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5/26/2018 RooseveltRocha-LricaGregaArcaicaeLricaModerna,UmaComparao-slidepd... http://slidepdf.com/reader/full/roosevelt-rocha-lirica-grega-arcaica-e-lirica-moderna-uma-  ISSN 2178-1737 Philia&Filia, Porto Alegre, vol. 03, n° 2, jul./dez. 2012 Literatura e Cultura da Antiquidade e sua Recepção em Épocas Posteriores 84  ______ Lírica Grega  Arcaica e Lírica  Moderna: Uma Comparação Roosevelt Rocha Lírica Grega Arcaica e Lírica Moderna: Uma Comparação  Roosevelt Rocha 1  Universidade Federal do Paraná Brasil Resumo: Neste ensaio faço uma comparação entre a poesia lírica grega arcaica com a poesia moderna, que entendo aqui como a poesia que foi produzida desde o Romantismo até os nossos dias. Procuro destacar as características básicas de cada tipo de produção poética, mostrando que há mais diferenças do que semelhanças entre a lírica dos gregos antigos e a lírica moderna, apesar da coincidência dos nomes. Palavras-chave: Lírica; canção; gênero poético.   Abstract : In this essay I make a comparison between archaic Greek lyric poetry and modern poetry, which I understand here as the poetry that was produced since the Romanticism until the present day. I try to highlight the basic characteristics of each type of poetic production, showing that there are more differences than similarities between the lyric of the ancient Greeks and modern lyric, despite the coincidence of names. Key-words: Lyric; Song; Poetic Genre.  O que é poesia lírica? É possível encontrar uma definição abrangente que nos permita compreender o que ela é? Quais são suas características? O que a diferencia dos outros tipos de poesia ou de criação literária? Neste ensaio tentarei fornecer algumas sugestões que indiquem caminhos para a compreensão desse conceito. Farei isso através de um exercício de comparação entre aquilo que chamamos hoje de lírica grega arcaica, 1 Professor Adjunto do Departamento de Linguística, Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal do Paraná. Mestre (FFLCH-USP) e Doutor (IEL-Unicamp) em Letras Clássicas.  Atualmente traduzindo Píndaro e poesia grega arcaica em geral. E-mail: [email protected] Aproveito para agradecer aos professores José Carlos Baracat Júnior e Kathrin Rosenfield pelo convite para participar deste número.

Roosevelt Rocha - Lírica Grega Arcaica e Lírica Moderna, Uma Comparação

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    ISSN 2178-1737

    Philia&Filia, Porto Alegre, vol. 03, n 2, jul./dez. 2012Literatura e Cultura da Antiquidade e sua Recepo em pocas Posteriores

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    Roosevelt Rocha

    Lrica Grega Arcaica e Lrica Moderna: Uma Comparao

    Roosevelt Rocha1

    Universidade Federal do Paran

    Brasil

    Resumo: Neste ensaio fao uma comparao entre a poesia lrica grega arcaica com a poesia

    moderna, que entendo aqui como a poesia que foi produzida desde o Romantismo at os nossos

    dias. Procuro destacar as caractersticas bsicas de cada tipo de produo potica, mostrando

    que h mais diferenas do que semelhanas entre a lrica dos gregos antigos e a lrica moderna,

    apesar da coincidncia dos nomes.

    Palavras-chave: Lrica; cano; gnero potico.

    Abstract: In this essay I make a comparison between archaic Greek lyric poetry and modernpoetry, which I understand here as the poetry that was produced since the Romanticism until

    the present day. I try to highlight the basic characteristics of each type of poetic production,

    showing that there are more differences than similarities between the lyric of the ancient Greeks

    and modern lyric, despite the coincidence of names.

    Key-words: Lyric; Song; Poetic Genre.

    O que poesia lrica? possvel encontrar uma definio abrangente que nospermita compreender o que ela ? Quais so suas caractersticas? O que a diferencia dos

    outros tipos de poesia ou de criao literria? Neste ensaio tentarei fornecer algumas

    sugestes que indiquem caminhos para a compreenso desse conceito. Farei isso atravs

    de um exerccio de comparao entre aquilo que chamamos hoje de lrica grega arcaica,

    1 Professor Adjunto do Departamento de Lingustica, Letras Clssicas e Vernculas daUniversidade Federal do Paran. Mestre (FFLCH-USP) e Doutor (IEL-Unicamp) em Letras Clssicas.

    Atualmente traduzindo Pndaro e poesia grega arcaica em geral. E-mail: [email protected].

