Rosenfeld. Estrutura e Problema Da Obra Literária

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  • 8/16/2019 Rosenfeld. Estrutura e Problema Da Obra Literária

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    Coleção ELOS

    Dirigida por J. Guinsburg

    Equipe de realização — Revisão: Alice Kyoko Miyashiro;

    Capa: A. Lizárraga.

    ANATOL ROSENFELD

    Estrutura e Problemas

    da Obra LiteráriaSISBI/UFU

    1000195349

    10 anos de £ EDITORA PERSPECTIVA

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    Direitos reservados à EDITORA PERSPECTIVA S. A. Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3025 01401 — São Paulo — Brasil Telefone: 288-8388 1976

    SUMÁRIO

    APRESENTAÇÃO ...........................................................................

    A ESTRUTURA DA OBRA LITERÁRIA................................ 9

    I. A Crítica e seu Objeto ......................................................

    II. AEstrutura da Obra de A rte ............................................. 11. Os atos de apreciação ................................................... 2. O ser do objeto ............................................................. 3. A definição de Hegel.................................................. 15

    III. AEstrutura da Obra Literária ......................................... 161. Abstenção da intenção valorizadora ........... .............. 16

    2. As camadas da obra lite rária ........................................ 18

    3. A camada sonora .......... ............. ............ ............ ............ 19

    4. A camada das unidades signif icativ as ...................... 205. Excurso: a lógica da ficção ............................... 26. ; As unidades significativas e oscontextos objetos . . 26

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    7. A camada das objetualidades.................................... 298. Os aspectos esquematizados ....................................... 329. As camadas mais profundas.................................... 34

    IV. O Problema dos Valores.................................................... 36

    V. Conclusão .............................................................................. 37

    DISCUSSÃO ..................................................................................... 41

    PROBLEMAS LITERÁRIOS ........................................................ 53I. Essência e Função da Literatura.................................... 53

    II. Literatura e Sociedade ..................................................... 56III. Literatura e Ideologia ....................................................... 58IV. Crítica, Teoria e Histórias Literárias............................. 63V. O Papel da Crítica ............................................................. 65

    A P R E S E N T A Ç Ã O

    Neste livro reunimos dois trabalhos de Anatol Rfeld. O primeiro, apresentado no Segundo CongBrasileiro de Crítica e História Literária de Assis em realizado sob os auspícios da Faculdade de Filosofia, cias e Letras de Assis, vem acompanhado, inclusivedebates que suscitou na ocasião. Trata-se, sem dúvidnhuma, de importante contribuição para o estudo daria da literatura e da estrutura da obra literária.

    Quanto ao segundo, depoimento publicado no plemento Literário” n.° 495 deO Estado de S. Paulo, sintetiza de forma notável alguns dos principais aspec posições de Rosenfeld no campo da crítica e das art

    Nem é preciso acrescentar de quão atuais são osescritos, fato este que representa, a nosso ver, a mhomenagem que se pode prestar ao pensamento e àdução do Autor.

    Por outro lado, a escolha dos dois trabalhos de tol Rosenfeld, para abertura da Coleção ELOS, diz só do sentido e do âmbito que a Editora Perspectivtende imprimir nessas publicações.

    J. G u i n s b u r g

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    A ESTRUTURA DA OBRA LITERÁRIA

    I. A CRÍTICA E SEU OBJETO

    E. R. Curtius confessa, em qualquer parte, quevalorização, o juízo de valor, o ato fundamental da Ctica dependem, em última análise, de um “contato irranal” . De fato, o indicador imediato do valor estético sitivo é uma emoção — um prazer, fascínio ou gozo

    pecíficos, mais ou menos intensos. Se o prazer estéfosse um prazer hedonístico a Crítica consistiria na lise dessa experiência subjetiva. Chegaríamos entãoverdade acaciana de que os gostos não se discutem. entanto, o prazer estético é rigorosamente referido ao jeto, à obra; é nela que reside o valor que suscita a n

    valorização. Se a Crítica é a tentativa de motivar e “tif/car” essa valorização, ela consistirá essencialmente«riálise e na interpretação do objeto em que reside o vaO conhecimento da estrutura fundamental desse ob parece, pois, imprescindível ao crítico para que poexercer a sua função de modo consciencioso. É es

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    sentido da afirmação de T. S. Eliot de que não é dignode ser lido o crítico cuja análise não se move entre estasquestões polares: “Que é a poesia em geral?” e “Este poema será bom?” Contudo, a indagação sobre a “poesiaem geral” leva ao problema do ser específico da obraliterária. Somente a análise da sua estrutura fundamental

    pode determinar — sem imposição de normas — os momentos que imprimem a determinadas obras literárias ótraço distintivo de obras dearte literárias. No entanto,tal investigação leva, por sua vez, à indagação sobre oser específico da obra de arte em geral.

    Vê-se, portanto, que a motivação conscienciosa do prazer irracional que sentimos ao ler um pequeno poemanos conduz necessariamente aos problemas fundamentaisda estética. A Crítica não formulará em geral esses pro blemas de modo explícito. Entretanto, não há, de fato,nenhuma Crítica digna de ser chamada assim, cujo horizonte mais amplo não envolva tais indagações, ainda queelas não sejam focalizadas e tematizadas.

    II. A ESTRU TURA DA OBRA DE ARTE

    1. OS ATOS DE APRECIAÇ ÃO

    Os adeptos da fenomenologia, antes de dirigirem asua atenção à própria obra de arte, dedicaram-se durante

    várias décadas à análise dos atos de apreciação da obra.Recorrendo em certa medida a essas pesquisas, NicolaiHartmann1 destaca o entrelaçamento íntimo de vários atosque constituem a unidade total da apreciação estética.

    1. H a h t m a n n , Nicolai, Aesthe tik. Berlim, 1953.

    Deve-se discernir a percepção propriamente dita — na apreciação da obra literária é de importância sedária, já que se refere em geral apenas aos sinais tipficos — e a imediata autotranscendência da perce por obra de atos de preenchimento, complementação,ficação, etc., — atos que ultrapassam o sensivelm

    dado em direção a algo que não é propriamente dmas apenas sugerido ou “co-dado”. Trata-se de um pécie de “olhar através” do dado sensível.

    Tal autotranscendência da percepção verifica-se bém na experiência não-estética, por exemplo, ao mos” a ira de uma pessoa que cerra os punhos. Na periência estética, porém, essa visão “através de” rte-se de determinadas peculiaridades. De certo modotorna-se essencial, mas sem que perca o contato comdados sensíveis. Através deles se “revela”, como na comum, um ser que não é sensivelmente dado. Masrevelação é tão intimamente ligada à percepção, qu pode falar da “imediatidade do mediado”. Enquantexperiência cotidiana, devido à orientação “interesse à imposição de valores práticos e vitais, a nossa v passa através do sensível quase sem notá-lo, diriginao que “interessa”, por exemplo, à realidade psíquicuma pessoa (seu caráter, sua desconfiança, sua ira, ao valor útil de um bosque (quando se trata de umgociante de madeira) ou à topografia deste mesmo que (quando se trata de um engenheiro de estrada

    ferro), verifica-se na experiência estética, como tal sinteressada”, uma espécie de repouso na totalidadobjeto, na unidade do sensível e do não-sensível. O sensível não é mera passagem quase não percebida, detém nossa visão (ou audição), impõe a sua presedevido à organização e à seleção peculiares de seus

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    mentos e à direção especial que imprime à nossa atenção.Por isso não é muito feliz a expressão de N. Hartmann,ao falar da “transparência” da camada sensível. Destaforma prende-se intimamente à “superfície” sensível ouao que aparece através dela. Esta superfície, na experiência cotidiana apenas mero meio sem função destacada,torna-se na experiência estética parte integrante da visãototal.

    À unidade dos atos de apreensão estética associa-seo prazer especificamente estético, o prazer “desinteressado”, segundo a expressão de Kant Este prazer, emborainteiramente subjetivo, indica algo objetivo, já que se refere, enquanto estético, rigorosamente à obra, associadocomo está aos atos de apreensão. No contexto dessesatos, o estado mais ou menos prazenteiro é o momentoindicador do valor, a forma primária e imediata da consciência da qualidade (ou falta de qualidade) estética. Semeste momento não se estabeleceria propriamente contatocom a esfera estética. É precisamente na “motivação

    posterior” desse prazer ou desprazer, através da análisee da interpretação do objeto estético, que consiste, emessência, a Crítica.

