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Rock Baiano - História de Uma Cultura Subterrânea

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Ednilson Sacramento

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C 2006, Gattopardo e-Books, Salvador, Brasil Capa e editoração Marcos Rodrigues Revisão ortográfica Jardelice Santa Isabel, Alice Monteiro e Fabiana A. Gomes Colaboração Nêio Mustafá _________ Sacramento, Ednilson Rock Baiano: História de uma Cultura Subterrânea, Vol.01 / Ednilson Sacramento. Salvador, BA, 2002. 1. Música – Bahia 2. Rock – Bahia – História I. Título CDU 784 (813.8) _________ Todos os direitos reservados lei 5.988/73. Nenhuma parte desse livro pode ser reproduzida, por qualquer meio, sem consentimento prévio, por escrito, do autor.

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Este trabalho é dedicado a todos aqueles que buscam o direito à alteralidade, que desenvolveram a

capacidade de amar a vida, aos que não entram nas estatísticas, que apenas sobrevivem.

À memória da minha mãe, D. Zizinha - um exemplo de mulher.

À minha mulher, Mariza - por me suportar.

Às minhas duas filhas, Desirée e Jaiasry - imprescindíveis.

Ao povo cubano, nas pessoas dos amigos Jorge Luiz, Leandro, Juan Carlos, Ada, Marelice e Marilyn

À Solange Bastos.

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APRESENTAÇÃO

Marcos Rodrigues * 1984. O ano emblemático de George Orwell também o foi para um monte de garotos em Salvador: aqueles que assistiam a aproximação da idade adulta, mas não viam muita perspectiva de dias melhores numa cidade que virou caricatura de si mesmo. Por essa época, uma enigmática caixa postal num anúncio de classificados da extinta revista Somtrês dava a senha: Círculo do Rock. Segui o coelho branco. Uma nervosa troca de cartas e, então, um volumoso catálogo em xerox abre as portas dos bootlegs alternativos. Hardcore finlandês, punk rock baiano, ska londrino. Bauhaus ao vivo em Eindhoven, Sex Gang Children no Royal Albert Hall e Camisa de Vênus no Forte de Santo Antônio. Mais cartas, mais selos e mais k7s em ferro e cromo. Até que um dia, um timbre de locutor de rádio surge do outro lado da linha telefônica. Era Ednilson Sacramento, o cara da misteriosa caixa postal. A voz grave e pausada escondia uma figura fisicamente frágil e de temperamento zen budista. E ele trouxe mais senhas: um boteco chamado Moto Lanches encravado entre a Lapa e a Barroquinha. E o álbum 'Tente Mudar o Amanhã' da banda paulista Cólera, que nos chegava em primeira mão. Esse cara, Ednilson, sempre foi uma das figuras mais importantes da cíclica 'cena baiana' de rock. Co-editor do célebre fanzine Espunk, junto com Williams Martins (Dever de Classe), esteve nos bastidores de quase tudo que valeu à pena no subterrâneo rock de Salvador. Produzindo, escrevendo, conspirando. No underground do underground: o punk rock soteropolitano. Aquele que passava pelos gigs ao lado das linhas de trem do subúrbio e pelas decadentes salas de espetáculos da cidade. Teatro das Oliveiras, Teatro Solar Boa Vista, Cine Roma, Vila Velha.

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Em 1996, com a internet nascente e a estética da MTV já dando as cartas, Ednilson volta à ativa, muito à frente do tempo. Inventa o originalíssimo Telefanzine, aproveitando os serviços de outra caixa postal, desta vez via telefone, e ajuda a alimentar uma nova geração com informações e uma espécie de tribuna livre, já prefigurando o que viriam a ser os blogs de hoje, com seus comentários. Em meio a toda agitação, Ednilson foi guardando material, coletando informação e fazendo algumas entrevistas. Personagem privilegiado da história recente do rock feito na Bahia, nos brindou com esse registro. Rock Baiano, História de Uma Cultura Subterrânea é o painel de quatro décadas do que se andou fazendo no lado mais alternativo desses trópicos, com especial ênfase à segunda metade dos anos 80, onde rock chegou a ser a maneira de viver de boa parte da cidade. Pronto e editorado, 'na unha', há cerca de 10 anos, o livro esperou todo esse tempo para vir à luz. Não perdeu, no entanto, sua atualidade. Faz o registro oportuno de uma época e ajuda a preencher as lacunas dessa história de altos e baixos que o rock na Bahia. No formato impresso foi lançado tal como foi concebido à época. Nessa versão eletrônica, passa por um desmembramento em cinco volumes e uma nova editoração para facilitar a leitura em tela. As poucas imagens da obra também só estão disponíveis no livro físico. O conteúdo em texto, no entanto, segue na íntegra e espero que essa sobrevida digital de Rock Baiano, História de Uma Cultura Subterrânea permita que se mantenha a atenção ao trabalho de Ednilson e que ele continue a iluminar novas cabeças. * Marcos Rodrigues é arquiteto e baixista da banda Theatro de Séraphin

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Introdução, 08

Essa Metrópole, 12

Os Primeiros Dias, 19

Programas de Rádio, 43

a Anarquia nas Ondas Aéreas

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INTRODUÇÃO

“ Pra mim o Rock’n’Roll morreu em 59. Hoje o que existe é o reflexo de uma época em nossa cultura ”

Raul Seixas

CUMÉQUIÉUNEGÓCIU? “Mas rapaz, como é que você perde tempo para falar de rock baiano? Qual é o rock que existe na Bahia, rapaz? Marcelo Nova foi o maior engodo, foi um blefe, se aproveitou dessa baianada da província; se você fizesse um livro sobre o rock brasileiro, menos mal, apesar de que no Brasil não tem rock, é outra merda. Rock é coisa de inglês, americano. Ôxente! Você não ouviu Rita Lee dizer que o rock só presta cantado em inglês? Até você, rapaz? Um bocado de bandinhas fuleiras: trash metal, Headhunter... você deveria publicar um livro com a verdadeira história do rock’n’roll: Elvis Presley, Chuck Berry, Iron Maiden,Rolling Stones. Um bocado de bandinhas de imitadores, Dorsal Atlântica, Sepultura. A imprensa enganando o brasileiro dizendo que o Sepultura é sucesso no exterior. Quando eu vejo um rock nacional, eu acho uma porcaria, não existe rock no Brasil. O rock do Brasil é a xerox do rock, imagine na Bahia: é a xérox da xerox, é a cópia da cópia. Porra nenhuma, rapaz. Aqui só tem roquezinho. Eu tenho uma revista americana onde eles botam os ‘100 Maiores de Todos os Tempos’, pode olhar prá ver se tem esse negócio de Pepeu ou Robertinho do Recife. Esse negócio de ufanismo bobo. Juca Chaves disse uma vez uma coisa certa: ‘eu não assisto a filme nacional, sou patriota, mas não sou idiota’. Eu gosto das coisas do Brasil, mas rock, não! Você tem que escrever um livro sobre a axé-music, Daniela Mercury, Netinho, essas porcarias. Aqui na Bahia é tão ruim que eu leio os jornais e nem sei quais

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as bandas que têm aqui. É 14º Andar, Treblinka. Oh! Ednilson, valeu o seu esforço, mas esqueça esse projeto. Por curiosidade, eu tenho uma revista que publicaram sobre o rock brasileiro, alguns personagens e tal, mas rock na Bahia... Quem vai comprar? Alguns bobos. O pessoal gosta mesmo é de Daniela Mercury; brasileiro, no geral, não tem bom gosto, não.”

Depoimento anônimo Caí no atrevimento de escrever algumas linhas abordando um tema, no mínimo, “desinteressante”. O meio subterrâneo na cidade de Salvador. Uma subcultura, apêndice nos interesses vigentes, “sem muita expressão”. Quiçá um gasto desnecessário de papel. Por que não escrever sobre vitaminas, menores de rua ou globalização das informações? Destinar 10% de capacidade mental para a realização de uma obra fadada a poucos curiosos é em primeira auto-análise, loucura. Uma frase sanfranciscana, que li num release do grupo Via Sacra, dizia que “a loucura é o sol que não deixa o juízo apodrecer”. Quem sabe, não há razão? Mas, quais razões levariam alguém a esse temerário ofício? A vontade de falar por aqueles que não falam. O tesão em contar para o mundo aquilo que se considera o “máximo”, crente que se está ‘abafando’ ao fazer uma viagem contra a correnteza. Dar o que falar. Dar um tapa na má memória dos descontraídos habitantes da terra natal. Dentre estas, outras justificativas serão adicionadas com o tempo. Querer retratar um cenário apontado como subterrâneo e montado numa freguesia explícita e tropical como a que lhe serviu de arena, é, sem a menor dúvida, uma temeridade. Por vezes - como disse Bob Marley - nós nos recusamos a ser o que eles queriam que nós fôssemos: fomos o que fomos. Este registro não tem o compromisso de catalogar nem classificar o quadro dinâmico de todas as manifestações do rock na primeira capital do Brasil,

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objetiva descrever fatos pitorescos inerentes aos grupos adolescentes envolvidos de alguma forma com a música de rua. Esta narrativa materializou-se abastecida por dados coletados pessoalmente, por documentos de arquivo, vivências, entrevistas, viagens, visitas “in loco” e pesquisas em periódicos e literatura de 2ª categoria por cerca de 10, 12 anos. Não tive a intenção de fazer o ABC ou a Bíblia do rock baiano. Apenas arrisquei traçar um relato histórico da música independente local como forma de expressão e contraponto. Um tratamento linear do rock não seria condizente em face da espontaneidade, tanto deste movimento musical quanto dos meios que utilizei para montá-lo. Ora pois, meus jovens; não me cobrem coesão ou exatidão. Se esta abordagem é anômala, a culpa não é só minha. Não fiz um trabalho sobre um movimento que deu certo ou que mais agradou. Muito menos por estar na ordem do dia. Apenas procurei trazer à superfície as manifestações de amor à vida, das sobras do banquete musical ou do caldeirão cultural. Condensei assuntos empoeirados em cima do guarda roupa, com entrevistas, papos, depoimentos, cartas e fanzines. Busquei situar a redação com fatos e tendências conflitantes, deixando por conta do leitor ou ouvinte o trabalho de crítica e análise. Confesso que também ajudei a construir o movimento. Fui mais que testemunha. Tentei driblar o vai e vem dos fatos: grupos formados na semana de fechamento da edição, grupos sumindo depois de ganhar repercussão no meio alternativo, patrocinadores fechando as portas, até alterações na língua portuguesa. É, meu caro, não foi fácil! No decorrer deste apanhado, procurei cercar-me da contribuição de pesquisadores, críticos e estudiosos da música pop, o que não se deu em maior escala devido a falta de tempo de alguns e à ausência de tantos, tornando-o, desde já, um relato incompleto. Talvez esse desfalque tenha afetado um pouco a abordagem, mas ao mesmo tempo deve ter deixado

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lacunas e discussões abertas para o florescer de novas pesquisas e consertos (ou concertos) daquilo que não foi suficientemente dissecado. Tanto irão se queixar da ausência de muitos grupos e outros reivindicarão uma maior atenção para o setor A ou B, mas quem sabe? Tais falhas lhes servirão de incentivo para a confecção da sua própria história.

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ESSA METRÓPOLE

Vamos falar sobre uma cena ocorrida num paraíso tropical com quase 50 quilômetros de praia, verão quase o ano inteiro, tido e vendido pelos órgãos de turismo como a “sensual land”. Uma síntese do Brasil ou do planeta. Essa é a terra que testemunhou os efeitos dos ruídos absurdos saídos de esgotos, garagens e sarjetas para a celebração da sua vertente subterrânea. Uma velha metrópole capital dos desiguais como brindou um shopping center em 29/03/94, quando da passagem dos 445 anos de fundação de Salvador. A BAHIA DOS CONTRASTES “Salvador é o caos urbano rodeado de belezas naturais por todos os lados. É a terra paradisíaca, explorada pelo cinema internacional e, diariamente, pelas câmaras sofisticadas dos milhares de turistas que a visitam. Com um clima tropical deliciosamente equilibrado - até mesmo a topografia rebelde conta a seu favor - a capital da Bahia destaca-se como uma das cidades que reúne algumas das mais belas paisagens do planeta. Tudo isso recheado por uma cultura rica e uma história que lhe garante o título de primeira capital do Brasil. Mas como omitir seus abismos sociais, suas valas e esgotos mal cheirosos, os meninos maltrapilhos nas sinaleiras, a sua porção violenta e cruel que se traduz em sofrimento e pobreza do seu povo?” O esquema da música baiana, surgido no princípio da década de 80, levantou cifras, extraordinariamente consideráveis, perpetuando-se no terreno popular de uma maneira nunca antes verificada. Conterrâneos como Caetano, Gil, Raul Seixas ou Glauber Rocha estiveram longe demais da mina de ouro.

