18
Robison Wells A Floresta Mecânica Os Variantes Tradução Catarina F. Almeida Floresta Mecânica-3.indd 5 12/09/20 10:04

Robison Wells A Floresta Mecânica - planeta.pt · – Infelizmente, não – retorquiu, com mais um sorriso caloroso. – Ainda tenho muito que fazer hoje. Se entrar, começamos

Embed Size (px)

Citation preview

Robison Wells

A Floresta MecânicaOs Variantes

TraduçãoCatarina F. Almeida

Floresta Mecânica-3.indd 5 12/09/20 10:04

,

Planeta ManuscritoRua do Loreto, n.º 16 – 1.º Direito

1200 ‑242 Lisboa • Portugal

Reservados todos os direitosde acordo com a legislação em vigor

© 2011, Robison WellsPublicado com autorização de HarperCollins Children s Book,

a division of HarperCollins Publishers© 2011, Planeta Manuscrito

Título original: Variant

Revisão: Eulália Pyrrait

Paginação: Maria João Cifka

1.ª edição: Setembro de 2012

Depósito legal n.º 341 682/12

Impressão e acabamento: Guide – Artes Gráficas

ISBN: 978‑989‑657‑276‑1

www.planeta.pt

Floresta Mecânica-3.indd 6 12/09/20 10:04

Para Erin, a minha melhor amiga

Floresta Mecânica-3.indd 7 12/09/20 10:04

9

Capítulo 1

– Este não é um desses colégios que nos intimidam logo à chegada, pois não? – perguntei à senhora Vaughn, enquanto passávamos pelo pesado portão em malha de aço. A vedação devia ter uns três metros e meio de altura e culminava em espirais de arame farpado, como as que se viam nos parques de bens penhorados e nas prisões. Uma câmara de vigilân-cia, montada no cimo de um poste, era o único sinal de que aquele lugar era habitado – alguém, algures, observava-nos.

A senhora Vaughn desvalorizou a pergunta com um risinho.– Tenho a certeza de que será muito feliz aqui, senhor Fisher.Encostei a cabeça à janela e contemplei a paisagem. A floresta não

se assemelhava a nenhuma outra que eu tivesse visto. Na Pensilvânia, os parques eram verdes. Árvores, arbustos e trepadeiras brotavam, viçosos, de qualquer mísero quadrado de terra. Ali, a mata era seca e castanha e parecia que um fósforo apenas seria suficiente para incendiar aquilo tudo.

– Há cactos aqui? – perguntei, ainda a olhar para as árvores. Embora não gostasse desta versão de floresta, tinha de admitir que superava as minhas expectativas. Quando lera, no sítio, que a Maxfield ficava no Novo México, tinha imaginado áridas dunas de areia, um calor asfi-xiante e cobras venenosas.

– Não creio – respondeu a senhora Vaughn, sem sequer se dar ao trabalho de olhar lá para fora. – Penso que é mais provável encontrar cactos no Sul do estado.

Floresta Mecânica-3.indd 9 12/09/20 10:04

10

Robison Wells

Não respondi e, um momento depois, ela acrescentou:– Não me parece muito entusiasmado. Mas garanto-lhe que se trata

de uma magnífica oportunidade. Maxfield é a vanguarda da investiga-ção pedagógica...

Ela continuou a falar, mas eu ignorei-a. Há quase três horas que me fazia aquela conversa, desde que me viera buscar ao aeroporto de Albu-querque. Não parava de usar palavras como pedagogia e epistemologia, coisas que não me despertavam grande interesse. A verdade é que eu não precisava que ela me dissesse que era uma grande oportunidade – já o sabia. Afinal, tratava-se de um colégio privado. Tinha de ter bons professores. Talvez até tivesse manuais suficientes para todos os alunos e uma caldeira de aquecimento a funcionar durante o Inverno.

