Sem ne­nhum baluartismo, podemos afirmar que o partido tem todas as condições para eleger vereadores (ainda tratando só das capitais) em Porto Velho, Boa Vista, Macapá, Manaus, Belém, São Luís, Teresina, Fortaleza, Natal, João Pessoa, Recife, Maceió, Vitória, Rio de janei­ro, Porto Alegre, e Palmas. Tem condições favoráveis em Salvador, Aracaju e Belo Horizonte, e possibili­dades em Florianópolis, Curitiba, Goiânia e Cuiabá.

E, na sua bancada federal, a figura Miguel Arraes de Alencar, o Deputado Federal que conquistou a maior votação da história do País, em termos não só relativos como absolutos. E uma das mais notáveis lideranças deste País, em toda a história republicana. Nós apostamos no avanço das idéias socialistas e do PSB.

Quem viver, verá.

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O VELHO ESTADO DO

NEOLIBERAUSMO E O

NOVO SINDICALISMO

DO VELHO

CORPORATIVISMO

j

O VELHO ESTADO DO NEOUBERAUSMO E O NOVO SINDICAUSMO DO

VELHO CORPORATIVISMO

"A!é agora nosso protecionismo extremo é que nos deu um poder inteiramente compe­titivo nos negócios internacionais."

Sbitaro Isbihara

Tbe japan That Can Say No (O Japão que pode dizer não)

O Estado não deve interferir nas regras do merca­do, a não ser, evidentemente, par.a defender o empre­sariado, multinacional de preferência, porque a nova ordem nos ensina que é de bom tom o máximo de cortesia com o capital estrangeiro. As regras do mer­cado devem ser livres e cegas, isto é, sem controle algum, social ou político, uma anarquia segundo a qual "quem for podre que se quebre" (a isto, alguns

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economistas intelectualizados chamam de darwinism social). E assim é, mas tão-só enquanto esta cegueir serve ao capital. Assim, por exemplo, a liberação dos preços ao consumidor, orgasmo supremo do libera­lismo, se faz pari passu com o controle dos salários.

Quem for podre que se quebre. De forma tosca, conquanto que real, aí está a

síntese do credo do velho liberalismo, chegue-nos pe­lo original inglês de Adam Smith, chegue-nos pelo café requentado dos Campos, chegue-nos pela discur­seira neo-semãntica falsamente moderna da socialde­mocracia, de Delfin ou César Maia, José Serra e ... até! Mercadante e outros menos presentes nas colunas de potins da grande imprensa. Filiações partidárias conve­nientemente à parte.

Discutamos essa questão, nada teórica, à luz de um fato concreto. Para tal propósito a chamada indús­tria automobilística nacional reúne todos os ingredien­tes neces.~ários .

Comecemos com a rarmgerada proteção alfande­gária. Os grandes estados hoje industrializados, defen­sores do "livre comércio" - Estados Unidos, Europa desenvolvida e Japão-, são (hoje) contra as barreiras alfandegárias (que os países em processo de industria­lização impõem a alguns produtos) de que tanto se beneficiaram em seus respectivos projetos de constru­ção nacional e, continuando contra (para efeito dos outros), delas ainda se beneficiam (Estados Unidos e Japão, principalmente, oferecem exemplos nume­rosos e conspícuos). E sempre foram favoráveis, ontem e hoje, quando se tratava ou se trata de, nos países seus protetorados (Brasil sob a preeminência inglesa,

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por exemplo), defender seus produtos da concorrên­da dos demais países seus contemporâneos. Haverá ainda necessidade de exemplificações históricas?

Apenas um episódio, para lembrar que a questão, mesmo entre nós, é tão velha quanto a Sé de Braga. Que foi o famoso trancamento dos portos brasileiros, determinado pela Corte à Colônia condenada a preser­var-se bela, conquanto inculta e atrasada, senão fazer­nos reserva de mercado para os seus produtos e os dos seus senhores eventuais, espanhóis e ingleses? E que foi a abertura dos portos de 1808 senão o fecha­mento deles a qualquer navio que não os de Sua Majes­tade britânica?

aquele então, "livre comércio" era isso, mares livres a todos os navios, menos àqueles que concor­ressem com os produtos ingleses, fossem escravos, fosse o açúcar das Antilhas, fosse o linho, fosse o que fosse. O liberalismo era garantido pelas canhoneiras da Rainha. O Brasil imperial teve uma só dúvida a este respeito e conheceu a prepotência inglesa na "Questão Christie (1862/3)".

