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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Rosana Oleinik Pasinato

Pressupostos condicionantes da interpretação do direito tributário

Mestrado em Direito Tributário

São Paulo

2011

Page 2: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Rosana Oleinik Pasinato

Pressupostos condicionantes da interpretação do direito tributário

Mestrado em Direito Tributário

Dissertação apresentada à Banca

Examinadora como exigência parcial

para a obtenção do título de mestre em

Direito Tributário, pela Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo,

sob a orientação da Professora Doutora

Fabiana Del Padre Tomé.

São Paulo

2011

Page 3: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

Banca Examinadora

_________________________

_________________________

_________________________

Page 4: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

Dedico este trabalho à minha mãe, in

memoriam, e à minha filha, Victoria Pasinato,

com todo meu amor.

Page 5: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, agradeço ao Professor Paulo de Barros Carvalho,

pensador de primeira grandeza, por sua magnanimidade infinitamente demonstrada nas

oportunidades de crescimento intelectual que concede a seus alunos. Obrigada por toda a

consideração e apoio, especialmente por me acolher em seu Grupo de Estudos e no mestrado

da PUC-SP.

Agradeço à Professora Fabiana Del Padre Tomé, orientadora paciente

e dedicada e que me acompanha desde o Curso de Especialização em Direito Tributário da

PUC/COGEAE.

Agradeço a Tácio Lacerda Gama e Tathiane dos Santos Piscitelli,

pelos Cursos de Teoria Geral do Direito e Teoria da Interpretação do Direito, ministrados no

IBET, no ano de 2007. Esses cursos me introduziram à Filosofia e à possibilidade de pensar o

Direito.

Aos professores Marcelo Neves, Maria Rita Ferragut, Clarice von

Oertzen de Araújo e Robson Maia Lins, pelas aulas ministradas durante o curso de mestrado.

A meus companheiros de mestrado, especialmente Marina Figueiredo,

Guilherme Lopes de Moraes, Rodrigo Simões, Jean Simei, Rodrigo Simões, Renato Silveira,

Gyordano Kelton, Ramon Negócio e Ana Paula Herrera.

Aos membros do Grupo de Estudos idealizado e coordenado pelo

Professor Paulo de Barros Carvalho, em especial a Florence Haret e Lucas Galvão de Britto.

Ao IBET – Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, em especial à

Priscila Souza, pela oportunidade de participar de seus cursos de extensão como professora

seminarista.

Agradeço a Washington Pasinato, pela colaboração ao longo do curso.

Ao Ruy e ao Rafael da Secretaria de mestrado, pelo atendimento

exemplar.

A todos que de alguma forma colaboraram para a realização deste

trabalho.

Page 6: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

RESUMO

O presente estudo visa estabelecer parâmetros para a interpretação do direito tributário, que

denominamos de pressupostos condicionantes. Conceber o direito como fenômeno de

linguagem e a atividade exegética como construção de sentido realizada pelo intérprete não

implica conferir-lhe uma subjetividade soberana, que prescinde da observância das

expectativas de significados presentes no contexto histórico-cultural em que é realizada. Após

a fixação de premissas filosóficas que respaldam a investigação dogmática, definem-se os

pressupostos que condicionam a exegese do direito tributário, o conceito de interpretação do

direito como um sistema de linguagem, a importância dos pressupostos para a exegese, e, a

partir de então, inicia-se o estudo das disposições sobre o tema presentes no ordenamento

jurídico e dos métodos de exegese tradicionalmente concebidos pela doutrina e que servem de

argumentos para decisões de nossos Tribunais.

Palavras-chave: Direito tributário. Interpretação. Pressupostos condicionantes.

Page 7: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

ABSTRACT

The present study intends to establish parameters of law taxes interpretation, denominated

conditional presuppositions. Understanding the law as a language phenomenon and exegesis

activity as a meaning construction done by the interpreter, does not implicate empowering the

individual with an absolute subjectivity, which dispenses the observance of the meaning

expectations present at the historical and cultural context where it is done. After defining the

philosophical premises that will support our dogmatic investigations, the conditional

presuppositions of law taxes interpretation are defined, as well as the concept of law

interpretation as a prescriptive language system, his relevance and the study of the clauses

about the subject that are in the legal system and about the methods of exegesis traditionally

conceived by doctrine that support the arguments used in the Court begins.

Keywords: Tax Law. Interpretation. Conditional Presuppositions.

Page 8: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 09

CAPÍTULO 1 – A TEORIA DOS JOGOS DE LINGUAGEM E A

INTERPRETAÇÃO DO DIREITO TRIBUTÁRIO ......................................................... 14

1.1 Esclarecimentos preliminares sobre o "giro linguístico" e a existência de fases que o

caracterizam ...................................................................................................................... 14

1.2 O conceito de "jogos de linguagem" ............................................................................... 19

1.3 As regras para construção de sentido nos jogos de linguagem ....................................... 22

1.4 A intenção na atividade interpretativa: análise crítica da mens legis e da mens

legislatoris ....................................................................................................................... 26

1.4.1 A inaplicabilidade do brocardo in claris cessat interpretatio ..................................... 31

CAPÍTULO II – A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO TRIBUTÁRIO COMO

LINGUAGEM PRESCRITIVA E OS PRESSUPOSTOS CONDICIONANTES .......... 37

2.1 O conceito de interpretação e de pressupostos condicionantes ....................................... 37

2.2 A autorreferencialidade da linguagem jurídica ............................................................... 42

2.3 Os níveis sintático, semântico e pragmático da linguagem jurídica e seu papel na

interpretação .................................................................................................................... 44

2.4 A regra-matriz de incidência tributária ............................................................................ 47

2.5 Fato e evento: a importância da distinção para construir-se o sentido jurídico ............... 52

2.6 O culturalismo, cultura jurídica e a interpretação do direito ........................................... 54

2.7 Valores e interpretação do direito .................................................................................... 59

2.8 Valores, princípios e interpretação .................................................................................. 66

2.9 A função do Preâmbulo da Constituição da República para a interpretação do

direito posto ..................................................................................................................... 70

CAPÍTULO III – A IMPORTÂNCIA DOS PRESSUPOSTOS CONDICIONANTES

PARA A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO TRIBUTÁRIO: VALIDADE E

CORREÇÃO DA NORMA JURÍDICA ............................................................................. 73

3.1 Ciência do direito e direito positivo: dois jogos de linguagem ....................................... 73

3.1.1 Direito posto: normas válidas ou inválidas ................................................................. 73

Page 9: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

3.1.2 Ciência do Direito: proposições verdadeiras (corretas) ou falsas (incorretas) ........... 76

3.2 A intertextualidade .......................................................................................................... 79

3.3 Validade e correção da norma jurídica: dois pontos de vista distintos, mas

não isolados ..................................................................................................................... 81

CAPÍTULO IV – A REGULAÇÃO DA ATIVIDADE INTERPRETATIVA NO

CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL .............................................................................. 85

4.1 As regras de interpretação presentes no Código Tributário Nacional ............................. 85

4.2 A aplicação das normas jurídicas tributárias: as leis interpretativas ............................... 87

4.3 A aplicação das normas jurídicas tributárias: "fato gerador pendente" e "fato gerador

futuro" .............................................................................................................................. 89

4.4 Interpretação e integração do direito tributário ............................................................... 93

4.5 A inexistência de hierarquia e taxatividade na aplicação do artigo 108 do Código

Tributário Nacional ....................................................................................................... 100

4.6 A vedação ao uso da analogia para criação de tributo .................................................... 101

4.7 Equidade ........................................................................................................................ 107

CAPÍTULO V – MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO DO DIREITO TRIBUTÁRIO ..... 112

5.1 Considerações iniciais ................................................................................................... 112

5.2 A interpretação literal ou gramatical ............................................................................. 115

5.3 A interpretação histórico-evolutiva ............................................................................... 118

5.4 Interpretação lógica ....................................................................................................... 120

5.5 Interpretação teleológica ............................................................................................... 123

5.6 Interpretação sistemática ............................................................................................... 125

5.7 O artigo 110 do Código Tributário Nacional e a interpretação sistemática .................. 130

5.8 A interpretação sistemática e os Tribunais Administrativos ......................................... 136

5.9 A interpretação econômica do direito tributário ............................................................ 141

VI – SÍNTESE CONCLUSIVA ......................................................................................... 146

Do capítulo I ......................................................................................................................... 146

Do capítulo II ........................................................................................................................ 148

Do capítulo III ...................................................................................................................... 149

Do capítulo IV ....................................................................................................................... 150

Do capítulo IV ....................................................................................................................... 151

Page 10: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

BIBLIOGRAFIA ................................................................................................................ 155

Page 11: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

9

PRESSUPOSTOS CONDICIONANTES DA INTERPRETAÇÃO DO DIREITO

TRIBUTÁRIO

INTRODUÇÃO

A interpretação do direito tributário tem se apresentado como tema de

maior relevância para a doutrina1. Dentre os prováveis motivos que animam o interesse está a

ideia, bastante difundida entre os estudiosos, de que interpreta-se o direito para aplicá-lo2.

Pois bem. Ao analisar a interpretação do direito tributário, o cientista

se depara com intensos debates desenvolvidos no curso de processos administrativos e

judiciais, que, por seu turno, refletem enorme variedade de pontos de vista, responsáveis por

fundamentar as respectivas decisões proferidas pelas autoridades competentes, muitas vezes

consideradas contraditórias, incorretas ou mesmo arbitrárias. Ilustram a assertiva casos

recentes, nos quais a interpretação de termos como faturamento3, comunicação

4, leasing

5,

dentre outros, que denotam critérios utilizados pelo legislador para estabelecer a materialidade

dos tributos, foi a circunstância geradora de controvérsia e sobre a qual debateu-se até o

alcance de uma decisão.

Pelo prisma da Ciência do Direito, encontramos argumentos capazes

de justificar tamanha variedade de opiniões. Sob a influência de teorias filosóficas que se

desenvolveram a partir do movimento conhecido como "giro linguístico-hermenêutico"6,

introduziu-se com maior vigor no pensamento doutrinário a inexistência de uma solução única

1 A título de exemplo, citamos a opinião de Amílcar de Araújo Falcão. Em suas palavras: "um dos temas mais

árduos em direito tributário é a interpretação da lei tributária." (FALCÃO, Amílcar de Araújo. Introdução do

Direito Tributário. Rio de Janeiro: Edições Financeiras, 1959, p. 81). Ao discorrer sobre o tema, Paulo de

Barros Carvalho destaca que: "[...] a interpretação é tema fundamental e, sem ela, não teremos acesso ao

conhecimento do direito." (CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 22. ed. São Paulo:

Saraiva, 2010, p. 128). 2 Já o advertia Ferrara: "A actividade do intérprete tendente a apurar o conteúdo da lei e a desenvolvê-lo e

completá-lo, bem como a elaboração científica têm por último fim a aplicação. Porque o direito vive para se

realizar, e a sua realização consiste nem mais nem menos que na aplicação aos casos concretos." (FERRARA,

Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1937, p. 95). (destaques do autor).

Também nesse sentido, por exemplo, Bernardo Ribeiro de Moraes (Compêndio de Direito Tributário. Vol. II,

3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 173) e Luciano Amaro (Direito Tributário Brasileiro. 15. ed. São

Paulo: Saraiva, 2009, p. 205). 3 Ver RE 390.840, STF, Pleno, DJ 15/08/2006.

4 Ver REsp 402.047, STJ, 1ª Turma, DJ 09/12/2003.

5 Ver RE 592.905, STF, Pleno, DJe 05/03/2010.

6 O assunto será explicado com mais detalhes em local próprio da dissertação.

Page 12: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

10

para os aplicadores do direito, que corresponda à extração da vontade da lei ou do legislador.

Sem embargo de adiantarmos as premissas que justificam os argumentos de nossa pesquisa,

esclarecemos que tais correntes da Ciência Jurídica compreendem a atividade interpretativa

como construção de sentido feita pelo intérprete a partir dos textos do direito posto. Nega-se

haver uma essência caracterizadora da natureza do direito a ser descortinada, que permita o

alcance de um sentido único e verdadeiro, mas um processo de compreensão que conta com a

subjetividade do exegeta7, imerso em determinado contexto histórico-cultural. A mudança de

foco premia, portanto, a possibilidade de relativização, que serve para explicar o dado

empírico consubstanciado na diversidade de decisões sobre um único tema e que muitas vezes

é tida como causadora de insegurança nas relações jurídicas.

Apesar de reconhecermos a procedência de tais considerações

teóricas, acreditamos que a subjetividade inerente à atividade exegética sofre

condicionamentos, a ponto de determinadas decisões serem qualificadas como teratológicas

ou arbitrárias. Muito embora o intérprete possua plena liberdade de pensamento ao atribuir

sentido à linguagem jurídica, não deve perder de vista a finalidade do direito, vale dizer,

influenciar a conduta humana em determinada sociedade que se pauta em valores

compartilhados por seus membros. Logo, o intérprete não é um sujeito isolado. As

expectativas de seus interlocutores devem ser levadas em consideração ao atribuir-se sentido

ao direito. O que foi dito aponta para a ideia de existência de pressupostos para o

desenvolvimento da atividade exegética.

Portanto, o objetivo central dessa pesquisa é justamente responder ao

seguinte problema: levando-se em consideração que interpretar o direito tributário é atribuir

sentido aos textos que o compõe, é possível concluir pela existência de pressupostos que

condicionam a atividade exegética? Em outro giro: o intérprete é livre para emitir qualquer

decisão sem levar em conta as expectativas de seus interlocutores?

O problema central que motiva a pesquisa, por óbvio, traz seus

desdobramentos. O primeiro deles é relacionar a existência dos pressupostos condicionantes

da interpretação do direito tributário com suas consequências, vale dizer, qual a importância

em apontá-los? Constituir-se-iam em limites para a autoridade competente?

7 O termo "exegese" e, por conseguinte, "exegeta" serão utilizados nesse trabalho como sinônimos,

respectivamente de "interpretação" e "intérprete".

Page 13: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

11

Cumpre ressaltar que o direito posto, a exemplo do Código Tributário

Nacional, veicula dispositivos sobre sua interpretação. Esse fato, se analisado sob a

perspectiva dos pressupostos que a condicionam, é responsável por outras dúvidas a serem

enfrentadas pela pesquisa. Uma delas seria a seguinte: se interpretar é construção de sentido

que se faz a partir dos textos de direito, como diferençar a prática da analogia e da equidade?

O direito tributário mereceu, por parte do legislador, tratamento

detalhado na Constituição Federal, que se utiliza de conceitos de direito privado para definir

sua materialidade, sem, no entanto, estipular definição diversa. Partindo desse dado e da

existência de técnicas para a interpretação propaladas pela doutrina e comumente utilizadas

como justificativa das decisões pelos Tribunais, decorre a seguinte pergunta: houve por parte

do legislador a eleição de uma técnica de exegese, mais especificamente a sistemática, que

necessariamente deve condicionar a interpretação do direito tributário?

Há, ainda, outro desdobramento da pesquisa consistente na eleição de

um método que permita desenvolvê-la de forma coerente, conforme exige-se de um trabalho

acadêmico. Para tanto, os seguintes dados foram considerados: (i) a interpretação do direito é

tema de Teoria Geral, como pertencem, aliás, assuntos que formam a base do conhecimento

jurídico; (ii) a existência de peculiaridades no direito tributário que justificam o

desenvolvimento de pesquisas que versem sobre interpretação nessa área específica. O

próprio Código Tributário Nacional traz particularidades, a exemplo da proibição de analogia

para exigir tributo não previsto em lei, que por si só comporta laudas de análise. Por essas

razões, optamos pelo construtivismo lógico-semântico, método com forte carga de Teoria

Geral, mas que, ao mesmo tempo, deita raízes no direito tributário brasileiro, influenciando

parcela considerável do pensamento científico produzido sobre o assunto.

É de se ressaltar que o método não se constitui somente na forma

eleita pelo sujeito para se aproximar do objeto de estudos. Traz consigo uma compreensão

prévia do próprio objeto, o que influencia diretamente nas respostas às questões que

necessitam ser enfrentadas8. O construtivismo lógico-semântico interpreta o direito como um

sistema de linguagem prescritiva, como será abordado em capítulo próprio, e, em virtude

desse entendimento, responde não somente ao problema central da pesquisa, mas também às 8 Nesse sentido, Judith Alda Alves-Mazzotti e Fernando Gewandsznajder (O Método nas Ciências Naturais e

Sociais. 2. ed. São Paulo: Pioneira, 2000, p. 112). Os autores rejeitam a possibilidade de "observação pura" do

objeto. Em suas palavras: "[...] a observação está sempre impregnada de teoria. Isto quer dizer que, ao realizar

o teste empírico de uma teoria, esta própria teoria influencia o 'fato' a ser observado, na medida em que impõe

o recorte, definindo as categorias relevantes e selecionando os aspectos e relações a serem observados."

Page 14: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

12

perguntas subjacentes. Dessa maneira, o próprio conceito de interpretação e os pressupostos

que a condicionam serão fornecidos a partir da teoria expressa pelo método.

A essa altura da introdução, cabe um parêntese, com o objetivo de

esclarecer uma postura característica do construtivismo lógico-semântico, também

denominado método hermenêutico-analítico: a necessidade de um modelo filosófico que

estimule a investigação científica. Nesse sentido, estamos firmes com a lição de Paulo de

Barros Carvalho sobre o assunto, a seguir transcrita9:

Quero ressaltar que não sou filósofo do direito, mas compreendi, de há muito, que a

consistência do saber científico depende do 'quantum' de retroversão que o agente

realize na estratégia de seu percurso, vale dizer, na disponibilidade do estudioso para

ponderar sobre o conhecimento mesmo que se propõe construir. Expressando-me de

outra maneira, estou convicto de que o discurso da Ciência será tanto mais

profundo quanto mais se ativer, o autor, ao modelo filosófico por ele eleito para

estimular sua investigação. [...] O progresso da pesquisa científica fica na

dependência direta do apoio indispensável da Filosofia.

Portanto, a Filosofia, entendida como tipo de linguagem apta a questionar

os pontos de partida e as possibilidades das teorias científicas, é imprescindível no

desenvolvimento argumentativo de toda e qualquer pesquisa, por conferir-lhe vigor, profundidade

e consistência.

O modelo filosófico que sustenta o construtivismo lógico-semântico é o

"giro linguístico-hermenêutico", responsável por elevar a linguagem como problema central dos

debates e fundamento de todo o conhecimento. Confirma a tese, a proposta difundida por seu

expoente, Paulo de Barros Carvalho, que propugna pela interpretação do direito como um sistema

de linguagem10

.

Portanto, em virtude da escolha desse método, será utilizado o "giro

linguístico-hermenêutico" como fundamento filosófico da pesquisa, mais especificamente, o

pensamento expresso na segunda fase de Ludwig Wittgenstein, que se encontra na obra

Investigações Filosóficas11

. Conforme tese defendida pelo autor, a linguagem deixa de ser vista

como um simples instrumento figurativo do conhecimento sobre uma realidade absoluta e

previamente existente e passa a ser responsável por constituir inúmeras formas de vida, também

denominadas "jogos de linguagem". Nesse novo cenário, a linguagem ganha significação em

9 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário, Linguagem e Método. São Paulo: Noeses, 2008, p. 3 e 4.

Destaques nossos. 10

Conforme Curso de Direito Tributário. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. 11

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Tradução Marcos G. Montagnoli; revisão da tradução

e apresentação Emmanuel Carneiro Leão. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2009.

Page 15: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

13

virtude de seu uso voltado para determinado fim, mediante regras reconhecidas pelos que

compartilham a mesma forma de vida. Assim se daria com o direito. Sua exegese dependeria do

uso feito pela comunidade jurídica, partindo de regras previamente estabelecidas.

Dessarte, no "capítulo I", estudaremos conceitos filosóficos fundamentais

presentes em Investigações Filosóficas e que são responsáveis por influenciar na caracterização

dos pressupostos condicionantes da exegese do direito tributário. O papel da linguagem, a

relativização da verdade, o que se constitui "seguir uma regra" em um jogo de linguagem e a

possibilidade de alcançar-se a intenção na atividade interpretativa serão explicados e relacionados

com posições defendidas pela doutrina e jurisprudência do direito tributário, especialmente com

aquelas que compreendem a exegese como a extração da vontade da lei e do legislador, presentes

nos enunciados legislativos.

Esclarecidos os fundamentos filosóficos, passamos a analisar, no

"capítulo 2", a interpretação do direito tributário como um sistema de linguagem, o que nos

capacitará a responder ao problema central da pesquisa, consistente em saber sobre quais seriam

os pressupostos condicionantes da interpretação do direito tributário.

No "capítulo 3", responderemos importante questão que se desdobra do

problema central do trabalho. Analisaremos quais os efeitos de se apontarem os pressupostos

condicionantes da interpretação do direito tributário, o que implica em relacioná-los com o

conceito de validade e correção da norma jurídica.

No "capítulo 4", analisaremos dispositivos do Código Tributário

Nacional que regulam a interpretação do direito, com base nos pressupostos aferidos no início do

trabalho.

No "capítulo 5", dedicar-nos-emos a apreciar as técnicas de exegese do

direito tributário, cotejando-as com a proposta de sua interpretação como um sistema de

linguagem e com o próprio direito posto, que, em nosso modo de compreender, prescreve a

exegese sistemática.

Por último, esclarecemos que toda a exposição será permeada pela

análise de decisões que versam sobre direito tributário, proferidas por nossos Tribunais judiciais e

administrativos, como medida didática tomada com o intuito de facilitar a exposição.

Page 16: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

14

CAPÍTULO 1 – A TEORIA DOS JOGOS DE LINGUAGEM E A INTERPRETAÇÃO

DO DIREITO TRIBUTÁRIO

1.1 Esclarecimentos preliminares sobre o "giro linguístico" e a existência de fases que o

caracterizam

A primeira metade do século XX foi marcada pela transformação do

paradigma filosófico. A linguagem deixa de ser mero objeto de reflexão e se transforma no

fundamento do saber humano12

. A nova perspectiva que coloca a linguagem como alicerce do

conhecimento é denominada "giro linguístico", expressão atribuível ao filósofo Gustav

Bergmann13

. Contudo, o termo engloba distintas correntes de pensamento, que, de certa

forma, podem ser qualificadas como inconciliáveis, a partir da função que atribuem à

linguagem e sua interpretação.

Ao tomarmos como critério a significação de um termo, constatamos

que, num primeiro momento, o giro linguístico está a procura de uma linguagem ideal, capaz

de retratar o mundo de forma logicamente precisa. Compartilha do esquema filosófico

tradicional que atribui à semântica14

função meramente designativa, a ponto de compreender a

verdade de uma proposição como correspondência entre linguagem e realidade. À atividade

interpretativa somente caberia extrair uma essência supostamente existente na realidade e

comunicá-la por intermédio da linguagem. Pertence a esse período o Tractatus Logico-

philosopicus15

de Wittgenstein16

, que influenciou profundamente os pensadores do Círculo de

12

Karl-Otto Apel assim se posiciona: "O que é linguagem? É provável que nunca como no século XX tenha

havido uma consciência tão clara de que a palavra 'linguagem' aponta para um problema de fundamentos da

ciência e da filosofia – e não apenas para um objeto empírico das ciências, em meio a outros objetos

(intramundanos)". APEL, Karl-Otto. Transformação da Filosofia II. O a priori da comunidade de

comunicação. Tradução de Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2000, p. 375. 13

SCAVINO, Dardo. La filosofia actual. Pensar sin certezas. 2. ed. Buenos Aires: Paidós, 2007, p. 12. 14

A semântica pode ser compreendida como o plano da linguagem, distinguível somente para fins didáticos,

que versa sobre sua relação com o objeto. 15

WIITGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-philosophicus. 3. ed. Tradução de Luiz Henrique Lopez dos

Santos. São Paulo: EDUSP, 2008. 16

Dentre outras passagens que corroboram a afirmação destacamos a proposição 2.12: "A figuração é um

modelo da realidade" (Ibid., p. 143). Sobre o assunto, leciona Manfredo Araújo de Oliveira que "a

importância da semântica de Wittgenstein se manifesta com mais evidência pelo fato de ela ser um excelente

exemplo do que é o horizonte de pensamento da semântica tradicional: ele tematiza e desenvolve

explicitamente os pressupostos ontológicos da semântica tradicional, bem como a tese da correspondência ou

da coordenação entre linguagem e realidade que é, sem dúvida, uma das teses tradicionais e centrais da

semântica do Ocidente, isto é, sua teoria da verdade." (OLIVEIRA, 2006, p. 114).

Page 17: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

15

Viena17

, responsáveis por desenvolver a filosofia que veio a ser conhecida como Positivismo

Lógico18

.

Karl-Otto Apel19

reconhece a diferença atribuída à função da

linguagem, ao analisar seu papel no Tractatus Logico-philosophicus e em Investigações

Filosóficas, que podem ser estudados, respectivamente, como paradigmas que bem retratam

fases distintas do giro linguístico:

[...] A diferença em relação a antes [refere-se à diferença com relação ao Tractatus]

consiste, no entanto, em que agora a função da linguagem não é mais definida no

sentido do 'atomismo lógico' – e isso quer dizer: no sentido de um modelo de

'designação' de objetos que acompanha a lógica ocidental desde que ela começa a

existir, e que se dá no âmbito da 'representação' ou 'descrição' de estados de coisas.

Em lugar desse modelo de apreensão da linguagem [...] surge o novo conceito de

"jogos de linguagem". [...]. Esses "jogos de linguagem" diferem da linguagem do

sujeito extramundano ("transcendental") que havia sido concebida anteriormente e

que era una e retratadora do mundo – sobretudo por terem sido pensados como

unidades concretas (diversas mas aparentadas entre si) de uso lingüístico, forma de

vida e abertura de mundo.

No mesmo sentido, Bertrand Russell20

:

Nos últimos anos, os interesses de Wittgenstein deslocaram-se da lógica para a

análise lingüística [...]. Talvez uma interpretação correta do princípio básico da sua

teoria filosófica final seja a de que o significado de uma palavra é o seu uso. [...]

Wittgenstein repudia completamente a sua obra lógica anterior, o Tractatus. Naquele

tempo, parecia-lhe possível analisar todas as declarações decompondo-as em seus

constituintes simples e últimos, que não podem ser mais divididos. Às vezes essa

teoria é chamada de 'atomismo lógico' e tem muito em comum com doutrinas

racionalistas anteriores de elementos últimos e simples. É base de todas as

tentativas de elaboração de uma linguagem perfeita, que expressará tudo com

total precisão. Nos últimos anos Wittgenstein nega a possibilidade de se constituir

tal linguagem.

A concepção tradicional da linguagem que a entende como um

espelho da realidade é fundamento filosófico de teorias que versam sobre a interpretação do

17

Nome pelo qual um grupo de estudiosos das mais variadas áreas ficou conhecido nos anos 20 do século

passado. Reuniam-se em Viena com o objetivo de discutir a natureza do conhecimento científico. As ideias

propaladas pelo Tractatus Logico-philosophicus foi objeto do mais vivo interesse e de intensos estudos por

parte de seus membros. 18

Segundo Bertrand Russell, o Positivismo Lógico "sustenta que a soma total de nosso conhecimento é

propiciada pela ciência, e que a metafísica ao estilo antigo é estritamente verbosidade vazia. Não há nada que

possamos conhecer além da experiência [...] Trata-se do famoso princípio da verificabilidade, ou

verificacionismo […]". (História do Pensamento Ocidental. A Aventura das Idéias dos Pré-Socráticos a

Wittgenstein. 6. ed. Tradução de Laura Alves e Aurélio Rebello. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002). Sônia

Mendes aponta dentre as características fundamentais do Positivismo Lógico o critério da verificabilidade.

Somente seriam válidas as proposições analíticas, próprias da lógica e da matemática por serem tautologias e

as sintéticas próprias das ciências naturais, que necessitam de verificação empírica. (A validade jurídica pré e

pós giro lingüístico. São Paulo: Noeses, 2007, p. 16-18). 19

Op., cit., 2000, p. 82-83. Esclarecemos nos colchetes. 20

Op. cit., p. 448. (destaque nosso).

Page 18: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

16

direito, a exemplo das que compreendem a exegese como a extração de um significado

presente na vontade da lei ou do legislador. À linguagem, portanto, caberia comunicar algo

preexistente, para além dela. Nesse sentido, Miguel Reale21

: "O primeiro dever do intérprete é

analisar o dispositivo legal para captar o seu valor expressional. A lei é uma declaração da

vontade do legislador e, portanto, deve ser reproduzida com exatidão e fidelidade."

No direito tributário, podemos citar, por exemplo, Luciano Amaro22

:

"Interpretar a norma jurídica consiste em identificar o seu sentido e alcance."

O próprio Código Tributário Nacional23

traz dispositivo sobre sua

interpretação inspirado na exigência de extrair-se da lei conteúdo único e previamente

existente. Trata-se de seu art. 111, que prescreve a exegese literal da legislação tributária que

disponha sobre suspensão ou exclusão do crédito, outorga de isenção e dispensa do

cumprimento de obrigações acessórias. A exigência da literalidade pressupõe que seja

possível atribuir sentido às situações a que se refere, sem qualquer conexão com o contexto

em que elas ocorrem, como se houvesse um sentido único e imutável a ser identificado,

consubstanciado provavelmente numa vontade prévia.

A jurisprudência de nossos Tribunais também reflete esse modo de

pensar. Em caso concreto24

, decidiu-se que empresa de transporte público na cidade de Porto

Alegre, ao se utilizar de micro-ônibus para prestar o serviço, não gozaria da isenção de

IPVA25

, pois a lei apenas contemplaria os ônibus. Na Ementa do acórdão, está justificado o

entendimento da seguinte forma: "In casu, a isenção é concedida a ônibus e não a micro-

ônibus, de tal sorte que não pode o intérprete/aplicador da lei estendê-la, diante da exegese

literal da isenção."

Como contraponto, citamos a decisão proferida pelo Tribunal gaúcho

que, diferentemente do Superior Tribunal de Justiça, concedeu a isenção de IPVA às empresas

que se utilizam de micro-ônibus para prestar serviços de transporte coletivo, com o seguinte

argumento:

21

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 275. 22

Op. cita, 2009, p. 205. Os destaques não estão contidos no original. 23

A partir de agora será referido somente por CTN. 24

STJ, Agravo Regimental no Recurso Especial nº 953.130. Relator Ministro Humberto Martins. 25

Imposto sobre a propriedade de veículos automotores.

Page 19: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

17

A regra do art. 4º, inciso VII, alínea b, da Lei Estadual nº 8.115/85, a qual concedeu

isenção do pagamento de IPVA aos ônibus, visou ao estímulo do transporte coletivo

de passageiros. No caso dos autos, os veículos (microônibus) adquiridos pela

empresa são utilizados na prestação desse serviço público, pelo que se impõe o

reconhecimento da isenção26

.

A decisão do Superior Tribunal de Justiça denota que o contexto de

aplicação da norma foi desconsiderado, pois, conforme decisão recorrida, na cidade de Porto

Alegre os micro-ônibus transportam o público em linhas regulares, cumprindo o mesmo papel

de um ônibus. Por outro lado, sequer admite a variedade de significados de um termo. Haveria

uma correspondência exata e inequívoca entre o objeto "ônibus" e o conceito de "ônibus", de

tal sorte que, o contexto e a finalidade da isenção conferida ao transporte coletivo foi

desprezada.

Contudo, o fundamento filosófico que inspira esta pesquisa está

sedimentado em momento posterior do giro linguístico, que ficou conhecido como reviravolta

linguístico-pragmática ou giro linguístico-hermenêutico. Desenvolve-se nesse período a

consciência de que, com a linguagem, o ser humano realiza inúmeras atividades, compreende

o mundo e a si próprio, a ponto de se afirmar ser ela a gênese da realidade. Vilém Flusser27

bem ilustra essa forma de pensar:

Se definimos realidade como 'conjunto dos dados', podemos dizer que vivemos uma

realidade dupla: na realidade das palavras e na realidade dos dados 'brutos' ou

'imediatos'. Como os 'dados brutos' alcançam o intelecto propriamente dito em forma

de palavras, podemos ainda dizer que a realidade consiste de palavras e de palavras

'in statu nascendi'.

A partir do giro linguístico-hermenêutico, a interpretação assume

papel central nos debates científicos e filosóficos. Com a Ciência do Direito não poderia ser

diferente. Nesse sentido, Rodolfo Vigo28

, catedrático de Filosofia do Direito, constata que

A interpretação jurídica passa, especialmente no âmbito do direito continental, por

um momento de esplendor, talvez como nunca na história do pensamento jurídico.

Boa parte da bibliografia jusfilosófica que é hoje editada versa, de forma direta ou

indireta, sobre aquela temática.

A percepção de Vigo nos parece procedente. Se o conhecimento e a

própria realidade são constituídos pela linguagem, inexistindo uma essência que permita

26

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, 1ª Câmara Cível, Acórdão nº 70006809115, Relator

Desembargador Túlio de Oliveira Martins, D.J. 19/10/2005. 27

FLUSSER, Vilém. Língua e Realidade. 3. ed. São Paulo: Annablume, 2007, p. 40. 28

VIGO, Rodolfo Luis. Interpretação jurídica: do modelo juspositivista-legalista do século XIX às novas

perspectivas. 2. ed. rev. e ampl. Tradução de Susana Elena Dalli Mura. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2010, p. 35.

Page 20: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

18

extrair um sentido único, parece-nos lícito inferir que, em última instância, sempre estaremos

discutindo a interpretação. O estudioso ao eleger tema de sua preferência para pesquisa e

averiguação necessita enfrentar a disparidade entre sentidos possíveis e, dessa maneira, ainda

que indiretamente, depara-se com a interpretação.

Dardo Scavino29

, partindo dessa perspectiva filosófica, destaca o papel

que assume a interpretação, ao lembrar as palavras de Michel Foucault em conferência sobre a

filosofia de Nietzsche:

Se a interpretação nunca pode acabar é simplesmente porque não há nada que

interpretar. Não há nada previamente absoluto a interpretar, pois no fundo tudo já é

uma interpretação, cada signo é em si mesmo não a coisa que se oferece à

interpretação, senão a interpretação de outros signos30

.

A assertiva de que a realidade é criada pela interpretação da

linguagem, entendida em sentido amplo, vale dizer, não somente a verbal31

, se não explicada,

pode ser compreendida como uma espécie de alienação. O que se quer afirmar não é a

inexistência da matéria, do dado bruto, mas apenas que seu conhecimento é constituído pela

linguagem. É, portanto, fruto de uma interpretação. Os objetos configuram nosso mundo

porque os conhecemos, o que é possível somente pela linguagem. As células-tronco, por

exemplo, não existiam até o século passado. Com o desenvolvimento de teorias sobre o

assunto, isto é, com a produção de linguagem, passam a ocupar o ideário das ciências médicas

e da sociedade em geral, como comprova o debate judicial ocorrido no âmbito do Supremo

Tribunal Federal32

.

Voltamos ao problema central que motiva a pesquisa: se não há uma

essência que caracterizaria uma natureza imutável no direito posto, a ser desvendada pelo

intérprete, mas somente construção de sentido pelo uso da linguagem, qualquer significado

seria admissível?

Em Investigações Filosóficas, encontramos parâmetros que nos

permitem fundamentar respostas a essa questão. Passamos a explicá-los.

29

Op. cit., p. 39. Traduzimos livremente. 30

Nesse sentido, Paulo de Barros Carvalho aponta ser a inesgotabilidade uma das características da

interpretação. CARVALHO, Paulo de Barros. Poesia e direito – O legislador como poeta: Anotações ao

pensamento de Flusser. In: Florence Haret; Jerson Carneiro. (Org.). Vilém Flusser e Juristas – Comemoração

aos 25 anos do grupo de estudos de Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: Noeses, p. 57. 31

Outros exemplos de espécies de linguagem: gestual, musical, arquitetônica, lógica, pictórica etc. 32

ADIn 3.510 cujo objeto era o questionamento da constitucionalidade do art. 5º da Lei de Biossegurança. Foi

julgada improcedente em apertada votação, na data de 29/05/2008, após intenso debate que envolveu

cientistas, religiosos e ampla comunidade de interessados.

Page 21: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

19

1.2 O conceito de "jogos de linguagem"

No § 19 de Investigações Filosóficas33

, Wittgenstein demonstra a

amplitude de seu novo conceito, ao afirmar que "representar uma linguagem equivale a

representar uma forma de vida". Supera, portanto, sua função designativa e instrumental para

entendê-la como protagonista da realidade. A cada jogo de linguagem corresponderia uma

forma de vida, e entre elas não existiria uma característica comum, apenas uma semelhança34

.

A partir dessa premissa, o próprio direito pode ser compreendido como um jogo de linguagem

ou forma de vida, uma espécie particular de interação entre os homens, cuja função é

prescrever e estimular condutas.

O sentido da linguagem ficaria, portanto, dependente de cada contexto

no qual ela é utilizada. Inexistiria um sentido único e imutável, correspondente a uma essência

disposta numa realidade absoluta, como a seguir frisa Wittgenstein35

:

23. Mas quantas espécies de frase existem? Porventura asserção, pergunta e ordem?

– Há inúmeras de tais espécies: inúmeras espécies diferentes de emprego do que

denominamos "signo", "palavras", "frases". E essa variedade não é algo fixo, dado

de uma vez por todas; mas, podemos dizer novos tipos de linguagem, novos jogos de

linguagem surgem, outros envelhecem e são esquecidos. (As mutações da

matemática nos podem dar uma imagem aproximativa disso). A expressão "jogo de

linguagem" deve salientar aqui que falar uma língua é parte de uma atividade ou de

uma forma de vida.

Com efeito, em Investigações Filosóficas de Wittgenstein, o sentido

da linguagem não nos é dado a priori, pela estrutura ontológica supostamente presente no

mundo, mas é determinado pelo seu uso em certo contexto. Portanto, o aspecto pragmático da

linguagem entra em cena. A semântica, isto é, o sentido das frases e das palavras será

solucionado a partir do contexto no qual são usadas.

Logo, nessa fase do pensamento do filósofo, inexistiria um sentido

imutável de um termo correspondendo à forma lógica do objeto designado, mas

possibilidades de significação, variáveis de acordo com o jogo de linguagem que se participa.

33

Op. cit., 2009, p. 23. 34

Em Investigações Filosóficas, § 67, p. 52, Wittgenstein explica o conceito de semelhança de família: "Não

posso caracterizar melhor essas semelhanças do que por meio das palavras 'semelhanças familiares'; pois

assim se sobrepõem e se entrecruzam as várias semelhanças que existem entre os membros de uma família:

estatura, traços fisionômicos, cor dos olhos, andar, temperamento, etc., etc. – E eu direi: os jogos formam

uma família." 35

Ibid., p. 26 e 27.

Page 22: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

20

Este, por sua vez, também pode evoluir ou mesmo desaparecer. É o que se depreende do

seguinte excerto36

:

Podemos ver nossa linguagem como uma velha cidade: uma rede de ruelas e praças,

casas velhas e novas, e casas com remendos de épocas diferentes; e isto tudo

circundado por uma quantidade de novos bairros com ruas retas e regulares e com

casas uniformes.

Portanto, a linguagem e os diversos jogos que com ela se constituem

encontram-se sujeitos a modificações ao longo tempo, não se apresentando como algo

imutável e imune à influência de aspectos históricos, culturais e sociais.

O contexto que permite a atividade interpretativa e os diferentes

sentidos atribuídos pelos sujeitos não deve ser entendido somente como uma sequência

linguística ocorrida em determinado momento. Se alguém enuncia a expressão "abracadabra!"

para significar que possui dor de dente, como ponderado por Wittgenstein37

, não estará

comunicando seu sentir, porque a usa fora das regras que pertencem ao contexto. Portanto,

trata-se de um conceito mais amplo por equivaler a uma forma de vida e está necessariamente

atrelado à ideia de seguir uma regra. É o que nos explica Wolfgang Stegmüller38

:

Um "jogo de linguagem" consta, nas situações normais, de uma seqüência de

manifestações lingüísticas, a que se associa, ainda, uma determinada situação

externa, e a que se juntam, na maioria das vezes, outras ações. [...] Apesar de

Wittgenstein reiteradamente voltar a falar da atuação de palavras e de frases simples

[...] deve-se dizer que ele quase sempre tem em vista os contextos amplos e só

raramente contempla atos singulares do discurso.

Dessa forma, um lançamento tributário, por exemplo, não pode ser

considerado em si como um jogo de linguagem, mas como parte integrante de uma forma de

vida, a do direito posto. As autoridades administrativas e os contribuintes não são livres para

estipular seu agir naquele procedimento específico, na medida em que estão vinculados às

regras jurídicas previamente existentes.

Com efeito, ao tratarmos do contexto necessário à atribuição de

sentido como uma forma de vida ou jogo de linguagem, implícita está a ideia de seguir regras.

Afinal, todo e qualquer jogo imprescinde de um regramento.

36

WITTGENSTEIN, 2009, p. 23. 37

Ibid., p. 225, § 665. 38

STEGMÜLLER, Wolfgang. A filosofia contemporânea: introdução crítica. Vol. I. São Paulo: E.P.U.;

EDUSP, 1977, p. 449.

Page 23: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

21

Fabiana Del Padre Tomé39

faz interessante comparação entre o direito

e a teoria dos jogos formulada por James P. Carse40

, e que pode nos auxiliar na exposição.

Parte a jurista da identificação de dois tipos de jogos: um finito, cujo objetivo é vencer, e

outro infinito, no qual se almeja a continuidade do jogo. Como princípio presente em ambas

as modalidades, há a necessidade de que os participantes aceitem jogá-los.

No jogo do direito positivo, essa aceitação seria presumida, conforme

disposto no artigo 3º da Lei de Introdução do Código Civil. Uma vez publicada a lei não seria

possível alegar seu desconhecimento, o que estabelece, de certa forma, a concordância

presumida dos seus destinatários, na condição de participantes do jogo. Além desse aspecto, há

de se observar, que pelas regras do jogo do direito nos Estados democráticos, os próprios

agentes enunciadores da lei representam os destinatários. Estes, por sua vez, os elegem em

virtude de propostas previamente apresentadas, o que também certifica a existência de um

presumível consenso entre legislador e cidadão, em tese, corresponsáveis pela edição da norma.

A autora concebe o direito como um jogo finito, disputado dentro do

jogo infinito das relações sociais, que limita a ação de seus jogadores por intermédio das

regras do jogo. Releva que: "Nos jogos finitos há, também, regras relativas ao que os

jogadores podem fazer uns aos outros e uns com os outros. São, todas elas, limitações

internas, caracterizando as chamadas regras do jogo."41

Dessa maneira, o intérprete do direito tem a plena liberdade de

construção de sentido, a ponto de construir normas que afrontam as regras mais basilares do

ordenamento jurídico. Todavia, ao torná-las objetivas no jogo de linguagem do direito

positivo, correrá sério risco de vê-las invalidadas por não respeitarem as regras relativas ao

jogo em questão. Isto é, quando tratamos de apontar pressupostos à interpretação do direito

tributário, não queremos limitar o pensamento humano, mas alcançar parâmetros de correção

para sua intersubjetividade, enquanto norma inserida no ordenamento jurídico.

Um juiz pode acreditar ser mais justo que a presunção42

seja aplicada

aos crimes de ordem tributária, dado o grau de dificuldade na prova que caracterize a

39

TOMÉ, Fabiana Del Padre. A prova no direito tributário. São Paulo: Noeses, 2005, p. 20-23. 40

CARSE, James P. Jogos finitos e infinitos: a vida como jogo e possibilidade. Tradução de Cláudia Gerpe

Duarte. Rio de janeiro: Nova Era, 2003. 41

Op. cit., p. 21. (destaque da autora). 42

A presunção é definida por Paulo de Barros Carvalho como "o resultado lógico mediante o qual, do fato

conhecido, cuja existência é certa, infere-se o fato desconhecido ou duvidoso, cuja existência é,

Page 24: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

22

sonegação, por exemplo. Contudo, existe forte consenso que, segundo as regras do direito, a

tipicidade cerrada orienta prescritivamente o agir do julgador, quando a matéria é de ordem

tributária e penal43

. Dessa forma, o juiz terá de aplicá-las ao invés de seguir suas convicções

pessoais, sob o risco de ver sua decisão reformada no curso do processo.

Em suma, não cabe ao intérprete do direito simplesmente reproduzir a

compreensão que se tem dos fatos em outras formas de vida, na medida em que a linguagem

jurídica ao cumprir sua finalidade cria novo ambiente, com regras próprias que orientam o

agir dos sujeitos.

Mas, em que consiste seguir uma regra? Se não há uma

correspondência entre os textos do direito positivo e a intenção do legislador ou da lei que

impliquem a possibilidade de extrair sentido único, se estes variam conforme alterações no

contexto, como identificar quais seriam as regras para a construção de sentido?

1.3 As regras para construção de sentido nos jogos de linguagem

Há na ideia de jogo a existência de expectativas de comportamentos

que sejam intersubjetivamente aceitos como válidos. Seus participantes devem agir segundo

regras reconhecidas como as responsáveis por reger aquela atividade. Esse reconhecimento

está conectado a hábitos, instituições, que permitem não somente jogar o jogo, mas identificá-

lo. Wittgenstein44

nos explica que

Não é possível um único homem ter seguido uma regra uma única vez. Não é

possível uma única comunicação ter sido feita, uma única ordem ter sido dada ou

entendida uma única vez, etc. – Seguir uma regra, fazer uma comunicação, dar uma

ordem, jogar uma partida de xadrez são hábitos (usos, instituições).

simplesmente, provável." A prova no procedimento administrativo tributário. (Revista Dialética de Direito

Tributário, n. 34, p. 109, jul. 1998), conforme citação feita por Fabiana Del Padre Tomé (op. cit., p. 130). 43

A título de exemplo, citamos trecho do acórdão proferido no Habeas Corpus 2008/0199759-8 pela 6ª Turma

do Superior Tribunal de Justiça, relatora Ministra Jane Silva (desembargadora convocada do TJ/MG),

publicado em 16/02/2009, segundo o qual a denúncia oferecida seria inepta por atribuir crime contra a ordem

tributária a todos os membros da diretoria de uma empresa, de forma genérica, por mera presunção. Assim

está consignado na ementa: "PROCESSO PENAL – HABEAS CORPUS – CRIME TRIBUTÁRIO –

ATRIBUIÇÃO DO DELITO A TODOS OS MEMBROS DA DIRETORIA, POR MERA PRESUNÇÃO –

AUSÊNCIA DO VÍNCULO ENTRE UM DETERMINADO ATO E O RESULTADO CRIMINOSO.

DENÚNCIA GENÉRICA E CONSAGRADORA DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA – ORDEM

CONCEDIDA PARA DECLARAR A INÉPCIA FORMAL DA DENÚNCIA E A CONSEQUENTE

NULIDADE DOS ATOS POSTERIORES". 44

Op. cit., 2009, § 199, p. 113.

Page 25: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

23

Portanto, nos jogos de linguagem, equiparados pelo autor a formas de

vida específicas, que se caracterizam pela finalidade dos códigos linguísticos, há regras

intersubjetivamente válidas. Com efeito, para participar de um jogo de linguagem, como o

direito, que tem por função prescrever condutas, espera-se que os participantes utilizem-se de

determinados procedimentos e que cheguem a conclusões aceitas como resultado da aplicação

das regras da linguagem jurídica.

Wittgenstein torna o ato de seguir uma regra como algo objetivo, ao

diferençá-lo da crença que se segue a regra. Nas suas palavras45

: "Por isso, 'seguir uma regra'

é uma práxis. E acreditar seguir a regra não é seguir a regra. E por isso não se pode seguir a

regra 'privatim'; porque, do contrário, acreditar seguir a regra seria o mesmo que seguir a

regra."

Dessa forma, pensar seguir uma regra não é segui-la. Infere-se, assim,

que a relativização da atividade interpretativa dentro de um jogo de linguagem, como o

direito, não é absoluta, sofre condicionamentos que estão sedimentados nas expectativas dos

demais participantes advindas do uso dos termos linguísticos. Norman Malcolm46

, ao estudar

o conceito de "seguir uma regra", presente em várias passagens de Investigações Filosóficas,

reafirma a necessidade de um critério intersubjetivamente válido para defini-lo, distinguindo-

o da perspectiva meramente subjetiva, como exposto por Wittgenstein no excerto acima

citado. Afirma o autor que,

Quando Wittgenstein diz que seguir uma regra é uma prática, penso que ele quer

significar que as ações de uma pessoa não podem estar de acordo com uma regra, ao

menos que elas estejam em conformidade com o modo comum de agir que é

demonstrado no comportamento de todos que tenham o mesmo treinamento. Isto

significa que o conceito de seguir uma regra implica no conceito de uma

comunidade de seguidores das mesmas regras.

