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De Caracas a Roma: a história de Arturo Sosa Entrevista ao novo Padre Geral da Companhia de Jesus Roma, 16 de outubro de 2016 Dois dias depois da sua eleição, a equipa de comunicação da Congregação Geral encontrou-se com o P. Arturo Sosa, SJ para falar sobre a sua vida e o seu pensamento. A conversa pretende dar a conhecer o novo Padre Geral de forma mais pessoal, e está pensada para todos os Jesuítas e os amigos e amigas da grande família inaciana espalhada por todo o mundo. Sobre a sua eleição como Padre Geral Como todos os eleitores, cheguei à Congregação perguntando-me quem seriam os melhores candidatos para o cargo de Padre Geral e, obviamente, não me via nessa lista. No primeiro dia de murmuratio 1 comecei a procurar mais informação sobre os que eu considerava candidatos, enquanto que no segundo dia comecei a ouvir dizer que tinham feito perguntas sobre mim, ou que tinham perguntado por mim, e ao terceiro dia comecei a preocupar-me, pois as conversas começa- ram a tornar-se muito mais diretas, e no quarto ainda mais. Nos três últimos dias falei com 60 pes- soas, e muitos já me perguntavam pela minha saúde. Comecei a habituar-me à ideia, ainda que rezando para que os companheiros levassem a sério o que disse Santo Inácio, de não entrar na eleição com uma decisão fechada. No dia da eleição, ao ver os resultados, fui-me habituando à ideia, com uma intuição profunda de que tenho de confiar no bom juízo dos meus irmãos, pois do meu não me fio. Se eles me elegeram terá sido por alguma razão e tentarei responder o melhor que puder. Nesta eleição, parece-me que se valoriza a experiência de trabalho a nível local e internacio- nal, e não duvido que os últimos anos em Roma tiveram algum peso na escolha. Mas, acima de tudo, entendo que sou um de muitos jesuítas da Companhia da América Latina que tentou colocar em prática o que as Congregações vêm dizendo nos últimos 40 anos. Entendo-o como uma confir- mação da direção que a Companhia assumiu no tempo de Arrupe. Entendo esta eleição como uma confirmação de que há que seguir por aqui. Mas eu, pessoalmente, sou como muitos jesuítas da minha geração. I Origem e Formação Família Nasci no curtíssimo período de democracia que houve na Venezuela na primeira metade do século XX, em 1948. O meu nascimento foi no dia 12 de novembro, e no dia 24 desse mês houve um golpe de estado contra o primeiro presidente eleito democraticamente no meu país depois da independência. Os meus avós viveram em grande pobreza, mas o meu pai já pertence à geração que construiu o país. Éramos uma família muito grande, na qual partilhavam espaço várias gerações. Para mim foi muito importante estarmos tão juntos. As nossas casas não tinham muro, não havia distinção entre um jardim e outro, todos vivíamos conjuntamente. Éramos uma família muito católica, ainda que pouco expressiva na sua religiosidade. Nesse ambiente aprendi a ver a realidade a partir de uma perspetiva que procura ver além do que nos é dado, em que as coisas não são necessariamente como estão. Cresci lutando sempre por ir um pouco mais além do que o que havia. 1 A murmuratio latim para “murmurações” – é a etapa prévia na Congregação à eleição do Padre Geral, onde se dedica quatro dias à oração pessoal e à conversa dois a dois entre os eleitores, para que cada eleitor vá dando passos no discernimento e no conhecimento dos possíveis candidatos.

Roma, 16 de outubro de 2016 Dois dias depois da sua ... · O meu pai era um homem muito inquieto, viajava muito, dentro e fora do país. Se naque- ... E chegou a Carta do Rio4, coincidindo

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De Caracas a Roma: a história de Arturo Sosa

Entrevista ao novo Padre Geral da Companhia de Jesus

Roma, 16 de outubro de 2016

Dois dias depois da sua eleição, a equipa de comunicação da Congregação Geral encontrou-se com

o P. Arturo Sosa, SJ para falar sobre a sua vida e o seu pensamento. A conversa pretende dar a

conhecer o novo Padre Geral de forma mais pessoal, e está pensada para todos os Jesuítas e os

amigos e amigas da grande família inaciana espalhada por todo o mundo.