    Merece ainda destaque o fato de que na experiênciaestética o homem volta, de certo modo, a uma visão arcaica do mundo; a experiência é acompanhada de fortestonalidades emocionais, dir-se-ia míticas, como na experiência da criança: os sons e as cores, o uivar do ventono palco, a sombra da floresta num quadro revestem-sede caráter emocional, são carregados deStimmung, mood, disposições anímicas; são “ameaçadores”, “majestosos”,“serenos”, etc. Mas tais emoções têm apenas caráter“simbólico”. Não nos sentimos realmente ameaçados.Sabemos que tudo é “ficção”, “mimese” — não-reali-

    dade. Apesar de retroceder de certo modo a estado mais primitivo, o apreciador mantém plenama posição da consciência “civilizada”. Embora de forma identificado com o objeto, sabe-se distanciado Não há a famosa “ilusão” da realidade, nem mesmteatro, pelo menos no caso do apreciador adequado,

    sabe perfeitamente que está diante de um mundo lú“emoldurado”, isto é, separado do mundo empírico cqualquer campo de futebol. Por mais intenso que o prazer, por maior que seja a identificação comocom o objeto, a distância da contemplação, a conscido sujeito de estarem face de um objeto, nunca são eminadas. No prazer estético verifica-se uma síntesesupera a contradição de distância e envolvimento emnal. A distância é “suspensa” no sentido hegeliano permanece e é “elevada” a um estado Superior de síentre a contemplação serena e participação emoci

    2. O SER DO OBJETO

    A análise dos atos de apreciação conduz neceriamente à análise do objeto. De fato, o prazer dde ser estético no momento em que se separa do oc se perde no autogozo do próprio estado subjetivo, cocorre particularmente a muitos amantes hedonísticomúsica que utilizam a obra apenas como ponto de padns suas divagações.

    Sc a apreensão estética se constitui de atos de copçflo e de atos que transcendem a mera percepçãorece necessário atribuir-se ao objeto estético um mdc ser heterogêneo. Realmente dada é somente a supe

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    fície sensível (objeto da percepção propriamente dita);somente esta camada tem autonomia ôntica. No entanto,através dessa camadareal transparecem outras camadasque não têm autonomia ôntica. Estas camadas não têmo modo de ser ideal plenamente autônomo, de um triângulo, por exemplo. Não lhes cabe o caráter intemporal

    dos seres matemáticos ou das estruturas lógicas, já quetoda obra de arte é criada em certo momento temporal.Mas tampouco lhes cabe o modo de ser real, visto de penderem da presença do apreciador adequado e se atualizarem somente por graça dos seus atos intencionais.Contudo ainda menos podem ser confundidas com os atosdo apreciador. O ser específico dessas camadas não podeser reduzido ao ser real de processos psíquicos. Realidade

    psíquica tem apenas os atos mediante os quais o apreciador apreende o objeto, bem como as vivências que acom

    panham esses atos. Esses atos, porém, visam ao objetoestético que não tem ser psíquico. Qualquer redução psi-cologizante da obra de arte a processos psíquicos do apreciador ou autor é completamente excluída. A obra é umae a mesma, por mais variados que sejam os atos de apreciação, as atualizações e concretizações dos apreciadores.Isso já se evidencia no fato de que consideramos algumasatualizações como mais adequadas do que outras. Adequadas a quê? Evidentemente à obra.

    Devemos, portanto, considerar a obra de arte comoum ser estratificado em várias camadas, cabendo à pri

    meira, à “camada de frente” — tela, cor, sons como sucessão meramente acústica, mármore, os atores de uma peça — o modo de ser real, ao passo que as camadasque através da primeira “transparecem” e que precisamser atualizadas pelo apreciador têm um modo de ser que,

    para abreviar a indagação, podemos chamar de “irreal”.

    A camada real existe “em si”, as camadas irreais soment“para nós”.

    Esta estrutura de camadas heterogêneas cabe, aliása todas as objetivações espirituais — a instrumentos, prdios de residência, bandeiras, documentos quaisquer. Nentanto, nestes, o “espírito” objetivado no material sen

    sível aparece em geral de uma forma pouco distinta inexpressiva. Quando se trata de um documento literáriqualquer, a relação entre a camada quase-sensível da palavras (ou sensível quando o texto é lido de viva vozc o significado das palavras é puramente casual, convencional, de modo que a intenção passa, quase sem notaessa camada, diretamente ao “sentido”. Na obra de artalém de ela constituir a manifestação sensível mais podrosa do espírito nela fixada, a relação entre as camadaé menos convencional, apresenta necessidade interna e de grande firmeza. Em casos extremos, a mais ligeira mdificação da camada mais exterior destrói o significadde toda a obra. Exemplo corriqueiro é o problema dtradução.

    1. A DEFINIÇÃ O DE HEGEL

    Assim podemos de certo modo concordar com a ex pressão de Hegel de que a obra de arte se afigura como “luzir sensível da idéia” (mais exatamente: o “parece

    »cnsívcl da idéia), na medida em que Hegel quer signifiCUf que os planos de fundo — os mais espirituais — sligam nu obra de arte de um modo indissolúvel à suformu dc aparecer concreta, individual, singular. É sem(JÚvidu u isso que se refere Croce ao usar o termo “intulçflo". Essa íntima ligação é, por si só, um critério

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    termo “ficção” na acepção mais lata, incluindo todos osgêneros da arte literária ou da literatura imaginativa, nãoapenas o gênero narrativo.

    2. AS CAM ADAS DA OBRA LITERARIA

    Se pusermos de lado a camada dos sinais tipográficosimpressos no papel — que na obra literária, no entanto,é a única camada real e a única realmente perce bida, a não ser que a obra seja reci tada ou apresentada no palco — encontramos como camadas já“irreais”: 1) a dos fonemas ou sonoridades verbaise das configurações sonoras de ordem superior (orações) que se baseiam nos primeiros; 2) a das unidades significativas de vários graus; 3) a dos múltiplos

    “aspectos esquematizados” (que, quando^ especialmente“preparados”, determinam as concretizações do leitor);4) a das “objetualidades” representadas, isto é, do contexto de objetos representados pelas unidades significativas ou, mais de perto, pelos correlatos intencionais dasorações, os chamadosSachverhalte, termo que talvez se possa traduzir por “contextos objetuais”, os quais são“projetados” pelas unidades significativas das orações.São esses “contextos objetuais” que determinam nos traços mais gerais as “objetualidades”, por exemplo, o mundo imaginário de um poema. A estas camadas devemser acrescentadas várias outras, as dos significados espirituais mais profundos que transparecem através das camadas anteriores, principalmente através da camada domundo imaginário de um romance, poema ou peça teatral. Isto é, o mundo representado torna-se por sua vezrepresentativo para algo além dele.

    3. A CAMADA SONORA

    Na descrição do material sonoro, dos fonemas e inter-relação entre fonemas e significados, é dedicada pticular atenção à qualificação das palavras que dese penham papel preferencial na obra de arte literária, meda sua função expressiva, caracterizadora e representiva. Do tipo das palavras empregadas depende o cará peculiar da camada sonora de determinada obra, sondade que e co-dada e “percebida” pelo ouvido intena leitura da obra impressa. O tipo desta sonoriddeterminará o modo como a camada puramente lingütica desempenha seu papel em face das outras camada obra. Talvez se possa dizer — como já foi sugerantes — que a riqueza dessa camada tende a prenderaio da atenção em certo grau a esse aspecto maissensí

    vel da obra de arte literária, ao passo que na obra literá

    em geral essa camada nem sequer é percebida, servinapenas para suscitar a passagem direta aos objetos sados.

    A primeira unidade autônoma da obra literária nturalmente não é a palavra e sim a oração, de modo qum novo estudo deve ser aplicado às “configurações noras” constituídas pelas orações e, concomitantemenao ritmo e ao “tempo” daí decorrentes. A seleção e dem específicas dos fonemas determina as qualidades micas da oração e do texto, impondo certos “impervos” ao eventual recitador e mesmo ao leitor. Os diverritmos produzem o “tempo”imanente, velocidade ou lentidão, leveza, peso ou inércia do texto, — momentos qnaturalmente independem da velocidade variável da retação ou leitura individuais no tempo empírico. Acrcentam-se ainda as qualidades melódicas produzidas pr

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    cipalmente pela sucessão das vogais; depois omood, aatmosfera e disposição anímica que, embora já não deordem puramente sonora, se “fundam” em parte nas qualidades sonoras: caracteres como “triste”, “melancólico”,“vivaz”, “alegre”, etc., os quais, certamente condicionados em parte pelos significados, podem, contudo, em certa

    medida, ter origem sonora. Notamos a presença de taisqualidades emocionais na própria camada sonora precisamente nos casos em que tais qualidadesnão afinam ouse chocam com as qualidades emocionais que se manifestam nas outras camadas da obra; o que tanto pode resultar em deficiência estética como em recurso de frisson, paródia ou deformação grotesca.

    A camada sonora é parte importante da polifoniaem que as várias camadas entram nas mais variadas relações de harmonia, tensão e dissonância. Ela não éapenas meio para a revelação das outras camadas. Suafalta implicaria uma modificação considerável da obra.Ontologicamente, ela sustenta as outras camadas (se nãotomarmos em consideração os sinais tipográficos), em bora a camada propriamente constitutiva seja a das unidades significativas. É graças à função constituinte dacamada significativa que a tradução é possível. Mas aimpossibilidade de uma tradução inteiramente adequada,em se tratando de uma obra de arte literária, mostra afunção importante da camada sonora.