Malcolm alude a um modo aproximadamente comum de agir entre

pessoas que possuam o mesmo treinamento, como uma diretriz para aferir-se o consenso e,

por decorrência, a regra. No direito, essa prática ou treinamento nos parece ser a técnica

compartilhada pelos membros da comunidade jurídica, que têm sua formação acadêmica

45

Op. cit., 2009, § 202, p. 114. 46

MALCOLM, Norman. Nothing is hidden: Wittgenstein's criticism of his early thought. Cambridge: Basil

Blackwell, 1989, p. 156. Traduzimos livremente do original em inglês: "When Wittgenstein says that

following a rule is a practice, I think he means that a person's actions cannot be in accord with a rule unless

they are in conformity with a common way of acting that is displayed in the behaviour of nearly everyone

who has had the same training. This means that the concept of following a rule implies the concept of a

community of rule-followers."

Page 26: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

24

fundamentada na Ciência do Direito, que, muito embora constitua uma forma de vida distinta,

guarda intenso diálogo com o direito positivo, outro jogo de linguagem.

Observe-se que no direito posto, haveria uma aparente contradição

com a ideia de consenso como fator determinante para se compreender o que seria seguir uma

regra, pois o que prepondera é o dissenso, o litígio. Porém, a confusão é diluída, ao

ponderarmos que há consensos conformadores de ao menos dois blocos de interesses

distintos, que ocupam, nas lides judiciais, a posição de autor e réu e, nas administrativas, de

natureza tributária, a de contribuinte e ente competente para instituir e cobrar o tributo. Ao

entrarem em disputa, caberá ao Poder Judiciário, em última instância, decidir qual a

interpretação que irá regular a conduta. O consenso que prospera, portanto, somente é obtido

nas decisões que solucionam definitivamente os litígios. Se várias interpretações são tidas

como possíveis pelos participantes dos jogos de linguagem prevalecerá a regra que põe fim à

discussão, vale dizer, o trânsito em julgado de uma sentença ou acórdão não mais sujeitos à

ação rescisória47

.

Utilizamo-nos de um famoso caso para auxiliar na exposição48

do que

significa seguir uma regra. Trata-se do significado do termo "faturamento".

Ao exercer a competência atribuída pelo art. 195, I, da Constituição da

República, o legislador instituiu a contribuição para financiamento da seguridade social a

cargo da empresa, conhecida como COFINS, por intermédio da edição da Lei Complementar

nº 70. Sua base de cálculo seria o faturamento mensal, que recebeu definição estipulativa no

art. 2º da Lei Complementar, como sendo: "a receita bruta das vendas de mercadorias e de

serviços de qualquer natureza".

Com a edição da Lei 9.718/98, novo conceito de "faturamento" é

introduzido no sistema, por intermédio de seu art. 3º, com a finalidade de servir de base de

cálculo não somente da COFINS, mas também do PIS49

. A partir de então, o legislador

estipula que "faturamento" deve ser compreendido não mais como a receita das vendas de

mercadorias e serviços, mas como a totalidade das receitas auferidas, alargando sobremaneira

a base de cálculo do tributo, conforme a seguinte redação:

47

Conforme arts. 467 a 474 do Código de Processo Civil. 48

STF, RE 390.840, Relator Ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 09/11/2005, DJ 15/08/2006. 49

Programa de Integração Social.

Page 27: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

25

Art. 3º - O faturamento a que se refere o artigo anterior corresponde à receita bruta

da pessoa jurídica.

§ 1º Entende-se por receita bruta a totalidade das receitas auferidas pela pessoa

jurídica, sendo irrelevantes o tipo de atividade por ela exercida e a classificação

contábil adotada para as receitas.

Essa inovação no conceito de "faturamento" feriu regra do jogo de

linguagem do direito. A Constituição Federal reparte entre os entes tributantes, de forma

minudente, as materialidades possíveis dos tributos que se inserem em suas competências,

sem que, no entanto, estipule definição para os conceitos de direito privado de que se utiliza.

Por outro lado, conforme o disposto no art. 110 do CTN, o legislador e o intérprete do direito

tributário não estão autorizados a alterar os conceitos de direito privado utilizados na

Constituição Federal. Ao equiparar "faturamento" a "receita bruta", o legislador atribui um

significado considerado errado pela comunidade jurídica que compartilha das regras dessa

forma de vida, na medida em que, no direito privado, ambos não se equivalem.

Instado a manifestar-se, o Tribunal decidiu pela impossibilidade de

alargamento da base de cálculo do tributo, por contrariar o uso habitual do termo

"faturamento"50

. Não retomou a tese do sentido único presente em momento anterior ao giro

linguístico-hermenêutico. A decisão simplesmente demonstra que, no momento da decisão,

existiam sentidos possíveis no jogo de linguagem do direito posto51

.

A seguir, transcrevemos trecho do voto do Ministro Gilmar Mendes,

que posicionou-se contra a inconstitucionalidade do dispositivo, dentre outros argumentos,

por considerar a inexistência de um único conceito legítimo de faturamento:

Ora, é evidente que não há uma definição constitucional de faturamento que

explicite todo o alcance deste vocábulo. O dispositivo constitucional em comento

utiliza o vocábulo faturamento sem qualquer complementação e adjetivação. E

tampouco se pode afirmar que o único conceito legítimo de faturamento seria aquele

adotado por Geraldo Ataliba [citado no recurso], por mais brilhante que seja52

.

A argumentação do Ministro está correta ao ressaltar a inexistência de

um sentido único possível ao termo "faturamento". Porém, falha ao não observar uma regra

do jogo de linguagem do direito posto manifestada pelo consenso em torno de significação

50

"TRIBUTÁRIO – INSTITUTOS – EXPRESSÕES E VOCÁBULOS – SENTIDO. A norma pedagógica do

artigo 110 do Código Tributário Nacional ressalta a impossibilidade de a lei tributária alterar a definição, o

conteúdo e o alcance de consagrados institutos, conceitos e formas de direito privado utilizados expressa ou

implicitamente." 51

Esclarecemos que a Emenda Constitucional nº 20, publicada após a promulgação da Lei 9.718/98 alterou a

redação do artigo 195, I, da Constituição Federal, que passou a admitir a possibilidade de contribuição sobre

receita. 52

RE 390.840.

Page 28: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

26

diversa ao termo, partilhado pela comunidade jurídica no contexto histórico-cultural da

enunciação do julgado. Nesse sentido, a lição de Tathiane dos Santos Piscitelli53

:

O equívoco do raciocínio do Ministro pode ser facilmente demonstrado: a adoção do

conceito doutrinário ou, como aludido neste trabalho, a significação consolidada na

comunidade jurídica, não representa afirmar que o único conceito legítimo de

faturamento seja aquele vinculado às entradas resultantes das vendas de mercadorias

ou prestações de serviços, mas sim asseverar que este significado reflete o uso da

linguagem e, assim, as regras do jogo às quais a comunidade jurídica está submetida.

É evidente que não se trata de significado imutável, mas, no atual momento

histórico, esse (e não qualquer outro) é o sentido aceitável da expressão.

Portanto, o caso concreto demonstrou uma significação atribuída ao

texto tida como inadmissível pela comunidade jurídica, vale dizer, incorreta e, em virtude

disso, recebeu a sanção da invalidade pelas autoridades competentes, que estabeleceram o

consenso que deve prevalecer sobre o tema.

1.4 A intenção na atividade interpretativa: análise crítica da mens legis e da mens

legislatoris

A intenção no segundo Wittgenstein não é critério para a significação

de um termo. O sentido é atribuído pelo uso em determinado contexto, consoante suas regras.

Há várias passagens em Investigações Filosóficas que confirmam a ideia. Destacamos duas

delas54, 55

:

A atitude espiritual não acompanha a palavra no mesmo sentido que um gesto a

acompanha.

[…]

E ter em mente é algo que se encontra na esfera da alma. Porém, é também algo

privado. É aquele algo intangível; comparável somente à própria consciência.

Essa é uma inovação proposta pelo segundo Wittgenstein. A filosofia

anterior, de modo geral, como vimos, por laborar a partir da verdade por correspondência,

tinha como principal objetivo da interpretação reproduzir uma essência existente na

realidade56

. Em decorrência desse ambiente, a Ciência do Direito compreendia a atividade

interpretativa, quando necessária em virtude de obscuridade do texto, como a busca da

53

PISCITELLI, Tathiane dos Santos. Os limites à interpretação das normas tributárias. São Paulo: Quartier

Latin, 2009, p. 142. 54

Op. cit., 2009, § 673, p. 226. 55

Op. cit., 2009, § 358, p. 154. 56

Lembramos as palavras de Wittgenstein presentes na proposição 5.4711, do Tractatus Logico-philosophicus,

p. 225: "especificar a essência da proposição significa especificar a essência de toda descrição e, portanto,

a essência do mundo."

Page 29: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

27

vontade da lei (mens legis) ou do legislador (mens legislatoris). Portanto, o

intérprete/aplicador seria o responsável por alcançar um sentido verdadeiro e pré-existente nos

enunciados jurídicos, extraído este das palavras que os compõem (mens legis), ou ainda,

contidos na vontade do editor da norma (mens legislatoris), tratando a atividade hermenêutica

de reproduzi-lo.

Nas palavras de Carlos Maximiliano57

, caberia ao intérprete:

Descobrir e fixar o sentido verdadeiro da regra positiva; e, logo depois, o respectivo

alcance, a sua extensão. Em resumo, o executor extrai da norma tudo o que na

mesma se contém: é o que se chama interpretar, isto é determinar o sentido e o

alcance das expressões do direito.

Na esteira desse pensamento se posiciona um dos expoentes da

doutrina tradicional, Friedrich Karl von Savigny58

, que ressalta a necessidade de extração da

vontade do legislador na atividade exegética:

Toda lei deve expressar um pensamento de maneira tal que seja válido como norma.

Então, quem interpretar uma lei deve analisar o pensamento contido na lei, deve

pesquisar o conteúdo da lei. Primeiro é a interpretação: reconstrução do conteúdo da

lei. O intérprete deve se localizar no ponto de vista do legislador e, assim, produzir

artificialmente seu pensamento.

Haveria, portanto, segundo esse modo de compreender o direito e sua

interpretação, um sentido válido e verdadeiro, a priori presente no enunciado jurídico ou na

mente do legislador. Dessa maneira, interpretar corretamente o texto posto equivaleria a

desvendar essa vontade expressa na lei ou no espírito do legislador. Em nossa pesquisa,

pudemos notar que esse modo de compreender a interpretação dos textos jurídicos, ao menos

entre os tributaristas de maior renome, ainda é predominante, ou no mínimo bastante

recorrente.

Rubens Gomes de Sousa59

, por exemplo, ao tecer considerações sobre

os dispositivos que tratam da interpretação presentes no Código Tributário Nacional, parece

compartilhar das opiniões que admitem a necessidade de alcançar-se a vontade do legislador

para o desenvolvimento da atividade hermenêutica. Nas palavras do jurista:

57

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 1.

(destaques nossos). Observe-se, contudo, que o doutrinador não comunga da ideia de que o alcance da

vontade seria algo de todo possível. Nesse sentido, desaconselha o uso do método como única técnica

interpretativa, conforme se verifica na p. 24 de sua importante obra. 58

SAVIGNY. Friedrich Karl von. Metodologia Jurídica. Tradução de Heloísa Buratti. 1. ed. São Paulo: Rideel,

2005, p. 25. 59

SOUSA, Rubens Gomes de. Normas de interpretação no Código Tributário Nacional. In: RIBEIRO,

Bernardo de Moraes et al. Interpretação no direito tributário. São Paulo: Saraiva, EDUC, 1975, p. 365.

Page 30: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

28

A dicotomia entre 'mens legis' e a 'mens legislatoris' repousa sobre a premissa de

que, uma vez editada a lei, ela adquire uma existência própria e autônoma,

obviamente não no plano normativo, mas no plano intelectual da interpretação,

diversa ou independente, não necessariamente oposta, mas não necessariamente

vinculada à intenção que teria tido seu autor. Confessamos, dentro de nossas

limitações, que nunca conseguimos entender como um texto, que por sua natureza é

uma formulação abstrata para aplicar-se a hipóteses quando estas se verifiquem em

concreto, possa adquirir uma vida própria e independente da orientação mental que

lhe deu origem. Afinal a lei (e por força dos nossos pecados talvez melhor do que

ninguém saibamos disto) é um produto de um esforço mental humano.

Amilcar de Araújo Falcão60

nos parece também compartilhar da visão

tradicional da dogmática jurídica sobre o tema da interpretação do direito tributário. Leciona o

renomado mestre:

Interpretar uma lei é declarar-lhe o sentido, o alcance. Não há, na interpretação,

qualquer atividade criadora ou inovadora. A atividade intelectual do exegeta é

meramente declaratória: êle declara o que se contém na lei […]

Roque Antônio Carrazza61

é taxativo ao atribuir à interpretação a

função de descobrir a mens legis. Em suas palavras:

[…] a interpretação é uma atividade cognoscitiva que visa a precisar o significado e

o alcance das normas jurídicas, possibilitando-lhes uma correta aplicação. Esta

tarefa, voltada, precipuamente, à descoberta da mens legis (da vontade do Estado

contida na norma jurídica), exige a constante invocação dos grandes princípios,

mormente em face das disposições incertas e das palavras equívocas ou polissêmicas

que costumam recamar nossos textos legislativos.

Vittorio Cassone62

, rechaçando a dicotomia entre mens legis e mens

legislatoris, considera que ambas as correntes de interpretação são válidas, devendo, contudo,

o intérprete dedicar-se com mais afinco à descoberta da vontade da lei, mas, sempre que

possível, também observar a vontade do legislador. Nas palavras do autor63

:

Em matéria de interpretação, quanto ao direito tributário cabe registrar, inicialmente,

a existência de duas correntes doutrinárias, a saber: uma resultante da dicotomia

entre mens legis (vontade da lei) e mens legislatoris (vontade do legislador). Kelsen,

em sua teoria, diz que, editada a lei, ganha ela autonomia e existência própria,

desvinculada da intenção do legislador, a que se dá o nome de interpretação

estritamente jurídica; outra para quem a interpretação deve levar em consideração

aspectos extrajurídicos, tais como a intenção do legislador averiguada pelo

desenvolvimento dos trabalhos legislativos e pela exposição de motivos; [...] penso

que o intérprete deve empenhar-se em descobrir com maior proficiência a mens legis

60

FALCÃO, Amílcar de Araújo. Fato gerador da obrigação tributária. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos

Tribunais, 1974, p. 48. 61

CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 24. ed. São Paulo: Malheiros,

2008, p. 42. 62

CASSONE, Vittorio. Direito Tributário. 12. ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 151. 63

Ibid., p. 151.

Page 31: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

29

(vontade da lei), mas, levando em consideração, sempre que cabível, a mens

legislatoris (vontade do legislador).

A análise de nossa jurisprudência demonstra o quão fundo fincou

raízes a compreensão da atividade interpretativa sob a óptica tradicionalista, que acabamos de

expor. Os aplicadores do direito encontram-se à procura da vontade do legislador ou da lei,

comungando, ainda que inconscientemente, da dogmática tradicional e da concepção de uma

linguagem instrumental, designativa.

Apenas a título ilustrativo citamos trecho de julgado recente64

, no qual

está consignado que: "O fato gerador, que é a prestação do serviço, há de ser limitado pela

vontade da lei. O intérprete, quer por meio da doutrina, quer por meio da jurisprudência, não

pode ampliar a natureza do fato gerador ou fazer a distinção, a seu respeito, não prevista em

lei."

Portanto, independentemente do acerto do julgamento, que afastou a

incidência de ICMS65

na prestação de serviços gráficos, verificamos que sua fundamentação

está numa suposta vontade da lei, tida como pressuposto, no exemplo dado, para uma decisão

correta. O significado de "serviço" seria extraído dessa vontade. Não se trata, sob essa

perspectiva, do uso do termo "serviço" em nosso contexto jurídico, segundo o qual, decorreria

uma compreensão acerca do tema, resultando em interpretações possíveis, admitidas pela

comunidade de intérpretes do direito.66

Consideramos que utilizar a extração da vontade do legislador, ou da

lei como critério da atividade interpretativa, ao invés do uso dos termos pela comunidade

jurídica, pode ter como consequência o estranhamento dessa decisão, a ponto de ser vista

como teratológica ou arbitrária. Afinal não há como saber ao certo qual seria a anseio do

legislador no momento da enunciação do texto de lei, ou ainda, se essa suposta e inalcançável

vontade poderia ser compatível com o contexto atual. As interpretações tidas como possíveis

são aquelas que respeitam as expectativas de significado existentes em determinada

comunidade jurídica, que se consolidam em virtude do uso da linguagem.

64

STJ, 1ª Turma, Resp. nº 83. 180, Rel. Min. José Delgado, D.J. 01/04/1996. 65

Imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e serviços. 66

Nesse sentido também o julgamento do Recurso Especial 2007/0138502-5, julgado em 31/08/2009, pela 2ª

Turma do Superior Tribunal de Justiça, tendo como relator o Ministro Castro Meira, no qual se discutiu a não

retenção na fonte de CSLL, PIS e COFINS em virtude de prestação de serviços médicos sobre pagamento

efetuado por pessoa jurídica à outra pessoa jurídica prestadora de serviços médicos. Na Ementa está disposto

que: "1. Independentemente da forma de interpretação aplicada, ao intérprete não é dado alterar a 'mens

legis'."

Page 32: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

30

Observamos em nossa pesquisa que, apesar de entendimento

preponderante, há muito a busca da vontade do legislador como critério para aplicação do

direito é posta sob suspeita pela Doutrina, que o rebate como único método de interpretação,

aceitando-o, porém, como um dentre os possíveis. Para Carlos Maximilano67

:

Reduzir a interpretação à procura do intento do legislador é, na verdade, confundir o

todo com a parte; seria útil, embora nem sempre realizável, aquela descoberta;

constitui um dos elementos da Hermenêutica; mas, não o único; nem sequer o

principal e o mais profícuo; existem outros, e de maior valia. Serve de base, como

adiante há de se mostrar, ao processo histórico, de menor eficiência que o

sistemático e o teleológico.

Com efeito, não é possível concordar na integralidade com a posição

compartilhada por doutrinadores do presente e do passado, que atribuem à atividade

interpretativa a busca da vontade da lei ou do legislador, pois o dado intrassubjetivo da

enunciação somente deixa marcas (novos textos) que necessitariam de interpretação. Como se

percebe, tais marcas, como a exposição de motivos, para a atividade hermenêutica, sob certa

perspectiva em nada diferem do corpo da lei. São textos e seu sentido precisa ser atribuído

pelo exegeta.

O grande vulto da hermenêutica nacional, sempre citado pelos

estudiosos quando a interpretação é o assunto, nos deixou consignada sua objeção quanto à

possibilidade de alcançar-se a vontade do legislador, no seguinte trecho de sua obra68

:

Eis aí a ficção; presume-se o impossível; que o legislador de decênios atrás previsse

as grandes transformações até hoje operadas, e deixasse, no texto elástico, a

possibilidade de abrigar no futuro direitos periclitantes, oriundos de condições

novíssimas. A sua visão profética atingiu não só os problemas jurídicos, mas o

estado de coisas que os fez surgir; de sorte que, educado em velha escola filosófica

ou econômica, ele atravessaria a História, esposando hoje os postulados de uma

corrente intelectual, amanhã os de outra, e assim sucessivamente, sempre renovado,

variando sempre, como um fenomenal Proteu.

Porém, como acima explicitado, conclui pela possibilidade da

utilização da vontade do legislador, desde que atualizada historicamente, com o que

discordamos, pelos motivos anteriormente expressos, mormente pela impossibilidade de se

alcançar a vontade do legislador ou da lei, já que a primeira se esvai na intersubjetividade e a

segunda atribui vontade a algo inanimado.

67

Op. cit., p. 24. 68

Op. cit., p. 21.

Page 33: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

31

De acordo com os fundamentos presentes em Investigações

Filosóficas, inexistiria uma verdade contida no texto da lei a ser revelada pela exegese, já que

esta seria produto de uma construção da comunidade jurídica envolta na atividade

interpretativa e aplicadora do direito. A atividade hermenêutica69

, portanto, seria construtiva e

não reconstrutiva. Vale dizer: não caberia ao intérprete reproduzir uma vontade pré-existente

no texto, desvendando o verdadeiro sentido e alcance da norma. Igualmente, não seria

possível alcançar e esclarecer a vontade do legislador no ato da edição da norma, ou ainda,

atualizá-la, desvelando-se o que o legislador quereria ao analisar o caso por ele não previsto,

ao modo do pensamento histórico-evolutivo. A vontade do legislador seria simplesmente

intrassubjetiva, inalcançável, e o texto de lei, apenas o ponto de partida para a atividade de

construção de sentido.

1.4.1 A inaplicabilidade do brocardo in claris cessat interpretatio

Parece-nos possível concluir que, se não há como o sujeito extrair uma

essência do direito que corresponda à vontade da lei ou do legislador, a atividade

interpretativa estaria sempre presente, como a única maneira possível de compreendê-lo e, por

decorrência, aplicá-lo. Não haveria uma clareza suficiente em qualquer de seus dispositivos

que dispensasse a exegese.

Contudo, para parte da doutrina, a atividade interpretativa nem sempre

se faz necessária para a concretização do direito. Em linhas gerais, desconsidera-se a

construção de sentido que ocorre para sua compreensão e aplicação, premiando-se uma

verdade absoluta, plasmada no texto, cabendo ao intérprete apenas repeti-la. A interpretação

somente se daria em cenário obscuro. Admite-se seu uso apenas na eventualidade de dúvida.

As palavras de Paula Batista70

bem ilustram esse pensamento:

[…] interpretação é a exposição do verdadeiro sentido de uma lei obscura por

defeitos de sua redação, ou duvidosa, com relação aos fatos ocorrentes, ou

silenciosa. Por conseguinte, não tem lugar sempre que a lei, em relação aos fatos

sujeitos ao seu domínio, é clara e precisa. 'Interpretatio cessat in claris'.

Após a mudança de paradigma da filosofia, fomentado pelo giro

linguístico-hermenêutico, a posição de Paula Batista seria de difícil sustentação científica.

69

O termo "hermenêutica" é utilizado nesse contexto como sinônimo de interpretação. 70

Citado por Carlos Maximiliano (2008, p. 29). (destaques nossos).

Page 34: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

32

Primeiramente, o "claro" e o "escuro" dependem do sistema de referência do intérprete71

.

Dessa maneira, o que pode ser absolutamente compreensível para alguns se apresenta, ao

mesmo tempo, como um problema para diversas pessoas.

Tais considerações foram efetuadas também por Rubens Gomes de

Sousa, que, apesar de buscar com a exegese a vontade do legislador, reconhece a inexistência

de clareza suficiente capaz de suprimir a atividade interpretativa. Para o autor, a interpretação,

ao contrário do que afirma Paula Batista, é elemento integrante da metodologia aplicativa do

direito. Em suas palavras72

:

Ora, em primeiro lugar é preciso saber o que é claro: e já teríamos ali um elemento

subjetivo, pois aquilo que é claro para um pode ser obscuro para outro e vice-versa

[...] Em contrário à tese de que a interpretação é um mecanismo ou um sistema

destinado a solver dúvidas, pensamos que é pacífico o entendimento atual de que a

interpretação é um elemento integrante da metodologia aplicativa do direito. Dessa

forma, a atividade interpretativa do direito posto, quando efetuada pelo sujeito

competente visa sua aplicação e não o esclarecimento de dúvidas.

Além disso, justamente por inexistir uma essência na linguagem, todas

as palavras padecem de ambiguidade e vaguidade73

e seu significado somente pode ser

definido pelo uso da linguagem.

Se admitidas tais considerações, seremos forçados a negar a existência

de zonas de clareza, nas quais a aplicação da lei se faria por uma espécie de dedução, isto é,

determinado texto de direito positivo, redigido de forma impecável, iluminaria o campo sobre

o qual se daria sua incidência, ao passo que outro, contendo obscuridades, implicaria a

presença de um juízo mais acurado, verdadeira interpretação, e somente após esse tratamento

seria possível atribuir-lhe sentido. Em nosso entendimento, todo e qualquer texto ganha

sentido por intermédio do sujeito, que o utiliza em determinado contexto ou jogo de

linguagem, visando a uma finalidade.

No direito tributário, como em qualquer outro campo jurídico, a

inexistência de clareza dos enunciados prescritivos fica patente nas infindáveis discussões

71

Sistema de referência pode ser compreendido como as interpretações feitas por nossos pares dentro de

determinado jogo de linguagem e sobre as quais reina o consenso de que estão corretas. 72

Op. cit., p. 363-364. 73

A vaguidade relaciona-se à imprecisão de uma palavra em conotar dada situação. Como exemplo clássico,

temos a calvície, pois não se sabe ao certo quantos fios de cabelo são necessários para que se reconheça

alguém como calvo. Ambiguidade relaciona-se à dificuldade de denotação de um conceito. É difícil de

precisar se determinado conceito pertence ou não a uma dada classe. A palavra "casa" pode denotar abrigo,

local onde se pratica determinada atividade (Casa Legislativa, por exemplo), orifício do vestuário, dentre

outros significados possíveis.

Page 35: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

33

ocorridas em nossos Tribunais, cujo ponto de partida são textos, que se poderia afirmar,

segundo os que comungam a necessidade de interpretação somente na eventualidade de

obscuridade, como razoavelmente bem escritos e que, tomados em sua literalidade, seriam

isentos de dúvidas.

Elegemos como exemplo a imunidade conferida pelo artigo 150, VI,

"d" da Constituição da República. Na sua literalidade está disposto ser vedado aos entes

políticos instituir impostos sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua

impressão. Aplicando-se o brocardo in claris cessat interpretatio, dispensar-se-ia a atividade

do intérprete, afinal todas as palavras são conhecidas e, da sua arrumação na frase, nada de

obscuro estaria a demandar interpretação. Bastaria que o aplicador do direito fizesse a

subsunção da norma a fatos também supostamente isentos de qualquer questionamento ou

dúvida.

Todavia, mesmo num dispositivo aparentemente tão claro, não há

concordância, do ponto de vista pragmático, quanto a seu sentido, a ponto de ser submetido

constantemente ao crivo do Poder Judiciário. Temos em nossos Tribunais inúmeros

questionamentos que envolvem o vocábulo "livro" para fins de imunidade. Há dúvidas sobre

o alcance do conceito que abrangem o próprio produto final e ainda seus insumos. Vejamos,

por exemplo, julgados proferidos pelo Supremo Tribunal Federal, nos quais se reconhece

imunidade dos álbuns de figurinhas, do papel e dos cromos que os ilustram, compreendendo-o

como livros:

CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE. ART. 150, VI, 'D' DA CF/88.

'ÁLBUM DE FIGURINHAS'. ADMISSIBILIDADE. 1. A imunidade sobre livros,

jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão tem por escopo evitar

embaraços ao exercício da liberdade de expressão intelectual, artística, científica e

de comunicação, bem como facilitar o acesso da população à cultura, à informação e

à educação. 2. O constituinte, ao instituir a benesse, não fez ressalvas quanto ao

valor artístico ou didático, à relevância das informações divulgadas ou à qualidade

cultural de uma publicação. 3. Não cabe ao aplicador da norma constitucional em

tela afastar deste benefício fiscal instituído para proteger o direito tão importante ao

exercício da democracia, por força de um juízo subjetivo acerca da qualidade

cultural ou do valor pedagógico de uma publicação destinada ao público infanto-

juvenil. Recurso extraordinário conhecido e provido74

.

CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ICMS. IMUNIDADE TRIBUTÁRIA: C.F.,

art. 150, VI, 'd'. I. – Papel destinado à fabricação de álbuns a serem completados por

cromos adesivos considerados tecnicamente ilustrações para crianças:

admissibilidade da imunidade tributária do art. 150, VI, 'd', CF. II. – Precedentes do

74

Recurso Extraordinário nº 221.239/SP, Rel. Min. Ellen Gracie, v.u. DJ 06/08/2004, p. 0061.

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34

STF: RE 221.239/SP. Ministra Ellen Gracie, DJ de 06.08.2004. III. – R.E.

improvido. Agravo não provido.75

Citamos, ainda, trecho de voto do Ministro Maurício Corrêa, que nos

traz o seguinte conceito: "o livro, como objeto de imunidade tributária, não é apenas o

produto acabado, mas o conjunto de serviços que o realiza, desde a redação até a revisão da

obra sem restrição dos valores que o formam e que a Constituição protege."76

Portanto, uma palavra como "livro", que poderia ser considerada clara

para os falantes da língua portuguesa, depende de seu emprego em determinado "jogo de

linguagem", para que o sentido lhe seja atribuído. No interior do direito posto, assume

significações múltiplas, como vimos nos exemplos transcritos, a ponto de um simples álbum

de figurinhas a ele ser equiparado. Para o direito, quando o assunto é imunidade, sua

significação contempla não apenas o produto final, o objeto encontrado nas estantes das

bibliotecas, mas denota variadas formas de expressão cuja finalidade é contribuir para o

acesso ao dado informativo e cultural por parte do público leitor77

.

Com o exemplo dado, reforça-se a tese defendida pelo giro

linguístico-hermenêutico, segundo a qual inexistiria uma essência reproduzida numa

linguagem precisa, que permitiria tamanha clareza a ponto de dispensar a interpretação.

Vaguidade e ambiguidade estão potencialmente em todas as palavras e seu sentido somente

pode ser esclarecido mediante o emprego em determinado contexto. Para Wittgenstein78

:

A denominação não é ainda nenhum lance no jogo de linguagem – tão pouco quanto

a colocação de uma peça de xadrez é um lance no jogo de xadrez. Pode-se dizer:

com a denominação de uma coisa não se fez nada ainda. Ela não tem nome, exceto

no jogo.

O significado de um termo depende de seu uso em específico jogo de

linguagem. E mesmo em seu interior, vários sentidos podem ser admitidos.

Talvez a clareza a que se refere parte da doutrina tradicional, apoiada

no brocardo citado, possa ser explicada por outra perspectiva, nos remetendo à ideia de

75

AgR nº 339.124/RJ, Rel. Min. Carlos Veloso. 76

RE (AgReg) nº 225.995/RS. 77

Outro exemplo que confirma a assertiva é a imunidade concedida às apostilas, conforme RE 183403/SP,

julgado pela 2ª Turma do STF , publicado no DJ em 04/05/2001, tendo como relator o Min. Marco Aurélio:

"IMUNIDADE – IMPOSTOS – LIVROS, JORNAIS, PERIÓDICOS E PAPEL DESTINADO À

IMPRESSÃO – APOSTILAS. O preceito da alínea 'd' do inciso VI do artigo 150 da Carta da República

alcança as chamadas apostilas, veículo de transmissão de cultura simplificado." 78

Op. cit., § 49, p. 42.

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35

significado de base, como a existência de um forte consenso sobre determinado conceito.

Acreditamos ser esse o sentido das lições de Herbert L. A. Hart79

:

Os casos simples, em que os termos gerais parecem não necessitar de interpretação e

em que o reconhecimento dos casos de aplicação parece não ser problemático ou ser

'automático' são apenas casos familiares que estão constantemente a surgir em

contextos similares, em que há acordo geral nas decisões quanto à

aplicabilidade dos termos classificatórios.

Contudo, para que essa coesão de opiniões seja formada e aplicada

ordinariamente aos fatos, não se dispensa a atividade interpretativa. Não nos parece que, pela

via dedutiva, o intérprete realize mera subsunção entre fato e norma na chamada zona de

clareza e verdadeira decisão nos casos duvidosos80

, que se encontrariam, em oposição, numa

suposta zona de penumbra. Pelo contrário, reiteramos que a suposta "clareza" depende

umbilicalmente das interpretações reiteradas produzidas pelos utentes de determinado jogo de

linguagem, que decidem, em cada caso, se determinado fato se encontra amparado em norma

geral e abstrata.

Também do ponto de vista subjetivo, para que o intérprete considere

um texto claro, antes de tudo, terá que lhe atribuir sentido. O enunciado é apenas o ponto de

partida para sua atividade construtiva, capaz de atribuir significação ao disposto em lei.

Aplicando as premissas do construtivismo lógico-semântico, leciona Fabiana Del Padre

Tomé81

:

O adágio segundo o qual, 'na clareza da lei cessa a interpretação', não se sustenta.

Até mesmo para dizer que uma lei é clara, demanda-se interpretação, a qual pretende

dar, ingenuamente, aquele sentido unívoco. E isso ocorre exatamente porque quando

o legislador elabora o texto, tomado como suporte físico, não constitui a norma

jurídica, mas apenas um ponto de partida para a sua construção.

Dessa forma, o brocardo in claris cessat interpretatio pode ser

considerado, após o giro linguístico-hermenêutico, um erro de apreciação do fenômeno

jurídico e não é adotado por nesse trabalho como uma técnica hermenêutica. Contudo, ainda é

bastante utilizado em nossos tribunais como forma de justificar decisões82

, mormente

79

HART, Herbert L. A. O conceito de direito. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007, p. 139. 80

Essa nos parece a posição, por exemplo, de Genaro R. Carrió, em seu Notas sobre derecho y lenguaje. 4. ed.

Buenos Aires: Abeledo-Perrot, p. 49 et seq. 81

TOMÉ, Fabiana Del Padre. Vilém Flusser e o Constructivismo Lógico-semântico. In: HARET, Florence;

CARNEIRO, Jerson (Orgs.). Vilém Flusser e Juristas. São Paulo: Noeses, 2009, p. 340. 82

A título de exemplo, citamos trecho de acórdão nº 00788834, proferido no Agravo de Instrumento nº

394.307-5, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, Relator Ministro Corrêa Vianna, publicado em 15/03/2005,

ao confirmar a legitimidade da recusa da Fazenda Estadual em aceitar nomeação à penhora de créditos

decorrentes de precatórios, com base no art. 11 da Lei 6.830/80, apesar do disposto no art. 78 do ADCT, com

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36

interpretações que cingem-se à literalidade do texto, desconsiderando a visão sistêmica do

direito.

Portanto, os fundamentos filosóficos adotados nessa pesquisa são os

seguintes:

(i) A realidade é constituída pela linguagem;

(ii) Inexiste uma finalidade única da linguagem, dentre elas há a função que prescreve

comportamentos intersubjetivos e que constitui o jogo de linguagem do direito;

(iii) A atividade interpretativa não se constitui como a busca pela correspondência entre

linguagem e realidade, trata-se de atribuição de sentido dependente do uso de seus

termos dentro de determinado jogo de linguagem;

(iv) O "jogo de linguagem" se pratica mediante regras; isso significa que a interpretação é

por elas condicionada;

(v) Seguir uma regra é diferente de acreditar seguir uma regra e depende do consenso

existente sobre o assunto em determinada comunidade de usuários de uma linguagem;

(vi) A comunidade de usuários da linguagem do direito posto, que confere consenso sobre

usos possíveis a seus termos é formada por todos que possuem competência legal para

interpretá-lo e aplicá-lo e que possuam treinamento técnico para fazê-lo;

(vii) A vontade não se constitui critério aferível que dirija a atividade do intérprete. Essa

constatação presente em Investigações Filosóficas rechaça a teoria tradicional que

compreende a exegese como extração da vontade da lei ou do legislador existente

previamente nos dispositivos do direito;

(viii) Para atribuir-se sentido ao direito, a interpretação sempre é necessária, o que afasta a

máxima de que na clareza da lei dispensa-se a interpretação.

A partir dos fundamentos filosóficos declinados, passamos a abordar a

interpretação do direito tributário como sistema de linguagem.

redação dada pela E.C. nº 30/00: "Com o respeito de sempre aos que entendem que essa ordem apresenta

caráter relativo, o que se verifica até no Superior Tribunal, não há como esquecer de antigo e sempre

respeitado princípio: 'in claris cessat interpretatio'."

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37

CAPÍTULO II – A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO TRIBUTÁRIO COMO

LINGUAGEM PRESCRITIVA E OS PRESSUPOSTOS CONDICIONANTES

2.1 O conceito de interpretação e de pressupostos condicionantes

A perspectiva filosófica aberta pelo giro linguístico-hermenêutico

repercutiu nas Ciências Jurídicas. O próprio direito posto é visto por doutrinadores como um

fenômeno de linguagem. Gregório Robles83

, por exemplo, afirma ser o direito um texto e,

como tal, deve ser analisado:

É suscetível das análises típicas de qualquer outro texto. Por essa razão, a teoria do

direito pode ser caracterizada como uma teoria hermenêutico-analítica, ou, para

empregar uma palavra mais simples, comunicacional. Pragmática, semântica e

sintática são as três operações possíveis do texto jurídico.

A influência do giro linguístico-hermenêutico sobressaiu-se no direito

tributário brasileiro, com as teorias desenvolvidas por Paulo de Barros Carvalho e sua escola,

que se identifica por conceber, como método que orienta sua produção científica84

, o

construtivismo lógico-semântico – também denominado hermenêutico-analítico.

Essa maneira de pensar nega à atividade interpretativa a simples

função de representar uma suposta vontade da lei ou do legislador extraída dos textos de

direito positivo ou, simplesmente, enunciados prescritivos. Reconhece que seu papel é

construtivo, na medida em que o sujeito valora os textos legislativos e os fatos, atribuindo-

lhes sentido85

, isto é, formulando normas jurídicas. A exegese do direito estará sempre

presente como um processo que culmina em sua aplicação86

.

O direito é concebido como linguagem técnica, que se utiliza do

discurso ordinário e de termos científicos, para cumprir sua função de prescrever condutas

83

ROBLES, Gregório. O direito como texto. Quatro estudos de teoria comunicacional do direito. Tradução de

Roberto Barbosa Alves. Barueri: Manole, 2005, p. 2 e 3. 84

Não estamos afirmando que o construtivismo lógico semântico seja a única vertente no direito brasileiro que

reflete a perspectiva filosófica do giro linguístico-hermenêutico. A título de exemplo, podemos citar autores

como Eros Roberto Grau, Heleno Taveiro Tôrres, Lênio Luiz Streck, Luiz Alberto Warat, João Maurício

Adeodato e Torquato da Silva Castro Junior. 85

Verifica-se, do conceito de interpretação presente no construtivismo lógico-semântico, que essa teoria se

afasta da ideia de verdade como a correspondência do enunciado com a realidade. A verdade é vista como

compatibilidade entre enunciados. 86

Enfatizamos que o termo "interpretação", como toda e qualquer palavra, é vago e ambíguo. Identificamos ao

menos dois sentidos possíveis: (i) como processo que atribui significação aos textos; e (ii) como produto que

se obtém ao final desse processo.

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intersubjetivas. Em termos analíticos, a construção de sentido dos enunciados prescritivos,

com o auxílio da Semiótica87

, pode ser decomposta em quatro planos possíveis de se

percorrer88

e que justificam a ideia de equiparar o ato de interpretar a "atribuir valores aos

símbolos, isto é, adjudicar-lhes significações e, por meio dessas, referências a objetos."89

Os planos que decompõem o percurso gerador de sentido são

designados pelo construtivismo lógico-semântico como S1, S2, S3 e S4. O S1 é o da

literalidade textual ou suporte físico das significações jurídicas e equivale ao texto em sentido

estrito, vale dizer, aos enunciados que conformam o direito posto. É a partir desse dado

objetivo que o intérprete começa a construir o sentido normativo. No S2, observa-se a

atribuição de conteúdo aos enunciados prescritivos. O sujeito confere significação às palavras,

compondo frases que em momento posterior serão articuladas como juízos hipotéticos. Nesse

patamar o intérprete não se restringe ao texto correspondente ao S1, podendo fazer incursões

por outros enunciados do sistema e, ainda, dialogar com teorias científicas do direito e de

outras disciplinas. Momento seguinte, já no S3, o intérprete organiza os conteúdos que

atribuiu anteriormente em um juízo hipotético-normativo, composto de proposição

antecedente que implica, necessariamente, uma outra, denominada de consequente. Na

primeira, teremos um comportamento certificado em linguagem jurídica e, na segunda, a

determinação de um dever que vincula sujeitos de direito. Por fim, o intérprete compatibiliza

esse juízo com o sistema normativo, averiguando as relações de subordinação e coordenação.

É nesse patamar, S4, que o percurso se completa e a norma jurídica está pronta para sua

aplicação.

Esse processo seletivo de enunciados e atribuição de sentido com vistas à

construção normativa não pode ser compreendido somente do ponto de vista lógico90

. Se assim o

fosse, toda e qualquer interpretação estaria correta. O legislador ordinário que equiparou o

conceito de faturamento ao de receita bruta, conforme julgado anteriormente analisado, não

poderia sofrer qualquer censura e inexistiria fundamento para questionar seu erro.

87

Utiliza-se o termo "Semiótica" na acepção de "ciência dos signos que estuda os fenômenos de

representação", conforme definido por Clarice von Oertzen Araújo (Fato e Evento Tributário – uma análise

semiótica. In: SANTI, Eurico Marcos Diniz de (Coord.). Curso de Especialização de Direito Tributário:

estudos analíticos em homenagem a Paulo de Barros Carvalho: Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 335).

Observamos que "signo" é a unidade mínima de representação e relacionam objetos a significados. Aplicada

ao direito, permite-nos relacionar significações a condutas. 88

Conforme Paulo de Barros Carvalho (Direito Tributário. Fundamentos jurídicos da incidência. 5. ed. rev. e

ampl. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 67-84). 89

Ibid., p. 66. 90

Ressaltamos que a semiótica é uma lógica dos signos, conforme Luís Alberto Warat (O direito e sua

linguagem. 2. versão. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1995, p. 13).

Page 41: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

39

O intérprete, ao movimentar os signos jurídicos, atribui-lhes sentido e

os valora, escolhendo um dentre os significados possíveis. Por isso, a liberdade de criação é

relativa, conforme leciona Hans Kelsen91

:

Assim como da Constituição, através da interpretação, não podemos extrair as

únicas leis corretas, tampouco podemos, a partir da lei, por interpretação, obter as

únicas sentenças corretas. De certo que existe uma diferença entre esses dois casos,

mas é uma diferença somente quantitativa, não qualitativa, e constitui apenas em que

a vinculação do legislador sob o aspecto material é uma vinculação muito mais

reduzida do que a vinculação do juiz, em que aquele é, relativamente, muito mais

livre na criação do Direito do que este. Mas também este último é um criador do

direito e também ele é, nesta função, relativamente livre. Justamente por isso, a

obtenção da norma individual no processo de aplicação da lei é, na medida em que

nesse processo seja preenchido a moldura da norma geral, uma função voluntária.

O fator condicionante dessa relatividade e que justifica a correção ou

incorreção de sentido normativo é o emprego da linguagem efetuado pela comunidade

jurídica, que forma o sistema de referência do intérprete92

. Existe, por óbvio, a subjetividade

conformada pela experiência individual. Porém, o critério de correção é o conjunto de regras

de uso da linguagem no direito posto, de acordo como concebidas por seus usuários que, de

alguma forma, dominam sua técnica.

O uso nesse processo não abstrai o tempo e o espaço, tanto que os

sentidos tendem a se modificar. Tathiane dos Santos Piscitelli, a partir de estudos efetuados

sobre a Hermenêutica Filosófica de Hans-Georg Gadamer93

, conclui que

A compreensão dos textos jurídicos não se encontra apartada da história. O

intérprete do direito positivo, ainda que desconheça tal dado, está, inegavelmente,

imerso na história e figura-se como um ser histórico, que interpreta textos de direito

positivo de acordo com os valores vigentes na sociedade em dado momento

histórico.

A ideia de "horizonte histórico" e "cultura" complementam-se. A

palavra "cultura" é considerada como uma das mais complexas94

de se definir. Sua raiz latina

é colere, que pode significar cultivar, adorar, habitar e proteger, entre outras coisas. A ideia

básica é que o vocábulo designa o oposto de "natureza", implicando em práticas que a

91

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. 7. ed. São Paulo: Martins

Fontes, 2006, p. 393. (destaque nosso). 92

Lembramo-nos das lições de Leonidas Hegenberg: "Ao nascer, somos 'atirados' em um mundo. Diante de nós

uma 'circunstância' cheia de coisas, a que, aos poucos, nos ajustamos. Para que o ajuste não seja apenas

'físico', mas também intelectual, contamos com as interpretações que dela fizeram aqueles que nos

antecederam." (HEGENBERG, Leonidas. Saber de e saber que: alicerces da racionalidade. Petrópolis/RJ:

Vozes, 2001, p. 19). 93

Op. cit., p. 65. 94

EAGLETON, Terry. A idéia de cultura. Tradução de Sandra Castello Branco. São Paulo: Editora UNESP,

2005, p. 9. Segundo o autor, é a terceira palavra mais difícil de definir na língua inglesa.

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alteram. Compreendida como toda transformação realizada pelo homem em seu entorno, com

vistas a implantar valores95

, dá-se num processo histórico. A assertiva pode ser confirmada

nas palavras de Miguel Reale96

, que a compreende como "conjunto de bens que a espécie

humana vem historicamente acumulando para a realização de seus fins específicos."

De forma semelhante, ao destacá-la como processo histórico, Maria

Luísa Portocarrero da Silva97

afirma ser a cultura "A sucessão histórico-efeitual das

configurações e dos testemunhos que o homem vai dando da sua dignidade, ao longo da

história".

Por esse prisma, o direito é um bem produzido pela cultura porque sua

finalidade é influir no meio social, ao prescrever condutas destinadas a realizar valores que

variam de acordo com o contexto histórico-cultural. Constitui-se como forma particular de

cultura, a cultura jurídica, que se produz com o uso de linguagem própria e regras

específicas, pois, com base em Wittgenstein, lembramos que o direito é uma forma de vida ou

"jogo de linguagem".

Esse aspecto integra o conceito de interpretação adotado nesse

trabalho, ao inserir o ato de adjudicar sentido aos símbolos com a finalidade de prescrever

condutas, no contexto histórico-cultural em que se desenvolve a atividade interpretativa do

direito98

.

Observe-se que não é proposto, em momento algum, o desprezo ao

texto em sentido estrito, uma espécie de decisionismo, segundo o qual o intérprete tudo pode.

Os enunciados são um objeto cultural utilizado para comunicar a prescrição jurídica. O

motivo de o constituinte escolher, por exemplo, a palavra "serviço", ao invés de

"comunicação", para delimitar a competência tributária concedida aos municípios99

é porque

esse símbolo refere-se, naquele momento histórico, a determinadas condutas. Por essa razão,

95

Conforme noção assente no construtivismo lógico-semântico, a exemplo do exposto por Paulo de Barros

Carvalho em Direito Tributário, Linguagem e Método (2008, p. 174-176). 96

REALE, Miguel. Cinco temas do culturalismo. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 08. 97

SILVA, Maria Luísa Portocarrero. H.-G. Gadamer: a Europa e o destino das ciências humanas. In: REIMÃO,

Cássio (Coord.). Colóquio. H.-G. Gadamer: experiência, linguagem e interpretação. Lisboa: Universidade

Católica Editora, 2003, p. 25. 98

Parece-nos que esse conceito guarda pertinência com o método adotado para a pesquisa, na medida em que

Paulo de Barros Carvalho, ao expor sobre a interpretação do direito, afirma que adota a palavra

"hermenêutica" não como forma de estudar técnicas de interpretação, ao modo de Emilio Betti, mas na

acepção mais ampla da "hermenêutica filosófica" de Heidegger e Gadamer. (CARVALHO, 2010, p. 128). 99

Constituição Federal, art. 156, III.

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41

o intérprete parte desse texto em busca de comportamentos que o concretizem. Como bem

explica Lourival Vilanova100

:

Os símbolos101

são entidades objetivadas, são fatos-do-mundo, identificáveis,

verificáveis intersubjetivamente: representam eles as pontes de comunicação entre

os sujeitos concretos, os pontos de encontro entre os participantes da comunidade,

tal que não se concebe a comunidade sem o discurso (com seus símbolos e

significações). [...] Os participantes da comunidade do discurso entendem porque

usam símbolos que se repetem, como entidades identificáveis, aos quais vão

uniformemente unidas as mesmas significações, que apontam como flechas

identificadoras para os mesmos objetos ou situações objetivas.

Segundo João Maurício Adeodato102

, os símbolos que compõem o

texto oferecem uma direção ao intérprete: "[..] O texto limita a concretização e não permite

decidir em qualquer direção, como querem as diversas formas de decisionismo."