    Aproveito para agradecer aos professores Jos Carlos Baracat Jnior e Kathrin Rosenfield pelo convitepara participar deste nmero.

    mailto:[email protected]:[email protected]
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    que se desenvolveu no perodo que vai do sculo VII a. C. at a primeira metade do

    sculo V a. C., e o que chamamos de poesia lrica moderna, que, pelo menos no que diz

    respeito aos meus objetivos neste texto, algo que surgiu com o Romantismo Alemo,

    desde a segunda metade do sculo XVIII, e se estende at os dias de hoje.

    Entre esses dois tipos de criao potica, num primeiro momento, existem

    mais diferenas do que semelhanas, apesar de os dois serem chamados de poesia lrica.

    O adjetivo lrica tem a ver com o modo de execuo e de apreenso desse tipo de

    poesia na Grcia Antiga. As composies dos nove autores do chamado Cnone da

    poesia lrica grega arcaica, ou seja, lcman, Safo, Alceu, Estescoro, bico, Anacreonte,

    Simnides, Pndaro e Baqulides, foram produzidas para serem cantadas comacompanhamento de um instrumento musical, geralmente da famlia dos cordofones,

    como a lira ou a ctara. Muitas vezes essas canes eram acompanhadas de dana

    tambm. Sendo assim, do ponto de vista do modo de apreenso/apreciao, a lrica

    grega arcaica era transmitida de uma maneira completamente diversa do modo como a

    poesia publicizada hoje em dia, atravs da leitura geralmente silenciosa de um texto.

    Para um grego do perodo arcaico no poderia haver nada mais estranho: algum lendo

    um poema em silncio e sozinho.2

    Ainda sobre o termo lrica, gostaria de frisar que os poetas do perodo arcaico

    no usavam essa palavra para designar aquilo que eles produziam. Esse adjetivo passou a

    ser usado, provavelmente, a partir do perodo helenstico (que se estendeu, grosso modo,

    de 323 a 146 a. C.), quando os gramticos alexandrinos, principalmente Aristfanes de

    Bizncio (circa 257 a 185-180 a. C.), precisaram classificar e organizar os textos que

    estavam armazenando na Biblioteca de Alexandria.3Ao invs de poesia lrica, os

    2Sabemos que sempre existiu a possibilidade de se ler poesia em volta alta, para uma audincia, em Sarausou rcitas pblicas. E, nas ltimas dcadas, houve uma revalorizao do uso da voz e da performance naexecuo do texto potico. Exemplo disso o que prope a chamada Poesia Sonora, na qual, nemsempre, o aspecto semntico o que mais interessa. Sobre isso ver o texto de Mccaffery, disponvel napgina: http://www.ubu.com/papers/mccaffery.html. De qualquer modo, em geral, hoje em dia, aspessoas costumam ler em silncio e sozinhas. Pensando em outras possibilidades, a cano em suas vriasfacetas no Brasil abrigou vrios poetas, como Orestes Barbosa, Vincius de Morais, Paulo Leminski, paracitar somente alguns. E vrios compositores e letristas j criaram verdadeiros poemas, que poderiam sertratados simplesmente como texto, sem a necessidade do acompanhamento meldico. Dessa maneira,podemos dizer que, em parte por causa do baixo nvel de escolaridade do povo em geral, no Brasil existe,sim, poesia cantada, de um modo que lembra o que acontecia na Baixa Idade Mdia, com os trovadores, ena Grcia Antiga, com os aedos. Acho muito profcua essas comparaes, guardadas as devidas

    especificidades histricas e culturais.3Sobre isso cf. Guerrero, 1998, p. 34-37; Budelmann, 2009, p. 2-5 e Ragusa, 2010, p. 23-53.

    http://www.ubu.com/papers/mccaffery.htmlhttp://www.ubu.com/papers/mccaffery.html
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    autores anteriores ao perodo helenstico chamariam suas criaes de poesia mlica,

    termo derivado de mlos, ou seja, cano, ou mesmo mousik, id ou isma, todas

    palavras que remetem ideia do canto. Sendo assim, talvez fosse melhor chamar a

    poesia lrica grega arcaica simplesmente de poesia mlica, inclusive para evitar a

    confuso com a poesia lrica moderna, que tem suas caractersticas prprias e bem

    diferenciadas. Usando o termo mlica evitamos tambm uma confuso comum no

    mbito dos estudos clssicos, causado pelo hbito de colocar sob a mesma etiqueta

    formas poticas muito diferentes e que os prprios gregos antigos costumavam

    classificar separadamente.