    4. A CA MA DA DAS UNIDADES SIGNIFICATIVAS

    É impossível abordar aqui, mesmo apenas resumidamente, as análises minuciosas dos significados dos váriostipos de palavras. De interesse peculiar é contudo nos

    2 4 3 2substantivos o momento dacaracterização existencial eo momento da posição existencial. A caracterização existencial dos significados “a capital do Brasil” e Hamlet

    por exemplo, é a da realidade e não da idealidade detriângulo. A posição existencial de Hamlet, no entantoé que ele não existe de fato, sua existência é apenastícia; mas se existisse, o seu modo de ser seria o dalidade. Já “a capital do Brasil” contém em geral atenção de ser o fato e realidade existente. Mas seaparece num romance ou numa fita narrativa, a sua posição existencial se modifica. No contexto fictício,se torna também ficção e desempenha um papel. Aassim, ela conserva acaracterização de um ser real não ideal.

    No entanto, é só na oração que se configuramunidades significativas superiores, com suas várias funde expressão, comunicação, representação e influencia — funções que foram analisadas por Husserl, Biihmuitos outros pensadores. A qualidade específica da ção reside na sua função total: graças a esta é projeum correlato da oração, um contexto objetual (Sach-verhalt). Este contexto objetual é transcendente ao mconteúdo significativo da oração, mas encontra nele fundamento ôntico. O correlato objetual, projetandoexemplo na oração “Maria é loira”, deve ser rigormente diferenciado da “loira Maria” que pode existirdependentemente da oração, numa esfera ôntica aut

    ma. A oração como tal projeta um contexto objetuaseja, um correlato puramente intencional que tanto podvisar a Maria real como a Maria imaginária. O contobjetual puramente intencional é projetado mercê derios atos ou mercê de uma oração que encerra em ato puramente intencional do autor. É nestes atos —

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    orações — que tais contextos objetuais puramente intencionais têm a sua origem, não importando se eles se referem a seres onticamente autônomos ou não. Quandoseres autônomos se tornam alvo de um ato tornam-seobjetos “também intencionais” (e não puramente intencionais), já que não existem por graça do ato e têm plena

    autonomia, mesmo quando se tornam alvo de um ato de percepção ou representação.

    A diferença fundamental entre a obra de ficção emsentido lato e qualquer outro texto reside, evidentemente,no fato de que na primeira as orações projetam contextosobjetuais e, através destes, seres e mundos puramenteintencionais que não se referem, a não ser de um modomuito indireto, a seres “também intencionais”, isto é, onticamente autônomos, ou seja, a realidades que independem da obra literária. Na obra de ficção, o raio da intenção detém-se nestes seres puramente intencionais, somente se referindo em eventuais atos posteriores ou marginais a qualquer tipo de realidade extraliterária. Já nasorações de outros escritos, por exemplo, da obra de umhistoriador, os contextos objetuais puramente intencionaisnão têm, por si só, nenhum “peso” ou densidade: o raioda intenção passa através deles diretamente aos seres“também intencionais”, isto é, à realidade histórica. Oscontextos objetuais puramente intencionais, contidos nasorações de uma obra científica ou mesmo de uma notícia

    de jornal, de uma carta, reportagem, etc., constituem juízos; isto é, as objetualidades puramente intencionais poreles projetadas pretendem corresponder exatamente aosseres reais (ou ideais) a que se referem. Há, nestas orações, enquanto juízos, a intenção da “verdade” o que lhesconfere uma “seriedade” específica.

    Todavia a estrutura lógica das orações da ficção prece ser a mesma das obras científicas. As oraçõesum romance parecem ser juízos da mesma forma cas da obra de um historiador. Nas orações como não parece haver nenhuma indicação revelando se o da intenção deve deter-se nos seres puramente inten

    nais ou se, passando através deles, deve visar a s“também intencionais”. As orações não revelam na estrutura, ao que parece, a intenção do autor, a nãoque esta própria intenção, ou seja, o respectivo ato quico, sé transforme por sua vez em objeto, através

    palavras como “romance”, “drama”, “novela” , etc., locadas na capa do livro. Tal indicação transforma juízos da obra em “quase-juízos”, isto é, em juízos fcios. Sabemos agora que as orações não têm “intenséria”. O autor convida o leitor a deter o raio da inção na imagem dá lçtira Maria, sem buscar corresponcias exatas com qualquer-personalidade real deste menome. Sem dúvida, ainda assim a imagem terá alsentido “mimético”, referir-se-á a algum tipo de realidMas essa referência será indireta e não poderá ser c parada à do juízo “sério”.

    Evidentemente, ao lermos uma obra ficcional comamos saber isso, mesmo sem que a intenção fictseja indicada na capa do Íivror-AÉ paradoxalmente a

    r tensa “aparênc ia^d a realidadâ ou ao menos a forçaconvicção do mundo imaginário, isto é, dos seres p

    mente intencionais, o vigor dos detalhes, a veracidademomentos concretos e particularizadores que revelamintenção fictícia. Através de tais caracteres constituía verossimilhança, coerência interna e força de convicdo texto fictício e esses caracteres serão parte importda análise crí tica. Sabemos que se trata de ficção qu

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    lemos uma oração como esta: “Enquanto Alexandre falava estas palavras, fitando o céu que escurecia lentamente, Aristóteles esboçava um sorriso fino”. Nenhumaobra histórica poderia conter orações semelhantes, precisamente por causa dos detalhes demasiado “reais”. Mas,tais diferenças não parecem atingir a estrutura lógica daoração.

    5. EXCURSO: A LÚGICA DA FICÇÃO

    Káte Hamburger4 tentou encontrar critérios imanentes, logicamente relevantes que revelassem a estruturaficcional de uma obra literária, em face de outra, de caráter não ficcional. A autora consegue demonstrar atécerto ponto que o narrar épico é, categorialmente, de outra ordem que o enunciar do historiador, do correspondente de um jornal e de outros autores de enunciadossobre seres reais. O momento estrutural que constituiriaa própria essência da ficção é o desaparecimento do Euenunciador real das orações, Eu real que, situado no pontozero do sistema de coordenadas espácio-temporal, projeta, por exemplo no caso de um historiador, a partir deste ponto zero o mundo passado histórico, através de pretérito plenamente “real”. Ao desaparecer, na ficção narrativa, o enunciador real, o sistema de coordenadas es

    pácio-temporal é identif icado com uma das personagens

    fictícias. Tal fato explica orações peculiares que nunca poderiam ocorrer em enunciados reais ou juízos de historiadores ou outros cientistas. Por exemplo: “Ela enfei

    4 . H a m b u r g e r , Kâte. Di e Logik der Dichtu ng. Stuttgart, 1957. Trad. bras.: A Lógic a da Criação Literária, São Paulo, Ed. Perspectiva, 1975.)

    tava a árvore; amanhã era Natal”; “ . . .and of course hwas coming to her party tonight” (Virgínia Woolf, Mrs.

    Dalloway)-, “A manobra de ontem durara oito horas”Obviamente, advérbios como ontem, hoje, amanhã

    etc., somente têm sentido quando empregados a partir d ponto zero da orientação de quem está falando. Quand

    usados num texto literário, indicam que este ponto zese deslocou do autor para as personagens — o que s pode ocorrer na ficção. A oração “Amanhã era Natasó é possível porque o “amanhã” é enunciado ou pensada partir do presente da personagem que enfeita a árvorConcomitantemente o pretérito perde a sua função rede pretérito, mas é mantido como substrato fictício dnarração. Num contexto real, a oração “A manobra dontem durara oito horas” exigiria o verbo “durou”. Ncontexto fictício impõe-se um mais-que-perfeito fictíci já que o advérbio “ontem” requer o perfeito. Someno historiador poderia usar o mais-que-perfeito num setido real, mas ele teria de substituir “manobra de ontem . . . ” pela expressão “manobra do dia anterior”.

    Pelo exposto segue que não há na ficção um narradoreal face a um campo de seres autônomos. Este campexiste somente graças ao ato narrativo. O narrador dficção não é sujeito real de enunciados; é manipuladoda função narrativa, como o pintor é manipulador do pincel e da cor; não narra, portanto,de pessoas e de coisas, mas narra pessoas e coisas.

    A teoria de Hamburger apóia-se, em última análisna verificação de que as personagens, ao se tornare ponto zero de orientação, deixam de ser “objetos” , pasando a ser “sujeitos”, isto é, seres que sabem dizer “Eu“A rainha se lembrava neste momento das palavras quela dissera ao rei” — tal oração não pode ocorrer n

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    raio da intenção passa através deles aos seres imagináriosrepresentados pelos contextos. Apesar disso exercem im portante função na direção dos atos do leitor. É umacoisa ler “O quarto era triste” e outra “O quarto pareciatriste”; é uma coisa ler “O pão era saboroso”, outra “O pão sabia bem”. Nos dois casos, os “mesmos” objetos

    são apresentados por contextos objetuais diversos. Notamos que nos vários exemplos varia o foco narrativo; umavez parece haver um narrador objetivo, onisciente, da outra vez já intervém um foco narrativo mais subjetivo, aofim, o foco parece ter passado para dentro da pessoa quesaboreia o pão. O exame do modo como ou através deque tipo de contextos objetuais — a obra produz os seresimaginários afigura-se de grande importância para a crítica. O “mesmo” acontecimento (ou objetos) pode ser“projetado” por contextos objetuais concretos ou maisabstratos e de uma imensa variedade de formas.

