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Rui Resende

Palco do Crime

Edição do Autor

Lisboa 2012

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Ficha Técnica

Título: Palco do Crime

Autor e Editor: Rui Resende

Capa: Postal Ilustrado Russo

Composição e Coordenação: Rui Resende

Revisão e Conexão de Textos: Professora Ruth Moraes Silva

Execução: Gráfica Copidouro

Tiragem: 30 Exemplares

ISBN: 978-989-97112-1-1

Depósito Legal: 346578/12

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O Testamento de Dario Norton Mateus

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I

s candidatos à herança do Sr. Dario Norton Mateus

pouco se importavam com a poeira espalhada pelo

consultório do dr. Nunes Vasconcelos, quando ele começou a ler

o testamento do falecido, conhecido comerciante do norte de

Portugal, ligado a uma cadeia de lojas de revenda, de implantação

recente e próspera.

- Como sabem esta reunião serve para tomarem

conhecimento dos últimos desejos contidos no testamento do Sr.

Dário Mateus, que faleceu recentemente em viagem pelos USA.

Em linhas gerais este comerciante, que não tinha descendentes

directos ao legado, propõe 7 herdeiros que de algum modo

fizeram parte da sua vida mas, condiciona aqueles que aceitarem

a candidatura à herança, a passarem três meses na residência

aonde ele morou nos primeiros anos da sua vida.

Um murmúrio de vozes elevou-se forçando o Dr. Nunes

Vasconcelos a bater com a palma da mão em cima da secretária

para impor silêncio.

- Neste momento estou em condição de informar que todos os

legítimos beneficiados se encontram nesta sala.

Um sussurro no escritório quase quebrou o discurso do

testamenteiro, no entanto ele conseguiu continuar a fazer-se ouvir.

- Nomeio o Sr. António Mira, também candidato à herança,

de vigiar e fazer cumprir todas as condições prescritas no

testamento quando se encontrarem dentro da moradia. Em seguida

irei relembrar quais são os interessados ao legado ou

testamentários:

1- Sr. Gastão Pacheco, antigo funcionário de uma loja em

Bragança, natural da mesma cidade.

2 - Sr. Heitor Leitão, sócio do falecido e natural da cidade do

Porto.

3 – Sr. Teodomiro Florêncio, amigo do Sr. Dario Norton

Mateus, nascido em Valongo.

4 - Sr. Raposo Carrilho, primo e natural da Venezuela

5 – Sra. Bernardina Delfim, governanta da casa aonde

pernoitarão e natural de Setúbal.

6 – Sr. Leandro Antão, amigo do falecido e natural de Faro.

O

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7 – Sr. António Mira, amigo do falecido e natural de Beja.

Acabando de ler os nomes Nunes Vasconcelos, vestindo uma

camisa branca, laço ao pescoço e um fato negro olhou a plateia

atenta e continuou.

- Todos estes senhores devem apresentar-se na antiga

residência do falecido e jamais poderão abandonar os limites da

propriedade, durante o período mencionado, sob pena de

perderem direito ao legado de forma irrevogável.

O indivíduo colocou o testamento dentro de um dossier

ficando a aguardar as perguntas tendo a primeira surgido pela voz

rouca de Heitor Leitão.

- Como nos chegam os mantimentos? Certamente a casa não

tem comida suficiente para três meses.

- A casa possui um pequeno anexo que dá para uma rua.

Todos os dias um homem irá entregar os víveres e o que

necessitarem. Para o efeito bastará lá colocarem uma lista com o

que necessitarem.

- São permitidos telemóveis ou outros meios de

comunicação?

- Nenhum. Irão ficar completamente isolados.

- Se um de nós adoecer ou mesmo falecer?

- Se alguém padecer de uma enfermidade tem livre escolha.

Ou vai para o anexo e sai, perdendo de imediato o direito à

herança ou continuará doente dentro de casa.

Imediatamente as vozes se levantaram em protesto e o Dr.

Nunes Vasconcelos teve de novamente bater com a palma da mão

na secretária, para baixar o ruído.

- Se alguém morrer, deve ser embrulhado num lençol e o

corpo depositado no mesmo anexo para posterior recolha.

- Como pode o senhor provar a sua neutralidade na decisão

final?

- Os candidatos que se apresentarem aqui no meu consultório

dentro de 90 dias serão os herdeiros. O falecido confiou em mim,

acreditando na minha honestidade. Eu em mais de 25 anos,

exercendo advocacia, nunca deixei de fazer cumprir a vontade dos

meus clientes.

- Quem prepara as refeições?

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- A Sra. Bernardina Delfim ficará incumbida de todas as

actividades domésticas, como as que referiu, as limpezas, etc.

Um sorriso irónico mal contido transpareceu no rosto de

Nunes Vasconcelos que passou despercebido pela assistência.

II

m pensamento apossara-se de Heitor Leitão ao findar

o primeiro mês passado naquela sinistra casa, de

grades nas janelas, ampla, nenhum conforto, húmida e sem

condições de ser habitada.

- Sr. Raposo, como foi possível o Sr. Dario ter vivido nesta

casa sem condições, tantos anos?

- Não lhe sei responder.

Teodomiro Florêncio replicou deixando de parte um livro que

o prendera momentos antes. Ambos sentados num sofá

observavam Bernardina Delfim fazendo uma camisola de malha

com os óculos na ponta do nariz.

- A propósito, hoje ainda não vislumbrei o nosso

controlador.

- Refere-se ao Sr. António Mira?

- Sim. Uma pessoa muito curiosa. A Sra. Bernardina

confessou-me que quando hoje conseguiu finalmente entrar nos

aposentos dele, descobriu inúmeros aparelhos espalhados pelo

quarto e diversos caixotes empilhados no chão, ainda por abrir,

numa miscelânea incrível.

- Deveras?

A governanta, que ouvia a conversa, soltou uma ruidosa

gargalhada continuando a fazer a tarefa que se propusera com

afinco, sem a interromper.

- Quando o Sr. António Mira deparou com ela, armou uma

violenta discussão e ameaçou-a se ela voltasse a entrar sem o

avisar.

- Imagino a zanga, a Sra. Bernardina brinda pelo

autoritarismo.

A mulher não gostou do que ouviu, fulminou com os olhos o

hóspede voltando de novo ao tricot.

U

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- Um homem moreno e espadaúdo entrou na sala e com ar

inquieto queixou-se.

- Esta humidade penetra-me nos ossos.

- O Sr. Leandro Antão sofre de reumatismo?

- Sim. Mudanças no tempo provocam-me dores nas costas

que apenas se atenuam quando me deito na cama de barriga para

baixo.

- Talvez umas massagens lhe façam bem.

- Não existe solução para este problema, trata-se da minha

cruz até à morte. Mudando de assunto, estão satisfeitos com a

estadia?