O Brasil republicano começa com a lei de prote­ção ao similar nacional, base do P• J jeto industrialista de Rui Barbosa, Ministro da Fazenda do Governo provi­sório de Deodoró. Pouco viveu, pois em seu lugar reinariam o livre-cambismo e o livre-comércio e o liberalismo (em síntese, a política do café-com-leite): o agrarismo da primeira república que, pouco menos de 40 anos passados, nos daria o país que nos deu em 1930. Nossa pobreza e nosso atraso, absoluto e relativo, no qual ainda vivemos, têm ali suas principais raízes.

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O projeto industrialista, com base na projeção ao similar nacional só seria retomado, como política de desenvolvimento, no Segundo Governo Vargas, com o fecho histórico conhecido. Sem jamais haver deixado de sofrer contestações internas e externas, a não ser naqueles poucos casos em que o "similar nacional" era um subproduto industrial do capita­lismo internacional, como as "carroças" das monta­doras de autos. Mesmo os que defenderam essa reser­va, para muitos decisiva para o surto industrialista dos anos 50, mesmo esses eram e são contra outras reser­vas. Assim, por exemplo, os países industrializados, Estados Unidos à frente, e seus porta-vozes da moder­nidade, nacionais, são contra, agora, a reserva na infor­mática, defendem a lei de patentes e são contra a indústria farmacêutica nacional. São contra a concep­ção de "indústrias estratégicas", vigente na Europa e no Japão principalmente, que obriga o Estado a gran­des investimentos, como na indústria aeronáutica e aeroespacial. Por isso, e ningúem tem mais direito à inocência, o desmantelamento do Estado brasileiro, e a privatização da Embraer, em particular; no geral, a destruição da pesquisa tecnológica. Mas as mesmas vozes que dizem tudo contra a reserva em geral, são todas a favor dessa mesma condenada reserva de mer­cado ou protecionismo alfandegârio, quando se trata da chamada "indústria automobilística nacional". Por­que toda ela é multinacional. Originalmente Vemag (automóveis) e Mercedes-Benz (caminhões) e depois Volkswagen (Alemanha), Willys e General Motors (Es­tados Unidos), Simca (França) e Alfa-Romeo (Itália). Hoje Ford-Volkswagen (Autolatina), General Motors

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e Fiat. Nesse meio termo entrou e saiu a Chrysler (Estados Unidos). Permaneceu a Mercedes e ingressou, timidamente, a Volvo (caminhões). A FNM, que vinha desde o esforço de guerra, foi destroçada para facilitar o ingresso da Fiat. Vedado o ingresso pleiteado de franceses (Peugeot) e· japoneses. Nada de abrir o car­tório!

Essas empresas se instalaram no Brasil e aqui ga­rantem sua lucratividade contrariando os princípios da lenga-lenga liberalóide, das tais regras do mercado, livre concorrência, da livre iniciativa e do privatismo, em nome de cuja defesa, aliás, se implantou em nosso País uma longa ditadura ... Instalaram-se com incentivos fiscais e muitas vezes ajuda fmanceira do Estado ( exem­plos típico da Fiat e da Volvo, mas não só delas), com o mercado nacional fechado para a importação dos carros de suas concorrentes; e durante mais de trinta anos impuseram os preços que sempre desejaram (e a má qualidade e o atraso tecnológico) em nome de uma liberdade de mercado que jamais conheceu a concorrência. E nada obstante tantos benefícios jamais se sentiram comprometidas socialmente com este País. Nas crises econômicas, só conhecem dois remédios, aplicados sempre em dose dupla: demissão e aumento de preços.

Neste ponto, esta mesma indústria ilustra outra falácia do capitalismo: a livre-concorrência.

A formação desse setor, no mundo, e brutalmente no Brasil, é oligopolística, o que, assegurando acordos prévios dos fabricantes, desmascara a disputa de mer­cado e esmaga o consumidor, sem defesa. Os acordos

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são previamente acertados, anunciados em conjunto, unilateralmente. As regras do mercado são postas na lata do lixo e ficam apenas no discurso de economistas comprometidos com essa imoralidade. Entre nós, esse absurdo chegou ao ponto de dois fabricantes se asso­ciarem formando uma terceira figura jurídica (Autola­tina) controlando 55% do mercado de automóveis. No dicionário desse velho liberalismo não existem oligopólio, cartel, trust ou monopólio ... Em nome des­sa mesma livre-concorrência, ou liberação das regras do mercado - e eis outro exemplo - o Governo desregulamenta a aviação comercial: as três compa­nhias, livres, ficam livres para acertar o aumento livre das tarifas e a administração das linhas, e desse uni­verso "concorrencial" de três, duas fazem entre si um acordo de operação e promoções comerciais, e preços e serviços e demissões etc. Mas livres também ficaram. para exigir empréstimos do Governo, muito típicas negociatas, como é o caso da Vasp, sob a chantagem coletiva dos riscos à segurança dos vôos decorrentes da crise financeira delas. (A-propósito, ninguém está interessado em informar que, por exemplo, aLufthansa é uma empresa de economia mista, a KLM, como quase todas as grandes companhias aéreas, estatal, e estatal é a Renault, base da indústria automobilística france­sa .. .). Também não se noticia que a saneadíssima Usimi­nas está cobrando empréstimos do Estado, do Estado que a vendeu porque nela não podia mais investir .. .