    É, pois, de grande relevância o exame crítico destacamada, por menos que ela seja tematicamente notada, jáque a atenção se dirige para aquilo que, através dela,transparece. Ainda assim, esta camada pouco notada é“co-dada”. Sua atuação modifica o que se apresenta tematicamente. Sua presença faz que a obra literária nunca possa ser uma configuração “irracional” ; na apreensão daobra temos de passar por essa camada “racional”, temosde “entender” as palavras e orações. E nisso se revelam

    valores próprios, como os da maior ou menor “clareza”que se liga à estrutura das orações, à sua maior ou menor“transparência”, “ambigüidade”, “opacidade”, “simplicidade”, “sinuosidade”, “leveza”, “densidade”, etc., enfimaquela multiplicidade de elementos que constituem o quese costuma chamar o “estilo” do autor. A oração mais

    clara pode ser mais bela, mas talvez mais fria, ao pque a oração mais opaca ou ambígua pode ser mais etante, produzindo certo frisson ao deter o raio da atençãA falta de caráter desta camada, sem dúvida, represgrave deficiência na obra de arte literária, embora mesma falta possa constituir, numa obra científica, cvalor.

    7. A CAMA DA DAS OBJETUALIDADES

    Através das orações, suas unidades significativseus contextos objetuais, se constitui, ao fim, a camada“objetualidades”, termo que, em se tratando da obrficção em sentido lato, pode ser traduzido por “seres ginários”. Numa obra histórica ou geográfica, por ex plo, essas objetualidades se referem rigorosamente a

    dades e não têm valor próprio. De certo modo paque as camadas anteriores só servem para constituir de fato, a atenção do leitor atravessa em geral as camantes descritas, visando a esta como ao seu alvo. mundo imaginário é um mundo puramente intenciofundado em última análise nas orações. O que de faapresentado, é só um recorte ou uma série de recomas a partir dele ou deles se projeta o horizonte ou pde fundo mais ou menos nítido, mais ou menos coede um mundo maior, mesmo em se tratando de um pominúsculo. Os obietos imaginários — seres humanosmais, países, paisagens, sentimentos, casas, cidades, — geralmente têm o hábito exterior dê realidadêsTIique não é levado totalmente a sério pelo leitor conive mancomunado com o autor com quem entrou no combinado da flcçãcT Mas déntrõdõssêEabiTõ,~dèrif

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    seu ser irreal, o mundo imaginário se reveste de certo caráter existencial, certo tipo de reivindicação de realidade,tipo de ser que freqüentemente se chama de aparência derealidade. Este termo, porém, não é dos mais felizes, jáque parece implicar algum modo de engano ou fingimento,o que não descreve corretamente o caráter da ficção, apesar do famoso poema de F. Pessoa. Max Scheler, porexemplo, diz que todos os valores estéticos são “essencialmente valores: 1) de objetos; 2) de objetos cuja posiçãoreal é, de alguma forma, suspensa e que, portanto, estão presentes como ‘aparência’, ainda que, por exemplo, nodrama histórico o fenômeno da realidade seja conteúdo parcial do objeto aparente que se dá em forma imaginativa . . . ” — descrição que está longe de caracterizar comexatidão a complexa situação de que se trata.

    Quanto ao espaço irreal do mundo imaginário, aproxima-se do espaço perceptual de orientação. O texto determina recortes espaciais, sugerindo assim uma continuidade espacial fora dos recortes, por exemplo, fora de umasala descrita. Os espaços explicitamente apresentados sãoseparados como por fendas, lugares indeterminados queo leitor preenche. O ponto zero de orientação encontra-sedentro do próprio mundo imaginário, por exemplo, no Eude um narrador fictício. Se não houver tal foco explícito, pode encontrar-se em pontos variados fora dos seres apresentados ou dentro de uma ou várias personagens. A ha bilidade com que o autor maneja este problema contribui para levar o leitor para dentro do mundo imaginário, fazendo-o colocar-se dentro do ponto zero, por exemplo, deuma personagem. Para a análise e interpretação de umaobra encontram-se nestes momentos importantes critérios,

    já que a densidade, coerência e imposição dependem em

    parte da manipulação exata da perspectiva espacial. N poesia lírica, o foco encontra-se geralmente dentro do lírico fictício, no drama o centro de orientação é o esptador fictício que faz parte do mundo imaginário. Es

    por assim dizer, se apresenta a ele. Isso, porém, é probmático; há tipos de drama em que a situação se afigu

    bem mais complexa.Quanto ao tempo irreal da obra literária, podem

    aproximá-lo do tempo concreto, intersubjetivo e subjeticujos ritmos dependem do conteúdo vivido e do mocomo esses conteúdos são “vivenciados”. Há, tambéneste tempo irreal, passado, presente e futuro, mas esfases não dependem, como na realidade, do fato de se finirem em relação ao autênticoin actu esse do presente.Devido a isso, o presente não goza na ficção do cará preferencial que lhe cabe na realidade. Há certa homoneidade de todas as fases apresentadas, o que se expricaracteristicamente no pretérito narrativo, mas esta homgeneidade se manifesta também, embora em menor grna ficção que recorre à voz do presente, particularmeno drama. O contínuo do tempo real naturalmente n pode ser reproduzido adequadamente por orações desctínuas que apresentam apenas determinadas fases temrais. O leitor preenche as lacunas, mas apenas no sentde atribuir aos intervalos continuidade, sem porém chê-los de conteúdos. É impossível entrar aqui no p

    blema atualíssimo da perspectiva temporal na ficção, é, do ponto zero da orientação que, na realidade, é o mmento presente em constante deslocação, mas que na ção pode ser manipulado com extrema variedade e a

    já que o tempo fictício é de uma docilidade infinita, passo que o tempo real é irreversível.

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    8. OS ASPECTOS ESQUEMATIZADOS

    Particular atenção deve ser dedicada à camada dosaspectos esquematizados, um dos momentos essenciais daobra literária enquanto obra de arte. As unidades significativas e os contextos objetuais, como tais, apenas “põemà disposição” do nosso olhar interno, apenas constituemde um modo bem geral as objetualidades ou o mundoimaginário, mas não o preparam para a verdadeira apreensão “intuitiva” ou “sensível”. A obra de arte literáriarecorre a fatores especiais para preparar esta representação “sensível”. Para tal fim, as orações esboçam determinados esquemas de “aspectos” dos objetos representados, quer do seu lado físico, quer do seu lado psíquico.Estes esquemas — que devem ser preenchidos pelo leitor — constituem uma camada importantíssima na obra literária enquanto arte. A teoria dos “aspectos”, mercê dos

    quais as coisas se revelam à nossa percepção, baseia-se nas pesquisas minuciosas de Husserl. Tais aspectos podemsurgir na obra somente como esquemas. Mas na oração

    podem encontrar-se fatores “desencadeadores” que im põem ao leitor determinada atualização e concretização,determinado preenchimento dos esquemas. Entre os inúmeros recursos a que o autor recorre, encontram-se asimagens, símiles, metáforas, através dos quais se projetamoutros objetos além dos que são atualmente representados, precisamente com o fito de fazer aparecer “sensivelmente” estes últimos. Para tal preparação desencadeadoracontribuem não só as unidades significativas e os contextos objetuais correspondentes das orações, mas tambéma camada sonora, a melodia, o ritmo das orações, isto é,a camada mais sensível da obra literária. Para que tais“aspectos” possam ser impostos ao leitor, devem prevale

    cer na camada sonora palavras intensas da língua viva,forte poder expressivo, palavras que, graças ao seu e

    prego em situações vitais concretas, levam consigo asciações e aspectos firmes de várias espécies. São tdetalhes que detêm o raio da intenção do apreciador, zendo que repouse na própria contemplação da totalida polifônica da obra. Não é preciso salientar que essa camada dos “asptos preparados” tem sido um dos campos prediletos crítica literária. São esses aspectos que permitem apreder concretamente as objetualidades. Têm eles suas p

    prias qualidades estéticas que resultam em enriquecimeda obra. Se faltassem, os objetos projetados só poderiser “mentados” ou “pensados” de um modo vazio, prsupondo-se um leitor leal que realmente se sujeita ao tee não constrói seu próprio mundo imaginário. Os objerepresentados seriam então apenas esquemas conceituvazios, não dando a impressão de uma “realidade” vivA concretude, a rigorosa individualidade e encarnação tensa, só podem decorrer da atualização desses aspec preparados. A famosa busca da palavra certa e insubstitvel, graças ao seu significado, som, valor expressivo, amgüidade, capacidade vibratória das suas zonas semânticmarginais, ao seu “halo” e “nimbo” — essa busca é, afinnada senão o esforço de “preparar aspectos”, de munas orações de qualidades específicas capazes de impora “visão” particular do autor.