Conceber o direito como fenômeno de linguagem, como exposto,

alterou substancialmente o entendimento sobre a atividade hermenêutica, que é vista como

atribuição de sentido aos enunciados prescritivos. Apesar da relatividade que decorre dessa

óptica, há pressupostos condicionantes da interpretação, que permitem considerar-se correta

determinada decisão. São eles: (i) o uso da linguagem feita pela comunidade jurídica formada

pelos sujeitos que participam na sua positivação e que possuem treinamento técnico com base

na Ciência do Direito; e (ii) o contexto histórico-cultural vigente no jogo de linguagem do

direito, no momento da enunciação normativa.

Com o intuito de melhor compreender a interpretação e seus

pressupostos condicionantes, problema que motiva nossos esforços, faz-se necessário analisar

um pouco mais detalhadamente as ideias que auxiliaram na construção do conceito que

acabou de ser exposto.

100

VILANOVA, Lourival. Teorias das formas sintáticas (anotações á margem da Teoria de Husserl). In:

______. Escritos jurídicos e filosóficos. Vol. 2. São Paulo: Axis Mundi/IBET, 2003, p. 152 e 153. (destaque

do autor). 101

Os "símbolos" são espécie de signo que representam algo, no caso do direito comportamentos. Os símbolos

são associados aos objetos pela convenção. "Um símbolo (sempre na terminologia de Peirce) não possui

outra motivação que não seja histórica ou convencional: em suma, é opaco ou arbitrário." (VOLLI, Ugo.

Manual de Semiótica. Tradução de Silva Debetto C. Reis. São Paulo: Loyola, 2000, p. 44). 102

ADEODATO, João Maurício. Jurisdição constitucional à brasileira: situação e limites. In: BARRETO, Aires

Fernandino et al. Congresso do IBET, III. Interpretação e Estado de Direito. São Paulo: Noeses, 2006, p. 331.

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42

2.2 A autorreferencialidade da linguagem jurídica

O direito posto é aqui estudado e compreendido como um jogo de

linguagem específico que tem por finalidade prescrever condutas intersubjetivas. Em outras

palavras, equivale a dizer que o direito é um sistema nomoempírico prescritivo, composto,

portanto, por proposições com referência empírica, que entram em relação, formando um todo

unitário cuja finalidade é prescrever condutas103

. A sinonímia entre "jogo de linguagem" e

"sistema" se apoia nos seguintes elementos: (i) ambos são compostos por proposições

voltadas para uma finalidade; e (ii) essas proposições se relacionam de acordo com regras que

não são somente de ordem sintática, na medida em que o próprio sentido de "seguir uma

regra" está vinculado a um uso, o que implica os aspectos semântico e pragmático da

linguagem jurídica.104

A digressão traz duas consequências muito importantes para a

interpretação do direito. A primeira delas é que se trata de sistema autorreferenciado105

, cuja

linguagem não se confunde ou se identifica necessariamente com a significação adotada por

outros jogos ou sistemas.

Kelsen fundamenta a autorreferencialidade na separação que faz entre

o "ser" e o "dever-ser", conforme exposto em Teoria Pura do Direito:

Ninguém pode negar que o enunciado: tal coisa é – ou seja, o enunciado através do

qual descrevemos um ser fático – se distingue essencialmente do enunciado: algo

deve ser – com o qual descrevemos uma norma – e que da circunstância de algo

ser não se segue que algo deva ser, assim como da circunstância de que algo

deve ser se não segue que algo seja.106

Na mesma linha de raciocínio, Paulo de Barros Carvalho107

destaca a

autonomia do discurso jurídico prescritivo com relação às demais linguagens:

O discurso normativo, para reger os comportamentos entre pessoas, não pode ater-

se, pura e simplesmente, à linguagem mediante a qual aquelas condutas se efetivam

no meio social, sob pena de ficar tolhido pelos mesmos fatores que o condicionam.

Por isso mesmo, permite-se-lhe tanto confirmar proposições factuais como alterá-las

103

Conforme Marcelo Neves (Teoria da inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 2-8). 104

Paulo de Barros Carvalho critica a visão que reconhece o sistema como formado exclusivamente por

linguagem lógica (op. cit., 2010, p. 170). 105

Observamos que a autorreferencialidade do sistema jurídico não é o mesmo que seu isolamento. Partimos da

concepção de que se trata de um sistema que dialoga com todos os demais, porém sua linguagem se reproduz

conforme regras próprias. 106

Op. cit., 2006, p. 6. (destaques nossos). 107

Op. cit., 2008, p. 163.

Page 45: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

43

pela infirmação, total ou parcialmente, ao talante do legislador, com o que se

constrói o plano da facticidade jurídica.

Portanto, o direito é uma maneira específica de conviver, de

comunicar-se, valendo-se de linguagem apropriada, com características ímpares que a

distinguem de outros usos. Ao intérprete não é aconselhável perder essa perspectiva ou poderá

produzir sentido dissociado dessa específica forma de vida, como reconhecido no julgado que

nos auxiliará na exposição108

e que passamos a analisar.

No caso concreto, esclarecimentos prestados pelo Ministério do Meio

Ambiente afirmavam inexistir pesca de salmão do Atlântico e do Pacífico no mar territorial

brasileiro, e, portanto, não haveria similar nacional. Fundamentada nesse dado científico, a

Fazenda Pública propugnava, com base no inciso II, do artigo 111 do Código Tributário

Nacional, a exigibilidade do ICMS sobre a importação do referido pescado, por entender não

incidir a norma isentiva acordada entre os países signatários do GATT109

, que prevê o mesmo

tratamento tributário aos produtos importados, desde que exista similar nacional. De acordo

com seu raciocínio, se o salmão não possui similar nacional, não poderia receber o mesmo

tratamento do pescado brasileiro, isento de ICMS.

Ao decidir a lide, os julgadores afastaram a aplicabilidade de

interpretação literal como método hermenêutico110

e formaram consenso em torno da

existência de similaridade entre o salmão e os pescados nacionais, enquanto espécie desse

gênero, tornando assim possível o reconhecimento da incidência da norma isentiva do ICMS

em sua importação. Citou o acórdão a Súmula nº 71 do Superior Tribunal de Justiça, que já

havia reconhecido isenção do ICMS ao bacalhau importado dos países signatários do GATT.

Conforme informação do Ministério do Meio Ambiente, o salmão não

possui similar nacional. Trata-se de espécie que não é endêmica no mar territorial brasileiro,

constituindo a assertiva de inexistência de similaridade uma afirmação verdadeira para os

estudiosos da fauna marinha; todavia, não para a comunidade jurídica. Para o Poder

Judiciário, o salmão e o bacalhau são considerados similares aos pescados nacionais para fins

de isenção. Isto é, de acordo com o uso do termo no ordenamento jurídico, a similaridade

108

TJSP. Apelação Cível nº 127.456.5/5. 109

Sigla utilizada na língua inglesa para o que em português é conhecido como "Acordo geral sobre tarifas e

comércio". 110

Destacamos o trecho do voto do relator do acórdão, Desembargador Sérgio Pitombo: "Observe-se, de outra

sorte, que a denominada 'interpretação literal' inexiste, como método hermenêutico. Se a ideia era invocar a

interpretação gramatical, não há cabência, visto que não surge nenhum problema sintático".

Page 46: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

44

ganha outra perspectiva que não a biológica, mas, sim, a jurídica, o que demonstra a

autorreferencialidade de sua linguagem.

A segunda consequência de se considerar o direito como um sistema

de linguagem prescritiva de condutas intersubjetivas é sentida na forma de compreendê-lo. Na

medida em que se constitui como um texto, seu entendimento pode ser potencializado com o

auxílio de ciências da linguagem. Tácio Lacerda Gama111

, ao destacar a existência de campo

comum de interesses entre as ciências jurídicas e as da linguagem, observa que "As ciências

jurídicas voltam-se, pois, para o mesmo objeto que as ciências da linguagem: o texto. Noutras

palavras, há identidade de objetos entre a ciência jurídica e outras ciências que têm no texto

seu objeto de estudos."

Dessa forma, parece-nos apropriada a análise dos planos sintático,

semântico e pragmático da linguagem jurídica, conforme discernido pela Semiótica,

destacando seu papel na exegese do direito tributário e sua relação com os pressupostos que a

condicionam.

2.3 Os níveis sintático, semântico e pragmático da linguagem jurídica e seu papel na

interpretação do direito tributário.

No nível sintático, estão compreendidas as seguintes relações formais

existentes entre as unidades normativas: (i) enquanto conjunto ou sistema; (ii) no tocante à

sua composição interna, isto é, entre antecedente e consequente normativo; e (iii) entre norma

primária, que estipula o dever, e norma secundária, sancionadora da ilicitude112

.

O aspecto sintático do sistema de direito positivo lhe confere a

estrutura e a forma de relacionamento entre as normas jurídicas. Há regras de formação e

derivação da linguagem, reconhecidas pela comunidade jurídica, que devem, necessariamente,

ser observadas pelo intérprete. Espera-se que os comandos que forem construídos em

dissonância com tais elementos sofram as consequências previstas no ordenamento.

111

GAMA, Tácio Lacerda. Competência Tributária: fundamentos para uma teoria da nulidade. São Paulo:

Noeses, 2009, p. 04. 112

Conforme Paulo de Barros Carvalho: "É sintática a relação entre a norma da Constituição e aquela da lei

ordinária, assim como puramente sintático é o vínculo entre a regra que estipula o dever e a outra que veicula

a sanção. De ordem sintática, também, a estrutura intranormativa e, dentro dela, o laço condicional que une

antecedente (hipótese) a conseqüente." (op. cit., 2010, p. 132).

Page 47: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

45

A título de exemplo, citamos decisão do Supremo Tribunal Federal113

,

que versou sobre os prazos de decadência e prescrição previstos nos artigos 45 e 46 da Lei

8.212/91114

. Com fundamento no art. 146, "b", III, da Constituição da República, reafirmou-se

ser a disciplina reservada à Lei Complementar, no caso o CTN, declarando-se a

inconstitucionalidade dos referidos dispositivos que estabeleciam prazo maior, de dez anos.

Nesse contexto, a lei ordinária foi produzida sem a observância das regras sintáticas da

linguagem jurídica, que determinam que as normas jurídicas devam ter como fundamento de

validade115

último a Carta da República.

A importância da investigação sintática da linguagem jurídica também

pode ser observada pelo papel que possui em reduzir complexidades para a interpretação dos

textos de direito positivo. Isso porque permite ao sujeito abstrair-se do emaranhado de

enunciados normativos e organizá-lo estruturalmente, a fim de compreender os componentes

básicos da norma jurídica e suas relações com outras normas. São dessa ordem as reduções

que permitiram estabelecer a regra-matriz de incidência, instrumento de enorme utilidade para

a interpretação do direito tributário feita no interior do sistema de direito positivo, ou ainda,

para a própria doutrina, ao tomá-lo como objeto de estudos.

No nível semântico, temos as significações do direito, no qual a norma

jurídica é relacionada à conduta a ser regulada. Paulo de Barros Carvalho116

nos explica que

[…] a semântica jurídica é o campo das significações do direito. É o meio de

referência que as normas guardam com relação aos fatos e comportamentos

tipificados. Essa relação é justamente a ponte que liga a linguagem normativa à

conduta do mundo social que ela regula.

Cumpre lembrar que, de acordo com as premissas utilizadas na

pesquisa, o conteúdo semântico atribuído pelo intérprete, para ser considerado como correto

pelos participantes do jogo de linguagem do direito, está condicionado pelo uso habitual dos

113

STF, Pleno, RE 556.664, Relator Min. Gilmar Mendes, julgado em 11/06/2008. Na Ementa, está disposto:

"PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA TRIBUTÁRIAS. MATÉRIAS RESERVADAS À LEI

COMPLEMENTAR. DISCIPLINA DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL. NATUREZA

TRIBUTÁRIAS DAS CONTRIBUIÇÕES PARA A SEGURIDADE SOCIAL.

INCONSTITUCIONALIDADE DOS ARTS. 45 e 46 DA LEI 8.212/91 E DO PARÁGRAFO ÚNICO DO

ART. 5º DO DECRETO-LEI 1.569/77. RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO PROVIDO.

MODULAÇÃO DOS EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE". 114

"Art. 45. O direito da Seguridade Social apurar e constituir seus créditos extingue-se após 10 (dez) anos

contados: […] Art. 46. O direito de cobrar os créditos da Seguridade Social, constituídos na forma do artigo

anterior, prescreve em 10 (dez) anos." 115

Uma norma válida é aquela que pertence a um dado sistema jurídico. Sobre o assunto exporemos maiores

detalhes em momento posterior deste trabalho. 116

Op. cit., 2010, p. 132.

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46

termos. A semântica é, portanto, a instância que reflete a estabilização de tais usos em

determinado contexto histórico-cultural, na medida em que nos traz significados possíveis aos

textos jurídicos.

O nível pragmático da linguagem jurídica é aquele que nos permite

investigar seu uso pelos sujeitos participantes da comunidade jurídica. É nesse patamar que

podemos perceber a atualização dos textos pelo intérprete, consoante os valores presentes na

interpretação e aplicação do direito. Desconsiderar o aspecto pragmático da linguagem

significaria reconhecer que o sentido de uma mensagem deôntica existiria independente de

seu uso em determinado contexto, o que estaria em desacordo com a perspectiva aberta pela

segunda fase do pensamento de Wittgenstein e, por conseguinte, em desalinho com o giro

linguístico-hermenêutico e o construtivismo lógico-semântico.

Conforme leciona Clarice von Oertzen de Araújo117

, o nível

pragmático da linguagem é aquele que

Trata das relações significantes com os seus interpretantes, no caso, os usuários do

discurso normativo – nível dos significados deflagrados pelo uso efetivo das normas.

Compreende a instância da linguagem que traz a atualização do discurso normativo,

circunscrevendo-o ao campo da contemporaneidade e inscrevendo-o historicamente

numa dada cultura.

Portanto, para que uma linguagem permaneça viva, necessita ser

utilizada. Da mesma forma, para que o direito regule condutas, é necessário movimentar sua

linguagem, o que se faz mediante o uso pelos agentes competentes.

Muito embora o método adotado para a presente pesquisa, isto é, o

construtivismo lógico-semântico, porte em sua denominação os termos "lógico" e

"semântico", sem qualquer alusão ao aspecto pragmático da linguagem, não podemos concluir

que exista uma abstração do uso da linguagem pela comunidade jurídica como o elemento

constituidor do sentido de um termo.

Primeiramente, apontamos na nomenclatura do método o termo

"construtivismo", que, de acordo com Fabiana Del Padre Tomé118

, "É empregado para

denominar teorias que defendem a idéia de que há sempre intervenção do sujeito na formação

do objeto".

117

Op. cit., 2005, p. 340. 118

Vilém Flusser e o Constructivismo Lógico-semântico. In: HARET, Florence; CARNEIRO, Jerson (Org.).

Vilém Flusser e Juristas. São Paulo: Noeses, 2009, p. 323.

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47

O mesmo raciocínio é aplicado por Lourival Vilanova119

em suas

lições que confirmam a participação do sujeito na construção do objeto, a exemplo do trecho

citado:

O objeto não é algo já dado e definido, que o sujeito tão somente recolhe. O sujeito

comporta-se receptivamente, captando os 'data', mas informando esses dados,

imprimindo-lhes modos de síntese, modos que, ainda que fundados no material,

operam como construções de um protagonista criador.

Portanto, do ponto de vista científico, o uso da linguagem pelo sujeito

cognoscente seria fundamental para a constituição da própria ciência, na medida em que

sequer existiria o objeto sem a participação ativa de quem pretende conhecê-lo.

Transportando essa premissa do construtivismo para a interpretação

do direito positivo, ser-nos-ia lícito inferir que o sujeito (intérprete) ocupa papel central na

formação de sentido do objeto (textos do direito posto). Se, para movimentar as estruturas do

direito positivo, é necessária a atuação do ser humano que o interpreta e aplica, faz-se

imperioso reconhecer que o uso da linguagem jurídica é aspecto indissociável do plano

sintático e semântico e confere significado aos termos que a compõem. Aliás, o próprio

percurso gerador de sentido criado por Paulo de Barros Carvalho certifica esse pensamento,

pois, como se percebe, é o intérprete o responsável por selecionar os enunciados pertinentes e

construir norma compatível com o sistema.

2.4 A regra-matriz de incidência tributária

A regra-matriz de incidência tributária pode ser vista como técnica

analítica, lapidada pelo construtivismo lógico-semântico, consistente em dirigir a atenção do

interprete à estrutura formal da norma120

, o que facilita seu controle e produção no posterior

119

VILANOVA, Lourival. Notas para um ensaio sobre a Cultura. In: ______. Escritos Jurídicos e Filosóficos.

Vol. 2. São Paulo: Axis Mundi/IBET, 2003. 120

A expressão "norma jurídica" apresenta variedade semântica. Pode, por exemplo, referir-se somente à

construção de sentido feita a partir do texto ou, também, referir-se à norma jurídica em sentido estrito, que é

aquela que contém o mínimo necessário para regular uma conduta. Sua estrutura lógica corresponde à regra-

matriz de incidência. Um estudo semântico do termo "norma jurídica" foi efetuado por Paulo de Barros

Carvalho, em Direito Tributário, linguagem e método (2008, p. 139-145).

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48

ingresso aos planos semântico e pragmático da linguagem jurídica121

. Segundo Fabiana Del

Padre Tomé122

,

A análise equivale a um processo de resolução ou decomposição do complexo em

algo mais simples. Nesse contexto, analisar equivale a decompor o objeto de estudos

em uma série de elementos que facilitam a compreensão do fenômeno que se

observa. No constructivismo lógico-semântico, o objeto de análise é a linguagem, a

qual se pretende reduzir ou traduzir a uma linguagem formal e cuja lógica e

procedimentos sejam claros, rigorosos e controláveis. É o que Paulo de Barros

Carvalho fez em relação às normas jurídicas tributárias, edificando a teoria da regra-

matriz de incidência tributária.

O expediente analítico de inspiração husserliana, que permitiu a

edificação dessa preciosa ferramenta para a interpretação do direito tributário, não contradiz

nossa afirmação inicial, de que o construtivismo lógico-semântico está entre as teorias que

colhem seus fundamentos na filosofia da linguagem constituída pelo giro linguístico-

hermenêutico. A teoria normativa derivada deste método compreende a norma jurídica como

construção de sentido feita pelo intérprete, o que significa que a decomposição analítica,

efetuada num primeiro momento, será novamente recomposta, preenchendo-se os elementos

estruturais que compõem a regra-matriz de incidência tributária com conteúdos possíveis, de

acordo com os aspectos semânticos e pragmáticos da linguagem jurídica. O momento

analítico, portanto, é uma instância de controle da linguagem jurídica, no qual se afere sua

estrutura, facilitando, enormemente, a posterior composição da norma em sua integralidade.

A regra-matriz de incidência tributária é, portanto, a estrutura lógica

da norma que institui o tributo no ordenamento jurídico. No seu antecedente, encontra-se a

descrição de um evento de possível ocorrência, de maneira que os destinatários da norma

possam identificar seu sucesso no contexto social em determinado espaço e tempo. Isto

equivale a dizer que há uma hipótese de incidência formada por uma ação tipificada,

composta de verbo e complemento, que nos oferece o critério material da regra-matriz de

incidência tributária, que, por sua vez, estará limitado aos seus condicionantes de espaço e de

tempo. São respectivamente os critérios espaciais e temporais da regra em questão. Em

linguagem formalizada, a estrutura do antecedente da regra-matriz de incidência tributária

pode ser assim descrita123

: Ht ≡ Cm (v.c) . Ce . Ct.124

121

Ibid., p. 146-147. 122

Op. cit., 2009, p. 325. 123

Conforme Paulo de Barros Carvalho (2008, p. 149).

Page 51: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

49

Preenchido o antecedente da regra-matriz de incidência com os

conteúdos possíveis e desde que vertido em linguagem admitida como competente pelo

direito, instaura-se de forma automática e infalível a relação jurídica em seu consequente.

Nele está previsto o vínculo entre dois ou mais sujeitos em torno de uma conduta, no caso do

direito tributário, o pagamento de determinada quantia em dinheiro. O sujeito ativo assumirá a

condição de exigir seu cumprimento, cabendo ao sujeito passivo observá-la. Temos, então, o

critério pessoal da regra-matriz de incidência tributária. Contudo, é necessário que os sujeitos

saibam o valor exato a ser levado aos cofres públicos, o que impõe a existência de um critério

quantitativo capaz de medir o impacto da exação, que configura-se pela base de cálculo e

alíquota. A representação formal do consequente normativo seria a seguinte125

: "Cst ≡ Cp

(sa.sp) . Cq (bc. al)".126

A estrutura lógica completa da regra-matriz de incidência tributária

pode ser assim formalizada: Ht ≡ Cm (v.c) . Ce . Ct.→ Cst ≡ Cp (sa.sp). Cq (bc. al).127

Portanto, certificado em linguagem competente para o direito, o evento previsto no

antecedente, em determinado espaço de tempo e lugar, necessariamente haverá a implicação

do consequente, no qual está prevista a obrigação tributária que se estabelece entre os sujeitos.

Reiteramos que a construção da linguagem jurídica e, portanto, sua

interpretação, não se limita ao plano formal, devendo a estrutura da regra-matriz de incidência

ser saturada com conteúdos de significação que sejam conforme os usos possíveis

reconhecidos por uma dada comunidade jurídica.

A análise de recente julgado128

, que considerou possível a incidência

do ISS129

sobre a operação de leasing financeiro, pode nos auxiliar na exposição.

O antecedente da regra-matriz de incidência tributária ou estrutura

lógica da norma que institui o ISS com fundamento constitucional no art. 156, III, da

Constituição da República, tem, como critério material, o verbo "prestar", acompanhado do

124

Desformalizando, temos que: "Ht" é a hipótese tributária; "≡" é o símbolo lógico do bicondicional; "Cm" é o

critério material; "v" é o verbo; "c" é o complemento; "Ce" é o critério espacial; "Ct" é o critério temporal; "."

o símbolo do conjuntor. 125

Conforme Paulo de Barros Carvalho (Ibid., p. 150). 126

"Cst" simboliza o consequente tributário, "≡" o bicondicional lógico, "Cp" é o critério pessoal, composto por

"sa" e "sp", respectivamente sujeitos ativo e passivo, "Cq" é o critério quantitativo composto pela base de

cálculo e alíquota e, finalmente, o conjuntor lógico ".". 127

O símbolo "→" quer significar a constante lógica condicional que equivale ao "se … então", da linguagem

desformalizada. 128

STF, Pleno, RE nº 592.905, Relator Min. Eros Grau. Julgado em 02/12/2009. 129

Imposto sobre serviços.

Page 52: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

50

complemento "serviços de qualquer natureza", não englobando os serviços de transporte

interestadual e intermunicipal e de comunicação.

O termo "serviço" é compreendido por boa parte da doutrina como

uma obrigação de fazer algo anteriormente inexistente, consubstanciando um esforço humano

prestado a terceiros em caráter oneroso.

Aires Fernandino Barreto130

, ao lecionar sobre o critério material ou

hipótese de incidência do ISS, afirma ser esse "A conduta humana (prestação de serviço)

consistente em desenvolver um esforço visando a adimplir uma obrigação de fazer."

Paulo de Barros Carvalho assim se posiciona131

:

Só será possível a incidência do ISS se houver um negócio jurídico mediante o qual

uma das partes se obrigue a praticar certa atividade, de natureza física ou intelectual

recebendo, em troca, remuneração. Por outro ângulo, a incidência do ISS pressupõe

atuação decorrente do dever de fazer algo até então inexistente, não sendo exigível

quando se tratar de obrigação que imponha a mera entrega, permanente ou

temporária, de alguma coisa que já existe.

Humberto Ávila132

compreende que "A CF/88, ao utilizar o termo

'serviços' na regra de competência tributária municipal, incorporou o conceito

infraconstitucional pré-constitucional de obrigação de fazer, cujo núcleo semântico é o

esforço humano empreendido em benefício de outrem."

Marçal Justen Filho133

, ao tratar do critério material do ISS afirma ser:

"A prestação de utilidade (material ou não) de qualquer natureza, efetuada sob o regime de

Direito privado mas não sob o regime trabalhista, qualificável juridicamente como a execução

de obrigação de fazer, decorrente de um contrato unilateral."

Portanto, o critério material da regra-matriz de incidência que institui

o ISS somente poderá ser preenchido corretamente, se trouxer como conteúdo uma prestação

de serviços efetuada a terceiros, em caráter oneroso. No caso em análise, questionava-se o

disposto na Lei Complementar 116/03, item 15.09, que incluiu o leasing financeiro como

130

AIRES, F. Barreto. ISS na Constituição e na lei. São Paulo: Dialética, 2003, p. 423. 131

CARVALHO, Paulo de Barros. Não-incidência do ISS sobre atividades de franquia (franchising). RET,

56/65, julho-agosto de 2007. Conforme Leandro Paulsen (Direito Tributário. Constituição e Código

Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. 12. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora;

ESMAFE, 2010, p. 390). 132

ÁVILA, Humberto. Leasing Financeiro: análise da incidência. Revista Dialética de Direito Tributário, n.

122. São Paulo, p. 120, nov. 2005. Conforme PAULSEN (2010, p. 390). 133

JUSTEN FILHO, Marçal. O ISS, a Constituição de 1988 e o Decreto-lei nº 406. Revista Dialética de Direito

Tributário, n. 3, São Paulo, p. 66, dez. 1995.

Page 53: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

51

prestação de serviços, por ter ferido a materialidade possível da exação, conforme

estabelecido pela Constituição da República, art. 156, III. Vale dizer, propugnava-se que

leasing financeiro não constitui prestação de serviços.

O contrato de leasing financeiro foi conceituado pelo Min. Eros Grau,

relator do julgado, como a modalidade na qual134

A arrendadora adquire bens de um fabricante ou fornecedor e entrega seu uso e gozo

ao arrendatário, mediante o pagamento de uma contraprestação periódica, ao final da

locação abrindo-se a este a possibilidade de devolver o bem à arrendadora, renovar a

locação ou adquiri-lo pelo preço residual combinado no contrato. No leasing

financeiro prepondera o caráter de financiamento e nele a arrendadora, que

desempenha a função de locadora, surge como intermediário entre o fornecedor e o

arrendatário. [...] Financiamento é serviço, sobre o qual o ISS pode incidir.

A atividade desenvolvida no contrato de leasing financeiro,

conforme compreendida no direito privado, e de forma contrária ao entendimento do Min.

Eros Grau, não pode ser tida como obrigação de fazer e, portanto, prestação de serviço.

Trata-se de arrendamento mercantil, espécie do gênero locação135

, configurando-se numa

obrigação de dar. O arrendatário usufrui do bem que lhe é entregue por sua proprietária, a

arrendante, que, por sua vez, lhe transfere o direito de uso mediante determinado

pagamento. Ao final do contrato, poderá ser exercida a opção de compra.

A Constituição Federal não estipulou definição de serviços em seu

texto, portanto, conforme art. 110 do CTN, o intérprete estará vinculado ao uso do termo no

direito privado, que considera a atividade um arrendamento, espécie do gênero locação.

Nesse sentido, o voto divergente do Min. Marco Aurélio:

A partir desse enfoque é que a doutrina em peso quando versa serviço, sinaliza a

necessidade de existir não uma obrigação de dar, como ocorre no caso da locação,

mas uma obrigação de fazer, um esforço desenvolvido no tocante ao destinatário

dessa mesma obrigação de fazer. E tem-se a lição de Geraldo Ataliba, de Marçal

Justen Filho, de Hugo Brito, de Ives Gandra, de Carrazza no sentido de que não há,

no arrendamento – e o leasing é arrendamento, o leasing não deixa de ser espécie de

locação –, a preponderância da prestação de serviço.

134

RE 592.905, p. 5-6. 135

O STF já havia considerado, anteriormente, que o arrendamento mercantil não se constitui como um serviço,

conforme RE 116.121-3, julgado em 11/10/2000. Em sua Ementa está disposto: "IMPOSTO SOBRE

SERVIÇOS – CONTRATO DE LOCAÇÃO. A terminologia constitucional do Imposto sobre Serviços

revela o objeto da tributação. Conflita com a Lei Maior dispositivo que imponha o tributo considerado a

contrato de locação de bem móvel. Em Direito, os institutos, as expressões e os vocábulos têm sentido

próprio, descabendo confundir a locação de serviços com a de móveis, práticas diversas regidas pelo Código

Civil, cujas definições são de observância inafastável – artigo 110 do Código Tributário Nacional."

Page 54: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

52

Observe-se, ainda, que o constituinte, ao distribuir as competências

legiferantes aos entes políticos em matéria tributária, foi de extrema minúcia. Nesse

contexto, a atividade de financiamento foi designada, pelo constituinte, no art. 153, V,

como possível critério material da regra-matriz de tributo que incida sobre operações de

crédito, instituído, posteriormente, pela Lei 8.894/94 e conhecido como IOF, sendo

competência exclusiva da União. Portanto, o julgado, nesse aspecto, parece-nos, inclusive,

ofender a própria Constituição Federal.

Na decisão que comentamos, o critério material da regra-matriz

assume significação diversa das expectativas de boa parte da comunidade jurídica,

treinada por técnicas advindas da Ciência do Direito. Do ponto de vista sintático,

desconsidera a regra do art. 110 do CTN e ingressa no plano semântico da linguagem

jurídica, atribuindo significação dissonante com o uso do termo "leasing".

2.5 Fato e evento: a importância da distinção para construir-se o sentido jurídico

O construtivismo lógico-semântico, ao trabalhar com o conceito de

funções predominantes da linguagem, coloca o direito na posição de um sistema ou jogo de

linguagem específico.

Tomando o sistema jurídico, ou jogo de linguagem do direito, como

referência, teremos no evento algo que ocorre fora do território do direito, vale dizer, que não

está constituído em linguagem jurídica. Assim, pode ser entendido o fato social que não

ingressou no ordenamento, já que carece da tradução em linguagem jurídica136

.

O fato jurídico, por sua vez, constituir-se-ia do evento vertido em

linguagem, da forma como admitido pelo direito, o que pressupõe a necessidade de observar

as regras que o sistema determina para sua produção, como a necessidade de provas lícitas

dentro de um processo judicial ou administrativo, ou ainda, da ação de sujeitos competentes

conforme procedimento e matéria determinados em lei. No magistério de Fabiana Del Padre

Tomé137

,

[...] Qualquer que seja o sistema que se examine, nele ingressam apenas os

enunciados compostos pela forma lingüística própria daquele sistema. Relatado o

136

Conforme Paulo de Barros Carvalho (2007, p. 145-151). 137

TOMÉ, Fabiana Del Padre. A Prova no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2005, p. 32-33.

Page 55: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

53

acontecimento em linguagem social, teremos fato social; este, vertido em linguagem

jurídica, dará nascimento ao fato jurídico. Os fatos da chamada realidade social,

enquanto não constituídos mediante linguagem jurídica própria, qualificam-se como

eventos em relação ao mundo do direito.

Mais adiante, prossegue a autora138

, versando sobre a finalidade da

prova:

A tarefa daquele que produz a prova jurídica é semelhante à do historiador: ambos

se propõem a estabelecer fatos representativos de acontecimentos pretéritos, por

meio de rastros, vestígios ou sinais deixados por referidos eventos e utilizando-se de

processo lógico-presuntivo que permitam a constituição ou desconstituição de

determinado fato. Esse é o fim da prova: a fixação dos fatos no mundo jurídico.

A diferença entre fato e evento é um poderoso guia para o

intérprete na medida em que o auxilia a estabelecer critérios de pertinencialidade e

identificação do dado jurídico, ao ponto de Paulo de Barros Carvalho139

lecionar que

Em nenhum outro domínio do universo jurídico, a dualidade fato/evento manifesta

sua presença com tanta nitidez e vigor. Ou a mutação ocorrida na vida real é

contada, fielmente, de acordo com os meios de prova admitidos pelo sistema de

direito positivo, consubstanciando as categorias dos fatos jurídicos (lícito ou ilícitos,

pouco importa) e da eficácia que deles se irradia; ou nada terá acontecido de

relevante para o direito, em termos de propagação dos efeitos disciplinadores da

conduta. Transmitido de maneira mais direta: fato jurídico requer linguagem

competente, isto é, linguagem das provas, sem o que serão meros eventos, a despeito

do interesse que possam suscitar no contexto da instável e turbulência vida social.

Vejamos um caso concreto140

. A Fazenda Nacional não obteve

sucesso em comprovar que os valores aferidos na conta corrente do contribuinte teriam

origem diversa de suposta venda de imóvel; sendo assim, foi anulado o auto de infração

que questionava as informações prestadas em sua declaração de renda, afirmando haver

ocorrido a omissão de receitas. Se os cheques citados na Ementa realmente retratam o

pagamento da alegada venda de imóvel, do ponto de vista dos fatos sociais, não é possível

saber-se ao certo. Somente temos acesso às interpretações dadas a um evento. Porém, uma

138

Ibid., p. 177. 139

Prefácio do livro de Fabiana Del Padre Tomé, A prova no direito tributário, p. XVI e XVII. 140

TRF 1ª Região, 8ª T., Apelação nº 2001.33.00.010339-8, Relatora a Desembargadora Federal Maria do

Carmo Cardoso. "TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. VENDA DE IMÓVEL NÃO DECLARADA.

VALORES DEPOSITADOS EM CONTA CORRENTE. PRESUNÇÃO DE QUE OS VALORES

RECEBIDOS DECORREM DA VENDA. ANULAÇÃO DE AUTO DE INFRAÇÃO.

DESCUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO ACESSÓRIA. 1. Demonstrando a parte autora que procedeu à

alienação de imóvel rural de sua propriedade, na mesma época em que foram depositados vários cheques em

sua conta corrente, e não fazendo a União prova de que os referidos valores não decorrem da venda em

referência, há que ser anulado o lançamento objeto do auto de infração, que entendeu pela existência da

omissão de rendimentos. 2. O inadimplemento da obrigação acessória não desonera o Fisco de comprovar os

fatos geradores da obrigação tributária. 3. Apelação e remessa oficial improvidas."

Page 56: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

54

coisa é certa: para o direito não houve omissão de rendimentos. Portanto, suposto fato

social não logrou êxito em tornar-se um fato jurídico, havendo sucumbido a Fazenda,

justamente por não atentar-se à diferença entre fato e evento. O fato jurídico deve ser

provado para que alcance essa posição. O fato social, tido como evento, está fora do jogo

de linguagem do direito.

2.6 O culturalismo, cultura jurídica e a interpretação do direito

Como dito em capítulo próprio, a interpretação do direito tributário

sofre condicionantes de ordem histórico-cultural. O construtivismo lógico-semântico, ao

reconhecer esse fator que direciona a atividade de construção de sentido, toma como

referência o culturalismo.

Essa teoria teve origem na Escola de Baden141

, cuja ideia de

conhecimento veiculada na produção filosófica de seus expoentes apoiava-se também na

experiência, em oposição aos seus contemporâneos, os pensadores alemães de Marburgo,

segundo os quais, todo o elemento de sensibilidade deveria ser afastado na formação dos

conceitos lógicos, reduzindo o conhecimento a um puro logicismo142

. O culturalismo foi

responsável por dirigir o pensamento filosófico aos conceitos de valor e cultura.

No pensamento culturalista, há variações que seguem visões distintas

de seus principais autores sobre o conceito de cultura e de valor. Com efeito, não seria esse o

escopo de nossa pesquisa. No entanto, podemos afirmar que há um consenso em torno da

primazia da cultura sobre a pessoa humana, ressaltando-se no direito seu caráter

transpersonalista143

, isto é, intersubjetivo. Relacionando essa forma de pensar à busca de

pressupostos para a interpretação do direito tributário, revela-se a existência de uma cultura

jurídica compartilhada pelos participantes de determinado sistema de direito positivo, que se

sobrepõe às preferências individuais, o que importa na ideia de transpersonalismo e consenso.

Afinal, se o direito é transpessoal, para que determinada interpretação seja compreendida

141

Denomina-se "Escola de Baden", devido ao fato de que os primeiros expoentes do pensamento culturalista

terem ensinado em Heidelberg, cidade da região de Baden. (PAIM, Antônio. Problemática do Culturalismo.

Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995, p. 17). 142

Conforme REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3. ed. São Paulo: Editoria Revista dos Tribunais, p.

173 et seq., 1998. 143

Conforme Miguel Reale (ibid., p. 199).

Page 57: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

55

como correta, pressupõe-se como aceitável pelos membros da comunidade jurídica em que é

posta.

Portanto, a noção de cultura ultrapassa o individual e requer o

conceito de comunidade, na qual ela se desenvolve, como bem destaca Johannes Hessen144

:

O homem não é apenas indivíduo; é ao mesmo tempo um sêr social, um ens sociale.

Embora possua um sêr independente, com autonomia ôntica, não deixa de ser, por

outro lado, parte dum todo, como que membro dum organismo que é a comunidade

humana. Por sua vez, esta comunidade é o terreno onde cresce e se desenvolve a

Cultura humana.

Segundo os pensadores de Baden, há o empírico, o dado natural, que

está sujeito a uma causalidade natural. A este conjunto de elementos podemos denominar

"mundo do ser". Paralelamente a esta dimensão, existiria o "mundo do dever ser", relacionado

aos conceitos de ideal e de finalidade, formado pelos valores humanos historicamente dados.

O elo entre esses dois mundos residiria exatamente na cultura, um terceiro reino, que

representaria toda a produção humana tendente a modificar a natureza com o objetivo de

concretizar tais valores. Conforme Reale145

,

A cultura é, pois, o complexo rico e multifacetado reino da criação humana, de tudo

aquilo que o homem consegue arrancar à fria seriação do natural e do mecânico,

animando as coisas com um sentido e um significado, e realizando através da

História a missão de dar valor aos fatos e de humanizar, por assim dizer, a Natureza.

Apenas acrescentaríamos que os três reinos (ser, dever-ser e cultura)

são criados pelo sujeito a partir do uso da linguagem. O próprio ser, também denominado de

dado bruto ou de coisa-em-si, é construção humana feita pela linguagem, um dado cultural

por excelência, na medida em que sua compreensão é produto da intelecção. O objeto para o

qual se dirige a consciência humana, que o seleciona do emaranhado no qual está imerso o

sujeito, representa uma parcialidade, correspondendo ao recorte linguístico que o configura. O

conhecimento sobre esses reinos somente fará parte da cultura humana, se transformar-se em

dado objetivo, isto é, tornar-se intersubjetivo, for objeto de comunicação.

Note-se que os valores promovidos pela cultura não são absolutos,

independentes do sujeito, de cunho essencialista, imutáveis no tempo e no espaço, a exemplo

da compreensão exposta no pensamento de Hessen146

. Trata-se de valiosidade talhada no

144

HESSEN, Johannes. Filosofia dos Valores. Tradução de L. Cabral de Moncada. Coleção Stvdivm. Temas

filosóficos, jurídicos e sociais. São Paulo: Saraiva & Cia, 1946, p. 244. (destaques do autor). 145

Op. cit., 1998, p. 179. 146

Op. cit., 1946, p. 98 e 99.

Page 58: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

56

processo histórico, no bojo de uma comunidade, que, muito embora possa ser estável, tende a

se modificar com as alterações ocorridas na sociedade ao longo do tempo, tornando os

possíveis sentidos atribuídos a um objeto – e, portanto, a interpretação que se dá aos símbolos,

inclusive os jurídicos –, sob essa perspectiva, inesgotável. Tais mudanças explicam

entendimentos variados sobre o mesmo assunto, valorações distintas que promove o intérprete

nos limites da cultura na qual está inserido e justificam as transformações em nossa

jurisprudência147

. Não queremos afirmar que em uma específica cultura somente uma

interpretação seria correta, variando o sentido atribuído apenas com as transformações

históricas. Dentro de uma dada cultura, de um mesmo período histórico, diversas

interpretações sobre um único tema são tidas como lícitas, como se fossem variações de um

tema musical. A ideia de transpessoalidade da cultura, a realização dos valores e a

interpretação que se dá ao mundo sofrem outras influências, que são do próprio indivíduo e

que justificam a diversidade de entendimentos acerca de um assunto específico.

Nas palavras de Raimundo Bezerra Falcão148

:

Os objetos são submetidos a 'um processo de revivescência, modificando-se à luz do

espírito de cada ser humano, ou de cada novo ser humano que, na condição de

sujeito cognoscente, mira-os, interpretando-os. Tal ser humano, contudo, não é

somente espírito subjetivo. É espírito objetivo também, em face da sua historicidade,

em função de sua culturalidade. E, ao revivescerem, os objetos se atualizam e, desse

modo, vão mantendo sua significação para o presente, sem se fecharem para o

passado, assegurada esta abertura para o pretérito pela tradição cultural e mantida a

utilidade significativa para o presente em razão dos quadros sócio-culturais do

momento. Atualização, pois, sem descontrole. E, estabilidade, em decorrência, sem

ranços imutáveis. É a cultura fertilizando a inesgotabilidade de sentidos.

Partindo de entendimento lastreado na visão do direito como objeto

cultural, afirma Paulo de Barros Carvalho149

a existência de condicionantes que dirigem a

interpretação, na medida em que a inesgotabilidade, advinda da relatividade das construções

de sentido, e a intertextualidade, procedente de diálogos com outros jogos de linguagem,

comportam limites:

Os predicados da inesgotabilidade e da intertextualidade não significam ausência de

limites para a tarefa interpretativa. A interpretação toma por base o texto: nele tem

início, por ele se conduz e, até o intercâmbio com outros discursos, instaura-se a

partir dele. Ora, o texto de que falamos é o jurídico-positivo e o ingresso no plano de

seu conteúdo tem de levar em conta as diretrizes do sistema.

147

Vide a descriminalização do adultério e o imposto do selo. 148

FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 46. 149

Op. cit., 2008, p. 194.

Page 59: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

57

As diretrizes do sistema, de que fala o autor, são aquelas fornecidas

pela cultura jurídica, que pretende implantar valores com a positivação de normas, em dado

espaço e momento histórico.

O culturalismo de que falamos possui forte viés construtivista. No

centro do universo, situa-se o ser humano, que edifica o mundo a partir de um a priori

cultural formado e transmitido pela linguagem no transcorrer de um processo histórico e

carregado de valores. Com isso, não se quer adotar posição subjetivista e gnoseológica150

, que

desconsidera o objeto no processo de elaboração do conhecimento, nem tampouco, privilegiar

o indivíduo em detrimento da coletividade de seres humanos conviventes no processo de

significação. O que se quer afirmar é tão-somente que o mundo não seria algo pronto e

acabado, mas fruto de construção humana, feita em linguagem, que busca a objetivação de

valores, sendo a cultura, justamente a "expressão e o resultado de todo conhecimento

humano."151

É o que podemos observar nas lições de Lourival Vilanova152

:

Ingressando no domínio das formas sociais, o sujeito, de certo modo, objetiva-se

(sem prejuízo de sua subjetividade, que cresce em profundidade e extensão, com a

multiplicação dos círculos sociais em que participa): adota 'maneiras de pensar,

sentir e querer' que preexistem e sobrevivem à sua existência individual posta e

imposta pelo contorno social, utiliza um aceno de experiência que já encontra,

concebe e manipula os objetos por intermédio de quadros de conhecimento e

valoração de que não foi autor, insere-se dentro de formações coletivas sem decisão

própria (família, classe, nação) e o social inteiro como que se condensa e lhe penetra

gradual e impositivamente por meio da linguagem, o fator de objetivação social por

excelência.

Dito de outro modo, a cultura é um ato de significação, de doação de

sentido que o ser humano outorga aos elementos que compõem seu ambiente. Dessa forma, a

própria norma jurídica pode ser entendida como objeto cultural. Segundo Raimundo Bezerra

Falcão153

, "Ela é uma alteração que o homem traça à sua própria conduta, limitando, em

níveis externos, a liberdade inerente à natureza humana".

150

Segundo Fabiana Del Padre Tomé, "Na trajetória da teoria do conhecimento observamos certa evolução em

que, de início, tomava-se o objeto ou o sujeito como determinantes para o conhecimento: eis a ontologia e a

gnoseologia, respectivamente" (op. cit., 2009, p. 328). 151

REALE, 2000, p. 15. 152

VILANOVA, Lourival. Notas para um ensaio sobre a cultura. In: ______. Escritos jurídicos e filosóficos.

São Paulo: Axis Mvndi, 2003, v. 2, p. 310. 153

Op. cit., 2010, p. 70.

Page 60: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

58

Isto significa que o próprio direito é um objeto cultural, cujo traço

distinto é a finalidade de condicionar, influenciar comportamentos, moldando a liberdade

humana de agir, conforme padrões valorativos.

Linguagem, história e valores são elementos indissociáveis, que

constituem e transformam o ambiente humano, formando significações que compõem a

cultura. Todo o ato de fala é um ato cultural e valorativo, que se efetua em dado tempo

histórico. Transpondo tal raciocínio ao direito, temos que todo ato jurídico é um ato de fala e,

portanto, um ato cultural tendente à realização de um valor historicamente dado. A

interpretação do direito, portanto, é um processo que se desenvolve dentro dessa perspectiva e

seu produto será inserido no grande processo comunicacional que constitui a civilização

humana.

Essa afirmação não se constitui num círculo vicioso, na medida em

que a interpretação poderá inovar, tornando o direito mais adequado às necessidades que se

apresentam, alargando os horizontes jurídicos, dado seu aspecto histórico e axiológico;

porém, dentro da perspectiva dos pressupostos que adotamos, não de forma arbitrária, mas em

estreito diálogo com os utentes da linguagem jurídica, respeitando-se o consenso sobre

interpretações possíveis, que nada mais é que reconhecer o contexto cultural no qual ocorre a

exegese, os valores, as preferências de sentido dos participantes do jogo de linguagem do

direito, observando-se, ainda, as regras do sistema, premissa para que a decisão possa

prevalecer como justa.

Corrobora esse entendimento Raimundo Bezerra Falcão154

ao afirmar

que

O sentido não é imutável. Ele é sempre para o sujeito cognoscente, sem se olvidar a

ação do espírito objetivo sobre o sujeito cognoscente. Além disso, e por isso, o

sentido é criador. Tem força ôntica […] Efetivamente, no sujeito ou no indivíduo, o

sentido é mundo novo, é ser criado.

Contudo, o autor condiciona essa liberdade a uma racionalidade, que a

impede de ser equiparada ao tumulto, ao total descontrole. Em suas palavras:

Voltamos, mais uma vez, a insistir numa tecla que se nos afigura fundamental, a fim

de que ninguém julgue que estamos defendendo a existência de uma tal

fragmentação ou uma essencial variabilidade do sentido, a moldes que não se possa

cogitar de um mínimo de base comum, no que se reporta à apreensão de sentido, a

ponto desta operação se tornar alguma coisa inteiramente aleatória, uma obra do

154

Op. cit., 2010, p. 37.

Page 61: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

59

acaso, como se a razão humana fosse um tiro na escuridão, ou um corisco em meio

ao tumulto do espírito. É claro que o espírito não é um tumulto. Não se misture a

liberdade do homem com o tumulto e a incerteza puros e simples.

Para Lourival Vilanova155

, a cultura seria "um fato de três dimensões:

aos objetos físicos se conferem significações, que partem de sujeitos (seus criadores ou

receptores), que entre si, por causa e em conseqüência dessas significações, estendem uma

teia de inter-relações sociais".

A cultura formaria um novo território, com a inter-relação dessas três

dimensões. Os objetos, nesse território valem pelo sentido que lhe são atribuídos, sendo que

tais sentidos passam a ser compartilhados no transpersonalismo que apresenta o dado cultural.

Assim ocorre com as interpretações no direito, e mais especificamente, no campo do direito

tributário, objeto de nossos estudos, o que nos permite inferir que a cultura é fator que limita a

atividade do exegeta.

Contudo, no intuito de alcançarmos maior precisão, falamos da

existência de uma cultura jurídica. Propugnamos durante nossa exposição pela existência de

uma linguagem jurídica, de natureza técnica, que se diferencia da linguagem ordinária, vale

dizer, da existência de um sistema jurídico em constante diálogo com o macrossistema social,

porém revestido de autonomia. No interior desse sistema jurídico, há a formação de uma

cultura criada pelo uso da linguagem em determinado tempo histórico com a finalidade de

realizarem-se os valores nele presentes. É nesse contexto, justamente, que se dá a

interpretação do direito, constituindo-se a cultura jurídica como pressuposto a ser observado

pelo exegeta.

2.7 Valores e interpretação do direito

Hessen156

afirma que a "cultura humana é uma realização de valores".