    Essas formas poticas diferentes da poesia mlica so a elegia, o jambo e oepigrama. A elegia basicamente poesia composta para ser recitada ou entoada com

    acompanhamento do aulo, usando a estrutura do dstico elegaco, formado por um

    hexmetro e por um verso elegaco, geralmente chamado de pentmetro, que, na

    verdade, o resultado da unio de dois hemepes:4

    - uu - uu - - uu - uu -

    Desse ponto de vista, no seria o tema o trao definidor da poesia elegaca. Foi

    s em tempos modernos que a elegia acabou sendo identificada como poesia triste,

    lamentosa. Na Grcia, no perodo arcaico, no era assim necessariamente.

    J a poesia jmbica era aquela composta, principalmente, com o metro trmetro

    jmbico (x - u - / x - u - / x - u -), o tetrmetro trocaico cataltico (- u - x / - u - x / - u -

    x / - u -), ou formas epdicas que mesclavam estruturas jmbicas com sequncias

    datlicas (combinaes formadas a partir do p datlico: - uu). Alm da mtrica, a poesia

    jmbica muitas vezes identificvel pela sua temtica relacionada quilo que os gregos

    chamavam de psogos, ou seja, o ataque, a injria, a difamao, mas sempre com um

    carter humorstico, que no final das contas tinha uma funo no mbito de certos

    rituais de carter apotropaico onde se buscava a fertilidade e a purgao.

    O epigrama, por outro lado, era, a princpio, poesia composta em dsticos

    elegacos produzida para ser gravada sobre uma pedra para celebrar a memria de um

    4 O trao aqui representa uma slaba longa e o u representa uma slaba breve. Mais abaixo o xrepresenta uma slaba anceps, ou seja, indiferente: podia ser tanto longa quanto breve. Os esquemasmtricos apresentados aqui so apenas as formas bsicas dos ditos metros. Dentro dessas estruturas

    poderia haver variaes, como substituio de uma longa por duas breves, por exemplo. Sobre os metrosgregos ver West, 1989.

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    defunto. Com o passar do tempo, esse tipo de poesia se distanciou de sua funo

    primitiva e ganhou existncia como forma literria independente. Simnides de Ceos

    (circa 556-468 a. C.) teria sido o primeiro a compor epigramas sem que necessariamente

    eles tivessem que ser gravados numa pedra para celebrar a memria de alguma pessoa

    morta. Alguns epigramas atribudos a Simnides, inclusive, tm carter humorstico.

    O que interessa aqui que os antigos gregos no viam esses trs gneros, a

    elegia, o jambo e o epigrama, como poesia lrica ou mlica. Mas, hoje em dia, comum

    encontrarmos manuais de literatura grega ou mesmo antologias de poesia grega em que

    esses trs gneros so tratados como poesia lrica, de modo geral. Isso acontece porque,

    em grande medida, ns ainda somos herdeiros do sistema de classificao romntico,segundo o qual existem trs tipos de criao literria, ou seja a pica, a dramtica e a

    lrica. Segundo Budelmann (2009, p. 3), at o Renascimento, o termo lrica tinha um

    sentido limitado, aquele herdado da Antiguidade. Porm, gradualmente, lrica comeou

    a ocupar um lugar dentro do sistema de gneros no qual j estavam a pica e o drama e

    da ele adquiriu um significado mais abrangente. Esse valor mais compreensivo de lrica

    se tornou a norma desde o final do sculo XVIII e comeo do sculo XIX. Foi Goethe

    quem criou o conceito de formas naturais da poesia, que eram trs: pica, lrica e

    drama.5 Como explica Calame, esse sistema formado por uma trade de espcies

    consideradas naturais e tratadas como essncias genricas ou tipos ideais. Essa

    concepo normativa, idealista e evolucionista, porque pressupe uma sucesso

    cronolgica de gneros. Essa a viso que encontramos nos textos de Bruno Snell e

    Hermann Frnkel,6 dois grandes herdeiros do Romantismo Alemo no sculo XX e

    continuadores do sistema genrico tradico que, por fim, foi organizado por Hegel, em