- Um pouco monótona.

- Penso o mesmo. O primeiro dia andei a passear. Satisfeito

como umas merecidas férias da labuta anual porém, anseio agora

por acção. Amanhã visitarei os campos em redor da moradia

- Existem muitas árvores de fruto segundo me contou o Sr.

Gastão.

Com um esforço o Sr. Raposo Carrilho levantou-se da

cadeira estrategicamente colocada ao pé do fogão da sala e a sua

voz pastosa ecoou.

- Se o tempo melhorar e subir a temperatura do ar

acompanhá-lo-ei mas, não prometo nada.

- Terei muito gosto na sua companhia, Sr. Raposo Carrilho.

Leandro Antão, despediu-se e retirou-se para o seu pequeno

quarto. Depois de tratar da sua higiene nocturna e deitar-se abriu a

gaveta da mesinha de cabeceira, retirou um pequeno diário que

sempre o acompanhava e redigiu em letras redondas.

« … a morte aproxima-se em passos largos, todos calmos,

nenhum desconfia,.. »

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III

Sol da tarde penetrava pela janela sem aquecer a sala,

provocando aquele crepitar de lenha na enorme lareira

cuja parte superior era formada por uma imensa pedra de granito.

O grupo reunira-se e tentava em vão acalmar o pobre homem

visivelmente transtornado.

- Por favor, recapitula como sucederam os factos.

Leandro Antão esfregava as mãos, nervoso, e com

dificuldade respondeu a Gastão Pacheco.

- Lembro-me vagamente dos instantes antecedentes àquele

em que o Sr. Raposo Carrilho foi esfaqueado.

- Meu Deus.

Bernardina Delfim elevou os olhos para o alto, beijou um

rosário que trazia no pescoço e um longo suspiro saiu-lhe da

garganta enquanto ouvia o diálogo entre os dois interlocutores.

- Recordo-me de irmos a conversar sobre banalidades e

ouvirmos um barulho nuns arbustos.

- Descobriram alguma coisa?

- Apenas vi um pouco de terra queimada, possivelmente por

pólvora, depois escutei outro ruído e quando me voltei o Sr.

Raposo Carrilho caía por terra.

- Localizou o som?

- Sim. Provinha do lado direito, contrario aonde se localiza a

casa. A faca certamente voou das mãos do assassino para a

vítima.

- Conseguiu ver o assassino?

- Não, também não me arrisquei a procurá-lo.

Os olhares voltaram-se para Teodomiro Florêncio, o único

que aparentemente se ausentara em simultâneo com a testemunha

do crime e o falecido. Durante segundos olhou para os que o

circundavam como que a estudar a desculpa mais conveniente a

dar no entanto, a sua boca não se abriu.

- Alguém tem álibi?

As palavras pronunciadas em voz alta obrigaram todos a

voltarem-se para a porta da entrada da sala aonde António Mira

reaparecia transportando um aparelho debaixo do braço e com um

cigarro aceso nos dedos.

O

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- Ninguém respondeu à minha pergunta, e gostaria de fazer

uma pequena experiência.

- Para quê?

- Eu explico, Sr. Heitor Leitão. Não se realizou por acaso a

minha escolha como vigilante, tal decisão do senhor advogado

Nunes Vasconcelos tem um fundamento.

- Qual?

- Ele com a sua enorme experiência calculou a possibilidade

de poder acontecer desta vez factos estranhos, como tentativas de

assassínio, correntes em situações similares, em que estão em

jogo enormes quantias.

- Ainda não entendi o motivo da sua indicação para vigiar o

grupo.

- A razão é simples, a minha antiga profissão era detective.

António Mira retirou um cartão da carteira e apresentou-o aos

presentes. Após um primeiro período de surpresa, o investigador

continuou na sua voz calma.

- Proponho que se realize a confirmação do álibi de cada um

ou melhor, verificar se o mesmo é verdadeiro ou falso.

- Com amital?

Dando uma gargalhada, em contraste com o ambiente de

tensão na altura, António Mira respondeu a Leandro Antão.

- Não meu amigo. Não precisamos de barbitúricos apesar de

o amital reduzir as inibições, não sei se sabe que, nenhum

criminoso confessa a verdade sob a acção de drogas hipnóticas?

- Desconhecia.

- Utilizaremos um detector de mentiras.

Ao pronunciar estas palavras o antigo detective apontou

vitorioso para um instrumento.

- Trata-se de um polígrafo ou seja um instrumento para

registar ao mesmo tempo várias reacções fisiológicas, mede as

pequenas alterações de emotividade quando o inquirido diz

mentiras.

Todos circundaram o objecto com curiosidade continuando a

ouvir o relato do modo de funcionamento daquela maravilha

tecnológica.

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- Quando alguém mente, as principais alterações no corpo são

produzidas no ritmo cardíaco, na pressão sanguínea, na respiração

e na resistência galvânica da pele.

Leandro Antão observava fascinado o aparelho, e inquiriu

com o olhar António Mira que não se fez rogado em explicar o

funcionamento.

- Esse instrumento denomina-se espirógrafo e mede o ritmo e

a quantidade de respiração, os outros chamam-se esfigmógrafo e

esfigmomanómetro e registam a pressão do pulso e a arterial do

sangue. Com o pneumocardiógrafo, aparelho que mede o bater do

coração abarcamos um conjunto notável de preciosos auxiliares

para a descoberta da verdade.

Um olhar de inquietação percorreu os concorrentes ao legado

de Dario Mateus, contudo o entusiasmo de António Mira não

esmorecia.

- Para completar a apresentação do detector de mentiras ou

GSR ( termo americano ) convido-vos a admirarem este

galvanómetro sensibilizado às alterações na resistência eléctrica

da pele.

- Fantástico.

- Existem duas formas de ele trabalhar, ou medindo-se a

resistência da pele a uma corrente eléctrica fraca previamente

imprimida ou medir-se a corrente fraca da superfície do corpo. Os

valores alteram-se com a emotividade ou com a falta à verdade.

- Como pode detectar se mentimos ou não, através da

respiração?

- Aplicando a proporção inspiração/expiração com a ajuda de

um pneumógrafo ou instrumento que mede os actos fundamentais

da respiração. Acredito que a relação inspiração/expiração

compreende um grau de emotividade e quando o índice baixa,

podemos admitir que o inquirido mente.

Um silêncio sepulcral atingiu os presentes desconfiados, uns

dos outros, porém sem se manifestarem.

- Devido à morosidade do sistema proponho a utilização do

detector de mentiras amanhã.

Apreensivos, começaram a abandonar o salão, em direcção à

sala de jantar.

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- O Sr. Leandro Antão acredita mesmo no funcionamento do

aparelho?

Com os olhos colados no chão, Gastão Pacheco interrogava o

seu parceiro, que devido a um problema com um tendão, coxeava

um pouco.