Sobre a sua eleição como Padre Geral

Como todos os eleitores, cheguei à Congregação perguntando-me quem seriam os melhores

candidatos para o cargo de Padre Geral e, obviamente, não me via nessa lista. No primeiro dia de

murmuratio1 comecei a procurar mais informação sobre os que eu considerava candidatos,

enquanto que no segundo dia comecei a ouvir dizer que tinham feito perguntas sobre mim, ou que

tinham perguntado por mim, e ao terceiro dia comecei a preocupar-me, pois as conversas começa-

ram a tornar-se muito mais diretas, e no quarto ainda mais. Nos três últimos dias falei com 60 pes-

soas, e muitos já me perguntavam pela minha saúde. Comecei a habituar-me à ideia, ainda que

rezando para que os companheiros levassem a sério o que disse Santo Inácio, de não entrar na

eleição com uma decisão fechada. No dia da eleição, ao ver os resultados, fui-me habituando à

ideia, com uma intuição profunda de que tenho de confiar no bom juízo dos meus irmãos, pois do

meu não me fio. Se eles me elegeram terá sido por alguma razão e tentarei responder o melhor

que puder.

Nesta eleição, parece-me que se valoriza a experiência de trabalho a nível local e internacio-

nal, e não duvido que os últimos anos em Roma tiveram algum peso na escolha. Mas, acima de

tudo, entendo que sou um de muitos jesuítas da Companhia da América Latina que tentou colocar

em prática o que as Congregações vêm dizendo nos últimos 40 anos. Entendo-o como uma confir-

mação da direção que a Companhia assumiu no tempo de Arrupe. Entendo esta eleição como uma

confirmação de que há que seguir por aqui. Mas eu, pessoalmente, sou como muitos jesuítas da

minha geração.

I – Origem e Formação

Família

Nasci no curtíssimo período de democracia que houve na Venezuela na primeira metade do

século XX, em 1948. O meu nascimento foi no dia 12 de novembro, e no dia 24 desse mês houve

um golpe de estado contra o primeiro presidente eleito democraticamente no meu país depois da

independência. Os meus avós viveram em grande pobreza, mas o meu pai já pertence à geração

que construiu o país.

Éramos uma família muito grande, na qual partilhavam espaço várias gerações. Para mim foi

muito importante estarmos tão juntos. As nossas casas não tinham muro, não havia distinção entre

um jardim e outro, todos vivíamos conjuntamente. Éramos uma família muito católica, ainda que

pouco expressiva na sua religiosidade. Nesse ambiente aprendi a ver a realidade a partir de uma

perspetiva que procura ver além do que nos é dado, em que as coisas não são necessariamente

como estão. Cresci lutando sempre por ir um pouco mais além do que o que havia.

1 A murmuratio – latim para “murmurações” – é a etapa prévia na Congregação à eleição do Padre Geral,

onde se dedica quatro dias à oração pessoal e à conversa dois a dois entre os eleitores, para que cada eleitor vá dando passos no discernimento e no conhecimento dos possíveis candidatos.

Nesse sentido, era uma família muito sensível à realidade e convencida da necessidade de

estudar. Motivaram-me sempre muito a conhecer a realidade, a abrir-me ao mundo, a aprender

idiomas… O meu pai era um homem muito inquieto, viajava muito, dentro e fora do país. Se naque-

le tempo havia 10 pessoas na Venezuela que liam a revista Time, ele era uma delas. Era economista

e advogado e esteve duas vezes no governo. Muitas vezes convidava-me a acompanhá-lo em via-

gens dentro do país. Quando chegávamos a uma cidade que eu não conhecia, dizia-me sempre:

“vamos pela circunvalação”, e dávamos a volta à cidade enquanto me explicava tudo o que íamos

vendo. Era viver num constante abrir de olhos a uma realidade sempre maior, a ser desafiado a não

ficar fechado naquilo que já conhecia.

O colégio

O outro ambiente onde se desenvolveu a minha infância foi o colégio Santo Inácio, em Cara-

cas. Entrei no colégio na pré-primária, quando tinha 5 anos e aí passei 13 anos, até que terminei o

secundário. O meu pai também tinha sido aluno nesse colégio. Nessa altura, nos colégios da Com-

panhia havia muitos jesuítas, sobretudo jovens: magisteriantes2 e irmãos. Para mim, era uma espé-

cie de segunda casa. Segundo a minha mãe, a primeira, porque eu nunca estava em casa. Havia

atividades desde segunda-feira, e por vezes até ao domingo, dia em que havia missa no colégio.