    seus Cursos de Esttica.7

    5Aqui Budelmann (n. 6 da p. 3) cita o texto Naturformen der Dichtung, de Goethe, publicado comoparte do livro Besserem Verstndnis, em 1819 (Mnchner Ausgabe, vol. 11.1.2 (1998), p. 194-5). Sobre isso,cf. tambm Calame, 1998, p. 87-94 e Silk, 2009.6O livro mais famoso de Snell, no qual encontramos a discusso sobre esse tema Die Entdeckung dsGeistes. Studien zur Entstehung ds europischen Denkens bei den Griechen (Hamburgo: Claassen Verlag, 1946),especialmente seu captulo sobre O despertar da personalidade na lrica arcaica. Existem duas traduespara o portugus: uma portuguesa, que melhor editada (A descoberta do esprito, Lisboa: Edies 70, 1992,p. 81-119), e uma brasileira (A cultura grega e as origens do pensamento grego, So Paulo: Perspectiva, 2001, p.55-79). De Frnkel, o livro a ser citado Dichtung und Philosophie des frhen Griechentums. Nova York:

    American Philological Association, 1951. (Poesia e Filosofia da Grcia Arcaica. Sem traduo para oportugus).

    7Sobre a concepo hegeliana acerca da lrica, ver Werle, 2005, p. 208-238. Para uma traduo dos Cursosde Esttica, especialmente a parte que diz respeito poesia lrica, ver Hegel, 2004.

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    Alguns autores tentaram encontrar na Antiguidade antecedentes desse sistema

    tridico. Plato, na Repblica(3, 392d-394c), afirma que existem trs maneiras de narrar:

    aquela em terceira pessoa (tpica do ditirambo narrativo, canto de um coro que conta

    eventos mticos), a mimtico-dialgica (tpica do drama, ou seja, da tragdia e da

    comdia, onde atores representam personagens) e a mista (tpica da poesia pica e de

    outros gneros que associam narrao e representao). Mais tarde Diomedes, gramtico

    do sculo IV d. C., identificou trs gneros de discursos: o exegtico-narrativo, o

    dramtico-ativo e o comum, que seria uma mescla de dialgico e de narrativo,

    compreendendo a poesia pica e a poesia lrica de Arquloco e Horcio. Contudo, o

    sistema tridico romntico no encontra na Antiguidade um antecedente quecorresponda exatamente ao modo essencialista e universalizante caracterstico do

    pensamento dos sculos XVIII e XIX, como demonstra Calame (1998, p. 93).

    uma lstima que no tenha chegado at ns o texto completo da Potica, de

    Aristteles. De qualquer modo, nesse texto no encontramos informaes importantes

    sobre a poesia lrica tratada enquanto gnero. O que encontramos ali um quase

    completo silncio. Na Potica, s h comentrios sobre os ditirambos e os nomos (1447

    b 26) e sobre os hinos e os encmios (1448 b 27), mas esses gneros so sempre

    referidos simplesmente como pontos de partida para a explicao da origem da

    tragdia.8 Contudo, se a poesia lrica a grande ausente no tratado aristotlico,

    encontramos importantes informaes sobre a histria da poesia arcaica no livro Sobre a

    Msica, de Plutarco, como demonstra Gostoli (2012).9

    Sendo assim, o que no poesia que narra os feitos de deuses ou grandes

    herois, mesclando a terceira pessoa e a representao de personagens em primeira

    pessoa, e o que no poesia composta para ser representada no teatro atravs de

    personagens que falam na primeira pessoa, seria poesia lrica. E sob essa etiqueta

    entraria todo tipo de poesia que, na Antiguidade Clssica, tinha carteres e funes

    muito bem definidos, tais como o ditirambo (poema em honra a Dioniso), o pe

    (composio associada a Apolo), o partnio (cano executada por moas solteiras), o

    prosdio (cntico executado numa procisso), o encmio (poema em homenagem a um

    8Sobre o silncio de Aristteles, cf. Calame, 1998, p. 99-100 e 108; Guerrero, 1998, p. 28-32.

    9Esse tratado de Plutarco foi traduzido por mim e est disponvel na pgina:https://bdigital.sib.uc.pt/jspui/

    https://bdigital.sib.uc.pt/jspui/https://bdigital.sib.uc.pt/jspui/https://bdigital.sib.uc.pt/jspui/
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    homem, geralmente executado num banquete) e o epincio (cano composta para

    celebrar uma vitria de um atleta num dos quatro grandes jogos da Grcia Antiga).

