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DataGramaZero - Revista de Ciência da Informação - v.11 n.4 ago10 ARTIGO 02 Os Paradigmas da Ciência e seus Efeitos na Composição dos Campos Científicos: a Instituição da Ciência da Informação The Paradigms of Science and its Effects on Composition of Scientific Fields: the Institution of Information Science por Mara Eliane Fonseca Rodrigues Resumo: O presente texto configura-se como um esforço para compreender algumas das principais características da história do pensamento cientifica ocidental; para melhor se entender a ciência tal como é conhecida hoje e melhor apreender a constituição da Ciência da Informação como um campo cientifico, procurando abordar seus vínculos com outras disciplinas científicas e, em especial, com a Biblioteconomia. Para isso, primeiramente, expõe as condições que identificam um paradigma ou os requisitos necessários para que possamos considerá-lo com esse significado. A seguir, descreve, brevemente, a trajetória do pensamento científico ocidental para mostrar os movimentos paradigmáticos que, ao longo do tempo, influíram na organização dos campos científicos. Após, procura observar os reflexos desse modelo de ciência na constituição do campo da Ciência da Informação. Por fim, discute como uma outra concepção de pensar o conhecimento e de fazer ciência, o paradigma emergente, poderá repercutir e modificar a estruturação científica da área. Palavras-chaves: Paradigmas científicos; Paradigma emergente; Ciência da informação; Interdisciplinaridade. Abstract: This text is as an effort to understand some key features of the history of western scientific thinking to understand science as known today and the constitution of Information Science as a scientific field, seeking to address their links with other scientific disciplines, and in particular with Librarianship. Firstly it exposes the conditions that identify a paradigm or the requirements necessary for us to consider it with that meaning. The following describes briefly the history of Western scientific thought to show the paradigm movement that, over time, influenced the organization of scientific fields. Afterwards, tries to observe the consequences of this model of science in the constitution of the field of Information Science. Finally, it discusses how a new conception of knowledge and thinking science, the emerging paradigm, can pass and modify the structure of this scientific field. Keywords: Scientific Paradigms; Emerging Paradigm; Information Science; Interdisciplinarity. Introdução Em todo processo de desenvolvimento das sociedades, os atos humanos seguem em harmonia com um entendimento ou concepção de mundo. Por ser constituída por homens, a ciência em todas as

RODRIGUES - Os Paradigmas Da Ciência e Seus Efeitos Na CI

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Texto sobre os novos paradigmas da ciencia da informação e suas relações inter curso.

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DataGramaZero - Revista de Cincia da Informao - v.11 n.4 ago10 ARTIGO 02

Os Paradigmas da Cincia e seus Efeitos na Composio dos Campos Cientficos: a Instituio da Cincia da InformaoThe Paradigms of Science and its Effects on Composition of Scientific Fields: the Institution of Information Sciencepor Mara Eliane Fonseca Rodrigues

Resumo: O presente texto configura-se como um esforo para compreender algumas das principais caractersticas da histria do pensamento cientifica ocidental; para melhor se entender a cincia tal como conhecida hoje e melhor apreender a constituio da Cincia da Informao como um campo cientifico, procurando abordar seus vnculos com outras disciplinas cientficas e, em especial, com a Biblioteconomia. Para isso, primeiramente, expe as condies que identificam um paradigma ou os requisitos necessrios para que possamos consider-lo com esse significado. A seguir, descreve, brevemente, a trajetria do pensamento cientfico ocidental para mostrar os movimentos paradigmticos que, ao longo do tempo, influram na organizao dos campos cientficos. Aps, procura observar os reflexos desse modelo de cincia na constituio do campo da Cincia da Informao. Por fim, discute como uma outra concepo de pensar o conhecimento e de fazer cincia, o paradigma emergente, poder repercutir e modificar a estruturao cientfica da rea.Palavras-chaves: Paradigmas cientficos; Paradigma emergente; Cincia da informao; Interdisciplinaridade.

Abstract: This text is as an effort to understand some key features of the history of western scientific thinking to understand science as known today and the constitution of Information Science as a scientific field, seeking to address their links with other scientific disciplines, and in particular with Librarianship. Firstly it exposes the conditions that identify a paradigm or the requirements necessary for us to consider it with that meaning. The following describes briefly the history of Western scientific thought to show the paradigm movement that, over time, influenced the organization of scientific fields. Afterwards, tries to observe the consequences of this model of science in the constitution of the field of Information Science. Finally, it discusses how a new conception of knowledge and thinking science, the emerging paradigm, can pass and modify the structure of this scientific field.Keywords: Scientific Paradigms; Emerging Paradigm; Information Science; Interdisciplinarity.IntroduoEm todo processo de desenvolvimento das sociedades, os atos humanos seguem em harmonia com um entendimento ou concepo de mundo. Por ser constituda por homens, a cincia em todas as suas fases de evoluo nos mostra que a teoria e a prtica cientficas so baseadas em uma viso de mundo, ou seja, a cincia procura explicar os fenmenos que lhe interessam de uma maneira apropriada aos critrios aceitos como sendo cientficos. Portanto, todo conhecimento humano est vinculado a uma poca, fruto de um momento histrico e possui suas limitaes, tanto que teorias bem sucedidas em um dado momento podem ser substitudas por outras.

A cincia uma forma de conhecimento que busca explicar e entender, em princpio, a realidade. Assim que diferentes ramos, reas ou disciplinas cientificas se debruam sobre os mais diversos fenmenos convertendo-os em objeto de pesquisa cientfica. Inicialmente, tudo aquilo passvel de ser conhecido pelo ser humano converte-se em objeto de pesquisa para a cincia. Nesse processo, a prpria cincia tornou-se um objeto de problematizaes e pesquisas. Ao longo da histria da formao do conhecimento cientifico ocidental foram se construindo tradies de reflexo sobre a cincia que envolveram a validade de seus fundamentos, seus processos e produtos, assim como, a relao que ela estabelece com o contexto mais amplo em que est inserida.