- Não, sei meu amigo. Creio que a verdade sairá das

profundezas e surgirá à luz do dia, como o azeite acaba sempre

por aparecer à tona da água. Saberemos mais tarde quem matou o

Sr. Raposo Carrilho.

O jantar decorreu calmo até ao momento em que se bebia o

café. Nessa altura um ruído ensurdecedor saiu da divisão

contínua. De imediato todos se levantaram, e correram para o

local do som, para verem o detector de mentiras completamente

carbonizado, mais parecendo um pedaço enorme de carvão.

- Alguém colocou pólvora no aparelho e ligou um rastilho de

modo a demorar o rebentamento.

- Eu fui lavar as mãos pouco antes do estouro da pólvora, o

Sr. Gastão Pacheco ausentou-se a ir buscar outros óculos ao

quarto, o Sr. Heitor Leitão também saiu da casa de jantar para ir

buscar vinho à cave…

Teodomiro Florêncio falava enquanto observava à sua volta.

- Se tivermos em conta que a Sra. Bernardina Delfim se

encontrava na cozinha lavando a louça, o Sr. Leandro Antão

dirigira-se à biblioteca para ir buscar um livro, chegamos a uma

conclusão.

- Sim, não sabemos quem destruiu o aparelho.

O barulho de um veículo, com os faróis acesos, parando junto

do portão da quinta, a meias com o anexo. fez com que a maioria

dos presentes se dirigissem de imediato para as janelas a tempo de

verem o corpo de Raposo Carrilho, envolto num lençol branco,

ser retirado e serem depositados alguns mantimentos.

Teodomiro Florêncio coçou a cabeça, retirou um lenço da

algibeira e assoou-se enquanto exclamava.

- Ali vai o cadáver do Sr. Raposo Carrilho.

- Quem colocou o corpo no anexo?

- Eu e o Sr. Gastão Pacheco.

Nessa noite quando se deitou, Leandro Antão escreveu no seu

diário, pagina 43.

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«… o terror apoderou-se de todos, como a neve gelada cobre

as aldeias e os campos… »

IV

s mãos de Leandro Antão tremiam o que provocou o

cair de algumas gotas de gin do seu copo, por cima da

carpete.

- Contei tudo o que sei, Sr. Teodomiro.

- Não digo o contrário, lembre-se que neste momento

possivelmente convive connosco nesta divisão, um homicida.

- Mas,…

Teodomiro Florêncio calou-se para não cortar o fio de

pensamento de António Mira.

- Não estão todos na sala.

- Eu sei, mas pode no entanto ir narrando o que pretende

fazer.

Teodomiro Florêncio calou-se e todos os olhos fixavam

atentos no antigo detective aguardando que ele prosseguisse.

- Proponho que todos andem juntos o máximo do tempo

possível, e à noite tranquem as portas dos vossos quartos. Irei

agora distribuir um questionário para responderem. A folha das

respostas será colocada sobre a travessa de um grafodine, um

aparelho muito sensível destinado a medir a pressão escrita à mão.

- Muito ardiloso

- Sim, um instrumento muito precioso, como disse o Sr

Heitor, destinado a descobrir as alterações da emotividade de um

indivíduo enquanto ele responde ao questionário Agora não existe

o perigo de estragarem o aparelho porque…

- Falta na sala o Sr. Gastão

Teodomiro Florêncio interrompia o detective quando se

ouviram passos apressados e o vulto enorme de Bernardina

Delfim assomava à porta da divisão com os olhos lacrimejantes

- Meus Deus, assassinaram o Sr. Gastão Pacheco!

De imediato saíram da sala, dirigindo-se ao encontro da

mulher fazendo-lhe perguntas e acompanhando-a ao local do

A

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crime. No corredor da casa jazia o infeliz e em cima das costas

encontrava-se um bastão.

- Não se aproximem.

Heitor Leitão com os braços estendidos para o lado, em

forma de cruz, impedia a aproximação dos demais elementos e

ordenou à cozinheira.

- Vá buscar umas luvas para depois a polícia poder retirar as

impressões digitais do bastão. Sr. Teodomiro, ajude-me a

transportar o cadáver para o anexo para posterior recolha do

corpo.

Os demais elementos concordaram com a cabeça. A mulher

foi buscar umas luvas de borracha, Teodomiro Florêncio um

lençol, para transportar o corpo, e os restantes elementos do grupo

regressaram à sala. Ao chegarem António Mira ficou lívido e com

palavras de desespero murmurou, ao ver o instrumento com os

ferros retorcidos e demais pedaços espalhados no chão.

- O assassino destruiu o grafodina.

Deixando o pobre homem olhando desolado o objecto

regressaram aos quartos devagar e cabisbaixos.

Nessa noite Leandro Antão, como habitualmente fazia antes

de adormecer, escreveu mais umas páginas no seu diário. Na

página 57, podia-se ler.

« … a longa tarefa completa-se, o cerco aperta-se e as vitimas

perdem-se, malogrando-se as esperanças vãs de compreensão… »

V

chuva caíra durante a noite massacrando as vidraças

das janelas com um ruído seco confundindo-se com o

barulho do motor a retirar água do poço. Ao longe, sobre a serra,

nuvens ameaçadoras prometiam novo dilúvio e numa árvore um

pardalito começou a trinar timidamente.

- Um pouco de leite?

Na cozinha a Bernardina Delfim preparava o pequeno-

almoço de Heitor Leitão.

- Não obrigado, gosto do café simples, aceito no entanto mais

uma fatia desse pão caseiro.

A

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- Confesso-lhe que já ando a pensar se devo ou não desistir

da herança e sair daqui. Sabe que ando sempre munida de um

facalhão de cortar carne?

- Eu lamento não ter trazido o meu revolver. Realmente, nós

vivemos um ambiente medonho sabendo que em qualquer altura

podemos ser mortos.

- Esta casa também é horrível, apenas com uma porta de

entrada e grades nas janelas, assemelha-se a uma prisão.

- Tem razão, sentimo-nos enjaulados.

- Acha que o assassino é alguém de fora?

- Não creio pois já o teríamos visto de certeza.

Um homem calvo acercou-se da cozinha, as mãos abriam-se

e fechavam-se numa tentativa vã de restabelecer a circulação do

sangue.

- Este tempo dá cabo de mim.

- O Sr. Leandro bebe café?

- Sim, Sra. Bernardina, sem açúcar por favor. O maluco dos

aparelhos já se levantou?

Heitor Leitão esboçou um sorriso e abanou ligeiramente a

cabeça.

- Não me parece. Pobre polígrafo de Keeeler, ontem ficou

destruído.

- Aquela geringonça chamava-se polígrafo de Keeler?

- Sim. Esse o nome do detector de mentiras apresentado

ontem pelo Sr. António Mira.