Dito de acordo com nossa perspectiva, o ser humano transforma o mundo em que habita,

constrói a cultura, ao realizar os valores idealizados historicamente, entendidos estes como

preferências por determinado conteúdo significativo. Na concepção de Tércio Sampaio Ferraz

155

Op. cit., 2003, v. 2, p. 284. 156

Op. cit., 1946, p. 55.

Page 62: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

60

Jr.157

, "trata-se de centros significativos que expressam uma 'preferibilidade' (abstrata e geral)

por certos conteúdos de expectativa".

Assim ocorre também com o direito. Como objeto cultural, sua

interpretação e consequente aplicação, com a finalidade de regular condutas, concretiza

valores que estão presentes na cultura jurídica. Dessa maneira, os utentes da linguagem

jurídica possuem expectativas de concreção normativa que existem em virtude de valores

compartilhados. Parece-nos lícito supor que os jurisdicionados esperam de um processo

judicial, por exemplo, que a justiça seja feita. Acreditam, ainda, que devam participar de um

processo cujas partes sejam tratadas com isonomia. Dito de outro modo, justiça e igualdade,

por exemplo, são valores compartilhados pelos que se servem do sistema do direito positivo.

Ao construir a norma jurídica, isto é, ao atribuir um determinado

conteúdo significativo para o texto normativo, o exegeta emite juízo de valor, escolhe

significados de sua preferência. É claro que não estamos nos referindo ao sujeito apenas

enquanto indivíduo, retirando-lhe dos limites culturais e históricos que conformam seus

valores, posto ser "[…] a sociedade, quer dizer, a pluralidade, que dá o tom da legitimidade.

Não o indivíduo, enquanto ser singular. Este apenas agrega frações, mas não compõe,

sozinho, o todo da legitimidade. Não tem esse poder isolado de legitimação."158

Nesse mesmo sentido, Tércio Sampaio Ferraz Jr., que, ao explicar o

conceito de "valor", conforme acima citado, ressalta o consenso social. Afirma o autor159

:

"valores, são, assim, símbolos de preferência para ações indeterminadamente permanentes, ou

ainda, fórmulas integradoras e sintéticas para a representação do sentido de consenso social".

Aliás, o construtivismo lógico-semântico tem na historicidade uma

das características dos valores, na medida em que: "Eles vão sendo construídos na evolução

do processo histórico e social [...] Com efeito, os valores não caem do céu, mas vão sendo

depositados, gradativamente, ao longo da trajetória existencial dos homens."160

Portanto, ao dizer que o intérprete concretiza os valores na construção

normativa, imprescinde-se da noção de cultura, de historicidade e de coletividade que estão

implícitas nesse sujeito e em seu modo de se relacionar com o mundo. Como decorrência

157

FERRAZ, Jr. Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. Técnica, decisão e dominação. 6. ed. São

Paulo: Atlas, 2008, p. 86. 158

FALCÃO, 2010, p. 27. 159

Op. cit., 2008, p. 86. 160

CARVALHO, 2008, p. 178.

Page 63: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

61

desse ponto de vista, temos que a interpretação e a aplicação que se faz do direito positivo,

para não ser arbitrária, necessariamente deve ter como parâmetro as significações que a

comunidade de utentes da linguagem jurídica aceita como possíveis.

O construtivismo lógico-semântico, sob forte influência do

culturalismo161

aponta doze características dos valores. São elas:

(i) Bipolaridade: segundo esta característica, a todo valor se contrapõe

um desvalor: o belo e o feio, o bom e o mau, o justo e o injusto, o válido e o inválido são

exemplos da bipolaridade de que falamos. Nas palavras de Hessen162

:

Ao valor positivo contrapõe-se o negativo, chamando-se então a êste mais

pròpriamente 'desvalor'. Como já vimos, esta polaridade pertence à própria estrutura

essencial da ordem axiológica que assim se distingue fundamentalmente da ordem

do sêr a que é estranha uma tal estrutura.

Portanto, o valor não existiria enquanto "ser", tratando-se de algo

metafísico, posto ser logicamente impossível a um objeto feito de matéria física existir e ao

mesmo tempo inexistir.

Relacionando a bipolaridade característica dos valores ao tema da

interpretação do direito tributário, verificamos que, ao construir o sentido dos enunciados

prescritivos de direito, o sujeito decide por conteúdos que entende como os mais adequados.

O pedido que consta da petição inicial retrata o valor que pretende alcançar o autor da ação.

Este pedido é o que o sujeito ativo entende por justo. Qualquer outra decisão contrária à

pretensão deduzida representa um desvalor, a manutenção de uma injustiça. Tal contraposição

ilustra bem a bipolaridade presente nos valores.

(ii) Implicação recíproca: esta característica conota que os valores não

atuam isoladamente, mas há uma interdependência entre eles. Nas palavras de Aurora

Tomazini de Carvalho163

, "nenhum valor se realiza sem influir, direta ou indiretamente, na

realização dos demais, o certo implica o justo que implica a liberdade".

Assim, para nos mantermos no exemplo dado, o pedido deduzido pelo

autor em juízo representa para este sujeito o justo. Todavia, para que o justo se realize, é

161

Conforme declarado por Paulo de Barros Carvalho, em Direito tributário, linguagem e método (2008, p.

176). 162

Op. cit., 1946, p. 105. 163

CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de Teoria Geral do Direito. O Constructivismo lógico-semântico.

São Paulo; Noeses, 2009, p. 256.

Page 64: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

62

necessária a existência do devido processo legal, seguindo-se, assim, o procedimento previsto

em lei, com a citação da parte contrária para apresentar defesa, a permissão de produção de

provas e, ao final, com o pronunciamento de uma sentença válida para que o justo se

realizasse, mas, para tanto, também se realizaram outros valores, a exemplo da igualdade

(isonomia processual), da liberdade de estar em juízo deduzindo uma pretensão, da

democracia, na qual um terceiro, estranho à lide tem o poder de dirimir o conflito e assim por

diante.

(iii) Necessidade de sentido ou referibilidade: os valores sempre se

referem a algo, isto é, "o valor importa sempre uma tomada de posição do ser humano perante

alguma coisa, a que está referido"164

. Assim sendo, espera-se de uma sentença proferida por

um juiz que seja justa. Essa justiça poderá ser observada na forma como determina a

regulação da conduta. Portanto, o valor "justo" refere-se, no exemplo dado, a uma ação

judicial. Ganha sentido apenas com essa referibilidade.

(iv) Preferibilidade: o sujeito escolhe, toma uma posição dentre as

várias possíveis de acordo com seus ideais e interesses. Ao agir assim, valora algo em

detrimento de outras opções. O juiz, ao decidir pela procedência de uma dada ação proposta,

opta por uma posição porque a considera como a mais acertada para o caso. Isto é, dá a

preferência para a realização do pedido do autor, porque o considera justo.

(v) Incomensurabilidade: os valores não são passíveis de ser medidos.

Não há como mensurar-se quantitativamente o quão justa é uma sentença ou, noutro exemplo,

o quão bela é a foz do rio Amazonas.

(vi) Graduação hierárquica: os valores se encontram em relação

hierárquica com referência do sujeito que valora, podendo ser este o indivíduo ou uma

coletividade. Assim, em determinada sociedade, o valor "liberdade" pode estar em primeiro

plano, enquanto para outra a prioridade seria o valor "segurança", por exemplo, ocupando a

"liberdade" lugar de menos destaque.

Note-se, contudo, que na interpretação do direito a graduação

hierárquica dos valores que deverá prevalecer será a que consensualmente encontrar-se

presente nas manifestações dos participantes do jogo de linguagem jurídico. Dessa forma, um

juiz que tenha a certeza da culpa de um acusado, por exemplo, não poderá condená-lo sem o

164

CARVALHO, 2008, p. 177.

Page 65: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

63

devido processo legal. O valor justiça será realizado de acordo com o procedimento

determinado pelas várias interpretações que dele fizeram os utentes da linguagem jurídica e

não pela simples valoração individual feita pelo juiz.

(vii) Objetividade: os valores necessitam dos objetos da experiência

para alcançarem objetividade. Tal característica relaciona-se com a inexistência de uma

essência nos valores, de um "ser". Portanto, o justo ganhará objetividade em uma sentença, ou

ainda, a liberdade em determinado artigo da Constituição Federal, por exemplo. Nas palavras

de Paulo de Barros Carvalho165

,

A objetividade é conseqüência da particular condição ontológica dos valores. Se eles

se configuram como qualidades aderentes, que os seres humanos predicam dos

objetos (reais e ideais), hão de querer, invariavelmente, a presença desses mesmos

objetos.

Com a objetividade, queremos afirmar que algo ou alguém portará um

valor, por nós mesmos atribuído. Nesse sentido, o valor a eles adere, tornando-os justos,

belos, corajosos, ou ainda, tiranos, quasimodescos e servis, o que é diferente de dizer que

dada sentença será sempre justa, determinada obra de arte será sempre bela, por trazerem

consigo esses valores. Os valores não fazem parte do mundo do ser, mas de um ideal

normativo166

(não necessariamente prescritivo) com o qual classificamos os objetos.

(viii) Historicidade: já falamos sobre essa característica dos valores

páginas atrás. Os valores se formam e se transformam no bojo da história, não existem de

forma estática, independentemente de qualquer condicionante de tempo e espaço. Em outras

palavras, não possuem uma essência. Tathiane dos Santos Piscitelli167

nos ensina que

O conteúdo dos valores é, então, contingente. Depende do momento histórico da

enunciação e, ainda, da tradição e dos pré-conceitos daquele que interpreta o

enunciado ou objeto […] A carga semântica dos valores é construída pela história e

no curso desta se modifica.

Dessa maneira, consignamos que a historicidade dos valores reflete-se

de forma direta na interpretação do direito, traçando limites na cultura jurídica, no qual o

exegeta a enuncia.

165

Op. cit., 2008, p. 178. 166

Por exemplo, as normas morais trazem um dever, porém não de cunho prescritivo. Isto é, não é possível que

o Estado-juiz assuma o cumprimento da norma de forma coercitiva, como ocorre com o dever-ser no direito. 167

Op. cit., 2007, p. 110.

Page 66: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

64

(ix) Inexauribilidade: o valor não se esgota na medida em que

transcende o ser. Não possui uma forma física que o limite. Não é um objeto, mas adere a

eles. Uma decisão justa, por exemplo, não consome todo o justo, ao passo que um incêndio

em uma floresta pode consumir este bioma. Nas palavras de Paulo de Barros Carvalho168

,

Mesmo que o belo seja insistentemente atribuído a uma obra de arte, sobrará esse

valor estético para muitos outros objetos do mundo. Tal transcendência é própria às

estimativas, de modo que o bem em que o valor se manifesta não consegue contê-lo,

aprisioná-lo, evitando sua expansão para os múltiplos setores da vida social.

A interpretação do mundo, que neste sentido pode ser considerado

como um texto em sentido amplo, é a forma que o ser humano possui para conhecer os

objetos e, como vimos, está intrinsecamente ligada à realização de valores, a ponto de Paulo

de Barros Carvalho169

conceituar que "interpretar é atribuir valores aos símbolos". Por sua

vez, Hessen170

leciona que "a verdade é que tomamos contato com as coisas não só pensando-

as, mas valorando-as". Com efeito, os valores não poderiam ser exauríveis em um único ato

hermenêutico, sob pena de não mais ser possível o conhecimento do mundo pela absoluta

ausência de critérios de preferências, de estimativas. Nada seria importante, inexistiriam fins a

serem realizados.

Nesse sentido, a inexauribilidade dos valores pode ser associada à

inesgotabilidade da interpretação. Se o valor "justiça", por exemplo, se exaurisse em um único

ato de interpretação e aplicação, o direito estaria enormemente prejudicado em sua identidade

cultural. Não poderia cumprir sua função de realizar justiça. O fato de as estimativas não se

exaurirem permite que o ato de conhecer e, portanto, de interpretar o mundo se renove. O

sujeito cognoscente poderá atribuir o valor "justo" para inúmeras outras decisões. Visto sob

esse ângulo, o ato de interpretar, de atribuir valores aos signos, pode ser inesgotável.

Paralelamente a inexauribilidade dos valores, a interpretação nos parece inesgotável, também

porque a significação não é extraída do texto, mas é construída pelo sujeito cognoscente, o

intérprete, cujos valores que compõem seu sistema de referência são sempre renovados, por

serem condicionados histórica e culturalmente.

(x) Atributividade: esta característica do valor enaltece o ato de

valoração. É o sujeito quem atribui qualidades aos objetos, de tal forma que "é uma relação

168

Op. cit., 2008, p. 178. 169

Ibid., p. 180. (destaque nosso). 170

Op. cit., 1946, p. 91.

Page 67: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

65

entre o conhecimento e o objeto, tal que o sujeito, movido por uma necessidade, não se

comporta com indiferença, atribuindo-lhe qualidades positivas ou negativas."171

Renova-se, assim, a fala de que o sentido de um objeto não é dele

extraído, mas construído pelo exegeta. O sentido de "justo" não está no suporte físico da

sentença, mas na significação consensualmente atribuída a esses símbolos. Será tida como

"justa", se atender ao sentido de justiça presente no contexto, isto é, compartilhado pelos

utentes da linguagem jurídica.

(xi) Indefinibilidade: segundo leciona Hessen172

:

O conceito de 'valor' não pode rigorosamente definir-se. Pertence ao número

daqueles conceitos supremos, como os de 'sêr', 'existência', etc., que não

admitem definição. Tudo o que pode fazer-se a respeito dêles é simplesmente

tentar uma clarificação ou mostração do seu conteúdo. Assim a respeito do

conceito de valor.

O que pretendemos afirmar com essa característica apontada não é a

indefinibilidade do termo "valor", pois dissemos tratar-se de preferências por núcleos de

significação, mas do valor considerado enquanto tal. Afinal, que é justiça? Que é igualdade?

A resposta somente pode ser dada quando a estimativa ganha objetividade numa decisão

judicial, por exemplo.

A indefinibilidade dos valores não advém somente da necessidade de

elucidar-se o uso para a significação do termo. Não estamos nos referindo exclusivamente à

ambiguidade das palavras. É algo que vai além e decorre da natureza metafísica das

estimativas. O verbete "justiça"173

encontra a seguinte significação como preferencial: "1.

qualidade do que está em conformidade com o que é de direito; maneira de perceber, avaliar o

que é direito, justo".

A própria definição do dicionário aponta para uma qualidade, o que

remonta a necessidade de objetividade para a compreensão. Também faz menção ao justo, isto

é, volta ao ponto de partida.

Na interpretação do direito, o conceito de justiça bem demonstra essa

indefinibilidade. Faz-se justa uma decisão, ao considerar as partes com igualdade, como

171

Op. cit., 2008, p. 178-179. 172

Op. cit., 1946, p. 35. 173

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, s.v.

justiça.

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66

também o é aquela outra, que vê num dos polos da relação jurídica uma hipossuficiência

justificadora de favorecimento, proteção, como é o caso de micro e pequenas empresas

incentivadas e amparadas com forma de tributação simplificada. Isto comprova que não há

definições possíveis para os valores, que prescindam de sua aplicação de acordo com todas as

características acima descritas.

2.8 Valores, princípios e interpretação

Percorremos até aqui um caminho que nos permitiu concluir ser o

direito objeto cultural criação humana que tem por finalidade estabelecer padrões de conduta

e, dessa forma, realizar os valores historicamente presentes em determinada sociedade.

Corolário dessa reflexão, portanto, é o reconhecimento de que a norma jurídica porta valores

atribuídos pelo intérprete no processo de positivação do direito.

Porém, há valores que se mostram muito especiais para o legislador,

denotando forte carga axiológica, e que devem ser observados com total atenção pelo

intérprete/aplicador do direito. Estamos falando dos princípios. Relembramos, com o escopo

de corroborar a assertiva, que, ao analisarmos o aspecto sintático da linguagem jurídica,

descrevemos o direito como um sistema hierárquico de normas, no qual os princípios ocupam

posição de preeminência sobre todas as outras espécies normativas.

Com efeito, observa Paulo de Barros Carvalho174

:

As normas jurídicas estão sempre impregnadas de valor. Esse componente

axiológico, invariavelmente presente na comunicação normativa, experimenta

variações de intensidade de norma para norma, de tal sorte que existem preceitos

fortemente carregados de valor e que, em função de seu papel sintático no conjunto,

acabam exercendo significativa influência sobre grandes porções do ordenamento,

informando o vector de compreensão de múltiplos segmentos.

O autor, expoente do construtivismo lógico-semântico, no trecho

acima citado, refere-se aos princípios. Porém, em minudente, mas não exaustiva, análise do

emprego do vocábulo no universo jurídico, aponta quatro usos distintos do termo, a saber:

a) como norma jurídica de posição privilegiada e portadora de valor expressivo; b)

como norma jurídica de posição privilegiada que estipula limites objetivos; c) como

valores insertos em regras jurídicas de posição privilegiada, mas considerados

independentemente das estruturas normativas; e d) como limite objetivo estipulado

174

Op. cit., 2010, p. 190.

Page 69: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

67

em regra de forte hierarquia, tomado, porém, sem levar em conta a estrutura da

norma.175

Sob essa óptica, os princípios jurídicos podem significar norma-valor,

norma-limite-objetivo, valor ou limite objetivo176

. Optamos pelo emprego do termo como

"norma-valor" e "norma-limite-objetivo". Primeiro, por compreendermos ser o direito

somente composto por normas prescritivas de conduta que são construídas a partir dos

enunciados positivados177

. Dessa maneira, mesmo uma petição inicial que visa tão-somente

veicular um pedido, que poderá ser aceito ou não pelo magistrado, após o devido processo

legal, tem seu aspecto normativo. Constitui uma exigência do direito posto para o exercício da

competência jurisdicional e sua ausência implica a impossibilidade de decisão por parte do

magistrado178

, além, é claro, de sua constituição ser regulada por normas de direito

processual.

Outra razão, pela qual optamos pelo emprego da voz "princípios"

sempre como norma, seja norma-valor ou norma-limite-objetivo, é a premissa calcada na

Semiótica, segundo a qual não há construção de sentido no direito posto, sem que exista um

suporte físico. Na lição de Paulo de Barros Carvalho179

:

Sucede que as construções de sentido têm de partir da instância dos enunciados

lingüísticos, independentemente do número de formulações expressas que venham a

servir-lhe de fundamento. Haverá, então, uma forma direta e imediata de produzir

normas jurídicas; outra, indireta e mediata, mas sempre tomando um ponto de

referência a plataforma textual do direito posto.

Se assim o é, os princípios da segurança jurídica e da justiça, para nos

atermos aos exemplos, são construídos pelo exegeta a partir de várias estruturas normativas,

como as que concedem as garantias e os direitos individuais do art. 5º da Carta Magna, o que

reforça nossa opção pela significação de "princípio" como norma-valor e norma-limite-

objetivo.

175

Op. cit., 2010, p. 191. 176

TOMÉ, Fabiana Del Padre. Contribuições para a seguridade social à luz da Constituição Federal. 1. ed., 3.

tir. Curitiba: Juruá, 2004, p. 125. 177

Note-se que os enunciados prescritivos são suporte físico. Sem que o exegeta trilhe o percurso gerador de

sentido que culmina com a norma jurídica, não possuem significação. Daí a conclusão que o direito é um

conjunto de normas e não simplesmente de enunciados normativos. 178

Vide, por exemplo, artigos 128 e 282 do Código de Processo Civil. 179

Op. cit., 2008, p. 130.

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68

A partir dessas digressões, podemos afirmar que os princípios, como

normas jurídicas fortemente impregnadas de valores, podem ser classificados de acordo com o

grau de objetividade.

Os princípios, enquanto norma-valor, trazem consigo a marca da

extrema subjetividade, encontrando-se, de forma implícita180

, no contexto do ordenamento

jurídico. Seus traços identificadores são exatamente os enumerados no tópico antecedente,

devendo ser analisados, portanto, no campo da axiologia. São construções normativas

realizadas a partir dos enunciados de direito positivo que não lhes fazem referência direta,

conceituando-os. Por serem valores, são indefiníveis, variando, com muita amplitude seu

conteúdo semântico. Assim se constituem os princípios da segurança jurídica e da justiça, por

exemplo, que podem ser construídos, tomando-se como base os enunciados do art. 150 da

Carta Magna, ou ainda, fundamentando-se no artigo 112 do Código Tributário Nacional,

dentre tantas outras possibilidades. Está no contexto dos utentes da linguagem jurídica a ideia

de que cabe ao direito realizar os valores "segurança jurídica" e "justiça", constituindo-se

papel do intérprete, ao construir a norma pautar-se por esses valores supremos.

A título de ilustração, citamos trecho de julgado do Superior Tribunal

de Justiça181

, Relator Ministro Luiz Fux, que relaciona, no caso concreto, a segurança jurídica

à prescrição. Nas breves palavras do julgador:

O conflito caracterizador da lide deve estabilizar-se após o decurso de determinado

tempo sem promoção da parte interessada pela via da prescrição, impondo segurança

jurídica aos litigantes, uma vez que a prescrição indefinida afronta aos princípios

informadores do sistema tributário.

Em outro julgado do mesmo Tribunal182

, relatado pelo Ministro

Benedito Gonçalves, equipara-se a segurança jurídica à autoridade da coisa julgada. Assim

afirma o Magistrado:

A violação a dispositivo de lei que propicia o manejo da ação rescisória, fundado no

art. 485, V, do CPC, pressupõe que a norma legal tenha sido ofendida na sua

180

Esclarecemos que todas as normas, como construção de sentido, fruto de interpretação dos textos de direito

positivo são implícitas. O que queremos dizer com a implicitude da norma-valor, que a distinguiria de uma

norma-limite objetivo, é que no texto do direito, em sentido estrito, não há um enunciado que faça uma

menção direta a tal estimativa. Não há uma definição no texto legal do que seja segurança-jurídica, justiça,

etc., apesar de serem valores presentes no ordenamento jurídico. 181

Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 2009/0072772-1, Primeira Turma, publicado em 07/06/2010.

O objeto da lide é a prescrição de ação de execução fiscal. (destaques nossos). 182

Ação Rescisória 2009/0133141-5. Julgado publicado em 21/05/2010, cujo assunto é ação rescisória sobre

decisão transitada em julgado cuja matéria é a legitimidade de adicional de contribuição destinada ao

INCRA. (Destaques nossos).

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69

literalidade pela decisão rescindenda, ou seja, é aquela teratológica que

consubstancia desprezo do sistema de normas pelo julgado rescindendo. Desse

modo, impede-se a utilização da ação rescisória para, por via transversa, perpetuar a

discussão sobre a matéria que foi decidida, de forma definitiva, por esta Corte

Superior, fazendo com que prevaleça, por isso, a segurança jurídica representada

pelo respeito à coisa julgada.

Por esse prisma, a norma-valor "segurança jurídica" ganha

objetividade e conteúdo semântico, no primeiro caso, na análise da prescrição e, no segundo,

na intangibilidade da coisa julgada, o que demonstra que os valores irradiam-se por todas as

normas jurídicas, mesmo na inexistência de um suporte físico que faça menção direta e literal

ao princípio. O conteúdo semântico será amplo e construído com um grau maior de

subjetividade, se comparado aos princípios que em si não são valores, mas tendem a realizá-

los em sua finalidade e possuem enunciados que os conceituam juridicamente.

Como norma-limite-objetivo, os princípios apresentam maior grau de

exteriorização, possuindo enunciados prescritivos que cercam, com sua expressão, a atividade

interpretativa. Como exemplo clássico, temos o princípio da anterioridade, que na seara do

direito tributário encontra assento no artigo 150, III, da Constituição da República, ou o da

legalidade, presente no inciso I, do mesmo dispositivo.

O princípio, visto como valor ou limite objetivo, porta uma

preferência do direito posto, da mais elevada hierarquia que se irradia por todo o ordenamento

jurídico. Dito com as palavras do Prof. Roque Antônio Carrazza183

:

Sendo o princípio, pois, a pedra de fecho do sistema ao qual pertence, desprezá-lo

equivale, no mais das vezes, a incidir em erronia inafastável e de efeitos bem

previsíveis: o completo esboroamento da construção intelectual, a exemplo, como

lembra Geraldo Ataliba, do que ocorreu na "Abóbada", de Alexandre Herculano.

Com efeito, apesar de ser essa a posição que nos parece a mais

apropriada para a interpretação do direito, há decisões de relevo nacional que acabam por

minimizar esse pressuposto de construção de sentido normativo. Como forma de bem ilustrar

essa situação, tomamos como paradigma a discussão sobre a prescritividade do Preâmbulo da

Constituição da República.

183

CARRAZZA, Roque. Curso de Direito Constitucional Tributário. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 37.

Page 72: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

70

2.9 A função do Preâmbulo da Constituição da República para a interpretação do

direito posto

A interpretação dos enunciados normativos, para ser correta, deve

guardar estrita observância dos princípios que constam no ordenamento jurídico. Não nos

referimos somente aos de estatura constitucional, mas os que forçosamente permeiam todo o

ordenamento jurídico. Porém, para fins de estudos, elegemos normas-valor que se encontram

na Constituição Federal, pois, visto o direito como sistema de linguagem organizado

hierarquicamente, é forçoso reconhecer que tais princípios irão se irradiar por todo o

ordenamento jurídico.

Tomemos, assim, como exemplo, a decisão do Supremo Tribunal

Federal, na ADIN 2.076-5, Acre, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso, segundo a qual, o

Preâmbulo da Constituição Federal, que porta valores como liberdade, segurança, bem-estar,

desenvolvimento, igualdade e justiça seria desprovido de relevância jurídica, pois "não se

situa no âmbito do direito, mas no domínio da política, refletindo posição ideológica do

constituinte"184

, servindo apenas como forma de proclamar ou exortar os princípios inscritos

na Carta185

.

Em virtude das premissas adotadas nesse trabalho, discordamos da

posição estampada no acórdão citado, cujo julgamento, nesse sentido, alcançou unanimidade

entre os Ministros da Corte Suprema. Entendemos ser o preâmbulo parte integrante da Carta

Magna por pertencer ao sistema de direito positivo. Isto é, trata-se de norma geral e

concreta186

que introduz o corpo da Constituição, cabendo a este reproduzir em detalhes os

valores naquele anunciados.

184

Palavras proferidas pelo Ministro Carlos Velloso, Relator da ADIN em seu voto, às fls. 226. 185

O Preâmbulo da Constituição da República promulgada em 05.10.1988 está assim enunciado: "Nós,

representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado

Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o

bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna,

pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional,

com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da

República Federativa do Brasil". 186

A norma geral e concreta é a responsável por introduzir outras normas no sistema. Em seu antecedente está

descrito acontecimento demarcado no tempo e espaço e a autoridade que o realizou. No consequente está o

exercício por certo sujeito competente para expedir norma jurídica, que se pretende por todos respeitada.

Page 73: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

71

Sobre o assunto, ao sustentar a prescritividade do Preâmbulo da

Constituição da República, doutrina Paulo de Barros Carvalho187

que:

[O Preâmbulo] de todo modo, funciona como vetor valorativo, penetrando as demais

regras do sistema, impregnando-lhes fortemente em sua dimensão semântica. Por

isso mesmo é colocado no altiplano da Constituição. De lá, no lugar preciso de onde

começam todos os processos de positivação das normas jurídicas, irradiam-se

aqueles primados para os vários escalões da ordem legislada, até atingir as regras

terminais do sistema, timbrando os preceitos que ferem diretamente as condutas em

interferência intersubjetiva, com a força axiológica dos mandamentos

constitucionalmente consagrados.

Tomando por base o percurso gerador de sentido, é de se supor que no

próprio S1, ou sistema da literalidade textual, existam marcas dos princípios norteadores de

uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, conforme determina o Preâmbulo da

Constituição da República. Todavia, caso ocorram incompatibilidades devido à composição

heterogênea das Casas Legislativas, fato esperado e bem-vindo numa sociedade democrática,

cabe ao exegeta/aplicador do direito modular a norma a ser construída com os valores que

iniciam o ordenamento jurídico. Assim, a significação dos enunciados prescritivos deve ser

escolhida (S2), articulada na forma de juízo implicacional(S3) e compatibilizada com o

sistema (S4), sempre em obediência às estimativas do legislador constituinte, que, de tão

valiosas, condensam os sentimentos com os quais teceram o ideal de Estado, exercendo o

Preâmbulo a função de contexto no qual as interpretações do direito ocorrem.

De outra maneira não poderíamos pensar, já que elegemos a premissa

segundo a qual, no sistema do direito positivo, somente existem normas, razão pela qual

tomamos o vocábulo "valor", ora como norma-valor, ora como norma-limite. Portanto, uma

vez que o Preâmbulo da Constituição da República inaugurou o ordenamento pelas mãos de

autoridade competente, de acordo com procedimento previsto pelo próprio sistema, trata-se de

norma válida, cuja função principal é a de prescrever condutas e não aconselhar politicamente

os intérpretes do direito.

Destacamos voto proferido pela Ministra Cármen Lúcia do Supremo

Tribunal Federal, Relatora no julgamento da ADIN nº 2.649-6, julgada em 2008 e que está em

consonância com o pensamento que expusemos. Ao argumentar, na defesa de seu ponto de

vista, a Ministra socorre-se dos valores da solidariedade, do bem-estar e da construção de uma

187

CARVALHO, Paulo de Barros. O Preâmbulo e a prescritividade constitutiva dos textos jurídicos. Revista

Direito GV, São Paulo. Vol. 6, n. 1, p. 295-312, jan.-jun. 2010, p. 302. O referido texto foi objeto de análise

no Grupo de Estudos coordenado pelo Professor Paulo de Barros Carvalho, no decorrer do ano de 2009.

Page 74: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

72

sociedade fraterna e sem preconceitos, afirmando a prescritividade do Preâmbulo da Carta

Magna. Nas suas palavras: "Devem ser postos em relevo os valores que norteiam a

Constituição e que devem servir de orientação para a correta interpretação e aplicação das

normas constitucionais e apreciação da subsunção, ou não, da Lei nº 8.899/94."

Prossegue a Magistrada em sua construção hermenêutica sobre a

prescritividade do Preâmbulo, citando comentário sobre o assunto da lavra de José Afonso da

Silva, cujas palavras merecem ser relembradas:

O Estado Democrático de Direito destina-se a assegurar o exercício de determinados

valores supremos. 'Assegurar' tem, no contexto, função de garantia dogmático-

constitucional; não, porém, de garantia dos valores abstratamente considerados, mas

do seu 'exercício'. Este signo desempenha, aí, função pragmática, porque, com o

objetivo de 'assegurar', tem o efeito imediato de prescrever ao Estado uma ação em

favor da efetiva realização dos ditos valores em direção (função diretiva) de

destinatários das normas constitucionais que dão a esses valores conteúdos

específicos.188

Portanto, neste segundo julgado, o Preâmbulo e os valores nele

presentes ganham a força da prescritividade, de forma a servirem como balizas para as

interpretações que se fizerem no ordenamento jurídico inaugurado pela Constituição da

República, promulgada em 05 de outubro de 1.988, com o que concordamos em gênero,

número e grau.

Em suma, os princípios, seja como norma-valor ou norma-limite-

objetivo, guardam vultosa relevância para a atividade de interpretar o direito. Impactam por

todo o ordenamento jurídico, comportando-se como guias para a construção de sentido

normativo.

Como já dissemos linhas acima, os princípios permeiam a

integralidade do ordenamento jurídico e estão presentes em todos os enunciados normativos,

constituindo-se os princípios constitucionais os de maior relevância, como decorrência lógica

da posição hierárquica que ocupam, ainda mais levando-se em conta o direito tributário, na

medida em que, por opção do legislador constituinte, o Sistema Tributário Nacional encontra

assento na Constituição da República. Todavia, consideramos ser desnecessária, para fins

desse trabalho, a análise descritiva de cada um dos princípios constitucionais.

188

SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 22.

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73

CAPÍTULO III – A IMPORTÂNCIA DOS PRESSUPOSTOS CONDICIONANTES

PARA A INTERPRETAÇÃO DO DIREITO TRIBUTÁRIO: VALIDADE E

CORREÇÃO DA NORMA JURÍDICA

3.1 Ciência do direito e direito positivo: dois jogos de linguagem

Os jogos de linguagem caracterizam-se por suas regras e finalidades.

Em seu interior, as palavras possuem significados próprios, relacionando-se de maneira

particular, criando formas de vida ou realidades distintas189

. Utilizando-se do termo "sistema

de linguagem" como ideia sinônima ao conceito de jogos de linguagem, conforme visto no

capítulo anterior, podemos estabelecer a existência de dois sistemas distintos de linguagem

jurídica correspondentes à Ciência do Direito e ao direito positivo. Na concepção de Paulo de

Barros Carvalho190

, "São dois corpos de linguagem, dois discursos lingüísticos, cada qual

portador de um tipo de organização lógica e de funções semânticas e pragmáticas diversas."

A finalidade do direito positivo é estimular comportamentos com o

intuito de realizar valores. Decorrem desse emprego determinadas características de sua

linguagem que lhe são exclusivas e que a diferenciam do uso crítico-descritivo dos signos

pertencentes à Ciência do Direito.

3.1.1 Direito posto: normas válidas ou inválidas

A lógica que estrutura suas normas é a deôntica191

, ou estudo lógico-

formal dos conceitos normativos. Nessa perspectiva, a norma jurídica em sentido estrito192

é

vista como unidade mínima da linguagem do direito posto, uma proposição que contém

apenas o necessário para regular determinada conduta. É um juízo hipotético condicional, no

qual temos uma proposição antecedente que se liga a outra, denominada consequente, por

189

No § 23 de Investigações Filosóficas, p. 27 , Wittgenstein expõe a idéia da seguinte maneira: "Tenha

presente a variedade de jogos de linguagem nos seguintes exemplos, e em outros: ordenar, e agir segundo as

ordens, descrever um objeto pela aparência ou pelas suas medidas, produzir um objeto de acordo com uma

descrição (desenho), relatar um acontecimento [...]". 190

Op. cit., 2010, p. 33. 191

Conforme ECHAVE, Delia Teresa; URQUIJO, María Eugenia; GUIBOURG, Ricardo. Lógica, proposición y

norma. 7. reimp. Buenos Aires: Astrea, 2008, p. 120-124. 192

O termo "norma jurídica" é ambíguo. Pode denotar a norma jurídica em sentido amplo, isto é, o conteúdo

significativo atribuído ao direito posto. Quando acompanhada do qualificativo "em sentido estrito" refere-se

àquelas que possuem o sentido deôntico completo, vale dizer, trazem todos os elementos necessários para

delinear a regulação de conduta.

Page 76: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

74

intermédio da vontade humana, responsável pela imputação do vínculo jurídico. Na lição de

Lourival Vilanova193

:

A norma jurídica, quer a norma primária, quer a secundária, são estruturas

condicionais. O que as distingue das estruturas de enunciados das leis naturais é a

incidência do operador 'dever-ser' sobre a relação de implicação. Sem a norma, a

relação entre A e B não se daria, realmente ou possivelmente.

A proposição antecedente descreve um fato de possível ocorrência

selecionado pelo legislador, de forma valorativa, para adentrar no universo jurídico. A

hipótese ou antecedente da norma não está adstrita aos valores de verdade ou falsidade, pois

seu objetivo não é conhecer o real, mas tão-somente tipificar um evento. Por sua vez, o

consequente da norma jurídica é responsável por prescrever as condutas intersubjetivas,

apresentando-se como proposição que veicula a relação entre dois ou mais sujeitos, que se

atêm à permissão, proibição ou obrigação de cumprir o comando.

Antecedente e consequente da norma jurídica são interligados por um

functor194

neutro interproposicional, o "dever-ser", também denominado "functor-de-functor".

O conectivo retrata a valoração efetuada pelo legislador, que as une como juízo condicional,

ou seja, ocorrendo o evento previsto na hipótese, deve realizar-se o disposto na tese. Da

mesma forma, no interior do consequente há a modalização valorativa do "dever-ser" que se

apresenta nas espécies de "proibido" (V), "permitido" (P) e "obrigatório" (O), ao referir-se à

conduta que se quer ver respeitada. Novamente nos servimos das explicações de Lourival

Vilanova:195

É a norma mesma, é o Direito positivo que institui o relacionamento entre o

descritor (hipótese) e o prescritor (tese). Agora, uma vez posta a relação, uma vez

normativamente constituída, a relação-de-implicação, como relação lógico-formal,

obedece às leis lógicas. [...] Assim sendo, tem-se functor deôntico com incidência

sobre a relação-de-implicação entre hipótese e tese e mais um functor deôntico no

interior da estrutura proposicional da tese. Ou em redução formal 'D(p→q)' [...]

Explicitando o interior de q, temos ' S' R S" ', onde R é a variável functoral [...],

cujos valores substituintes são as constantes deônticas 'permissão', 'proibição', e

'obrigação' […]

Assim sendo, temos condição de formalizar o quanto dito,

apresentando em simbolismo lógico a estrutura da norma jurídica: D[f→(S' R S")]. Este

enunciado lógico pode ser entendido da seguinte forma: "deve-ser que, dado o fato F, então se

193

VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,

2000, p. 96. (destaques do autor). 194

Conectivo lógico que une as duas proposições. 195

VILANOVA, Lourival. Estruturas lógicas e o sistema de direito positivo. São Paulo: Noeses, 2005, p. 93-95.

Page 77: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

75

instale a relação jurídica R, entre os sujeitos S' e S"."196

Relação jurídica sempre irreflexiva,

diga-se de passagem, pela própria finalidade do direito que visa regular condutas

intersubjetivas.

Por outro giro, é possível discernir a existência da norma que

estabelece o dever, também denominada por Lourival Vilanova197

de primária e, ao lado

dela, outra, que, por sua vez, atribui consequências para o descumprimento desse dever.

Trata-se da norma sancionatória ou secundária. Dessa maneira, em caso de desobediência

da conduta determinada no consequente da norma jurídica primária, haverá a possibilidade

de a parte prejudicada requerer ao Estado-juiz a aplicação da sanção prevista pelo

ordenamento jurídico.

Podemos, então, formalizar a norma jurídica completa da seguinte

maneira: D{(p→q) v [p→-q)→S]}. Queremos afirmar com essa expressão o quanto segue:

"deve ser que na ocorrência do fato 'p' então se instale o conseqüente 'q', ou ainda, caso não se

verifique 'q' aplicar-se-á a sanção correspondente". Ambas as normas, primária e secundária,

são válidas simultaneamente, mas a aplicação de uma exclui a aplicação da outra, razão pela

qual utilizamos o disjuntor includente "v"198

.

Ressalvamos ser esta a estrutura da norma prescritiva de condutas

intersubjetivas presente no jogo de linguagem do direito posto, que varia apenas no aspecto

semântico, conforme o uso que é feito pela comunidade jurídica em determinado contexto

histórico-cultural199

. Em virtude da modalidade lógica que rege esse jogo de linguagem e de

sua finalidade, suas proposições não serão verdadeiras ou falsas, de acordo com o

desencadeamento do discurso normativo, mas válidas ou inválidas.

196

CARVALHO, op. cit., 2007, p. 20. 197

Conforme Estruturas lógicas e o sistema de direito positivo (op. cit., p. 105). 198

Conforme Paulo de Barros Carvalho (op. cit., 2008, p. 139). 199

Em função da citada variedade semântica, Paulo de Barros Carvalho classifica as normas jurídicas em geral e

abstrata, geral e concreta, individual e abstrata e individual e concreta. Os termos "geral" e "individual"

referem-se aos sujeitos aos quais as normas são dirigidas. No primeiro caso, são indeterminados, no segundo

conhecidos. O termo "abstrata" designa a previsão de um evento que, se ocorrido e vertido em linguagem

competente, terá como efeito a instauração da relação jurídica presente no consequente normativo. A palavra

"concreta" refere-se ao evento ocorrido e vertido em linguagem competente. Da combinação desses

elementos teremos variedade de normas. Assim, por exemplo, a norma geral e abstrata prevê um evento que,

se ocorrido, em tese, a todos obriga. A norma individual e concreta certifica a ocorrência desse evento,

tratando-se de enunciado protocolar que contém a individualização dos sujeitos e o fato jurídico. A

classificação completa encontra-se em Direito Tributário, linguagem e método (op. cit., p. 127-131).

Page 78: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

76

A validade é um conceito plurívoco e seu significado dependerá dos

critérios eleitos pelo cientista que a analisa200

. A validade é compreendida nesse trabalho,

conforme lições de Lourival Vilanova, ou seja, trata-se de relação de pertinencialidade que se

estabelece entre norma e sistema201

: "A validade (como reiteradamente sublinha Kelsen) é

existência [...] Norma não é válida per se, mas é válida porque tem relação de pertinência a

um dado sistema S."

A partir desse ponto de vista científico, para que uma norma jurídica

seja válida, deve ser introduzida no sistema por autoridade competente, conforme

procedimento estabelecido para esse fim. O controle que julgará se a autoridade que a

introduziu seria apta a fazê-lo e se o procedimento utilizado foi o prescrito em lei poderá ser

efetuado posteriormente, culminando, inclusive, em caso de inobservância desses requisitos,

com sua invalidade determinada pelo Poder Judiciário. Contudo, enquanto isso não ocorrer,

presume-se sua validade. Portanto, não se trata de uma qualidade da norma jurídica, como se

ela pudesse existir no sistema sem ser válida. Existência e validade no jogo de linguagem do

direito positivo são expressões sinônimas. A norma sempre será válida até posterior ato de

fala proveniente, em caráter definitivo, do Poder Judiciário202

.

Dissemos que a validade é um conceito construído pela Ciência do

Direito. Isso decorre em virtude do direito positivo não ter estipulado uma definição sobre o

instituto jurídico. Porém, é necessário relevar que a validade é critério que se aplica às normas

jurídicas no interior do jogo de linguagem do direito positivo. Somente normas jurídicas são

válidas ou inválidas. As proposições das ciências jurídicas são verdadeiras ou falsas, o que é o

mesmo que dizer que são corretas ou incorretas.

3.1.2 Ciência do Direito: proposições verdadeiras (corretas) ou falsas (incorretas)

No sistema crítico-descritivo da Ciência do Direito, cujo objeto é o

próprio direito posto, têm-se, de acordo com sua finalidade, características diferentes da

linguagem jurídica. Enquanto metalinguagem do direito posto, a lógica que rege as

200

Conforme MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Noeses, 2006, p.

168-171. O autor cita pesquisa de Daniel Mendonça, que, a partir do emprego do termo "validade", constata

quatro significações: (i) como obrigatoriedade; (ii) como aplicação; (iii) como pertinencialidade; e (iv) como

existência. 201

Op. cit., 2005, p. 32. (destaques do autor). 202

Conforme lições de Paulo de Barros Carvalho (op. cit., 2010, p. 82).

Page 79: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

77

proposições desse sistema é denominada alética ou apofântica e, portanto, serão apreciadas de

acordo com sua "verdade" ou "falsidade". Não se trata aqui da correspondência entre a

proposição e a realidade, mas de relação entre duas linguagens, a que descreve e a que é

descrita. Portanto, uma proposição científica será verdadeira, se uma dada comunidade de

utentes considerar que houve descrição correta da linguagem-objeto. A estrutura formal da

proposição científica corresponde, portanto, a uma descrição configurando-se como "S (P"),

ou simplesmente, "S é P". Com a regra desse jogo de linguagem, temos a necessidade de

coerência do discurso científico, que, ao contrário do direito posto, não pode apresentar

contradições. Decorrência dessa característica são as leis do terceiro excluído, da identidade e

da não contradição203

, que devem ser observadas pelos sujeitos que partilham dessa específica

forma de vida.

É fundamental, para a solução do problema nuclear desse trabalho,

observar que o sistema de linguagem da Ciência do Direito não é simplesmente descritivo,

como se o sujeito fosse um mero retratista de uma realidade absoluta, que lhe entra aos olhos

como a claridade da luz. Em princípio, já há um obstáculo que infirma essa visão: a

impossibilidade de simplesmente descrever-se um objeto. Conforme nossas premissas, tanto o

sujeito, como o objeto são formados pela linguagem. O sujeito opta por aproximar-se do

fenômeno de certa maneira, de acordo com seu sistema de referência. Não se admite a

existência de "fato puro". Ao descrever um objeto, temos apenas uma visada sobre um de seus

aspectos. Não se trata de uma compreensão absoluta, mas sempre relativa. Tomemos como

exemplo o próprio direito. Podemos compreendê-lo do ponto de vista sociológico, histórico,

normativo, dogmático e assim por diante. São modos de aproximação, todos com o mesmo

grau de relevância, que colocam em evidência o aspecto que se quer compreender.

A relatividade que apontamos não advém somente do isolamento de

um dos ângulos do objeto, mas tem origem nos valores histórico-culturais do próprio

intérprete que opta, em determinado momento, por aproximar-se do fenômeno jurídico de

certa maneira. Isto é, ainda que se trate do mesmo tipo de aproximação, a Dogmática, por

exemplo, a variedade de pontos de vista é inegável. Comprovam a tese as inúmeras

203

Por "lei da identidade", podemos compreender que toda a proposição é equivalente a si mesma. Qualquer

variação de uso em determinado discurso científico deve ser elucidada. Por "lei do terceiro excluído",

conotamos que uma proposição, no mesmo discurso científico, somente pode ser verdadeira ou falsa. Não é

possível, por exemplo, afirmar que a linguagem cria e não cria a realidade. A "lei da não contradição"

estabelece que nenhuma proposição pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo. Conforme Lógica,

proposición y norma (ECHAVE; URQUIJO; GUIBOURG, op. cit., p. 83-87).

Page 80: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

78

correntes científicas que descrevem o mesmo fenômeno204

. Portanto, inexiste o simples

descrever de um objeto como o direito. Sempre haverá o aspecto axiológico na

conformação da linguagem crítico-descritiva. Gregório Robles205

, destacando o direito

como objeto cultural, compreende ser

[…] impossível descrever qualquer fenômeno de cultura. O direito não é uma

realidade descritível, mas sim interpretável. A Dogmática não se limita a repetir

simplesmente o que diz a autoridade jurídica, especialmente o legislador. Toma

como ponto de partida a prescrição da autoridade, para, então, a partir dela, construir

o direito.

Lourival Vilanova206

afirma o caráter construtivo da Ciência do

Direito, dissociando-se, portanto, de um conceito meramente descritivo ou figurativo: "Tenha-

se ainda em conta que na obtenção dos conceitos fundamentais e dos princípios gerais do

sistema, a tarefa dogmática científica não é apenas re-construtiva do direito: é construtiva; não

é reprodutiva do objeto, mas produtiva."

Portanto, a Ciência do Direito interpreta o direito posto, seu objeto de

análise, e o compreende de acordo com suas próprias regras, estando condicionado o cientista

pelo horizonte histórico-cultural no qual sua produção científica é realizada. Assim, explica-

se, por exemplo, a razão pela qual os juristas das Escolas da Exegese e da Jurisprudência dos

Conceitos, predominantes no século XIX207

, partiram da existência de uma univocidade

semântica dos termos jurídicos, cabendo ao intérprete extrair o significado, a intenção que o

legislador quis imprimir ao texto (Escola da Exegese), ou ainda, esclarecer os conceitos

tecnicamente precisos utilizados pelo legislador (Jurisprudência dos Conceitos). O contexto

histórico-cultural de seus estudos era outro, anterior à revolução filosófica que inseriu a

linguagem como fundamento do conhecimento e da própria realidade.

204

Por exemplo, a questão da incidência das normas aos fatos. Há correntes dogmáticas que a admitem de forma

automática e infalível, isto é, ocorrido os fatos no sistema social a norma incide, sem a necessidade de

qualquer outro procedimento. Outras, como o construtivismo lógico-semântico, apontam a necessidade da

certificação do acontecimento em linguagem pelo direito tida como competente. Somente nesse momento é

que se daria a incidência da norma ao fato, que se constituiria, assim, como fato jurídico. 205

ROBLES, Gregório. Teoría del derecho. Fundamentos de teoría comunicacional del derecho. Vol. I, 2. ed.

Cizur Menor, Navarra: Thompson-Cívitas, 2006, p. 140. (fizemos tradução livre). 206

VILANOVA, Lourival. Norma jurídica-proposição jurídica. (Significação semiótica). Revista de Direito

Público. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano XV, n. 61, jan./mar. 1982, p. 14. 207

Conforme Marcelo Neves (op. cit. p. 197).