Desse modo, a constituio dos campos cientficos se processa atravs de contextos relacionais e complexos, no sendo imune a mudanas de comportamentos sociais e histricos que fazem com que as indagaes se multipliquem e se diversifiquem em correntes distintas de pensamento.O presente texto configura-se como um esforo para compreender algumas das principais caractersticas da histria do pensamento cientifico ocidental para melhor se entender a cincia tal como conhecida hoje e, consequentemente, melhor apreender a constituio da Cincia da Informao como um campo cientifico procurando abordar seus vnculos com outras disciplinas cientficas e, em especial, com a Biblioteconomia.

Mas, para se identificar quais teorias ou doutrinas foram dominantes nos processos de desenvolvimento do conhecimento cientifico necessrio, antes, reconhecer a importncia dos paradigmas nos episdios que caracterizaram cada perodo do pensamento cientifico no ocidente. Para desenvolver esse enfoque preciso, primeiramente, expor as condies que identificam um paradigma ou os requisitos necessrios para que possamos consider-lo com esse significado.

Conceituao de paradigmaO termo paradigma, nas trs ltimas dcadas, tem predominado tanto no universo do discurso da investigao cientfica (cincias naturais), como no ambiente discursivo das disciplinas que abordam o mbito do social. No entanto, segundo Gonzlez (2005), no surpreendente que quando se pede uma definio do termo paradigma, a maioria das pessoas se mostra incapaz de oferecer uma expresso clara do seu significado. Por esse motivo, o autor desenvolveu um estudo para tentar clarificar as dimenses epistemolgica, axiolgica, sociolgica, teleolgica, ontolgica e metodolgica do vocbulo. Em seu ensaio Gonzlez (2005) utiliza uma estratgia dual que procura, primeiro, expor as distintas etapas em que se pode organizar a evoluo histrica do termo paradigma em seguida, procede a uma anlise terica e conceitual do termo, com o propsito de esclarecer seu sentido e significado e reduzir sua polissemia. Tal anlise realizada a partir da reviso de um conjunto de definies de diversos autores. Com base nessas definies, o autor estabelece uma srie de dimenses conceituais que devem ser consideradas na delimitao de um paradigma. Desse modo, indica que para delimitar e caracterizar um paradigma tem que se levar em conta os seguintes aspectos:

1. carter sociolgico, quer dizer, a referncia da comunidade cientfica que o assume; 2. exigncia consensual, refere-se a necessidade de aceitao geral e no imposio de modos bsicos de atuao; 3. historicidade, reconhecimento da vigncia temporal;4. natureza estrutural e sistmica, refere-se a presena de uma organizao harmoniosa, integrada e completa de diferentes componentes;5. instrumentalidade demarcadora, quer dizer, delimitao de um mbito de estudo;6. estatuto metodolgico, organizao dos meios para estudar a realidade em que se tem interesse;7. contexto de legitimao, critrios para avaliar as propostas de soluo aos problemas estudados;8. linguagem, modos e meios de expresso e comunicao convencionalmente aceitos;9. aspecto organizacional, sistema de hierarquias e relaes inter e intracomunitrias;10. natureza epistemolgica, modos para produzir saberes privilegiados no seio da comunidade; 11. carter prescritivo, normas de atuao combinadas entre os membros da comunidade cientfica.

Para fazer a reviso do processo de evoluo histrica do termo paradigma, Gonzlez transpe o esquema que Michel Serres (1968), citado por Li Carrillo (1981, p. 78)[1] props para o estudo dos conceitos matemticos. Segundo Gonzlez, Serres afirma que na evoluo dos conceitos de paradigma possvel identificar trs idades: 1) idade do aparecimento; 2) idade da reativao; 3) idade da recorrncia.

A idade do aparecimento corresponde poca de nascimento do conceito, a sua gnese no tempo histrico. O termo paradigma se origina do grego que significa exemplo, ou melhor ainda, modelo ou padro. (Gonzlez, 2005, p. 3). Originalmente, Plato utilizou esta expresso para designar um instrumento de mediao entre a realidade e sua ideao. Mas, na verso platnica, um paradigma no constitui um simples modelo, um simples modo de cpia, padro ou mostra de algo que real, representa muito mais que isso: um modelo exemplar, de tal modo perfeito que considerado digno de ser seguido e imitado. Este ltimo significado o mesmo que se lhe atribui no contexto da gramtica. Nesse caso, o termo paradigma se refere a um conjunto de formas flexveis que toma uma unidade lxica, ou conjunto de unidades lxicas que podem aparecer e ser permutadas entre si em um determinado contexto.

A idade da reativao corresponde ao momento de insero do conceito de paradigma dentro de um sistema que lhe d um novo sentido. Poderia ser identificada a partir do momento que, luz dos contextos filosfico e lingustico, o termo passa a ser utilizado no mbito sociolgico. A idade da recorrncia situa-se no comeo da dcada de sessenta, graas a obra de Thomas Khun. A concepo moderna de paradigma est estreitamente vinculada a Thomas Kuhn (1922-1996), filsofo e historiador da cincia. Kuhn (1991), tem sido uma importante referncia na literatura contempornea para abordar a questo, devido s modificaes que introduziu na maneira de compreender a cincia com a obra A estrutura das revolues cientficas.

Kuhn (1991, p.13) chama de paradigmas as realizaes cientficas universalmente reconhecidas que durante algum tempo fornecem problemas e solues modelares para uma comunidade de praticantes de uma cincia. Mais adiante esclarece que no seu uso estabelecido, um paradigma um modelo ou padro aceitos pelos praticantes de uma cincia e que permitem a explicao de certos aspectos da realidade (Kuhn, 1991, p.43). Podemos dizer, ento, que na tica de Kuhn, um paradigma uma construo que pe fim s polmicas existentes entre os praticantes de uma cincia a respeito de determinados fundamentos, pois a partir do momento em que existe um consenso por parte de um grupo de cientistas sobre determinadas ocorrncias ou fenmenos, comea uma sinergia unificadora em torno da nova temtica (Moraes, 2004, p. 31). De acordo com Kuhn (1991), essa converso faz com que as escolas mais antigas comecem a desaparecer gradualmente e queles que no desejam ou no so capazes de se acomodar ao novo paradigma tm que proceder isoladamente ou se juntar a algum outro grupo. Desse modo, o desenvolvimento da cincia no resulta de mecanismos de continuidade e sim de mecanismos de rotura.