- Então conhecia os aparelhos?

- Um pouco pois trabalhei com eles em Luanda.

- Esteve no Ultramar?

- Cumpri parte do meu serviço militar em Angola e

posteriormente integrei lá uma brigada especial da polícia,

especializada na descoberta de redes de traficantes de narcóticos

opiatos. Os nossos esforços conduziram à detenção de inúmeros

contrabandistas de ópio, morfina, etc.

- Malvados.

- Nem todos. Um dos que foi preso vendia apenas metadona,

uma droga sintética, na altura ilegal, muito útil na ajuda aos

drogados crónicos de heroína. A metadona evita os sintomas de

retrocesso ou os sintomas habituais das pessoas, quando

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finalmente tentam eliminar os malefícios da droga causados pelo

consumo habitual da heroína.

- Não sabia.

- O filho do detido falecera muito novo. O pai prometeu a si

próprio auxiliar todos aqueles que como o jovem caminhavam

ingloriamente para a morte.

A governanta entrou na conversa enquanto com um trapo

limpava o fogão.

- Eu evito, tomar qualquer espécie de comprimidos. Ainda

ontem vi o Sr. Teodomiro consumir dois comprimidos de

barbitúricos queixando-se que um já não lhe surtia o efeito

desejado ao seu estado permanente de tensão.

Risonho, o Leandro Antão brincava com uma colher tentando

segurá-la apenas com um dedo.

- O homem virou uma tolerância aos remédios. Ele fartou-se

de beber vinho “ Rosé “ ontem à noite e admira-me não ter

adormecido a caminho do quarto.

A gargalhada esperada não teve o acolhimento nos parceiros,

e em vez disso, uma expressão de temor inundou o rosto de

Heitor Leitão.

- Que Deus nos valha, os sedativos apresentam efeitos

potenciais ou seja, uma droga aumenta os efeitos de outra, ao

ingerir álcool antes de tomar os barbitúricos o Sr. Teodomiro

cometeu um grave erro. Aconselho a subirmos de imediato ao

quarto dele para ver como ele passa.

Os dois homens subiram rapidamente as escadas para

regressarem passados alguns minutos com um corpo embrulhado

num lençol. Foi com a voz embargada pela emoção que Leandro

Antão informou.

- Lamento dizer que o Sr. Teodomiro Florêncio faleceu.

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VI

tarde chegara chuvosa, a reunião agendada realizava-

se na sala de estar, como previsto, e António Mira foi o

primeiro a tomar a palavra. Como sempre transportava uma

pistola, presa no cinturão das calças que nunca deixara de o

acompanhar desde o primeiro assassínio.

- Meus senhores, apesar da sua aparente naturalidade

considero que esta última morte também foi premeditada ou,

expressando-me com maior clareza, julgo que o Sr. Teodomiro

Florêncio também morreu assassinado.

Enquanto a Bernardina Delfim enxugava as lágrimas

abundantes que lhe escorriam pelas faces, Heitor Leitão abria e

fechava a caixa dos óculos com um ar ausente, aparentando

ignorar as palavras do detective.

- Para completar o meu pensamento considero imprescindível

descobrir uma solução para o nosso problema o mais urgente

possível. Qual a sua opinião Sr. Leandro?

- Concordo que a nossa situação se tornou extremamente

delicada e de algum modo insustentável. Temos de fazer alguma

coisa.

Heitor Leitão acendeu um cigarro, tossiu antes de intervir na

conversa e dar a sua opinião.

- Penso que o melhor será chamarmos a polícia. Só que não

sei como, pois nenhum dos aspirantes ao legado se quer ausentar

para não perder o direito à herança.

- Desculpem-me não ter ido já à polícia, contudo tentei

descobrir o assassino pelos meus meios e como disse o Sr. Heitor,

aquele que sair perde o direito aos bens referidos no inventário do

testamento do Sr. Dario Norton Mateus.

- Não se lastime Sr. António Mira, infelizmente temos de nos

defender de uma mente diabólica.

A decoração da sala não espairecia o ambiente, pelo

contrário, todos se sentiam deprimidos com as inúmeras loiças,

armas e diversos utensílios exóticos.

- Tive uma ideia que penso poder resolver o nosso problema.

Irei de imediato para o anexo da casa e aguardarei que tragam os

mantimentos como fazem diariamente. Quando vierem contarei o

A

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que se tem passado e solicitarei que venham aqui agentes

investigar as mortes.

- Porque não o fizeram já?

- Poderei averiguar a razão da polícia ainda não ter chegado.

Sabem das mortes pois receberam os cadáveres.

- Julgo ser arriscado ficar lá sozinho.

- Eu fecho a porta por dentro, sem a trancar. Só deixo uma

janela entreaberta para ouvir chegar o veículo. Vou levar uma

faca e se vir entretanto alguém tentar entrar darei luta.

- Regressará de noite do anexo aqui para casa. Está ciente do

risco de vida que corre?

- Não temos alternativa. Combinamos já que todos sem

excepção, ficarão na janela aqui da sala a vigiar o meu regresso.

Deste modo fico protegido, não sairei da propriedade e

certamente amanhã já aqui chegarão agentes procurando o

homicida.

- Penso ser uma boa ideia.

Heitor Leitão olhou para os restantes elementos do grupo, e

ao ver que ninguém se opunha à ideia afirmou resoluto.

- Partirei para o anexo de imediato. Não se esqueçam logo à

noite de estarem atentos à chegada do carro e ao meu regresso,

aqui a casa.

Todos concordaram, viram o homem ir buscar uma faca e sair

resoluto em direcção ao anexo. A chuva continuava a cair de

forma copiosa, porém renascia uma nova esperança no grupo indo

para os seus quartos arranjarem-se para o jantar.

Cada um sentia-se mais protegido acompanhado que sozinho,

e passado uma hora de novo se encontravam reunidos no salão a

conversar. Levantando-se do sofá Bernardina Delfim começou a

preparar um café, abriu um móvel e retirou algumas chávenas de

porcelana inglesa enquanto exclamava.

- Não seria melhor sairmos de casa antes de um novo

assassinato?

Leandro Antão discordou em absoluto da ideia e esclareceu.

- Eu prefiro, aguardar neste momento o regresso do Sr. Heitor

Leitão. Aqui, unidos temos hipóteses de nos ajudarmos

mutuamente enquanto, que sozinhos o homicida teria a sua tarefa

facilitada. Deveremos andar juntos, o máximo do tempo possível.

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António Mira concordou com o companheiro, e convicto

afirmou.

- Eu também aguardo a chegada do Sr. Heitor Leitão.

O antigo detective pronunciava-se apoiando Leandro Antão,

porém os seus olhos apreensivos denotavam o que lhe ia na alma.