Para ser sincero, não me lembro da química nem da matemática, mas lembro-me muito bem de ter

criado grupos dentro do colégio, como a Congregação Mariana, a associação de estudantes…

tínhamos muita atividade deste tipo. Isto tem tudo a ver com o nascimento da minha vocação, ao

ter experimentado a dimensão do sentido da vida quanto te entregas aos outros.

II – Itinerário jesuíta

A minha Vocação

Conheci os jesuítas no colégio e não tive nenhuma dúvida sobre a minha vocação à Compa-

nhia. Nem sequer a pensava como vocação ao sacerdócio, mas sim a ser jesuíta. Na verdade, ten-

tando recordar-me, os jesuítas que mais me impressionaram foram os irmãos. Havia muitos irmãos

na Província da Venezuela. Em concreto, no colégio havia irmãos cozinheiros, o que arranjava o

autocarro, o motorista… e havia irmãos professores. Na primária, muitos irmãos davam aulas, eram

verdadeiros pedagogos. Os irmãos e os magisteriantes eram quem, verdadeiramente, nos acompa-

nhava, aos padres nem os víamos.

O meu interesse pela Companhia nasce neste contexto, muito alimentado também por um

olhar atento à situação do país. Pensava que podia fazer algo pelo país e que, para mim, o melhor

sítio para o fazer era a Companhia. A minha geração era muito sensível à necessidade de continuar

a construir o país. Vários, companheiros de grupos e da Congregação Mariana, foram médicos,

engenheiros, foram para a Amazónia… havia um sentimento de fundo, acreditávamos num projeto

de país, de sociedade.

Tempo do Concílio

O Concílio teve muita importância para mim, foi sem dúvida uma grande notícia. Acompa-

nhámo-lo como se fosse uma novela. A Congregação Mariana era o lugar onde a nossa reflexão

2 Um magisteriante é um jovem jesuíta que está numa fase específica da formação, entregando-se a alguma

atividade apostólica numa obra da Companhia, neste caso num colégio. A esta etapa de formação se chama “Magistério”.

vinculava o social com o espiritual e era aí que líamos os documentos que alimentaram a reflexão

semanal dos nossos grupos durante os quatro anos que durou. Seguíamos o Concílio a par e passo.

E nesse tempo deu-se a eleição de Arrupe, que foi outra lufada de ar fresco. Arrupe é eleito

quando no meu grupo estávamos a tentar decidir se entrávamos na Companhia. No colégio, era

histórica a relação com as missões do Japão e Ahmedabad, na Índia. A eleição de um missionário no

Japão foi muito simbólica e importante.

Já no noviciado, tínhamos o livro dos decretos da Congregação Geral 31 (CG 31) e liamo-los

mais que ao P. Rodriguez3, estudávamo-los. E chegou a Carta do Rio4, coincidindo com a Conferên-

cia de Bispos da América Latina, em Medellín. Passou-se algo de parecido com o Concílio, pois

vivemos muito de perto toda a reflexão e dinâmica. Os documentos preparatórios dessa conferên-

cia foram transformados por uma força que vinha das bases, como um grito que se tinha de escu-

tar, pois eram as próprias pessoas que diziam que tínhamos de mudar, e isso foi um grande impulso

para a Igreja latino-americana e venezuelana.

Há que dizer que a Igreja venezuelana era uma Igreja muito frágil e por isso o Concílio é tão

importante para nós. A Igreja na Venezuela foi praticamente exterminada durante o séc. XIX. É uma

sociedade muito mais laica que a mexicana ou a colombiana, com uma religiosidade muito menos

expressiva. Além disso, foi atacada e expropriada pelos vários governos. Foi essa a razão que levou

os jesuítas à Venezuela, foram chamados para trabalhar no seminário, para formar o clero de uma

Igreja pobre e frágil, em que não havia vocações. Este é o contexto em que se dá o Vaticano II, Rio,

Medellín… era o mesmo que dizer: a Igreja encontrou a sua força nas pessoas, encontrou a sua

força na fé do povo e dessa fé temos que viver e dessa fé vamos poder gerar uma outra Igreja.