Candidatara-me àquela bolsa sozinho. Alguns orientadores esco-lares já tinham tentado persuadir-me a participar naquele tipo de programas, mas eu resistira sempre. Quando entrava num liceu novo – e tinham sido dezenas –, procurava convencer-me de que esse seria o tal. O liceu onde acabaria por ficar mais tempo e, quem sabe, talvez jogar na equipa de futebol americano, candidatar-me à associação de estudantes ou arranjar uma namorada. Meses depois, era transferido e tinha de começar tudo de novo.

Era assim o acolhimento familiar. E, desde que entrara para o pro-grama, aos cinco anos, eu já tinha acumulado trinta e três famílias adop-tivas por toda a cidade. A que durara mais tempo fora uma família de Elliott, com quem vivi quatro meses e meio. A estada mais curta durara sete horas: no dia em que cheguei, o pai foi despedido; a família telefo-nou para a assistência social e comunicou-lhes que já não tinha dinheiro para me sustentar.

Os mais recentes tinham sido os Coles. O senhor Cole era dono de uma bomba de gasolina e pôs-me a trabalhar ao balcão logo no primeiro dia. No princípio, era apenas ao fim da tarde, mas, pouco depois, come-cei a trabalhar aos sábados e aos domingos e, algumas vezes, até, antes

Floresta Mecânica-3.indd 10 12/09/20 10:04

11

Floresta Mecânica

de ir para a escola. Acabei por faltar às provas de selecção para a equipa de futebol e à cerimónia de recepção dos novos alunos. Nunca podia ir a uma festa – não que me tivessem convidado para alguma. Quando pedi para ser pago pelo meu trabalho, o senhor Cole disse-me que eu fazia parte da família e que não devia esperar que me pagassem por dar uma ajuda. «Nós não estamos à espera que nos paguem por ajudar-te a ti» foram as suas palavras.

Por isso, candidatei-me à bolsa de estudos. Fazia parte de um pro-grama qualquer de apoio aos desfavorecidos, para miúdos em famílias de acolhimento. Respondi a algumas perguntas acerca da escola – exa-gerando um pouco as minhas notas – e preenchi um questionário a res-peito da minha situação familiar. Recebi o telefonema na tarde do dia seguinte.

Nessa noite, não cheguei sequer a aparecer na bomba de gasolina para fazer o meu turno. Deixei-me ficar na rua até tarde, a percorrer os bairros onde tinha crescido, e parei na Ponte de Birmingham, a con-templar a cidade que, se tudo corresse bem, nunca mais voltaria a ver. Não tinha sempre odiado Pittsburgh, mas também nunca tinha amado aquela cidade.

A senhora Vaughn abrandou e, dali a pouco, um imponente muro de tijolo apareceu à nossa frente. Era, pelo menos, tão alto como a vedação em rede de aço, mas, enquanto esta me parecera relativamente nova, o muro era antigo e já se lhe viam as marcas do tempo. O modo como se prolongava para ambos os lados, seguindo o contorno das colinas e quase assumindo a cor da terra arenosa, fazia com que parecesse uma parte natural da floresta.

O portão no muro, pelo contrário, não tinha nada de natural. Parecia feito de aço grosso e sólido e, ao abrir-se, deslizava apenas um centíme-tro acima do asfalto. Tive a sensação de estar a entrar na caixa-forte de um banco.

Mas, do outro lado, estendia-se de novo a floresta desidratada.

Floresta Mecânica-3.indd 11 12/09/20 10:04

12

Robison Wells

– Que área tem este lugar?– É bastante grande – respondeu ela, com um sorriso de orgulho.

– Não sei as medidas exactas, mas é muito vasto. E isso, ficará satisfeito por saber, dá-nos espaço de sobra para actividades ao ar livre.

Minutos depois, as árvores começaram a mudar. Em vez de pinhei-ros, filas de algodoeiros ladeavam, agora, a estrada e, por entre os seus troncos largos, entrevi pela primeira vez a Academia Maxfield.