Page 81: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

79

3.2 A intertextualidade

Observe-se, ainda, que os dois sistemas, o do direito positivo e o de

sua Ciência, não se encontram isolados, incomunicáveis. A Ciência do Direito faz parte da

pré-compreensão, ou sistema de referência, que permite a construção normativa no interior do

direito positivo. De acordo com nossas premissas, a técnica, aproximadamente comum,

desenvolvida a partir da Ciência do Direito, forma a comunidade jurídica. Os juízes,

advogados, promotores de justiça e demais protagonistas do processo judicial, por exemplo,

são formados pela Dogmática e, ao desenvolver seu ofício, interpretando os textos de direito

posto, utilizam-se também desse saber. A própria prática comprova essa tese.

Em caso concreto208

, afastou-se a incidência do ISS nas atividades de

franquia, apesar de contemplada na Lista anexa à Lei Complementar nº 116/03. O critério que

possibilitou a decisão foi justamente a classificação das obrigações, conforme

tradicionalmente é feita pelos juristas e o próprio conceito de franquia estudado pelo direito

privado. Reconheceu-se, assim, que "prestar serviços" é uma obrigação de fazer, que não seria

aplicável à atividade analisada, por ser ela um complexo de obrigações.

Nas sentenças proferidas pelos juízes, por exemplo, é bastante comum

a citação da Doutrina como argumento de autoridade capaz de auxiliar a justificativa das

decisões e o convencimento de seu acerto. A fundamentação de acórdão209

recente, proferido

pelo Superior Tribunal de Justiça, serve-se de lições de Paulo de Barros Carvalho sobre

isenção, o que auxilia a confirmar a assertiva:

O que o preceito da isenção faz é subtrair parcela do campo de abrangência do

critério do antecedente ou do conseqüente, podendo a regra de isenção suprimir a

funcionalidade da regra-matriz tributária de oito maneiras distintas [...]. (Paulo de

Barros Carvalho, in 'Direito Tributário - Linguagem e Método', 2ª ed. Ed. Noeses,

São Paulo, 2008, pág. 521.

O mesmo é feito pelos advogados, com o objetivo de persuadir o juiz

da procedência de suas alegações. Tais argumentos compõem a linguagem técnica do direito

positivo, que se serve de conceitos científicos. Portanto, conforme observa Tácio Lacerda

208

STJ, 1ª Turma, REsp. nº 2007/0115791-3, Rel. Min. Luiz Fux. DJe. 14.09.2009. Está expresso na Ementa

que: "12. A mera inserção da operação de franquia no rol de serviços constantes da lista anexa à Lei

Complementar 116/2003 não possui o condão de transmudar a natureza jurídica complexa do instituto,

composto por um plexo indissociável de obrigação de dar, de fazer e de não fazer." 209

STJ, 1ª Turma, REsp. 1098981, Relator Min. Luiz Fux. DJe de 14/12/2010.

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80

Gama210

, as normas jurídicas são tecidas sob a influência do diálogo entre o direito positivo e

a Ciência do Direito:

Os textos de direito positivo estão sempre em constante relação. Os sentidos

produzidos pela Ciência influenciam decisões no direito positivo, assim como as

disposições do direito positivo constituem o próprio objeto das considerações da

Ciência Jurídica. Dialogicamente, textos da Ciência e do direito positivo se

condicionam mutuamente [...]. E todos esses vínculos ocorrem sem que os dois

sistemas lingüísticos percam sua respectiva autonomia, como sistemas de linguagem

que cumprem papéis distintos.

O diálogo entre o direito positivo, a Ciência do Direito e outros jogos

de linguagem é um característica da interpretação do direito, que Paulo de Barros Carvalho

denomina "intertextualidade"211

:

A interpretação pressupõe a atividade que consiste em enfrentar o percurso gerador

de sentido, abrindo-se espaço para que o texto possa dialogar com outros textos, no

caminho da intertextualidade, em que se instala a conversação das mensagens com

outras mensagens, numa trajetória sem fim, expressão eloqüente da inesgotabilidade

das significações.

Conclui-se, portanto, que a Ciência do Direito é uma ciência, que,

devido à intensa influência que exerce sobre a comunidade de utentes da linguagem jurídica,

tem enorme importância prática, isto é, para a aplicação do direito tributário. É o que afirma

Gregório Robles212

ao observar que

[…] a dogmática jurídica ou Ciência do Direito é uma ciência prática. Essa ciência

não se limita a situar-se ante a realidade para contemplá-la, mas sim para construí-la

e, portanto, para criá-la, ainda que parcialmente. Portanto, a dogmática tem um

efeito gerador, produtor de normas.

No que diz respeito à interpretação do direito tributário, ou de

qualquer outro ramo, destacamos a importância da Ciência do Direito como um dos textos ou

elementos que compõem a pré-compreensão do intérprete e dos destinatários da mensagem

prescritiva, de forma a colaborar com o entendimento do que possa ser uma interpretação

plausível e não plausível perante determinado sistema jurídico.

210

Op. cit., p. 297. 211

CARVALHO, 2009, p. 57. 212

Op. cit., 2006, p. 143. (fizemos a tradução livre). Esclarecemos que o autor em questão considera o direito

como um fenômeno complexo, sendo um dos principais pontos de sua teoria a diferença entre ordenamento

(texto) e sistema (formado pela Ciência do Direito). A norma jurídica seria formada no plano do sistema,

portanto pela Ciência do Direito, que cumpriria um papel harmonizador do ordenamento, além da função

prática. Não nos utilizamos dessa concepção, posto que entendemos que a Ciência do Direito e o direito

positivo são dois planos ou sistemas distintos de linguagem, o que não nos impede de reconhecer o intenso

diálogo travado entre ambos e a função prática da ciência, na medida em que compõe o sistema de referência

do intérprete.

Page 83: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

81

Portanto, da constatação das características dos jogos de linguagem do

direito positivo e de sua ciência, aliadas ao intenso diálogo que se estabelece entre ambos,

infere-se que a descrição crítica de pressupostos condicionantes à interpretação do direito

tributário auxilia na compreensão do direito no interior do sistema de linguagem

prescritivo213

.

3.3 Validade e correção da norma jurídica: dois pontos de vista distintos, mas não

isolados

Afirmar que uma norma jurídica foi construída sem a observância dos

pressupostos condicionantes da interpretação e, portanto, é incorreta não implica em sua

invalidade. Tratam-se de conceitos distintos que podem ser analisados, tomando-se a

referência do sistema de direito positivo, como decorrentes da postura do observador e do

participante.

Hart214

, ao tratar do conceito de obrigação, afirma existir dois aspectos

das regras, o externo e o interno. Para o jusfilósofo,

Quando um grupo social tem certas regras de conduta, este facto confere uma

oportunidade a muitos tipos de asserção intimamente relacionados, embora

diferentes; porque é possível estar preocupado com as regras, quer apenas como um

observador, que as não aceita ele próprio, quer como membro de um grupo que as

aceita e usa como guias de conduta. Podemos chamar-lhes os 'pontos de vista',

respectivamente 'interno' e 'externo'.

Associando as ideias de Hart ao direito tributário, Tácio Lacerda

Gama afirma que à Ciência do Direito corresponde a perspectiva do observador e aos órgãos

do sistema de direito positivo, a do participante. Nas suas palavras215

:

Os participantes seriam órgãos do sistema de direito positivo que interpretam e

aplicam normas, produzindo, assim, mais normas. Esses sujeitos positivam suas

interpretações. Já os observadores, diversamente, expõem aquilo que entendem da

leitura dos textos legais. Fixam conceitos, classificações e sugerem como deve ser

entendida uma norma. Ao fazer isso, produzem doutrina, ciência jurídica, não

direito positivo.

213

Essa inferência abrange todo e qualquer tema abordado pela Ciência do Direito Tributário, a exemplo de

Contribuições, provas, presunções etc. 214

HART, Herbert L. A. O conceito de direito. 5. ed. Tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação

Calouste Gulbenkian, 2007, p. 98-101. 215

Op. cit., p. 128. (destaques nossos).

Page 84: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

82

Dessa forma, os observadores estão vinculados às regras do jogo de

linguagem da Ciência, mas, com relação ao direito posto, influenciam nas decisões da

comunidade jurídica, entretanto seus enunciados não têm o poder de regular condutas.

Ninguém poderá deixar de recolher tributo em virtude de um parecer que considere a exação

inconstitucional. Consequência desse raciocínio é que a Doutrina, ao apreciar sua linguagem-

objeto, enuncia proposições que a considera "correta" ou "incorreta".

Por sua vez, os membros da comunidade jurídica, por serem

participantes do jogo de linguagem do direito posto, se voltam para a validade ou invalidade

da norma. Contudo, ressalte-se que apenas o Poder Judiciário tem a prerrogativa de emitir

enunciados vinculantes de forma definitiva, após o trânsito em julgado de suas sentenças. Os

demais membros da comunidade jurídica visam convencer a autoridade judicial competente,

da procedência de seus argumentos.

Nesse sentido, observamos que dentro do que denominamos

comunidade jurídica, formada por sujeitos que possuem treinamento na linguagem técnica do

direito posto, há uma subdivisão entre intérprete autêntico e não autêntico216

. Os primeiros são

os membros do Poder Judiciário que possuem a competência de emitir enunciados

prescritivos que vinculam as partes de forma definitiva. O subconjunto formado pelos não

autênticos compreende os demais membros da comunidade jurídica que buscam juízos de

validade sobre as construções normativas por eles realizadas.

Os juízos de correção da norma efetuados pelas ciências jurídicas são

importantes argumentos utilizados pelos participantes do sistema do direito posto, pois os

auxiliam na compreensão da linguagem jurídica, tendo em vista que entre esses jogos de

linguagem há intensa intertextualidade, conforme exposto. Nas considerações de Tathiane dos

Santos Piscitelli217

:

É evidente que o fato de a decisão poder ser qualificada como incorreta não resulta

na ausência do dever de cumpri-la, mas isso não afasta a importância de se

216

Para Hans Kelsen, "A interpretação feita pelo órgão aplicador do Direito é sempre autêntica. Ela cria

Direito." (2006, p. 394). No sentido que utilizamos, não encontram-se incluídas as autoridades

administrativas porque suas decisões não são alcançadas pelo trânsito em julgado. Note-se que, na ocorrência

de uma decisão administrativa ser favorável ao contribuinte, existirá falta de interesse em agir do órgão

tributante para provocar nova decisão do Poder Judiciário e não trânsito em julgado. 217

PISCITELLI, Tathiane dos Santos. Os conceitos de direito privado como limites à interpretação de normas

tributárias: análise a partir dos conceitos de faturamento e receita. Congresso Nacional de Estudos

Tributários. Direito tributários e os conceitos de direito privado. PAULA JUNIOR, Aldo de et al. São Paulo:

Noeses, 2010, p. 1236.

Page 85: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

83

reconhecer a existência de motivos jurídicos para criticá-la e, assim, construir

argumentos que afastem a produção de normas desse tipo no futuro.

Dessa forma, válido e correto é o julgado218

que excluiu a incidência

do ICMS sobre as atividades meramente preparatórias do serviço de comunicação, necessárias

para sua concretização, a exemplo da adesão e assinatura de tais serviços, apesar do texto do

Convênio ICMS nº 69/98219

.

Presume-se válida a norma construída pelo Tribunal por pertencer ao

sistema do direito posto, na medida em que foi introduzida por autoridade competente,

mediante procedimento processual previsto em lei. É correta, conforme juízo bastante

presente na Ciência do Direito. Roque Carrazza220

, por exemplo, em parecer citado pelo

Ministro Relator do julgado221

pondera:

O que estamos querendo expressar é que nenhuma dessas atividades-meio pode ser

havida, em si mesma, como serviço de comunicação. Todas, sem exceção, não

passam de condições para a execução deste mesmo serviço. Serviços

complementares que, em verdade, se voltam a atender à finalidade primordial do

contrato de prestação de serviços de comunicação, não podem ser considerados

isoladamente, para efeito de tributação por meio de ICMS. É que elas permitem a

fruição (ou a melhor fruição) dos serviços que ora se cogita. Sobremais, tributar a

atividade-meio, como se fosse a atividade-fim, vulnera os princípios da estrita

legalidade e da tipicidade fechada, que dão segurança jurídica aos contribuintes.

Segurança jurídica que, com seu corolário de proteção da confiança,

definitivamente bane o emprego da analogia in malam partem (cf. art. 108, § 1º, do

CTN).

Paulo de Barros Carvalho222

considera existir prestação de serviços de

comunicação, somente quando o emissor da mensagem toma os serviços de uma prestadora,

mediante remuneração, que, por sua vez, disponibiliza o canal apto para a transmissão da

mensagem e, nesse sentido, também afasta a possibilidade de incidência do ICMS nas

atividades-meio, a exemplo da que realizam os provedores de acesso à internet.

218

STJ, 1ª T., REsp. 402047, Relator Min. Humberto Gomes de Barros, D.J. de 09/12/2003. 219

Em sua Cláusula Primeira está disposto que "Os signatários firmam entendimento no sentido de que se

incluam na base de cálculo do ICMS incidentes sobre a prestação de serviços de comunicação os valores

cobrados a título de acesso, adesão, ativação, habilitação, disponibilidade, assinatura e utilização dos

serviços, bem assim, aqueles relativos a serviços suplementares e facilidades adicionais que otimizem ou

apliquem o processo de comunicação, independentemente da denominação que lhes seja dada." 220

Conforme CORAZZA, Edson Aurélio. ICMS sobre prestações de serviços de comunicação. São Paulo:

Quartier Latin, 2006, p. 87. (destaques do autor). 221

O que confirma o diálogo ou intertextualidade existente entre os jogos de linguagem do direito positivo e da

Ciência do Direito. 222

Conforme Direito Tributário, linguagem e método (2008, p. 657-666).

Page 86: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

84

Portanto, uma norma jurídica será "correta" ou "incorreta", na medida

em que assim for considerada pelo jogo de linguagem da Ciência do Direito, e "válida" ou

"inválida", quando se tratar de juízo expresso no direito positivo.

Page 87: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

85

CAPÍTULO IV – A REGULAÇÃO DA ATIVIDADE INTERPRETATIVA NO

CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL

4.1 As regras de interpretação presentes no Código Tributário Nacional

Rubens Gomes de Sousa223

, ao discorrer sobre a normativização das

soluções jurisprudenciais (súmulas), tece críticas sobre os dispositivos que visam regular a

interpretação no Código Tributário Nacional, por entender que são mecanismos tendentes a

dispensar a atividade intelectual de exegese da lei. Em seu entendimento:

Temos hoje uma tendência um tanto quanto exacerbada para se normativizar a

interpretação e com isto abolir a própria interpretação como atividade intelectual de

aplicação da lei. Em outras palavras, a interpretação se substitui ou se embute na

própria lei mediante a criação de uma segunda norma que interpreta a primeira.

De fato, o esforço tendente a normativizar a interpretação é visto em

nosso direito na atualidade, como confirma a possibilidade de efeito vinculante das súmulas

editadas pelo Supremo Tribunal Federal224

. Porém, não se trata de um dirigismo absoluto, que

transforme a atividade de exegese em mera subsunção lógica. Tais elementos norteadores,

assim como os demais enunciados que encontramos no direito positivo, para alcançar a

condição de norma jurídica apta a regular condutas intersubjetivas, necessitam que o sujeito

construa-lhes o sentido, conforme o uso observado pela comunidade jurídica em determinado

contexto histórico, valorativo e cultural. Após o exegeta atribuir-lhes significado e

compatibilizá-lo com o sistema225

, poderão as regras sobre a atividade interpretativa presentes

no ordenamento servir de parâmetro para o intérprete do direito tributário.

Dessa maneira, concluímos não ser possível abolir a interpretação por

veicular-se enunciados prescritivos que tenham por finalidade sua regulação. Contudo, são

textos que necessitam ser considerados pelo intérprete do direito tributário no percurso

gerador de sentido porque compõem a literalidade dessa área de regulação de condutas.

223

SOUSA, Rubens Gomes de. Normas de interpretação no Código Tributário Nacional. In: MORAES,

Bernardo Ribeiro de et al. Interpretação no Direito Tributário. São Paulo: EDUC/Saraiva, 1975, p. 368-369. 224

Conforme art. 103-A da Constituição Federal, introduzido pela Emenda Constitucional nº 45, de 08/12/2004. 225

Frisamos a compatibilização com o sistema por entendermos que uma correta construção de sentido

normativo deve percorrer percurso que permita juízo de sua constitucionalidade, o que não ocorre, por

exemplo, com o art. 111 do Código Tributário Nacional.

Page 88: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

86

Carlos Maximiliano226

, já nos anos 20 do século passado, havia

tomado consciência da necessidade de interpretação dos dispositivos legais que, em princípio,

teriam a finalidade de regular a atividade exegética e, portanto, sob esse aspecto, em nada

difeririam as demais normas jurídicas. Para o autor,

As regras de Hermenêutica incluídas em um Código têm a mesma força compulsória

que outros preceitos ali consolidados, isto é, variável segundo a evolução; porquanto

devem ser interpretadas também de acordo com as condições sociais. Obrigatórias

em teoria, sofrem alterações sutis a sua aplicabilidade, à medida das necessidades e

conjunturas imprevistas e multímodas da prática e conforme a índole dos

dispositivos em cuja exegese se empregam.

Ricardo Lobo Torres227

, no mesmo sentido, critica os dispositivos

legais inseridos no Código Tributário Nacional que versam sobre o tema e ressalta a

necessidade de que sejam interpretados: "As normas sobre a interpretação e a integração do

Direito são ambíguas, insuficientes ou redundantes. Necessitam elas próprias de

interpretação."

Tathiane dos Santos Piscitelli228

, ao tratar das prescrições contidas no

Código Tributário Nacional, reforça a inexistência de um sentido contido no próprio texto e a

indispensabilidade de interpretação:

A eleição de tais normas como parâmetro de interpretação do direito tributário

somente é possível após a devida interpretação dos dispositivos e a fixação de seu

significado. Isso porque, antes disso, assim como todo o direito positivo, referidas

normas são textos desprovidos de significação que, destarte, necessitam ser

interpretados e cujo sentido será construído por um intérprete.

Portanto, os dispositivos inseridos no Código Tributário Nacional

sobre a interpretação devem trilhar percurso gerador de sentido, sempre dentro de um

contexto histórico, valorativo e cultural. Enquanto texto, em nada destoam das demais

normas. Após estabelecidos seus possíveis significados constituir-se-ão como normas

jurídicas aptas a vincular o intérprete.

226

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 80.

(destaque nosso). 227

TORRES, Ricardo Lobo. Normas de interpretação e integração do direito tributário. 4. ed. rev. e atual. Rio

de Janeiro: Renovar, 2006, p. 21. 228

PISCITELLI, op. cit., p. 47.

Page 89: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

87

4.2 A aplicação das normas jurídicas tributárias: as leis interpretativas

O art. 106, I, do Código Tributário Nacional229

traz a figura da lei

interpretativa e permite sua aplicação a fato pretérito, sem que seja atribuída penalidade às

normas jurídicas construídas em desalinho com o sentido que pretende fixar aos dispositivos

interpretados. Estamos tratando de um texto introduzido no sistema com a suposta função

metalinguística230

de estabelecer como outro já existente deve ser compreendido.

Rubens Gomes de Sousa propugnava pela inexistência de enunciados

prescritivos meramente interpretativos. Na opinião do jurista, ao corrigirem dispositivos em

vigor, na medida em que supririam obscuridades ou omissões, conforme disposto no art. 1º,

§ 4º da Lei de Introdução ao Código Civil231

, constituir-se-iam como lei nova. Decorreria

desse entendimento a impossibilidade de conceder-se efeito retroativo aos dispositivos

denominados meramente interpretativos. Nas palavras do jurista232

:

Ora, a lei interpretativa é, ou pode ser entendida como, correção da lei interpretada,

pelo menos no sentido de sua complementação, porque terá reconhecido que a lei

interpretada carecia de esclarecimento por ser ou omissa, ou obscura, ou confusa,

ou, como dizia Beviláqua, 'hesitante'. Estas premissas pré-legais da lei interpretativa

já demonstram que é uma lei que visa suprir falhas da lei interpretada. Por

conseguinte, ela pode ser reduzida à correção da lei existente, de que fala a Lei de

Introdução, para pôr como norma que a lei que corrige outra considera-se lei nova.

'Ergo', não retroage, ao contrário do que dispõe o art. 106 do Código Tributário

Nacional.

Muito embora sob outros fundamentos, já que compartilhamos da

ideia de inexistência de clareza ou obscuridade na lei que bifurque a atividade do intérprete

em dedutiva ou interpretativa, concordamos com o jurista responsável pelo Anteprojeto do

Código Tributário Nacional. A lei interpretativa é lei nova e, portanto, não deve retroagir,

salvo para beneficiar o contribuinte quando dispuser sobre sanções233

.

A lei interpretativa em nada difere da suposta lei interpretada. Ambas

são textos que carecem de construção de sentido, que se dará no processo interpretativo

229

"Art. 106. A lei aplicar-se-á a ato ou fato pretérito: I – em qualquer caso, quando seja expressamente

interpretativa, excluída a aplicação de penalidade à infração dos dispositivos interpretados." 230

A função metalinguística acontece no interior de um determinado discurso com o objetivo de esclarecer

determinados pontos. Conforme Direito tributário, linguagem e método (op. cit., p. 52-53). 231

Nas palavras do autor: "A Lei de Introdução, não obstante o seu nome incorreto, seria hoje o que chamamos

de Lei Complementar de caráter normativo, não limitada a um determinado ramo do direito, mas abrangente

de todos eles". (op. cit., p. 375). 232

Ibid., loc. cit. 233

Art. 150, III, 'a' da CF/88 e CTN, Art. 116, II.

Page 90: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

88

realizado pelos utentes da linguagem jurídica. Constitui a lei interpretativa suporte físico ou

enunciado de norma que inova o sistema, ao tentar resolver incertezas advindas de

posicionamentos díspares adotados pelos aplicadores do direito, retirando sentidos possíveis

eventualmente dados às leis interpretadas.

Afirmando o caráter inovador da lei interpretativa e a impossibilidade

de sua retroatividade, leciona Pontes de Miranda234

que,

Nas democracias, com o princípio da irretroatividade da lei, a interpretação autêntica

ou nova lei, ou não tem outro prestígio que o de seu valor intrínseco, se o tem; é

interpretação como qualquer outra, sem qualquer peso a mais que lhe possa vir da

procedência: o corpo legislativo somente pode, hoje, fazer lei para o futuro,

ainda que a pretexto de interpretar lei feita.

Dessa maneira, compreendeu o Superior Tribunal de Justiça, ao

decidir pela irretroatividade do artigo 3º da Lei Complementar 118/05. O dispositivo foi

expressamente denominado pelo legislador como interpretativo do art. 168 do Código

Tributário Nacional e determinava como termo inicial do prazo de prescrição para ação de

repetição de indébito dos tributos sujeitos a lançamento por homologação, a data do

pagamento antecipado e não a da homologação de seu lançamento235

. Por se tratar de

dispositivo interpretativo, a teor do art. 106, I, do Código Tributário Nacional, deveria

alcançar fatos já ocorridos, atribuindo-lhe eficácia retroativa.

Com efeito, não foi esse o entendimento da Corte Especial, por

considerar que a Lei Complementar 118/05 introduziu inovações no sistema, alterando os

sentidos possíveis dados ao art. 168, I, do Código Tributário Nacional. Consta do julgado236

que:

Sobre o tema relacionado com a prescrição da ação de repetição de indébito

tributário, a jurisprudência do STJ (1ª Seção) é no sentido de que, em se tratando de

tributo sujeito a lançamento por homologação, o prazo de cinco anos, previsto no

art. 168 do CTN, tem início não na data do recolhimento do tributo indevido, e sim

na data da homologação – expressa ou tácita – do lançamento. Segundo entende o

Tribunal, para que o crédito se considere extinto, não basta o pagamento: é

indispensável a homologação do lançamento, hipótese de extinção albergada pelo

234

MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado. Tomo I. Rio de Janeiro: Borsoi,

1970, p. XIII, conforme exposto em MACHADO, Hugo de Brito. Comentários ao Código Tributário

Nacional. Vol. II. São Paulo: Atlas, 2004, p. 166. 235

A redação do dispositivo da Lei Complementar 118/05 é o seguinte: "Art. 3º. Para efeito de interpretação do

inciso I do art. 168 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional, a extinção do

crédito tributário ocorre, no caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, no momento do

pagamento antecipado de que trata o § 1º do art. 150 da referida Lei". 236

STJ, Corte Especial, AI nos EREsp nº 644.73, Relator Min. Teori Albino Zavascki, julgado em 06/06/2007,

DJ 27/08/2007, p. 170.

Page 91: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

89

art. 156, VII, do CTN. Assim, somente a partir dessa homologação é que teria início

o prazo previsto no art. 168, I. E, não havendo homologação expressa, o prazo para a

repetição do indébito acaba sendo, na verdade, de dez anos a contar do fato gerador.

[...] O art. 3º da LC 118/2005, a pretexto de interpretar esses mesmos enunciados,

conferiu-lhes na verdade, um sentido e um alcance diferente daquele dado pelo

Judiciário. Ainda que defensável a 'interpretação' dada, não há como negar que

a Lei inovou no plano normativo, pois retirou das disposições interpretadas um

dos seus sentidos possíveis, justamente aquele tido como correto pelo STJ,

intérprete e guardião da legislação federal.237

Confirma o julgado citado a teoria de que a lei interpretativa em nada

difere de uma lei nova. Ao sinalizar determinado sentido a ser obedecido pelo intérprete, em

detrimento de outros possíveis, inova o ordenamento jurídico e, portanto, somente poderá

retroagir para o benefício do contribuinte.

4.3 A aplicação das normas jurídicas tributárias: "fato gerador pendente" e "fato

gerador futuro"

Para o construtivismo lógico-semântico, como tentamos demonstrar

nos capítulos anteriores, a linguagem ocupa papel decisivo para o fenômeno jurídico. A

incidência normativa que movimenta o sistema e da qual depende a concreção do direito, está

atrelada a uma série de atos de fala que são comunicados pelas autoridades competentes aos

destinatários da norma238

. Sem essa contínua produção de linguagem não seria possível ao

direito realizar sua finalidade, consistente em estimular os jurisdicionados a agirem de acordo

com comportamentos tidos como valiosos pelo ordenamento jurídico.

Daí decorre que os eventos conotados na norma geral e abstrata

ganham concretude quando se tornam elementos perfeitamente individualizados em

enunciado denotativo, que declara a ocorrência do quanto previsto no mundo fenomênico e o

altera, por intermédio de sua versão em linguagem que o constitui para o direito posto como

fato jurídico. A respeito, Paulo de Barros Carvalho239

ministra a seguinte lição:

A passagem da norma geral e abstrata para a norma individual e concreta consiste,

exatamente, nessa redução à unidade: de classe com notas que se aplicariam a

infinitos indivíduos, nos critérios da hipótese (e também da conseqüência),

chegamos a classes com notas que correspondem a um, e somente um, elemento de

237

Destaques nossos. 238

Paulo de Barros Carvalho afirma que "Falar em incidência normativa, ou subsunção do fato à norma,

portanto, é descrever o processo comunicativo do direito, indicando os elementos participantes da mensagem

legislada." (2008, p. 170). 239

CARVALHO (2010, p. 148).

Page 92: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

90

cada vez. Eis o fato concreto, relatando em linguagem um determinado

acontecimento do mundo.

De tal entendimento deriva a conclusão de que inexiste fato jurídico

sem linguagem. Dito de outra forma: não possuímos acesso direto aos eventos. Para que

conheçamos algo, sempre precisaremos de sua versão em linguagem considerada competente

pelas regras do jogo específico no qual participamos. Assim se dá também no direito. Para

que ele incida, os eventos previstos nas normas gerais e abstratas, ao sucederem enquanto

fatos sociais, recebem tratamento jurídico, isto é, adentram ao sistema por intermédio da

linguagem das provas.

Para fins de aplicação da legislação, outros conceitos do

construtivismo lógico-semântico necessitam ser introduzidos. Trata-se do "tempo do fato" e

"tempo no fato". O primeiro, "tempo do fato", refere-se ao momento no qual é enunciada,

pelo sujeito competente e de acordo com regras procedimentais, norma individual e concreta

que relata a ocorrência do quanto previsto no comando abstrato, constituindo, dessa maneira,

os elementos necessários para sua concreção. É a data, por exemplo, do auto de infração e

imposição de multa lavrado por autoridade administrativa competente, ou ainda, das

informações prestadas pelo contribuinte para fins de recolhimento dos tributos sujeitos ao

lançamento por homologação. Por outro lado, o "tempo no fato", também encontra-se no

enunciado protocolar e seu intuito é declarar quando ocorreu o evento. Trata-se da data em

que auferiu-se a renda, ou ainda, noutro exemplo, o momento em que houve a circulação da

mercadoria.

Portanto, o fato jurídico tributário declara a ocorrência de um evento

(tempo no fato) e constitui situação nova, perfeitamente individualizada, a ser regulada pelo

direito (tempo do fato), do que decorre sua natureza declaratória e constitutiva.

A partir da diferença que se faz entre "tempo do fato" e "tempo no

fato", podemos inferir quais regras devem ser aplicadas para a constituição do fato jurídico

tributário. Sob o ponto de vista do direito material, o exegeta deve tomar as disposições

vigentes por ocasião do sucesso do "tempo no fato". Para as disposições de natureza

instrumental, aplicamos as regras vigentes no "tempo do fato", conforme leitura que fazemos

dos artigos 1º e 6º da Lei de Introdução ao Código Civil e artigo 116 do Código Tributário

Page 93: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

91

Nacional.240

Oportuna a constatação de que eventual norma já revogada no momento da

enunciação do "tempo do fato" poderá ser aplicada aos eventos ocorridos no instante temporal

que denominamos "tempo no fato", na medida em que se trata de norma válida e vigente para

o passado241

.

Essas palavras introdutórias servem de esteio para justificar nossa

interpretação do artigo 105 do Código Tributário Nacional. Segundo o dispositivo: "A

legislação tributária aplica-se imediatamente aos fatos geradores futuros e aos pendentes,

assim entendidos aqueles cuja ocorrência tenha tido início mas não esteja completa nos

termos do artigo 116."

Em nosso modo de compreender o fenômeno da interpretação e

aplicação do direito, somente haverá fato jurídico no momento em que o evento adentra ao

sistema com roupagem linguística apropriada, de acordo com as regras nele previstas,

procedendo a afirmação de que todo fato jurídico é instantâneo. Enquanto isso não ocorrer,

existirá um fato social ainda não alcançado pelo direito, na medida em que sua linguagem não

tem função prescritiva, isto é, as palavras que o relatam pertencem a outra forma de vida.

O intérprete do direito posto, ao se deparar com o fato social, o valora,

subsumindo-o à norma geral e abstrata. E, para que essa atividade seja conhecida pelo

destinatário que terá sua conduta regulada por aquele juízo, não pode cingir-se a uma

atividade mental. É imperioso que se produza um ato comunicativo segundo as regras do

direito, sendo esse o exato momento da constituição do fato jurídico tributário. Antes disso,

nada existe para o jogo de linguagem do direito.

Portanto, como se percebe, os conceitos de "fato gerador"242

pendente,

tido como aquele que, muito embora tenha sido iniciado, ainda não se completou e "fato

240

Observamos que para o construtivismo lógico-semântico a incidência e a aplicação do direito ocorrem no

mesmo momento, isto é, na formulação em linguagem competente para o direito de norma individual e

concreta. Essa é a razão de se trabalhar com os conceitos de "tempo no fato" e "tempo do fato" para fins de

eleger-se a lei que irá regular a conduta. 241

Nas palavras de Paulo de Barros Carvalho: "Tenho para mim que a regra ab-rogada permanece válida no

sistema até que se cumpra o tempo de sua possível aplicação. [...] Com a regra ab-rogatória, corta-se a

vigência da norma por ela alcançada, de tal arte que não terá mais força para juridicizar os fatos que vierem a

ocorrer depois da ab-rogação. Continua, porém, vigente para casos anteriores, sendo-lhes perfeitamente

aplicável. (2007, p. 61). 242

A expressão "fato gerador" é vaga e ambígua, possuindo vários sentidos. Ora pode ser compreendida como

norma geral e abstrata, ora como norma individual e concreta, além de traduzir uma impropriedade, na

medida em que não é o fato que gera, ele sempre é gerado. Por essas razões, adotamos a expressão fato

jurídico tributário para nos referirmos ao antecedente da norma individual e concreta que resultará no

nascimento da obrigação tributária.

Page 94: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

92

gerador futuro", ou não ocorrido, se tornam um contrassenso, constituindo-se em inescusável

mistura do plano jurídico com o plano social.

O conceito legal de "fato gerador" pendente e futuro, conforme

exposto no art. 105 do Código Tributário Nacional, tem como fundamento tese doutrinária

que considera a existência de fatos instantâneos e complexos ou "complexivos". Segundo

Fábio Fanucchi243

, para as exações com "fato gerador" instantâneo, a exemplo do IPI, que

incidiria na saída do bem tributável do estabelecimento industrializador, "A tributação se

verifica concomitantemente com o acontecimento econômico que torna manifesta a

capacidade contributiva do sujeito passivo".

Por outro lado, prossegue o renomado jurista244

: "Para os tributos de

fato gerador complexo, ainda existe a necessidade de fixação de um instante como de

consolidação dos elementos integrantes do fato gerador para que se marque, por esse instante,

a legislação em vigor, aplicável à obrigação tributária então completada."

O jurista toma como exemplo o imposto sobre a renda e proventos de

qualquer natureza e afirma que seu "fato gerador" seria complexo, por ser formado durante

todo o ano-base, não havendo expressa determinação do exato momento de sua ocorrência.

Todavia, preferimos a lição de Paulo de Barros Carvalho245

. Por

discriminar fato e evento, distingue o jurídico do social, permitindo ao exegeta aferir o exato

momento em que nasce o fato jurídico, conferindo maior segurança à aplicação do direito

tributário. Para o doutrinador246

:

Todos os acontecimentos que o sistema jurídico prevê, para a eles ligar certas e

determinadas conseqüências, têm importância apenas e tão somente quando se

realizam. Antes disso, e por mais próximos que estejam de sua concretização,

representam sucessos aos quais o direito se mostra indiferente, por não contemplá-

los em sua ordenação. [...] Os 'fatos geradores pendentes' são eventos jurídicos

tributários que não ocorreram no universo da conduta humana regrada pelo direito.

Poderão realizar-se ou não, ninguém o sabe. Acontecendo, efetivamente, terão

adquirido significação jurídica. Antes, porém, nenhuma importância podem espertar,

assemelhando-se, em tudo e por tudo, com os 'fatos geradores futuros'

Analisemos o imposto sobre a renda. Parte da doutrina e da

jurisprudência considera que o fato jurídico tributário da exação é continuado, ou seja, "a

243

FANUCCHI, Fábio. Curso de direito tributário brasileiro. 4 ed. São Paulo: Editora Resenha Tributária e

Instituto Brasileiro de Estudos Tributários, 1976, p. 150. 244

Ibid., p. 150. 245

CARVALHO, 2010, p. 125. 246

CARVALHO, 2007, p. 125.

Page 95: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

93

partir do dia 1º de janeiro e até 31 de dezembro, ele poderia ser considerado um fato gerador

pendente"247

, o que o tornaria complexo. Todavia, há de se considerar que o direito elege um

exato momento para a apuração da existência de riqueza nova, isto é, o dia 31 de dezembro,

conforme consenso hoje existente em nossos Tribunais248

. Todos os outros fatos ocorridos

não importam para fins de tributação do imposto sobre a renda, exceto a situação desta data,

que se constituirá como o "tempo no fato" para fins de composição de fato jurídico tributário

que figure no antecedente de norma individual e concreta.

Em suma, no tocante à aplicação do direito tributário, entendemos que

o art. 105, do CTN, somente poderia referir-se a fatos jurídicos, estes sempre instantâneos. A

norma geral e abstrata em que o intérprete subsume os fatos com o intuito de alcançar a renda

nova, sob a óptica do direito material, será a vigente na ocasião da ocorrência do evento

(tempo no fato). Pelo prisma do direito instrumental, a norma geral e abstrata aplicada será a

que estiver em vigor no instante que o enunciado protocolar for introduzido no sistema

(tempo do fato).

4.4 Interpretação e integração do direito tributário

Compreende parte da doutrina, que a integração consiste no

preenchimento das lacunas ou incompletudes do ordenamento jurídico, entendidas estas como

a ausência de disposições expressas para regular determinado caso. Nessa visão, o intérprete,

ao se deparar com o vazio legislativo, cria o direito na atividade integrativa, ao invés de

meramente declará-lo ao extrair de um texto a vontade da lei ou do legislador, como se daria

no exercício interpretativo249

. Leciona Hugo de Brito Machado250

que,

Segundo a doutrina tradicional, a interpretação é atividade lógica pela qual se

determina o significado de uma norma jurídica. O intérprete não cria, não inova,

limitando-se a considerar o mandamento legal em toda sua plenitude, declarando-lhe

247

MACHADO, 2004, p. 158-159. 248

Conforme art. 83 do RIR (Decreto 300/99). A título de exemplo transcrevemos a seguinte Ementa:

"TRIBUTÁRIO. IRPF. RESTITUIÇÃO. CÁLCULO. Sendo o Imposto de Renda tributo com fato gerador

complexivo, apurado sempre no último dia de cada exercício, a maneira adequada de ser restituído o

indébito é tomando o montante retido no ano, corrigido monetariamente, e confrontando-o com o resultado

apurado na declaração de ajuste relativa ao período em comento. Realizada a compensação devida, eventual

saldo deve ser atualizado pela SELIC até o momento da execução. (TRF 4ª Região, AC 2006.71.00.027395-

3, Segunda Turma, Relator Eloy Bernst Justo. D.E 30/01/2008). (destaque nosso). 249

Nesse sentido, afirma Carlos Maximiliano: "Com prescrever ao juiz, ora implícita, ora explicitamente

(Código Civil, antiga Introdução, arts. 5º e 7º, hoje 3º e 4º), que, em determinados casos, recorra à equidade,

ou aos princípios gerais do Direito, de certo modo o elevam às funções de legislador […]". (2008, p. 51). 250

Op. cit., p. 213-214.

Page 96: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

94

o significado e o alcance. Pode acontecer, porém, que o intérprete entenda não

existir uma regra jurídica para regular certa situação, e que, neste caso, é necessário

o recurso a um meio de integração do sistema jurídico que se mostra lacunoso.

Integração, portanto, é o meio de que se vale o aplicador da lei para tornar o sistema

jurídico inteiro, sem lacuna. Não é atividade de simples declaração do sentido da

norma, como a interpretação, mas atividade criadora, embora esse processo criativo

esteja diretamente vinculado a normas preexistentes.

Não nos parece, contudo, que o construtivismo lógico-semântico

compartilhe do critério da doutrina tradicional para distinguir interpretação de integração, isto

é, a ideia de atividade declarativa ou criadora. Relembramos existir discrímen crucial entre a

doutrina clássica e o método adotado para nossa pesquisa: a consciência de que a norma

jurídica apta a regular conduta não é extraída de um único enunciado prescritivo revelador da

vontade da lei ou do legislador; mas, sim, construída a partir de sua leitura, envolvendo outros

dispositivos no transcorrer do percurso gerador de sentido, não sendo provável, inclusive, a

identidade entre o texto que marcou o início da construção e a norma na sua integralidade. A

atividade do intérprete é realizada em contexto histórico-cultural no qual está imerso, não

configurando-se como o simples produto de mera subsunção lógica.

A diferença apontada nos permite vislumbrar a inexistência de uma

singela declaração da vontade da lei ou do legislador na atividade interpretativa ou, tampouco,

a ocorrência de atividade legislativa reservada à integração. Em ambas as situações o

intérprete trilha um processo que permite atribuir sentido a textos presentes no ordenamento.

Vistas a partir da necessidade de construção de sentido dos enunciados

de direito positivo, as atividades, em certa medida se confundem, conforme reconhece

Luciano Amaro251

, ao considerar que "o uso de instrumentos de integração pressupõe a

interpretação, para que se possa firmar a premissa (condicionante da integração) de que a lei é

lacunosa".

Além disso, os meios de integração que constam do direito posto

também são utilizados pelo exegeta, mesmo quando não se verifica a ausência de preceito que

se refira especificamente a determinada conduta. O sujeito/intérprete, para realizar sua

construção normativa, se fundará em raciocínios analógicos, buscando a semelhança entre

fatos e normas; também se pautará nos princípios que informam todo o ordenamento, por

constituírem valores que o direito pretende realizar.

251

Op. cit., p. 206.

Page 97: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

95

Dessa maneira, em sentido amplo, podemos afirmar que a atividade

integrativa é expediente utilizado pelo exegeta para compreender o direito posto, tratando-se,

pois, de interpretação. Porém, apesar das coincidências entre ambas as atividades, num

esforço analítico, é possível vislumbrar diferença específica que justifique a existência dos

dois conceitos.

Para melhor explicar nosso raciocínio, tomamos como objeto de

análise a lista anexa à Lei Complementar 116/03. Já decidiu o Superior Tribunal de Justiça

por sua taxatividade252

, ressalvando a hipótese de interpretações extensivas253

relacionadas à

vaguidade e ambiguidade de seus termos, mas que preservam uma relação de sinonímia entre

os vocábulos a serem interpretados.

Concluir-se pela impossibilidade de distinção entre a atividade

interpretativa, estabelecida como atribuição de sentido, e a integração analógica permitiria que

qualquer atividade semelhante e não sinônima às que constam da lista sofresse o impacto do

ISS. Bastaria justificar a interpretação feita em um dos itens da lista e argumentar pela

ambiguidade e vaguidade da linguagem que estaria, supostamente, preenchido o requisito da

legalidade. Não acreditamos ser admissível esse entendimento, afinal há sentidos possíveis e

não possíveis de um texto, conforme consenso advindo do uso da linguagem jurídica pela

comunidade de participantes.

Dito de outra maneira, se dentro das possibilidades de sentido de um

determinado texto que veicula o tributo não houver uma que contemple determinado evento

que se quer regular, necessitando o intérprete construir norma individual e concreta

fundamentado na semelhança com outros fatos regulados, ou ainda, exclusivamente em

princípios, estaremos diante de uma atividade integrativa.

Portanto, na integração o preceito específico está ausente. O exegeta,

para produzir a norma jurídica individual e concreta, de início não se depara com uma norma

252

Como exemplo, citamos julgamento do Resp 586739/MG, Segunda Turma, DJ 19/09/2005, p. 262, Rel. Min.

Castro Meira, cuja Ementa encontra-se assim enunciada: "TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. ISS.

LISTA DE SERVIÇOS. TAXATIVIDADE. INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA. POSSIBILIDADE. 1.

Embora taxativa, em sua enumeração, a lista de serviços admite interpretação extensiva, dentro de cada item,

para permitir a incidência de ISS sobre serviços correlatos àqueles previstos expressamente. Precedentes do

STF e dessa Corte [...]". 253

Não concordamos com o conceito de "interpretação extensiva", que veicula ideia de extensão feita pelo

sujeito/intérprete de um sentido fixado no texto. Compreendemos que seu emprego deve ser utilizado apenas

para ressaltar a vaguidade e ambiguidade da linguagem jurídica, conforme vislumbramos no julgado citado.

Page 98: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

96

geral e abstrata para subsumir o evento, estando obrigado a executar um esforço hermenêutico

ainda maior de análise e associação com outras normas do sistema.

Com efeito, vários enunciados prescritivos são necessários para a

construção da norma jurídica. Ainda que nos planos de significação dos enunciados (S2) e da

articulação do juízo hipotético-normativo (S3), o sujeito/intérprete permaneça unicamente no

texto do qual partiu para a construção de sentido (S1), precisará relacionar a norma obtida

com o sistema (S4). Nesse estádio, necessariamente, outros textos estarão atuando, ainda que

para confirmar a procedência da norma jurídica e o caminho trilhado pelo exegeta nos planos

anteriores. Na integração, contudo, esse percurso se torna mais árido justamente porque, numa

primeira análise, o plano da literalidade do direito, quando comparado ao fato, não permitiria

a subsunção. Será necessário ao exegeta maior esforço, que terá como único arrimo a

utilização de expedientes como a analogia, a equidade e os princípios, para justificar a

construção normativa em textos mais vagos e ambíguos, quando comparado com o evento.

Ricardo Lobo Torres, ao discorrer sobre o discrímen feito pelo

legislador do Código Tributário Nacional entre interpretação e integração, aponta o critério

distintivo entre esses dois institutos. Em suas palavras254

:

A grande diferença entre interpretação e integração, portanto, está em que, na

primeira, o intérprete visa estabelecer as premissas para o processo de aplicação

através do recurso à argumentação retórica, aos dados históricos e às valorizações

éticas e políticas, tudo dentro do sentido possível do texto; já na integração, o

aplicador se vale dos argumentos de ordem lógica, como a analogia e o argumento 'a

contrario', operando fora da possibilidade expressiva do texto da norma.

Apesar de considerarmos que, tanto na atividade integrativa como na

interpretação, o sujeito se vale de argumentos lógicos, retóricos e valorativos, concordamos

com o doutrinador, ao adotar como critério distintivo a possibilidade expressiva do texto da

norma. No ato de integrar ou no de interpretar o direito posto, o exegeta parte de textos,

contendo eles disposições expressas que permitem a subsunção do fato à norma, de forma

mais direta, como ocorre na interpretação, ou ainda, toma como ponto de partida outros

enunciados, mais vagos e ambíguos, com o intuito de integrar o sistema e regular o caso que

se apresenta. Nas duas circunstâncias necessitará construir a norma de forma sistemática,

tratando-se de uma única atividade, qual seja, atribuir sentido aos dispositivos de lei. O que

varia entre as atividades em análise é o grau de consenso sobre a possibilidade de sentido

atribuível ao texto. Na interpretação, a norma é construída mais facilmente, o exegeta se

254

Op. cit., p. 32. (destaques nossos).

Page 99: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

97

depara já num primeiro momento com enunciados que lhe possibilitam a subsunção do fato,

muito embora se lhe possam atribuir diversos sentidos. Na integração, isso não ocorre de

início. A norma, produto da atividade integrativa, é justificada em textos ainda mais vagos e

ambíguos, que não podem ser associados especificamente ao fato que se apresenta.

Pois bem, vejamos trecho do seguinte acórdão que tomamos como

exemplo a ser analisado, a fim de melhor explicar nosso ponto de vista255

: "A taxa dos juros

de mora na repetição do indébito deve, por analogia e isonomia, ser igual à que incide sobre

os correspondentes débitos tributários estaduais ou municipais; e a taxa incidente sobre esses

débitos deve ser de 1% ao mês".

No plano da literalidade (S1), o intérprete do exemplo adotado,

detectou a falta de disposição expressa específica que indicasse qual a taxa de juros a ser

aplicada na repetição de indébito. Em momento seguinte, socorreu-se de outro texto (S1)

pertencente ao sistema, que regula a incidência de juros, porém, para os tributos devidos e a

partir desse segundo enunciado, percorrendo os demais planos do percurso gerador de sentido,

justificou sua construção em princípios do direito, mais especificamente a isonomia (art. 5º, II

e 150, I, da Constituição Federal), cumprindo a autoridade competente com sua obrigação de

regular a conduta.

Tomando-se o raciocínio interpretativo enquanto processo,

verificamos a prática de analogia, porquanto o sujeito se deparou com a ausência, em primeiro

momento, de preceito autorizador de incidência de juros que pudesse ser associada à conduta

imposta ao Fisco, consistente em devolver quantia paga indevidamente a título de tributo.

Porém, somente num primeiro instante, pois no próprio ordenamento havia disposições

aplicáveis a casos semelhantes, bem como princípios capazes de fundamentar a norma

jurídica. Assim, a norma foi construída a partir de um dispositivo literal que somente pôde ser

associado ao fato (juros de mora aplicados ao valor indevidamente pago pelo contribuinte) por

um esforço interpretativo maior, justificando-se a decisão em outros enunciados, inclusive os

que veiculam princípios jurídicos, como a isonomia.

255

STJ, 2ª Turma, Recurso Especial nº 895180/PR, Relator Ministro Humberto Martins. Data de publicação:

30/09/2010. Nos autos, discute-se qual o termo inicial e a taxa de juros a ser aplicada na ação de repetição de

indébito de contribuições previdenciárias.