Magistério no Centro Gumilla

Nesta altura, a Companhia estava a criar na América Latina os centros de investigação e ação

social (CIAS), fazendo um esforço para que os jesuítas se formassem em ciências sociais. Muitos

companheiros foram enviados a estudar economia, sociologia, antropologia… e começaram a for-

mar-se grupos de investigação e de trabalho. Ao primeiro desses CIAS na Venezuela pôs-se o nome

de Centro Gumilla, um jesuíta que andou pelo Amazonas5 e que escreveu uma grande quantidade

de obras sobre antropologia e botânica. Esse grupo começou quando eu entrei na Companhia e

coube aos noviços ajudar a montar a biblioteca. Eu tinha muita vontade de estudar ciências sociais

e esta coincidência foi muito motivadora.

Uns anos depois, os provinciais começaram a pensar na hipótese de possíveis destinos de

magistério fora dos colégios e eu tive a sorte de ser enviado como magisteriante para o Centro

Gumilla de Barquisimeto. Este Centro ocupava-se essencialmente das cooperativas agrícolas nos

bairros desse lugar. Outros companheiros foram para paróquias. A província estava empenhada em

oferecer aos jovens possibilidades diferentes das mais tradicionais.

Teologia em Roma

3 Autor de um livro clássico utilizado durante séculos na formação dos jesuítas.

4 Meses antes da Conferencia de Bispos em Medellín, os Provinciais jesuítas da América Latina, reunidos com

o Padre Arrupe, dirigem à Companhia uma carta, chamada “Carta do Rio” (maio 1968), que se tornará chave para o papel e empenho da Companhia na defesa da justiça social na América Latina. 5 O padre Gumilla, missionário jesuíta do século XVII, fundador de várias povoações nos rios Apure, Meta e

Orinoco, era sobretudo um homem de ação e um observador perspicaz da natureza e antropologia. Morreu num lugar desconhecido dos Llanos venezuelanos no dia 16 de julho de 1750, depois de 35 anos de trabalho missionário.

Vim para Roma fazendo das tripas coração, pois na Venezuela não era possível estudar teo-

logia. Queríamos estudar teologia no Chile ou na América Central, pois nessa altura eram lugares

com um forte dinamismo religioso e político. Vendo agora as coisas, agradeço que me tenham obri-

gado a vir para Roma, pois de outra forma teria perdido a oportunidade de viver intensamente com

jesuítas de 30 países diferentes. Nessa época, as pessoas e o ambiente estavam muito animados.

Em Itália criei facilmente laços com comunidades cristãs. Estes anos foram chave para a minha

abertura a outras perspetivas de sociedade, de Igreja e de Companhia.

Ainda assim, empenhámo-nos em que o 4º ano de teologia fosse feito na Venezuela, e o P.

Arrupe – com a ajuda do P. McGarry – foi muito compreensivo. Após a criação do Centro Gumilla,

criou-se um conjunto de comunidades religiosas na Venezuela com a ideia de criar uma faculdade

de teologia, e nesta altura pude fazer um quarto ano ad hoc em formato de seminário intensivo.

III – Ciências Políticas

Universidade Central da Venezuela

Durante o último ano de teologia também trabalhávamos. Nesse tempo, tinha atividades

mais pastorais. Vivíamos em Catia6 – paróquia da Companhia em Caracas – e trabalhava com outro

companheiro numa paróquia perto de El Valle, enquanto fazíamos os estudos de teologia. Ao ter-

minar esse ano, comecei os estudos em Ciências Políticas na Universidade Central da Venezuela.

Era a universidade mais importante do país, onde havia professores jesuítas e tínhamos a capelania

universitária. Era um ambiente muito importante para a Companhia, empenhada em marcar pre-

sença não só na Universidade Católica, mas também na Central onde a amplitude da discussão

ideológica era maior.