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O estouro da música feita na Bahia, rotulada fonograficamente de “axé music” (termo pejorativo), fez com que se atingissem, em 95, índices oficiais de arrecadação anual de mais de um milhão de dólares. Em 88/89 cerca de 50% dos lançamentos de discos do Brasil eram de bandas baianas, sem falar que, em 95, quase todos os artistas locais gravaram suas músicas na terra natal. Se a produção do grande circuito esbanja números, o mercado independente - principalmente o de rock - perde feio ensombreado pela pressão da indústria cultural. Ainda em 95 e levando em conta uma razoável legião de admiradores, bandas independentes trocam o apoio cultural aos seus eventos por sanduíches e impressão de filipetas de divulgação. Considerando-se ainda um efetivo de dezenas de bandas e artistas marginais, esses músicos enfrentam o desdém e o silêncio como antes padeceram iniciativas tipo Sexteto do Beco e Os Tincoãs. E é dessa terra rica de ritmos e números que brotam ruídos avessos e diversidade de costumes, além de inesperadas manifestações culturais. À margem da produção oficial, circulam ativistas e inquietos manifestantes teimosos de encontro ao caminhar do rebanho. O palco dessas vertentes, muitas vezes ambíguas, é a terra tida como o nirvana, fama que lhe confere uma visitação turística grandemente provocada por seu cardápio musical. A produção independente aponta a “questão do incenso” – simbolismo utilizado quando se refere aos bastidores do meio político e artístico – que domina as relações de valores e preferências dentro do ambiente cultural: “É todo mundo incensando todo mundo, porque um depende do outro. Quando, por exemplo, uma moda ou um artista está em baixa, a incensação cessa e logo aquele incensador (bajulador) passa a incensar uma outra onda ou outra corrente; quando a canoa está virando, o sujeito pula para outra” (Marcelo Nova).

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A BAIANIDADE A terra do candomblé produz e consome a sua própria cultura e, entre esses dois estágios, desenha seu mais novo cartão postal que é vendido aos quatro cantos, depois de expandido em quase todo o Brasil. É baseado nesse ambiente nirvânico que especialistas executivos do setor cultural propagam a imagem santificada da Bahia. E fazem isso muito bem, a ponto de atingirem altos índices de conversão - para não dizer lavagem cerebral - entabulando até estudos para averiguar, por exemplo, a influência das ladeiras da cidade no desenvolvimento da manemolência do povo baiano ou projetando análises para evidenciar uma nova dança ou coreografia nascida a cada verão. No campo da música, esse esquema encontrou abrigo inigualável quando, nos primeiros anos da década passada, programadores de rádio e donos de blocos carnavalescos comungaram uma estratégia de pasteurização cultural sem precedentes, configurando um formato musical maciçamente inspirado no vazio, na ausência de texto e na selvageria da repetição. E assim se passaram anos de franca e produtiva movimentação musical. Daí em diante, o artista baiano se viu entre duas opções: entrar para a jogada ou assinar o suicídio e amargar a falta de espaço no universo da música local. A grande sacada dos promotores da música axé construiu rainhas e dinastias que brilham e somem a cada carnaval. Blocos carnavalescos investem alto em festas de janeiro a dezembro, praças e avenidas eram arenas para o espetáculo do descartável, do lucro fácil, pautados na monocultura musical. E o povo dançou como nunca havia dançado antes, cultivando uma síndrome em que a alegria, a beleza e a fantasia integram o circo. Não se pode esconder que a música baiana exerceu um papel preponderante dentro do panorama empresarial deste fim de século no que tange aos aspectos de mercado de trabalho e divisas culturais. Salvador cruza a década de 90 sendo a cidade mais sonorizada do país, sem que isso implique na melhoria da qualidade de vida de seus habitantes. A música nascida dos trios elétricos continua fazendo a explosão de alegria de

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janeiro a dezembro e, por conseguinte, aumentando o patrimônio de muitos dos seus articuladores. A CULTURA SUBTERRÂNEA NA METRÓPOLE REGIONAL A chamada cultura subterrânea ou cultura underground tem um perfil padronizado dentro de qualquer conglomerado urbano, principalmente nesses anos do pós-guerra. Na Bahia e, notadamente, em Salvador, as minorias marginalizadas conviveram (e convivem) com aspectos e fatores singulares. A Bahia que, em mais de quatrocentos anos de história, foi rotulada com paradisíacos apelidos - Terra da Felicidade, Boa Terra, Terra Sensual – rica em costumes e tradições culturais de invejável exuberância, parecia não ter espaços para focos de manifestações diferenciadas, de cunho acentuadamente urbano. Depois do apogeu econômico centralizado nas culturas agrícolas do café, cacau e cana-de-açúcar, o maior estado do Nordeste amargava a decadência da sua economia baseada no campo. Com essa situação, nossa terra depara-se com saídas emergenciais no campo da agro-indústria e, principalmente, no campo de serviços. Acompanhando o caminho de outras capitais, o estado convive consecutivamente com um fantástico êxodo rural que lhe adorna com visíveis concentrações de população no seio e cercanias da capital. Quanto mais aumentava a abrangência de seus problemas urbanos, crescia ainda mais o encanto e a beleza da sua feição. Para compor sua personalidade, a terra cuidou de preservar suas vocações culturais concentradas na herança perpetuada pelos negros, adicionando-lhe ingredientes de uma vastidão incomparável. A Bahia é a síntese do Brasil nos seus aspectos mais nativistas e antropológicos, florescendo a sua fama marcante juntamente com momentos de pluralidade cultural e econômica.

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Suntuosos prédios e shopping centers nascem como se estivessem apostando em um degrau mais cosmopolita onde pisam juntos o moderno e o tradicional. Claro que tomamos apenas o exemplo para situar o leitor dentro do ambiente maior da música. Da Blitz a Noel Rosa, todos puseram a terra em suas composições. Mas, registremos a retratação suja e despudorada das canções de rua. Na versão “Controle Total”, uma das pioneiras músicas interpretadas pelo Camisa de Vênus, a capital é tida como uma arapuca composta de todos os aparatos para impedir as contestações. “Identidade” é o título de uma outra composição do grupo, muito tocada nos shows iniciais, versando sobre a falsa aparência de seus cidadãos. Notabilizada pela ausência de comedimento, a crítica social constante no cancioneiro alternativo aparece aqui numa letra ( não editada em disco) do Delirium Tremens, grupo de 1984, que satirizava contundentemente a rotina soteropolitana em “Ociosidade Nessa Cidade”, obra de Jerri Marlon e Hélio Rocha:

Esta é a nossa cidade / Não, eu não sei / Realmente onde nós vamos parar / Onde iremos e o que faremos / E o que vamos encontrar / Porque essa é a nossa cidade / Problemas sociais e de estrutura / Que não lhe afetam em sua Cobertura / Não, eu não sei / Realmente em quem devo acreditar / Naqueles que mandam / Ou naqueles que dizem que deveriam mandar / Não temos problemas nem crises econômicas / Se tivéssemos não haveriam / Tantas obras faraônicas / Oh. oh, oh ociosidade / Não eu não sei / Realmente mais para onde olhar / Se o que eu quero ver está encoberto / Prá ninguém enxergar / E aqui vamos seguindo / Exatamente como nos foi mandado / Nos submetendo a um ensino / Velho e ultrapassado / Essa é a nossa cidade / Vivemos todos na mesma cidade / Na rua ou em casa morrendo sufocado / Em qualquer desses ônibus lotados / Nas ruas há de tudo / Violência e cassetetes / E você julga ter problemas / Com seu novo videocassete / Ociosidade nessa cidade.

Mesmo contrariando aqueles que dizem que música é um embalo para a alma e, por conseguinte, despida de qualquer mácula, já em 1973 o grupo de rock baiano Celibato incutia a poesia satírica do escritor Gregório de

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Mattos Guerra em uma de suas músicas - “Louvação” - adaptada do poema “Aos Padres”. Dizia:

“A cidade aos teus pés te louva/ Cega e surda ao teu clamor/ A nossa Sé da Bahia/ Com ser um mapa de festas/ É um presepe de bestas/ Se não for estrebaria”.

Na segunda metade da década de 80, a banda Via Sacra colocava o texto “Cidade Morta” numa de suas mais angustiantes canções:

Circulam e rondam / Com o orgulho e a honra / De estarem aqui / Morando na cidade morta / Habitam os morros / E os barracos perto dos esgotos / E acham a felicidade / Pulando atrás dos trios da cidade / Tem praia e sol / Tem carnaval, também tem futebol / E o povo da cidade morta / Esquece a sua vida tão ruim / Têm fama de religiosos / E fazem festa para os santos mortos / E o grande ditador / Chefe da igreja e das esmolas / Exaltada em verso e prosa / Glorificada até no exterior / Carrega suas feridas / No ignorante povo sofredor.

Encontramos muitos outros textos denunciando a desfiguração da musa de concreto. Músicas e temas desconhecidos ou ignorados pela maior faixa da população estabeleceram um painel de debates sobre aquilo que podemos chamar “a cidade partida”, a cidade que viu e produziu dois tipos clássicos de cultura. O leque soberbo de atrativos de caráter convencional e centrado nos grandes nomes e contestado por vozes violentas e despudoradas. “Salvador, por exemplo, é título de uma das músicas mais executadas pela banda Dever de Classe. Eles não tinham sonhos coloridos.

Andar pelo centro urbano / Dessa cidade fedorenta / Mais mendigo à cada ano / Esses esgotos ninguém aguenta / Isso é Salvador nada aqui se salva / Sobra restos, resta dor, nada aqui se salva / Um bando de turistas gordos / Compram tudo por aí / Depois viajam mais gordos / Deixando merda pra engolir / Isso é Salvador, nada aqui se salva / Sobra palha, resta dor, nada aqui se salva.

Alguns desses compositores afirmam que não detestavam a cidade mas sim, odiavam o estágio em que ela estava, mergulhada numa pasmaceira

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linear e tentando encobrir seus defeitos como se eles pudessem ser ofuscados pelas luzes da falsa aparência. Erraram eles ou errou a cidade? Num fragmento da poesia “Tortura Cerebral”, o poeta Ney desabafa: “por que os meus pensamentos/ Estão nas favelas/ No menor abandonado/ Na mendigagem das ruas”. Como se percebe, a temática das composições urbanas sempre esteve a refletir o agressivo questionamento juvenil para com a área em que se vive. A musa dos shoppings centers, e das máquinas de servir refrigerantes, se faz ouvinte dos poemas de seus filhos. Essa polarização reflete igualmente o desencanto daqueles que amam a sua cidade e não se conformam, por exemplo, com o vazio estabelecido dentro do mundo musical baiano nos últimos tempos. Ao pronunciar a frase “Eu não viveria sem o acarajé”, o guitarrista Morotó Slim sintetiza seu amor pela Bahia e acentua o desejo de ver brotar vida útil na terra da felicidade. E a Bahia da magia segue imponente e robusta. Bahia das crises e dos avanços, da Orquestra de Berimbaus, da Passarela do Caranguejo, da Casquinha de Siri e da água de coco! A Bahia invade o próximo século “tirando onda” de primeiro mundo, administrando meninos de rua e fotografando Aleluia Beach; exportando carnaval e proliferando mendigos, miseráveis e sobreviventes numa busca incansável do exótico e do encantador para o lucro imediato. Repetindo o poeta, a Bahia tem um jeito que ninguém tem e leva jeito pra essas coisas, parindo ricos e abastados do mesmo útero que dá vida aos que rastejam, evidenciando seus contrastes que insistem em ser mais agudos a cada dia. Bahia de Cézar Zama. Bahia de Raul Seixas! Bahia de Anísio Teixeira! Levante o seu véu, pois queremos começar a viver.

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OS PRIMEIROS DIAS

Garotos da Ondina não devem se misturar com rapazes da Barroquinha. Moças do Canela não devem frequentar bailes da cidade baixa. Recomendações como estas eram itens importantes na condução dos costumes da Bahia de 1960. A cidade já era “dividida” há muito tempo... A capital contava com cerca de 600 mil habitantes e alguns quatro ou cinco destes ficaram entusiasmados com a nova onda da música jovem: O rock and roll. Dai em diante - na cabeça de alguns compatriotas - todas as estórias passavam por um baile da Jovem-Guarda. Em 1962, Raul Seixas inicia “Os relâmpagos do Rock”. Thildo Gama, Waldir Serrão, David Barouh e muitos outros foram protagonistas dos emblemáticos embalos sob o signo do iê-iê-iê. Chegaram a montar grupos com nomes do tipo “Os 5 Loucos”’”The Black Cat”, “Os Kriptons”, “Os Selvagens” e “Bossa Brotos”. Mas a história não para aqui. PRIMEIRO, O PASSADO Estudar, ir ao cinema e namorar. Estas eram as principais ocupações de jovens baianos de 1963. Pra variar, muitos deles corriam atrás dos concursos de twist e dublagem na TV. Nesse clima, enquanto os agitos não explodiam, adolescentes como David Barouh ensaiavam canções do repertório gringo. Começava ali, a ambientação para o futuro rock baiano. Barouh foi crooner no conjunto Os Selvagens e integrou muitos outros que faziam apresentações em colégios como o Manoel Devoto, Edgar Santos e em espaços como o Instituto Normal (atual ICEIA) e Ginásio Antonio Balbino. Os encontros das turminhas do iê-iê-iê eram frequentes na loja Duas Américas, situada na Rua Chile, ponto onde os grupos trocavam idéias antes de irem às festas do Cine Roma, Clube Mesbla ou Cine Paripe.