    A análise dessa camada, em conjunto com a da cmada das unidades significativas, indica as preferênc por aspectos visuais, auditivos, táteis, etc., — preferêncque podem dar nascimento a mundos inéditos, insólitoO estado psíquico de uma personagem pode ser sugeri

    por aspectos do comportamento físico ou por aspectos

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    timos; por aspectos vistos rigorosamente de um ou de vários focos ou por meio de focos flutuantes que produzemno leitor uma impressão instável, opalizante ou mesmocaótica. Isso pode corresponder em certos casos à intenção inerente à obra. Essa camada, enfim, é quase constitutiva para a obra literária enquanto arte. É exatamenteesse sentido da palavra de Hegel, segundo a qual as belas--letras seriam “aquela arte onde a arte ao mesmo tempocomeça a dissolver-se e se coloca. . . no ponto de transição. . . para a prosa do pensamento científico”. Comefeito, visto que a língua é o material comum da manifestação tanto do pensamento científico como da imaginação

    poética (e além disso do falar cotidiano, etc.), há sempreo perigo de a obra de arte literária se tornar simplesmenteobra literária. É precisamente a camada dos “aspectos preparados” que, em conjunto com a riqueza das outras,

    exerce poderosa função na constituição da obra literáriacomo obra de arte, tornando um poema em “discurso totalmente sensível”. É quase um lugar-comum, aliás nãomuito bem formulado (devido à dicotomia de forma econteúdo novamente posta em circulação), quando OskarWalzel diz que “toda a literatura não se diferencia daciência enquanto se limita à palavra conceituai. Ela setorna arte na medida em que apresenta os seus conteúdoscognoscitivos, voluntativos e emocionais com eficácia sensível, na medida em que transforma estes conteúdos emGestalt, isto é, em configuração sensível”. O que resulta,em essência, na fórmula da “intuição” de Croce.

    9. AS CA MADAS MAIS PROFUNDAS

    O interesse da maioria dos leitores se dirige, semdúvida, para a camada dos objetos representados, princi

    palmente das personagens, quando se tra ta de ficção nrativa ou dramática, ^psta camada, por sua vez, assu para a maioria dos leitores uma função representativa crelação à realidade exterior à obra. Isso é perfeitamelegítimo. É evidente que a obra de arte literária tem ureferência mais ou menos direta à realidade. No entase o raio da atenção se dirige de modo unilateral ao mdo dos objetos representados, tomando-o, por sua vna sua função representativa do mundo exterior à obhá o perigo de se deformar e empobrecer a apreensão totalidade literáriajt Além disso, tende-se desta formanão dar suficiente atenção ao fato de que a camada “imginária” abre acesso a camadas mais profundas da própobra de arte, nas quais se revela um contexto de valocognoscitivos, religiosos, morais, político-sociais, enfuma interpretação mais profunda da realidade e da vihumana que ultrapassa os dados da realidade empíricacotidiana. Talvez se deva falar de uma camada ainmais profunda, presente nas maiores obras: a das situções-limite em que se revelam com intensidade os aspectrágicos, sublimes, terríveis, demoníacos, grotescos ou minosos do mundo e da vida humana. São momentos

    premos e, à sua maneira, perfeitos. A realidade empírnão costuma manifestar esses aspectos significativos e pfundos. É graças à direção específica, orientada pelas madas mais “exteriores” e o entrejogo entre elas as mais profundas, que se revela este plano que algutalvez se inclinem a chamar de metafísico. Talvez seste plano que, se não determina a perfeição estética uma obra, ao menos é indicador da sua grandeza. Graça ele o leitorvive e ao mesmo tempocontempla as possi

    bilidades, as quais a sua vida pessoal — que consiste nma crescente redução de possibilidades — dificilmen

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    lhe permite viver e contemplar. Com efeito, quem realmente vivesse esses momentos extremos, não poderia contemplá-los por estar demasiado envolvido neles. E se oscontemplasse, através de uma obra filosófica por exemplo,não os viveria. É precisamente a obra de arte que possi bilita viver e ao mesmo tempo contemplar essas possibilidades, graças ao modo de ser irreal das suas camadas profundas e ao modo de aparecer deste mundo imagináriona camada exterior, quase sensível. Em virtude desta estrutura que, como já foi exposto antes, permite a profunda participação emocional e, ao mesmo tempo, a distânciadesinteressada da contemplação, a obra de arte literáriaenriquece de uma forma extraordinária a nossa experiência humana.

    IV. O PRO BLEM A DOS VALO RES

    A contemplação e vivência estéticas adequadas daobra, a que se associa prazer estético, como indicador es pontâneo do valor específico, naturalmente não se verificam de modo isolado. A apreciação estética, em part icular de uma obra de arteliterária, é ligada a outras emoções valorizadoras, de ordem religiosa, moral, político--social, vital, hedonístico, etc. Devemos entender e sentirtais valores para poder apreciar o valor estético de obrascomo Antígone, Guerra e Paz, Hamlet, etc. Isto é, devemos ser plenamente entes humanos para sentir e valorizar toda a gama de valores que se manifesta no objetoliterário. Só “nas costas” desses valores podem apareceros valores estéticos, isto é, os valores que realmente constituem a obra como obra de arte. Em Antígone os valoresreligiosos, morais e político-sociais são realmente “fun-dantes” para o valor estético, mas é este — e só este —

    isto é, o modo de como aparecem os outros valores que decide sobre o valor da obra como obra de arEste valor estético revela-se no vigor cênico, na plástdas personagens, dos conflitos e tensões, no encadeameda intriga, na intensificação e solução, na linguagem, fim na polifonia das camadas e na organização das part No entanto, deve ser acentuado que os valores religioou morais apenas “fundam” o valor estético, são ape“condição” dele, mas não o constituem ou determinaEste é autônomo e se constitui a partir dos elemensui generis apontados no decurso deste relato, quer trate de uma heroína sublime como Antígone, quer de monstro como Macbeth. Os valores morais subalternde uma comédia não diminuem em nada seu valor estétiEsses valores “anestéticos”, quer sublimes, quer medcres, quer mesmo negativos, são mera condição do apacimento de valores estéticos como o “trágico”, “gracios

    “cômico”, “humorístico” “sublime”, “grotesco”, etc. Etre as análises fenomenológicas, que mal foram iniciadencontram-se as que determinariam a “localização” prerencial de tais valores em determinada camada ou a constituição através do jogo inter-relacional das camad

    V. CO NC LU SÃ O

    T. S. Eliot disse certa vez, com o bom senso que cotumam ter os anglo-saxões, mesmo quando poetas, qo objetivo da crítica é fomentar a compreensão da litetura e o prazer no contato com ela. De fato, se a apciação de uma obra de arte literária não for acompanhaantes de tudo de prazer, ela não terá alcançado o seu f

    básico. Também a leitura de textos críticos, na medi

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    em que se destinam ao público de periódicos literários e jornais, deveria ser um prazer (intelectual), pois, se a arteé uma esfera lúdica, a crítica da arte não deveria arrogar--se uma dignidade maior do que a do seu objeto. De certaforma, a crítica deveria ser um jogo intelectual com o

    jogo artístico, um divertimento com o divertimento. Claroque em ambos os casos se trata de um “jogo sério”, parausar a palavra de Goethe. Para que se trate de um “jogo”o crítico, enquanto escritor, deveria esquecer completamente a fenomenologia da obra de arte literária. Mas para que o jogo seja “sério”, ele deve ter estudado afundo a estrutura da obra de arte literária, mesmo porquenão poderá esquecê-la se não a tiver estudado. De alguma forma, os seus erros de julgamento se beneficiarãodesse estudo; serão, por assim dizer, erros mais bem fundamentados, erros mais ricos, mais fecundos e, provavelmente, mais bem pagos pelos redatores e editores. Não

    há nada mais difícil do que errar bem e com argumentosirrefutáveis. Tais erros podem ser de imensa produtividade, em particular num ambiente literário animado, jáque provocarão a resposta dos adversários.

    A fenomenologia da obra de arte, embora pareçafragmentá-la em camadas heterogêneas, considera-a, antesde tudo, como uma totalidade. Diante da estrutura com

    plexa da obra, a oposição entre forma e conteúdo perdeseu sentido. O valor estético da obra decorre não só daorganização das suas partes, na dimensão “horizontal”,isto é, na sucessão de um poema ou na simultaneidadede um quadro, mas também da organização das camadas,na dimensão “vertical” . A interpretação esforça-se portornar visível e transparente a estrutura dessa totalidade,no sentido das partes horizontais e das camadas verticais.