De súbito as faces ficaram pálidas ao vislumbrar um pequeno

frasco, com um rótulo amarelo pelo tempo, em cima da mesinha

em frente ao sofá em que se sentara.

- Curare. Um terrível veneno dos índios, causa o bloqueio do

sistema nervoso.

Bernardina Delfim com um guardanapo principiou a limpar o

café que entornara com o susto que apanhara ao ouvir as palavras

do ex-detective.

- Introduzido nas flechas pelos índios da floresta da bacia dos

Amazonas, transportam-no em tubos de bambu, em cabaças e

utensílios de barro.

- Tenho um mau pressentimento.

- O arco e flechas que decoravam aquela parede da sala

desapareceram.

- Nunca reparei nelas

- Eu sim. Estavam decorados com penas de várias cores.

Lembro-me de ter visto idênticas em Embu das Artes, no Brasil,

quando fui lá ver uma feira.

Silenciosamente foram jantar, comeram em silêncio e

passada meia hora regressaram dirigindo-se para a janela, aonde

aguardaram a chegada do veículo dos mantimentos e o retorno a

casa de Heitor Leitão. Os minutos passavam vagarosos e

finalmente um pequeno carro chegou, dois homens saíram do

veículo entrando no anexo com dois cestos, para reaparecerem

mais tarde transportando um corpo envolvido num lençol e

abalarem.

- O meu receio confirmou-se, mataram o Sr. Heitor Leitão no

anexo. Certamente que aquele era o cadáver dele.

Ninguém ousou comentar as palavras de Bernardina Delfim.

Com um silêncio sepulcral viram o automóvel afastar-se e

desaparecer numa curva.

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VII

unida de uma enorme faca, dentro do bolso do

avental a governanta apareceu na sala de estar

naquela manhã gélida aonde já se encontrava deitado num sofá

Leandro Antão, que abria constantemente a boca, traindo uma

noite de insónia.

- Bom dia, Sra. Bernardina, não começa a suspeitar que é o

Sr. António Mira o criminoso?

- Só pode ser ele. Eu agora principio a relembrar-me de

varias coisas e aquele indivíduo prejudicou o falecido Sr. Dario

Norton Mateus pelo menos uma vez.

- Não sabia.

- Depois de se aproveitar da inteligência do Sr. Dario com

alguns negócios frutuosos foi incapaz de o auxiliar quando ele

partiu para a América.

- Ingrato.

- Muito. Agora silêncio que lhe ouço os passos.

O recém-chegado apareceu transportando um aparelho

contendo uma pequena lente óptica, e nem chegou a

cumprimentar os companheiros de tão entusiasmado que estava.

- Trago um aparelho óptimo para descobrir a verdade.

- Espero que possua melhor utilidade do que os instrumentos

apresentados até ao momento.

O homem ignorou as palavras azedas da governanta que nem

se deu ao trabalho de olhar para o aparelho, continuando a limpar

com calma os quadros e demais objectos que decoravam as

paredes da sala.

- Ao mentir o ser humano dilata a pupila dentro da íris. As

fibras musculares, que constituem a íris, são geridas por nervos

simpáticos e parassimpáticos responsáveis respectivamente pelo

aumento e diminuição da pupila.

- E qual o interesse disso?

- O medo aumenta o nível da adrenalina na circulação

sanguínea estimulando os nervos simpáticos e assim ao mentir a

pupila de uma pessoa aumenta de tamanho.

M

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Leandro Antão levantou-se lentamente do sofá, calçou as

pantufas que descalçara para se deitar e começou a andar para a

porta de saída da sala.

- Eu desisto da herança, pois regresso amanhã para Faro.

Hoje vou arrumar as malas, descanso um pouco, pois esta noite

dormi cheio de pesadelos, e de manhã abalo desta casa para

sempre. Sei que um de vós é assassino e agradeço a Deus, o me

ter poupado à morte até ao momento.

Em silêncio António Mira e a governanta viram o

companheiro sair do local.

- Conheço-a Bernardina, nunca deixou o Dario por causa do

dinheiro dele.

A mulher deitou um olhar de ódio ao ex-detective e parou a

tarefa colocando as mãos na cintura em ar de desafio.

- Com que autoridade afirma isso?

- Sei até que nunca aqui viveu ou tomou conta desta casa,

tendo-a alugado sem o Dario Mateus saber. Ele pagava-lhe o

ordenado para tomar conta desta propriedade e desconhecia que

ela estava alugada por si a outras pessoas.

A mulher ficou lívida e sem responder colocou o pano em

cima dos ombros. Saiu da sala para a cozinha deixando o

interlocutor sozinho.

VIII

ntonio Mira estava no duche quando sentiu a porta do

quarto abrir-se, e depois de breves segundos, voltar a

fechar-se. Mantendo o sangue frio, que muitos anos de actividade

como detective lhe tinham incutido no corpo, saiu da casa de

banho e enrolado na toalha do duche procurou a pistola deixada

sobre a mesinha de cabeceira. Sentiu um calafrio quando notou

que ela desaparecera.

Enxugou-se e vestiu-se rapidamente, saindo do quarto

aparentando uma calma que estava longe de sentir, e dirigiu-se

para o salão para tomar o pequeno-almoço. Leandro Antão já se

encontrava a beber café com leite e comendo pão com manteiga e

fiambre. Uma mala enorme encontrava-se ao seu lado, e à sua em

A

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frente a governanta de pé, com uma bandeja na mão, oferecia-lhe

o açucareiro.

- Bons dias.

O detective procurava aparentar serenidade porém, sentia o

medo correr-lhe pela espinha. O cumprimento apenas teve

recepção em Leandro Antão que com um sorriso acenou.

- Bom dia, faça favor de se sentar. O pão é alentejano,

daquele que eu gosto.

- Obrigado. Sempre se vai embora agora?

- Sim. Tomo o pequeno-almoço e sigo para Faro.

- Como vai?

- Caminho pela estrada e hei-de arranjar depois algum

transporte. Não fico nem mais uma hora neste local pertença do

diabo.

Entretanto a mulher sentara-se também à mesa fazendo

companhia aos dois homens. Desculpando-se António Mira

levantou-se novamente e exclamou.

- Tenho de voltar ao meu quarto pois esqueci-me do

adoçante. Não posso beber o café com leite, com açúcar.

Deixando os companheiros, António Mina dirigiu-se ao

quarto de Bernardina Delfim e com o coração cheio de ansiedade

começou a remexer nas gavetas dos armários da governanta.

Trémulo descobriu a sua pistola por baixo de algumas camisolas e

casacos, e ao lado o arco e as flechas desaparecidos pouco antes

da morte de Heitor Leitão. Com breve passagem pelo seu quarto,

aonde foi buscar o adoçante, regressou a tomar o pequeno-almoço

sentando-se novamente à mesa.