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Foram também importantes os conjuntos Quadrante 6, Os Sombras, Os Pássaros e Banda Hospício. Cada um dava o melhor de si em interpretações de sucessos que marcaram época como “Lady Madonna” e outros. Um pessoal que “não girava bem da bola”. Assim eram classificados os moleques da época. Corriam à Praça da Sé para namorar os últimos modelos de guitarras na loja A Primavera e conferir - na banca de revistas - as famosas figurinhas difundidas por Hugo Perrone, com reproduções dos astros do rock, com endereço certo na mente de seus colecionadores. Perrone hoje lidera o grupo Cadillac, revivendo glamourosos sucessos dos anos 50 e 60. Desde 1958, jovens de Feira de Santana já se reuniam em culto a Elvis e seus antecessores, dando à Bahia posição dianteira nos vestígios desse tal de rock and roll. Esta história, aliás, dá um livro... O ENCONTRO BIG-BEN X RAUL SEIXAS “Esse encontro foi fantástico. Eu me preparei todo, botei a gola pra cima, engomei o cabelo, botei o topete porque sabia que o Titó ia trazer o Waldir Serrão de tarde. Fiquei esperando ele, mascando chiclete para mostrar que eu era mais cool. Ele chegou da mesma forma. Foi aquele aperto de mão, assim de rock, sabe, meio de banda, aquela coisa de juventude transviada, James Dean, o maior barato” (Raul seixas). Mont Serrat, aprazível bairro da cidade baixa, península banhada pelas águas cálidas de Todos os Santos, reduto de encontro de jovens. Com boa parte da infância repartida com Raul Seixas, Waldir Serrão foi o primeiro fedelho a adquirir intuitivamente discos de rock. O bairro da Boa Viagem serviu de locação para constantes encontros e depois, agitos a começar pelos bailes e festas no Cine Roma. Nesse ponto evidenciou-se a participação do garoto “Serrote”, apelido atribuído por Raul Seixas (morador do Monte Serrat) a Big Ben, que residia na Boa Viagem.

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Depois que Dom Raulzito foi apresentado ao camarada, começava a troca de “figurinhas” e, consequentemente, a história do rock na boa terra. Os primeiros sinais lhe chegavam via rádio quando ouvia, em ondas curtas, programas da Rádio Mairynck Veiga - “Como hoje é dia de rock”- versão dedicada ao ritmo dentro da série “Hoje é Dia de...” na qual todos os estilos tinham seu dia de exibição (samba, tango, bolero). Ouvia, então, o locutor ou speaker, Abelardo Barbosa - O Chacrinha - levando ao ar Cliff Richard, Paul Anka e Elvis. Diante destas audições, foi nascendo o interesse em mergulhar no mundo da radiodifusão. Big Ben começou a infiltrar-se em estúdios, “peruando” incessantemente até conseguir fazer “bicos” como DJ. Entre 1959/60 começou a fazer participações na Rádio Cultura da Bahia AM. Colaborava levando alguns discos para serem programados na estação o que, em seguida, se transformaria no “Só Para Brotos”. Acabou assumindo a produção e apresentação, ocasião que tocava os primeiros discos de Presley. Sem maiores pretensões, senão congregar os poucos adeptos do Rei do Rock, funda o fã clube Elvis Rock Club, sediado no bairro da Calçada. O limiar da década de 60 aparece no calendário da juventude de então, como uma fase embrionária ou uma premonição daquilo que, mais tarde, se chamaria de anos incríveis do antigo rock and roll. Na verdade, os grupos dessa época eram inspirados em três segmentos da música jovem: os conjuntos de baile que apoiavam as estrelas da Jovem Guarda, os grupos de covers dos Beatles e alguns conjuntos de rock. Muitos eram os representantes do som brilhantina sob a luz da Jovem Guarda: MJ - 6, Os Brasas, Os Gentlemen, Inema Trio e Brasa Bossa. Jovens de 16 e 17 anos ensaiavam sua versão iê-iê-iê entre 1962 a 1973, como foi o caso do contrabaixista João Torres, integrante do grupo Os Mustangs, de 1965, que fazia parte dos inúmeros concertos do Cinema Roma e do programa Poder Jovem na TV Itapoan. Esse programa era composto de artistas consagrados e destinava espaço a variedades do tipo concurso de calouros e divulgação das atividades culturais daquele tempo.

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Os Mustangs - que, por certo tempo, foi atração fixa do programa - formava com Fernando Barros (guitarra centro), Antonio Rabelo (guitarra solo) e Valdir (bateria). Eles interpretavam os sucessos de Elvis Presley ao lado de canções de Roberto Carlos, Beatles e demais artistas em voga. Hoje, João Torres é um bem sucedido empresário, tendo inaugurado, no verão de 1995, a casa noturna Sound and Sandwich, com atrações baseadas em grupos que exaltam o som das décadas de 50 e 60. O mais histórico dos grupos dessa fase foi o Jormans, liderado pelo então baterista Perinho Santana, guitarrista de renome no cenário internacional. Perinho era um dos melhores bateristas da Bahia nos anos 60, quando ensaiava no bairro do Barbalho, antes de se dedicar à guitarra. Já por volta de 1968/1969, o cinema Roma enfrentava seus dias de vertical decadência, acabando assim com um palco-celeiro de artistas e eventos mais populares que encontraram ali momentos e platéias enlouquecidos, entre ritmos frenéticos e rebeldia ingênua. Com o declínio do cinema, alguns grupos se dissolveram ao tempo em que outros prosseguiram ocupando o Cine Teatro Nazaré, localizado no bairro do mesmo nome. Em geral, a Concha Acústica do Teatro Castro Alves se prestava à realização de festivais e encontros de grandes bandas dos mais diversos matizes. Grande parte desses espetáculos era promovida pela TV Itapoan, pioneira em programas de auditório. QUAIS FORAM OS CULPADOS? “Se meu drops era Dulcora. Se o almanaque da minha família era o Capivarol. Se nossos refrigerantes eram Grapette, Mirinda e Laranja Turva. Se o meu cinema era o Aliança, meu som, Zilomag. Se a minha camisa era “volta ao mundo”. Meus ídolos, Bob Carlos e Taiguara, então quem foram os culpados? Questiona-se nostálgico um cliente contumaz da loja O Adamastor na Rua Chile.

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Mas a culpa da perpetuação do estilo musical e seus costumes no seio da juventude nativa recai sobre os programadores de rádio e produtores artísticos como Chacrinha, escritos de Roberto Mugiatti, José Emílio Rondeau, Ana Maria Bahiana, Ezequiel Neves e Maurício Kubrusly para apontar os mais implicados. Depois das gravadoras lançarem no mercado Roni Cord com “Dear Someone”, Paul Anka, Neil Sedaka e uma enormidade de versões de Rossini Pinto, as informações do universo musical chegavam às poucas mentes interessadas no “iê, iê, iê” via revistas e jornais. A revista Geração Pop, rica publicação especializada, deteve, por longos anos, a maior credibilidade. Projetos outros circularam mais tarde (destacadamente no Rio de Janeiro e em São Paulo) explorando o mundo do showbizz como Pipoca Moderna, A Canção de Nossos Dias, Jornal do Disco, Música, Somtrês entre outras. Com vida curta, essas publicações nunca chagaram a atravessar décadas como os tablóides importados - New Musical Express, Rolling Stones ou Melody Maker - que desembarcavam aqui a duras penas nas mãos de quem podia viajar. Responsáveis pelas novidades da cena mundial, os redatores e articulistas aliados às gravadoras supriam o acanhado mercado fonográfico com Sly & Family Stone, Cream, The Platters, Kinks, Yes, Normam Greenbaun, The Fifth Avenue Band entre Pholhas, Mutantes e Suzi Quatro. Se as gravadoras lançam e as revistas comentam, então quem eram os vendedores desse ritmo maldito e mal escutado? Do sul do país, compravam-se as “raridades” em discos e fitas da loja TSR (True Sound of Reality) e de outras afins. Nas ruas da cidade, os obcecados recorriam a lojas como A Feira de Discos, A Modinha, Pop Discos e Sonny Discos e Tapes - a mais completa, com sede na Praça da Sé - que juntas com a Interdiscos comercializavam Raul Seixas, Kenny Rogers And The First Edition, The Beatles, além de Zé Rodrix ou Carl Douglas com o impacto “Kung Fu Fighting”.

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Mas nossa cidade continuava perdendo cinemas; acabava o Cine Capri, O São Jorge havia desaparecido; ainda não existia Camisa de Vênus nem Banda Reflexu’s. As lojas exibiam discos e revistas do Filme Saturday’s Night Fever. Era a fase que a juventude frequentava as discotecas que pipocavam em cada canto. RAUL SEIXAS, O MAIOR DE TODOS “A obra de Raul Seixas é única no mundo inteiro. A qualquer tempo, ele sempre estará atual. É o que nos faltava para compreendermos aquilo que não compreendíamos”.

Sylvio Passos, Raul Rock Club/SP

Com dezenas de estudos honrosos acerca de sua obra e vida, o nome Raul Seixas não aparece aqui com o destaque à altura do seu legado, apenas aludimos uma abordagem limitada. Não é exaustivo afirmar que o papel do artista extrapola os limites físicos e palpáveis que lhe imputam. Não é muito dizer que o seu trabalho possui vários níveis de compreensão, mas a compressão de seus pensamentos pode ter sido utilizada por muitos para minimizar a profundidade da sua música - tornando-o multiinterpretável ou ignorado. Um pouco antes de sua morte, Raul Seixas comentava no programa “Ensaio Geral”, espaço memorável da Educadora FM, acerca do quase total desconhecimento da sua obra. Dizia Dom Raulzito: “Antes achavam que eu era paulista e não baiano, justamente por nunca ter pertencido ao grupo baiano, e a música era muito voltada para o ser humano, Inclusive, no disco “A Pedra do Gênesis” tem uma música que diz bem isso - A Lei _ ela promulga uma coisa que eu li no palco durante onze anos, a lei do homem, todo homem tem o direito de pensar o que quiser, de amar como quiser...”. Raul sempre sincronizou sua obra aos descaminhos e inquietudes de toda a existência; foi criatura e criador de questionamentos incessantes. Muito

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dessa obra assumiu a forma de música para embalar sonhos de várias gerações, transformar mentes e regar desejos de liberdade. Falar de Dom Raulzito é repetir o anseio de negação e recusa das amarras do homem moderno. Raul não foi contra tudo e contra todos. Foi a favor do homem. Que mais podemos querer desse poeta? Raul incluiu num de seus últimos discos - “A Pedra do Gênesis”, de 1988 - uma canção do compositor Zé do Norte chamada “Lua Bonita”. Não tendo o costume de gravar músicas de outros compositores, o cantor foi feliz em inserir “Lua Bonita” e, num certo momento, comentava: “Essa música eu cantava ao vivo no Tereza Raquel, quando fazia a temporada de 73 e lançava “Ouro de Tolo”. Um dia, ele foi assistir ao show e não o deixaram entrar. Ele não tinha dinheiro para pagar o ingresso. Eu mandei ele entrar, ficou no camarim comigo e foi muito bacana ter conhecido Zé do Norte. A Pedra do Gênesis é meio místico e a lua sempre foi uma entidade mística: significa mulher, o oposto do sol, que é o homem. “Lua Bonita”, Zé do Norte fez quando tinha 14 anos de idade, em homenagem à lua porque ele se apaixonou por ela”. BIZARRAS HOMENAGENS Desde a sua morte em 1989, Raul Seixas tornou-se um dos músicos mais homenageados do cenário artístico brasileiro, mas foi com o passar do tempo e a natural multiplicação desses tributos que o artista teve seu trabalho exaustivamente pesquisado. Obras e estudos prolongam a trajetória do Maluco Beleza em celebração de diversas intensidades e sob as mais afoitas razões. Da trivial impressão de posters coloridos a romarias constantes em direção a seu túmulo, confundem-se eternos seguidores com oportunistas de plantão. Dois dias depois do seu falecimento, pertences do ídolo rumaram para São Paulo, dando início a uma busca constante da herança cultural ali concentrada. Em Salvador, o mito Raul Seixas tem seu nome identificando um viaduto e um pequeno teatro, além de inúmeras lembranças e

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proposições isoladas que tentam perpetuar a história do cantor. Porém, qualquer homenagem sempre será pequena ante o alcance de suas idéias. Gravitando ao lado de um universo de dedicatórias e congratulações sinceras e bem intencionadas, pululam bizarras homenagens dentro do tema Raul Seixas, muitas das quais, imaginamos, não encontrariam guarida dentro do ego de Raulzito. Dezenas de pedidos de autorização chegam à família do astro, pleiteando o uso de seu nome em artigos de vestuário, marcas de óculos e uma infinidade de produtos. Pessoas ligadas ao ídolo incumbem assessores de cobrança de cachês por entrevistas e depoimentos. Em sua edição de agosto de 1995, o diário Correio da Bahia dedica uma página sob o título “Panteras na Arena” comentando o duelo entre antigos parceiros de Raul - Thildo Gama, Carlos Eládio, Mariano Lanat e Carleba - em função da remontagem do lendário grupo Os Panteras e do lançamento, naquele momento, do livro “Raul Seixas – A Trajetória de um Ídolo”, escrito por Thildo Gama. Fãs e parceiros justificavam, então, a razão de seus trabalhos “Raul Seixistas” sob mútuas e diversas argumentações. Na passagem do seu cinquentenário - 28 de julho de 1995 - Dom Raulzito foi homenageado por infinitos fãs como seu último parceiro Marcelo Nova. Ele analisou a data dessa forma: “Na verdade, somos pessoas que tiveram a felicidade de conviver com um grande artista. Apesar de se ter uma idéia que Raul era um guruzinho que foi para o céu ao lado de John Lennon, ele foi um grande artista brasileiro no sentido literal da palavra”. De toda a obra do artista podemos captar diferentes espécies de mensagens - das mais cultas às populares e simples - que penetram espetacularmente na vida de cada um. Exemplos existem em centenas, mas verifiquemos didáticas sugestões contidas no texto de “Pergunte ao Tio José”, de um jeito simples, sarcástico e irônico:

Quando parece não haver um jeito novo / Ou diferente de não ser igual aos chatos / Cotidianos imbecis que você conhece... / Quando ainda aparece na TV um político sério / Metido em óculos de míope, insistindo / Em panflorear fome e miséria, discorrendo / E descrevendo sem dar uma solução / Quando você chora de angústia e de dor pelo que / Corre solto

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sem vergonha, pelo jogo preparado/ Do xadrez padronizado / Ou quando o seu sonho se desfaz em desesperança/ Do seu homem presidiário morto sem saber / Na multidão duma cela superlotada / Por que você não escreve / Pra coluna do Tio José / Ele responde tudo / Qualquer pergunta que você quiser / Quando os padres-nossos rezados na igreja / Não lhe atendem o pão pedido para / Os oito filhos encatarrados da sua favela, / Quando no palácio o banquete de mil talheres / A abundância não comida é comida / Pelo caminhão do lixo dentro do negro pacote / De plástico de madrugada, / Ou quando você vence o urubu do vestibular / Ou passa de boteco em boteco pedindo ao português / Ou espanhol um lugar de cozinheiro, / Por que você não escreve / Pra coluna do Tio José / Ele responde tudo / Qualquer pergunta que você fizer’

Texto extraído do Livro Baú do Raul

VALEU, RAUL ! Foi internado num hospital, no início dos anos 70, que ouvi pela primeira vez aquela música... “Hoje é domingo/ missa e praia céu de anil...”, mas só anos depois vim a saber o nome da música e quem cantava. Naquela época não consegui gravar o seu nome nem a música, mas sempre tentava vasculhar no rádio aquele sinal de ... “S.O.S.” transmitido não pelo rádio, mas aquela voz de um ser de pensamento infinito... Com o passar do tempo, fui, acho eu, começando a entender suas preocupações quanto a nossa existência e questionamentos sobre a vida. E tudo isso fez com que eu me sintonizasse com seus pensamentos, que vinham através de músicas e atitudes durante sua carreira; para mim é muito difícil querer explicar ou relatar para os outros a minha afeição à obra do “Homem” Raul Seixas. O que mais me ligou a Raul foram meus pensamentos sobre discos voadores e outras coisas que as pessoas consideram loucura. Por isso deponho através de um poema escrito ao longo desses caminhos: Não pense que você é o sol... / Pois você é a lua. / Não pense que você é uma estrela... / Pois você é o brilho. / Não pense que você é o sal... / Pois

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você é doce. / Não pense que você é de morte... / Pois você é de vida. / Na sua doce paranóia / Há um doce amargo de lucidez / Que lhe impede de sorrir. / Na sua doce lucidez / Há um doce amargo de vida / Que lhe impede de morrer.

Laio do Valle, Fã-Clube Grã-Ordem Raulseixista/Salvador ANOS 70 Sem atingir o âmago da cultura hippie em nossas plagas, notamos um profundo ar nostálgico por parte daqueles que, à época do final dos 60, vivenciaram o auge de um estilo de vida absolutamente encantador. Festas noturnas, Beatles, escolas renomadas e cursos de piano clássico. Este era o cardápio de jovens classe média na antiga Bahia de três décadas atrás. Lis Anselmi, 38 anos, profissional liberal, vive ainda na casa em que nasceu, situada num bairro abastado de Salvador. Ela guarda em si paradisíacas lembranças de uma fase do movimento de contracultura do qual fez parte, logo após 11 anos, quando não se contentava apenas com o luxo de festas em clubes requintados e boa educação. Tendo concluído o curso de admissão ao ginásio. Driblava os pais, fingindo estudar à noite enquanto divertia-se em festas noturnas, tática que lhe proporcionava momentos esquibalizados. Depois de atravessar diversas sala de aula em escolas como o antigo João XXIII, (Barbalho) e Nossa Senhora de Lourdes, amargou - em razão do declínio de comportamento - o regime disciplinador do colégio católico Dorotéias, fato determinante para seu destrambelhamento completo. Lá outras colegas perpetuaram sua inclusão para a postura psicodélica reinante nas ruas da cidade. Mesmo sem ter pertencido ao bloco de jovens frequentadores de Arembepe, desfrutava dos encontros frequentes entre a Praça da Sé e o bairro de Itapuã com destaque para as emblemáticas reuniões no ICBA (Corredor da Vitória) e sessões de topless no Farol da Barra, regados ao uso de drogas mais comuns como a maconha, vinho e vodca. Outra base ocupada pelos hippies era o tradicional Relógio de São Pedro (centro), tradicional ponto de convergência que, ao lado de outros espaços

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como a Lagoa do Abaeté, emprestavam sua imponência para o deleite de alguns dos seus nativos transviados. “Fui batizada” por uma colega de escola, chamada Aninha, que levou-me até sua casa na Rua Boulevard Suisso e fumamos juntas o primeiro baseado”. Confessa Lis, exibindo colares, pulseiras, saias e macacões Lee importados, combinados com calça boca de sino, parte da indumentária adquirida em lojas como Pena Branca (Praça da Sé) ou Vaca Amarela (na Barra). Os tamancos completavam o tipo feminino, enquanto os sapatos “carro tanque” e “cavalo de aço” sustentavam seus donos de cabelos a la Black Power, somados a medalhões e jeans desbotados. O Mercado Modelo, Lagoa de Pituaçú e o Porto da Barra também serviram de point para aqueles apreciadores de grupos do quilate de The Who, Clímax Blues Band ou Kansas. Um pouco mais tarde, grupos locais como o Mar Revolto e Celibato exploram os poucos espaços em festas e shows na Concha Acústica e Colégio Dois de Julho ou, simplesmente, em áreas distantes do centro urbano. Se o filme cultuado dessa geração foi “Jesus Cristo Superstar”, a musa maior era Janis Joplin: signos e símbolos de uma maneira de viver e pensar. Alegria maior não pôde ter Lígia Cabús, atriz e remanescente da nação Woodstock, quando, por ocasião de uma festa colegial de “amiga secreta”, recebeu, pela primeira vez, o disco do Deep Purple. Depois de ter presenteado uma colega com o disco do então famosíssimo Morris Albert (She’s My Girl” um dos hits pop dos anos setenta) a maior batalha era chegar em casa e ouvir música estrangeira e ainda por cima, rock do Deep Purple. Iguais a ela contavam-se nos dedos os jovens que tinham interesse por aquele tipo de som feito por Rita Lee, Humble Pie, Ted Nugent ou Janis Joplin. “No rádio, o pouco que se tinha para ouvir ficava a cargo do Big Ben, que tocava Alice Cooper, Humble Pie e jovem guarda”, declara ressaltando a transgressão que era o gesto de ouvir aquele tipo de som.

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As grandes gravadoras despejavam séries e coletâneas com os grandes sucessos da década de sessenta e setenta sob a forma de versões e imitações dos grandes astros. Era famosa a série pop “som Bateau Ataca Novamente”, “Uma Noite No Mundo” ou “Underground Explosion”, destacando os sons das paradas mundiais. Conjuntos como “Anarchist Sistem”, “Pholhas” dentre outros enfeitavam as lojas. A ÉPOCA DO ÁCIDO Dos grupos antecessores do novo rock baiano, o Jardim dos Milagres aparece como o mais antigo. Sua formação contava com nomes do calibre de Espinheira (bateria), Eri e Gel Benjamim (guitarra), além da participação de Mou Brasil (contrabaixo). Muito provavelmente, esse tenha sido o mais antigo grupo de rock de Salvador dentre os nomes dessa safra setentista, que também revelou bandas como Nirvana, 19º Colapso Nervoso, Frutos da Vida, Celibato e Nuvens Negras. Este último, surgiu em 1976, com a participação de Djalma Oliveira (vocais), Júlio e Nilton Nascimento (guitarras), Romeu de Mattos (baixo) e Emérito Mercês (bateria). Mar Revolto, Banda do Companheiro Mágico e Os Cremes foram também exemplos notórios dessa época. Cada um a sua maneira, emprestou um pouco de seus sonhos para a construção do semblante adolescente baiano via rock and roll. ICBA, O QUILOMBO BRANCO DA CONTRACULTURA Desde sua fundação em 03 de setembro de 1962, o Instituto Cultural Brasil-Alemanha (ICBA) - sediado no Corredor da Vitória - sempre esteve presente no panorama cultural da cidade, não apenas na difusão da língua alemã, como também no fomento de atividades artísticas nas suas diferentes formas. Mas foi na década de 70, que o Instituto propiciou a comunicação mais acirrada entre as diversas modalidades artísticas,

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tornando-se o maior celeiro de movimentação cultural do Nordeste brasileiro. Entre 1970 e 1977, a entidade era dirigida por Roland Schaffner, considerado o maior incentivador das vocações culturais de jovens artistas baianos da época. Além dos grupos musicais mais refinados e jazzísticos, de companhias de teatro e dança, música popular e artes plásticas, o espaço era abrigo para grupos experimentais de rock que, apoiados na possibilidade de mostrar seu trabalho, deram seus primeiros passos naquela casa. Hoje numa nova gestão, Schafner admite ter ousado permitir o florescimento de uma geração de artistas que figura com nomes de grande referência no cenário nacional. Essa consciência tornou-se evidente baseada no fato das constantes abordagens da censura da Polícia Federal que encontraram no ICBA um verdadeiro quilombo cultural, centro propulsor de intercâmbio entre a dança, a música e o teatro. “Era um reduto de produção cultural com respeito à livre expressão”, afirma. Boa parte dos maiores nomes do mundo artístico vivenciou a fase áurea do centro cultural como os músicos da Banda do Companheiro Mágico, Os Cremes, Mar Revolto, Lia Robatto, Márcio Meirelles, Grupo Sangue e Raça (do qual participou o compositor popular Roberto Mendes), Chico Liberato e Djalma Correia. É também da época de Scheffner a criação da Jornada Internacional de Cinema da Bahia que atravessou duas décadas e se estabeleceu, até hoje, como o maior festival de curta-metragem da América Latina. Outro grande nome ligado ao ambiente da música no ICBA foi o professor e grande construtor de esculturas sonoras Walter Smetak, que marcou sobremaneira o conceito de experimentalismo musical, ao utilizar-se de sucatas e inusitados materiais à música. Anton Walter Smetak, suíço radicado na Bahia, tem sua obra esquecida e seu nome abandonado por nossas instituições de fomento à cultura, prática comum em nossa terra, quando se trata de memória não convencional. Procuramos saber do diretor do ICBA - atualmente reassumindo a sua administração - por que a casa não repetia aqueles feitos dos tempos

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antigos e ele argumentou de uma forma espetacular e pertinente: “as pessoas sempre me cobram isso, mas elas não entendem que a época é outra, as circunstâncias são outras, a juventude é outra, a Bahia é outra e a gente não pode repetir aquilo que se fez nos anos de 60 e 70. Tem que se procurar outros caminhos”. Claro que não podemos sintetizar aqui toda a gama de atividades encetadas pela instituição, apenas registramos um pedaço do relevante trabalho traduzido em encontros de músicos, jornadas de artes e núcleo de troca de experiência, como a criação do grupo Baiafro - o primeiro grupo de percussão da Bahia. JOÃO AMÉRICO João Américo é o nome da mais famosa empresa de som da Bahia e, por certo, a mais importante. Essa relevância tem a marca do trabalho de um homem chamado João Américo, dedicado técnico da Embratel e da Ericsson do Brasil, há duas décadas atrás. Ele é do tempo em que as ligações telefônicas interurbanas eram feitas via telefonista, quando cresce o seu interesse por som ao ver - na Bahia – os primeiros shows ao vivo de grupos iniciantes na década de 70. Achava que aqueles equipamentos prejudicavam mais do que ajudavam aos artistas. Seu empenho, dedicação e curiosidade aumentavam a cada dia em paralelo às atividades profissionais desempenhadas na companhia estatal. Naquela época, o maior artefato eletrônico em termos de áudio era o radinho de pilha e os equipamentos de som eram bastantes rudes e suas formas de instalação, incipientes. Num dado momento da história do país, o governo brasileiro começa a instalar o sistema DDD e João Américo viaja a São Paulo para receber treinamento daquela nova sistemática de comunicação. Mergulha, então, ainda mais em suas pesquisas no campo do áudio. Aproveita suas horas de folga na capital paulista e descobre uma forma do ramo de equipamentos de som. Esta, porém, não era bem uma empresa de som, pois trabalhava

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com sonorização ambiental, instalando equipamentos em consultórios médicos, aeroportos e indústrias. Pois bem, João bate à porta da firma e oferece-se para trabalhar de graça, somente para aprender o “bê-a-bá” da sonorização. Depois de algum tempo de trabalho, reúne os conhecimentos básicos e adquire, mais tarde, seu primeiro equipamento com o qual anima festinhas, recebendo a simpatia de amigos face à carga de novidade incutida na forma de animação. Era um som mecânico e Américo não se contentava com aquilo. As festas se multiplicavam e os eventos começavam a crescer na mesma medida que ampliava a sua vontade de avançar e perseguir os objetivos. O som mecânico era pouco e limitava os espetáculos a discos e fitas. Ele queria mixar instrumentos e amplificar aqueles shows como um todo. Entre 1972 e 1973, João Américo era o nome cotado para abrilhantar festas promovidas pelos “DCE’S” e centros universitários de cultura, além de festas em boates e casas de espetáculos. Nessa época, aparece mais uma vez a importância do ICBA ao financiar para João Américo o primeiro equipamento de som profissional com o qual incontáveis músicos puderam demonstrar suas obras naqueles novos passos da música na Bahia. Com o tempo, a vida cultural da cidade experimentou momentos de franco desenvolvimento, da mesma forma que avançaram os projetos do técnico de som, hoje um dos mais contratados no Norte e Nordeste do Brasil. Praticamente todos os grupos musicais da Bahia já trabalharam com João Américo, que aponta para este final de século com projetos audaciosos e inovadores, prometendo revolucionar a concepção de som ao vivo no país. Ao longo da sua carreira, gravou e arquivou mais de mil fitas dos mais variados espetáculos que operou e desejaria vê-las catalogadas e disponíveis para consultas e pesquisas, mas, não enxerga meios para tal concretização, devido ao secular desinteresse dos nossos órgãos de cultura por acervos de uma maneira geral. É o Brasil e sua marca registrada de amnésia cultural.