A partir da obra de Kuhn o termo paradigma alcana o mximo impacto no campo das cincias sociais. Seu livro provocou uma discusso prolixa e polmica em numerosas disciplinas, que ainda se mantm. Mesmo reconhecendo a transcendncia de sua obra e admitindo que a maior parte das discusses relacionadas com a filosofia da cincia tem girado em torno dos delineamentos que Kuhn apresenta, vrios autores apontam reducionismos e at mesmo incertezas na noo de paradigma exposta por Kuhn e procuram ir alm da sua definio.

Fritjof Capra (1988), fsico e historiador da cincia, confessa que ao ler A estrutura das revolues cientficas de Kuhn sentiu-se ligeiramente desapontado com esse livro to famoso ao constatar que j conhecia suas idias principais graas s [suas] repetidas leituras de Heisenberg. Capra prefere falar de paradigma social em lugar de paradigma cientfico conforme definido por Kuhn. Para ele um paradigma significa a totalidade de pensamentos, percepes e valores que formam uma determinada viso da realidade, uma viso que a base do modo como uma sociedade se organiza. (Capra, 1988, p. 17). Capra, portanto, amplia o conceito de paradigma preconizado por Kuhn, levando-nos a crer que um paradigma seria apenas um referencial de anlise e interpretao de uma realidade. Trata-se de uma construo terica que tem o sentido de auxiliar a apreenso organizada das relaes sociais, num tempo e num espao. (Cunha, 1998, p. 22).

J para Edgar Morin, socilogo e pensador francs, um paradigma pode ser definido por promoo/seleo dos conceitos mestres da inteligibilidade e [...] determinao das operaes lgicas-mestras. O autor explica que os conceitos mestres da inteligibilidade so a Matria, nas concepes materialistas, o Esprito, nas concepes espiritualistas, a Estrutura, nas concepes estruturalistas, que excluem ou subordinam os conceitos que lhe so opostos (a desordem, o esprito, a matria, o acontecimento). As operaes lgicas-mestras so, ao mesmo tempo, preponderantes, pertinentes e evidentes sob o domnio do paradigma, que privilegia determinadas operaes lgicas em detrimento de outras. Por isso, desempenha um papel ao mesmo tempo subterrneo e soberano em qualquer teoria, doutrina ou ideologia. Em resumo, para Morin (2000), o paradigma instaura relaes dominadoras que determinam o curso de todas as teorias e de todos os discursos por ele controlados, organiza a organizao deles e gera a gerao ou a regenerao (Morin, 2000, p.24-26).

Com base na contribuio desses autores para o entendimento do termo paradigma, poderamos dizer que um paradigma representa os contedos de uma viso de mundo. O que leva a crer que as pessoas que agem de acordo com os axiomas de um paradigma esto identificadas ou simplesmente em consenso sobre uma maneira de entender, de perceber e de agir, a respeito do mundo. Mas, isso no significa que conceitos e doutrinas soberanas no convivam com teorias rivais. Desse modo, as mudanas paradigmticas convivem, simultaneamente, com outras experincias, teorias, conceitos ou fenmenos resistentes que no se ajustam facilmente ao paradigma em vigor (Moraes, 2004).

Cunha (1998, p. 23), no entanto, adverte que preciso ter alguns cuidados quando se utilizam paradigmas. Com base em Pimentel (1996) explica que prprio de um paradigma excluir da investigao cientfica problemas cujas solues no sejam por ele antecipadas. Este fato, em cincias sociais, muitas vezes inibe a busca de caminhos alternativos, Pimentel (1996, p. 31) afirma que muitas questes sociais relevantes foram afastadas da investigao por no serem redutveis forma usual do paradigma dominante. Entretanto, incontestvel que o uso do conceito de paradigma se constitui em um apoio importante para a realizao de alguns estudos comparativos que tm por objetivo auxiliar na anlise mais profunda de determinada temtica investigada (Cunha, 1998; Pimentel, 1996). Portanto, seu uso deve ser entendido como uma forma encontrada por muitos autores de estabelecer um parmetro para se entender as diferentes concepes de viso de mundo, na sociedade, a fim de melhor compreender seus momentos distintos.

Paradigmas e mudanas de paradigmas: implicaes na composio dos campos cientficosNo estudo da composio dos campos cientficos cabe saber fazer a distino entre paradigmas para que se perceba as alternncias nos processos de construo do conhecimento ao longo da histria e, da mesma forma, perceba quais ideias so relevantes em uma determinada poca, quais so desconsideradas e em que perodo o so e por qu. Para tanto, faz-se necessrio uma reflexo para entender quais paradigmas so os orientadores e por que o so. Por esse motivo, descrevemos neste item, brevemente, a trajetria do pensamento cientfico ocidental para mostrar os movimentos paradigmticos que, ao longo do tempo, influram na organizao dos campos cientficos.

A viso de mundo e o sistema de valores que esto na base de nossa cultura ocidental, foram formulados em suas linhas essenciais nos sculos XVI e XVIII. Segundo Capra (1982, p. 49), entre 1500 e 1700 houve uma mudana drstica na maneira como as pessoas descreviam o mundo e em todo o seu modo de pensar. Antes de 1500, a viso de mundo que predominava na Europa da Idade Mdia (de 450 a 1400), assim como na maioria das outras civilizaes, era orgnica. As pessoas viviam em comunidades pequenas e coesas o que permitia que vivenciassem os processos da natureza em relaes caracterizadas pela interdependncia dos fenmenos espirituais e materiais e pela subordinao das necessidades individuais s da comunidade. A estrutura cientfica que prevalecia nessa viso de mundo orgnica se assentava em duas autoridades: Aristteles e a Igreja. No sculo XIII Toms de Aquino combinou o abrangente sistema da natureza de Aristteles com a teologia e a tica crist e, assim fazendo, estabeleceu a estrutura conceitual que permaneceu inconteste durante toda a Idade Mdia (Capra, 1982, p. 49).