    O que importa é compreender e fazer compreender função das partes e camadas até os mínimos detalhes som, ritmo, melodia, palavra, oração, estilo, perspectivatmosfera; para mostrar a eficácia e o sentido dos elemetos no todo da obra, a cooperação das partes e camadna organização total. A interpretação move-se constanmente entre os elementos e o todo, o todo e as partes

    camadas. Ela descobrirá na substantivação de um vero sentido da totalidade e o sentido dessa totalidade a gurá na descoberta de outros detalhes significativos. N próprio processo da análise e interpre tação revelar-se-as rupturas, as partes que não funcionam dentro do toou se opõem a ele; notar-se-ão as camadas sem vida, secaráter ou, ao contrário, as camadas que afinam ou dtoam da polifonia total. Hoje, evidentemente, é precser muito cauteloso no julgamento das dissonâncias.

    paródia e o grotesco, que implicam choques e desarmnias, desempenham papel importante na arte atual. bemos que as grandes obras de arte são, muitas vezesafinação quase impossível de violentas tensões, um tode dissonâncias cuja consonância se mantém no fio navalha.

    A fenomenologia não pretende estabelecer normabsolutas pelas quais se pretende medir e valorizar a oindividual, na suposição de que ela tenha de adequara tais normasfl^t) que ela sugere é que cada obra literátraz, de certa forma, a sua poética e os seus critérios de

    tro da sua própria estrutura peculiar. Ela deve ser varizada segundo alcançou ou não alcançou o ideal e intenção que nela mesma se revelam, segundo realizou não as aspirações inerentes à obra. E naturalmentecrítica deve discutir e apreciar este ideal e estas aspi

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    JONAS SPEYER. Pedindo a palavra, J. S. sugere aapreciação da importância dos sinais visuais nos ideogramas da poesia arcaica chinesa, pois esta obedece a umaestética visual apurada na sua composição gráfica. Issoexplicaria, para nós, um fenômeno quase incompreensível — o de que os japoneses, antes de criar uma poesiaautônoma, usaram e abusaram desse sistema da poesiachinesa, na sua forma gráfica original, mas, nas transposições, a sonoridade, todos os valores sonoros do poemachinês desapareceram; fato que talvez tenha interesse dentro de um estudo da obra literária universal.

    AUGUSTO DE CAMPOS. A propósito do aparte deJ. S., lembrou A. C. que o problema dos ideogramas chineses encontraria particular interesse no estudo da estética moderna, em face de sua reformulação e do seu aproveitamento na própria obra de arte contemporânea, através de um nome ainda não citado: Ezra Pound, autorde um longo poema épico, no qual aproveita em grande

    parte a visualidade do ideograma chinês. Sendo que oestudo sugerido encontraria maior pertinência quando setivesse em conta a própria incorporação do ideogramachinês na poesia moderna.

    CARLOS BURLAMÁQUI KOPKE. Tomando a palavra, C. B. K. solicita a A. R. três esclarecimentos: 1.°)

    Se as três camadas “irreais” citadas na tese (“a dos fonemas ou sonoridades verbais e das configurações de ordemsuperior (orações), que se baseiam nos primeiros”, “adas unidades significativas de vários graus” e “a dos múl

    tiplos aspectos esquematizados, que, quando especialmen

    te preparados, determinam as concretizações do leitonão podem ser reduzidas a duas, com a junção em usó das “unidades significativas e configurações sonorepresentadas pela oração”; 29) Se não seria possível mdar os valores da frase que fala emtipo imanente da palavra, dando a entender que por ele se compreende ta bém o tipo psíquico propriamente dito; pois, segundoaparteante, não se pode dizer que do caráter peculiar camada sonora de determinada obra depende o tipo palavra, como seu tipo imanente e, portanto, o seu p prio tipo psíquico; 3?) Se o autor poderia esclarecer afirmação de que “a primeira unidade autônoma da oliterária não é a palavra e sim a oração”.ANATOL ROSENFELD. Respondendo a C. B. K., R. admitiu que há uma conexão muito íntima entre unidades sonoras e as unidades significativas, mas estas devem ser separadas, para não haver choques, psão na verdade camadas diferentes. O sentido da fr pode ser alegre e a sonoridade pode ter atmosfera trimelancólica, pode ser composta de vogais escuras, suscitam disposições anímicas também melancólicas.

    Quanto aotipo imanente, julga o autor que não podser confundido com otipo psicológico; pois o primeiroreferido pelo texto, é aquele dado pelos vocábulos, p

    palavras, pelas orações curtas ou longas e evidentemenão é o tipo psíquico. Acrescenta ainda que não há nad psíquico na obra literária, pois o psíquico é um ser rO tipo psíquico existe no leitor quando este faz a leitdo texto e isso pode variar de leitor para leitor, de retador para recitador, dependendo do ritmo da leitura.

    Pergunta, então, C. B. K. se, no autor, não há tipo psíquico que suscita as palavras importantes e caterizadoras da frase.

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    Respondendo, aceita A. R. que o autor é um serhumano que iem seu psiquismo, mas que é na oração queele deposita suas intenções, e até certo ponto, seu tipo

    psíquico. O tipo imanente está, pois, nessas orações,nelas e no texto literário não há nada psíquico; o textoé autônomo e não depende do autor ou do escritor oudas concretizações do leitor. Se assim fosse, lembra A. R.,teríamos milhares de visualizações de uma obra de arte,segundo a visão de cada leitor, o que é impossível, poisseria a destruição da unidade e a obra de arte é uma só.

    No caso da literatura há uma objetivação visual que seconcentra nas páginas, através dos sinais tipográficos, masque não tem ser psíquico.

    Pergunta C. B. K. se c autor da presente tese nãoacredita no poder catártico da palavra; e, diante da afirmação positiva de A. R., acrescenta que, se esse poderexiste, então existe também o tipo psíquico do autor pro

    jetado na palavra e que se esquecêssemos isso, é certoque não haveria o monólogo interior; não haveria, noshospitais de psiquiatria, a necessidade de se fazer o paciente falar, para livrá-lo de uma carga. É necessário poisque esse tipo psíquico do autor, seja escritor ou não, se

    projete na palavra. Essa palavra, lembra o aparteante,é o semantema que representa a carga, que deve ser valorizada tanto quanto a oração, como unidade rítmica.

    Concorda A. R. com o aparteante, no fato de queo autor se projeta na obra de uma forma indireta; concorda também que pode haver uma comunicação muitotênue entre o autor e o leitor, o observador. Mas acreditaque isso não significa que o ponto de comunicação daobra de arte como tal depende inteiramente dos diversos

    psiquismos mencionados; pois o autor não põe todo seu

    psiquismo na obra. Nela aparece apenas alguma coisalguma parte de seu ser e assim mesmo muito transfigrado. Assim, não se deve transferir, sem mais nem mnos, o psiquismo do autor para a obra; esta, como tanão tem ser orgânico que a sustente. Esclarece ainda qtratou, em sua tese, do problema ontológico, onde o pr blema do poder catártico da obra se coloca de manediferente daquela que assume na crítica psicológica e ququanto ao mais, estava de acordo com o ilustre professaparteante.

    WILSON MARTINS. Tomando a palavra W. M. mnifesta-se de acordo com o relatório de A. R., porém p põe o reestudo da idéia de que “a unidade da obra arte se contrapõe à pluralidade necessária das diversobras de arte que existem para cada leitor”. Julga W

    M. que em história literária e em estética deve-se admuma certa margem de incoerências ou uma simultânexistência de coisas contrárias, pois uma coisa é a unidada obra de arte em si e outra é a idéia de que o prazestético reside no leitor ao apreciar a obra. Aponta comexemplo a existência de tantasGuerras e Paz de Tolstoiquantos certos grupos de leitores, de acordo com a mentalidade, a formação, a sensibilidade e mesmo o paLembrando que nós, psicologicamente, e historicamendiferentes dos russos, dificilmente teremos diante daqutexto as mesmas reações. Concluindo, lembra ainda qse a obra de arte literária fosse mesmo uma unidade, dos os leitores do mundo deveriam ter admiração pemesmos autores, e no entanto existem inimigos mortde Shakespeare, de Sartre, etc. Isto resulta daquela mgem de variação apontada.

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    de arte, quando esta é apreciada em relação ao seu destino. Lembra, nesse sentido, asteorias dos sinais lingüísticos, segundo os quais a palavra não significa acoisa, mas a idéia da coisa; que umacadeia sonora não representa umacoisa, uma realidade, mas umaidéia desta coisadentro da realidade. Assim, conclui ele, se o sinal lin

    güístico, pela sua estrutura, exprime apenas a idéia dacoisa, isto é, acoisa no plano da memória conforme aexperiência de cada um, ainda dentro da conceituaçãoontológica da obra de arte admite-se essa plurificação da própria obra.

    ANA TOL ROSENFELD. A esta observação, lembra orelator que aquela visão crítica da obra de arte já constade seu trabalho com outra terminologia, do que se desculpa W. C., pois tendo recebido a tese há momentosnão pudera fazer uma leitura integral.

    Conclui A. R. que a objeção é certa, mas que o problema é ainda mais complexo do que a simples palavra, idéia ou coisa e que foi o que procurou abordarno texto.