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OS CREMES Luciano, Perinho Santana, Jaime Sodré, Moisés Gabrielli. Os Cremes (Creme ou Grupo Creme) foi responsável por parte da sonoridade psicodélica sob os efeitos das grandes estrelas do rock dos anos 60, principalmente Jimmi Hendrix e o Cream, marcante trio de 1966. Em suas influências passeavam o blues, o jazz-rock e mais tarde, músicas do repertório nordestino em recriações cheias de personalidades e experimentalismos. Cantavam sucessos de Caetano Veloso e Gilberto Gil, depois de passarem em revista os petardos sonoros repletos de improvisações, solos e arranjos mirabolantes. Na época, o grupo pertencia a uma safra de bandas subsequentes aos Novos Baianos com atuações entre o ICBA e o Teatro Vila Velha, além das aparições nos programas do Big Ben que lhe passava discos raros, utilizados como inspiração musical, assim como gravações de programas de rádio do Rio de Janeiro. Das apresentações no Vila Velha, nasce a idéia de usarem figurino espalhafatoso exibido em festivais, shows e participações em televisão, culminando com pinturas no próprio corpo a exemplo do que fez a Timbalada (orquestra de percussão) no início da década de 90. Como roupa utilizavam sacos de linhagem, conferindo ao conjunto um ar de irreverência que produziu ao mesmo tempo, popularidade e problemas com a Polícia Federal. Um dos nomes que conviveram com os Cremes foi Jaime Sodré - hoje, professor acadêmico, estudioso da cultura negra na Bahia e competente instrumentista no campo da música afro. Compositor e poeta, conta hoje anos de idade e se ocupa também de pesquisar as relações das sonoridades afro-brasileiras na cultura baiana, com o grupo Kosoibi. Sodré teve seus primeiros contatos com a bateria quando tocava em conjuntos de bailes como Os Coyotes e Os Brasas no início dos anos 60. Posteriormente, foi convidado a integrar Os Cremes, tendo como critério principal executar canções de Hendrix, o que não lhe pareceu espinhoso devido ao fácil manejo com o instrumento. Acompanhe o pensamento do ex-Cremes:

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- Jaime, situe Os Cremes dentro do ciclo de bandas dos anos 70. - Os Cremes aconteceram num momento em que a Bahia estava vivendo a saída dos Novos Baianos para o Sul do país e alguns músicos estudantes da Escola de Música da UFBA montavam projetos para apresentações em concertos eruditos. Nós, assim como outras bandas, tocávamos pelo desejo de experimentar coisas novas, explorando as condições de cada músico. A gente tinha uma maneira livre de se apresentar e de desenvolver um trabalho em conjunto. - Como vocês lidavam com a censura naquela época? - Um dos problemas que tivemos com a censura foi por ocasião do show “Os Cavaleiros do Apocalipse”, quando usamos frases do tipo “contra fatos não existem argumentos” e fomos presos para explicar o porquê. Desse momento em diante, nossas músicas tiveram que ser analisadas pela Polícia Federal, mas não nos intimidamos e sempre procuramos colocar um som bem agressivo e com letras políticas. - Como era o som da banda? - Na época do ácido era muito constante o som psicodélico, mas introduzimos também o blues que fica mais nítido com a entrada de Luciano (o guitarrista) e, mais tarde, entramos pela vertente da música regional. Colocamos acordeom, teclados e imprimimos músicas próprias como “Esporas e Chicotes” que falava da repressão em versos cheios de metáforas para passar a idéia com sutileza. - E o visual? - A polícia nos chamava de hippies, por causa dos cabelos compridos. No meu caso, por exemplo, o cabelo era do tipo “black power”. O visual era um código, se você saísse muito agressivo pelas ruas a polícia lhe prendia. Além disso, se o cabelo fosse “black power” a própria sociedade discriminava e, por vezes, o cara era levado à polícia e tinha o cabelo raspado. A maioria saía mais à noite e circulava em lugares determinados como o ICBA, Teatro Vila Velha... - Vocês chegaram a viajar para o Rio de Janeiro?

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- Sim, fizemos alguns shows aqui e juntamos dinheiro para a aventura de ir ao sul. Fomos duas vezes, mas não obtivemos êxito. Apesar da banda ter ganhado um status de um grande grupo, as coisas começaram a declinar. Perinho Santana ficou no Rio, Moisés dedicou-se aos estudos, Luciano (o baixista) foi estudar música erudita, mais tarde, montamos um outro grupo chamado Cozinha Baiana. - Além do Rio, Os Cremes tocaram fora de Salvador? - Tocamos em várias cidades. Uma delas foi em Natal, num festival de música no qual ganhamos o segundo lugar. Nessa época viajamos com Waldir Serrão que também participou da excursão. Fizemos apresentações abertas na Ilha de Itaparica e outras cidades do interior. - Como você analisaria a música baiana da década de 80 para cá? - Eu percebo que as pessoas sempre analisam um gênero musical em Contraponto com um outro estilo. Não percebem que isso é fruto de dinâmica social. Por exemplo, o axé-music, sob um aspecto positivo, incorpora uma série de simbologias, porém pratica uma redução no campo da melodia, da composição. Começou com alguma crítica social e logo caiu no famoso “meu amor”, que marca sua decadência ou transformação. Hoje existe um movimento de retomada daquela chamada linha evolutiva da música da Bahia, com o aparecimento de tendências mais amadurecidas. O axé-music conseguiu fazer um mercado próprio, fez surgir estúdios, gravadoras, além de ter propiciado uma grande estrutura empresarial. Quer dizer, deu certo naquilo que eles pretendiam, fazer uma música de fácil consumo, baseada no ritmo e sem muitas exigências, algo que hoje começa a ser repensado. É importante frisar que na base desse movimento, existe a redenção dos negros, dos grupos que fizeram o ritmo e, nesse dinamismo, não estão na crista do processo, existe uma apropriação desse material. Ou seja, existe uma música feita com estética, propiciando, assim, o empobrecimento da música e o enriquecimento dos músicos (alguns). - Você atribuiria essa situação ao esquema da mídia?

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- A culpa cabe à mídia, mas é preciso dizer que do outro lado da mídia está o consumidor e não podemos considerar o consumidor como idiota. A mídia faz sua parte, mas existe uma cumplicidade de uma massa que aceita tudo isso. Depende da forma cultural, do interesse estético. O sistema descobriu a maneira de preparar a cidade com um grande teatro para turistas, então tudo aquilo que procure vender o exótico, o primitivo e a referência tribal cabe nos planos dos executivos de políticas culturais e tudo que é crítico, moderno e avançado não cabe na estrutura de poder, pois isso lhe traria o questionamento desses próprios critérios. MAR REVOLTO O Mar Revolto foi seguramente o mais popular conjunto de rock da Bahia na década de 70. Sua história se interpõe entre os tempos dos Novos Baianos e o florescer de grupos novatos da música baiana. A base foi formada a partir de 1973, com Raul Carlos Gomes (baterista), Sílvio Palmeira ( cantor e compositor), Otávio Américo (baixista) e Geraldo “Gel”Benjamin (guitarrista) quando o grupo apenas fazia interpretações de grandes sucessos da época gravados por Steppenwolf, Deep Purple e outras bandas. Mais tarde passam a fazer composições próprias, resolvem, em 1974, dedicar-se ao trabalho musical e alugam uma casa na Rua Simões Filho, no bairro da Boca do Rio. Destinam, então, um quarto para seus ensaios, onde praticavam e treinavam o repertório que já não trazia a aspereza dos “covers”, mas conseguia empolgar o público nas apresentações que faziam. Num certo momento, Gel afasta-se da banda para estudar. Raul se impressiona com as performances de Luiz Brasil (músico da banda Scorpius, que originou a Chiclete Com Banana) e convida para ingressar no grupo. Retorna mais tarde, Gel, para dividir as guitarras aliadas à voz de Luiz Brasil propiciando, assim, um maior peso na sonoridade e na postura do conjunto.

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Depois de fazerem uma temporada de dois meses dentro da inauguração do Teatro Gamboa em 1974, vivenciam momentos de franco estouro, percorrendo todo o circuito de colégios secundaristas de Salvador, e cultivando novas platéias, apesar de contarem com apenas uma caixa de som de três auto falantes. Assim foi em Itaparica, onde concentraram a atenção do público, além de atingirem, mais tarde, lotações completas em dois concorridos eventos realizados na Concha Acústica do Teatro Castro Alves, tocando para mais de 3000 pessoas em cada show. Em meados de 1976, Silvio Palmeira deixa de cantar para responder pela parte de produção do grupo, atividade que sempre fez juntamente com sua posição de crooner e letrista. Até a migração para o Rio de Janeiro por volta de 1976/77, o Mar Revolto era banda habitual dentro da programação do ICBA com pautas contínuas, desde apresentações dentro do seu teatro até concertos maiores ao ar livre a ponto de tornar inviável o bom andamento das demais atividades da casa, devido à inquieta afluência da juventude. O Mar Revolto foi o primeiro conjunto do Norte/Nordeste do Brasil a adquirir um equipamento de som profissional com sistema de “PA”, em 1978, fruto de contínuas viagens entre o Rio e Salvador. Em 78 partem em definitivo para o Rio num caminhão-baú e passam a morar num sítio alugado por Silvio. Criam um selo próprio e gravam em 1979 o quinto disco independente do país. O álbum levou o nome da banda. Nessa temporada no sul, fizeram apresentações em São Paulo e no Rio, tocaram em toda a região serrana, região dos lagos e fizeram show no Museu de Arte Moderna, exibindo uma sonoridade mais ampla com influências maciças da música regional brasileira, com cordas e outros instrumentos acústicos. Vislumbra-se, dessa forma, outra fase de trabalho, com apresentações ao lado de Zezé Mota e outros artistas, durante um período de três anos, quando retornam a Salvador em 1982. Assinam, então, com a CBS e editam o segundo álbum “Dia de Amanhã”, época em que já não fazia muito sentido prosseguir o trabalho como tal, chegando a dissolução em 1984.

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Passaram também pela formação do grupo, o guitarrista Eduardo, os percussionistas Carlinhos Brown e Jorge Vicente, além de outros músicos convidados. O baterista Raul Carlos Gomes, 41 anos, entusiasta e navegante do Mar Revolto, explica um pouco da história daqueles distantes anos 70: “A gente reunia um grupo de seis, sete amigos e saía para colar cartazes com aquela colas dissolvidas em latas de querosene. Era um grude bem artesanal e todo mundo saía divulgando a banda em muitas áreas da cidade como, Itapuã, Pituba, Cidade Baixa. A gente tinha que trabalhar muito e, ainda por cima, enfrentar a censura. Muitas músicas não puderam ser gravadas, muitas letras falavam de sexo, repressão política e outros temas. Os artistas da época tinham que se submeterem a um visto do Departamento de Censura e Diversões Públicas da Policia Federal. Tivemos também alguns momentos memoráveis quando participamos, no Solar do Unhão, do espetáculo clássico de dança “A Vertigem do Sagrado” para o qual compomos a música “Mar Revolto” com cerca de 30 minutos de duração. Todos os componentes imprimiam o seu estilo e aquele evento parece que demonstrava, com a nossa participação, um lance de vanguarda. A época favorecia a criação e nós exploramos um som alternativo, porém, criativo, com laços muito íntimos com a música regional. Xaxado, Baião e experimentalismos sempre estiveram em nosso trabalho. Em termos de espaços, o ICBA foi fundamental na carreira do Mar Revolto. Era um reduto importantíssimo para a cultura jovem daquele tempo. Chegamos a ensaiar dentro do ICBA. A banda viajava com um caminhão cheio de equipamentos e além de diversas cidades do interior, fomos ao sul do país, enfrentando a poeira das estradas. Antigamente, os equipamentos eram escassos e a gente tinha que carregar tudo para onde ia”.