Na Idade Mdia a cincia baseava-se na razo e na f e sua principal finalidade era compreender o significado das coisas e no exercer a predio ou o controle (Capra, 1982, p. 49). Nessa poca, a teologia assume o comando do pensamento. O poder autnomo e hegemnico da razo na poca anterior submete-se, agora, aos ditames da providncia: o homem carece de toda autonomia e v-se merc de Deus e a depender de sua graa. A caracterstica marcante do perodo a transformao dos textos bblicos em fonte de autoridade cientfica e, de modo geral, a existncia de uma atitude de preservao/contemplao da natureza, considerada sagrada (Pdua, 1998, p. 17).

Este universo das leis divinas comea a ser questionado a partir de Coprnico (1473-1543), que com a astronomia retoma a hiptese de Pitgoras restabelecendo o heliocentrismo, fundamentando, assim, a nova concepo da estrutura do universo. Segue-se a Coprnico o pensamento de Kepler (1571-1630), cientista e mstico, que se preocupou em descobrir a harmonia das esferas que culminou na formulao de tabelas astronmicas, suas clebres leis empricas do movimento planetrio, as quais vieram corroborar o sistema de Coprnico (Capra, 1982, p. 500). Mas, a verdadeira mudana na opinio cientfica foi provocada por Galileu Galilei (1564-1642), fsico, matemtico e astrnomo italiano, destacado como o grande gnio de sua poca que introduziu a descrio matemtica da natureza e a abordagem emprica que se tornaram as caractersticas predominantes do pensamento cientfico do sculo XVII (Moraes, 1996, p. 23). Com Galileu acontece a verdadeira mudana cientfica: a induo e a deduo, a partir das quais se processa o conhecimento. As concepes tericas de Galileu sobreviveram como critrios importantes das teorias cientficas atuais. Francis Bacon (1561-1626), na Inglaterra, aprofunda a questo da induo, formulando sua teoria do procedimento indutivo, cuja metodologia partia da realizao de experimentos para se chegar a concluses gerais, a serem testadas por novos experimentos. (Moraes, 1996, p. 23). Desse modo, Bacon lana as bases para o estabelecimento do mtodo indutivo-experimental.

A partir da, surgiram duas grandes figuras, entre os sculos XVII e XVIII, que foram determinantes para a substituio da concepo orgnica da natureza pela metfora mquina: Descartes e Newton. Descartes foi considerado o fundador da cincia moderna, pai do racionalismo moderno e quem concluiu a formulao filosfica que deu sustentao ao surgimento da cincia moderna durante o sculo XVII. (Moraes, 1996, p. 23). Para Descartes, o conhecimento era obtido a partir da intuio e da deduo. Propunha a decomposio do pensamento e dos problemas em suas partes componentes e a disposio dentro de uma ordem lgica. Tinha a dvida como ponto fundamental de seu mtodo, utilizando-a como instrumento bsico de raciocnio, dispensando a demonstrao. Descartes estabelece as bases do mtodo racional-dedutivo, invertendo a posio de Bacon anteriormente mencionada.

Segundo Capra (1982, p. 53), o mtodo de pensamento de Descartes e sua concepo da natureza influenciaram todos os ramos da cincia moderna e podem ser ainda hoje muito teis, mas, adverte, s o sero se suas limitaes forem reconhecidas. Descartes criou a estrutura conceitual para a cincia do sculo XVII, mas ele no pde concretizar sua concepo da natureza como uma mquina perfeita, governada por leis matemticas exatas. De acordo com Capra (1982), ele no fez mais do que esboar as linhas gerais de sua teoria dos fenmenos naturais.

No sculo XVIII, Newton complementa o pensamento de Descartes, dando realidade viso do mundo como mquina perfeita. O empirismo de Bacon (induo) e o racionalismo de Descartes (deduo) firmaram uma oposio que Newton viria a solucionar com uma nova elaborao do conceito de ordem csmica. Para Newton, a fsica no homognea matemtica. Existem os princpios matemticos e os empricos e a cincia precisa ali-los. O processo de produo do conhecimento no vem da intuio pura, mas de uma experincia sensvel. A obra de Newton considerada a grande sntese das obras de Coprnico, Kepler, Bacon, Galileu e Descartes, pois apresenta uma completa formulao matemtica da concepo mecanicista da natureza.

A imagem do universo fornecida pelo modelo de Newton de um sistema mecnico passvel de ser descrito objetivamente, sem relacionar o observador humano, funcionando como uma mquina governada por leis imutveis. A partir do sculo XVIII, essa viso de mundo-mquina se constituiu num dos pilares da idia de progresso, influenciando o pensamento cientfico at grande parte do sculo XX. Do determinismo mecanicista decorreu um conhecimento utilitrio e funcional de onde surgiu a idia de que para compreender o real era preciso dominar e transformar, reconhecendo a total separao entre a natureza e o ser humano (Moraes, 1996, p. 25).Os sculos XVIII e XIX serviram-se do modelo de Newton com enorme sucesso.

O sistema matemtico do mundo elaborado por Newton estabeleceu-se rapidamente como a teoria correta da realidade e gerou enorme entusiasmo entre cientistas e o pblico leigo. A imagem do mundo como uma mquina perfeita, que tinha sido introduzida por Descartes, era considerada um fato comprovado, e Newton tornou-se o seu smbolo. (Capra, 1982, p. 62).

Assim, com o firme estabelecimento da viso mecanicista do mundo no sculo XVIII, a fsica tornou-se naturalmente a base de todas as cincias, influenciando todas as cincias particulares, inclusive as cincias humanas e sociais (Capra, 1982, p. 63). A afirmao desse modelo de cincia, tem profundas consequncias na vida social, cultural e econmica do mundo ocidental. Esse modelo propiciou a fragmentao do conhecimento em cincias particulares, indicando um nico mtodo de investigao para as cincias naturais, humanas e sociais o mtodo cientfico, que passa a ser o parmetro para o conhecimento verdadeiro e a experimentao, a fonte de autoridade para a fundamentao do saber. Esse modelo de investigao constituiu-se na base da organizao da cincia moderna, pelo qual os campos cientficos se estruturaram.