    HAROLDO DE CAMPOS. Deixando de lado outrasdúvidas não pertinentes ao problema enfocado, H. C.chama a atenção para a importância daqueles dois pro blemas que não foram desenvolvidos pela tese, pois com portariam um trabalho à parte: a função catártica daobra e a consciência de que a obra de arte possa serentendida como atividade lúdica. E, sem intuito de de

    bate, expõe H. C. o seu ponto de vista que aceita afunção crítica da obra de arte, pois como existe umaBeleza para a contemplação, existe também uma Beleza

    para a ação; dentro assim da linha de Ezra Pound que

    considerava a missão do artista comoantenas de raçe fusão de responsabilidades perante a linguagem, não entra evidentemente apenas o plano lúdico.ANATOL ROSENFELD. Esclarece A. R. que emtese há um pequeno capítulo dedicado à função da obrde arte, em que dá a esta apenas a função catártica, cse fosse apenas uma forte solicitação da inteligênciROBERTO SCHWARZ. Solicita R. S. um esclamento do ponto de vista detrabalho. Relembra que comunicação procura estabelecer bem a distinção dosníveis: oreal e o imaginário, colocando este ao nível experiência vivida, mas funcionando autonomamenoferecendo todos os critérios para o seu julgamentoassim é, pergunta o aparteante de que maneira príamos pensar em distinção entre romance realista erealista, ramos que se prendem, que têm intenção m

    tica, se não escrevemos a gênese doimaginário para experiência vivida. Como se poderia fixar aquela dtinção sem recurso à experiência vivida,exterior ao níveimaginário?ANATOL ROSENFELD. Respondendo à solicitaesclarece A. R. que ao contrário do que acontece natica da realidade empírica, aqui se faz uma diferencimuito forte e aguda entre o mundo imaginário e a rdade. Da mesma maneira, é claramente estabelecida nítida diferenciação entre ficção e obra científica: nameira não há juízos, como os há na segunda. Dentr

    ficção se estabelece o mundo imaginário que não t passo a passo, referência com a realidade, entretantofica no horizonte da crítica, embora posta em terdiferentes, uma vez que se refere a seres e objetos ecamente autônomos.

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    Lembra ainda A. R. que a realidade, na obra ficcional, não é a mesma que aparece na científica ou na terminologia filológica mas, ainda que seja diferente, sua presença é indispensável na referência à obra, a fim deque possamos distinguir nitidamente uma obra imaginária de outra literária, mas que não é imaginária, não é

    ficção.Assim, conclui o relator, é perfeitamente possível es-tabelecer-se, na visão crítica, a diferenciação entre umaobra realista e outra surrealista ou expressionista, futurista, etc., porque haverá sempre a possibilidade de um ponto de referência da realidade.

    MANU EL CERQUEIRA LEITE. A esta altura, M. C.L. solicita do autor uma pequena modificação no texto,na passagem do item “A Definição de Hegel”, emque a visão hegeliana da obra de arte está, de passagem,relacionada com o termo “intuição”, na acepção de Croce.Entende M. C. L. que, tal como está redigido o texto, pode dar a impressão de que Croce está como dependentede Hegel, coisa com a qual ele absolutamente não concorda.

    ANATOL ROSENFELD. Sem prolongar o debate, pro pôs-se a discutir mais tarde com o aparteante esse pormenor do tema da “intuição” de Croce, em que ele sente,todavia, certa filiação hegeliana.

    PRESIDENTE. Dando por encerrado o debate, o Presidente passa a palavra novamente a Anatol Rosenfeld,que como relator passa à exposição da tese de Antônio

    José Saraiva, A Obra Literária como significante.

    PROBLEMAS LITERÁRIOS1

    I. ESSÊN CIA E FUNÇÃO DA LITERATURA

    A obra de arte literária é a organização verbal snificativa da experiência interna e externa, ampliadaenriquecida pela imaginação e por ela manipulada psugerir as virtualidades desta experiência. A modalidaespecífica do discurso literário, emocional, imaginatiambíguo, irônico, paradoxal, alusivo, metafórico, etende a fazer da obra uma estrutura de significados aunoma que diverge profundamente do discurso científireferencial, racional, cognoscitivo e puramente instrumtal. A meta do discurso literário é a comunicação intenvivida, da experiência que nele se organizou. Neste pcesso é fundamental o papel da língua que não só med

    1. Esta exposição reproduz, nos pontos fundamentais, apes de muitos cortes, acréscimos e modificações, o texto de um depmento solicitado pelo Sr. Eliston Altmann e publicado no Supmento Literário deO Estado de São Paulo (n ° 49 5). As questões focalizadas foram formuladas pelo redator mencionado. ( No de A. R.)

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    II. LITERATUR A E SOCIEDA DE

    Desde Vico, Herder, Hegel, Taine é lugar-comumrealçar as relações entre arte e sociedade. Herder, porexemplo, tentou demonstrar, através da obra de Shakes- peare, que a estrutura da sua dramaturgia tinha de ser diferente daquela dos gregos por ter a sua raiz numa sociedade inteiramente diversa da grega. Semelhante concepção é uma das razões fundamentais do surto romântico,dirigido contra as “regras eternas”, acadêmicas, do classicismo que não encarava a literatura como instituiçãohistórica, dependente, portanto, em ampla medida, dasvariações e mudanças sociais. A partir daí não se reconhecem mais “regras eternas”, fato que abriu o processoda incessante renovação das vanguardas.

    Seria ridículo querer negar hoje que o fato literário

    se relacione com condições socioculturais gerais, com a posição social específica do autor e com a interdependência entre o autor e os gostos dos variados públicos a quecada autor se dirige, estes por sua vez socialmente condicionados. Todos esses fatores se manifestam de algummodo na obra. Racine, ápice do classicismo francês, écondicionado pelo absolutismo, pela etiqueta da corte e pelo gosto da aristocracia a que se dirigia e a que se esforçava por agradar. Fatos como a difusão de periódicos(relacionada com desenvolvimentos socioculturais) contri

    buíram para a constituição de novos gêneros (conto, crônica), a introdução das estradas de ferro, trazendo novascamadas populares às cidades, estimulou a criaçãode novos tipos de espetáculos teatrais e, assim, de novasformas de dramaturgia. Tudo isso sem mencionar queo livro é, entre outras coisas, também uma mercadoria

    sujeita a processos econômicos. Este fato não deixainfluir na produção, no feitio literário, na difusãono êxito da obra literária. Sobretudo a própria líné um fato sociocultural, refletindo no seu vocabulárina sua sintaxe, em certa medida, a estrutura da sociede a maneira de como esta interpreta a realidade.

    Se tais condicionamentos se manifestam na obra, por sua vez influi nos respectivos públicos, moldando-ldentro de certos limites, o gosto, as divagações, a iginação, a sensibilidade, as atitudes, as valorizações comportamento. Esta influência, evidentemente, é hmais poderosa e ampla no caso das indústrias culturverdadeiras fábricas de consciências. Tais indústrias, rém, baseiam-se parcialmente em elementos literáriossubliterários. Todos esses problemas têm sido estudaapenas precariamente segundo critérios científicos. davia, não deixa de ser interessante mencionar que hi

    riadores sérios afirmem dever-se ao teatro jesuíta o de a Áustria ter permanecido católica, depois da amexpansão inicial do protestantismo. Hoje, tal função ser exercida, naturalmente, pela tevê e pelo cinema.

    * Posto tudo isso, é preciso realçar que a relação ea obra literária e a sociedade é extremamente mediQualquer simplificação neste terreno desvirtua os femenos. De modo algum a obra de arte literária pser reduzida a condicionamentos sociais. Não pode explicada, como um todo estético valioso a partir de por mais que estes fatores tenham influído nela e se nifestem nos seus vários planos. No processo da criainterferem intensamente elaborações imaginativas e obsões pessoais que particularizam radicalmente os momtos socioculturais. A própria obra impõe certos imptivos estéticos que não podem ser derivados, sem m

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    nada, do momento histórico-social, visto decorrerem, aomenos parcialmente, da tradição autônoma de cada gênero. Esta, embora tenha por sua vez raízes sociais, não pode ser reduzida a elas e é reelaborada de um modocomplexo e pessoal, embora sob a influência de novassituações histórico-sociais.

    Antes de tudo, porém, é preciso frisar que o valorestético de uma obra não pode ser explicado à base deoutros fatores. Ele consiste precisamente na integraçãocoerente e significativa dos mesmos num todo que transcende todos os elementos de que se compõe e todas ascondições de que depende. O todo da obra, visando arealçar o essencial, impõe à multiplicidade dos elementoscoerentemente integrados uma unidade e força que se comunica através de largos espaços de tempo e em sociedades muito diversas daquela em que a obra surgiu.