Centro Gumilla

Destinaram-me então ao Centro Gumilla, em Caracas, onde comecei a trabalhar na revista

SIC ao mesmo tempo que fazia o doutoramento e dava aulas na universidade. Trabalhei neste cen-

tro a partir de 1977. Quando o P. Ugalde foi nomeado provincial, nomearam-me diretor da revista e

dediquei-me a esse trabalho durante 18 anos, até 1996. A revista era o órgão de comunicação do

Centro Gumilla, com a missão de difundir o trabalho intelectual e de investigação que o Centro

realizava. A revista chama-se SIC – que significa “se” em latim – pois tinha nascido no Seminario

Interdiocesano de Caracas, muitos anos antes e só mais tarde foi assumida pelo Centro Gumilla.

Nessa revista, de periodicidade mensal, tentávamos seguir a realidade social e, além disso,

investir na formação socioeconómica de estudantes, grupos paroquiais, grupos populares… tínha-

mos também uma ligação muito forte com a universidade, onde todos trabalhávamos, dando aulas

ou estando envolvidos nalgum grupo de investigação. Em Barquisimeto promovíamos cooperativas

de poupança e de crédito nos bairros, e cooperativas agrícolas nas zonas rurais. Fazíamos uma

reflexão comum muito interessante e nesses anos dediquei-me a escrever, ler, discutir e participar

em cursos de formação.

IV – Liderança jesuíta

Época como Provincial

Calhou-me em sorte ser Provincial em 1996, quando já se via que as mudanças sociais iam

ser fortes e que era preciso fortalecer a identidade da província. Tudo estava pronto para uma

6 As Flores de Catia é um bairro popular de Caracas onde a Companhia de Jesus tem o Instituto Técnico de

Jesús Obrero, Instituto universitário Fe y Alegria e a Paróquia Jesús Obrero, onde reside a comunidade jesuíta na qual viveu o P. Geral.

maior abertura às vocações venezuelanas dentro da província, não só as vocações jesuítas, mas

também as de tantas pessoas já comprometidas com diversas instituições: a universidade, colégios,

“Fé e Alegria”, paróquias… era um momento muito interessante, pois já havia um corpo de pessoas

connosco com um forte sentido de identidade numa missão partilhada. Daqui saiu a ideia de fazer

um projeto apostólico a longo prazo, até 2020, que ainda está em execução. Foram anos muito

intensos, uma reflexão muito interessante, em que a Cúria era somente um agente catalisador,

onde se envolveu muita gente, leigos e jesuítas, e que durou vários anos até chegar às grandes

orientações da província.

Chegámos a um momento em que conseguimos atingir um sentido de sujeito apostólico. Esta

expressão, agora comum, nasceu naquele momento na Venezuela. Aí vivi em primeira pessoa a

intuição de que a missão apostólica não nos pertence. Isto não é algo que eu tenha lido, é algo que

experimentei ao encontrar-me com pessoas que vivem a missão com mais profundidade que eu,

em condições bem mais difíceis. Ao fim e ao cabo, nós temos liberdade para fazer muitas coisas,

mas há muitos colaboradores que o fazem enquanto se encarregam de uma família, e em situações

bem complexas, sem diminuir, por causa disso, o seu grande compromisso com a missão. A raiz

deste movimento começa com a necessidade de criar condições para fomentar a identidade parti-

lhada. Assim como são necessários 20 anos para formar um jesuíta, com estudos, experiências,

exercícios, etc… começámos a pensar numa oferta de formação e experiências mais sistemática

para os leigos. Daqui surgiram novas formas de oferecer Exercícios Espirituais a todos os níveis

sociais, ou o movimento Huellas, um itinerário de formação para jovens. A ideia de fundo é que a

experiência cristã é uma experiência de formação na fé, onde se junta o compromisso apostólico

com a formação e com a vida espiritual e o conhecimento do país.

Universidade de Fronteira em Táchira

Táchira fica a 1000 km de Caracas, na fronteira com a Colômbia, e ali não havia possibilidade

de fazer estudos universitários. Durante os anos que antecederam o Concílio, o bispo de Táchira

intuiu que a forma de manter a gente jovem naquela zona era criar uma universidade. Os jesuítas

ajudaram a fazer uma extensão da Universidade Católica Andrés Bello em Táchira, sob a responsa-

bilidade da diocese. 20 anos depois, esta tornou-se a Universidade Católica de Táchira.