Page 100: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

98

Os doutrinadores comumente justificam a necessidade de integração

pautados na ideia de lacuna do ordenamento jurídico256

. Contudo, de acordo com nosso

pensamento, toda a construção normativa deve ser amparada em um enunciado prescritivo

pertencente ao sistema, devido ao princípio da legalidade (art. 5º, II e 150, I, da Constituição

Federal). Por esse prisma, a ideia de lacuna fica desde o início enfraquecida, na medida em

que o intérprete não está cingido a um único texto cuja expressão esteja especificamente

relacionada ao caso que se pretende regular, podendo fundamentar a norma em várias

disposições do ordenamento. Isto é, sua construção normativa sempre estará pautada em um

enunciado prescritivo com menor ou maior grau de vaguidade a depender da atividade

interpretativa ou integrativa.

Essas digressões justificam o entendimento que, sob o ponto de vista

exclusivamente lógico inexistiria lacuna a ser preenchida. O sujeito/intérprete, tanto na

interpretação como na atividade integrativa, precisará fundamentar a norma jurídica em

enunciados que compõem a estrutura do sistema. Estas, por sua vez, são movimentadas no

sentido de atribuir à conduta uma permissão P(p), obrigação O(p) ou vedação V(p). A

completude lógica do ordenamento é explicada por Lourival Vilanova257

:

Essa pretensão de exaustividade com que o sistema abrangeria qualquer conduta

possível, sendo completo, porque nenhuma conduta restaria deonticamente neutra,

decorreria do ser mesmo do deôntico, da estrutura lógica e ontológica do Direito. O

universo-da-conduta, que é ocorrência tempo-espacial, está, face a um sistema de

normas, com seu âmbito-de-validade temporal e espacial, suficientemente repartido

em conduta obrigatória, em conduta proibida ou vedada e em conduta permitida [...].

Empiricamente, confirmamos a tese do construtivismo lógico-

semântico consistente na completude sintática do ordenamento jurídico, pelo princípio da

vedação ao "non liquet", estabelecido no artigo 4º da Lei de Introdução do Código Civil, que

obriga a autoridade competente decidir o caso, mesmo quando a lei for omissa, utilizando-se

da analogia, dos costumes e dos princípios gerais do direito. O comando é reiterado no artigo

108 do Código Tributário Nacional. Compreendemos, assim, que, caso a jurisdição258

seja

256

Unicamente a título de exemplo, citamos Ives Gandra da Silva Martins, que, ao comentar o artigo 108 do

Código Tributário Nacional, afirma que, "Em verdade, no decorrer do estudo, ligamos a 'ausência de

disposição expressa' ao problema da lacuna, aliás dos mais tormentosos, inclusive no direito comparado".

(MARTINS, Ives Gandra da Silva. Comentários ao Código Tributário Nacional. Vol. 2. São Paulo: Saraiva,

1998, p. 111). 257

Op. cit., 2005, p. 204. (destaques do autor). 258

Por "jurisdição", entendemos o dever do Estado de dizer o direito, não se tratando somente de atribuição

conferida ao Poder Judiciário, mas a toda autoridade competente, como é o caso no direito tributário, dos

tribunais administrativos. Nesse sentido, CONRADO, Paulo César. Processo Tributário. São Paulo: Quartier

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99

provocada, a autoridade competente terá que movimentar o direito posto para emitir comando

proibindo, permitindo ou obrigando determinada conduta debatida no processo. Portanto, a

inexistência de lacunas, sob o ponto de vista exclusivamente sintático, nos parece uma

exigência do próprio sistema. Trata-se de uma regra que rege o jogo de linguagem do direito,

ao modo de dizer de Wittgenstein.

Todavia, semanticamente o ordenamento é aberto e, portanto,

completível. Primeiramente, porque a aplicação do direito não se dá de forma automática. As

hipóteses previstas pelo legislador necessitam ser interpretadas e individualizadas e, nesse

sentido, são preenchidas pelo sujeito/aplicador do direito, que se depara com a vaguidade e a

ambiguidade dos preceitos normativos. Dessa forma, os intérpretes introduzem novos

significados que serão aceitos ou rechaçados pela comunidade dos utentes da linguagem

jurídica. Em segundo lugar, não estamos diante de um sistema que a priori tudo previu nas

hipóteses normativas. O aspecto social é sempre muito dinâmico, encontrando-se em

constante estado de mutação, o que desafia com frequência os aplicadores do direito a

apresentar soluções jurídicas antes não necessárias. Nas lições de Vilanova259

:

Se o órgão julgador inova algo, mesmo quando aplica norma geral preexistente, se

cria, habilitado pelo próprio ordenamento, norma individual para o caso, sem arrimo

em norma substantiva geral prévia (nunca sem norma geral adjetiva e sem norma-

de-competência: é juiz em virtude de norma-de-competência e atua com normas

processuais), então, o Direito, como todo, como totalidade, por assim dizer, em

movimento, em rigor é incompleto, mas potencialmente integrável, tem

completabilidade.

A assertiva da completabilidade do ordenamento pode ser comprovada

no direito posto. A Lei de Introdução ao Código Civil, artigo 4º e o artigo 108 do Código

Tributário Nacional, ao mesmo tempo em que não admite a negativa de prestação

jurisdicional, determina à autoridade competente ao aplicar a lei, em caso de ausência de

disposição expressa, a utilização da analogia, dos princípios e da equidade, que configuram-se

como instrumentos de integração, isto é, de completabilidade do sistema.

De acordo com nossa perspectiva, somente dessa forma poderíamos

explicar a ideia de lacuna. Vale dizer, não se trata de simples ausência de preceito específico

apto a regular dada conduta. É necessário ir além e unir o denominado "vazio legislativo" à

ideia da imprecisão característica da linguagem que gera incertezas na aplicação do direito.

Latin, 2004, p. 35. O autor fala de dever estatal predominantemente cometido ao Poder judiciário,

amenizando a ideia de exclusividade. 259

Op. cit., 2005, p. 219.

Page 102: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

100

Isto é, sempre deverão existir enunciados prescritivos que suportam a norma jurídica,

evidenciando a inexistência de vazio legislativo, do ponto de vista exclusivamente sintático.

Porém, a vaguidade e a ambiguidade que se encontram potencialmente presentes em todas as

palavras tornam o sistema completível e, portanto, lacunoso. Podemos notar a assertiva na

maior facilidade, ou ainda, na impossibilidade de associação entre o enunciado e dado

comportamento260

, que sucede em algumas circunstâncias. Por outro lado, se o intérprete não

conseguir justificar sua decisão num enunciado presente no ordenamento jurídico não há que

se falar em lacuna, mas de decisão arbitrária que tende a ser invalidada pelos mecanismos

presentes no ordenamento jurídico em virtude da inobservância do princípio da legalidade.

4.5 A inexistência de hierarquia e taxatividade na aplicação do artigo 108 do Código

Tributário Nacional

O legislador, no artigo 108 e incisos do Código Tributário Nacional,

pretendeu veicular de forma hierárquica e taxativa os meios de preenchimento das lacunas261

.

Rubens Gomes de Sousa262

, ao comentar o dispositivo citado, leciona que, diferentemente do

artigo 4º da Lei de Introdução do Código Civil, o dispositivo em tela fixa uma ordem a ser

observada: "Este é o ponto importante: 'na ordem indicada'. [...] Se ele fixa uma ordem de

prioridades, deve-se inferir que a sua enumeração é taxativa. Do contrário, não haveria razão

para fixar precedências."

Tomando-se como correto tal raciocínio, o intérprete, ao lidar com as

lacunas da legislação, teria que, primeiramente, servir-se da analogia e, somente após, dos

princípios tributários e demais expedientes. Porém, não vislumbramos como hierarquizar, de

forma taxativa, a atividade integrativa. Para construir a norma apta a regular a conduta, o

intérprete se utilizará de todos os expedientes que se fizerem possíveis e necessários, de modo

sistemático. No exemplo acima citado, o Ministro não poderia solucionar o caso aplicando a

mesma taxa de juros de mora para o indébito tributário que incide sobre o inadimplemento do

contribuinte, utilizando-se somente de analogia, sem observar os princípios, pois justamente a

isonomia é que fundamenta e permite sua decisão. Por outro lado, em situação hipotética que

260

A associação direta da qual falamos se dá entre linguagens. De um lado, a linguagem da norma; de outro, a

dos fatos. 261

"Art. 108. Na ausência de disposição expressa a autoridade competente para aplicar a legislação tributária

utilizará, sucessivamente, na ordem indicada: I – a analogia; II – os princípios gerais do direito tributário;

III – os princípios gerais do direito público; IV – a eqüidade." (destaque nosso). 262

Op. cit., p. 376.

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101

foge ao exemplo dado, o julgador, não poderia deixar de observar um princípio, privilegiando

a analogia, mesmo que essa tenha preeminência no enunciado do artigo 108 do Código

Tributário Nacional.

Paulo de Barros Carvalho263

, ao tratar da interpretação no direito

tributário positivo, assim leciona:

O art. 108 arrola quatro itens que serão sucessivamente aplicados pela

autoridade competente, na ausência de disposição expressa da lei interpretada. O

preceito tem endereço certo: a autoridade competente para aplicar a legislação

tributária, seja ele o funcionário da Fazenda, seja o órgão judicial que preside o

feito. Na verdade, qualquer deles sentir-se-á embaraçado ao ter de empregar a

analogia sem levar em consideração os princípios gerais de direito tributário, os

princípios gerais de direito público e a equidade. E, da mesma forma, ficarão

perplexos ao lançar mão dos outros sem ligá-los aos demais itens. Tudo porque

se esqueceu o legislador do Código que essa atividade é complexa, alimentando-

se de todos os recursos disponíveis no sistema, que agem simultaneamente sobre

o espírito do exegeta.

No mesmo sentido, as palavras de Luciano Amaro264

:

A hierarquização, à qual o Código Tributário Nacional quer subordinar os

instrumentos de integração, é inaceitável, porquanto pode ensejar equívocos de

quem, desatentamente, se ponha a aplicar de modo mecânico o preceito codificado.

Parece indiscutível que, se o emprego da analogia não se adequar à inteligência que

resulta da aplicação de um princípio, a prevalência há de ser deste, e não da analogia

(embora esta encabece o rol do art. 108).

Portanto, concluímos pela impossibilidade de interpretar-se

literalmente o artigo 108 e incisos do Código Tributário Nacional, refutando a ideia de

taxatividade e hierarquização dos instrumentos integrativos que nele constam. O exegeta parte

dos textos de direito e constrói seu sentido numa visão sistemática, de acordo com os usos em

determinado contexto jurídico, o que se coaduna com os pressupostos para a interpretação do

direito tributário que apontamos.

4.6 A vedação ao uso da analogia para criação de tributo

A analogia é conceito jurídico utilizado pelo artigo 108 do Código

Tributário Nacional com a finalidade de suprir as denominadas lacunas, entendidas estas

como a ausência de texto que se refira especificamente à regulação de determinada conduta, o

que em nossa óptica mantém estreita relação com a potencial vaguidade e ambiguidade das

263

Op. cit., 2010, p. 135. 264

Op. cit., p. 210.

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102

palavras. O intérprete, nessas situações, terá que acentuar seu esforço, procurando sustentar

uma possível construção normativa a partir de outros textos do ordenamento, que não

permitem fazer alusão ao evento específico, mas que com ele guardam pertinência.

Para melhor compreendermos a analogia no direito tributário,

servimo-nos, primeiramente, de uma explicação lógica feita por Irving M. Copi, que parece

esclarecer a estrutura desse raciocínio. Para o autor265

, "Traçar uma analogia entre duas ou

mais entidades é indicar um ou mais aspectos em que elas são semelhantes".

Prossegue em suas lições266

discorrendo sobre argumentação

analógica:

Esquematicamente, se 'a', 'b', 'c', e 'd' forem quaisquer entidades, e 'P', 'Q' e 'R' forem

quaisquer propriedades ou 'aspectos', um argumento analógico poderá ser

representado da seguinte forma:

'a', 'b', 'c', 'd' têm todos as propriedades P e Q.

'a', 'b', 'c' têm todos a propriedade R.

Portanto, 'd' tem a propriedade R.

Na utilização da analogia para regular os juros na repetição de

indébito, por exemplo, pudemos inferir que a semelhança de que fala Copi encontrava-se nas

partes (Fisco e contribuinte) e na situação de ambas possuírem uma dívida de natureza

tributária. Se ao crédito tributário, por disposição legal, se aplica juros de mora de 1% ao mês,

e se com relação ao débito do Fisco para o contribuinte não há dispositivo específico, tendo

em vista as semelhanças apontadas, o mesmo índice deve ser eleito, em virtude do princípio

da igualdade.

Portanto, ao decidir utilizando-se da analogia, o sujeito/intérprete

aplica a um fato (F1) não regulado por um preceito específico, uma norma geral e abstrata

(N2) que, em tese, disciplinaria somente outro fato (F2), que guarda semelhança relevante

com o primeiro. Por relevante, consideramos a semelhança entre os fatos que tenha sido a

razão de decidir pela aplicação da norma (N2) ao fato (F2).

Sydnei Sanches267

, ao lecionar sobre o tema, bem esclarece a analogia.

Para o jurista,

265

COPI, Irving M. Introdução à lógica. Tradução de Álvaro Cabral. 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1978, p. 315. 266

Op. cit., p. 315.

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103

Analogia consiste em aplicar a uma hipótese, não prevista especialmente em lei,

disposição relativa a caso semelhante. Pressupõe semelhança de relações. Mas o

recurso à analogia exige a concordância dos seguintes requisitos:

a) é indispensável que o fato considerado [...] tenha sido tratado [...] especificamente

pelo legislador;

b) este, todavia, regulou a situação que apresenta certo ponto comum de contato,

certa coincidência ou semelhança com a não regulada;

c) a regra adotada pelo legislador para a situação regulada, levou em conta,

sobretudo, aquele mesmo ponto comum, de coincidência ou semelhança, com a

situação não regulada (em suma, a 'ratio iuris' deve ser a mesma para ambas as

situações).

Lourival Vilanova268

, nesse sentido, afirma que "A semelhança que

funda o recurso à analogia não é algo meramente factual: é o dado-de-fato juridicamente

qualificado como semelhante."

Das lições dos juristas, destacamos a necessidade de que o perfil de

semelhança, que autoriza a integração analógica, seja correspondente à razão de decidir

ensejou a aplicação da norma ao fato regulado. Isto é, não se trata de qualquer ponto em

comum. Segundo Oswaldo de Moraes269

, com base em François Gény, "Constitui decorrência

da necessidade de igualdade jurídica em virtude da qual as mesmas situações de fato

acarretam as mesmas conseqüências jurídicas".

No exemplo que utilizamos, corresponderia à existência de uma

dívida tributária por parte do contribuinte (situação regulada) e um débito do fisco de natureza

tributária, cuja regulação específica inexistia no ordenamento. Como se percebe, o que motiva

a aplicação da norma a ambos os fatos é a mesma situação (existência de débito), que levaria

à mesma consequência, qual seja, a aplicação de juros de mora em ambos os casos, e não

somente a favor do fisco.

O tema da analogia no direito tributário traz controvérsias, tendo em

vista a vedação contida no § 1º, do artigo 108, do Código Tributário Nacional, consistente na

impossibilidade de seu uso para criar tributo não previsto em lei, que está em consonância

com o princípio da legalidade insculpido nos artigos 5º, II e 150, I, da Constituição da

República.

267

SANCHES, Sydney. Os contratos atípicos no campo do direito privado. Diário do Comércio & Indústria.

coluna Legislação e Tribunais, 06 e 07 abr. 1988, apud CASSONE, Vittorio. Interpretação no direito

tributário. Teoria e Prática. São Paulo: Atlas, 2004, p. 390. 268

Op. cit., 2005, p. 218. 269

MORAES, Oswaldo de. A analogia no direito tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1965, p. 58.

Page 106: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

104

Porém, antes de abordarmos a vedação ao uso da analogia para

introduzir-se novo tributo no sistema, necessário se faz estabelecer as diferenças entre esse

conceito e o da interpretação extensiva, que são muito próximos e podem acarretar certa

confusão ao exegeta. Tomando como critério dispositivo que se refira especificamente à

conduta, verificamos sua inexistência na analogia. O intérprete, nessas situações, terá que

justificar sua construção normativa a partir de textos mais vagos e ambíguos, presentes no

ordenamento. Por outro lado, na interpretação extensiva, o significado da norma jurídica pode

ser construído a partir de um texto que se refira especificamente ao comportamento, nos

lindes de sua vagueza e ambiguidade.

Oswaldo Moraes270

distingue duas espécies de analogia: por extensão

e por compreensão. Leciona que

A primeira [analogia por extensão], partindo de um texto de lei, cria uma norma

jurídica nova e a aplica a uma situação diferente da prevista na lei; a segunda é a

que, partindo de um texto de lei, faz incluir nêle as situações análogas, embora não

expressamente referidas no texto.

Portanto, a denominada analogia por extensão, ou simplesmente

analogia, como hodiernamente denominada, enquanto método integrativo, não é apta, em

virtude do princípio da legalidade, a criar tributo novo, sem dispositivo legal específico para a

hipótese. É vedado seu uso em nosso ordenamento para essa finalidade, conforme disposição

expressa do artigo 108, § 1º, do Código Tributário Nacional. Por sua vez, a analogia por

compreensão, também denominada interpretação extensiva, permaneceria nos limites de

significação do texto, nada criando de novo.

No mesmo sentido são os comentários de Leandro Paulsen271

:

Não se pode confundir a analogia com a chamada interpretação extensiva. Na

analogia, há integração da legislação tributária mediante a aplicação da lei a situação

de fato nela não prevista, embora semelhante àquela à qual a lei expressamente se

refere; na interpretação extensiva, não há integração da legislação tributária, pois se

trabalha dentro dos lindes da sua incidência.

Para fins de análise e melhor compreensão do tema, partimos da regra-

matriz de incidência tributária do ISS. Teremos em sua hipótese ou antecedente evento

caracterizador de prestação de serviço consubstanciado numa obrigação de fazer, que, em

regra, vem previsto na lista anexa à Lei Complementar 116/03. O legislador, ao enunciar os

270

Op. cit., p. 63. 271

Op. cit., p. 868.

Page 107: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

105

tópicos que compõem a lista, recorrentemente se refere à incidência da exação aos congêneres

de determinada atividade.

O vocábulo "congênere" possui nos léxicos272

o seguinte significado

como mais usual: "que é do mesmo gênero, espécie, tipo, classe, modelo, função etc. (que

outro); similar, congenérico [...]".

Ao distribuirmos os conceitos em gêneros e espécies, estamos

classificando-os de acordo com critérios eleitos que conotam determinadas características. A

regra-matriz do ISS adota como critério material da hipótese de incidência comportamento

consistente em "prestar serviços". Podemos entender que tal atividade conota, isto é, traz as

características de um gênero. Por sua vez, a Lista de Serviços aponta, denota, quais seriam

esses serviços para fins de evitar conflitos de competência e limitar o poder de tributar. Ao

denotar tais serviços utiliza-se da expressão "congênere". Isto é, novamente cria um gênero,

um conjunto com elementos que possuam características fundamentais semelhantes.

Contudo, não estamos a tratar daquela semelhança justificadora da

analogia, pois, se assim o fosse, estaríamos a criar tributo novo, sem fundamento em regra-

matriz de incidência, desrespeitando, assim, o princípio da legalidade e a própria Constituição

Federal, que minuciosamente repartiu a competência para criar tributos entre os entes da

Federação. Acreditamos que a semelhança presente no conceito de "congênere" para fins de

incidência do tributo é mais restritiva, tratando-se da mesma atividade. O intérprete ainda

opera dentro das possibilidades de significação do texto que regula mais de perto a conduta.

Portanto, o conceito de congênere utilizado pelo legislador somente abrangerá aquelas

atividades que encontram-se no âmbito do texto da Lista anexa à Lei Complementar 116/03,

sendo, portanto, fruto de interpretação extensiva e não de analogia.

Na doutrina de Luciano Amaro273

, a diferença entre analogia e

interpretação extensiva somente pode ser estabelecida no estudo da vontade do legislador. Nas

palavras do autor:

Num caso, a lei se omitiu porque foi mal escrita; no outro, ela também se omitiu,

muito embora por motivo diverso, qual seja, o de não se ter pensado na hipótese; a

omissão (que, afinal, é o que resta verificável, objetivamente, no exame da lei)

iguala as duas situações. Como se vê, a distinção depende de uma incursão na mente

do legislador, pois se baseia, em última análise, em perquirir se o legislador 'pensou'

272

Op. cit., s.v. congênere. 273

Op. cit., p. 212.

Page 108: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

106

ou não na hipótese, para, no primeiro caso, aplicar-se a interpretação extensiva e, no

segundo, a integração analógica.

Com todo o respeito devido à obra do autor citado, sentimo-nos na

obrigação de discordar do critério de distinção que utiliza para apontar a diferença entre

interpretação extensiva e analogia. De acordo com nossas premissas, para sabermos se uma

atividade se encontra nos limites possíveis de sentido do texto e, portanto, se houve

interpretação extensiva, ao invés da analogia, vedada em nosso ordenamento para criar

tributo, teremos que observar o que os utentes de uma comunidade compreendem como

similar a uma determinada atividade, já que é impossível incursionar pela mente do legislador.

Se a similitude for tamanha a ponto de ser considerada a mesma atividade com pequenas

variações que não alteram o gênero, estaremos diante da interpretação extensiva. Caso não

seja possível atribuir-se tal grau de semelhança, o intérprete, no caso da lista do ISS, não

poderá subsumir o suposto congênere à hipótese de incidência.

Assim, podemos compreender a posição do Superior Tribunal de

Justiça, segundo a qual a interpretação extensiva equivaleria admitir a incidência do tributo

sobre a mesma hipótese, alterando-se tão-somente a nomenclatura, conforme trecho de

julgado274

:

A jurisprudência desta Corte firmou entendimento de que é taxativa a Lista de

Serviços anexa do Decreto-lei 406/68, para efeito de incidência do ISS, admitindo-

se, aos já existentes apresentados com outra nomenclatura, o emprego da

interpretação extensiva para serviços congêneres.

Portanto, para que se identifique integração analógica que cria tributo

novo, deve ocorrer a ausência de texto que especificamente se refira à hipótese analisada.

Convém lembrar que para cada tributo há uma regra-matriz de incidência que em seu

antecedente conota ou identifica os critérios que um evento deve possuir, para, após

certificado por linguagem competente, constituir fato jurídico tributário. O intérprete, ao

preencher os critérios conotados, devido ao princípio da legalidade, deve ater-se a esses

traços, no limite possível de sua vaguidade e ambiguidade.

Nesse sentido, ressalta recente julgado do Superior Tribunal de

Justiça275

:

274

STJ, 1ª Seção, Recurso Especial nº 1.111.234, Relatora Min. Eliana Calmon, DJe de 24/02/2010. (destaques

nossos). 275

STJ, 1ª Seção, REsp 1111234/PR, Rel. Min. Eliana Calmon, julg. 23/09/2009, DJ 08/10/2009.

Page 109: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

107

A lógica é evidente porque, se assim não fosse, teríamos, pela simples mudança de

nomenclatura um serviço, a incidência ou não-incidência do ISS. Entretanto, é

preciso fazer a distinção dos serviços que estão na lista, independentemente do

'nomen juris', dos serviços que não se enquadram em nenhum dos itens da lista.

Com efeito, as normas obtidas por intermédio da interpretação

analógica vedada pelo artigo 108, § 1º, do CTN, não guardam relação com a regra-matriz de

incidência tributária que institui determinado tributo, não se configuram como um sentido

possível do texto. Por outro lado, tratar-se de norma jurídica possível de ser fundamentada no

enunciado que institui o tributo, tratando-se da mesma hipótese de incidência, estamos diante

de uma interpretação extensiva.

4.7 Equidade

A equidade, vista como critério de integração do direito posto, é

entendida por nossa doutrina, de maneira geral, como uma forma de abrandamento da lei em

virtude de características que se apresentam no caso concreto. O intérprete, ao aplicá-la,

afastaria sua rigidez para privilegiar a justiça, conforme compreendida pela coletividade.

Carlos Maximiliano276

, assim conceitua o tema:

É, segundo Aristóteles, 'a mitigação da lei escrita por circunstâncias que ocorreram

em relação às pessoas, às coisas, ao lugar ou aos tempos' [...]. A equidade judiciária

compele os juízes, no silêncio, dúvida ou obscuridades das leis escritas, a

submeterem-se por um modo esclarecido à vontade suprema da lei, para não

cometerem em nome dela injustiças que não desonram senão os seus executores..

Doutrinadores que se dedicam mais precisamente ao direito tributário

comungam da mesma opinião, a exemplo de Ruy Barbosa Nogueira277

, que conceitua

equidade como "a mitigação do rigor da lei", ou ainda, Aliomar Baleeiro278

, para quem o

instituto em análise "dará uma solução de justiça". Bernardo Ribeiro de Moraes279

, ao

abordar o tema, ressalta caracterizar-se a equidade

Como um modo particular de atenuação ou amenização da rigidez das normas

jurídicas, exigindo igualdade de tratamento nas relações jurídicas concretas. [...] Pela

eqüidade nos aproximamos do conceito de justiça ideal. Enquanto que os preceitos

276

Op. cit., p.141. 277

NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Curso de direito tributário. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 103. 278

BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. 11. ed. rev. e comentada por Misabel Abreu Machado

Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 683. 279

MORAES, Bernardo Ribeiro de. Compêndio de direito tributário. Vol. 2., 3. ed. Rio de Janeiro: Forense,

1995, p. 226.

Page 110: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

108

de justiça são de natureza geral, constituindo os 'commune praeceptum', as regras da

eqüidade são particulares, atendendo a singulares características de cada caso

particular.

De nossa perspectiva, que compreende o direito como objeto cultural,

vislumbramos na equidade um valor a ser realizado pelo aplicador da norma, seja em franca

atividade interpretativa, ou ainda, cumprindo a integração do ordenamento. Trata-se de um

sobreprincípio, a justiça, que norteia a linguagem jurídica em todos os seus níveis. O valor do

justo a que nos referimos é aquele presente no jogo de linguagem do direito em determinado

contexto e não necessariamente coincide com o que se encontra em outras formas de vida.

Seu conteúdo é preenchido pelo sentimento de justiça compartilhado pelos utentes da

linguagem jurídica e não deve ser buscado, como afirma Maximiliano no excerto acima

citado, numa suposta vontade suprema da lei.

Contudo, na atividade integrativa efetuada por intermédio da

equidade, podemos compreender a lacuna a ser preenchida não como a inexistência de um

preceito que se refira especificamente a um comportamento, impedindo, num primeiro

momento, a subsunção do fato à norma, mas como a não realização da justiça no caso

concreto. Um exemplo simples, utilizado por Cristiano Carvalho280

, nos serve de instrumento

para melhor explicar nosso ponto de vista. O autor parte de uma norma hipotética que

preveria prisão para todo aquele que fira outrem com instrumentos cortantes e assim

conjectura:

Se um artesão ao forjar uma espada, fere sem querer o seu ajudante, não poderia

simplesmente ser preso. Tal subsunção simples iria de encontro às noções mais

básicas de justiça, que alicerçam o ordenamento [...]. Trata-se de equilibrar a lei ao

caso concreto, através do apelo ao valor justiça.

Portanto, devido à vaguidade e ambiguidade do preceito legal, várias

interpretações são possíveis e, utilizando-se da equidade, o aplicador do direito afasta aquelas

inadmissíveis, que se chocam com o conceito de justiça, conforme entendido pela

comunidade de utentes da linguagem jurídica.

Utilizemo-nos de outro exemplo, agora mais próximo de nossa área de

pesquisa. O artigo 136 do CTN determina a responsabilidade objetiva do agente por infrações

280

Conforme estudo relacionado ao Artigo 108 (4. A Eqüidade). In: PEIXOTO, Marcelo Magalhães;

LACOMBE, Rodrigo Santos Masset (Coords.). Comentários ao Código Tributário Nacional. São Paulo: MP

Editora, 2005, p. 913.

Page 111: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

109

à legislação tributária281

. Porém, em caso concreto, pela via da equidade, houve o afastamento

da multa por ilícito fiscal com os seguintes argumentos:

I - Apesar da norma tributária expressamente revelar ser objetiva a responsabilidade

do contribuinte ao cometer um ilícito fiscal (art. 136 do CTN), sua hermenêutica

admite temperamentos, tendo em vista que os arts. 108, IV e 112 do CTN permitem

a aplicação da eqüidade e a interpretação da lei tributária segundo o princípio do 'in

dubio' pro contribuinte [...]. II – 'In casu', o Colegiado 'a quo', além de

expressamente haver reconhecido a boa-fé do contribuinte, sinalizou a inexistência

de qualquer dano ao Erário ou mesmo de intenção de o provocar, perfazendo-se,

assim, suporte fáctico-jurídico suficiente a se fazerem aplicar os temperamentos de

interpretação da norma tributária antes referidos.282

Portanto, não vislumbraram os julgadores que seria justo, no caso

concreto citado, a aplicação do rigor do art. 136 do CTN. Devido às particularidades trazidas

aos autos pelas provas, calibraram a decisão, preferindo o valor justiça, fundamentados no

artigo 108, IV, do CTN que veicula a equidade como critério de interpretação. O preceito

afastado não conotou abrandamentos para situações em que comprovadamente não houvesse

qualquer prejuízo ao Erário e nas quais inexistiria má-fé por parte do contribuinte, pelo

contrário, veiculava a responsabilidade objetiva. Contudo, se comparado a outros preceitos do

ordenamento, como o art. 112 do CTN283

, tal dispositivo se torna de aplicação ambígua.

Fazendo incidir o disposto no art. 136 no caso concreto, estaria ausente a justiça e, dessa

forma, considerou por bem o julgador, numa interpretação sistemática, deixar de aplicar a

penalidade, com base na equidade.

Luciano Amaro284

afirma que "A eqüidade atua como instrumento de

realização concreta da justiça, preenchendo 'vácuos axiológicos', onde a aplicação rígida e

inflexível da regra legal escrita repugnaria ao sentimento de justiça da coletividade, que cabe

ao aplicador da lei implementar."

Não nos parece que a equidade, quando utilizada na integração, vise

preencher 'vácuos axiológicos', já que o direito, visto como objeto cultural285

, vem sempre

carregado de valores. No exemplo dado, se o julgador houvesse aplicado o preceito do artigo

281

"Art. 136. Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade por infrações da legislação tributária

independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato." 282

STJ, Primeira Turma, Recurso Especial 2004/0154557-1, Rel. Min. Francisco Falcão, DJ 03/10/2005, p. 140. 283

"Art. 112. A lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se de maneira mais

favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto: I – à capitulação legal do fato; II – à natureza ou às

circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos; III – à autoria, imputabilidade ou

punibilidade e IV – à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação." 284

Op. cit., p. 215. 285

Ibid., loc. cit.

Page 112: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

110

136 do CTN, de forma literal, utilizando-se da responsabilidade objetiva para punir o

contribuinte, sem considerar as provas produzidas nos autos e o disposto no art. 112 do CTN,

certamente um valor estaria sendo privilegiado, contudo não o sobreprincípio da justiça.

Dessa maneira, o vazio a ser preenchido pela equidade é o da justiça e não de todo e qualquer

valor.

De acordo com o disposto no artigo 108, § 2º, do CTN, não é possível

dispensar a exigência de tributo com base na equidade, o que nos parece reforçar o princípio

da legalidade, na medida em que confirma a tese o argumento em contrário, isto é, também é

vedado ao intérprete criar tributo sem previsão legal, por intermédio da equidade. Utilizemo-

nos do imposto sobre as grandes fortunas, de competência da União Federal, previsto no

artigo 153, VII, da Constituição Federal. Dificilmente poderíamos dizer tratar-se de imposto

injusto, ainda mais levando-se em consideração o princípio da capacidade contributiva.

Contudo, até o presente momento se trata de preceito tecnicamente ineficaz286

, pois não houve

a edição da lei que possibilite a cobrança da exação. Pois bem, o intérprete, ainda que num

esforço de realizar a justiça, não poderá, pela via da equidade, fazer incidir a tributação sobre

grandes fortunas.

Por fim, enfatizamos que, para integrar o sistema com fundamento na

equidade prevista no art. 108, IV, do CTN, o intérprete está adstrito aos textos prescritivos

formadores do ordenamento jurídico e a compreensão que deles possui a comunidade de

utentes da linguagem jurídica, não sendo possível decisão inovadora sem suporte em

dispositivos do sistema. Portanto, não compreendemos a equidade como uma maneira de

aplicação do método da livre formação do direito, preconizado por François Gény287

, segundo

o qual o juiz, ao se deparar com o vácuo legislativo, ou ainda, com a ausência de uma solução

justa, aplique regras que ele próprio criaria se fosse legislador. Conforme doutrina, Miceli:288

"Decidir como o legislador teria decidido significa emprestar ao legislador uma vontade, que

ele não teve, atribuir-lhe idéias, que só por hipótese, teria podido ter e, no fundo, projetar as

suas próprias idéias e os seus sentimentos próprios numa suposta vontade de outrem."

Como já dissemos em vários momentos, ao intérprete não é possível

alcançar a vontade do legislador. O mesmo raciocínio aplica-se a emprestar-lhe ideias, 286

Uma norma tecnicamente ineficaz é válida e vigente, porém há duas espécies de obstáculos que a impedem

de jurisdicizar os fatos: (i) ausência de regras regulamentadoras de igual ou inferior hierarquia; e (ii)

impossibilidade de ordem material de ocorrência dos eventos que prevê. 287

Méthode de la libre recherche scientifique. 288

VINCENZO, Miceli. Le Fonti del Diritto. In: RIBEIRO (op. cit., p. 200).

Page 113: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

111

atribuindo-lhe um sentir. Na atividade interpretativa e integrativa do direito, há construção de

sentido a partir de textos que formam o ordenamento, e a vontade a imperar é a do aplicador,

que se encontra inserido em um contexto histórico e cultural, que fornece os elementos para

condicionar o seu querer. Não se trata, dessa forma, de uma atividade totalmente livre. Além

dos elementos que condicionam o intérprete a optar por determinada solução, há os preceitos

jurídicos que não podem ser desprezados, sob pena de a interpretação ser tida por arbitrária,

pertencente a distinto jogo de linguagem e sofrer a sanção da invalidade.

A outra forma de integração do direito, presente no Código Tributário

Nacional, art. 108, II e III é, respectivamente, a aplicação dos princípios gerais do direito

tributário e dos princípios gerais do direito público. Ao tratarmos do entendimento sobre

interpretação como um sistema de linguagem, adiantamo-nos a tratar do tema com detalhes,

razão pela qual decidimos seguir adiante em nossa análise. Observamos também que os arts.

109, 110 e 111 do CTN serão objeto de estudo, ao tratarmos do que a doutrina convencionou

denominar "métodos de interpretação", pois servem de base para as técnicas econômica,

sistemática e literal de exegese do direito tributário.

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112

CAPÍTULO V – MÉTODOS DE INTERPRETAÇÃO DO DIREITO TRIBUTÁRIO

5.1 Considerações iniciais

Interpretar o direito como um jogo ou sistema de linguagem implica

na ideia de que o sujeito, imbuído dos valores presentes em determinado contexto histórico-

cultural, percorre os níveis sintático, semântico e pragmático da linguagem jurídica, para

construir o sentido dos enunciados prescritivos, de forma adequada, conforme expectativas de

compreensão partilhadas pela comunidade de intérpretes.

Portanto, o uso de raciocínios apriorísticos, como as teses do in dubio

pro fiscum ou in dubio contra fiscum289

, ou ainda, privilegiar-se técnicas de interpretação do

direito tributário que somente consideram parcialmente os níveis de linguagem, a exemplo do

método gramatical, não é compatível com as premissas adotadas nessa pesquisa. Em termos

filosóficos, não se fundamentam no giro linguístico-hermenêutico. Contudo, tais argumentos

são rotineiramente utilizados como justificativa de decisões tomadas por nossos Tribunais, o

que nos motiva a considerar oportuna a análise dos métodos de interpretação do direito

tributário à luz dos pressupostos condicionantes já apontados. As teses do in dubio pro fiscum,

in dubio contra fiscum e o termo médio entre as duas, a corrente da interpretação estrita da lei

tributária, são bastante antigas290

e encontram-se diluídas nos métodos tradicionais da

doutrina, razão pela qual optamos por não estudá-las em capítulo próprio.291

O termo "métodos de interpretação", usado no contexto da doutrina

tradicional, quer significar técnicas ou meios para apreender o alcance e sentido dos textos

jurídicos, conforme a intenção do legislador ou a vontade da lei. Comumente, os juristas

estudam e propagam as seguintes técnicas de interpretação do direito, consideradas de maior

relevo dentre as demais: (i) literal ou gramatical; (ii) histórico-evolutiva; (iii) lógica; (iv)

289

As teorias citadas negavam a possibilidade da aplicação das regras de hermenêutica ao direito tributário, em

virtude de suas características particulares. Assim, se a lei não fosse suficientemente clara, uma corrente

propunha a sua aplicação sempre a favor do fisco e outra a favor do contribuinte, surgindo, ainda, um terceiro

viés, que propugnava a aplicação estrita da lei. Conforme VANONI, Ezio. Natureza e interpretação das leis

tributárias. Tradução de Rubens Gomes de Sousa. Rio de Janeiro: Edições Financeiras, 1973, p. 11-13. 290

Afirma Vanoni que o brocardo teria origem em Roma e haveria sido enunciado por Modestino (ibid., p. 14). 291

Heleno Torres afirma que, "Quando se discute as diferenças entre 'primado do direito civil' e 'autonomia

qualificadora do direito tributário', em certo modo, o que se vê em oposição não é mais do que uma versão

moderna das teses que se podem resumir como os brocardos in dubio contra fiscum e in dubio pro fiscum."

TÔRRES, Heleno Taveiro. Direito tributário e direito privado: simulação: elusão tributária. São Paulo:

Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 200.

Page 115: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

113

teleológica; e (v) sistemática. Alguns doutrinadores aconselham tais expedientes de exegese

sejam utilizados de forma sucessiva, por não ser possível fragmentá-los292

.

Muito embora sob fundamentos teóricos distintos, que propugnam

pela impossibilidade de alcançar-se a vontade do legislador ou da lei, espécie de verdade

absoluta a ser perseguida pelo intérprete, o construtivismo lógico-semântico concorda com a

incindibilidade das técnicas de exegese. A técnica lógica ou literal se atém especificamente ao

plano sintático da linguagem jurídica. A histórico-evolutiva e teleológica se preocupam mais

com os aspectos semânticos e pragmáticos, enquanto que a sistemática engloba os três planos,

na medida em que compatibiliza a norma com a estrutura global a qual pertence, sob os

pontos de vista lógico e também dos usos da linguagem efetuados pela comunidade

jurídica.293

Antes de analisarmos cada uma das posturas interpretativas

comumente estudadas e propagadas, ressalvamos a discussão presente na doutrina sobre qual

técnica hermenêutica haveria adotado o legislador do Código Tributário Nacional.

Na opinião de Ricardo Lobo Torres294

, pretendeu-se estabelecer

hierarquia entre os métodos teleológico ou econômico, supostamente contemplado no seu

artigo 109295

, e sistemático, estabelecido no art. 110296

do CTN.

Sem embargo de anteciparmos a exposição, destacamos que, pela

literalidade do art. 109 do CTN, os efeitos tributários poderiam dissociar-se dos conceitos de

direito privado utilizados pelas regras-matrizes de incidência. Nessa perspectiva de análise,

parcela da doutrina, como veremos em momento oportuno, atribui ao preceito as seguintes

decorrências:

292

Conforme Carlos Maximiliano: "A interpretação é uma só; não se fraciona: exercita-se por vários processos,

no parecer de uns; aproveita-se de elementos diversos, na opinião de outros...". Hermenêutica e aplicação do

direito, p. 87. Esta também é a opinião de Ruy Barbosa Nogueira292

, proferida ao analisar a interpretação literal,

enquanto técnica isolada, justificando suas ideias nas palavras de Betti: "A interpretação é sempre um processo e

não é possível desintegrá-lo para efeito de só admitir-se uma interpretação literal ou gramatical estanque ou

mecânica. Basta ter presente a incindibilidade entre a palavra e o pensamento que ela representa e refletir que a

lei não é letra morta, mas a forma representativa do conteúdo espiritual, que é um conteúdo normativo para fins

de convivência social...". (op. cit., p. 89). 293

Conforme Paulo de Barros Carvalho (2010, p. 134). 294

Op. cit., p. 136. 295

"Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do

alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários". 296

"Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance dos institutos, conceitos e

formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas

Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou

limitar competências tributárias."

Page 116: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

114

(i) A autonomia do direito tributário com relação aos demais ramos;

(ii) Supremacia da substância das normas jurídicas tributárias com relação à sua forma. Isto é,

o seu conteúdo ou substância seria supostamente de ordem econômica. A afirmação

poderia ser justificada em virtude da finalidade do direito tributário que é identificada por

esses juristas com o abastecimento dos cofres públicos.

(iii)Corolário dessas premissas teóricas é a conclusão de que o objetivo do enunciado residiria

no combate a eventuais simulações, cujo intuito seria a evasão fiscal, utilizando-se, como

critério de identificação desse desvio, a interpretação econômica, que revelaria o

verdadeiro conteúdo a ser considerado pelo exegeta.

De início, sem maiores pretensões, já que iremos nos aprofundar no

tema em tópico específico, ressaltamos que o direito é um sistema de linguagem prescritiva,

autônomo com relação aos demais. Os fatos que nele adentram são processados de acordo

com seus ditames, o que implica observar normas de competência e procedimento, assim

como compreendidas por sua comunidade de intérpretes e, por conseguinte, em função dessas

regras, se tornam jurídicos. Lembrando Investigações Filosóficas, trata-se de um jogo de

linguagem específico, que opera segundo suas regras próprias. O que já demonstra a

impropriedade da assim denominada "interpretação econômica".

Portanto, os "efeitos tributários" determinados pelo art. 109 do CTN

são de ordem jurídica e não econômica. Compreendendo a questão dessa maneira, estaríamos

em plena harmonia com o art. 110 do CTN, pois os efeitos tributários, isto é, a obrigação

tributária, seriam fixados pela legislação específica, que, no entanto, se utilizaria de conceitos

de direito privado para estabelecer os comportamentos conformadores dos fatos jurídicos, na

medida em que a Constituição Federal, ao distribuir as competências, não houvesse estipulado

de forma própria.

Em suma, não vislumbramos dicotomia entre o art. 109 e 110 do

CTN, a ponto de verificar no primeiro a adoção de técnica teleológica justificadora da

interpretação econômica do direito e da sistemática pelo art. 110. O entendimento em

contrário, exposto por parte da doutrina, nos parece fruto de interpretação literal, que não

premia uma visão sistemática da linguagem jurídica. Pareceu-nos, ainda, que há uma

desautorizada mescla entre a linguagem jurídica e a econômica, como se fosse possível ao

direito ter fins econômicos e não jurídicos. Passamos, assim, a analisar as técnicas de

interpretação anteriormente apontadas.

Page 117: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

115

5.2 A interpretação literal ou gramatical

A interpretação literal297

ou gramatical resume-se a uma primeira

leitura do texto, sem maiores preocupações com sua compatibilidade em relação ao sistema.

Comparando-se com o percurso gerador de sentido utilizado pelo construtivismo lógico-

semântico, tal técnica estaria situada no plano S1, no qual o sujeito depara-se com os

enunciados prescritivos e inicia sua leitura. Portanto, se admitida essa técnica isoladamente,

como forma de interpretar, haveria uma brusca interrupção no percurso a ser trilhado pelo

exegeta, que estaria impossibilitado de cotejar os preceitos lidos com outros relacionados, a

ponto de construir norma jurídica e cotejá-la como o sistema em que se opera.

Doutrinadores dos mais variados matizes apontam a fragilidade da

técnica, tomando-a apenas como o primeiro estádio da interpretação do direito positivo.

Na lição de Paulo de Barros Carvalho298

, "O texto escrito, na singela

conjugação de seus símbolos, não pode ser mais que a porta de entrada para o processo de

apreensão da vontade da lei; jamais confundida com a intenção do legislador."

Bernardo Ribeiro de Moraes299

afirma ser este processo "O primeiro

estádio que se apresenta ao intérprete [...], não constitui um método de interpretação

propriamente dito, mas simples modo de ver a norma jurídica, com o apego ao texto legal

(fetichismo da lei)."

Ricardo Lobo Torres300

é taxativo ao doutrinar que "O método literal,

gramatical ou lógico gramatical é apenas o início do processo interpretativo, que deve partir

do texto."

Não obstante o acentuado desprestígio da técnica literal, o legislador a

inseriu no Código Tributário Nacional, prescrevendo sua aplicação à suspensão ou exclusão

297

Em rigor, a interpretação literal sequer seria possível porque o significado de um termo depende,

necessariamente, do contexto em que ocorre a exegese e está atrelado ao sistema de referência do intérprete.

Ainda numa primeira leitura, a pré-compreensão do sujeito o auxilia na formação de um sentido preliminar. 298

Op. cit., 2010, p. 140. 299

Op. cit., p. 188. 300

Op. cit., p. 197.

Page 118: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

116

do crédito tributário, à outorga de isenção e à dispensa do cumprimento de obrigações

tributárias tidas como acessórias301

, o que vem sendo observado por nossos Tribunais.

A título de exemplo, analisamos acórdão proferido pelo Tribunal de

Justiça de Santa Catarina302

. Na decisão de primeira instância, houve reconhecido o direito de

isenção de ICMS e IPVA para aquisição de veículo capaz de ser adaptado para transportar

deficiente físico e mental. Contudo, entendeu o Tribunal, em julgamento de recurso interposto

pela Fazenda Pública, ser necessária a reforma da sentença, sob a alegação de que o

automóvel seria guiado pelos familiares do deficiente e não por ele próprio, o que implicaria

interpretação extensiva da lei, vedada pelo artigo 111 do Código Tributário Nacional.

Segundo entendimento do julgado:

Se a legislação estadual não prevê a isenção do ICMS e do IPVA para veículo

adquirido por deficiente físico para que outrem o dirija, ainda que para transportá-lo,

não há como conceder liminar em mandado de segurança por ausência de um dos

pressupostos do art. 7º, inciso II, da Lei 1.533/51, que é a fumaça do bom direito.

Em matéria de isenção tributária não cabe interpretação extensiva da lei nem a

adoção analógica de lei federal para isentar o contribuinte do pagamento do imposto

estadual.

A interpretação dada ao caso pelo Tribunal desconsiderou a finalidade

de normas isentivas de IPVA e ICMS consistente em atender as necessidades especiais de

deficientes físicos, inclusive protegidas constitucionalmente303

, para privilegiar a literalidade

de preceito legal que previa o benefício para os motoristas portadores de deficiência. Além de

desprezar visão finalística e sistemática, que premiaria a proteção ao deficiente concedida

constitucionalmente, em nome da literalidade preconizada pelo artigo 111 do CTN, provocou

o Tribunal desrespeito ao princípio da isonomia, estabelecendo duas classes de deficientes: os

que podem guiar um veículo e que cumpririam os requisitos das leis isentivas e os demais,

cujo grau de enfermidade os privasse de autonomia suficiente para guiar seu próprio

automóvel, penalizando-os com a incidência de ICMS e IPVA.

Concordamos com Hugo de Brito Machado304

, para quem

É inadequado o entendimento segundo o qual a interpretação das normas

reguladoras das matérias previstas no art. 111 do Código Tributário Nacional não

admite outros métodos, ou elementos de interpretação, além do literal. O elemento

literal é de pobreza franciscana, e utilizado isoladamente pode levar a verdadeiros

301

Conforme art. 111 do CTN. 302

Decisão em agravo de instrumento nº 2005.012351-6. Relator Desembargador Jaime Ramos. Julgado em

30/08/2005. 303

Citamos como exemplos os artigos 203, IV e 37, VIII da Constituição Federal. 304

Op. cit., p. 105.

Page 119: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

117

absurdos, de sorte que o hermeneuta pode e deve utilizar todos os elementos da

interpretação, especialmente o elemento sistemático, absolutamente indispensável

em qualquer trabalho sério de interpretação, e ainda, o elemento teleológico, de

notável valia na determinação do significado das normas jurídicas.

O intérprete, ao atribuir sentido aos textos jurídicos, não pode ignorar

a estrutura sintática da linguagem jurídica, sua hierarquia e regras de formação e de

transformação, nem tampouco deixar de observar o aspecto semântico-pragmático do

ordenamento, permanecendo atento para o uso e as expectativas compartilhadas pela

comunidade jurídica. Parece-nos, dessa maneira, desaconselhável proceder-se a construção

normativa meramente literal. Seguir o comando do artigo 111 do CTN pode redundar,

inclusive, em desrespeito à própria Constituição Federal, como entendemos ter ocorrido no

exemplo anteriormente analisado.