Mas ainda nenhum exemplo é tão completo quan­to o fornecido pela "nossa indústria" automobilística: no dia 22 de abril de 1992, logo após o acordo doro­theovicentiniano, a Volks aumentou o preço de tabela

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de todos os seus modelos em 20,80%, o mesmo au­mento dado, na mesma data, aos carros da Ford, da bolding comum, a Autolatina; na mesma data a GM aumentou o preço de seus produtos em 19,80% e a Fiat passou a "praticar" um índice de aumento variá­vel entre 18,50 e 21,50% ... A isso, os liberalóides mo­demidstas chamam de livre concorrência, privatiza­ção, modernização ...

Mas não é só assim que essa indústria - estamos tratando apenas de um exemplo, um entre inumeráveis, de oligopólio- burla as tais "leis" do mercado. Ela sim­plesmente dele não participa.

Nada menos que 80% das vendas de carros são hoje realizadas através dos famigerados consórdos. Tra­ta-se de venda cativa de quota responsável pelo quase total da produção, por preço de tabela estabeleddo unila­teralmente pelo produtor, sem quaisquer injunções de concorrênda, ou interferência da chamada lei da oferta e da procura, absolutamente anulada. De um lado, um fiel comprador, de outro um vendedor infiel. O fiel comprador compra a mercadoria por um preço que se altera mensalmente (ao menos) por decisão do fabricante; o incauto consorciado se compromete a pagar a compra de um carro certo, mas recebe um carro incerto, porque a montadora pode alterar as especificações, ou a administradora do consórcio, ou concessionária, impor acessórios; o comprador está preso a compromissos - um dos quais virtualmente o impede de sair do consórcio -, mas o fornecedor não os tem, pois ao final do prazo, ou sorteado, ou

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valendo-se de lances, o consorciado pode ficar sem carro, ou pode ser obrigado, para não ficar sem dinhei­ro e sem carro, a ter que receber carro mais caro (em qualquer hipótese sempre com alienação fiduciá­ria), pagando a diferença à vista; se o consorciado atrasar suas prestações, incorre em mora, multa, corre­ção, e ainda é obrigado a pagar segundo o rateio da data efetiva do pagamento, isto é, absorvendo todos os aumentos do período; se o consórcio atrasa a entre­ga do carro, não incorre em pena alguma. Mas o con­sorciado pode desistir do negócio: ao fmal do consór­cio, 25/50 meses passados, receberá suas prestações pelo valor histórico, sem juros e correção. É isso o livre-contratu;dismo ... Mas o esbulho, sob proteção das autoridades fazendárias e do Banco Central, não se esgota; ao retirar o seu carro, por qualquer das formas, o consorciado recebe um veículo que no mercado já está valendo menos 20% , que é a diferença entre o preço de tabela (ao qual o consorciado está preso) e o que realmente é "praticado" pela revendedora. E ladrão é o pixote, é o punguista ...

A esse tipo de negócio correspondem, repitamos, 80% das vendas de carros no Brasil; dos restantes 20% , uma outra quota de venda por preços de tabela (ou seja, "praticados" à margem das "leis" do mercado), cabe à União, aos Estados e aos Municípios, outros compradores cativos, de preços cativos. Para o suposto "mercado" desse suposto capitalismo, aquele da "con­çorrf>ncia", quanto sobrará?

Pois é uma "indústria" assim quem em um pais em meio a brutal recessão - que já tirou o emprego de mais de 1,2 milhão de brasileiros só na Grande