- A Sra. Bernardina deu-me a morada do sobrinho para eu lhe

dar notícias dela. Deseja que eu lhe faça o mesmo e informe

algum seu familiar?

- Não, obrigado. Faltam poucos dias para sair daqui e não lhe

quero dar esse incómodo.

António Mira mal comeu, a mão no bolso acariciava o

revólver e sentia que era a altura de tomar uma resolução. A partir

do momento que Leandro Antão saísse da casa, ou ele ficava e

teria de matar a governanta, ficando com a totalidade da herança,

ou então deveria sair daquela casa amaldiçoada para escapar de

uma morte certa. Não havia uma terceira alternativa.

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- Bem amigos. Vou embora, não aguento mais aqui estar nem

mais um minuto. Desejo aos dois um resto de estadia pelo menos

com saúde e vivos. Quem sabe se nos voltaremos a ver?

A governanta começou a chorar copiosamente, levantou-se

da cadeira e deu um abraço no hóspede que se despedia, enquanto

o ex-detective fez um pequeno aceno e continuou a meditação e

nos seus pensamentos. Chegara a hora crucial, de se decidir e já

não tinha muitas dúvidas do que fazer, aquela mulher não iria

ficar com uma fortuna imensa e ele ser derrotado por ela. Podia

mais tarde depois de a assassinar evocar que apenas a matara por

legítima defesa, todos aquelas mortes iriam comprovar a sua

teoria e com um bom advogado passaria pouco tempo na cadeia.

Depois a vida seria completamente diferente, desafogada e sem

problemas, muito diferente daquela que tinha tido até aquele dia.

Leandro Antão levantou-se, limpou os lábios a um

guardanapo de papel, apanhou a mala do chão, com um aceno

despediu-se e deixou a casa apesar do olhar suplicante da mulher

que com os olhos lacrimejantes o viu sair da propriedade e

apanhar o rumo da estrada.

- Adeus meu bom amigo.

Ainda assoando-se e fungando preparou-se para se levantar

mas, tal não lhe foi possível, porque dois disparos ceifaram-lhe a

vida. Depois de ter disparado António Mira envolveu-a num

lençol e arrastou o corpo pesado e inerte para o anexo, sentia que

pela primeira vez iria poder finalmente dormir uma noite

descansado.

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IX

guarda de olhos melancólicos sentou-se ao lado de

António Mira enquanto observava os prisioneiros

deambulando pelo adro da penitenciária. O ex-detective

cumprimentou o recém-chegado com um aperto de mão, e

continuou a olhar para os demais detidos que se entretinham a

jogar futebol e a caminhar naquele local cercado de muros altos.

Nos cantos alguns vigias armados, cumpriam a sua tarefa de

observarem o comportamento dos presos.

- O que está a pensar?

António Mira sorriu e acendeu um cigarro antes de

responder.

- Continuo sem entender como aqui vim parar e por vezes a

vida prega-nos rasteiras. Pensei receber uma herança e ganhei

uma detenção.

- Como sucedeu isso?

- Matei uma mulher para poder estar numa casa, de modo a

cumprir um prazo estipulado e posteriormente poder ir ao

escritório de um advogado para receber um legado.

- E depois não o recebeu?

- Quando saí da casa fui à procura do advogado para receber

a herança. Quando cheguei ao escritório dele, verifiquei que se

transformara num armazém de electrodomésticos.

- E nunca mais o viu?

- Não. Senti na altura que tinha sido ludibriado, por isso

regressei à minha casa.

- Imagino a sua situação.

- Mais tarde apareceram dois policias a prenderem-me

acusando-me do assassínio de uma mulher. No tribunal

apresentaram um vídeo em que eu a matava e enterrava nuns

terrenos próximos da casa.

- Porque a matou?

- Pensei ser uma assassina.

A sirene tocou avisando que terminara a hora do recreio e

para o regresso dos prisioneiros às celas. António Mira preparava-

se para entrar na sua quando o guarda lhe indicou para seguir para

a sala de visitas, um salão enorme dividido ao meio por um

O

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enorme vidro, em que de um lado estavam pequenos gabinetes,

aonde ficavam os detidos, e do outro as visitas. Apesar de estarem

frente a frente apenas era possível aos prisioneiros falarem por um

intercomunicador.

O ex-detective deixou-se conduzir para um dos gabinetes, e

sem família, sentia-se agradavelmente surpreendido por alguém

se ter lembrado dele interrompendo aqueles dias de monótono

quotidiano. Um velho de cabelos brancos aguardava-o e atrás

dele, alguns homens que ele não distinguia as feições por estarem

em contra-luz, faziam-lhe companhia.

- Quem é o senhor?

O ansião que mantivera o olhar no chão até à sua chegada

pareceu acordar das divagações e fixou-o nos olhos.

- Sou Dario Norton Mateus.

A resposta soou como uma bala e o prisioneiro teve de sse

egurar aos braços da cadeira para se recompor. Então reconheceu

aqueles olhos verdes no meio de um rosto pálido e aquelas mãos

magras que se esfregavam uma na outra.

- Pensei que tivesse morrido.

- Não, estou bem vivo.

- O que veio aqui fazer?

- Agradecer-lhe ter-me morto a minha governanta que me

enganou anos a fio recebendo o meu dinheiro para tomar conta da

casa quando no fim ela a alugava sem lá ir.

- Eu sei. Confidenciou-me o advogado Dr. Nunes

Vasconcelos.

- Não existe nenhum advogado Dr. Nunes Vasconcelos, a

pessoa que fingiu tratar da minha herança é um empregado de

uma das minhas lojas. Os restantes que estiveram na casa consigo

eram meus sobrinhos e filhos que se prontificaram a lá estar a

meu pedido.

António Mira colocou as mãos na face, baixando a cabeça e

quando voltou a olhar o interlocutor reconheceu Gastão Pacheco,

Heitor Leitão, Teodomiro Florêncio, Raposo Carrilho e Leandro

Antão ajudarem Dario Norton Mateus a levantar-se da cadeira e

sem se despedirem encaminharem-se para a saída.

A voz do guarda voltou-se a ouvir nos altifalantes

- Presos, por favor regressem às vossas celas.

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Foi naquele momento que compreendeu tudo. Apenas tinha

havido um crime naquela casa maldita que fora perpetrado

quando ele matou a mulher. Ele servira para a castigar de ter sido

ambiciosa e vigarista, sentia igualmente que estava cumprindo

uma pena por não ter ajudado Dario Mateus quando o

comerciante havia precisado. Não havia dúvidas, tinha sido

enganado e usado naquele plano maquiavélico.