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SILVIO PALMEIRA, UM FRANCO ATIRADOR Silvio Palmeira, 43 anos de idade, uma vida dedicada à produção musical. Além de ter sido o primeiro cantor da Mar Revolto, compositor e executivo da música baiana, reúne sobre si fatos como a implantação do Circo Relâmpago, produção de discos e realização de shows com centenas de artistas desde Clementina de Jesus à Gera Samba. Atualmente, grande promotor da jogada “axé-music”, ele depõe sobre sua vivência como fundador, ( ao lado de Raul Gomes ) do Mar Revolto: - De onde você tirou esse nome Mar Revolto? - Inicialmente o nome da banda ia ser “Morango Blues”, mas, certa vez, ao assistir um filme com um concerto do Crosby Stills Nash & Young, chamado “Celebration At The Big Sun”, me chamou a atenção a cena de um show num rancho da Califórnia. As ondas do Oceano Pacífico batiam forte contra a montanha e fiquei maravilhado com aquele espetáculo. Virei para Raul dizendo “é mar revolto” e, assim, adotamos o nome. - Me conte como foram os primeiros anos. - Depois de algum tempo fazendo “covers”, nós passamos a fazer composições próprias e no verão de 1974, estreamos com uma temporada de inauguração do teatro Gamboa durante dois meses e daí tudo floresceu, passamos a morar juntos e, depois de um tempo, passei a me dedicar à produção da banda, coisa que fazia em paralelo. Passamos a ter um maior pique e fizemos praticamente todo o circuito de colégios de Salvador até atingirmos duas grandes lotações, na Concha Acústica, que marcaram época. Naquele tempo não se contava com mídia de rádio, gravadoras ou qualquer estrutura de apoio ficando tudo concentrado nos shows. - E como foi a partida para o Rio? - Arrumamos as malas, pegamos um saco de farinha, feijão, carne, garrafa de pimenta e um monte de mantimentos, colocamos tudo no caminhão e caímos na estrada. Nós não sabíamos o que iríamos encontrar pela frente, então tínhamos que levar pelo menos comida... tivemos um grande apoio

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de Nelson Motta e boa cobertura da imprensa, fizemos shows no MAM com chamadas de televisão e revistas, começamos a gravar o primeiro disco através do selo independente chamado Salvador. Naquelas alturas já incorporávamos outros elementos à música com a inclusão de cordas e influências da música popular. - Sua história também está ligada ao circo. Você fundou o Circo Relâmpago na Pituba, palco de centenas de atrações na década passada. Como foi que tudo começou? - Antes de montar o Relâmpago, peguei um antigo circo do palhaço Ferrolho e levei para o Rio. Inaugurei a temporada com os Novos Baianos e, em seguida, fizemos shows com dezenas de artistas nacionais e estrangeiros, durante seis meses até me decidir por possuir o meu próprio circo. Fui à São Paulo e comprei um que montei no Vale dos Barris com o nome de “Alegria, Alegria”, mas não deu muito certo, até quando consegui junto à APAE o terreno da Pituba onde instalei a lona com o nome de “Relâmpago”. Aluguei o espaço e abri o circo com o show de Lulu Santos e daí prá adiante foi uma explosão só; fizemos cinco shows com a Blitz em três dias de lotação esgotada, Luiz Gonzaga, Camisa de Vênus e uma infinidade de atrações. Tinha o cine Relâmpago com exibição de filmes, grandes espetáculos de teatro, dança e música; Ratos de Porão, Trem Fantasma, Gonorréia e tantos outros. Por dois anos e meio, o espaço se transformou na “cara da Bahia” em termos de espetáculos. Depois tentei algum tempo com o circo em Pernambuco, até me desfazer do trabalho. - Você também dirige o selo “Casa da Música” e já gravou algumas bandas de Rock... - O último lançamento nosso foi o álbum de Álvaro Assmar e antes já fizemos Cabo de Guerra e Cravo Negro e de música baiana, Cia Clic, Rachel Nancy, Tapajós, Curta Metragem, Roberto Mendes, dentre outros.

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BANDA DO COMPANHEIRO MÁGICO Formada em 1972, a Banda do Companheiro Mágico representou parte de um seguimento experimentalista vigente no ambiente musical de Salvador, no momento em que sua sonoridade entre o jazz e o pop rock, desde o início quando a banda se limitava a um trio. Era um grupo formado por jovens estudantes da Escola de Música da UFBa e teve várias formações, desde o formato inicial até a inclusão de instrumentos de sopro. Configurando-se, em certa fase, como uma pequena orquestra, chegou a fazer uma apresentação no Teatro Opinião no Rio de Janeiro. O nome do grupo é atribuído por alguns como a homenagem ao grande mestre da música -Smetak-, professor e influenciador da obra de uma geração. Boanerges, Thomaz Oswald, Sérgio Souto, Anunciação, Ari Dias, Guilherme Maia, Zeca Freitas, Tuzé de Abreu e Jorge Varela foram alguns dos músicos que passaram pela banda, além de Toni Costa, seu fundador. Outros nomes que também acompanharam o conjunto: Conrad Holzmeinster, Men Xavier, Andrea Daltro, Gerson Barbosa e Paulinho. A banda teve em seu guitarrista Toni Costa um grande incentivador com projetos e glamourosos espetáculos realizados nos palcos da cidade, vanguarda cultural dos anos 70 na Bahia, sobressaindo-se naqueles ares repressivos de então. Com ensaios em Itapuã e Boca do Rio a Banda do Companheiro Mágico deixou de tocar em 1977, quando o seu som transpirava lirismo e perdia-se entre variadas influências da música brasileira.

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PROGRAMAS DE RÁDIO A ANARQUIA NAS ONDAS AÉREAS

Como poderia estar o ar da cidade povoado pelas ondas do rádio? Sacudido pelos embalos de sábado à noite: Roberta Kelly, Stevie Wonder, Fevers e The Jackson Five. Rádio-teatro, Omar Cardoso e Buzina do Sucesso constituíam os carroschefes das programações radiofônicas. Ressalvemos Waldir Serrão e Zé Bim. De um lado, “O Som do Big Ben”. Mais tarde no dial da Rádio Clube do Salvador, “Zé Bim Pop”, um dos programas mais loucos das ondas aéreas. Quase sempre rolava Janis Joplin no fundo musical, contracenando com a voz esganiçada do locutor que disparava Hendrix, Pepeu Gomes e Zeppelin. Após uma grande estiagem, o programador das músicas internacionais da Rádio FM Aratu, Marcelo Nova, cansado de executar Reo Speedwagon e The Beatles, cria um horário para tocar um material mais “didático”. Leva ao ar, o programa batizado de Rock Special. Os admiradores do ritmo antes apenas ouviam programas distantes como os da Rádio Fundação AM do Espírito Santo ou raras emissões em ondas curtas nas quais escutava-se Jethro Tull, The Who, Manfred Mann ou Elvis. Sessão maldita era o nome usado para anunciar o programa de sexta-feira à noite, levado ao ar pela Piatã FM e apresentado por Gutemberg Cruz às 0:00h. Aqui podia-se ouvir o que acontecia de mais pesado na atmosfera do rock. A Bandeirantes FM manteve, por cerca de três anos, um espaço dedicado à música rebelde: era Rock Star, duramente conseguido pelos abaixo assinados dos ouvintes. O programa era apresentado aos domingos, às 17:00h, quando os jovens retornavam das praias. A emissora conseguiu um aumento de 2.3% na audiência dominical, sem gastar um tostão. O horário, inicialmente apresentado por Gutemberg Cruz, tocava indistintamente todas as vertentes do rock. Mesmo figurando como

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apêndice das programações convencionais, o reggae teve alguns momentos nessa mídia, através do trabalho dos ativistas Ray Company e Lino Almeida que produziram acertados programas nas antenas da Bandeirantes, Salvador e Piatã FMs. O ‘ROCK SPECIAL’ Apresentado por Marcelo Nova, o programa era levado ao ar todas as noites de sexta-feira pelas ondas da Rádio Aratu. Inspirado nas novidades musicais contidas em jornais londrinos como o New Musical Express e Melody Maker, o apresentador - que também era o produtor - tocava os discos quase sempre inéditos e os comentava, intercalando quadros como “cartas dos ouvintes”, Túnel do Tempo” e promovia sorteios e concursos. Uma das intrigantes campanhas encetadas foi a que convocava todos os ouvintes possuidores de discos de grupos iguais ao Black Sabbath para levarem suas coleções ao pátio da emissora para serem queimados. Daí em diante percebia-se a polêmica e o número de cartas de protestos. Porém essa não seria apenas a controvérsia constante. O programa era odiado pelos pais de seus ouvintes, apreciadores do rock tradicional ou de outros estilos. Contando com cerca de três anos de exibição, isso por volta de 1982, o espaço radiofônico tinha na seção de cartas o seu “forte”, não só pelas críticas que recebia, mas também pela ironia com a qual era enfrentada. Foi o caso da noite especial com os grupos “mais pedidos” pela audiência. Época préeleitoral, um prato cheio para Nova abrir o programa saudando os ouvintes com as palavras: “...Então hoje eu resolvi fazer o programa inteiramente dedicado ao povo que nos tem brindado com a sua audiência. Aliás, essa é a época em que todos querem mostrar ao povo o quanto eles são bonzinhos, honestos, íntegros, batalhadores da causa popular, inimigos da opressão, anjinhos caídos do céu por descuido. Neste momento, eu quero pedir a vocês que acreditem em mim; eu que sempre estive do vosso lado em todas as sextas-feiras, livrando-os do tédio e da pasmaceira incontrolável que se abate sobre a cidade”

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Prossegue impostando a voz: “Eu, que vos tenho apresentado ininterruptamente as jóias raras do underground... Foi graças ao Rock Special que as vossas cabeças foram tomadas de assalto por grupos como o Crass, Stiff Little Fingers, Undertones, X-Ray Spect, Plasmatics, o abominável Dead Kennedys e inúmeros outros que estou deixando de fora, pois seria enfadonho enumera-los tamanha a sua quantidade. Portanto, (risos) mais uma vez eu peço: Povo da Bahia, acredite em mim, que não tenho nada a vos oferecer a não ser participação em negociatas, transações ilícitas, propostas indecorosas e, acima de tudo, muito, eu disse muito, Rock and Roll”. The Clash, grupo cultuado pelos fãs e considerado o melhor do ano de 1981, entra no ar com as músicas “Tommy Gun”, “Career Oportunities” “London Calling” e “London’s Burning”. Mais ou menos assim seguia tocando “Barracudas”, Led Zepellin e tantos outros. Quem acompanhou o programa “Let’s Rock” na Transamérica FM, em rede nacional, teve a oportunidade de conhecer um pouco do formato do antigo Rock Special, que exerceu significativa influência na formação de um considerável número de ouvintes, potenciais membros das primeiras bandas de rock daquele momento. “A gente se reunia para ouvir o Rock Special que era uma fonte de informação bem acima do razoável, um espaço que tinha a ver com a moçada”, declara um dos primeiros ouvintes. E foi assim que aquele espaço radiofônico instituiu de certa forma, novos costumes e hábitos inusitados que, muitas vezes, geravam queixas e protestos que eram abordados no ar, através de cartas poeticamente irônicas e comentários sarcásticos. Numa das cartas enviadas ao programa, ouvinte descia o malho na linha de programação. O cara identificava-se como Cavalo Doido. A carta, lida no ar, dizia o seguinte: “Marcelo Nova Onda, consegui finalmente lhe escrever. Esta louca tentativa é porque estou num alto astral. Nesse exato momento vou ouvir algo que me deixa maluco - o Slade. Marcelo Nova Onda, pergunto-lhe: Será que o heavy metal rock morreu? Ou por engano

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meu a grande marmelada da new wave está tão grande que consegue envolver grandes conjuntos para a mediocridade total, como por exemplo o Krokus, O Kiss e o Queen? Nessa época obscura do rock and roll, quando a marmelada da new wave assola, Nova Onda, sem querer lhe ofender, todo roqueiro é anti-modismo e você consegue ser o primeiro, pois o próprio axé babá está no seu íntimo. A new wave é uma marmelada funk para salvar as gravadoras e conjuntos de menor categoria musical do movimento punk, para não passar de um simples fogo de palha. Abraços e protestos para a sua nova postura roqueira. Cavalo”. Sem perder sua veia satírica, o apresentador responde ao ouvinte, sugerindo que troque o seu apelido de Cavalo Doido para Burro Chato, já que o mesmo “era chegado a um quadrúpede”. Em 1983, Marcelo já não consegue conciliar as atividades do Rock Special com a escalada do Camisa de Vênus. Perde-se um programa de rádio e ganha-se uma banda. SESSÕES MALDITAS NO AR Zero Hora. Esse era o horário em que Gutemberg Cruz detonava o programa “Sessão Maldita”, na Piatã FM. Os maiores bombardeios sonoros do rock pesado desfilavam sob o comando escancarado do mestre de cerimônias. Todos os lançamentos do mundo do metal tiveram boa parte de suas músicas executadas em sessões vampirescas diretamente das antenas energizadas. Algum tempo depois, Gutemberg passava a fazer os primeiros programas da série Rock Stars na Band FM, seguindo quase a mesma linha da Sessão Maldita. Abria dizendo: “Preparem os ouvidos, moçada, porque no Rock Star de hoje vai rolar muita pauleira. Aumente o volume do seu som que eu vou agitar o rock do Iggy Pop, Thin Lizzy, Arrigo Barnabé e muitos outros. Fiquem ligados!!!”. Entra Thin Lizzy, grupo formado em 1970 e que só no final de sua carreira tinha seus discos lançados por aqui. Fechava o bloco com “Renegade” um dos maiores hits do conjunto.