Quando cheguei, a universidade estava mais ou menos consolidada, havendo a necessidade

de dar novo impulso ao seu crescimento, tanto institucional como a nível de missão. Fizemos um

novo campus, aumentou o número de estudantes, mas sobretudo colocámos muito ênfase em

fomentar o contacto com a realidade, a chave do nosso conceito de formação integral, que vai além

do académico.

Em Táchira, além da universidade, os jesuítas têm duas paróquias na zona da fronteira, uma

emissora de rádio e cinco escolas “Fé e Alegria”. Do lado de lá da fronteira, na parte colombiana,

também há instituições da Companhia, especialmente escolas “Fé e Alegria”. Assim pôs-se a hipó-

tese de trabalhar num projeto interprovincial e regional, já que nessa zona a fronteira é algo com-

pletamente artificial. É verdade que tem razões históricas, mas é a mesma cultura, a mesma gente

e mesmo as famílias estão divididas entre os dois lados da fronteira. É a fronteira mais fluida entre

a Venezuela e a Colômbia e aproveitámos esse forte sentido de identidade para criar uma zona

apostólica que junta duas nações em vários tipos de trabalhos próprios da Companhia, como a edu-

cação universitária, primária, secundária, o trabalho pastoral, o trabalho com refugiados… Fizemos

um trabalho interessantíssimo porque os estudantes participavam nas atividades da pastoral, e os

centros educativos e o resto das obras tinham a universidade como centro de referência.

Experiências de articulação latino-americana

O tempo como Provincial foi também um momento para entrar em contacto com a Compa-

nhia de Jesus e a Igreja latino-americana. Destacaria três experiências muito fortes da construção

conjunta nesses anos:

A Conferência de Provinciais da América Latina (CPAL) nasceu quando eu era Provincial da

Venezuela. A decisão de manter duas Assistências mas criar uma única Conferência já estava devi-

damente amadurecida. O arranque da CPAL foi uma aposta na articulação, contra o parecer de

muita gente. Devemos muito à tenacidade do P. Francisco Ivern. A América Latina é muito diversa e

grande, do México à Patagónia vai uma distância significativa e o Caribe não tem nada a ver com a

Argentina. O nosso esforço implicava romper com uma tradição muito antiga em que a América

Latina norte e sul seguem caminhos separados. Mas pusemos mãos à obra e começaram a aparecer

projetos comuns.

A outra experiência foi o nascimento da Associação de Universidades confiadas à Companhia

de Jesus na América Latina (AUSJAL). Foi uma belíssima experiência participar na evolução da AUS-

JAL até se tornar efetivamente uma rede. Passar de um clube de amigos onde os reitores se reu-

niam uma vez por ano para a partilha de experiências, para uma organização onde o que funciona é

o corpo – o que chamamos de “grupos de homólogos” – promovendo projetos sobre pobreza ou

liderança juvenil e nos quais participam várias universidades. Assim se vai criando a rede. Na minha

experiência de universidade pequena, isolada, na fronteira… AUSJAL foi uma lufada de ar, abria

possibilidades de experiências, intercâmbio de professores, de estudantes, ideias, projetos, que dão

outra dimensão ao sentido de manter projetos frágeis, mas significativos.

Outra experiência de articulação supra-provincial foi o nascimento de “Fé e Alegria” e a sua

transformação numa rede internacional. A minha relação com “Fé e Alegria” é muito antiga. Real-

mente tenho que dizer que comecei a conhecer os bairros através de “Fé e Alegria”. No Colégio de

San Ignacio, quando estava no 7º ano – que foi quando surgiu “Fé e Alegria –, já íamos aos bairros

por mão deste movimento. No secundário era um apaixonado por biologia, os meus pais oferece-

ram-me um microscópio e eu ia com muita frequência ao bairro de Petares, ao colégio Madre Emi-

lia, um dos primeiros colégios de “Fé e Alegria”. Quando entrei na Companhia, a minha mãe per-

guntou-me: “E que vais fazer ao microscópio, ofereces ao colégio Madre Emilia?”. O P. Vélaz, fun-

dador de “Fé e Alegria”, era uma pessoa conhecida no círculo em que nos movíamos. Poder apoiar

e ver o crescimento de “Fé e Alegria” como rede internacional foi uma experiência muito gozosa. As

redes são especialmente importantes nas fronteiras, onde os recursos são muito escassos. É um

privilégio ver como a pertença a uma rede torna possível a existência de uma escola “Fé e Alegria”

em zonas muito vulneráveis, com uma força que nunca teria por si mesma.