Nesse sentido, destacamos trecho de acórdão diverso, cuja

fundamentação procura fornecer outra exegese ao art. 111 do CTN:

A regra insculpida no art. 111 do CTN, na medida em que a interpretação literal se

mostra insuficiente para revelar o verdadeiro significado das normas tributárias, não

pode levar o aplicador do direito à absurda conclusão de que esteja ele impedido, no

seu mister de interpretar e aplicar as normas de direito, de se valer de uma

equilibrada ponderação dos elementos lógico-sistemático, histórico e finalístico ou

teleológico que integram a moderna metodologia de interpretação das normas

jurídicas.305

Há ainda, outros doutrinadores que compreendem a interpretação

literal determinada no artigo 111 do CTN como aquela que se dá de forma não extensiva, a

exemplo de Regina Helena Costa306

:

Ao determinar, nesse dispositivo, que a interpretação de normas relativas à

suspensão ou exclusão do crédito tributário, à outorga de isenção e à dispensa do

cumprimento das obrigações acessórias seja 'literal', o legislador provavelmente quis

significar 'não extensiva', vale dizer, sem alargamento de seus comandos, uma vez

que o padrão em nosso sistema é a generalidade da tributação e, também das

obrigações acessórias, sendo taxativas as hipóteses de suspensão da exigibilidade do

crédito tributário e da anistia. Em outras palavras, quis prestigiar os princípios da

isonomia e da legalidade tributárias.

Segundo nossas premissas, inexistiria um sentido único do texto

prescritivo, correspondente à vontade do legislador ou da lei. O que denominamos de

305

STJ, 2ª Turma, Recurso Especial nº 411.704 – SC, Relator Ministro João Otávio de Noronha, D.J. de

07/04/2003. O objetivo do recurso apresentado pela Fazenda Nacional era afastar interpretação que

reconheceu a isenção de aposentadoria em virtude de cardiopatia grave desenvolvida após a concessão de

aposentadoria. 306

COSTA, Regina Helena. Curso de direito tributário. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 164.

Page 120: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

118

interpretação extensiva, como pudemos observar ao tratarmos da analogia, corresponde à

própria vaguidade e ambiguidade da linguagem. Dessa maneira, o intérprete labora dentro dos

limites possíveis de significação de um texto, não servindo o critério de vedação à

interpretação extensiva para compreender e justificar o disposto no artigo 111 do CTN e o

método literal.

A melhor exegese do art. 111 do CTN é a que afasta a literalidade

pura e simples como critério de interpretação e admite que as situações nele previstas devam

ser tratadas de forma sistemática, reconhecendo não ser possível fracionar a linguagem

jurídica e construir seu sentido de forma parcial, sem levar em conta os aspectos semântico e

pragmático. A literalidade seria apenas o início de um percurso a ser trilhado pelo sujeito, que

nos limites da cultura jurídica, constrói norma compatibilizada com todo o ordenamento.

5.3 A interpretação histórico-evolutiva

O objetivo da técnica de interpretação histórico-evolutiva, no

entendimento da doutrina tradicional, seria transpor a vontade do legislador, ao tempo da

edição da norma, para a atualidade. Nesses termos, o intérprete deveria decidir nos dias de

hoje, imbuído do espírito do legislador, o que permitiria que sua interpretação fosse a mesma

daquele, se a questão lhe houvesse sido apresentada no momento da edição da lei. Segundo

Cogliogo307

,

O intérprete deve dar um espírito novo à lei velha e, quando as palavras do código

não sejam abertamente contrárias, é lícito entendê-las até alcançar os fenômenos

novos; e é lícito substituir ao que o legislador quis, quando fez a lei, o que deveria

querer agora, se legiferasse no presente.

Para a doutrina tradicional, a interpretação histórico-evolutiva seria

útil para a exegese do direito pelos seguintes motivos: (i) as disposições primitivas

aproveitadas no novo texto conservariam, quando possível, a exegese do anterior, ainda que o

legislador se utilizasse de outros nomes, o que denotaria a ideia de existir uma essência nos

conceitos que poderiam ser transpostos para o tempo atual; (ii) pelas transformações

históricas sofridas por um preceito que chega ao conhecimento de seu papel na atualidade.308

307

L´Interpretazione Sociale de Codice Civile, apud MORAIS (op. cit., p. 197). 308

Conforme MAXIMILIANO (op. cit., p. 114).

Page 121: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

119

Ao compreender a interpretação histórico-evolutiva como atualização

do pensamento do legislador, juristas aconselham o estudo dos materiais legislativos, a

exemplo dos projetos de lei, dos debates parlamentares e outros documentos que possam

revelar a verdadeira mens legislatoris. É o conhecimento do que a doutrina denomina occasio

legis, mais precisamente, as circunstâncias contextuais reinantes no momento da edição da

norma.

Acreditamos, todavia, ser incompatível com as premissas adotadas o

vínculo do intérprete com as exegeses feitas a partir de disposições dos textos antigos,

conforme imposto pela técnica histórico-evolutiva. Não há um sentido absoluto, que

corresponda a uma verdade a ser alcançada (a vontade do legislador), capaz de impedir

modificações na construção normativa. O entendimento tende a variar de acordo com o

contexto histórico-cultural no qual ocorre a atividade interpretativa. Claro que não estamos

defendo arbitrariedades e abuso de poder e tampouco o rompimento do intérprete com a

história. O sujeito, ao construir a norma jurídica, participa de um jogo de linguagem

específico, o do direito, que é orientado por regras e expectativas compartilhadas pelos demais

participantes.

A técnica histórico-evolutiva pode ser utilizada pelo intérprete não

com o intuito de atualizar a vontade do legislador, mas como forma de dar significação aos

conceitos utilizados pela linguagem jurídica por intermédio de um estudo histórico, apto a

demonstrar as alterações provenientes do uso dos termos pela comunidade. Nesse aspecto,

teria as características de uma pesquisa semântica. Comparando-se preceitos anteriores com

os atuais, é possível decidir-se pela mudança ou inalterabilidade de sentido de um termo. Isso

não significa, necessariamente, que sentidos atribuídos em período anterior devam ser

aplicados a disposições em vigência, conforme já expomos. Estes inclinam-se a variar de

acordo com as transformações contextuais ocorridas no ordenamento jurídico. Por outro lado,

a pesquisa histórica das alterações legislativas também atua como auxiliar do intérprete na

verificação da própria vigência da norma, mediante as constantes alterações efetuadas no

ordenamento.

Exemplo de utilização por nossos Tribunais da técnica histórico-

evolutiva encontra-se em acórdão que analisou as inúmeras alterações legislativas no tocante

Page 122: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

120

ao crédito prêmio do IPI309

. A dificuldade residia justamente em apurar-se a data da extinção

do direito ao crédito, em virtude de uma miscelânea de dispositivos legais que regularam sua

aplicação. Utilizando-se, também, da técnica histórico-evolutiva, o intérprete analisou a

evolução do crédito prêmio do IPI em nossa legislação, estudando as exposições de motivos

dos vários preceitos legais e as efetivas alterações; com base nesse procedimento, decidiu o

caso que lhe foi apresentado. Destacamos trecho do acórdão, no qual o próprio Tribunal

reconhece a importância da pesquisa histórico-evolutiva:

A interpretação histórica é de extrema valia nos conflitos aparentes de normas,

porque: 'o direito não se inventa; é produto lento da evolução [...]'.

Conseqüentemente sobressai o prestígio do elemento histórico decorrente da

investigação da causa geradora e da causa final da lei que conduz à descoberta do

verdadeiro sentido e alcance da norma definitiva […]310

Em suma, a técnica de interpretação histórico-evolutiva nos parece útil

não para atingir-se a mens legislatoris, mas para apurar-se a diversidade semântica de um

preceito normativo, evidenciada pelas alterações contextuais de seu uso. Diante da extensa

produção legislativa, também atua como expediente auxiliar na organização dos textos legais

para fins de análise da vigência e aplicação de determinada norma.

5.4 Interpretação lógica

Por intermédio dessa técnica interpretativa, segundo compreende a

doutrina tradicional, seria possível extrair a vontade do legislador ou da lei estabelecendo o

sentido e alcance da norma, aplicando-se exclusivamente raciocínios lógicos na compreensão

da literalidade do preceito, sem auxílio de qualquer elemento externo ao texto em sentido

estrito.

Interpretar uma lei, dizem os adeptos deste processo, é explicitar a vontade do

legislador, manifestada inteiramente no texto de lei, observando as palavras e os

elementos lógicos dos preceitos normativos. O intérprete da norma jurídica deve

perquirir a vontade do legislador, servindo-se, para tal, da literalidade da norma

309

Imposto sobre produtos industrializados. 310

STJ, Primeira Seção, Relator Ministro Luiz Fux, Embargos de Declaração no Recurso Especial

2003/0062403-4, publicado no DJe de 31/03/2008. A Ementa encontra-se assim redigida: "TRIBUTÁRIO.

IPI. CRÉDITO PRÊMIO. DECRETOS-LEIS 491/69, 1. 724/79, 1.722/79, 1.658/79 E 1.894/81.

PRESCRIÇÃO QUINQUENAL. EXTINÇÃO DO BENEFÍCIO. JURISPRUDÊNCIA CONSOLIDADA

PELA PRIMEIRA SEÇÃO. VIGÊNCIA DO ESTÍMULO FISCAL ATÉ 04 DE OUTUBRO DE 1990.

RESSALVA DO ENTENDIMENTO DO RELATOR. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. SÚMULA

07/STJ."

Page 123: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

121

jurídica e de todos os recursos da lógica formal (dedução, indução, argumento,

contrario sensu etc.).311

Portanto, qualquer outro pressuposto para a construção de sentido, a

exemplo dos juízos valorativos e das alterações histórico-culturais refletidas no uso dos

termos por determinada comunidade, estaria excluído da apreciação desta técnica

interpretativa. Trata-se de uma visão logicista do direito, objeto de críticas de Lourival

Vilanova, como as que constam do seguinte excerto: "A experiência lógica é parcial. Isola

(abstrai) o formal ou estrutural que ostenta o Direito Positivo. Exceder essa investigação para

além dos limites importa em logicismo, que é uma extrapolação da Lógica (logicismo, p. e.,

na interpretação e na aplicação do Direito)."312

A pesquisa lógica limita-se ao aspecto sintático da linguagem jurídica.

Na interpretação do direito posto, seu objetivo é estudar as conexões existentes entre os

elementos internos que compõem uma norma jurídica, ou ainda, suas relações com outros

enunciados do sistema. E, para tanto, utiliza-se de raciocínios dedutivos, indutivos, analógicos

e de outros expedientes da lógica. Por outro lado, também auxilia o intérprete a organizar o

emaranhado de textos que veiculam o direito, a exemplo da redução efetuada pela regra-

matriz de incidência tributária, conforme já abordado em capítulo próprio. Contudo, não é

bastante em si para a interpretação do direito como um sistema de linguagem, ao modo do

construtivismo lógico-semântico, em virtude de não adentrar nos seus aspectos semântico e

pragmático.

A impropriedade na escolha exclusiva do processo lógico para a

interpretação do direito já havia sido detectada por Carlos Maximiliano313

ao enunciar que

O mal está no abuso, que leva a desprezar o coeficiente pessoal e os valores jurídico-

sociológicos; e não em simples uso, consistente em aplicar os processos da Lógica,

sem deixar de contar com outros elementos, inclusive a cultura, o critério

profissional, a isenção de ânimo, o tato e outros predicados individuais do

verdadeiro exegeta e aplicador do Direito.

Para facilitar a exposição, utilizaremos um caso concreto e tentaremos

evidenciar o uso da exegese lógica, mencionada pelo julgador como técnica que justificaria

sua decisão. O aresto que examinamos314

modificou entendimento anterior, baseado

311

MORAES, op. cit., p. 192. 312

Op. cit., 2003, p. 23. 313

Op. cit., p. 103. 314

STJ, 1ª Seção, Relator Ministro Milton Luiz Pereira, Embargos de Divergência em Recurso Especial nº

89.472 – SP, DJ: 05/08/2002.

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122

exclusivamente na interpretação literal da Súmula nº 20 do Superior Tribunal de Justiça, que

assim estabelece: "A mercadoria importada de país signatário do GATT é isenta de ICM,

quando contemplado com esse favor o similar nacional".

Como se percebe, o texto da Súmula utiliza-se da palavra

"mercadoria", que implica na ideia de um bem móvel destinado à comercialização315

, e, com

fundamento no art. 111 do CTN, a decisão reformada denegava isenção à matéria-prima

importada por não se caracterizar como mercadoria, na medida em que utilizada pelo

contribuinte como insumo do produto final isento. Dito de outra forma, se o contribuinte

importasse a mercadoria, compreendida como o produto acabado semelhante ao nacional

isento, usufruiria do benefício. Por outro lado, se importasse somente os insumos para

fabricação no Brasil do produto final isento, teria que arcar com o ICMS incidente sobre os

componentes importados.

A ementa do julgado responsável pela mudança do entendimento

anterior, fruto de interpretação literal da Súmula nº 20 do STJ, está assim disposta: "Quando

se trata de matéria-prima, interpretação lógica conduz à isenção de ICMS à mercadoria

importada de país signatário do GATT, concedida a similar nacional."316

Pois bem. O critério material da regra-matriz do ICMS importação

consiste em "importar mercadorias". A norma isentiva que decorre das disposições do GATT

mutila a hipótese de incidência quando se trata de produtos importados que possuam similar

produzido no país. Contudo, por intermédio de raciocínio analógico, os Ministros do STJ

estenderam a regra isentiva à atividade de importação de insumos utilizados exclusivamente

para a produção de tais produtos. Muito embora, consoante literalidade da Súmula nº 20 não

ser possível aplicar o benefício fiscal à importação de insumos, tendo em vista a finalidade da

norma, autorizou-se, por analogia, sua extensão também aos insumos.

No caso concreto, a finalidade da norma isentiva está consignada em

trecho do voto do Ministro Franciulli Netto: "Ora, se o custo do produto nacional elaborado

com componentes importados for maior que o custo do similar importado, ainda que, a final,

315

Leciona Paulo de Barros Carvalho que: "A natureza mercantil do produto não está, absolutamente, entre os

requisitos que lhe são intrínsecos, mas na destinação que se lhe dê. É mercadoria a caneta exposta à venda

entre outras adquiridas para esse fim. Não se enquadra nesse conceito, porém, aquela mantida em meu bolso

e destinada a meu uso pessoal." (2008, p. 648). 316

Destaque nosso.

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123

sejam ambos isentos, haverá indisfarçável dano à indústria nacional e violação às disposições

do GATT".

Portanto, apesar de o julgador afirmar que seu entendimento foi obtido

por uma interpretação lógica e de, efetivamente, por intermédio do expediente lógico da

analogia, haver estendido o benefício à importação de insumos, é inegável que a decisão

serviu-se também de outras técnicas, como a teleológica e a sistemática, o que corrobora

nossa assertiva inicial de incindibilidade da atividade interpretativa.

5.5 Interpretação teleológica

A técnica teleológica toma a finalidade prática da norma como

principal critério a ser utilizado pelo intérprete do direito e está consagrada na Lei de

Introdução ao Código Civil, que, em seu art. 5º, determina a aplicação da lei conforme fins

sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.

Leciona Ruy Barbosa Nogueira317

:

Como ressalta Jhering, o fim é criador de todo o Direito. Por isso mesmo o sentido

das leis é essencialmente determinado pelo fim (telos). A apuração da finalidade da

lei ou da proposição jurídica se faz por meio do método teleológico de interpretação

das leis. A finalidade objetivada no texto e no contexto se revela nas peculiaridades

das intenções contidas nos preceitos e conceitos jurídicos.

Na opinião de Bernardo Ribeiro de Moraes318

, "Não há regra jurídica

que não tenha sua origem ligada a um fim prático. A norma jurídica existe para atingir uma

finalidade (télesis), para atingir fins sociais. O fim desejado pela norma jurídica é o elemento

mais hábil para a descoberta do seu sentido e alcance."

Ressalvada a discordância quanto à possibilidade dos enunciados

prescritivos conterem a intenção da lei e do legislador, as falas dos eminentes doutrinadores

podem ser corroboradas pelo construtivismo lógico-semântico. O direito como objeto cultural

tem por finalidade motivar comportamentos na tentativa de implantar e conservar valores que

são partilhados pelos utentes da linguagem jurídica em determinado contexto histórico-

cultural. Portanto, o intérprete, ao atribuir sentido aos signos do direito posto, também deve

nortear seu agir com a finalidade prática de implantá-los.

317

Op. cit., p. 93. 318

Op. cit., p. 198.

Page 126: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

124

Vejamos, por exemplo, julgado319

que alterou posição anteriormente

consolidada no STJ e concedeu redução do critério quantitativo do Imposto de Renda,

previsto na lei nº 9.249/95320

para prestação de serviços hospitalares não necessariamente

realizados no interior de estabelecimento tido como hospitalar. A interpretação dada

anteriormente pelo próprio Tribunal encontrava-se baseada somente na literalidade do texto

normativo e tinha como critério de discernimento que a pessoa jurídica pudesse proporcionar

a internação do paciente para enquadrar-se no benefício da lei, como verificamos em trecho

de julgado321

que reflete a posição que foi modificada: "Por entidade hospitalar deve se

entender o complexo de atividades exercidas pela pessoa jurídica que proporcione

internamento do paciente para tratamento de saúde, com a oferta de todos os processos

exigidos para prestação de tais serviços ou do especializado."

Porém, fundamentado em interpretação teleológica que visou

contemplar a saúde como direito fundamental previsto na Carta Magna322

, a Corte afastou a

exegese anterior. Em trecho do voto do Min. Relator Castro Meira323

, encontram-se bem

explicadas as razões que levaram à mudança de entendimento:

Repensando o tema, verifico que a interpretação dada pela Primeira Seção restou

atrelada à aplicação prévia e exclusiva do art. 111, II, do CTN, deixando em plano

secundário o real propósito da lei [...]. Não se atentou para o escopo extrafiscal da

norma [...]. A verdadeira função extrafiscal dos tributos é aquela que visa estimular

ou reprimir comportamentos que estejam relacionados a valores eleitos pelo

legislador como fundamentais à sociedade.

Dessa forma, o conceito de "serviços hospitalares" para fins de

diminuição do critério quantitativo do Imposto de Renda, sob a égide da Lei 9.249/95, ficou

assim estabelecido pela Corte Especial, após revisão efetuada, levando-se em conta a

finalidade do direito da seguinte forma:

Deve-se entender como 'serviços hospitalares' aqueles que se vinculam às atividades

desenvolvidas pelos hospitais, voltados diretamente à promoção da saúde. Em

regra, mas não necessariamente, são prestados no interior do estabelecimento

319

STJ, 1ª Seção, Relator Ministro Castro Meira, REsp. nº 951.251/PR, DJe 03/06/2009. 320

Aduz o art. 15, § 1º, III, "a" da Lei 9.249/95: "Art. 15 – A base de cálculo do imposto, em cada mês, será

determinada mediante a aplicação do percentual de oito por cento sobre a receita bruta auferida mensalmente,

observado o disposto nos arts. 30 a 35 da Lei nº 8.981, de 20 de janeiro de 1995.

§ 1º Nas seguintes atividades, o percentual de que trata este artigo será de:

III – trinta e dois por cento para as atividades de:

a) prestação de serviços em geral, exceto a de serviços hospitalares." 321

STJ, 1ª Seção, Rel. Min. José Delgado, REsp. 832.906/SC, DJ 27/11/2006. 322

Vide arts. 6º, 196 e 197 da Constituição Federal de 1.988. 323

STJ, 1ª Seção, Relator Ministro Castro Meira, REsp. nº 951.251/PR, DJe 03/06/2009, p. 11-12.

Page 127: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

125

hospitalar, excluindo-se as simples consultas médicas, atividade que não se

identifica com as prestadas no âmbito hospitalar, mas nos consultórios médicos.324

Frisamos não se tratar a interpretação teleológica de técnica que tenha

supremacia sobre as demais e que, isoladamente, possa ser reconhecida como apta a construir

corretamente as normas jurídicas. Assim sendo, não somente o fim prático, que premia o

aspecto semântico e pragmático da norma deve ser levado em consideração pelo exegeta, mas

todos os demais, em esforço sistemático, para fim de atribuir-se sentido ao direito posto. De

fato, foi o que ocorreu no julgado citado, na medida em que foi necessário incursionar pelo

sistema, a ponto de justificar a interpretação teleológica em normas constitucionais. Portanto,

ainda que a argumentação do Ministro Relator tenha sido justificada pela interpretação

teleológica, notamos que não foi essa a única técnica empregada para a tomada de decisão.

Esclarecemos, por fim, que a exegese econômica do direito tributário,

cujos defensores afirmam denotar técnica teleológica será analisada em tópico separado, dada

a força com que vem sendo retomada, principalmente pelas autoridades fiscais.

5.6 Interpretação sistemática

A técnica sistemática de exegese consiste em compreender o preceito

normativo por intermédio de seu elo com outros textos do ordenamento jurídico, de maneira a

compatibilizá-lo com o todo unitário. Não se trata de uma conexão tão-somente estrutural que

lança luzes aos vínculos lógicos intraproposicionais e interproposicionais, mas de um

procedimento que premia a interpretação da norma pela análise de todos os aspectos da

linguagem jurídica, levando-se em consideração o contexto histórico e jurídico-cultural no

qual a exegese é realizada.

A interpretação sistemática pressupõe as demais técnicas de exegese

anteriormente estudadas. Isto significa sustentar que a linguagem jurídica em sua

integralidade foi percorrida pelo sujeito, o que confirma a ideia de se tratar do expediente

324

Conforme item 5 da Ementa, cujo "caput" tem a seguinte redação: "PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO.

IMPOSTO DE RENDA. LUCRO PRESUMIDO. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O LUCRO. BASE

DE CÁLCULO. ARTS. 15, § 1º, III, "A", E 20 DA LEI 9.249/95. SERVIÇO HOSPITALAR.

INTERNAÇÃO. NÃO OBRIGATORIEDADE. INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA DA NORMA.

FINALIDADE EXTRAFISCAL DA TRIBUTAÇÃO. POSICIONAMENTO JUDICIAL E

ADMINISTRATIVO DA UNIÃO. CONTRADIÇÃO. NÃO PROVIMENTO."

Page 128: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

126

mais completo para a construção normativa. Nesse sentido, Paulo de Barros Carvalho325

tece

os seguintes comentários:

Não é difícil distribuir os citados 'métodos de interpretação' pelas três plataformas de

investigação lingüística. Os métodos literal e lógico estão no plano sintático,

enquanto o histórico e o teleológico influem tanto no plano semântico quanto no

pragmático. O critério sistemático da interpretação envolve os três planos e é, por

isso mesmo, exaustivo da linguagem do direito. Isoladamente, só o último

(sistemático) tem condições de prevalecer exatamente porque pressupõe os

anteriores. É assim considerado o método por excelência.

Parece-nos que, durante todo o percurso gerador de sentido, o

intérprete já se encontra operando no sistema jurídico, afinal os enunciados prescritivos que se

dispõem a compreender conformam essa estrutura. Porém, na medida em que avança por esse

caminho, há um aprofundamento sistemático cada vez maior, até chegar ao ponto de

investigar a pertinência que a norma criada guarda com os demais elementos do conjunto.

Trata-se de uma visão orgânica do dado jurídico, no qual o intérprete procura coerência na

compreensão do direito.

Para facilitar a exposição, utilizamos de caso concreto326

. No aresto

que analisamos, os julgadores entenderam que, apesar do disposto no item 1.05 da lista anexa

à Lei Complementar 116/03, que determina a incidência do ISS, de competência municipal,

na cessão de licença de uso de programas de computador, não haveria a possibilidade do

sucesso, mediante análise sistemática. A partir da leitura de definição estipulativa presente no

art. 1º, da Lei 9.609/98, que considera o programa de computador como um trabalho

intelectual amparado pelo regime jurídico conferido aos direitos autorais, o Tribunal concluiu

pela inexistência de efetiva prestação de serviço, consubstanciada em uma obrigação de fazer,

segundo entendimento que remanesce na doutrina327

, mas de uma obrigação de dar, tratando-

325

Op. cit., 2010, p. 134. 326

TJSP, 15ª Câmara de Direito Público, Relator Desembargador Silva Russo, apelação nº 994.06.175439-3,

julgada em 27/05/2010. A ementa encontra-se assim disposta: "MANDADO DE SEGURANÇA – ISS –

Exercício de 2004 – Município de Santana do Parnaíba – Ação de caráter preventivo – Adequação da via

eleita – Decadência não operada – Licenciamento e cessão de direito de uso de softwares – Tributação com

base no item 1.05 da lista trazida pela LC nº 116/03 – Descabimento – Atividade que não envolve efetiva

prestação de serviços – Afronta ao artigo 156, inciso III, da CF – Inconstitucionalidade vislumbrada –

Aplicação da Súmula Vinculante nº 10 do STF e do artigo 190 do Regimento Interno desta E. Corte –

Julgamento suspenso, com remessa dos autos ao C. Órgão Especial para análise da matéria." 327

No acórdão citado é lembrada a lição do Professor Aires F. Barreto, que, em sua obra Curso de Direito

Tributário Municipal. (São Paulo: Saraiva, 2009, p. 394), afirma que: "Dentre as cessões de direito, incluem-

se a licença de uso de 'software'. Na relação jurídica de uso de 'software' o licenciador ou sublicenciador cede

ao licenciado o direito de que é titular de usar a referida propriedade intelectual, mediante remuneração ou

não. Há rigorosamente a cessão de direito de uso de um bem que, em virtude de sua natureza incorpórea, é

um bem imaterial. Nesta operação, o titular dos direitos autorais do 'software' (licenciador) entrega o bem ao

interessado, para que possa usá-lo exclusivamente ou não, a título oneroso ou gratuito. Não há, pois, na

Page 129: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

127

se o item 1.05 da lista anexa à Lei Complementar 116/03, de exigência inconstitucional por

ampliar a competência concedida ao ente tributante. Conforme disposto no acórdão328

:

O licenciamento e a cessão de direito de uso de 'softwares' não se caracterizam

exatamente como efetiva prestação de serviços, descabendo alterar a definição e o

alcance de seus conceitos329

, à luz do artigo 110 do Código Tributário Nacional [...]

Com efeito, nas mencionadas atividades da apelante não pode incidir o ISS, na

espécie, onde vislumbro a inconstitucionalidade do item 1.05 da lista federal,

reproduzido no item 05 da lista municipal, por afronta ao artigo 156, inciso III, da

Carta da República, de modo que a concessão da segurança é medida imperiosa, a

meu ver, para obstar tal exação.

Portanto, no julgado analisado, o intérprete superou a mera subsunção

lógica que poderia ocorrer a partir da leitura do item 1.05 da lista anexa à Lei Complementar

116/03, concluindo pela inconstitucionalidade da exigência do tributo sobre a atividade de

cessão de direito de uso de software. Para que isso fosse possível, estabeleceu as

características da atividade a fim de compará-la com o conceito de serviço utilizado pelo

legislador constituinte. A partir da lei 9.609/98, que estipula a definição e o regime jurídico

dos programas de computador, dialogou com a Ciência do Direito para fixar o que

efetivamente seria "prestar serviço", utilizando como critério a natureza da obrigação.

Pontuou suas ponderações pelo disposto no art. 110 do CTN, para ao final decidir pela

incompatibilidade do preceito com a Constituição Federal. O item 1.05, dessa maneira, foi

visto com relação ao todo, sendo esse um excelente exemplo de aplicação da exegese

sistemática, de acordo com as premissas que adotamos, pois o exegeta não se fixou apenas no

campo sintático. Partiu também, para análise semântico-pragmática, aprofundando-se no uso

dos conceitos de software e serviços pela comunidade jurídica, até o ponto de verificar a

inconsistência com norma de hierarquia superior (Carta Magna), em relação de subordinação

e com leis que regulam a matéria (Lei 9.609/98) em juízo de coordenação.

Portanto, a exegese sistemática de que falamos é aquela que não

interpreta o texto de forma isolada e parcial. O esforço necessário para a compreensão do

preceito é maior. Depende de uma análise mais ampla, consubstanciada no entendimento do

espécie esforço físico ou intelectual do cedente que possa caracterizar uma prestação de serviço, mas

verdadeira cessão de direito, da espécie licença de uso, cuja natureza é típica de uma obrigação de dar. Sendo

a cessão de uso de 'software' (cessão de direitos) negócio jurídico que, diante da nossa ordem jurídica,

configura obrigação de dar, segue-se, necessariamente, que jamais poderia refletir 'prestação de serviços' (que

só pode alcançar obrigações de fazer). Não há, pois, como subsumir a cessão de direito de uso de 'software'

no conceito de serviço tributável, por via do ISS". 328

Acórdão citado, fls. 2 e 4. 329

O magistrado refere-se obviamente à Constituição Federal.

Page 130: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

128

direito como um conjunto de normas que se relacionam entre si também sob o ponto de vista

semântico e pragmático.

Confere robustez a esse entendimento Eros Roberto Grau330

, ao

afirmar que: "A interpretação do direito é interpretação do direito, e não de textos isolados,

desprendidos do direito."

E mais adiante, em outro trecho de sua obra, cita lição de Geraldo

Ataliba331

com propriedade: "Nenhuma norma jurídica paira avulsa, como que no ar. Nenhum

mandamento jurídico existe em si, como que vagando no espaço, sem escoro ou apoio. Não

há comando isolado ou ordem avulsa […]".

Contudo, o modo de compreender a técnica sistemática de exegese do

direito não é unânime na doutrina, sendo oportuno citar autores de relevo no cenário nacional

que a entendem de forma diversa, por vezes, aproximando-a da lógica, o que retiraria, em

nosso modo de ver, as qualidades que apontamos ao descrever esse modo de atribuir sentido

aos textos do direito posto.

Bernardo Ribeiro de Moraes332

, apesar de abrir suas explanações sobre

o assunto, afirmando cabalmente que "o sistemático não é apenas lógico", conclui seu

raciocínio compreendendo-o como um procedimento no qual os aspectos semânticos e

pragmáticos estariam além de seus limites. Encerra o doutrinador sua exposição sobre o tema

da seguinte maneira: "Em que pese o valor do método sistemático é de se ver que na

interpretação da norma jurídica não podemos ficar fixados apenas na norma jurídica. A

realidade social é essencial ao direito. O processo sistemático, portanto, não satisfaz

plenamente."

Porém, semântica e pragmática e, em certa medida, a própria lógica,

que varia de acordo com a finalidade de cada sistema, refletem o uso da linguagem e,

portanto, a denominada "realidade social" é contemplada, pois não existe sociedade apartada

da linguagem. Os próprios membros da comunidade de utentes da linguagem são discernidos

com a finalidade de iluminar a autonomia do direito e não seu isolamento social.

330

GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 4. ed. São Paulo:

Malheiros Editores, 2006, p. 131. (destaques do autor). 331

ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 132. 332

Op. cit., p. 197 e 198.

Page 131: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

129

Hugo de Brito Machado333

, em seus ensinamentos, equipara a técnica

sistemática ao processo lógico de atribuição de sentido, conforme compreende-se na seguinte

passagem:

O método sistemático, também conhecido como lógico, é de fundamental

importância para revelar o significado adequado das normas, porque existem muitos

conceitos de Lógica Jurídica que podem ser simplesmente decisivos para a

compreensão de certas normas.

Porém, de forma diversa dos autores citados, o construtivismo lógico-

semântico compreende o método sistemático como o mais completo, por permitir ao

intérprete incursionar pela linguagem jurídica em todos os seus patamares, não se

confundindo com o chamando método lógico, anteriormente explicado. O aspecto pragmático

consistente no uso que a comunidade jurídica faz dos textos que compõem o ordenamento

implica atenção ao aspecto social, aos valores a serem observados pelo exegeta, o que se

reflete tanto no campo sintático, na medida em que a norma irá permitir (P), proibir (V) ou

obrigar (O) determinada conduta, como no semântico, mediante a atribuição de sentido aos

termos que compõem a linguagem na qual encontra-se vazado o preceito jurídico. Vimos em

exemplo anterior que, muito embora a Corte Especial tenha fundamentado sua decisão no

processo teleológico, ocorreu também análise sistêmica por parte do exegeta, que pautou-se

no valor da proteção à saúde, conferido pela Constituição Federal, para ampliar o conceito de

"estabelecimento hospitalar", apesar do disposto no artigo 111, II, do CTN. A análise

sistemática é, portanto, mais ampla que a análise lógica e por contemplar o aspecto

pragmático da linguagem jurídica considera o contexto sócio-cultural em que a interpretação é

realizada.

A exegese sistemática afigura-se como absolutamente necessária em

qualquer ramo do direito porque imprime maior segurança e consistência à atribuição de

sentido, em virtude de o preceito não ser interpretado isoladamente, mas como uma

proposição pertencente a um conjunto. Contudo, a assertiva parece-nos muito evidente no

campo do direito tributário, conclusão a que se chega ao considerarmos dado incontroverso

presente em nosso ordenamento: o constituinte repartiu rigorosamente a competência para

instituir tributos aos entes políticos no corpo da Constituição Federal e, ao fazê-lo, utilizou-se

de conceitos presentes em vários ramos do direito, como "serviço", "mercadoria",

"propriedade urbana" etc., não estipulando definição própria no texto constitucional. Portanto,

333

Op. cit., p. 97.

Page 132: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

130

parece-nos compatível com as premissas adotadas nesse trabalho, que a atribuição de sentido

que permita delimitar a competência dos entes tributantes dependerá, necessariamente, de

uma incursão ao sistema.

Reforça a tese, regra do ordenamento que determina a maneira de

interpretar os conceitos de direito privado utilizados na Constituição Federal, consistente no

disposto no art. 110 do Código Tributário Nacional, que passamos a analisar.

5.7 O artigo 110 do Código Tributário Nacional e a interpretação sistemática

O dispositivo que passamos a investigar é uma regra do ordenamento

para a exegese do direito tributário, encontrando-se inserida em capítulo próprio do CTN

reservado ao assunto. Contudo, optamos por analisá-lo nesse ponto da dissertação, que trata

sobre as técnicas que a Hermenêutica tradicionalmente debate e, mais especificamente, sobre

a exegese sistemática do direito, ao invés de abordá-lo em tópico anterior voltado à descrição

crítica de regras dessa natureza. O motivo do recorte analítico efetuado é a compreensão,

vigente em parcela da doutrina334

, de que o dispositivo em estudo denotaria superioridade

entre os métodos adotados pelo legislador do Código, que teria premiado técnica sistemática

de interpretação, para uns, ou teleológica, para outros, de acordo com a leitura feita dos

artigos 109335

e 110336

do CTN.

Ricardo Lobo Torres337

coloca o problema da seguinte forma:

334

No sentido de defender interpretação sistemática do direito tributário, com a leitura conjunta dos artigos 109

e 110 do CTN, lembramos Rubens Gomes de Sousa (op. cit., p. 378-379). Para ilustrar posição contrária, que

defende a supremacia da interpretação teleológica, lembramos Amílcar de Araújo Falcão, em Fato gerador

da obrigação tributária (3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1974, p. 45-44), da qual convém

ressaltarmos o seguinte trecho: "A caracterização do fato gerador nem sempre, entretanto, se faz

extensivamente na lei. Muitas vêzes limita-se o legislador a mencionar um simples 'nomen juris', ou a fazer

uma enumeração meramente exemplificativa, deixando ao intérprete a tarefa de, com base na norma,

conceituar concretamente o fato gerador em cada caso. A primeira hipótese ocorre quando o fato gerador

coincide com um conceito já consagrado em outro ramo do direito, em alguma ciência ou mesmo na

linguagem comum. Em tal caso, ao intérprete e ao aplicador cumprirá colhêr as características do fato

gerador na disciplina jurídica ou científica na qual a sua definição foi tomada, com a advertência, porém, de

que para tanto serão levados em consideração princípios fundamentais do Direito Tributário e, entre êles, o

da chamada interpretação econômica da lei tributária." 335

"Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do

alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários." 336

"Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e

formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas

Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou

limitar competências tributárias." 337

Op. cit., p. 137.

Page 133: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

131

Com efeito, o CTN pretende estabelecer uma hierarquia entre os métodos de

interpretação, especialmente entre o sistemático e o teleológico ou econômico. Em

razão de sua ambigüidade, entretanto, abre-se para duas leituras distintas e

contrastantes: a) pode ser interpretado, se lidos conjuntamente os arts. 109 e 110, no

sentido de que privilegia o método sistemático, quando estiverem em jogo institutos

e conceitos utilizados pela Constituição; b) admite a interpretação, se visualizado

separadamente o art. 109, de que há prioridade ao método teleológico ou à

consideração econômica do fato gerador, pelo menos quando não haja a

constitucionalização dos conceitos.

O problema da escolha pela prevalência entre uma das duas técnicas

apontadas, segundo observa o autor338

, relacionar-se-ia com: (i) as fontes do direito; (ii) com o

equilíbrio entre direito tributário e direito privado; e (iii) com a licitude da escolha das formas

jurídicas. Dessa maneira, se adotada a exclusividade da legislação como fonte do direito, em

virtude do disposto no art. 110 do CTN, haveria subordinação do direito tributário ao direito

privado e a licitude da escolha das formas dos negócios jurídicos, premiando-se visão

sistemática. Se, porém, houver a inclusão da jurisprudência entre as fontes do direito, tem-se a

autonomia do direito tributário e a ilicitude da elisão, revelando-se, assim, a supremacia do

método teleológico.

Apesar da importância que assumiu o debate em nossa doutrina, com

evidentes reflexos na jurisprudência339

, entendemos tratar-se de falso problema se submetido

à luz das premissas encampadas nessa pesquisa e a uma análise mais detida da posição do

direito tributário em nosso ordenamento jurídico.

De início, constatamos que a legislação e a jurisprudência não são

fontes do direito340

, mas o próprio direito já constituído. Por outro lado, em respeito ao debate

travado na doutrina que se utiliza desses dois conceitos como critérios para apuração de

eventual supremacia entre as posturas interpretativas perfilhadas pelo CTN, analisamos a

possibilidade de seu emprego como forma de elucidar a questão. Concluímos, porém, que

338

Op. cit., loc. cit. 339

A título de exemplo, STF, RE nº 100.779, Relator Ministro Oscar Corrêa. Publicado no D.J. de 04.05.84. Em

trecho do voto do Min. Relator ficou consignado às fls. 09 que: "O conceito de serviço que impera no direito

tributário não é mais o mesmo do Direito Civil, mas o que se ampliou na interpretação econômica dos

serviços, postos como meio de satisfação das necessidades imateriais, como os bens o são para as

necessidades materiais." Em julgado mais recente, STJ, Recurso Especial nº 610.693 – CE, Relator Min. Luiz

Fux: "Tributário. Abono substitutivo de reajuste salarial. Incidência do imposto de renda. [...] 3. O abono

pecuniário concedido aos empregados em substituição ao reajuste dos salários inadimplidos no tempo devido,

não obstante fruto de reconhecimento via transação, é correção salarial e, como tal, incide o imposto devido,

tal como incidiria a exação, se realmente paga a correção no tempo devido. Abono salarial com esse teor, é,

em essência, salário corrigido, sendo indiferente que a atualização se opere por força de decisão judicial ou

de transação. 4. Interpretação econômica que se impõe, uma vez que a realidade econômica deve

prevalecer sobre a simples forma jurídica." (destaques nossos). 340

Entendemos como "fonte do direito" a atividade de enunciação de normas desenvolvidas pelos órgãos

habilitados pelo sistema, segundo as regras nele previstas.

Page 134: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

132

tanto os textos de lei, como a jurisprudência não constituem índice seguro para respondê-la.

Por terem característica de linguagem que configura o direito posto, são atingidas pela

vaguidade e ambiguidade, como, aliás, comprova o próprio debate que ora reportamos. Dito

de outra maneira, a legislação em si, enquanto ente físico, necessita ser interpretada e o

exegeta, ao analisar os preceitos do artigo 109 e 110 do CTN, poderá negar a existência da

suposta hierarquia entre as técnicas, ou ainda, concluir pela supremacia de qualquer uma

delas. A jurisprudência, por outro lado, entendida como o produto de interpretações efetuadas

pelos membros do Poder Judiciário que apontam sentidos recorrentes, poderá concluir pela

preponderância da interpretação sistemática, como no exemplo acima, que afastou a

incidência do ISS sobre licença de uso dos programas de computador. Em suma, não guarda a

legislação a exclusividade da interpretação sistemática, nem tampouco a doutrina porta a

bandeira da exegese teleológica como se fossem essências caracterizadoras da natureza dos

dois institutos341

.

A segunda controvérsia sucede da suposta preferência do legislador

pela exegese sistemática. Trata-se da subordinação do direto tributário ao direito privado, tese

da qual discordamos342

. O direito é um sistema de linguagem, feixe de proposições voltadas

para a realização de um fim, mais precisamente a regulação da conduta humana, sendo

admissível sua divisão em ramos somente para atender necessidades didáticas. Sobre o

assunto, lembramos a doutrina de Alfredo Augusto Becker343

, ao defender a unicidade do

direito:

Não existe um legislador tributário distinto e contraponível a um legislador civil ou

comercial. Os vários ramos do Direito não constituem compartimentos estanques,

mas são partes de um único sistema jurídico, de modo que qualquer regra jurídica

exprimirá sempre uma única regra (conceito ou categoria ou instituto jurídico)

válida para a totalidade daquele único sistema jurídico [...] uma definição, qualquer

que seja a lei que a tenha enunciado, deve valer para todo o Direito; salvo se o

legislador expressamente limitou, estendeu ou alterou aquela definição ou excluiu

sua aplicação num determinado setor do Direito […]

Do ponto de vista formal, a unicidade do direito defendida por Becker

fica evidente ao pensarmos no aspecto dinâmico de sua linguagem, isto é, na maneira como

são realizados os comandos do direito posto. A concretização das normas jurídicas se dá de

341

Relembramos a premissa adotada nesse trabalho que refuta a ideia de uma essência imutável na linguagem

que possa ser atribuída aos conceitos de direito. As significações variam de acordo com o contexto em que a

língua é utilizada. 342

Como exemplo desse pensamento, citamos Aliomar Baleeiro: "Combinado com o art. 109, o art. 110 faz

prevalecer o império do Direito Privado – Civil ou Comercial – quanto à definição, ao conteúdo e ao alcance

dos institutos, conceitos e formas daquele direito […]". (op. cit., p. 687). 343

BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2007, p. 129-130.

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133

forma escalonada, devendo ser produzidas com respeito à competência distribuída na

Constituição Federal – seu fundamento último de validade – e de acordo com o procedimento

nela delineado. Isto implica a tese de que, seja no chamado direito privado, seja no público, os

sujeitos somente poderão agir dentro do que o direito entende como permitido (P), proibido

(V) ou obrigatório (O)344

. Portanto, sintaticamente, a linguagem jurídica não apresenta a

possibilidade da formação e existência de dois direitos distintos, de acordo com os sujeitos

que se vinculam na relação jurídica.

Os aspectos semânticos e pragmáticos da linguagem jurídica nos

permitem também reafirmar a unicidade do direito. Os conceitos de direito privado utilizados

na Constituição Federal e que delimitam as competências tributárias foram vazados em

linguagem técnica345

, característica do direito positivo, sem que qualquer ressalva ou

definição estipulativa fosse tecida pelo constituinte. Ao utilizar-se do conceito de "serviço",

"renda", "faturamento", dentre outros, o fez com observância aos sentidos possíveis admitidos

pela comunidade jurídica e que são associados ao denominado direito privado. Portanto, na

interpretação sistemática, conforme disposta pelo art. 110 do CTN, não ocorreria a

subordinação do direito tributário ao direito privado, mas a simples constatação de que os

conceitos de direito privado foram incorporados na Constituição Federal, ao delimitar-se a

competência dos entes tributantes.

Sobre o assunto, lembramos os ensinamentos de Tathiane dos Santos

Piscitelli346

:

O artigo 110 do CTN, ao estabelecer a prevalência de conceitos, formas e definições

de direito privado, não pressupõe qualquer submissão da Constituição a esses

institutos. Ao contrário, apenas denota a incorporação deles mesmos no texto

constitucional. Ou seja, somente faz sentido falar em respeito aos institutos de

direito privado porque a Constituição os incorporou por ocasião da delimitação

da competência tributária.

344

Nesse sentido, Hans Kelsen adverte-nos dos problemas ocasionados pela divisão radical do direito em

público e privado. Para o jusfilósofo, o critério eleito para a classificação proposta seria a repartição das

relações jurídicas. No direito privado os sujeitos estariam em posição de igualdade, possuindo juridicamente

o mesmo valor. Porém, no direito público, o Estado ocuparia posição de superioridade e, no outro extremo, o

súdito estaria subordinado às considerações advindas do poder. Dessa maneira, teríamos o direito em sentido

próprio somente nas relações jurídicas privadas. O direito público, por sua vez, revelaria relações de poder ou

domínio, na medida em que haveria um sujeito supraordenado em oposição a outro, subordinado. Isso

significaria admitir que no direito público o princípio da legalidade não teria a mesma força que no direito

privado. Conforme Teoria Pura do Direito (op. cit., p. 310-315). 345

Por linguagem técnica, entendemos aquela que se constitui em linguagem ordinária, mas que se utiliza de

alguns conceitos científico, conforme expusemos em capítulo próprio. 346

Op. cit., p. 1228. (destaques da autora).

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134

Observamos que a interpretação sistemática, ainda que possa ser

associada ao artigo 110 do CTN, é a melhor técnica de exegese, independentemente da

existência do dispositivo legal, porque nela o direito é visto como um todo unitário, isto é, os

aspectos da linguagem jurídica são integralmente analisados, inclusive o pragmático, no qual

o uso dos termos está firmemente conectado à finalidade da norma, aos valores presentes no

contexto histórico-cultural que orienta o intérprete, conforme já exposto. Tratando-se de nosso

ordenamento ela se impõe como decorrência da opção feita pelo constituinte, que repartiu as

competências tributárias e os limites de sua utilização no corpo da Constituição Federal,

incorporando conceitos de direito privado. Portanto, uma correta exegese da norma tributária

– que não implica em atribuir-se sentido único – somente poderá ser feita se o sujeito assumir

postura sistemática. Todavia, a existência do art. 110 do CTN é bastante útil, porque serve

para reafirmar a interpretação sistemática como regra a ser observada tanto pelo legislador,

como pelo aplicador do direito.

Vejamos mais um caso concreto347

, que bem exemplifica a imposição

da exegese sistemática em nosso ordenamento e a utilidade do art. 110 do CTN. A

controvérsia no aresto analisado residia na licitude de incidência de ISS sobre locação de

veículo automotor. O exame do conceito de "locação", conforme utilizado no direito privado,

que caracteriza-se por uma obrigação de dar, serviu como parâmetro para que o Tribunal

concluísse pela impossibilidade da cobrança do imposto, cuja competência constitucional

exige uma prestação de serviço caracterizada por obrigação de fazer. Portanto, para que o

julgador pudesse solucionar adequadamente a lide, adentrou no direito privado e,

compreendendo o significado do termo "serviço", incorporado pela Carta Magna, pôde decidir

pela inconstitucionalidade da lei municipal, dissonante em relação de coordenação e

subordinação com demais normas do sistema.

Pelo exposto, discordamos da opinião de Ricardo Lobo Torres348

, para

quem:

347

STF, Recurso Extraordinário nº446.003-3 – PR, 2ª Turma, Relator Min. Celso de Mello, julgado em

30/05/2006, cuja Ementa encontra-se assim redigida: "Imposto sobre serviços (ISS). – Locação de veículo

automotor – Inadmissibilidade, em tal hipótese da incidência desse tributo municipal – Distinção necessária

entre locação de bens móveis (obrigação de dar ou de entregar) e prestação de serviços (obrigação de fazer) –

Impossibilidade de a legislação tributária municipal alterar a definição e o alcance de conceitos de direito

privado (CTN, art. 110) – inconstitucionalidade do item 79 da antiga lista de serviços anexa ao Decreto-Lei

nº 406/68 – Precedentes do Supremo Tribunal Federal – Recurso Improvido." 348

Op. cit., p. 142.

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135

A interpretação lógico-sistemática do Direito Tributário, além da incongruência de

se aplicar apenas aos conceitos tributários constitucionalizados, está em franco

declínio na consideração da doutrina jurídica, por excluir a apreciação teleológica.

E, juntamente com ela, os seus corolários inevitáveis: o primado do Direito Privado,

a separação entre o sistema do Direito e da Economia, a licitude da elisão e a

exclusão da legislação como fonte do Direito Tributário.