Esse esboo nos permite perceber que houve uma ruptura no que diz respeito compreenso da realidade, na passagem do perodo medieval para o perodo moderno, caracterizada pela separao entre filosofia e cincia. A partir desta ruptura a racionalidade, a lgica e a objetividade se configuram em elementos fundamentais para a gerao do conhecimento e para o processo de compreenso da realidade em todos os campos cientficos. Aps esse breve percurso histrico, procuraremos observar os reflexos desse modelo de cincia na constituio do campo da Cincia da Informao, enquanto disciplina cientifica.

A instituio da Cincia da Informao e suas inter-relaesA constituio do campo de conhecimento reconhecido como Cincia da Informao possui razes embrionrias no perodo imediato primeira guerra mundial, quando o capitalismo sofreu transformaes que se caracterizaram pela participao do Estado na vida econmica, gerando ruptura parcial e aparente com os cnones do liberalismo clssico (Pinheiro; Loureiro, 1995, p.1). A partir dos anos 40, no sc. XX, como resultado dos esforos, sobretudo da segunda guerra mundial, o desenvolvimento cientfico e tecnolgico passou a permear o capitalismo industrial que comeou a se deparar com o crescimento exponencial da informao. A denominada exploso da informao caracterizou esse momento, em que a informao se torna basilar para o progresso econmico, ancorado no binmio cincia e tecnologia. (Pinheiro; Loureiro, 1995, p.1).

A dcada de 40 marca o prenncio do surgimento da Cincia da Informao. Primeiramente, com o clssico texto de Vannevar Busch (1945), As we may think, e, mais tarde, com Wiener (1948), em sua obra Cybernetics or control and communication in the animal and the machine, e com Shannon; Weaver (1949) em The mathematical theory of communication. Mas, na dcada de 60 que so elaborados os primeiros conceitos e definies e se inicia o debate sobre as origens e os fundamentos tericos na nova rea (Pinheiro; Loureiro, 1995, p.1). A Cincia da Informao surge, portanto, sob a gide da cincia moderna seguindo o modo de constituio da cincia proposto pela modernidade. Segundo Cardoso (1996), as primeiras manifestaes investigativas desse campo embrionrio foram fortemente influenciadas pelas cincias empricas e pretendiam estabelecer leis universais que representassem o fenmeno informacional, da a recorrncia a modelos matemticos (teoria da informao), fsicos (entropia) ou biolgicos (teoria epidemiolgica). (Cardoso ,1996, p. 74).

Na dcada de 70, surge a necessidade de conhecer o pblico ao qual se designavam os servios de informao, bem como saber de que modo esse pblico se comportava na produo, na demanda e na divulgao de informaes. O enfoque dos estudos em Cincia da Informao , ento, redirecionado para o usurio. Com a presena dos usurios, as cincias humanas e sociais passam a contribuir tambm, com seus mtodos e prticas para a composio dessa cincia emergente (Cardoso , 1996, p. 74). Para Cardoso, a contribuio das cincias humanas e sociais nas pesquisas desenvolvidas pela Cincia da Informao estabelece sua interdisciplinaridade e, desde ento, esse campo vem se consolidando, a partir de elementos emprestados da matemtica, da fsica, da biologia, da psicologia, da sociologia, da antropologia, da semiologia e da teoria da comunicao e de quantas cincias puderem contribuir para sua fundamentao e aplicabilidade (Cardoso,1996, p. 74).

No mbito internacional, as primeiras definies de Cincia da Informao advindas das discusses ocorridas na dcada de 60, j apresentam como componente conceitual da rea a ideia da interdisciplinaridade, relacionando-a, entre outros campos do conhecimento, com a Biblioteconomia. Tal o caso da clssica definio de Borko (1968), considerado o autor que melhor sintetiza as discusses feitas nessa poca. Borko (1968) afirma em seu clssico artigo Inforrmation science: what is it?, que a Cincia da Informao a disciplina que investiga as propriedades e o comportamento da informao, as foras que governam seu fluxo, e os meios de process-la para otimizar sua acessibilidade e uso. A Cincia da Informao est ligada ao corpo de conhecimento relacionado origem, coleta, organizao, armazenamento, recuperao, interpretao, transmisso, transformao e uso da informao. A Cincia da Informao uma cincia interdisciplinar derivada e relacionada com vrios campos do conhecimento, como: matemtica, lgica, lingustica, psicologia, tecnologia computacional, operaes de pesquisa, artes grficas, comunicao, biblioteconomia, administrao e outros campos similares. (Borko, 1968, p. 3).

Borko(1968) entende que a Cincia da Informao tanto tem um componente de cincia pura, como campo de pesquisa dos fundamentos da informao, quanto um componente de cincia aplicada, quando desenvolve produtos e servios. Vakkari (1994) considera que apesar das relaes entre a Biblioteconomia e a Cincia da Informao h muito tempo serem um tema de interesse da comunidade profissional e acadmica, subsiste alguma incerteza acerca dessa relao. Diz que existem duas concepes bsicas a respeito do relacionamento entre essas disciplinas: a primeira julga que elas podem ser vistas como duas disciplinas separadas, com alguns interesses em comum; a segunda variante ver uma como parte da outra, ou seja, como um nico conjunto.

Na discusso sobre a viso da Biblioteconomia e da Cincia da Informao como campos distintos, Vakkari parte do argumento que historicamente inegvel que a Biblioteconomia nasceu antes da Cincia da Informao ou de sua antecessora, a Documentao. Informa que desde o sculo dezenove Martin Schrettinger na sua famosa obra Bibliotek-Wissenschaft (1809-1828) [2] definiu Biblioteconomia como o resumo de todas as diretrizes tericas necessrias para a organizao intencional de uma biblioteca. Essa definio mostra que o foco da Biblioteconomia assegurar o acesso rpido e certo aos documentos na biblioteca. Explica que, embora os conceitos apresentados no livro de Schrettinger correspondam cincia do seu tempo, no obstante tratava dos princpios da Biblioteconomia j numa perspectiva profissional.