    De acordo com o conceito de poesia lrica que ns herdamos do Romantismo,

    poesia lrica aquela na qual o eu do poeta se expressa de modo declarado, colocando

    no texto suas emoes, suas opinies pessoais, suas impresses sobre o mundo, a

    natureza, acontecimentos histricos ou particulares. De acordo com essa tradio, que

    encontra seu principal sistematizador em Hegel, na poesia lrica se derrama a

    subjetividade e a interioridade do poeta. Por isso, ela precisa ser verdadeira e precisa

    tratar de experincias reais vividas pelo poeta. E, em se tratando de sentimentos, um

    tema muito comum na poesia lrica romntica e moderna o amor.Nada disso completamente vlido quando tratamos da poesia mlica grega

    do perodo arcaico. H algumas dcadas atrs ainda era muito aceita a ideia segundo a

    qual teria havido um tipo de evoluo no pensamento que teria partido de um modo

    objetivo de se encarar a realidade passando para um modo subjetivo de expresso. Uma

    evidncia disso seria o fato de que a poesia homrica narrada em terceira pessoa, de

    maneira que o poeta no se mostra no poema e no explicita seus sentimentos e

    opinies sobre o que est contando. Segundo Bruno Snell e Hermann Frnkel, quando

    surge a poesia lrica, especificamente com Arquloco, que teria sido o precursor no uso

    da primeira pessoa de modo evidente, digamos, os poetas passam a expressar seus

    sentimentos de modo mais explcito, o que demonstraria que o modo de pensar dos

    antigos gregos teria passado por uma profunda transformao entre os sculos VIII e

    VII a. C. Hoje em dia, contudo, essa teoria no mais aceita por uma srie de motivos.10

    Primeiro porque j em Homero encontramos menes a gneros poticos no-picos,

    como o treno (canto executado para lamentar a morte de algum), no canto 24, da Ilada;

    e algo semelhante citarodia de Estescoro, no canto 8, da Odisseia, com as intervenes

    do aedo Demdoco. Alm disso, sabemos agora que certas estruturas mtricas usadas

    por poetas como Safo e Alceu so muito parecidas com formas rtmicas usadas por

    poetas hindus anteriores a Homero e isso sugere que a poesia lrica grega j existiria

    antes da poca em que, tradicionalmente, julga-se que o autor da Ilada teria vivido, ou

    seja, a segunda metade do sculo VIII a. C.11

    10A chamada escola Snell-Frnkel criticada com justeza por Corra, 2009, p. 31-71.11Sobre isso ver, Gentili e Giannini, 1977 e Kurke, 2007, p. 142.

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    Porm existem, sim, algumas composies em que os poetas usam o pronome

    eu e em que parecem expressar sentimentos de carter ntimo e pessoal. Contudo,

    muito perigoso equacionar o eu presente nos poemas com as personagens histricas

    que compuseram aqueles poemas. No fragmento 19 W, de Arquloco, por exemplo,

    podemos interpretar que o prprio poeta estaria expressando seu programa de vida:

    No me interessam as riquezas de Giges multiureo,

    nem jamais me tomou o zelo, nem invejo

    as obras dos deuses, nem desejo a grande tirania:

    pois esto distantes dos meus olhos.

    Entretanto, sobre esse fragmento, Aristteles (Retrica, 3, 17, 1418 b 23) nos

    conta que, na verdade, quem estaria falando seria uma personagem chamada Caronte, o

    carpinteiro, e no Arquloco. Infelizmente, s chegaram at ns essas quatro linhas.

    Porm, os testemunhos nos informam que elas faziam parte de um poema mais longo,

    certamente apresentado numa situao em que o poeta poderia estar representando, de

    forma mimtica, ou contando uma histria utilizando o discurso direto de maneira

    ficcional mesmo. Vou voltar a essa questo em seguida. Em outros fragmentos tambm

    encontramos um eu potico problemtico, se pretendermos interpret-lo como a voz

    do autor, j que quem est falando uma mulher. No fragemento 10V, de Alceu, por

    exemplo, lemos:

    Eu, desditosa, eu que compartilho todos os piores males

    da (?) casa

    destino vergonhosopois sobrevem uma ferida incurvel

    e um bramido de cerva no meu peito brota

    temeroso, enlouquecido [...