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São Paulo- que, protegida pela "desregulamentação liberalóide, decide aumentar a seu talante os preços de seus produtos, provocando na ponta, revendedores e consumidores, a..crise conhecida. As montadoras ale­gam a necessidade de recuperar ganhos supostamente perdidos pelas políticas anteriores de controle de pre­ços, o que, aliás, ilustra uma outra característica desse · nosso capitalismo cartorial: o capital, que não pode ter prejuízos ou diminuição de suas largas margens de lucro, pode ~cuperar ganhos supostamente perdi­dos; mas o trabalhador, que pode e é demitido, não tem direito à recuperação do poder de compra (com­provadamente perdido!) de seu salário! Para o capital, todos os seguros, para o salário. todos os riscos. A i~o;o se chama UVlt:, nessa nova neo-semanuca, ruuClona­mento do mercado. Ou, modernidade. O salário míni­mo deveria ser superior a 280 mil cruzeiros (e ainda assim permaneceria como um dos mais ínfimos do Terceiro Mundo) e reajustado mensalmente - até o Governo o reconhece -, mas ele é fixado em 230 mil cruzeiros e reajustado quadrimestralmente, em índices inferiores ao da acumulação inflacionária, para não prejudicar os Governos estaduais e os empre­sários ..

Diante dos preços majorados artificialmente e dos pátios conseqüentemente abarrotados de carros sem saída, que fez o Governo? Deixou que as "regras do mercado", que aviltam os salários, interviessem, e a famo­sa lei da ofena e da procura determinasse o preço "justo"7 Pensou em formas alternativas de produção para aquele parque industrial, como ambulãncias, tra-

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rores, moro-bombas e sei lá mais o quê? Não. Sentam-se a Sr' Dorothéa, os empresários, o Sr. Fleury e o Sr. Vicenànho, ameaçada promessa de um líder metalúr­gico à altura da sucessão de Lula. Sentam-se e se dão as mãos para salvar... a margem de ganhos desse capital espoliativo! O Governo da União e os Governos dos Estados de São Paulo e Minas Gerais renunciam a parte de seus impostos (isto é, renunciam a um quantum de salários para os funcionários públicos, a um quan­rum de segurança para a classe média, a um quantum de escola pública, a um quantum de postos médicos, a um quanrum de estradas, a um quantum de serviços públicos ... ); o sindicalista renuncia à data-base do rea­juste da categoria, os consumidores renunciam a tudo, e as multinacionais renunciam ... a nada. Já vimos que as montadoras voltaram a aumentar os preços logo após o "acordo histórico entre indústria, Governo e trabalhadores" como o classificou a grande imprensa brasileira. E novos aumentos são anunciados quase quinzenalmente. E as demissões voltam à ordem do dia, começando pela Mercedes Benz. (A propósito, um desafio ao leitor, para resposta em cinco minutos: qual o nome do atual Ministro do Trabalho?)

O que se tentou registrar aqui, ademais das maze­las desse capitalismo arcaico, substantivamente inepto e aéàco, agravado pelo neo-semanticismo do neolibe­ralismo modernóide, que muda o nome do entre­guismo larvar, é o perigo da cooptação do sindicalismo sério por esse ideologismo antitrabalhador e antina­ção. A isto podemos ser levados pela exrremação do corporativismo, ameaçado em suas bases pela escro­queria do sindicalismo de resultados.

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Os partidos de esquerda não podem reduzir a questão social à questão sindical, nem os sindicalistas reduzir o sindicalismo aos interesses corporativos de uma determinada categoria. Precisamos todos ter a coragem de, sempre, enfrentar sempre as questões em sua globalidade; aos sindicalistas é preciso reco­mendar a necessidade de suas lideranças compreen­derem as limitações de seu reformismo insuperável (donde a condenação ao reducionismo sindical) que, nele, é limitação a ser superada (e que só pode ser superada) pela via político-partidária revolucionária, isto é, fora dele. E quando o partido político deixa de ver a distinção entre a proposta transformadora da sociedade e a proposta reformista do sindicato, entre a proposta sindical mais ampla e a simples defesa de um interesse corporativo, de uma determinada cate­goria, apartada dos interesses das massas, esse partido corre o risco de perder seu destino revolucionário.

Nós não temos o que comemorar com esse acordo que não pode virar paradigma para a vida sindical brasileira, embora possa render elogios da grande im­prensa a sindicalistas de esquerda, dos quais se requer resistência aos estrelismo fácil que as posições equivo­cadas sempre proporcionam.

Mudemos, pois, o título deste artigo: O velho esta­do do neoliberalismo e o velho corporativismo do novo sindicalismo.