Na viso de Vakkari, historicamente a diferena entre Biblioteconomia e Documentao se cristaliza na noo de que cabe a Biblioteconomia prover o acesso aos registros grficos nas bibliotecas enquanto que a Documentao facilita o acesso aos documentos em qualquer formato, independente da instituio. Isso significa que a Biblioteconomia est ligada a um certo tipo de documento e instituio, mas a Documentao focaliza sua ateno em todos os tipos de documentos e instituies que os transmitem. Contudo, ambas tm uma caracterstica comum que facilitar o acesso informao. J para Saracevic (1996), a Biblioteconomia um campo profissional voltado para a organizao, preservao e uso dos registros grficos humanos, enquanto que a Cincia da Informao um campo dedicado investigao cientfica e prtica profissional voltadas para os problemas da efetiva comunicao do conhecimento e de seus registros entre os seres humano no contexto de usos e necessidades sociais, institucionais e/ou individuais de informao. (Saracevic, 1996, p. 47, 48). Saracevic (1996) demarca as diferenas entre as duas reas, argumentando que h divergncias significativas em relao a vrios aspectos crticos, tais como:

1. na seleo dos problemas propostos e na forma como so definidos; 2. nas questes tericas colocadas e nos modelos explicativos introduzidos;3. na natureza e no grau de experimentao e desenvolvimento emprico,assim como no conhecimento prtico ou competncias derivadas;4. nas ferramentas e abordagens utilizadas;5. na natureza e na fora das relaes interdisciplinares estabelecidas e sua dependncia para o avano e evoluo das abordagens interdisciplinares. Para ele, todas estas diferenas comprovam que a Biblioteconomia e a Cincia da Informao so dois campos diferentes, com forte relao interdisciplinar e no um nico campo, em que um consiste na manifestao especial do outro. (Saracevic, 1996, p. 49). Wersig (1992) o autor que apresenta uma opinio mais radical sobre essa questo porque nega a existncia da Biblioteconomia como cincia. Na Conferncia Internacional de Tampere, ocorrida na Finlndia em 1991, ao discutir a constituio terica da rea de Cincia da Informao ele comea explicando que - ao contrrio do tema central da conferncia que aborda as concepes da Biblioteconomia e da Cincia da Informao - no inclui na sua fala a frase Biblioteconomia e Cincia da Informao, por duas razes: primeiro, alega que existem poucas provas de que tipos especficos de organizaes forneam uma base forte para uma disciplina cientfica ou acadmica.

Entretanto, no nega que os problemas das instituies podem ser resolvidos por aproximaes cientficas ou pessoas serem qualificadas por slidos programas de educao e de treinamento, e que tais aproximaes possam ser agrupadas junto a um corpo de conhecimentos ou em instituies de ensino. Mas, segundo Wersig, nessa forma se configuraria mais como um campo de estudo do que como uma disciplina acadmica. Em segundo lugar, Wersig diz que mesmo sendo convencido de que h boas razes para falar da Biblioteconomia como cincia e boas razes para falar da Cincia da Informao nesse mesmo sentido, ainda assim objetaria que as duas formam um nico conjunto. Na sua viso a nica maneira de fazer isso de modo razovel seria considerar que a Cincia da Informao um campo de estudo preocupado com as organizaes de informao que no so bibliotecas. Mas, isto implica em imaginar que as bibliotecas no so organizaes de informao o que leva a perguntar porque elas seriam vinculadas quelas.

Contudo para Wersig, se elas so organizaes de informao, ento a Cincia da Informao seria o termo genrico apropriado para design-las.Na realidade, Wersig (1993) considera que a Cincia da Informao no uma cincia clssica, imaginando-a como um prottipo de cincia ps-moderna. O autor entende que a emergncia do campo decorre da necessidade de se criar estratgias para solucionar problemas causados pela cincia e tecnologia. A viso de Wersig est pautada na importncia que o conhecimento passa a exercer no mundo contemporneo, principalmente nas dimenses cientfica e tecnolgica. Nesse contexto, considera a Cincia da Informao um novo tipo de disciplina e questiona sua organizao como disciplina tradicional, enfatizando a necessidade de uma construo terica que d conta dessa nova complexidade.

Mas, apesar da rea ter se afirmado, como campo cientfico, na interdisciplinaridade, alguns autores consideram que seguiu o modo de constituio da cincia proposto pela ps-modernidade, sem examinar com clareza sua prpria trajetria disciplinar autnoma. (Smit; Tlamo; Kobashi, 2004; p. 2). Na verdade, a interdisciplinaridade, de acordo com Japiassu (1976, p. 54), se afirma com uma reflexo epistemolgica sobre a diviso do saber em disciplinas para extrair suas relaes de interdependncias e de conexes recprocas, se apresenta, portanto, como uma oposio sistemtica organizao do saber preconizado pelo paradigma newtoniano-cartesiano. Assim, os estudos interdisciplinares devem resultar em novas descries tericas e metodolgicas, possibilitando a esperana de renovao e de mudana paradigmtica.

Contudo, a literatura aponta que os estudos desenvolvidos pela Cincia da Informao, de modo geral, no tm resultado em novas descries da rea, tampouco proporcionado novas alternativas metodolgicas. Em pesquisa que se props a refletir, por meio de uma abordagem terminolgica, sobre os critrios cientficos que pautaram a constituio do campo da Cincia da Informao Smit; Tlamo; Kobashi (2004) concluram que:

"o trabalho na Cincia da Informao apresenta-se como um ponto de conjuno entre subjetividades que compartilham de uma prtica comum. No existe um acordo fundamental e uma linguagem de especialidade de natureza cientfica que comunique uma realidade integrada. A fragmentao conceitual, o recurso constante a terminologia de outras reas, a ausncia de projeto de consolidao acabam retardando o desenvolvimento da rea." (Smit; Tlamo; Kobashi, 2004, p. 8). Um estudo recente, desenvolvido por Mendona (2008), procede a uma anlise das teses de doutorado produzidas pelos programas de ps-graduao em Cincia da Informao nos ltimos dez anos no Brasil, utilizando o conceito do Circulo de Roqueplo, sob a tica de Japiass (1976), para examinar o dilogo entre a Cincia da Informao e as demais disciplinas. O estudo constatou que a Cincia da Informao carece aprofundar suas relaes com as disciplinas, como tambm o debate junto aos seus pares. (Mendona, 2008, p. 59).