O edifício tinha quatro andares e, provavelmente, cem anos de idade. À volta, havia um relvado cortado rente, árvores podadas e flores plantadas. Parecia um desses colégios que eu tinha visto na televisão, para onde vão os miúdos ricos com os seus BMW e os seus Mercedes. A única coisa que faltava eram as trepadeiras nas paredes de pedra, mas não devia ser fácil fazê-las crescer no meio do deserto.

Eu não era rico, por isso, não ia ser como eles. Mas tinha passado a minha viagem de avião a inventar uma boa história. O meu objectivo era integrar-me naquele lugar e não ser o pobre miúdo adoptado de que todos fariam pouco.

A senhora Vaughn virou o carro na direcção do edifício e abrandou até parar diante dos imponentes degraus de pedra que conduziam às portas de entrada.

Em seguida, destrancou as portas automáticas do carro, mas não tirou o cinto de segurança.

– Não vai entrar? – perguntei. Não que me apetecesse continuar a falar com ela, mas estava mais ou menos à espera que me apresentasse a alguém.

– Infelizmente, não – retorquiu, com mais um sorriso caloroso. – Ainda tenho muito que fazer hoje. Se entrar, começamos todos a con-versar e nunca mais de lá saio. – Pegou num envelope que estava em cima do banco e entregou-mo. O meu nome, Benson Fisher, figurava na frente, dactilografado em letras minúsculas. – Entregue isto a quem lhe fizer a orientação. Penso que costuma ser Becky.

Floresta Mecânica-3.indd 12 12/09/20 10:04

13

Floresta Mecânica

Peguei no envelope e saí do carro. As pernas doíam-me da longa viagem e aproveitei para desentorpecê-las. Estava frio e dei graças por ter vestido a camisola dos Steelers, embora soubesse que era demasiado informal para aquele colégio.

– A sua mala – disse ela.Olhei para trás e vi a senhora Vaughn recolher a minha mochila do

chão do carro.– Obrigado.– Divirta-se – replicou. – Palpita-me que se sairá muito bem na

Maxfield.Agradeci-lhe outra vez e fechei a porta do carro. Ela arrancou de

imediato e eu fiquei a vê-la afastar-se. Como era hábito, ia entrar na minha nova escola sozinho.

Respirei fundo, absorvendo o espaço novo em meu redor. O ar ali tinha um cheiro diferente – não sei se era do deserto, ou das árvores secas, se era apenas o facto de estar muito longe do fedor da cidade, mas agradava-me. O edifício à minha frente erguia-se, majestoso e pro-missor. A minha nova vida encontrava-se no interior daquelas paredes. Quase me deu vontade de rir olhar para as portas de madeira maciça com relevos esculpidos e compará-las com as do liceu público de onde eu tinha saído. No liceu, as portas da entrada eram pintadas todas as semanas, para cobrir os graffiti, e as janelas estreitas tinham sido perma-nentemente substituídas por contraplacado, depois de os vidros serem estilhaçados um sem-número de vezes. Ali, as janelas eram grandes e reluzentes, e...

Reparei, pela primeira vez, que as vidraças do último andar estavam repletas de rostos. Alguns fitavam-me, apenas, mas vários apontavam e gesticulavam, chegando mesmo a gritar, sem som, do outro lado do vidro. Olhei para trás, mas não percebi bem ao que se referiam.

Voltei a olhar para eles e encolhi os ombros. Numa janela do segundo andar, mesmo por cima das portas da entrada, vi uma rapariga

Floresta Mecânica-3.indd 13 12/09/20 10:04

14

Robison Wells

de cabelo castanho com um bloco-notas na mão. Nele, e enchendo uma página inteira, tinha desenhado um V grande e a palavra bom. Quando viu que eu tinha reparado nela, sorriu, apontou para o V e espetou o polegar para cima.

Instantes depois, ouvi o ruído estridente de uma campainha e um clique, e as portas abriram-se. Do outro lado, apareceu uma rapariga, mas foi empurrada para o lado por dois alunos – um rapaz e uma rapa-riga –, que saíram do edifício, vestidos com o uniforme que eu tinha visto no site: camisola vermelha por cima de camisa branca e calças ou saia pretas. A rapariga, que parecia da minha idade ou um pouco mais velha, desceu os degraus de um salto e desatou a correr atrás do carro da senhora Vaughn. O rapaz, alto e corpulento como um linebacker1, agarrou-me no braço.