Experiência no governo central

Vivi a CG 32 quando estudava em Roma. Nunca esquecerei o que foi escutar o próprio Arrupe

contar aos estudantes do Gesù7 a sua experiência nesta Congregação tão importante para a Com-

panhia. A minha primeira experiência como delegado foi na CG 33, para a qual fui eleito quando

tinha somente 34 anos. Era o congregado mais novo. Foi uma experiência muito intensa, um

momento complexo em que não era fácil acertar e vivemos o rápido consenso na eleição de Kol-

venbach como uma experiência realmente inspiradora. O novo P. Geral geriu magistralmente a

transição até recuperar a confiança de outros sectores da Igreja sem que deixássemos de aprofun-

dar as grandes intuições da CG 32. Participei também na 34, muito próximo do P. Michael Czerny,

7 Nome da comunidade de jesuítas que fazem o primeiro ciclo de teologia em Roma. A comunidade é adja-

cente à igreja del Gesù.

que tinha a responsabilidade de coordenar a comissão de justiça social. Aí conheci o P. Adolfo Nico-

lás, que era o secretário da Congregação.

A minha ligação ao governo central começa na CG 35, quando o P. Nicolás cria os assistentes

não residentes (alguns chamavam-nos assistentes “voláteis” ou “voadores”…). Depois de ser eleito,

disse-me num corredor: “Quero que participes no governo da Companhia, mas não desde aqui.”

Nomeram-me e ao P. Mark Rotsaert, e foi uma experiência interessante, pois participávamos no

conselho geral sem viver em Roma. Essencialmente, vínhamos nos tempos fortes, 3 vezes por ano,

e trazíamos um olhar e uma voz que rompia com o quotidiano. Foi uma etapa esgotante, mas

aprendi muito, pois exigia manter contacto com a Companhia universal, a nível de governo geral,

não em contexto deliberativo, como nas Congregações.

Uns anos depois, o assistente enviou-me um email perguntando-me “como vês a possibilida-

de de trabalhar como responsável das casas internacionais de Roma?” e eu retorqui com a resposta

clássica de um jesuíta: “Entrei na Companhia para fazer o que me dizem, não o que quero, mas

parece-me que…” e expliquei todos os argumentos para o não. Honestamente, estava muito tran-

quilo porque pensava que as casas internacionais em Roma estavam fora das minhas competências

e, além disso, tinha sido muito crítico delas. Umas semanas depois, chegou a minha nomeação. Não

me perguntaram mais nada. O provincial chamou-me e disse-me “tenho uma notícia que nem te

consigo dar, nem consigo falar, pois não sei o que vamos fazer com a universidade se tu te vais

embora”. E assim acabei por vir a Roma uma segunda vez.

Devo dizer que a experiência destes dois anos aqui tem sido muito interessante. É diferente

ser estudante na Gregoriana com 28 anos e vir aos 60 e tal para ser responsável de 400 jesuítas que

trabalham nas casas internacionais. Esta nova perspetiva implica conhecer melhor as pessoas e as

dinâmicas das instituições. Tenho que reconhecer os grandes esforços que se fizeram nos anos

anteriores em renovar estas estruturas. Agora o grande sonho é que se constitua o consórcio uni-

versitário entre as três instituições clássicas da Companhia em Roma.

Durante estes últimos dois anos, tive ocasião de encontrar o Papa Francisco quatro ou cinco

vezes, sempre por questões relacionadas com as casas internacionais da Companhia em Roma. A

relação tem sido sempre muito gentil e de grande empatia, com a sintonia própria deste Papa que

nasce da simpatia. Creio que a mensagem do papa Francisco nestes últimos anos tem sido uma

forma de entusiasmar a Companhia a prosseguir no caminho feito – aqui e em muitos outros luga-

res. Assim como na CG 35 foi essencial o discurso de Bento XVI, neste momento Francisco confir-

ma-nos que estamos na direção própria da missão da Companhia. Anima-nos mesmo a ir além,

como se dissesse “ainda estão muito longe de fazer tudo aquilo que podem”. É o Santo Padre, com

o seu exemplo e conhecimento da Companhia, que continuamente nos confirma que estamos no

caminho certo.