Em outro estudo, realizado por Arajo (2007), junto aos professores de Biblioteconomia e Cincia da Informao para levantar suas concepes sobre a rea, partiu-se do principio de que em grande medida, uma cincia aquilo que seus praticantes definem que ela . Nesse estudo foi constatado que a grande maioria dos entrevistados (93,5%, dentre um universo de 29 respondentes) afirmara ser a Cincia da Informao uma cincia interdisciplinar. Entre o conjunto das argumentaes dos entrevistados, destaca-se a ideia de que o contedo da Cincia da Informao possui relaes com outras reas do conhecimento e que, por isso, a cincia da informao seria interdisciplinar (Arajo, 2007, p. 96, 99). Essa ideia, no entanto, no corresponde ao que Japiass (1976) considera ser um trabalho interdisciplinar.

J a temtica da ps-modernidade, inserida no mbito da Cincia da Informao por Wersig (1993), conforme j sublinhamos acima, ainda, segundo essa mesma pesquisa, uma questo em aberto para os pesquisadores da rea: Um primeiro resultado aponta que a indeciso que marca a discusso sobre a existncia ou no de uma ps-modernidade est presente na viso dos pesquisadores da rea (Araujo, 2007, p. 100). Esse resultado refora o argumento de que a Cincia da Informao, tradicionalmente, na sua construo terica tem privilegiado o modelo das cincias clssicas. Contudo, o modelo cartesiano-newtoniano, tpico das cincias modernas, que prev compartimentalizaes e fronteiras muito bem definidas entre as disciplinas comea a enfrentar discusses e crticas a partir da Teoria da Relatividade e de novos fatos ocorridos na fsica quntica e de suas implicaes na filosofia da cincia. Em meio ao debate ganhou fora a ideia de que o final do sculo XX marcaria o comeo de uma nova forma de fazer cincia. Santos (2002) um dos autores que defendem essa ideia, afirmando que so hoje muito fortes os sinais de que o modelo de racionalidade cientfica [construdo por Newton] em alguns dos seus traos principais atravessa uma profunda crise (Santos , 2002, p. 23).

Dos questionamentos ao paradigma tradicional, ou dominante, como qualifica Santos (2002), est nascendo uma nova perspectiva de fazer cincia que o mesmo autor denomina de paradigma emergente. Esse paradigma aponta a possibilidade de outros caminhos para a produo cientfica, reconhecendo a intencionalidade e a no neutralidade do conhecimento cientfico. Como discutimos anteriormente que a Cincia da Informao sofreu forte influncia dos desdobramentos advindos das ideias da modernidade, entendemos ser importante, agora, refletir sobre como uma outra concepo de pensar o conhecimento e de fazer cincia, o paradigma emergente, poder repercutir e modificar a estruturao cientfica da rea.

Paradigmas em transio: novas possibilidades para a Cincia da InformaoConforme ressaltamos nas reflexes iniciais deste texto, na cincia moderna a racionalidade, a lgica e a objetividade se configuram como elementos fundamentais para a gerao do conhecimento. Tais pressupostos amparam-se na crena da neutralidade e na completa separao entre sujeito e objeto. Esse paradigma tem como caractersticas fundamentais um saber pronto, fechado em si mesmo, um produto organizado e estruturado sequencialmente, que, com seus princpios e leis, serviu de base para o desenvolvimento das cincias at o final do sculo XIX e grande parte do sculo XX. Teve reflexos diretos na lgica da organizao, produo e distribuio do conhecimento, institucionalizando diversos campos disciplinares.

Mas, quase na segunda metade do sculo XX, com o advento do reconhecimento das reas humanas e sociais como cincias e as descobertas da relatividade das verdades construdas pela fsica mecnica, o mtodo cientfico positivista comea a ser questionado como o nico instrumento capaz de validar o conhecimento sobre os homens e o universo. Desse modo, surge a possibilidade de uma nova matriz para construir a cincia, que ultrapasse o pensamento epistemolgico positivista, apresentando alternativas para pensar e construir o conhecimento de uma forma diferente.O paradigma emergente, proposto por Santos (2002), baseado na teoria da relatividade e na teoria da fsica quntica, busca uma nova leitura do mundo e uma maneira diferente do homem nesse se posicionar, fundamentado num tipo de pensamento que trata as coisas em sua totalidade. Nele esto presentes todas as contradies que o paradigma tradicional nega, admitindo a no neutralidade do conhecimento, reconhecendo a intencionalidade do sujeito e concebendo a cincia como um ato humano, historicamente situado (Moraes, 2004). Esse paradigma, de acordo com Santos (2002), pode ser explicitado atravs dos seguintes princpios:

- todo o conhecimento cientfico-natural cientfico-social, quer dizer, cada vez mais o contedo terico das cincias dirigido por conceitos, teorias, metforas e analogias das cincias sociais;- todo o conhecimento total e local, quebrando a estrutura formal da disciplinaridade e compondo-se em temas;- todo conhecimento autoconhecimento, porque sempre reinterpretado por aquele que o produz;- todo o conhecimento cientfico visa constituir-se em senso comum, para que possa dar sentido vida.

Na tica desse novo paradigma, a abordagem da cincia moderna que analisa o mundo em partes independentes j no funciona. Tal perspectiva aponta para a (re)construo do homem e do mundo, tendo por base uma concepo mais diferenciada e complexa do saber humano, visto como multiforme e no monoltico. Esse paradigma concebe a cincia mais como transformadora do que como cumulativa, conforme idealizada pelo paradigma tradicional.

Uma das principais caractersticas do paradigma emergente o carter integrativo que o conhecimento passa a assumir, com a consequente diluio das dicotomias, mostrando uma nova forma de relao. Como campo pertencente s cincias sociais, distinta das cincias naturais, a Cincia da Informao poderia, ento, orientar os seus procedimentos investigativos pela tica do paradigma emergente, definindo uma nova perspectiva epistemolgica. O fortalecimento dos estudos e prticas interdisciplinares na rea poderia colaborar para essa integrao, aproximando os saberes especficos, oriundos dos diversos campos cientficos, efetivando abstraes tericas e estabelecendo novas metodologias de pesquisa.