– Não dês ouvidos a Isaiah ou a Oakland – disse-me, com firmeza. – Nós estamos presos aqui dentro. – Antes de eu abrir a boca, já ele tinha partido, disparado, atrás da rapariga.

1 O linebacker é uma posição de defesa do futebol americano e canadense. (N. da T.)

Floresta Mecânica-3.indd 14 12/09/20 10:04

15

Capítulo 2

Fiquei a vê-los correr. Voaram pelo relvado, atalhando sem abrandar pelos jardins cuidadosamente arranjados, e desapareceram no meio do arvoredo. Se a intenção era apanhar a senhora Vaughn, não tinham qual-quer hipótese. Esperei alguns instantes, para ver se tornavam a aparecer, em vão.

Virei-me e olhei de novo para cima, para as janelas. Nem todos esta-vam de uniforme, mas até as roupas mais informais pareciam diferen-tes das que os adolescentes usavam no lugar de onde eu vinha. Algumas eram antiquadas – camisas abotoadas até ao pescoço, suspensórios e chapéus – e outras faziam lembrar o estilo exagerado dos rappers: cheios de correntes douradas e bandanas. Era Novembro – talvez estivessem a festejar o Halloween fora de época. Ou a ensaiar uma peça de teatro.

Reparei que alguns continuavam a gritar. Levantei as mãos, fazendo sinal de que não conseguia perceber o que diziam.

A porta da entrada tornou a abrir-se e uma rapariga saiu – a que fora empurrada. Vinha sorridente e descontraída, como se nada tivesse acontecido. Não tinha mais de dezasseis anos.

– Deves ser Benson Fisher – disse ela, e estendeu o braço, para eu lhe dar um aperto de mão.

– Sim – repliquei, devolvendo o aperto de mão, embora o gesto me parecesse estranho. Os adolescentes não se cumprimentam com aper-

Floresta Mecânica-3.indd 15 12/09/20 10:04

16

Robison Wells

tos de mão. Talvez fosse mais uma mania dos colégios privados. O pai dela devia ser um empresário rico qualquer.

– Chamo-me Becky Allred. Sou eu que faço a orientação dos novos alunos. – Sorriu de orelha a orelha, como se nada daquilo fosse invulgar. Tinha o cabelo curto e castanho, impecavelmente ondulado e encaracolado – parecia um penteado saído dos filmes antigos, a preto e branco.

Olhei de relance para baixo, para o envelope que trazia na mão.– Então, és tu a Becky a quem devo entregar isto?– Tal e qual – respondeu ela, tirando-me o envelope das mãos.

– E isto é o teu boletim escolar.Apontei para os estudantes nas janelas, que continuavam a olhar

fixamente para nós.– O que se passa lá em cima?Ela acenou-lhes com a mão.– Nada – replicou. – É só o entusiasmo de verem uma cara nova.Aquilo parecia um eufemismo. Alguns até estavam a dar murros nas

vidraças.Forcei o riso para disfarçar a minha perplexidade.– E aqueles dois a correr, o que foi aquilo? – Apontei para trás, para

a floresta. Nenhum deles tinha regressado.O sorriso de Becky nunca se desfez, mas notei que o nariz e os olhos

se tinham franzido. Pensou um instante antes de responder.– Julgo que estão apenas a correr – disse, por fim. – Não sei ao certo

porquê.Enfiando o braço no meu, começou a subir os degraus da entrada.

Cheirava bem – uma espécie de perfume floral.A resposta que me tinha dado não era a explicação que eu queria.

Era evidente que sabia mais acerca dos dois corredores do que estava a querer dizer-me. Oxalá fosse uma partida qualquer.

– Quem são Isaiah e Oakland? – perguntei.