FIM

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Chantagem

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I

s lojas agrupavam-se em cacho, as vitrines habilmente

decoradas e transparentes pareciam rebentar de

inúmeros artigos, prendendo a atenção dos usuais visitantes do

Centro Comercial. À luz de “neons”, compravam-se jarras

chinesas, calças de fazenda, cristais, canetas, e sob as luzes

brancas cavalheiros bebiam o habitual café nocturno, opinando

sobre as últimas notícias vindas a lume nos vespertinos.

- Amália, cuidado com os degraus ...

A esposa do Sr. Fonseca cuidadosamente desceu a escada do

espaço comercial, e aconchegou a mala contra o corpo.

- Paulo, repara nesta loja!

- Muito interessante. Sabes que todos os objectos aqui

expostos provêm de uma prisão?

- Não sabia ...

- Da penitenciária de Santa Catarina. Os presos fabricam os

artigos e vendem-nos aqui.

- Ganham dinheiro com eles?

- Claro! Além de lucrarem com a venda, beneficiam de uma

terapêutica ocupacional. O trabalho dá-lhes um entretenimento,

uma razão de existência e tornam-se úteis à sociedade.

- Olhas sempre para o comportamento das pessoas.

- Todos devemos ter obrigações e direitos para com a

sociedade. De um modo agradável, os presos podem aprender ou

reaprender tarefas úteis e reabilitarem-se.

A esposa segurou uma caneca pintada à mão, com cores

garridas e desenhos agradáveis.

- Uma obra de artista ...

- Passa também por ser um importante veículo de

recuperação para doenças mentais no caso de enfermos. Através

do trabalho dos doentes, os médicos são sensibilizados para as

suas capacidades e limitações, para o poder sensorial dos

pacientes.

- Recuperam todos?

- A terapêutica ocupacional apenas ajuda a sarar debilidades

mentais, porém são importantes os fármacos, os tratamentos

electro-convulsivos, etc.

A

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- Curioso o valor destes artigos.

- Sem querer dar uma importância demasiado lata à

terapêutica ocupacional, devo-te referir que ela está sendo muito

divulgada nas principais instituições psiquiátricas.

- Gosto muito da caneca, vou comprá-la.

Um empregado solícito abordou o casal e começou a

embrulhar o artigo, ao mesmo tempo que recebia o dinheiro e

rodava a manivela de uma antiga caixa registadora.

- Muitos dos presos aprendem novamente a trabalhar, sem

traumas. Os psiquiatras gostam de agrupar vários doentes, e ao

dar-lhes tarefas, ajuda-os a descobrirem o lado bom da vida. Não

raro como sucede com alguns neuróticos, são os próprios

enfermos a auxiliarem-se uns aos outros.

- Não existe um certo comodismo por parte dos médicos

quando procedem assim? No fim, apenas estão a supervisionar o

trabalho dos doentes sem um papel activo ...

- Claro que não ... de forma alguma, Amália! Ao procederem

desta maneira, evitam uma horrível realidade existente em alguns

casos.

- Que terrível realidade é essa?

- Uma total dependência do doente para com o médico.

II

Dr. Sebastião Meneses pousou os óculos em cima da

secretária e esfregou os olhos, ensonado. O fumo do

cachimbo espalhava-se, perfumando e adocicando o consultório.

Um telefone negro, relíquia do passado, jazia sobre o tampo

da secretária de mogno e ameaçava-o a cada minuto que passava,

numa tentativa muda de lhe quebrar a resistência, fortalecida por

muitos anos de labuta em São Paulo, no Brasil. Com o nome

consolidado no meio hospitalar, regressara a Portugal.

Sentia-se fatigado. Em outras épocas ter-se-ia injectado de

óleo canforado para ganhar uma dose de energia extra, mas os

tempos haviam mudado, e o Dr. Sebastião Meneses, com

prudência colocara de parte aquele “doping”.

O

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Desde que entrara como médico na prisão hospitalar de Santa

Catarina nunca atravessara um período tão difícil, na sua

atribulada existência.

Chantagem. Sim, chantagem era o que um garotelho

ordinário fazia naquele momento a ele, Dr. Sebastião Meneses

conhecido psiquiatra, formado numa prestigiada universidade

alemã.

Como começara tudo? Uma noite depois de bem bebido, uns

amigos haviam-no desafiado para uma festa numa casa junto à

praia. O convívio não decorrera sob o aspecto moral mais sóbrio e

correcto, e um hippy, sem ele notar, tirara-lhe uma fotografia

comprometedora ... em que o renomado psiquiatra aparecia com

uma menor, num ato de pedofilia. Agora, todos os meses pagava

uma quantia mensal ao crápula, para ele não apresentar a foto à

esposa e o escândalo não ser levado a conhecimento público.

Seria uma vergonha, de consequências imprevisíveis para a sua

reputação de médico e político.

O telefone acordou-o dos seus pensamentos e devaneios. O

clínico levantou o auscultador no momento em que uma voz

rouca se ouvia do outro lado do fio:

- Então, a “massa”?

A mão do psiquiatra tremeu agarrando no aparelho com tanta

força que as veias dos braços se salientaram. Respondeu trémulo e

cheio de ódio:

- Amanhã, no mesmo sítio.

- Eu aguardo, se não estiver lá amanhã…

Rapidamente o doutor pousou o auscultador no descanso para

não ouvir mais ameaças, encostando as costas na cadeira. Um

guarda acercou-se da porta naquele instante trazendo um homem

de enorme estatura e aspecto apático.

- Senhor doutor, quer que eu acompanhe a consulta?

- Não, obrigado Sr. João. Eu converso a sós com o doente.

Feche a porta e aguarde do lado de fora do meu gabinete.

Com a saída do guarda o detido recém-chegado sentou-se

numa cadeira frente ao interlocutor. O médico corria com os olhos

a ficha clínica do paciente e sem levantar os olhos dela,

perguntou:

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- Sr. Laurentino, o senhor sai daqui dentro de um mês?

- Sim. Há dez anos que me encontro aqui, desconheço as

possibilidades que tenho para me integrar de novo na sociedade,

se nem uma loja tenho agora ...

- Apoiá-lo-ei, não tenha receio.

- Eu sei, Dr. Sebastião Meneses, devo-lhe muito.

O médico levantou os olhos dos papéis e fitou os olhos

tímidos do doente.

- Tem lugar para aonde ir?

- Volto para a minha casa nos arredores de Peniche. Era lá

fabricante de brinquedos artesanais.

- Como se sente?

- Bem, doutor.

- Dentro de sensivelmente dois dias voltarei a chamá-lo, Sr.

Laurentino.

O médico tocou a campainha e imediatamente o guarda

assomou à porta acompanhando o gigante de novo para a cela. O

médico releu novamente o “dossier” de testes psicológicos de

Laurentino Pintassilgo, fixando os olhos em uma pequena árvore

desenhada dentro de um quadrado, numa folha de papel lisa.