    III. LITERATURA E IDEOLOGIA

    Atribui-se ou nega-se muitas vezes à literatura exercício de funções ideológicas. Se entendemos por “funçãoideológica” a decomposição de uma idéia, isto é, o seuuso para justificar determinado estado de coisas precárioou a propagação ou defesa de um sistema espiritual queexprime e racionaliza os interesses estabelecidos de determinada parte da sociedade, mascarando-lhes a negativi-

    dade subjacente, é claro que se deve considerar tal funçãocomo contrária à essência da literatura. Idéias em sisublimes como a da justiça social (socialismo), por exem plo, ou as da democracia e da liberdade (idéias fundamentais da burguesia na luta contra o feudalismo e abso

    lutismo) podem perverter-se a ponto de serem usadas para

    encobrir a negação da justiça social ou, no segundo c para mascarar não só a negação da justiça social maté a supressão da própria liberdade e de outros direhumanos. A grande obra de arte, assim parece, rep pela sua própria estrutura, semelhante função; ela parser incapaz de pôr-se a serviço da corrupção de idéi

    Ela pode apresentar ou mesmo exaltar valores corrupmas ao mesmo tempo lhes revelará o cerne íntegro e ldesvendará o lado corrupto. A grande obra literária s pre revela e nunca encobre como a ideologia, no sendefinido. Só oKitsch, a pseudo-arte, falsifica e é tão chede mendacidade como a ideologia. A literatura é uempresa digna e humana. É profunda a nossa fé de a grande obra, mesmo se o seu autor por quaisquer obsões sucumbir a enganos, resiste à função corruptoraideologia, sendo até capaz de, a despeito do autor, dnudar a sua falsidade para restituir à humanidade a id

    pura e original de que a ideologia é a perversão. A gde obra a desmascara pelo menos até o ponto mais avçado atingido pela consciência de cada época. É cararístico que um dramaturgo extraordinário como Caldeapesar de aprovar o “pundonor” do Homo hispanicus valor cuja perversão se liga à ideologia aristocrático-dal, não consegue evitar que as suas obras questionemmesmo, em breves momentos, revelem agudamente a sidade e desumanidade desse valor e das atitudes envvidas.

    Ao afirmar o poder revelador da obra literária,se atribui a ela uma função “ideológica” em outra acção, no sentido de ela ser manifestação de idéias, de “filosofia”, de concepções do mundo ou da sociedadeexprimir ou mesmo empenhar-se por valores políticos,ciais, morais ou vitais — embora tal empenho nunca d

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    ser exigido ou imposto. Parece que as obras em geralcontêm tais momentos, pelo simples fato de manipularem palavras, exprimindo ao menos (ainda que seja sem em penho específico) experiências e interpretações da realidade, e lidarem com seres humanos e seus interesses, sentimentos, reflexões, atitudes, conflitos e decisões, sempreligados a valorizações e idéias. É inevitável, por isso, queà obra se associem valores e idéias. A presença deles,a preponderância de uns sobre outros e a maneira decomo são organizados, decorre de determinada visão domundo, também do mundo social (visão religiosa, burguesa, marxista, etc.) e, em última análise, de determinada opção prévia, de determinada atitude valorativa emface do mundo, atitude não necessariamente raciocinadae que, na obra, certamente não se reveste de dogmatismo.Roland Barthes tem razão ao dizer que a grande obrarepele os dogmatismos.

    Tais atitudes fundamentais — ideológicas no segundo sentido — tendem a manifestar-se desde logo, paranão falar da temática, na escolha de certas palavras, nasintaxe, na metafórica, no estilo, no jogo imaginativo, noimpulso rítmico, em toda a estrutura enfim. No hexâme-tro, no alexandrino e nos seus variados usos e transformações através da história, no soneto e nas suas variaçõeshistóricas ou num poema concreto se externam atitudese concepções diversas (é característico que Brecht hajadesistido da sua tentativa de pôr o sistema marxista em

    hexâmetros: o resultado teria sido cômico). E se alguém,hoje em dia, escreve alexandrinos ou sonetos, exprimecom isso — se houver alguma relevância no seu fazere não apenas um exercício ocasional — uma atitude fundamental, de raízes em última análise “filosóficas” e mes

    mo “políticas”. Pois os valores políticos, entendidos num

    sentido amplo e elevado, fazem parte do mundo humae nenhuma visão humanista pode pô-los de lado. Goetna segunda parte deFausto, usou o alexandrino numsentido bem ideológico: para parodiar o mundo antiqdo do imperador.

    O que foi dito, refere-se em grau mais acentuado agêneros. A epopéia grega exprime uma visão mítica universo e o surgir do drama grego, embora este assimem parte a visão mítica, importa numa ruptura comunidade do espírito anterior. É agora que surge, comelemento fundamental, o diálogo, isto é, o “dia-logoo logos fragmentado. Essa divisão do espírito é a verdeira origem do drama. É por isso mesmo que, na tgédia, surgem pela primeira vez situações radicais eque o homem se vê colocado entre dois valores igualmte válidos, igualmente sagrados, devendo optar por udeles: matar, por exemplo, a mãe, pois seria pecado nvingar o pai assassinado por ela, ou não matá-la, pseria pecado igual matar a mãe. No drama cristalizauma nova interpretação do universo a da posição do hmem no universo. Interpretação que, poucas décadas pois, levará à crítica aos deuses. Em tudo isso se defuma atitude “ideológica”, política até, ligada ao desvolvimento da Polis ateniense, ao surgir de horizontemais amplos, de valores diferenciados e em choque.

    No início da dramaturgia européia encontramos obra de Ésquilo. Logo a primeira peça que veio a nOs Persas, aborda um tema da atualidade política de etão, a ponto de o herói, Xerxes, ainda ter vivido quana peça foi apresentada em Atenas. De um lado tratade uma obra patriótica, festejando a vitória grega sobos persas. Essa vitória, porém, é focalizada a part ir

    perspectiva da derrota persa, mostrando o sofrimento

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    — além da visão histórica — certos princípios gerais,isto é, uma Poética. A mais ligeira descrição ou caracterização de um texto — mesmo o simplesreview — sóé possível à base de certa concepção literária geral (mesmo não plenamente conceituada), já que, para salientartais e tais elementos em detrimento de outros, é preciso ter

    princípios de seleção que naturalmente incluem valora-ções estéticas. A Poética, que procura sistematizar tais princípios (e nisso naturalmente depende, por sua vez,da crítica de obras individuais) é parte central da Teoriada Literatura. Sem entrar na confusão terminológica quereina neste campo, é possível afirmar que a Poética é a

    parte que liga a Teoria da Literatura à Estética e à Filosofia em geral. Ora, não há uma Poética razoável quenão tome em conta a dimensão histórica. E não há umacrítica razoável que não pressuponha uma Poética quetome em conta a dimensão histórica, enquanto a Históriada Literatura por sua vez pressupõe a crítica de obras individuais e princípios acerca do que seja a literatura.

    Já na Poética de Aristóteles encontramos reunidosa crítica, a história e, naturalmente, os princípios gerais.A sua Poética, no caso a teoria dramática, pressupõe acrítica de obras individuais e a visão ampla da tradiçãohistórica. A crítica e seleção histórica dos dramaturgosnos quais sobretudo se apóia na elaboração da teoria pressupõem, por sua vez, princípios que decorrem em parte da sua filosofia geral (incluindo a polít ica é ética)

    e particularmente de certas concepções estéticas gerais(mimese, catarse, verossimilhança, ação concatenada euna, organização, coerência, etc.), isto é, de uma teoriada literatura (e da arte em geral). A crítica de Aristótelesé, de certo modo, “sincrônica”. Com efeito, o filósofo

    parte em certa medida de critérios contemporâneos (do

    século IV a.C.) que aplica a uma arte, então já vetustdo século V. Mas ao mesmo tempo põe em referênca tradição histórica, os juízos críticos da época em qas grandes tragédias surgiram e a estrutura dessas obrmodelares.

    V. O PA PE L DA CRÍTICAPondo de lado a crítica teórica que se abeira d

    Poética, fazendo indagações sobre a natureza da litertura, o papel da crítica literária prática ou militante quaisquer que sejam os seus variados métodos — é o mediação. Ela exerce a função mercurial do comércespiritual. Essa função afigura-se de grande importâncGraças a ela, valores elevados de uma cultura são cociencializados, postos em circulação e providos de umacústica sensível e nuançada. O crítico medeia entreobra individual e o público e entre a obra e o autor através da análise, interpretação, caracterização e valozação desta obra. Localiza-a historicamente, integranuma tradição ou a diferencia dela. O crítico medeia, amais, entre as concepções estéticas gerais (como vimantes) e a obra literária individual. Medeia ainda eno passado e o presente, caracterizando e selecionanobras do passado em termos atuais, por exemplo, do extencialismo, da psicologia moderna, da sociologia, da

    tética e da teoria dos nossos dias, sem deixar de tomem consideração a visão da época em que a obra surgE medeia, enfim, entre o presente e o futuro, particumente quando, sendo ao mesmo tempo poeta, romancidramaturgo, propõe e se empenha por novas soluçõnovos estilos, novas técnicas.

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    Embora hoje não se admita mais a crítica normativaque propõe modelos eternos e embora se procure, tantoquanto possível, respeitar a intenção estética inerente acada obra (não a aferindo segundo modelos externos),é inevitável que cada crítico se oriente por uma imagem

    subjacente da literatura e da sua natureza essencial. Ocrítico recebeu esta imagem, nos seus traços fundamentais,da tradição do passado. Cabe-lhe manter esta imagem

    por assim dizer aberta e incompleta, não a preenchendoem todos os pormenores, para poder abrir-se ao futuro.

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