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Assim era o clima daquele domingo, 17 de julho de 1983: grupos pipocando em várias esquinas e o rock comendo no centro das cabeças. Iggy Pop, o mais louco dos cantores loucos, ocupava o éter com seu som visceral em “Down on Streets”, música integrante daquela programação. O namoro de Gutemberg Cruz com o rock se fez mais explícito quando, em 1981, levou alguns dos seus discos para execução no horário de meia-noite na Rádio Piatã FM que, à época, funcionava na Rua do Tira Chapéu (Centro Histórico). Convidado por um amigo “sem quê nem prá quê”, inaugurou aquele horário com uma hora do mais puro e arrasador rock pesado. Daí prá diante o dial daquela estação exalava Ted Nugent, Lou Reed, Led Zeppelin, Krokus e Wishbone Ash nas semanais edições da “Sessão Maldita”. Como jornalista, Gutemberg atuou nas redações dos principais cadernos de cultura de diários locais, além de ter trabalhado em diversas emissoras de tevê e rádio, buscando sempre fugir do óbvio. Recentemente – cansado de atuar como free lancer de jornais que pagam R$10,00 ou R$20,00 por matéria - dedica-se à pesquisa e produção editorial, atividade que, pioneiristicamente, canalizou para a produção de histórias em quadrinhos em setembro de 1968, com o lançamento da revista “Na era dos Quadrinhos” - o primeiro fanzine de HQ que se tem notícia. Voltando à questão do rádio, inquirimos o visceral companheiro sobre sua passagem como produtor e apresentador: - Como você iniciou a “Sessão Maldita”? - Um amigo me pediu para fazer o seu horário na rádio e eu teria que estar lá à meia-noite. Topei, mas disse-lhe que levaria os meus discos. Comecei o programa e logo começaram a “chover telefonemas e cartas”. Era uma coisa improvisada e inventei o nome: “e agora com vocês... Sessão Maldita de Rock”. Com o crescimento da audiência, fui contratado, embora sem ganhar nada. Depois de algum tempo, a estação tirou o programa do ar e, mais tarde, fui convidado para estrear outro na Band FM, o “Rock Star”. Esse era apresentado aos domingos.

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- No paralelo a Aratu FM tinha o “Rock Special” e, certa vez, Marcelo Nova anunciou que você tinha uma banda “Divina Tesão”. Que história foi aquela? Uma vez ele anunciou o especial de aniversário do seu programa no programa dele e, em termos de IBOPE, ele era seu concorrente... - Houve um tempo em que ele encerrava o “Rock Special”, indicando aos ouvintes a “Sessão Maldita” que era de uma outra rádio. Acho que isso também contribuiu para sua saída do ar. Quanto à “Divina Tesão”, numa conversa, eu disse que estava com uma banda também, já que surgia o Camisa de Vênus, eu estava lançando a Divina Tesão (era o nome de uma bebida que conheci em Pernambuco), mas aquilo era brincadeira e muitas gravadoras me procuravam para contratar a banda. - Você sempre gostou de outras coisas como os quadrinhos, jornais... - Eu tive um clube de histórias em quadrinhos e sempre gostei das atividades ligadas à cultura de uma forma geral, como o rock. Enquanto o meu irmão gostava dos discos dos Beatles, eu curtia os Rolling Stones. Mas também curto Beatles. Quando produzi os primeiros quadrinhos, alguns amigos se queixaram. Porque aqui na Bahia a coisa funciona assim: Se você faz aquilo que gosta e produz bastante, as pessoas dizem que você está querendo “aparecer”; quando você deixa de praticar, elas ficam cobrando e dizendo “você está parado, nunca mais fez nada...”. Fiz, juntamente com outros colegas, alguns suplementos de cultura e humor em jornais como a Tribuna da Bahia, no qual editávamos “A Coisa” e “Flor do Mal”, enfocando grupos de rock dos anos 60 e 70, ao lado de sátiras da sociedade da época. Numa das edições d’A Coisa fomos presos por causa de uma charge sobre a violência policial. Fomos interrogados, um em cada sala e os policiais a perguntar sobre comunistas, Cuba e um monte de coisas caçadas pelos órgãos de repressão do Governo Geisel. Eles achavam que nós éramos comunistas, guerrilheiros e queriam saber quem eram nossos chefes e quando a gente respondia que líamos Batman ou Homem Aranha, pensavam que aquilo era pseudônimo dos nossos

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líderes políticos clandestinos. Mais tarde, nos anos 80, fiz outros trabalhos em rádio e tevê, quando produzi na TV Itapoan o “Vídeo Jovem” com uma mudança radical em seu formato, já que o programa era feito apenas dentro do estúdio. Fizemos gravações externas, shows e muitas entrevistas. - Como você tem acompanhado o rock local? - A Bahia tem uma nova geração de bandas de rock que vive fervilhando pelas garagens, sem ter onde mostrar o seu trabalho. Falta espaço para o rock baiano. Desde que Raul Seixas, considerado o pai do rock brasileiro, deu seu grito de guerra, as tribos urbanas não pararam de crescer. Algumas não são tão novas assim. Os integrantes do Ramal 12 e do 14ºAndar, por xemplo, lutaram por muito tempo. Elite Marginal, Flores do Mal, Planeta Cidade, Gang Bang, incluíram em suas carreiras o Troféu Caymmi. Rabo de Saia, Código Penal, Ratos de Esquina e Neura mostraram a força de suas experiências sonoras. Tivemos ainda o rock pesado do Cabo de Guerra, o experimentalismo do Grupo Pulsa, o rock/pop da Companhia Clic, o psicodelismo da Meio Homem, a performance do Circus, o dodecafonismo do Crac!, a noise do Brincando de Deus ou a explosão do Camisa de Vênus. Alguns ficaram na estrada e desistiram, outros continuaram a lutar. Todos concordam que o rock desta terra vive (e/ou viveu) um grande momento. O som vigoroso e pulsante do rock baiano não morreu, ainda circula em todas as esquinas e praças da cidade. Rock é música urbana, contemporânea e elétrica. Rock é risco. Os problemas do rock and roll baiano são os mesmos de outras cidades nordestinas. Vai desde incentivo, investimento, e de produtores que acreditem até a ausência de um público rocker maior e informado (a mídia eletrônica, muitas vezes, não divulga, desconhece), além da ausência de ousadia de algumas bandas e de poder aquisitivo de seus criadores. Mas com todas essas dificuldades, é preciso ficar atento e forte. “Não temos medo de temer a morte”. É preciso ousar, criar, enfrentar os obstáculos para seguir em frente. Um bom trabalho, lançado no final dos anos 80, foi o LP “ Rock: Conexão Bahia”, reunindo sete bandas baianas de tendências

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e estilos diferentes. Com uma guitarra na mão e mil idéias na cabeça, o melhor é soltar o som! NEW ROCK, ALGO ERRADO COM O MEU RÁDIO! Levado ao ar inicialmente via rede, das 16:00 às 17:00h, pela Transamérica FM, a série de programa New Rock abastecia o ar dos trópicos com as levadas mais quentes do mundo do pós-punk e pop rock. Até aqui tudo normal nas tardes agitadas daqueles anos 88/89. Mas, somente até aqui quando locutores locais botaram um pouco “de molho” naquela frequência. Era 28 de junho de 1989 e o programa ganhava o ar entre às 20:00 e 22:00h, pilotado por J.Júnior e Isaac. Desse momento até pouco mais de três meses esteve estuprada a programação da transa. Afinal, algo de errado estava acontecendo no rádio. Detonando desde especiais inéditos com Raul Seixas a manifestos libertários esfuziantes, o espaço radiofônico estava de cabeça para baixo. Nunca houve e nem haverá programa como aquele. Não foi à toa que durou pouco. Além do rock (indo do heavy metal ao punk dos Dead Kennedys), anedotas e textos irreverentes faziam parte da munição. Esse não era o papel do programa original, criado em 86, baseados nos lançamentos de grupos pops, como R.E.M. ou The Cure. J. Júnior, integrante da equipe da Transamérica, assume o comando em 89, com um “especial” de aniversário de Raul Seixas. Daí em diante foram cerca de quarenta programas. Além do quadro “As piadas do Pequinho”, o programa New Rock levava ao ar discos e textos libertários, sugeridos por seus ouvintes. Waldir Serrão foi uma das atrações do programa, num momento em que ele se encontrava totalmente esquecido pela mídia. Dessa sua participação, extraímos alguns momentos.

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WALDIR SERRÃO, O HOMEM QUE NÃO DESISTIU Big Bem vasculha um pouco o quintal onde a bruxa semeou o rock. Jota Jr e Isaac conversaram acerca de como essa praga de música alastrou-se sobre a bucólica terra do feitiço. Jota - Antes de ser “Big Ben”, você era Waldir Serrão... Big Ben - Eu nasci na Boa Viagem, vivi na cidade baixa e Raul nasceu na Avenida Sete, mas vivemos a nossa infância juntos na cidade baixa, no Mont Serrat; que nem em Nova Iorque, e o Harlem, naquela época. E foi daí que começou o primeiro encontro, como se fosse uma premonição de tudo isso. Quando eu conheci Raul, não fazia rádio ainda, era Waldir Serrão. Ouvíamos programas como “Hoje é dia de Rock” em ondas curtas da Rádio Mairynck Veiga (RJ) e colhíamos as informações. O primeiro DJ do programa foi o Chacrinha. Nada mais, nada menos do que o saudoso Chacrinha. No programa havia: “Hoje é dia de Rock”, “Hoje é dia de Tango”, “Hoje é dia de Samba”... Diante disso, eu comecei a pesquisar e fazer “bico” em rádio. Jota: - E aí nasceu o Fã Clube do Elvis... Big Ben: - É. O “Elvis Rock Club” tinha uma sede na Rua Barão de Cotegipe, Calçada, na sede do Clube Democrata. O primeiro sócio desse clube foi Raulzito. Jota: - Nessa época, você era chamado de “Serrote”. Big Ben: - Exato, éramos Serrote e Raulzito. Então começamos um trabalho, mas sem aquela de “profissional” Nesse instante, entra no ar um medley de Elvis Presley...com a música “Crivo”, um blues rasgado na voz do próprio Waldir, prosseguem as explicações: Big Ben: - Quem realmente começou a fazer foi o Raul, no início quem começou a tocá-la foi o conjunto “Eles Quatro” do irmão de Raul. Ela nasceu de uma brincadeira, Raul sempre gostou de fumar e queria que eu também fumasse; eu sempre respondia que não estava ‘a fim ‘ e ele resolveu fazer uma música em homenagem ao cigarro. Na época, quando se pedia um cigarro, falava-se ‘você tem um crivo aí? ’Eu peguei, compus

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e Raul fez os arranjos. Disse a ele que iria gravar, quando apareceu o convite da RCA e gravei esse que foi o meu segundo disco. Antes teve o “Implosão de Rock”, disco de 1975 com Made In Brazil, Celly Campelo, Cyro Aguiar dentre outros. Mas o “Crivo” causou a maior polêmica porque a turma que gostava de outro tipo de cigarro ficava chateada. E eu dizia: ‘minha mensagem é um tipo de alerta para a rapaziada que queria entrar numa viagem errada’. Estávamos em 1989. O locutor interrompe a conversa, chamando uma música em homenagem ao aniversário de Mick Jagger. Era “Let’s Spend the Night Together”, do ano de 1965, com os Rolling Stones. Corta-se a voz e ouve-se mais um intervalo musical impossível de não dançar. Minutos mais tarde, Big Bem falava dos contemporâneos, grupos como The Fevers e outros, referindo-se assim: Big Ben: - Nos anos 60, eles começaram tocando rock pauleira mesmo, ganharam muito dinheiro e depois mudaram um pouco o estilo. Interrompe Isaac: - Os Fevers chegaram a gravar uma versão de “Born to be Wild” um clássico do grupo Steppenwolf. Big Ben: - Depois eles partiram para um esquema de fazer bailes e, aos poucos, foram se perdendo. Mas uma pausa e o entrevistado fala da sua carreira em Salvador. Fala da sua longa ausência do rádio e da TV e relata um pouco das suas andanças. Big Ben: - Eu tive que dar uma parada para fazer uma reciclagem no meu trabalho, participei de alguns eventos de rock e de música baiana também. Neste ponto da conversa, o apresentador Jota Jr. tenta traçar um paralelo do trabalho de Waldir Serrão com Alan Freed, do final da década de 50. Jota: - O Alan Freed reunia as grandes feras como Little Richard, Chuck Berry e outros. Naquela época, a polícia americana começou a sentir um certo perigo. Ele era considerado um subversivo com aqueles shows que fazia. Aquilo que era uma coisa de diversão em que as pessoas se misturavam, brancos iam juntos com negros... A sociedade conservadora e racista dos Estados Unidos ficavam assustadas com tudo aquilo. Depois de