De maneira contrária, entendemos que a interpretação sistemática é

uma exigência de nosso ordenamento jurídico. No que tange ao direito tributário não há como

posicionar-se pela constitucionalidade de uma norma sem que o intérprete promova a

significação dos conceitos que delimitam as competências dos entes tributantes no direito

privado. Além disso, todo e qualquer ato jurídico praticado pelo ente tributante ou pelo

particular no exercício da respectiva competência está adstrito aos princípios que delimitam o

poder de tributar e que estão estampados na Constituição Federal. Por essas razões,

discordamos da posição do autor ao afirmar o desprestígio da interpretação sistemática e

concluímos pela improcedência da discussão sobre a eleição de métodos pelo legislador do

Código Tributário Nacional. Primeiro, porque, como asseverado, a interpretação sistemática

pressupõe todos os demais métodos, inclusive o teleológico. Segundo, porque a Constituição

Federal, ao tratar com minúcias o direito tributário, exige do intérprete uma visão orgânica

somente acessível pelo método sistemático de interpretação.

No que concerne à suposta falta de apreciação teleológica pela via da

interpretação sistemática, ressalvamos que ela não se limita ao plano lógico. A apreciação

teleológica da norma é contemplada por esse método na medida em que o direito implica a

realização de valores. Dessa forma, a atribuição de sentido aos termos que compõem a

linguagem jurídica será feita na instância pragmática e depende das escolhas efetuadas pelo

intérprete que está inserido e limitado pelo contexto histórico, social e jurídico no qual

encontra-se imerso.

Por outro lado, a conclusão automática e infalível da licitude da

escolha das formas nos negócios jurídicos, independentemente de seu conteúdo, conforme

afirma o autor, na medida em que se opte pelo método sistemático não se sustenta.

Primeiramente, lembramos da impossibilidade lógica da existência de forma sem conteúdo. A

linguagem jurídica, como outra qualquer, depende de suportes físicos, a exemplo da escrita,

que lhe emprestam a forma. Seu conteúdo será ditado pelo intérprete, visto como sujeito

limitado por um contexto ao qual pertence, conforme premissas utilizadas nessa pesquisa.

Portanto, qualquer formato de negócio jurídico não se realiza independentemente de um

Page 138: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

136

conteúdo. O juízo consistente em saber se sua utilização encontra-se dentro das balizas do

direito ou se é caso de simulação349

dependerá das provas constituídas e não guarda vínculo

automático com a utilização de técnica sistemática ou teleológica de interpretação do direito.

Pelo contrário, entendemos que a interpretação sistemática somente pode auxiliar o intérprete

na compreensão do fenômeno, justamente por pressupor todas as demais técnicas, inclusive a

teleológica.

No tocante à separação do sistema do direito da economia, outro fato

apontado acima por Ricardo Lobo Torres, como decorrência infalível da interpretação

sistemática, salientamos, trata-se de ponto fulcral para a preservação da autonomia do direito

com relação aos demais sistemas, o que pode evitar que decisões sejam tomadas com

fundamentos não jurídicos, prejudicando a expectativa compartilhada pelos utentes da

linguagem do direito posto, isto é, um mínimo de segurança jurídica. O assunto será revisto

no tópico relativo à interpretação econômica do direito tributário.

5.8 A interpretação sistemática e os Tribunais Administrativos

A partir das considerações elementares efetuadas no tópico anterior,

dispomo-nos a responder uma questão bastante recorrente e de fundamental importância, que

é levantada no cenário atual: podem os Tribunais administrativos, a exemplo do CARF350

,

deixar de aplicar uma lei por entendê-la inconstitucional? Dito de outra maneira, julgamento

que admita a impossibilidade dos Tribunais administrativos afastarem a incidência de uma

dada norma jurídica por sua inconstitucionalidade implica em vedação ao intérprete de

realizar exegese sistemática?

O entendimento dominante na esfera administrativa de julgamento de

questões advindas da exegese e aplicação das leis tributárias federais considera que a

competência para declarar norma inconstitucional seria exclusiva do Poder Judiciário. Além

349

Luciano Amaro conceitua a simulação como: "Falta de correspondência entre o negócio que as partes

realmente estão praticando e aquele que elas formalizam. As partes querem, por exemplo, realizar uma

compra e venda, mas formalizam (simulam) uma doação, ocultando o pagamento do preço […]."(op. cit., p.

231). 350

A sigla utilizada refere-se ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, órgão integrante da estrutura do

Ministério da Fazenda que tem por função julgar recursos de ofício e voluntário de decisões de primeira

instância administrativa, bem como recursos de natureza especial que versem sobre a aplicação de legislação

referente a tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, conforme disposto no Anexo

I, da Portaria nº 256 do Ministério da Fazenda, que aprovou o regimento interno do CARF.

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137

disso, as leis teriam presunção de legalidade, razões pelas quais não poderia o agente

administrativo deixar de aplicá-las.

A posição dos Tribunais administrativos sobre o assunto encontra-se

muito bem explicada na doutrina de Marcos Vinícius Neder e Maria Teresa Martínez

López351

, a seguir transcrita:

É importante lembrar que as decisões administrativas são espécie de ato

administrativo e, como tal, sujeitam-se ao controle do Judiciário. Se, por acaso, a

fundamentação do ato administrativo baseou-se em norma inconstitucional, o Poder

que tem atribuição para examinar a existência de tal vício é o Poder Judiciário.

Afinal presumem-se constitucionais os atos emanados do Legislativo e, portanto, a

eles vinculam-se as autoridades administrativas. [...] Com efeito, se o Presidente da

República, que é responsável pela direção superior da Administração Federal, como

prescreve o artigo 84, II, da CF/88, e tem o dever de zelar pelo cumprimento de

nossa Carta Política, inclusive vetando leis que entenda inconstitucionais, decide não

o fazer, há presunção absoluta de constitucionalidade da lei que este ou seu

antecessor sancionou ou promulgou.

Como se verifica, os argumentos da presunção de constitucionalidade

da lei e a competência exclusiva do Poder Judiciário para afastar normas inconstitucionais

encontram-se defendidos na teoria dos autores, o que também se repete nos julgamentos do

CARF. Observemos um caso concreto, cujo objeto central do debate consistiu na aplicação do

art. 3º, § 2º, inciso III, da Lei 9.718/98352

, para fins de exclusão da base de cálculo do PIS e da

COFINS de receitas transferidas para outras pessoas jurídicas353

. Segundo consta do voto do

Relator, compete aos órgãos judicantes do Poder Executivo

Tão-somente o controle de legalidade dos atos administrativos, consistente em

examinar a adequação dos procedimentos fiscais com as normas legais vigentes,

zelando, assim, pelo seu fiel cumprimento. […] Os mecanismos de controle da

constitucionalidade, regulados pela própria Constituição Federal, passam,

necessariamente, pelo Poder Judiciário que detém, com exclusividade, essa

prerrogativa.

351

NEDER, Marcos Vinícius; LÓPEZ, Maria Teresa Martínez. Processo administrativo fiscal federal

comentado. 3. ed. São Paulo: Dialética, 2010, p. 50-51. 352

O dispositivo legal encontrava-se, à época dos fatos, assim redigido: "Art.3º. O faturamento a que se refere o

artigo anterior corresponde à receita bruta da pessoa jurídica. [...] § 2º. Para fins de determinação da base de

cálculo das contribuições a que se refere o art. 2º, excluem-se da receita bruta: [...]. III – Os valores que,

computados como receita, tenham sido transferidos para outra pessoa jurídica, observadas normas

regulamentadoras pelo Poder Executivo." Com a edição da Medida Provisória nº 2.158 de 2001, o dispositivo

em questão foi considerado revogado. Contudo, sua incidência foi objeto de apreciação no acórdão proferido

em 2008, utilizado como exemplo de decisão na qual deixou-se de efetuar interpretação sistemática. 353

Acórdão nº 203-13.659, fls. 353. Sessão de 03/12/2008. Segundo Conselho de Contribuintes. Terceira

Câmara. Relator Gilson Macedo Rosenburg Filho.

Page 140: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

138

Tal entendimento reflete o disposto na Súmula nº 02, aprovada pela

Portaria nº 106, de 21/12/09, que assim determina: "O CARF não é competente para se

pronunciar sobre a inconstitucionalidade da lei tributária."

Observe-se, ainda, a redação dada pela Lei nº 11.941/2009 ao art. 26-

A do Decreto nº 70.235/1972, responsável por reger o processo administrativo que verse

sobre créditos tributários da União: "No âmbito do processo administrativo fiscal, fica vedado

aos órgãos de julgamento afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo

internacional, lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade."

Contudo, de nosso ponto de vista, não parece correto proibir juízo

sobre a inconstitucionalidade das leis por parte dos Tribunais administrativos. Primeiramente,

reiteramos a observação já feita sobre o tratamento constitucional que a matéria tributária

recebeu no Brasil. No caso concreto citado, a Receita recusou-se a aplicar o art. 3º, § 2º,

inciso III, da Lei 9.718/98, que permitia a exclusão da base de cálculo do PIS e da COFINS de

receitas transferidas a outras pessoas jurídicas, sob o argumento de que o dispositivo exigia a

regulamentação pelo Poder Executivo. Todavia, pelo princípio da estrita legalidade disposto

no art. 150, I, da Carta Magna, a definição da base de cálculo de qualquer tributo somente

pode ser feito por lei354

, o que implica no reconhecimento da licitude de não inclusão dos

valores transferidos a terceiros, apesar do disposto no art. 3º, § 2º, inciso III, da Lei 9.718/98,

que nesse tópico ofendia a Carta Magna. Portanto, a solução para a controvérsia,

necessariamente, exigia o juízo sistemático que considerasse a constitucionalidade do

supracitado artigo. Como não foi feito, o aplicador ficou cingido à subsunção lógica do fato

ao preceito normativo, possível de se realizar pela simples leitura do direito, que, frise-se, não

é o mesmo que interpretar uma lei, constituindo-se apenas a etapa inicial dessa atividade

complexa.

Parece-nos, inclusive, que, ao contrário do disposto no trecho do voto

do ilustre Conselheiro, os juízos constitucionais também são necessários à analise de

procedimentos fiscalizatórios. Deixar de intimar o contribuinte de ato administrativo de seu

interesse, por exemplo, pode gerar nulidade por ofensa, em último juízo, às garantias

constitucionais do devido processo legal e do direito a ampla defesa. Nesse sentido,

354

Neste sentido, Roque Antonio Carrazza leciona que "O tributo, pois, deve nascer da lei [...] Tal lei deve

conter todos os elementos e supostos da norma jurídica tributária (hipótese de incidência do tributo, seus

sujeitos ativo e passivo e suas base de cálculo e alíquotas), não se discutindo, de forma alguma, a delegação,

ao Poder Executivo, da faculdade de defini-los, ainda que em parte.". (op. cit., p. 248).

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139

exemplifica ementa de acórdão proferido pela 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos

Fiscais:

Nulidade – Cerceamento de defesa. A intimação feita para endereço diverso do

advogado da parte, quando essa pretensão é requerida expressamente na

impugnação, caracteriza preterição do direito de defesa da parte. (Processo nº

10880.07697/92-88, Acórdão CSRF/01-02.288).

Não obstante inexistir menção no julgado em exame à eventual

inconstitucionalidade do ato praticado, o direito de defesa infringido pela notificação em

endereço diverso do requerido pelo patrono do contribuinte encontra-se na Carta Magna, art.

5º, LV, cuja redação é a seguinte: "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e

aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e

recursos a ela inerentes." Portanto, devido à unicidade do direito e ao escalonamento

hierárquico das normas que o caracterizam, não há como o intérprete deixar de proceder a

juízos sistemáticos, mesmo quando o assunto seja o procedimento da fiscalização.

Outro argumento que nos faz discordar da Súmula nº 02 do CARF é

que o fundamento último de validade de uma norma encontra-se no Texto Maior que, repita-

se, estabeleceu competências em matéria tributária, cabendo por força do disposto no seu art.

23, I, à União, aos Estados, Distrito Federal e Municípios a guarda da Constituição Federal.

Com efeito, ainda que exista o monopólio do Poder Judiciário para declarar a

inconstitucionalidade da lei, a norma do referido artigo fundamenta a não aplicação de

dispositivo que se vislumbre em desalinho com a Carta Magna355

.

Em nossa opinião, impedir que os órgãos judicantes do Poder

Executivo afastem leis inconstitucionais significa impedi-los de efetuar interpretação

sistemática, que configura-se como regra de exegese do direito tributário brasileiro. Segundo

as premissas adotadas nesse trabalho a vedação imposta pode levar a arbitrariedades, isto é, a

enunciação de normas que não atendem a expectativa jurídica dos utentes da linguagem,

como a aplicação de lei inconstitucional.

355

Dessa forma, parece-nos pouco convincente o posicionamento de parte da doutrina consistente em admitir a

incidência restrita da Súmula nº 02 do CARF aos casos em que houver a inconstitucionalidade da lei por

ofensa direta à Constituição, permitindo, por parte da Administração Tributária, juízo de constitucionalidade

nas ocasiões em que, diversamente, a afronta for apenas indireta. Tal posição é defendida, por exemplo, por

Marcos Vinícius Neder, em artigo denominado Alcance e efeitos da súmula vinculante administrativa. In:

BARRETO, Aires Fernandino et al. Interpretação e Estado de Direito. São Paulo: Editora Noeses, 2006, p.

583.

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140

O mesmo entendimento se aplica à súmula vinculante, ao proibir os

membros do Poder Judiciário e dos Tribunais administrativos de se manifestarem

contrariamente a entendimento já consolidado pelo Supremo Tribunal Federal. Referimo-nos

ao enunciado que reflete entendimento dominante na jurisprudência, mas que, ao contrário

das súmulas persuasivas356

, tem efeito vinculante no que concerne aos membros do Poder

Judiciário e da Administração Tributária Federal357

. Tal medida pode limitar a atividade

interpretativa do sujeito, que fica impedido, nos casos onde houver as mesmas razões fáticas

e jurídicas, de decidir litígio de forma diferente do sumulado. O julgador poderá ter seu livre

convencimento tolhido pelo enunciado a que deve se submeter, estando proibido de proferir

norma que entenda compatível com uma visão sistemática do direito358

.

Concluímos, portanto, que a técnica sistemática de interpretação do

direito tributário é a única capaz de percorrer a linguagem jurídica em todos os seus aspectos.

Em nosso ordenamento jurídico, ela deve imperar como decorrência de o constituinte ter

prestado tratamento constitucional ao sistema de direito tributário, repartindo competências e

356

Para evitar contradição com premissa da pesquisa que considera o direito um sistema de linguagem

prescritiva, esclarecemos que as súmulas persuasivas são direito posto que vinculam o Poder Judiciário no

modal deôntico P(p). Isto significa que é permitido aos julgadores acatar ou não o entendimento sumulado.

De forma diversa, as súmulas denominadas "vinculantes" trazem comando no modal deôntico O(p), segundo

o qual, as autoridades referidas no art. 103-A da Constituição Federal estão obrigadas a aplicar o

entendimento do STF quanto à matéria sumulada. 357

Conforme Emenda Constitucional nº 45, de 2004, houve a introdução do artigo 103-A na Constituição

Federal: "Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de

dois terços de seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a

partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante aos demais órgãos do Poder Judiciário e à

administração pública direita e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua

revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei." (Grifo nosso). A Lei 11.196 de 2005 acrescentou o

art. 26-A ao Decreto nº 70.235, assim redigido: "A Câmara Superior de Recursos Fiscais do Ministério da

Fazenda – CSRF poderá, por iniciativa de seus membros, dos Presidentes dos Conselhos de Contribuintes, do

Secretário da Receita federal ou do Procurador Geral da Fazenda Nacional, aprovar proposta de súmula de

suas decisões reiteradas e uniformes. [...] § 3º Após a aprovação do Ministro do Estado da Fazenda e

publicação no Diário Oficial da união, a súmula terá efeito vinculante em relação à Administração Tributária

Federal e, no âmbito do processo administrativo, aos contribuintes." Com a edição da Lei nº 11.941 de 2009,

o referido artigo foi novamente alterado, sendo revogado o § 3º e a previsão de edição de súmula que vincule

a administração e os contribuintes. Todavia, a previsão para a vinculação da administração pública às

Súmulas vinculantes do STF remanesce em virtude do disposto no art. 103-A da CF, que foi regulado pela

Lei 11.417/2006. 358

Nesse sentido são as lições de Eduardo Domingos Bottallo: "[...] em sistemas como o nosso, as súmulas não

deveriam ir além da missão de 'mostrar' o direito posto pelo órgão jurisdicional que as elabora, sem que isto

signifique dotá-las de obrigatoriedade ou de poder vinculante [...]. Claro está que há de ser levada em conta a

fortíssima influência que as súmulas podem exercer em julgamento de casos similares àqueles que

constituem seu objeto. Entretanto, melhor seria que tal influência se limitasse a ser persuasiva porque,

ultrapassando este limite, a função do julgador perde o significado; passa a ser meramente decorativa."

(Súmulas obrigatórias do Primeiro Conselho de Contribuintes e direito dos administrados. In: ROCHA,

Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. Vol. 10. São Paulo: Dialética,

2006, p. 64.

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141

incorporando conceitos de direito privado para estipular materialidades possíveis, bem como

por estabelecer limites à tributação.

5.9 A interpretação econômica do direito tributário

Apesar das razões que justificam a interpretação sistemática como

regra imposta pelo ordenamento jurídico, parte da doutrina considera que, em virtude de

peculiaridades do direito tributário, mais precisamente, a relação econômica supostamente

presente no fato imponível, a exegese econômica seria o método específico para compreendê-

lo. No magistério de Amílcar de Araújo Falcão359

:

O que interessa ao direito tributário é a relação econômica. Um mesmo fenômeno da

vida pode apresentar aspectos diversos, conforme o modo de encará-lo e a finalidade

que, ao considerá-lo, se tem em vista. Assim, em direito civil, interessam os efeitos

dos atos e as condições de validade exigidas para a sua constituição e formação. [...].

Ao direito tributário só diz respeito a relação econômica a que êsse ato deu lugar,

exprimindo, assim, a condição necessária para que um indivíduo possa contribuir, de

modo que, já agora, o que sobreleva é o movimento de riqueza, a substância ou

essência do ato, seja qual fôr a sua forma externa

Outros autores a contestam como método específico do direito

tributário, porém a reconhecem como uma espécie de interpretação teleológica que deve ser

utilizada para descortinar tentativas do contribuinte de evadir-se à tributação. Como exemplo,

citamos o magistério de Ruy Barbosa Nogueira360

:

Um aspecto importante dentro da interpretação teleológica é o da chamada

consideração econômica. Especialmente no campo dos impostos, tendo-se em vista

que estes são instrumentos de captação de riquezas, que incidem quase sempre sobre

fatos econômicos por meio de categorias jurídicas que podem estar sendo distorcidas

ou mal utilizadas com pretensões de deduzir ou elidir tributações legítimas. A

consideração econômica poderá, em certos casos, demonstrar a finalidade autêntica

de dispositivos e impedir abusos.

Com efeito, o conceito de interpretação econômica tem inúmeros

sentidos em nossa doutrina361

, a ponto de Johnson Barbosa Nogueira catalogar oito espécies

de exegese econômica362

. Contudo, podemos afirmar que o denominador comum entre elas é

359

Op. cit., p. 99. 360

Op. cit., p. 93. 361

A variação a que nos referimos não é característica do conceito de interpretação econômica, podendo atingir

todo e qualquer conceito, na medida em que são constituídos pela linguagem, sempre vaga e ambígua. 362

NOGUEIRA, Johnson Barbosa. A interpretação econômica no Direito Tributário. São Paulo: Resenha

Tributária, 1982, p. 18-24. Segundo o autor, seriam as variações conceituais de interpretação econômica as

seguintes: (i) Busca da substância econômica, desprezando-se a forma jurídica; (ii) utilização de conceitos

próprios de direito tributário, em decorrência de sua autonomia; (iii) busca de identidade de efeitos

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142

a suposta presença de relação econômica no fato imponível que serviria como guia para a

atividade do exegeta. Amílcar de Araújo Falcão363

defende, inclusive, a forma elíptica364

do

critério material de um tributo, tratando-se de referência meramente léxica a uma relação

econômica. Para fins desse trabalho, analisaremos, sob a óptica dos pressupostos adotados,

apenas uma variante conceitual sobre interpretação econômica muito recorrente no cenário

atual: trata-se da que visa combater a simulação, também compreendida como abuso de

formas. Antes, porém, teceremos alguns comentários gerais sobre a exegese econômica.

De acordo com as premissas que regem nossa pesquisa, o direito é um

objeto cultural cuja finalidade seria a realização de valores. No direito tributário, vertente

isolada para fins exclusivamente didáticos, o mesmo ocorre. Os valores "igualdade" e

"justiça" são exemplos de estimativas que devem ser concretizadas na esfera tributária. A

forma utilizada pelo legislador para alcançar esse fim é a introdução no ordenamento jurídico

de normas que visam instituir, arrecadar e fiscalizar tributos365

. O legislador escolhe dentre os

eventos que sucedem no plano social aqueles que revelam sinais de riqueza, ou melhor, que

constituem certa capacidade do sujeito em contribuir com parcela de seus bens para custear as

atividades do Estado. Tais acontecimentos passam a ocupar o lugar de antecedente das

normas gerais e abstratas, na condição de hipótese que realizada de acordo com os ditames do

direito, isto é, desde que certificada em linguagem própria, implica relação de cunho

estritamente jurídico prevista no consequente normativo.

A exigência de capacidade contributiva dos sujeitos que figuram na

relação jurídica de índole tributária, como forma de viabilizar as finalidades desse ramo de

regulação de condutas, não permite concluir que o direito tributário tem por característica

relações de índole econômica. A posição assumida neste trabalho, inspirada pela postura do

construtivismo lógico-semântico, compreende o direito como um sistema de linguagem que

atua de forma autônoma e não isolada. Nele se percebe a abertura semântica de sua linguagem

que permite o diálogo com os demais sistemas, como o político e o econômico. Porém, todas

econômicos; (iv) combate ao abuso de formas de direito privado; (v) introdução da teoria do abuso de direito

no direito tributário; (vi) mera interpretação teleológica; (vii) valoração dos fatos e (viii) interpretação do

fato. 363

Op. cit., p. 107. 364

A figura da elipse, segundo Houaiss, quando utilizada num enunciado linguístico, denota a supressão de um

termo que pode ser facilmente subentendido pelo contexto lingüístico ou pela situação. 365

Paulo de Barros Carvalho propõe a seguinte definição de direito tributário, exclusivamente para fins didáticos

já que adota premissa de unicidade do direito, com a qual concordamos: "Estamos em que o direito tributário

positivo é ramo didaticamente autônomo do direito, integrado pelo conjunto das proposições jurídico-

normativas que correspondam, direta ou indiretamente, à instituição, arrecadação, e fiscalização de tributos."

(op. cit., 2010, p. 47).

Page 145: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

143

as relações nele presentes são jurídicas e devem ser constituídas e regidas de acordo suas

próprias regras.

Dessa maneira, a relação econômica referida por parcela da doutrina

como o diferencial do direito tributário, interesse último a ser realizado pelo intérprete, deve

ser vista como relação jurídica, parte integrante da norma, que por sua vez, é formada

levando-se em conta os critérios sintáticos, semânticos e pragmáticos presentes na linguagem

do direito e não na Economia. Nesse sentido, ao criticar a exegese econômica, Alfredo

Augusto Becker366

tece severas considerações:

A doutrina da interpretação do Direito Tributário, segundo a realidade econômica, é

filha do maior equívoco que tem impedido o Direito Tributário de evoluir como

Ciência Jurídica. Esta doutrina, inconscientemente, nega a utilidade do Direito,

porquanto destrói precisamente o que há de jurídico dentro do Direito Tributário.

Portanto, o perigo no método em análise é partir da premissa que

economia e direito se misturam sem restrições de nenhuma ordem, não existindo critérios

independentes de formação das respectivas linguagens. Transitar-se-ia livremente entre o

direito e a economia, como se ambas as linguagens tivessem o mesmo uso e funções idênticas.

Os defensores da prevalência da interpretação econômica do direito

tributário, sem atentarem para sua autonomia com relação a outros sistemas de linguagem,

entendem que o método em questão recomenda ao sujeito/intérprete que leve em conta, ao

realizar sua atividade, a consistência econômica do fato gerador e a forma jurídica utilizada.

Dessa maneira, se houver descolamento entre a forma jurídica adotada e o conteúdo

econômico, deve prevalecer o segundo, capaz de revelar a verdadeira intenção da lei. Tal

maneira de compreender o direito tributário se confirmaria como a mais apropriada, ao se

encarar o problema da evasão. Amílcar de Araújo Falcão367

cita exemplo utilizado por Merk,

que haveria ocorrido na Alemanha, como forma de ressaltar a importância de se buscar o

conteúdo econômico nas relações tributárias. Em síntese, tratava-se de indivíduo que, para

reduzir o montante cobrado a título de imposto de vendas, alugava o bem por valor altíssimo,

com a opção de o locador adquiri-lo após determinado período, efetuando pagamento de

pequeno valor. Dessa forma, o intérprete, ao observar a relação de cunho econômico, poderia

concluir o comportamento como um ardil, cujo objetivo seria a indevida economia fiscal.

366

Op. cit., p. 137. 367

Op. cit., 1959, p. 103.

Page 146: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

144

Para o autor, no exemplo dado, haveria a prática de uma simulação,

vale dizer em nossos termos, teria ocorrido a veiculação de linguagem jurídica que não seria a

apropriada para certificar um dado negócio jurídico. Em nosso entendimento, para que se

confirmasse a simulação, seriam necessárias provas, além da vedação de tal prática no

ordenamento jurídico, conforme adiante exposto.

Uma das modalidades mais citadas de simulação é o chamado "abuso

de formas". Por seu intermédio, o contribuinte alcançaria economia fiscal ao adotar forma

atípica, não usual, para realização de negócio jurídico, ao passo que a forma comumente

utilizada, se eleita, causaria maior onerosidade.

O denominado "abuso de formas", muito embora seja tido como uma

espécie de simulação, sequer nos parece ilícito, na medida em que o contribuinte utiliza-se de

possibilidade que o sistema lhe oferece para a constituição de um negócio jurídico. Contudo,

não é através de exegese econômica que se conclui pela ilicitude da prática, mas, sim, por

meio de provas constituídas de acordo com as regras do direito. A ilicitude da conduta é uma

decisão do direito tomada a partir de seus próprios critérios, independentemente da relação de

cunho econômico. Empiricamente, comprova-se o raciocínio ao examinarmos decisão

proferida pelo então Primeiro Conselho de Contribuintes, atualmente CARF, no processo

administrativo nº 11516.002462/2004-18 (Acórdão nº 103-23.357)368

.

No caso tratado, houve a desconstituição de lançamento de IRPJ, PIS,

COFINS E CSLL369

efetuada pelos agentes do fisco, com base em suposta simulação, mais

precisamente, com fundamento em abuso de forma, tendo em vista que haveria ocorrido a

constituição de uma segunda empresa, para que a primeira (autuada) pudesse usufruir dos

benefícios do SIMPLES370

. As receitas da segunda empresa foram consideradas como

pertencentes à primeira e passaram a compor a base de cálculo dos créditos constituídos de

ofício, aplicando-se, ainda, multa agravada na ordem de 150% (cento e cinquenta por cento).

Mantida a decisão pela Delegacia de julgamento, houve recurso

voluntário, e o Primeiro Conselho de Contribuintes afastou o lançamento por considerar legal

368

O julgamento é citado e analisado por Samuel Carvalho Gaudêncio em artigo intitulado: O planejamento

tributário e a prova na requalificação dos fatos ilegais (In: A prova no processo tributário. São Paulo:

Dialética, 2010, p. 207-210). 369

IRPJ – Imposto sobre a renda da pessoa jurídica; CSLL – Contribuição social sobre o lucro líquido. As demais siglas já foram decifradas em momentos anteriores. 370

SIMPLES – Sistema integrado de imposto e contribuições das microempresas e empresas de pequeno porte.

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145

a conduta da sociedade ao escolher caminho fiscal menos oneroso e por não haver prova da

simulação. Segundo excerto do acórdão proferido:

A falta de aprofundamento da ação fiscal faz com que os fatos apontados como

indícios de simulação, quais sejam, a instalação das duas empresas na mesma área

geográfica e as alterações de seus objetos sociais, reservando-se a uma a fabricação

do casco e à outra os serviços de montagem da embarcação, possam ser tidos como

desdobramento da atividade antes exercida por uma delas, objetivando racionalizar

as operações e minorar a carga tributária. A conclusão diversa chegaria se a

fiscalização comprovasse que a empresa desqualificada não mantinha registros e

inscrições fiscais próprias, que não possuía quadro próprio de empregados, que não

celebrava negócios, que não emitia documentação, que não mantinha escrituração

fiscal relativa a seus negócios. O argumento de que o desdobramento das atividades

operacionais teve por único escopo obter economia tributária não é suficiente, por si

só, para a desconsideração dos atos e negócios jurídicos realizados com amparo

legal.

Portanto, a exegese dada pelo então denominado "Primeiro Conselho

de Contribuintes" afastou o lançamento de ofício por inexistir a produção de linguagem

jurídica apta a constituir os fatos alegados. Dito de outro modo, a autoridade competente para

efetuar o lançamento não provou os fatos que o ensejariam. É de se observar que não

bastaram observações de cunho extrajurídico, como a economia de tributos. O cerne do

problema foi resolvido com critérios pertencentes ao direito, a saber: (i) a licitude das

estruturas jurídicas utilizadas pelo contribuinte e (ii) a ausência de prova da existência da

simulação.

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146

VI – SÍNTESE CONCLUSIVA

O estudo efetuado ao longo da pesquisa e as ideias a partir deles

desenvolvidas fundamentam as seguintes conclusões sobre os pressupostos condicionantes da

interpretação do direito tributário:

Do capítulo I

1 – A transformação da perspectiva filosófica conhecida como "giro linguístico" é

caracterizada por atribuir à linguagem o papel de fundamento do saber humano. Contudo, o

termo é genérico, englobando correntes que podem ser consideradas inconciliáveis a partir da

função que atribuem à linguagem.

2 – Num primeiro momento, o giro linguístico está à procura de uma linguagem ideal. Sua

função seria representar o mundo de forma logicamente precisa e, nesse aspecto, não

apresenta diferença significativa da concepção filosófica tradicional, a ponto de compreender

a verdade de uma proposição, como a correspondência entre linguagem e realidade. Esse

modo de compreender a linguagem é fundamento filosófico de teorias que consideram a

interpretação do direito como atividade que visa extrair um significado previamente presente

na vontade da lei ou do legislador. Reflexo desse paradigma de interpretação encontra-se, por

exemplo, no art. 111 do CTN que determina a exegese literal da legislação que verse sobre

suspensão ou exclusão do crédito, outorga de isenção e dispensa do cumprimento de

obrigações acessórias.

3 – Posteriormente, com o desenvolvimento de teses, como a do segundo Wittgenstein,

consubstanciadas em Investigações Filosóficas, a função da linguagem altera-se radicalmente.

Seu papel é constituir a própria realidade com suas inúmeras formas de vida ou jogos de

linguagem, dentre elas o direito, que pode ser compreendido como uma forma particular de

interação entre os seres humanos, cuja finalidade é prescrever condutas. Portanto, inexistiria

um sentido único previamente contido no texto jurídico, e sua interpretação deixa de ser vista

como uma atividade declarativa da vontade da lei ou do legislador. O intérprete seria o

responsável pela construção de sentido, o que explicaria a variedade de significações que se

atribui ao mesmo dispositivo legal.

Page 149: Rosana Oleinik Pasinato.pdf

147

4 – A possibilidade de variação de sentido não implica a ideia de que a interpretação do

direito seja uma atividade efetuada por um sujeito dissociado do contexto no qual estaria

inserido e que todo e qualquer sentido seria admitido como possível.

5 – A partir de Investigações Filosóficas, concluímos que a linguagem forma inúmeras formas

de vida ou jogos e entre elas não existiria uma característica comum, apenas semelhanças. O

significado das palavras depende de seu uso no interior desses jogos de linguagem, mediante

regras determinadas pela comunidade de participantes. Não se trata de sentidos imutáveis já

que o contexto no qual a forma de vida é desenvolvida sofre as variações histórico-culturais.

6 – Há na ideia de jogo de linguagem a existência de expectativas de comportamentos

intersubjetivamente válidos. Dessa forma, pensar que se segue uma regra não é o mesmo que

segui-la. Há a necessidade de observar-se o consenso da comunidade jurídica em torno do que

se constitui seguir uma regra em determinado contexto.

7 – O critério intersubjetivamente válido que confirma ou infirma a ideia de seguir uma regra

está consubstanciado na compreensão da comunidade jurídica, formada por sujeitos que

participam do processo de positivação do direito e que possuem treinamento nessa linguagem

específica.

8 – No direito posto, haveria uma aparente contradição com a ideia de "consenso" como fator

determinante para o reconhecimento de uma regra, pois o que prepondera é o dissenso.

Porém, no litígio podemos verificar a existência de dois blocos de consenso que representam

interesses distintos. Caberá ao Poder Judiciário decidir qual interpretação irá regular a conduta

e definir qual a tese preponderante.

9 – A intenção do intérprete, consoante pensamento do segundo Wittgenstein, não é critério

para a significação de um termo, pois trata-se de algo privado, inatingível. No direito

tributário e nas ciências jurídicas que o analisam, ainda é muito comum a visão de que

interpretar é extrair a vontade da lei (mens legis) ou do legislador (mens legislatoris), o que

sob a óptica do giro linguístico-hermenêutico seria algo impossível de ocorrer, cabendo ao

sujeito construir o sentido dos textos de acordo com as regras presentes em dado contexto

histórico-cultural.

10 – A atividade interpretativa sempre será necessária à construção de sentido, na medida em

que o uso de uma palavra em determinado contexto é que constitui seu significado. Portanto, a

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148

ideia de que a exegese somente ocorreria nos casos de dúvida (in claris cessat interpretatio)

não é admitida no giro linguístico-hermenêutico. A própria consciência da dúvida depende de

uma interpretação.

Do capítulo II

11 – A perspectiva filosófica aberta pelo giro linguístico-hermenêutico repercutiu nas ciências

jurídicas. A interpretação deixa de ser vista como uma forma de representar a vontade da lei

ou do legislador presente nos enunciados de direito, sendo concebida como uma atividade

construtiva, na medida em que o sujeito valora os textos prescritivos e os fatos, atribuindo-

lhes sentido, vale dizer, formulando normas jurídicas.

12 – A construção de sentido dos enunciados prescritivos, com o auxílio da Semiótica, pode

ser decomposta em quatro planos possíveis de se percorrer – (i) literalidade ou S1; (ii)

conteúdo de significações dos enunciados prescritivos; (iii) articulação da norma jurídica; e

(iv) organização sistemática – e que justificam a ideia de equiparar o ato de interpretar a

atribuir valores aos símbolos jurídicos e, portanto, atribuir significações às condutas

determinadas pelo direito posto. O percurso gerador de sentido não pode ser compreendido

somente do ponto de vista lógico; para que o intérprete construa a norma, deve observar o uso

da linguagem pela comunidade jurídica, que aponta para a existência de significados

possíveis, isto é, aceitos como corretos.

13 – O uso da linguagem não abstrai o tempo e o espaço, tanto que os sentidos tendem a se

modificar. Os sentidos são corretos ou incorretos sempre em relação a um determinado

contexto histórico-cultural. Por cultura, compreendemos toda a transformação realizada pelo

ser humano em seu entorno, com o objetivo de implantar valores. Essa transformação se dá

num processo histórico.

14 – O direito é um bem cultural. Sua finalidade é influir no meio social ao prescrever

condutas que retratam valores variáveis de acordo com o contexto histórico-cultural.

Associada à ideia de que o direito é um jogo de linguagem, uma forma de vida, parece-nos

lícito concluir pela existência de uma cultura jurídica produzida pelo uso de sua linguagem.

15 – Há valores que se mostram muito especiais para o legislador, denotando forte carga

axiológica, e devem ser observados com total atenção pelo intérprete/aplicador do direito.

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149

Trata-se dos princípios vistos como normas jurídicas, que podem ser classificados como

norma-valor ou norma-limite-objetivo, de acordo com o grau de objetividade utilizado pelo

legislador para veiculá-los no ordenamento jurídico.

16 – Apesar da relatividade que decorre da compreensão da atividade interpretativa como

atribuição de sentido, é possível concluirmos pela existência dos seguintes pressupostos que a

condicionam: (i) o uso da linguagem pela comunidade jurídica, formada pelos sujeitos que

participam de sua positivação e que possuem treinamento técnico com base na Ciência do

Direito; e (ii) o contexto histórico-cultural vigente no jogo de linguagem do direito, no

momento da enunciação normativa.

Do capítulo III

17 – É possível identificar dois sistemas distintos de linguagem jurídica: (i) do da Ciência do

Direito; e (ii) do direito positivo. A finalidade do direito posto é prescrever condutas

intersubjetivas e estimular a realização de valores e suas proposições ou normas jurídicas são

válidas ou inválidas. A validade é uma relação de pertinencialidade que se estabelece entre

norma e sistema. Uma vez introduzida no sistema por autoridade competente e conforme

procedimento previsto em lei, a norma é presumivelmente válida e deve ser obedecida por

seus destinatários até que outra norma jurídica emitida pelo Poder Judiciário lhe retire a

validade. O sistema crítico-descritivo da Ciência do Direito tem por objeto de análise o direito

posto. A lógica que rege suas proposições é denominada alética ou apofântica e serão

apreciadas de acordo com sua "verdade" ou "falsidade".

18 – O sistema do direito positivo e da Ciência do Direito não se encontram isolados,

incomunicáveis. Ambos encontram-se em permanente diálogo, em relação de

intertextualidade. A Ciência do Direito faz parte da pré-compreensão ou sistema de referência

que permite a construção normativa no interior do direito posto.

19 – Afirmar que uma norma jurídica foi construída sem a observância dos pressupostos

condicionantes da interpretação a torna falsa ou incorreta, porém, não inválida. Os juízos de

correção da norma efetuados pelas ciências jurídicas são importantes argumentos utilizados

pelos participantes do sistema do direito posto, pois o auxiliam na compreensão da linguagem

jurídica.

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150

Do capítulo IV

20 – Os dispositivos inseridos no Código Tributário Nacional sobre a interpretação, enquanto

texto, devem ter seus sentidos construídos pelo exegeta, assim como as demais normas

jurídicas. Somente após cumprir-se o trajeto gerador de sentido é que poderão vincular a

atividade do intérprete.

21 – O art. 106, I, do CTN traz a figura da lei interpretativa e permite sua aplicação a fato

pretérito, sem que seja atribuída penalidade às normas jurídicas construídas em desalinho com

o sentido que pretende fixar aos dispositivos interpretados. Contudo, a lei interpretativa em

nada difere da lei interpretada; ambas são textos que carecem de construção de sentido.

Constitui a lei interpretativa suporte físico ou enunciado de norma que inova o sistema ao

tentar resolver incertezas advindas de posicionamentos díspares adotados pelos aplicadores do

direito, retirando sentidos possíveis eventualmente dados às leis interpretadas. Portanto, a lei

interpretativa é lei nova e não deve retroagir, salvo para beneficiar o contribuinte quando

dispuser sobre sanções.

22 – O art. 105 do CTN veicula o conceito de "fato gerador" pendente e futuro. O primeiro

teria sido iniciado, porém estaria incompleto, e o segundo ainda não teria ocorrido. De acordo

com nossas premissas, os fatos jurídicos são sempre instantâneos e se constituem no momento

exato em que o intérprete os enuncia em linguagem considerada apta pelo direito posto. O

fato jurídico, ao lidar com o tempo, a vigência e aplicação das normas, utiliza-se do "tempo

do fato", momento no qual se enuncia o fato jurídico em linguagem competente e "tempo no

fato", referente ao momento de ocorrência do evento. A norma de direito material a ser

aplicada é a que vigia por ocasião do "tempo no fato". Sob a óptica processual, a norma a ser

aplicada é a do "tempo do fato".

23 – A doutrina tradicional compreende que a integração do direito consiste no preenchimento

das lacunas ou incompletudes do ordenamento jurídico, entendidas essas como ausência de

disposições expressas para regular determinado caso. O intérprete criaria o direito na

atividade integrativa e o declararia, ao extrair a vontade da lei ou do legislador na atividade

interpretativa. Contudo, em ambas as atividades o intérprete trilha um processo que permite

atribuir sentido a textos presentes no ordenamento. Além disso, os meios de integração que

constam no direito posto também são utilizados pelo exegeta, mesmo quando não se verifica a

presença das denominadas lacunas. A diferença entre integração e interpretação pode ser

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151

apontada pela inexistência de preceito que se refira especificamente a um dado

comportamento, o que inviabilizaria, num primeiro momento de análise, a subsunção do fato,

exigindo do intérprete esforço maior para a construção de sentido. A norma jurídica, fruto de

integração, será justificada em textos, mais vagos e ambíguos, que não permitem associação

específica com o comportamento a ser regulado.

24 – Do ponto de vista sintático, o ordenamento jurídico não apresenta lacunas, vale dizer,

toda a construção normativa apoiar-se-á num texto. Do ponto de vista semântico, o sistema é

aberto e, portanto, completível. Os intérpretes introduzem novos significados que serão

aceitos ou rechaçados pela comunidade jurídica.

25 – O art. 108 do CTN veicula a taxatividade e hierarquia na aplicação dos meios de

integração do direito posto, do que discordamos. O intérprete se utilizará de todos os

expedientes possíveis e necessários de forma sistemática, para integrar o sistema.

26 – Ao decidir-se utilizando da analogia, o intérprete aplica a um fato (F1) não regulado por

um preceito jurídico específico uma norma geral e abstrata (N2), que, em tese, disciplinaria

somente outro fato (F2), que guarda semelhança jurídica relevante com o fato F1. Analogia é

conceito distinto de interpretação extensiva. Tomando-se como critério dispositivo que se

refira especificamente à conduta, verificamos sua inexistência na analogia. Na interpretação

extensiva, o sentido é reconhecido como possível de se atribuir ao texto que se refere

especificamente à conduta, atuando o sujeito nos limites da vagueza e ambiguidade do texto

específico.

27 – A equidade não corresponde ao vácuo axiológico na aplicação da lei. O direito como

objeto cultural é sempre carregado de valores. Trata-se de expediente que visa realizar o

sobreprincípio da justiça na construção da norma individual e concreta.

Do capítulo V

28 – O uso de raciocínios apriorísticos, a exemplo das teses do in dubio pro fiscum ou do in

dubio contra fiscum e a utilização das técnicas de interpretação comumente apontadas pela

doutrina tradicional, que consideram parcialmente os níveis da linguagem jurídica, não são

compatíveis com as premissas da pesquisa. Contudo, são argumentos comumente utilizados

pelas decisões proferidas por nossos Tribunais, além de amplamente propagada pela doutrina.

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152

29 – Por "métodos de interpretação", a doutrina tradicional compreende as técnicas ou meios

para apreender-se o alcance e o sentido dos textos jurídicos, conforme a intenção do legislador

ou a vontade da lei. As seguintes técnicas são comumente propagadas: (i) literal ou

gramatical; (ii) histórico-evolutiva; (iii) lógica; (iv) teleológica; e (v) sistemática. A técnica

literal se atém especificamente ao plano sintático da linguagem jurídica. As técnicas

teleológica e histórico-evolutiva se preocupam mais com os aspectos semânticos e

pragmáticos, e somente a sistemática engloba os três planos de linguagem, sendo, portanto, a

única que se compatibiliza com as premissas do giro linguístico-hermenêutico.

30 – Muito embora, para doutrinadores do porte de Carlos Maximiliano, o uso das técnicas de

interpretação seja feita de forma sucessiva e não fracionada, é notório que na análise dos

métodos específicos não observamos essa preocupação por parte da doutrina tradicional, que

defende, por exemplo, a possibilidade de interpretação literal, ou da histórico-evolutiva, sem a

devida compatibilização com o sistema. Na aplicação do direito posto, a justificativa das

decisões pareceu-nos reproduzir essa possibilidade de fracionamento.

31 – Parcela da doutrina compreende que os arts. 109 e 110 do CTN pretenderam estabelecer

hierarquia entre as técnicas teleológica e sistemática. Contudo, os "efeitos tributários"

determinados pelo art. 109 do CTN são de ordem jurídica e não econômica. Compreendendo

a questão dessa maneira, estaríamos em plena harmonia com o art. 110 do CTN, pois os

efeitos tributários, isto é, a obrigação tributária, seriam fixados pela legislação específica, que,

no entanto, se utilizaria de conceitos de direito privado para estabelecer os comportamentos

conformadores dos fatos jurídicos, na medida em que a Constituição Federal, ao distribuir as

competências, não houvesse estipulado de forma específica.

32 – A melhor exegese do art. 111 do CTN é a que afasta a literalidade pura e simples como

critério de interpretação e admite que as situações nele previstas devam ser tratadas de forma

sistemática, reconhecendo não ser possível fracionar a linguagem jurídica e construir seu

sentido de forma parcial, sem levar em conta os aspectos semântico e pragmático. A

literalidade seria apenas o início do percurso a ser trilhado pelo sujeito, que, nos limites da

cultura jurídica, constrói norma compatibilizada como o fenômeno jurídico.

33 – A técnica histórico-evolutiva nos pareceu útil, não para se atingir a mens legislatoris,

como compreende a doutrina tradicional, mas apurar-se a diversidade semântica de um

preceito normativo, evidenciado pelas alterações contextuais de seu uso. Diante da extensa

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153

produção legislativa, também atua como expediente auxiliar na organização dos textos legais,

para fins de análise da vigência e da aplicação de determinada norma.

34 – A interpretação lógica, sob a óptica da doutrina tradicional, seria método, segundo qual

extrai-se a vontade da lei ou do legislador, estabelecendo-se o sentido e alcance da norma.

Aplicar-se-iam, exclusivamente, raciocínios lógicos na compreensão da literalidade do

preceito, sem auxílio de qualquer elemento externo ao texto em sentido estrito. Contudo,

apesar de auxiliar na organização dos textos de direito posto e na compreensão do

relacionamento dos enunciados normativos que compõem o sistema, não nos parece suficiente

como técnica interpretativa, por desconsiderar o contexto em que a exegese é realizada,

conforme verifica-se nos aspectos semântico e pragmático da linguagem jurídica.

35 – A técnica teleológica toma a finalidade prática da norma como principal critério a ser

utilizado pelo exegeta. Não nos parece ser um método que isoladamente seja suficiente para

interpretar o direito, pois esquece-se da importância do aspecto sintático da linguagem

jurídica.

36 – A interpretação sistemática consiste em compreender o preceito normativo por

intermédio de seu elo com outros textos do ordenamento jurídico, de maneira a compatibilizá-

lo com o todo unitário. Não se trata de conexão somente estrutural, mas de exegese que

premia a análise de todos os aspectos da linguagem jurídica.

37 – A interpretação sistemática pressupõe as demais técnicas de exegese anteriormente

estudadas. Não se trata de ponto de vista generalizado na doutrina, que muitas vezes o

identifica como um processo lógico.

38 – O direito tributário está organizado hierarquicamente de forma a premiar a interpretação

sistemática. O constituinte repartiu no Texto Maior as competências dos entes tributantes,

utilizando-se de conceitos de direito privado, o que remete o intérprete a incursionar pelo

sistema para construção das normas jurídicas que denotam o seu exercício. Reforça a tese, o

artigo 110 do CTN.

39 – A interpretação econômica do direito tributário é conceito vago que ampara diversas

correntes de pensamento. Contudo um fato comum pode ser atribuível a todas elas: a presença

de uma suposta relação econômica no fato imponível. Assim sendo, apesar das razões que

justificam a interpretação sistemática como regra imposta pelo ordenamento jurídico, parte da

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154

doutrina considera que, em virtude da presença de uma suposta relação econômica no fato

imponível, a interpretação econômica seria um método específico a ser utilizado nessa área de

regulação. Outros ainda consideram ser o método apropriado para descortinar tentativas de

evasão dos tributos.

40 – A relação presente no fato imponível é de natureza jurídica e não econômica. Nesse

método de análise, há uma mistura entre economia e direito, sem restrição de qualquer ordem.

Parecem inexistir critérios de formação das respectivas linguagens. Transitar-se-ia livremente

do direito para a economia, como se ambas as linguagens tivessem uso e função idênticas.

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