Floresta Mecânica-3.indd 16 12/09/20 10:04

17

Floresta Mecânica

Ela deteve-se um instante – de uma forma quase imperceptível – e continuou a andar.

– Como assim?Fosse qual fosse o segredo que estava a tentar guardar, Becky não

era muito hábil. Talvez se tratasse de uma espécie de praxe: pregar um susto de morte ao miúdo novo.

– Isaiah e Oakland – repeti. – O rapaz que desatou a correr disse-me para eu não lhes dar ouvidos.

Ela parou e pôs as mãos nas ancas, virando-se para mim. O sorriso colara-se ao seu rosto e riu-se quase como uma pessoa normal.

– Bem, não é nada que eu não esperasse daqueles dois. Penso que irás perceber sozinho, Benson, que este colégio tem os seus desordeiros, tal como todos os colégios. Estão a tentar assustar-te. E o que seria de esperar de duas pessoas que violam as regras de forma tão flagrante?

Aquiesci e subi mais um degrau. A resposta dela fazia sentido. Talvez devesse preocupar-me quando conhecesse alguém chamado Isaiah ou Oakland. Que raio de nome era Oakland, afinal?

Espera aí.– Violam as regras? – perguntei, olhando para trás, para a floresta.

– Em que medida estão a violar as regras?Becky abriu a boca para falar, mas não articulou uma palavra. Vi-a

balbuciar um instante e senti um nó no estômago. O que quer que estava ali a acontecer era estúpido. Eu até podia ser o miúdo novo que não tinha um papá rico a pagar-lhe as propinas, mas viera para Maxfield para me livrar das porcarias que aturara a vida inteira em liceus miseráveis. E não ia permitir que um par de punks snobes se pusesse com jogos psicológicos comigo só porque eu não tinha dinheiro. Ia falar com o director.

Suspirei e galguei os degraus que faltavam até à porta de madeira, mas esta não se abriu quando rodei a maçaneta. Becky aproximou-se e, ao chegar ao pé de mim, ouvi a mesma campainha e o mesmo clique

Floresta Mecânica-3.indd 17 12/09/20 10:04

18

Robison Wells

que já tinha ouvido antes. Ela agarrou na maçaneta e puxou a pesada porta para si, abrindo-a.

– Eles estão... – começou por dizer e, depois, parou e começou de novo. – Ninguém deve falar com os novos alunos antes de eles terem tido a orien-tação – explicou-me, atabalhoadamente. – É uma das regras, é só isso.

Parei à entrada e olhei para ela fixamente. Parecia insegura do que estava a dizer.

– Isso não faz sentido nenhum. E tu não és a verdadeira Becky, pois não?

O sorriso rebentou-lhe no rosto outra vez. – Sou, sim, não duvides. E não duvides de que estou aqui para aju-

dar-te com a orientação. É esse o meu trabalho.– O teu trabalho?– Todos nós temos trabalhos aqui – disse ela. – Fazemos a nossa

parte para ajudar, porque dependemos todos uns dos outros. Estamos aqui, neste colégio, tão longe de tudo. É como se fosse a nossa própria sociedade, em miniatura.

– Isso quer dizer que vou ter um trabalho? – Não havia nada no site que o mencionasse e já quase me fazia lembrar a bomba de gasolina dos Coles.

– Claro – replicou ela. – Todos nós temos trabalhos.– Podes levar-me ao director? Quero falar com ele. A situação já me tinha parecido um pouco estranha, mas, de súbito,

fui assaltado pelo ridículo de estar a conversar com Becky acerca daque-les assuntos. A senhora Vaughn dissera um disparate qualquer a respeito de os alunos terem oportunidades de liderança, mas eu já estava farto de ouvir a presidente da associação de estudantes – ou lá o que Becky era – a fazer-me aquela conversa para iniciados.

– Bem – começou ela –, e se fôssemos para o meu gabinete e fizés-semos a orientação primeiro? Tenho a certeza de que isso vai responder a algumas das tuas questões.