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breves comentários sobre aquela edição especial do programa, o papo retorna à esfera doméstica, quando se fala do lendário Cine Roma: Big Ben: - Eu, como DJ, promovia festas, shows e bailes não só de rock como também de música feita na Bahia. Porque era uma mistura, pintava de tudo lá no Cine Roma. De Raul Seixas com “Raulzito e os Panteras” até José Roberto, cantor do estilo ‘brega’ (romântico), além de grupos como o Brasa Bossa, Eles Quatro, Os Gentlemen (do irmão de Pepeu Gomes), todos se concentravam no templo da juventude baiana que era o Cine Roma. A gente fazia aquilo apenas com o intuito de divulgar a música feita na Bahia. Foi daí que surgiram Tom e Dito que tinha um grupo chamado Enema Trio que fazia um estilo tipo bossa nova romântica. Jota: - Big Bem vamos ouvir mais música... mas fale um pouco de Cely Campelo. Big Ben: - Ele foi considerada a rainha do rock do Brasil nos anos 60. Era ela, seu irmão Tony Campelo e Sergio Murilo ( o Roberto Carlos da época). Era um ídolo que cantava as versões de Paul Anka e Neil Sedaka. “Onde você For” é a música de Cely Campelo que encerra o bloco da entrevista com o autor das primeiras páginas da história do rock soteropolitano. Este foi um destacado momento do New Rock com a história de Waldir Serrão, cuja trajetória, apesar de limitada ao aspecto de entretenimento ou ingenuidade dentro do rock, contribuiu (numa leitura típica da Jovem Guarda) para a composição do quadro cultural a partir do rádio e da televisão. Recentemente de volta a carreira musical, Big Bem segue fazendo arrastadas apresentações na noite baiana, depois de lançar o primeiro CD em meados de 1995, com pouca repercussão. Quanto ao New Rock, sua audiência crescia proporcionalmente ao descontentamento da emissora que logo cuidou de retirá-lo do ar. Com a suspensão do programa, vieram as manifestações exigindo que a emissora retornasse a exibi-lo. Sob a análise daquelas minorias, o ar da Bahia estava entorpecido pela monocultura radiofônica. como se não bastasse o fato de serem os canais de rádio e TV controlados por deputados e senadores, espaços

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dedicados ao rock, reggae e ecologia foram perversamente abolidos tanto pela programação impositiva da música de trio elétrico, como pelas transmissões em rede via satélite. Em 06 de outubro de 89, o extinto “Jornal da Bahia” divulgava nota sobre a reação dos ouvintes do New Rock: “Um fato inusitado - e inédito - aconteceu hoje na cidade. indignados com a retirada do programa “New Rock” da programação da Transamérica FM, um grupo de ouvintes fará uma manifestação na porta da emissora, hoje à tarde. O programa era todo dedicado ao universo do rock and roll, criando um canal direto com muitos ouvintes, fãs incondicionais do estilo. Novos discos eram apresentados, velhos mitos eram homenageados e até discos dos próprios ouvintes eram tocados no programa, o que fazia com que mostrasse um pouco de tudo. foi inclusive neste programa que a mãe de Raul Seixas deu uma longa entrevista, poucos meses antes da morte do roqueiro, lembrando sua carreira e já falando dos seus temores sobre a saúde do filho. Agora o programa foi sacado da programação e a reclamação vem a galope, com o ato de protesto, na porta da Transamérica, no Alto do Sobradinho, Federação.” ARATU FM. AQUILO DEU NISSO! Atendendo muito mais as preferências de seus produtores do que ao clamor das ruas, a compilação “Rock 96” foi infeliz pelo conteúdo apresentado. O lançamento marcou a fase final do estilo de programação da antiga Aratu FM, marcadamente pontuada pela execução de programas de surf e bandas de rock. Foram contemplados os seguintes grupos: Ramal 12, Grupo Suyte, Cabo de Guerra, Planeta Cidade, Gang Bang, Utopia, Faróis Acesos, Diário Oficial, Cravo Negro e Elite Marginal. Pouco depois desse lançamento, muitas dessas bandas atravessaram fases difíceis, algumas silenciaram e outras utilizaram a popularidade obtida na época para atingir novas platéias como foi o caso da Faróis Acesos e Diário Oficial (atualmente Jheremias Não Bate Corner). Dois exemplos que enveredaram pelo filão do movimento baiano que ficou conhecido como “axé-music”.

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O “Rock 96” foi distribuído, em 1991, pela gravadora RCA e teve seu repertório limitado à execução dentro da programação desta emissora que, mais tarde, viria a alterá-la, face ao esfriamento dos grupos de rock oriundos da década de 80. Por um certo tempo, tentou-se manter o perfil da programação, reeditando-se outros programas de rock, mas a emissora já vivia sem acertar o passo, restando programas como o “Demo Trip”. Mergulhada no ostracismo, a “rádio da nossa geração” não demorou muito para ser abocanhada pelas organizações da seita Igreja Universal do Reino de Deus. DEMO TRIP: BANDAS GANHAM O AR Grupos emergentes de pop e rock ganham meia hora por semana no programa “Demo Trip”, espaço criado pela Aratu FM, em 92, para divulgar as fitas-demo enviadas pelas bandas. Embora sem alcançar grande êxito, o trabalho da produção independente foi uma janela para Narizes Estranhos, THC, Nós Nem Liga, Íris Vermelha, Brincando de Deus, Meio Homem, e outros grupos mais antigos. A Nós Nem Liga destacou a música “Hey, Hey, Hey”, Ratos de Esquina ganhou “muitos pedidos” com “Força Sinistra”, ao lado da Razão Social que teve “Calamidade Pública” bem executada. “Perguntas” foi o som apresentado pela Narizes Estranhos, trazendo Claudia Cabús nos vocais do grupo formado desde 90, mostrando um clima pop antes experimentados por grupos como Nau, revestido com singular interpretação. RÁDIO DAYS INVADE O ÉTER De volta o rock no rádio. Depois do silêncio de dez anos, a Manchete FM - após sucessivas fases pop, dancing, light e clássicos - admite levar ao ar uma hora com músicas de bandas independentes. Em 85, sob a coordenação de Amaury Santos e Jeferson Beltrão (produtores da extinta Fluminense FM do Rio) implementaram uma programação que pouco

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durou. Era o Manchete Rock Show, iniciado em outubro, com as lendárias bandas em seus mais variados estilos. Em abril de 95, passados os ventos uivantes, fagulhas subterrâneas ocupam o éter radiofônico. Surge o espaço “Rádio Days”: uma hora de som nas tardes de sábado, conduzido por Messias G. B., integrante da banda brincando de deus. O programa era uma revista informativa com dicas de vídeo, cinema, fanzines e de internet. Divulgando bandas oriundas do pós-punk inglês, o horário era um carregamento gótico invadindo os ouvidos desavisados na aldeia. O “Radio Days” ajudou a introduzir o gosto por bandas do gênero “Eletronic Body Music” e pela cultura cyber. Quando o público começa a tomar conhecimento do programa, a emissora decide suspendê-lo. AS RÁDIOS LIVRES As chamadas rádios clandestinas, piratas ou alternativas sempre foram um instrumento de contestação. Sejam elas de caráter estratégico em guerrilhas e revoluções ou em resposta aos padrões de comunicação vigentes. Na Bahia, esse movimento aconteceu em início da década de 80, sob os efeitos de experiências acontecidas no sul do país. O Dentel tem registrado apreensões e processos de emissoras de diversas tendências: evangélica, políticas, estudantis, sindicais e muitas outras. Em julho de 1981, tem-se notícia do primeiro transmissor caseiro montado em Salvador. Era um equipamento de potência ínfima e funcionava em ondas médias, não tinha nome específico e, segundo informações desencontradas, fora elaborado a partir de esquemas conseguidos de rádios convencionais. A programação, limitada ao horário das sete às oito e meia da noite, coincidia e interferia nos programas do Projeto Minerva. Foi comandada por estudantes que executavam músicas de artistas como Pepeu Gomes, Santa Esmeralda e muitos outros. Essa rádio seria, na verdade, a segunda experiência em termos de comunicação sem concessão estatal na cidade porque um outro caso ocorrera há três anos

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mais cedo, embora sem ser documentado. No final de 84, com a efervescência das primeiras bandas de rock independentes surge a idéia de se montar um transmissor de rádio FM para fazer frente à programação “comercial” das estações locais. Aparecia, então, a rádio Verme, com frequência de 106,3 MHZ. Seu articulador, um paulista de 27 anos que atendia pelo nome de PT, fazia a programação sozinho para levar ao ar. sempre à noite, manifestos, grupos independente e rock. Devido a problemas de alcance (o sinal não passava de três quilômetros), o estágio da rádio durou pouco e quase não teve publicidade. Descobrimos uma gravação em cassete com a abertura da programação levada ao ar 14 de dezembro, na qual o locutor faz um chamamento geral aos possíveis ouvintes. Com um fundo musical de Kraftwerk, ouvia-se: “VermE FM chamando todas as tribos dessas plagas imundas, sujas e empoeiradas. É hora de dançarmos a nossa incrível dança. Atenção, todos os desocupados. vadios e ociosos por convicção, todos os loucos, dissidentes e preguiçosos. Atenção todos os peões e rasga-lonas pelas fábricas da enganação. Atenção todos os despojados, roqueiros, punks, estudantes, surfistas, metaleiros, bêbados, hippies, poetas da praça, vagabundos, sonhadores e criadores marginais. É hora de acordarmos todos os ricos miseráveis, deputados xibungos. Todos os negros esquecidos e marginalizados na terra dos manda-chuvas. Não devemos dar ouvidos àqueles que vivem dizendo a eterna ladainha e construindo cadeias até no ar, não devemos dar ouvidos àqueles que vivem falando em paz, promovendo guerras, enchendo o rabo com vil metal, prometendo obras ilusórias e transporte de massa. Todos eles são mentirosos, Todos mentem quando nos enganam com crises e dificuldades oficiais. Apático desavisado ouvinte, cidadão contribuinte, estamos aqui novamente, apesar das dificuldades dessa cidade tropicalista. Tomando o ar desse território de todos nós, espalhando nossos delírios e indignações poéticas e musicais. E hoje a gente promete levar aos seus ouvidos muito som e amenidades não programadas nas oficiais.” E por aí segue a sequência musical com ZZ Top, The Pretenders, Queen e Judas Priest.

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No dia 24 de maio de 1986, um grupo de estudantes da Universidade Federal da Bahia, depois de conseguirem um transmissor, anunciam e inauguram a rádio Estação da Luz FM (a 89.l). A rádio, composta de um transmissor, uma antena do tipo “guarda-chuva”, mesa de som e outros equipamentos de estúdio, transmitia palestras, shows, manifestos, humor e muita música. Tudo produzido pelos estudantes que rateavam horários e responsabilidades. José Luiz Bernardo, um dos articuladores do projeto, conduziu os destinos da estação com bastante transparência e inventividade. Na ocasião, acontecia em Salvador o Seminário Regional Pela Democratização nos Meios de Comunicação que se encerrou com o lançamento do livro Rádios Livres - “A Reforma Agrária no Ar”, da Editora Brasiliense, de autoria de Arlindo Machado, Caio Magri e Marcelo Masagão. Aliado ao propósito de entretenimento, a intenção da rádio era rediscutir o papel das emissoras de comunicação como um todo, democratizar a participação das comunidades nos programas e fazer uma “comunicação” realmente a serviço da população e não, agir como um império de poucas famílias que dita o que se deve ver e ouvir. Em pouco mais de um ano, a rádio, apesar de ter um alcance médio de 12 quilômetros e funcionar no bairro da Federação, não ganhou notoriedade senão no meio acadêmico e alternativo. Desativado temporariamente, o transmissor da Estação da Luz chegou a ser repassado para um pool de sindicalistas que utilizaram-no, por diversas ocasiões, divulgando propaganda política ao longo do centro da cidade. Até início da década de 90, havia sido criado um grupo de articuladores de rádios livres, que chegou a reunir 12 estações, predominantemente com características político-partidárias que, muitas vezes, chegavam a imitar as programações das emissoras tradicionais. A maior parte delas localizava-se em cidades do interior como a rádio Litoral, Divergência FM e A Voz do Povo. Em novembro de 94, a Delegacia Regional de Telecomunicações lacrou oito transmissores que operavam em FM. As rádios foram denunciadas por

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proprietários de emissoras convencionais sob a acusação de ilegalidade. Contudo, alguns articuladores apontavam que suas programações eram muito mais aceitas pela comunidade por prestarem um serviço de grande valia, tanto na área de lazer, como na de orientação política. Em algumas localidades, as apreensões foram seguidas de protestos anônimos de ouvintes, já acostumados ao ritmo das transmissões sem intervalos comerciais. Os casos mais evidentes no interior ocorreram nas cidade de Queimadas, Entre Rios, Esplanada e Jequié. A Rádio Tropical FM de Queimadas funcionava em cima de uma farmácia a fazia parte da cotidiano da cidade, auxiliada pela topografia local. No ano de 93, a fiscalização lacrou 27 transmissores e alguns dos proprietários ainda respondem a inquérito. Junto com o material apreendido numa das blitz encontraram manifestos e jornais explicando à população a proposta destas emissoras. Durante a greve dos trabalhadores no ano de 1991, ouviram-se nitidamente, no centro da cidade, mensagens, comentários e desdobramentos do movimento, através da frequência 88.3 de uma emissora sem nome e ligada a seguimentos políticos, mas sem divulgação junto ao meio alternativo. Indícios de retomada de espaço no ar aparecem em meados de 95 com duas “piratas” (que seus articuladores preferem chamar de rádios livres: operando em 89MHZ, a rádio Diana FM, com um transmissor de 60 watts, nas áreas da Boca do Rio e a 106.5 Xavante FM, com programação musical e humorística aos domingos. Como informou um membro da Xavante FM, identificado como Lesma Lerda, morador de um bairro do Cabula, a propaganda é feita pelo telefone e pelos muros da cidade.