    ...] com desgraas [

    Encontramos ainda outros exemplos do uso de formas verbais na primeira

    pessoa e no gnero femino tambm em Anacreonte (385 e 432 PMG) e em Tegnis

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    (861-864).12 Sendo assim, a poesia grega arcaica no obedecia s mesmas regras e

    padres estabelecidos pelos tericos e poetas do Romantismo, ou seja, os ideais de

    sinceridade e veracidade. Pelo contrrio, como as composies dos antigos helenos

    estavam inseridas numa cultura da oralidade, na qual as canes no tinham apenas a

    funo de divertir as plateias, era natural que essas canes apresentassem o eu, seja do

    poeta seja de outras personagens, como construes ficcionais inseridas dentro de

    situaes ritualizadas, seja em momentos de celebraes de cultos religiosos, seja em

    contextos de festividas particulares, como em casamentos, rituais de passagem da

    puberdade para a maturidade, funerais ou mesmo banquetes. E essa uma caracterstica

    marcante da poesia grega que a diferencia profundamente da nossa poesia atual: ela faziaparte do cotidiano dos antigos gregos de tal modo que a cultura dos helenos hoje,

    muitas vezes, chamada de cultura da cano, usando uma expresso cunhada por

    Herington (1985, p. 3). A cano, poesia cantada e muitas vezes acompanhada de dana,

    no era apenas motivo de divertimento na Grcia Antiga. Mais do que isso, era ela que

    mantinha aquela cultura viva, porque era atravs da msica, do canto e da dana que

    toda a tradio mitolgica era transmitida, que os rituais religiosos eram realizados e que

    as relaes familiares e sociais eram estabelecidas e sempre revificadas. Diferente de hoje

    em dia, quando a cano popular tratada, de modo geral, como entretenimento e

    como negcio, e quando a poesia escrita contenpornea circula, de modo geral, apenas

    entre um nmero proporcionalmente limitado de pessoas, a poesia grega antiga era

    funcional e estava intimamente ligada ao contexto social, religioso e histrico em que

    estava inserida.

    Penso que Calame (1998, p. 108-110) encaminha a discusso numa direo

    interessante quando defende que a poesia mlica estava ligada a uma ocasio cultual ou

    ritualizada especfica e estava marcada por intervenes do seu locutor, na primeira

    pessoa, que serviam tambm para deixar clara a ligao da cano com o hic et nunc, o

    aqui e o agora, da execuo cantada. Desse modo, o poema mlico , antes de tudo ao.

    Ou seja, o mlos, na Grcia Arcaica, era um ato de palavra, poesia performativa,

    pragmtica, no sentido empregado por Austin e Benveniste.13 Sendo assim, a poesia

    mlica era um ato ritualizado, um ato de culto que, segundo Calame (1998, p. 109),

    12Sobre essa questo, cf. Kurke, 2000, p. 61-62.

    13Citados por Calame, 1998, p. 109, n. 39: J. L. Austin, How to do Things with Words (Cambridge Mass.1975), p. 6-7; E. Benveniste, Problmes de linguistique general, (Paris, 1966), p. 265-266 e 269-271.

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    tendia referncia performativa e ritual e, por isso, seu euno ento nem um eu in

    dividual e privado, nem um eu autobiogrfico.14 Por essas razes, consoante Calame

    (1998, p. 110), a poesia grega arcaica no se presta decididamente s distines

    genricas modernas.

    Nesse sentido, concordo, em grande medida, com Todorov (2012, p. 20-22),

    quando ele defende que, nos nossos dias, a literatura formalista, niilista e solipsista.

    Formalista, porque grande parte da crtica e dos escritores acredita que a literatura no

    fala a no ser de si prpria e que a nica maneira de honr-la valorizar o jogo entre

    seus elementos constitutivos. Niilista, pois, de acordo com boa parte dos escritores

    atuais, os homens so tolos e perversos, as destruies e as formas de violncia dizem a

    verdade da condio humana, e a vida o advento de um desastre. Desse ponto de

    vista, segundo Todorov, a literatura no descreve o mundo: mais do que uma negao

    da representao, ela se torna a representao de uma negao. E, por fim, a literatura

    atual solipsista, j que os autores estariam interessados somente em si prprios,

    somente em descrever suas prprias experincias, mesmo que elas sejam insignificantes

    ou abjetas. Os escritores, segundo Todorov, no estariam interessados em se comunicar

    ou em entender o mundo exterior, mas seriam complacentes e narcisistas. A literatura

    seria, assim, a expresso de uma ruptura entre o eu e o mundo. Ora, nada mais distante

    da realidade dos antigos helenos do perodo arcaico.15

    Para que tudo isso fique mais claro, gostaria de apresentar aqui uma traduo de

    um fragmento, ainda indito em portugus at onde eu sei, e de apresentar um breve

    comentrio para tentar explicitar as diferenas e as semelhanas entre a mlica grega

    arcaica e a lrica moderna. O fragmento abaixo, atribudo a Safo de Lesbos, teve seu