Floresta Mecânica-3.indd 18 12/09/20 10:04

19

Floresta Mecânica

– Deixa-me explicar-te uma coisa – retorqui. – Acabei de chegar de um voo comprido e de uma longa viagem de carro. Não me sinto bem e quero deitar-me um pouco. Não preciso de orientações, porque já sei como funciona uma escola. Já andei em milhares de escolas na minha vida e, em todas elas, um orientador ou uma secretária sentaram-me numa cadeira e disseram-me que eu podia inscrever-me na Sociedade de Honras ou no Clube de Ciência, coisas que eu já sei. Não podemos ir já ao director e tratar daquilo que interessa?

– A orientação é aquilo que interessa – replicou Becky. E, de novo, enlaçou o seu braço no meu, tentando que eu a seguisse. Resisti. Devia ter mais vinte quilos do que ela, tanto em músculo como em altura, e não saí do mesmo sítio.

– Primeiro quero ir falar com o director.O rosto de Becky iluminou-se com um sorriso deliciado – que era

tão falso quanto rasgado.– És tão determinado. Acho isso formidável.– O quê? – Eu mal podia acreditar naquele número de circo. Nada

na orientação podia ser tão importante como ela queria dar a entender. Era como se estivesse a tentar impedir-me de falar com o director.

– Só estou a dizer que dá muito jeito ter uma pessoa como tu neste colégio.

Ri-me, embora não soubesse porquê. Talvez porque aquilo só podia ser uma piada.

– Que idade tens, Becky?– Dezasseis, quase dezassete – respondeu, com alegria. – Faço anos

no fim de Outubro.Aquele sorriso colara-se-lhe ao rosto como o sorriso de uma guia

turística. Era isso que ela era: uma guia turística, cheia de sorrisos e de frases feitas.

– Sem querer ofender – repliquei –, podes indicar-me onde está a verdadeira Becky?

Floresta Mecânica-3.indd 19 12/09/20 10:04

20

Robison Wells

– O que queres dizer com isso? – Deixou a mão deslizar da maça-neta e a porta fechou-se devagar.

– Quero dizer que não acredito numa palavra do que tu disseste. Isto não passa de um jogo estúpido.

– Eu sou a verdadeira Becky – retorquiu ela, o receio a crescer-lhe nos olhos.

– Não, não és, e nem sequer sabes mentir. Disseste que o teu aniversário ia ser no fim de Outubro. Já estamos a 2 de Novem- bro.

Becky abriu a boca, mas não disse nada. Recuou um passo e olhou para a floresta ao fundo. Os dois corredores tinham acabado de sair do arvoredo e o vibrante vermelho-cereja das suas camisolas parecia reluzir à luz do Sol da tarde.

– Portanto – continuei –, já chega de tretas. – Agarrei na maçaneta da porta, mas estava trancada outra vez.

– Eu sou Becky – disse ela, com os braços cruzados sobre o peito.– A porta está fechada porquê?– Eu sou Becky – repetiu.– Não quero saber – retorqui. – Como se destranca a porta? Quero

falar com o director.Ela virou-se e fitou-me, com uma ferocidade no olhar. – Eu sou Becky Allred. E estou a dizer a verdade.– Não me interessa quem tu és. Quero falar com o director.O sorriso já lhe desaparecera do rosto, substituído por um olhar fixo

e ameaçador. – Nós não temos um.O quê?– Nós não temos um director – disse ela. – Não temos professo-

res e também não temos orientadores. É por isso que sou eu a fazer a orientação.

– Não há um... Isto é, vocês não têm...

Floresta Mecânica-3.indd 20 12/09/20 10:04

21

Floresta Mecânica

Becky tentou voltar a pôr um sorriso na cara, mas saiu-lhe uma coisa débil e forçada.

– Este colégio é diferente dos outros.– Então, quem dá as aulas?– Nós – respondeu ela. – Os alunos. Dão-nos planos de aulas.– Não acredito – retorqui. – Isso não explica o teu aniversário. Por

que razão mentiste acerca disso?O sorriso voltou em força.– Não é uma mentira. Sei que parece estranho, e será mais fácil per-

ceber quando fizermos a orientação até ao fim. Mas... – Fez uma pausa, ponderando as palavras. – Nós não temos calendários.