(Publicado originalmente no Brasil Socialista n' 6)

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DIRETÓRIO NACIONAL DO PARTIDO SOCIALISTA BRASILEIRO

ELEITO EM 28-6-1992

TITIJLARES

Deputado Federal Jamil Haddad (RJ); Deputado Federal Miguel Arraes (PE); Robeno Amaral (RJ); Antônio Houaiss (RJ); Ministro Evandro Lins e Silva (RJ); Deputado Federal José Carlos Sabóia (MA); Deputado Federal Uldurico Pinto (BA); Juarez Pinheiro (RS); Ayezo Campos (SC); Gracialino Dias (PR); Deputado Estadual Gilson Menezes (SP); Jaime Cardoso (RJ); Deputado Estadual Renato Casagrande (ES); Deputado Federal Célio de Castro (MG); Maria Salete Almeida e Silva (BA); Vereador Ronaldo Lessa (AL); Jocelino Menezes (SE);

]()5

Gilvan Braz de Macedo (PB); Walteir Silva (PE); Rinaldo Barros (RN); Deputado Estadual Eudoro Santana (CE); Francisco de Paula Leite (PI); Conceição Andrade (MA); Ademir Andrade (PA); Raquel Capiberibe (AP); José Sebastião Alves Teixeira (AM); Deputado Estadual Ernandes Índio (RO); Amaro Ventura (RR); Deputado Estadual Beto Albuquerque (RS); Renato Soares (ES); Vereador Leopoldo Paulino (SP); José Rosa de Oliveira Neto (SE); José Reinaldo Falcão (AL); Walton Miranda (CE); Orlando Bordallo (PA); Gildelson Felício de Jesus (BA); Márcia Machado (ES); Deputado Federal Sérgio Guerra (PE); Deputada Federal Maria Luiza Fomenelle (CE); Waldo Silva (MG); Rodrigo Rollemberg (DF); ]ames Lewis (DF); Vereador Odinarte Borges (MT); Líder do Partido na Câmara dos Deputados; e Líder do Partido no Senado Federal.

SUPLENTES

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Antonio Fomelles (PA); Waldson Pinheiro (RN);

Vereador Serafim Correa (AM); Sebastião de Abreu (DF); Carlos Maria Schimit (BA); Antonio Vicente (RJ); Nelson Marzullo (PA); Pedro Maciel (SP); Paulo César Ribeiro (RJ); Clóvis Barbosa de Melo (SE); José Tarcísio Caixeta (MG); José Francisco (PA); José Costa (MA); Elias Antonio Jorge (MG); e Luiz Gonzaga Contart.

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COMISSÃO EXECUTIVA NACIONAL DO PARTIDO SOCIALISTA BRASILEIRO

ELEITA EM 28-6-1992

TI11JLARES

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Deputado Jamil Haddad - Presidente; Deputado Miguel Arraes de Alencar- 1° Vice-Pre si dente;

Ademir Andrade - 2° Vice-Presidente; Raquel Capiberibe - 3• Vice-Presidente:

Roberto Amaral Vieira - Secretário-Geral;

Renato Soares - 1° Secretário; Waldo Silva - 29 Secretário; Deputado Uldurico Pinto - Tesoureiro; Deputado Beto Albuquerque - 1 o Tesoureiro;

Deputado José Carlos Saboia - vogal; Vereador Ronaldo Lessa- Vogal · Vereador Leopoldo Paulino -Vogal; e

Márcia Machado -Vogal.

SUPLENTES

Walteir Silva - 19 Suplente; ]ocelino Menezes ~ 29 Suplente; Rodrigo Rollemberg - 39 Suplente; Maria Salete Almeida e Silva - 4• Suplente; e ]osé Sebastião Socprro Alves Teixeira - 59 Su­plente.

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2BCENTRoÓRÃnco OOSENAOO F'EDERAL

o.s 12340192

Outru pahlicações ela Secretaria-Geral do PSB

Câmara dos Deputados, Anexo li, Sala 29, te!. : 244-8493 Brasília- DF

1-A Política do PSB - 1986 2 - Resoluções do I Congresso Nacional do PSB -1987 3- A Política do PSB (0 PSB e a Frente Brasil Popu­lar) - 1989 4- li Congresso Nacional - Relatório da Secreta­ria-Geral - 1989 5-O PSB e as eleições presidenciais - 1990 -Informe da Secretaria-Geral 6- A Política do PSB -'- 1990 7 - A Política do PSB (Indicações do li Congresso Socialista para participação da militância nas elei­ções presidenciais) - 1990 8- A Politica do PSB (Os socialistas e a via parla­mentar - Informe do Secretário-Geral Roberto Amaral)- 1990 9- Socialismo e Liberdade - Antonio Houaiss e Roberto Amaral- 1990 10- O PSB e os pacotes econõmicos- 1990 11 - O PSB, as eleições e a unidade das esquerdas -Roberto Amaral- 1991 12- O PSB e a guerra- 1991 13- Resoluções do III Congresso Nacional do PSB -1991 14- Variações em torno do conceito de democra­cia- 1992 15-Jornal BRASIL SOCIALISTA n"' O a 6