    14 Sobre o problema do eu na poesia, se ele puramente convencional e fictcio ou autobiogrfico eidentificvel com a pessoa do poeta, cf. Combe, 2009-2010.15 Nesse sentido, acredito que um exemplo desse formalismo identificado por Todorov na literaturabrasileira seja a Poesia concreta e as experincias derivadas ou ligadas a ela, como o Poema/Processo e aPoesia Semitica, onde o aspecto semntico no era o mais importante. Quanto ao dito solipsismo,acredito que a language poetry exerceu importante influncia sobre alguns poetas brasileiros, como RegisBonvicino, e levou a um certo em-si-mesmamento da linguagem e a um certo esgotamento dapossibilidade da comunicao tambm. Porm, acredito que os chamados poetas marginais tenham seesforado para alcanar uma expresso mais simples, mais prxima da linguagem do cotidiano, comoOswald de Andrade e Manuel Bandeira, por exemplo, j tinham feito. At os anos 70, boa parte dospoetas e dos autores de literatura de modo geral enveredou pela senda do experimentalismo radical e issoos afastou do pblico leitor mdio, digamos. Por isso, podemos dizer que os poetas marginais, comoCacaso e Chacal, desejaram criar uma correspondncia entre sua poesia e a vida real, algo que lembra as

    diretrizes do Romantismo de Goethe: veja-se o ttulo do seu livro Dichtung und Warheit, Poesia eVerdade.

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    texto grego publicado pela primeira vez, na forma atual, por Gronewald e Daniel (2004).

    Minha traduo se baseia, contudo, no texto preparado por West (2005).

    Fr. 58V

    Vs, com as Musas de cintura violcea os belos dons, moas,

    cultuai e a ama-cantos aguda quelnia.

    Mas meu corpo, que antes, no passado, era delicado, a velhice j

    atacou e de negros meus cabelos tornaram-se brancos.

    Pesado meu corao tornou-se e no me suportam os joelhos,

    que j, no passado, rpidos eram para danar como gazelinhas.

    Isso lamento com frequncia, mas o que poderia fazer?

    impossvel existir um humano que no envelhea.

    Pois tambm, no passado, Titono, disseram, a rosibrcea Aurora,

    por amor vencida, foi aos confins da terra levando-o,

    pois ele era belo e jovem, mas a ele igualmente alcanou

    por fim a grisalha velhice, embora tivesse uma esposa imortal.

    Dois aspectos chamam nossa ateno logo nos primeiros versos. Primeiro, o

    carter religioso presente em toda poesia grega de modo geral e especificamente aqui

    onde a voz potica convoca suas companheiras a cultuar os dons das Musas, deusasfilhas de Zeus e Mnemosine (deusa da memria), patronas dos artes de modo geral, mas

    principalmente do canto e da dana. Em segundo lugar importante destacar o carter

    coletivo da criao potica: por mais que se atribua a composio do canto a Safo, essa

    produo se d no mbito do taso, grupo de mulheres e moas que se reuniam em

    Mitilene, na ilha de Lesbos, para cultuar a deusa Afrodite e fornecer um ambiente onde

    as jovens poderiam obter algum tipo de formao que as prepararia para sua vida futura

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    como esposas.16Em seguida, entre os versos 3 e 7 do fragmento, a voz potica trata do

    problema da velhice, tema recorrente em outros poetas, tais como Mimnermo (fr. 1W) e

    lcman (fr. 46PMGF), por exemplo.17 Desse modo, Safo insere sua obra dentro da

    tradio da cano grega arcaica, retomando um tema tantas vezes abordado por outros

    autores. Esse um fato que caracteriza a poesia grega antiga e que, talvez, hoje

    possamos chamar de intercanto ou transmisso via canto, para no usar o termo

    intertextualidade. Depois, no verso 8, a poeta usa uma mxima, uma gnome, seja para

    resumir aquilo que ela disse antes, seja para preparar o seu pblico para o que vir em

    seguida. sempre bom lembrar que, de modo geral, todos os poetas gregos usamgnomai

    para resumir algo que eles queriam dizer ou para servir de transio entre partes de umpoema. Isso muito comum nos Epincios, de Pndaro, por exemplo. Por fim, a voz

    potica menciona o mito de Titono e Aurora para mostrar que o ser humano no

    consegue escapar da velhice. Ou seja, a poeta usa uma narrativa tradicional, que ela no

    precisa contar em detalhes para um pblico que certamente j conhecia a histria, no

    contexto de uma cano na qual ela parece estar reclamando da sua situao particular.