V – E agora… com Espírito e coração

Olhando o Futuro

As pessoas perguntam-me “como está?” e eu respondo sempre que estou tranquilo. Estou

convencido que não há Companhia se não é “de Jesus”. E isto tem duas vertentes: não haverá

Companhia se não houver união íntima com o Senhor; e, por outro lado, se é verdadeiramente

d’Ele, confiamos que nos ajudará a cuidar dela. Creio que esta centralidade é uma das nossas cha-

ves: se a pessoa de Jesus Cristo não está diante de nós, dentro de nós e connosco todos os dias, a

Companhia não tem razão de ser.

Uma consequência desta intuição é a certeza de que se trata da “sua” missão, a missão que

partilhamos, entre nós e com todos os outros com quem vamos, é a missão de Jesus. Por isso, há

dois temas que me parecem fundamentais e que abordei na homilia da Eucaristia de ação de gra-

ças: a colaboração e a interculturalidade.

O enfâse na colaboração não é uma consequência de que sozinhos não podemos, é que não

queremos. A Companhia de Jesus não tem sentido sem a colaboração com outros. Nisto somos

chamados a uma grande conversão, pois em muitos lugares ainda vivemos na nostalgia de quando

fazíamos tudo, e agora não temos outro remédio senão partilhar a missão. Acredito profundamen-

te que é ao contrário, que a nossa vida é colaborar com outros.

O outro é a multiculturalidade/interculturalidade, pois assim é o Evangelho. O Evangelho é

um apelo à conversão de todas as culturas para protegê-las como culturas e levá-las a Deus. O ver-

dadeiro rosto de Deus é multicolor, multicultural e multivariado. Deus não é um Deus homogéneo.

Pelo contrário. A criação mostra-nos em todo o lado a diversidade, como se complementam umas

coisas com outras. Se a Companhia conseguir ser imagem disto, estará ela mesma sendo expressão

do rosto de Deus.

Creio que, depois do Concílio, a Companhia conseguiu esta variedade cultural. Conseguimos

ganhar raízes em todas as partes do mundo e de todas surgem vocações autênticas. Podes encon-

trar jesuítas, verdadeiros jesuítas, em qualquer lado, de qualquer cor, em qualquer atividade. Creio

que há aqui um sinal da Igreja para o mundo. Na nossa diversidade, une-nos o vínculo com Jesus e

o Evangelho e daqui surge a criatividade da Companhia e as pessoas com quem partilhamos a mis-

são. É incrível como são capazes de dar um toque próprio à mesma mensagem, que é mensagem

para todos.

Conclusão

Tenho uma grande esperança que esta congregação ajude a Companhia e o Geral recém-

eleito a ver com clareza para onde devemos caminhar e como. A Companhia não tem muitas dúvi-

das sobre qual é a sua missão, pois aquilo que a CG 32 formulou e reformularam as congregações

seguintes já se fez vida entre nós. Podemos dizer que já sabemos o que podemos oferecer à Igreja.

O grande desafio da Companhia de Jesus é, agora, como nos organizamos para sermos eficazes

nessa missão. Por isso, introduz o tema da profundidade intelectual, porque não é uma questão de

copiar modelos, mas sim de criar. Criar significar entender. A criação é um processo intelectual

muito árduo. Entender o que se passa no mundo de hoje, na Igreja de hoje, poder entender a fé…

isso é o que nos poder dar as chaves para centrar a missão naquilo que já percebemos ser um

amplo consenso e encontrar os modos mais eficazes para o realizar.

A minha impressão é que a Companhia está bem viva e que há muitos processos em anda-

mento. Há que centrar-nos naquilo que fazemos, temos de confiar, sabendo que podemos plantar,

mas não sabemos como crescerão as sementes. Isso sabe-o Deus. Ele é que trabalha, o essencial é

ajudar, não estorvar. A nossa paixão nasce da certeza de que acompanhamos as pessoas com a

garantia de que Deus está connosco, precedendo-nos!

Tradução de Espanhol: Nelson Faria, sj

Revisão: Elias Couto e P. António Valério, sj