O que se observa, de maneira geral, que, apesar de alguns autores considerarem que a Cincia da Informao est fugindo dos padres de positividade da cincia tradicional, o princpio orientador em suas pesquisas segue observando os cnones do mtodo cientfico. Na realidade, o que se percebe uma dificuldade da rea para discutir e decidir que caminho seguir: se deveria adotar a interdisciplinaridade como uma prtica de pesquisa ou como uma metodologia de pesquisa. Teixeira (2004), alerta que se a opo for pelo caminho de consider-la como uma prtica de pesquisa estar-se-ia, nesse caso, em face de uma Sociologia da Cincia e do funcionamento dos grupos sociais e reduzir-se-ia a reflexo ao estudo do comportamento social de um coletivo; seu funcionamento, sua prtica, sua experincia, etc.. Caso se considere a interdisciplinaridade como mtodo de pesquisa estar-se-ia em face de uma filosofia ou epistemologia e estudar-se-iam as proposies de noes, a forma como a problemtica geral foi recortada, a evoluo dos instrumentos e mtodos, etc. (Teixeira , 2004, p.64). Contudo, parece que nenhum dos extremos , por si s, verdadeiro e nico, dependendo de quais sejam as articulaes feitas entre estes horizontes as configuraes resultantes sero extremamente diferentes.

Concordamos com Gomes (2001) quando diz que mesmo considerando a perspectiva do paradigma emergente proposto por Santos (2002), uma cincia pressupe um ncleo de conhecimentos, mtodos de investigao e um campo experimental para que se possa criar os contextos de interao que pressupe a troca de conhecimentos e de mtodos com outras disciplinas(Gomes, 2001, p. 4). Nesse sentido, importante lembrar que a interdisciplinaridade no impede, nem a identidade cientfica, nem a funo de cada disciplina na abordagem da realidade (Teixeira, 2004, p. 63).

A Cincia da Informao devido natureza e complexidade do seu objeto de pesquisa, a informao, j evidenciou que suas questes essenciais no so passveis de soluo por uma nica disciplina, exigindo o dilogo terico-prtico com outras reas. Essa caracterstica lhe confere um estatuto mais aberto e flexvel, capaz de permitir um exerccio cientfico mais prximo do paradigma emergente apresentado por Santos (2002), o que no reduz, no entanto, a necessidade de definio do seu ncleo disciplinar. Barreto (2004) alerta que o trabalho interdisciplinar no pode simplesmente transpor teorias e conceitos emprestados de um campo ou rea para formar novo conhecimento em outra rea. Mas, que sobretudo, este transporte de ideias, mtodos, do pensar em si tem que respeitar as caractersticas existentes e manifestas da rea que empresta, ... considerando todas as suas configuraes fenomenais, suas qualidades, caractersticas e singularidades" (Barreto, 2004, p. 1).

Por isso, importante compreender que o ponto de partida e de chegada de uma prtica interdisciplinar est na ao. No trabalho interdisciplinar est implcita uma nova postura diante da construo do conhecimento, uma mudana de atitude em busca da unidade do pensamento, em contraposio a concepo fragmentria conforme preconizado pelo paradigma emergente. Desse modo, o grande desafio est na tentativa de superao gradativa dos principais obstculos efetivao do trabalho interdisciplinar, sendo que o mais importante seria o estabelecimento de uma conscincia crtica sobre o valor e significado do mesmo, bem como uma orientao segura de como inici-lo.

Consideraes finais Vimos, no transcorrer da presente discusso, que fundamental entender o contexto da produo humana de conhecimento para antecipar perspectivas de um futuro possvel. No entanto, durante esse percurso no se pode esquecer que a questo epistemolgica bsica. As descobertas sobre relatividade e simultaneidade lideradas, na fsica, por Einstein e as revolues da mecnica quntica, ambas do sculo passado, abriram espao para a contestao do paradigma positivista advogado pela cincia moderna. Esses questionamentos tm provocado a possibilidade de crtica e estimulado a proposio de uma nova matriz para construir a cincia, negando a neutralidade e as dicotomias prprias da concepo positivista, proporcionando estmulos e oferecendo caminhos diversificados para a pesquisa cientfica.

Desse modo, tendo a historicidade do processo de construo do conhecimento como pano de fundo, procuramos compreender a constituio cientfica do campo nomeado como Cincia da Informao. No curso constitutivo da Cincia da Informao vimos que, em geral, o paradigma tradicional de pensar o conhecimento e organizar a cincia tem orientado a prtica investigativa da rea, apesar de alguns autores entenderem que pode ser considerada uma cincia ps-moderna, devido sua natureza interdisciplinar.

Mas, apesar da Cincia da Informao ser reconhecida desde o seu surgimento como uma disciplina interdisciplinar, quando so analisados os estudos empricos e tericos que buscam reconhecer o seu ncleo interdisciplinar, constata-se que identificam muito mais as reas por ela visitadas, do que como a Cincia da Informao se insere no agir de cada uma delas para alcanar as zonas de interseo, de troca e de convergncias. Assim, para identificar seu ncleo interdisciplinar e constituir-se em uma cincia orientada por princpios diferentes daqueles norteadores da cincia moderna a Cincia da Informao, ter que construir um projeto em que verdadeiramente se instaure a interdisciplinaridade, permitindo uma reflexo aprofundada, crtica e salutar para renovao dos problemas de ensino e pesquisa da rea, com o consequente avano do conhecimento cientfico.

Notas:

[1] LI CARRILLO, V. Gnesis y evolucin del concepto matemtico de isomorfismo. R. Venezonala de Filosofia, Caracas, v. 14, n. 15, p. 75-137. [2] Schrettinger, M. Versuch eines vullstandiges lebrbucbs der bibliotek-wissenschaft. Mnchen : [s.n], 1809-1829. v. 1-3.

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Mara Eliane Fonseca Rodrigues

[email protected] em Cincia da Informao pela UFMG. Professora do Departamento de Cincia da Informao na Universidade Federal Fluminense (UFF).

http://www.datagramazero.org.br/ago10/F_I_art.htm