    No entanto, vemos que o poema adquire carter coletivo, seja porque o tema

    tradicional, seja porque a estratgia composicional usada pela poeta indica que ela estava

    dialogando com outros autores. Assim, vemos que a questo da autoria e da

    originalidade se resolve aqui por vias diferentes daquelas defendidas na poca do

    Romantismo, quando julgava-se que o poeta deveria se expressar usando uma voz

    completamente pessoal e criativa, destacada da tradio.

    Resumindo: a poesia grega arcaica tem um carter pragmtico, pois ela estava

    ancorada na realidade dos fenmenos. Ela recorre habitualmente ao mito como

    narrativa de carter religioso e como paradigma positivo ou negativo (exemplo de uma

    norma ou de um aforismo que tem a ver com a ocasio e a funo, o objetivo, a

    destinao do canto). Ela tinha funo educativa, civilizatria. Sua execuo oral se dava

    diante de um auditrio e era realizada por um indivduo ou por um grupo de pessoas

    com acompanhamento de um ou mais de um instrumento musical. Ela era eurstico-

    mimtica (nela se dava a reatualizao ou representao e inveno atravs do canto, da

    melodia dos instrumentos, da dana e da gestualidade de aes e vocalizaes de

    16Sobre essas questes, cf. Parker, 1993; ver tambm as crticas feitas por Bennett, 1994.17Sobre o tema da velhice na poesia grega, cf. Falkner, 1995, e Onelley e Peanha, 2011.

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    animais e de homens); Ela era fictio, inventio, processo criativo em que se usava a

    imaginao, mas sempre conservando sua ligao com a realidade vivida, experimentada

    pelo poeta.

    A poesia moderna, por outro lado, intimista, usa linguagem simblica abstrata

    e fictcia no necessariamente ligada ao mundo existente. Isso porque a fico moderna

    cria uma realidade potica diferente da realidade histrica. Nesse sentido podemos dizer

    que no imaginrio moderno o universo simblico no mais representao de uma

    ordem objetiva do mundo, mas implica uma construo fictcia que exprime uma

    realidade subjetiva, totalmente interiorizada (Gentili, 1990, p. 16) Perde-se, ento, na

    Modernidade, a referencialidade em relao realidade histrica. Citando ManfredFrank,18Gentili (1990, p. 16, n. 25) observa que no mundo antigo, a arte e a poesia

    constituiam um universo de comunicao dos significados entre os sujeitos da

    comunidade, mas no panorama moderno, a arte se subtrai deliberadamente

    mediao dos significados, demandando tal mediao a expresses artsticas por assim

    dizer de fronteira: o cinema, o jazz e o rock, e tudo isso que hoje ent re na categoria de

    espetacularizao de massa.

    Desse modo, vemos que h mais diferenas do que semelhanas entre a poesia

    grega arcaica e a poesia moderna. Existem, sim, algumas caractersticas da lrica grega

    que podem nos levar a acreditar que existem pontos de contato, como a continuidade

    do termo lrica para designar o que se pretende como o mesmo gnero e mesmo a

    aparente presena de certos temas, como o amor, a morte e os lamentos por causa do

    destino humano, tanto na lrica antiga quanto na moderna. Mas, como procurei

    demonstrar, essas possveis semelhanas so ilusrias. O que certo que a leitura de

    poetas como Safo e Pndaro influenciaram, sim, poetas posteriores e da algumas

    caractersticas e temas presentes em criaes desses autores reapareceram no futuro.

    Contudo, cada autor, em seu tempo, leu os poetas gregos ao seu modo, de acordo com

    seus interesses e com seu contexto histrico e cultural. Sendo assim, o modo mais

    profcuo de se ler um poeta aquele atravs do qual tentamos entender em que tradio

    ele se insere, com que autores ele est dialogando e quais podem ter sido suas

    motivaes, tendo em vista o momento em que ele viveu. Isso no exclui uma anlise

    18Der kommende Gott - Vorlesungen ber die Neue Mythologie, Frankfurt am Main, 1982, p. 9-11 e 45.

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    acurada do seu mtodo de composio, que, de qualquer modo, est inserido num

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    Recebido em 15 de dezembro de 2012.

    Aprovado em 11 de janeiro de 2013.