– Estás a brincar.– Não.– Não podem ver nos vossos computadores? Todos os computado-

res têm a data.– Os nossos não. Mas vais receber um portátil só para ti, sabias?Era inacreditável: apesar de tudo o que tinha acabado de dizer,

Becky continuava a tentar vender-me a ideia de que o colégio era mag-nífico.

– Mas não podes enviar um e-mail a alguém? Ir à internet?Ela tornou a franzir o nariz.– Os nossos computadores não têm acesso à internet.Aquilo era um absurdo.– E a tua família, não te telefonou a dar-te os parabéns?– Também não há telefones.– Deixa-me ver se compreendi bem. Não há adultos neste colégio.

E não podemos falar com ninguém do exterior.Ela acenou com a cabeça, numa concordância constrangida.Apontei para os dois corredores, que agora estavam no relvado, de

mãos dadas, a olhar para trás, para a floresta. Viam-se pequenas nuvens de ar a sair das suas bocas quando falavam.

Floresta Mecânica-3.indd 21 12/09/20 10:04

22

Robison Wells

– Ele disse-me que estamos presos aqui dentro – afirmei. – Isso tam-bém é verdade?

– É.Ainda podia ser uma brincadeira. Tinha de ser uma brincadeira.– Eu não devia ter aceitado a bolsa.– Tudo depende da forma como olhares para as coisas – disse

ela. A sua voz era calorosa e alegre, mas desligada e distante, como se não estivesse, na verdade, a dirigir-se a mim. Mais uma frase decorada. – Há pessoas fantásticas neste colégio. Aprendemos muitas coisas inte-ressantes e acredita que pode ser muito divertido.

Imagino. Eu queria um bom colégio, e era aquilo que me davam. Num aspecto, a senhora Vaughn tivera razão: aquele lugar era diferente daquilo a que estava habituado. Na altura, julguei que estava a dizer-me que eu iria, finalmente, aprender alguma coisa e que os alunos não eram espancados no parque de estacionamento. Mas o que ela quisera dizer--me era que se tratava de uma prisão.

– Para que serve, então, este colégio? É para miúdos chanfrados?Becky deu uma gargalhada.– Não, é só um colégio. Vamos às aulas, organizamos bailes e faze-

mos desporto. – Lançou-me um sorriso malicioso. – Tu não és chan-frado, pois não?

Afastei-me dela, a perplexidade convertendo-se, de súbito, em fúria.– Como podes estar tão calma? Há quanto tempo é que algum de

vocês falou com alguém – apontei vagamente para o mundo do outro lado da floresta – «lá de fora»?

Becky olhou de fugida para o horizonte. O colégio ficava situado num ponto baixo da floresta e não se via muito para além das colinas onduladas e cobertas de árvores e dos contornos cinzentos e esbatidos de uma serrania distante.

– Estou aqui há cerca de um ano e meio – limitou-se a responder. – E não sinto falta disso. Tal como disse, as coisas aqui correm bem.

Floresta Mecânica-3.indd 22 12/09/20 10:04

23

Floresta Mecânica

– As pessoas recebem um diploma?– Ainda não – replicou. – Mas não creio que tenham idade sufi-

ciente. – Tornou a pegar-me no braço e virou-me de novo para a porta. – Que idade tens tu?

– Quase dezoito – menti, lembrando-me a seguir que ela tinha os meus dados. – Bem, terei dezoito daqui a cerca de nove meses. Ah, é verdade, parabéns. Tu também já tens dezassete.

Becky riu-se e aproximou-se da porta. Esta tornou a destrancar-se com um ruído de campainha e ela abriu-a.

– Gosto de ti, Benson. Vais sair-te bem aqui.

Floresta Mecânica-3.indd 23 12/09/20 10:04