Lentamente estudou a árvore feita a lápis e anotou os dados no

seu livrinho de notas.

1 – Árvore colocada ao lado esquerdo do quadrado, indício

de uma mentalidade presa ao passado;

2 – A árvore parece um cipreste e não possui raízes, desejos

de não se prender a novas situações;

3 – A árvore encontra-se envolvida por uma cerca, o nosso

homem julga-se superprotegido;

4- Compôs no quadro uma paisagem, indício de nervosismo;

O Dr. Sebastião de Meneses voltou a meter a folha com o

desenho da árvore dentro do “dossier”, fechando-o em seguida.

Cerrou os olhos, pensativo.

Valeria a pena todo aquele trabalho?

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37

III

s seringas amontoavam-se na caixinha transparente,

prontas a serem desinfectadas, no entanto e ao

contrário do usual, a enfermeira chegaria mais tarde. O Dr.

Sebastião Meneses resolveu dedicar-se à sua actividade habitual.

- Senhor guarda, pode trazer-me o Sr. Laurentino Pintassilgo

ao gabinete?

O homem, contrariado, desapareceu ecoando os passos no

corredor da prisão, cumprindo a ordem. O médico apossou-se de

um “dossier” e procurou a folha que o interessava sussurrando:

- Um teste importante, este das manchas de Rorhschach.

Preciso de ser extremamente cuidadoso sobre a projecção dos

sentimentos e a sua profundidade.

O Dr. Sebastião Meneses retirou da sua pasta dez pranchas

com manchas coloridas e o seu inseparável livrinho de notas, no

preciso momento em que os dois chegavam.

- Sente-se, Sr. Laurentino.

O enorme homem sentou-se e recebeu uma das pranchas da

mão do médico.

- Observe essa prancha e diga-me ... o que lhe parece a

figura?

- Um espectro.

Cuidadosamente o inquiridor transcreveu a resposta para o

bloco de notas e apresentou outra prancha. O doente continuava a

relatar o que via:

- Esta mancha lembra-me uma guerra com um canhão

aturdindo o ar. As balas rompem tudo e a situação descontrolou-

se por completo. Sem qualquer comando, os oficiais não logram

conduzir as hostes.

As palavras do Sr. Laurentino Pintassilgo, eram transpostas

avidamente para o papel, pelo Dr. Sebastião Meneses. As dez

pranchas passaram pelas mãos grossas do fabricante de

brinquedos que calmamente fazia a sua interpretação pessoal dos

desenhos.

- Aqui, senhor doutor, no topo da prancha, um pára-quedista

tenta de qualquer maneira desenvencilhar-se do pára-quedas.

A

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Neste monte, uma bandeira flutua ao vento, e no canto inferior

esquerdo um soldado foge mutilado.

Segurando o bloco de notas, o médico recebeu as pranchas da

mão do doente e sorriu.

- Sr. Laurentino, acho-o perfeitamente capaz de encarar a

vida, tal como ela deve ser vista.

- Não, Doutor. Sem a minha pequena filha, não ouso

enfrentá-la. Como sabe, eu habitava com a miúda até dois

energúmenos abusarem dela e matarem-na. Consegui agarrar um

e fazê-lo pagar com a vida a sua nefanda acção, e sou sincero

quando lhe afirmo que não me arrependo de nada do que fiz.

Tornaria a cometer o mesmo crime neste momento se me

deparasse uma situação idêntica.

- Compreendo. A minha filha também foi abusada, só que

não foi assassinada e nada fiz para castigar o autor, porque seria

depois do domínio público a violação. Tenho ainda a minha filha

a meu cargo e devo sustentá-la.

As palavras do médico caíram fulminantes sobre o doente,

que se levantou num salto.

- Mas, Doutor Sebastião, aonde vive esse malvado?

- Acalme-se e sente-se, meu amigo. Dar-lhe-ei o contacto.

Contudo, caso me queira fazer o obséquio de realizar algo que

lave a honra da minha filha, deveremos proceder com extrema

cautela.

- Por que não avisou a polícia?

- Ele acabaria por não ser preso, seria o seu testemunho de

que a minha filha concordar estar com ele, contra o dela. E

arrastaria a vergonha e o reviver de momentos angustiantes.

Conto-lhe a si em forma de confidência.

Laurentino Pintassilgo tinha as feições brancas de cólera.

- Pode regressar à sua cela, meu amigo.

O doente saiu e o psiquiatra recomeçou a escrever, enquanto

divagava.

" Extremamente enérgico, com respostas pormenorizadas e

dadas ao movimento. As manchas de Rorschach forneceram-me

igualmente aspectos patológicos interessantes, levando-me a crer

que descobri o homem certo para o meu objectivo. Engoliu

facilmente a minha história sobre o que aconteceu à minha

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pseudo-filha. Calculo que o meu chantagista não terá muito tempo

de vida depois que o Laurentino estiver livre ... "

Uma senhora de bata branca bateu com os nós dos dedos na

madeira da porta do gabinete do médico. Em tom de desculpas,

lamentou-se:

- O senhor doutor dá licença? Cheguei atrasada porque perdi

o autocarro...

IV

m dossier distinguia-se de entre centenas,

cuidadosamente alinhados na estante por ordem

alfabética. O psiquiatra retirou-o e estudou a colheita de

anamnese, ou seja, elementos fornecidos pelo doente durante

entrevista.

- Quarenta e cinco anos de idade. Uma vida saudável até ao

momento, não bebe, não fuma, filho único de pais saudáveis,

enfim, um cidadão exemplar.

Interessado, repassou várias folhas e a atenção deteve-se nas

páginas do meio.

- Os ambientes familiares sempre demonstraram equilíbrio e

o casamento saldou-se por um facto positivo, e se quando o

cônjuge faleceu o lar perdeu um elemento importante, nem por

isso constituiu tragédia irreparável.

O médico, habitualmente, classificava os vários aspectos

patológicos dos doentes cuidadosamente.

- Um doente franco apesar do baixo nível intelectual e de

pouca riqueza de respostas. As feições traem angústia assim como

a face, o olhar é lânguido e a fala mórbida, os gestos de um

doente, plenos de inconstância. Um individuo ambíguo, cheio de

limitações, um humor triste e desatento.

Satisfeito com os elementos apurados, arrumou a pasta e

colocou as mãos em forma de concha. Incutí-lhe confiança

durante as sucessivas sessões. O doente saiu da defesa primária

em que se encontrava nas entrevistas. A sua voz mantém-se baixa,

com sintomas de culpa, parece ter envelhecido umas dezenas de

anos nestes meses, teme o regresso à liberdade.

U

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O dedo deslocou-se para um botão, e um ruído estridente

acompanhou o gesto seguinte. Um rosto vermelho aonde nadava

um nariz de batata fez um esgar aborrecido, contudo, rapidamente

prontificou-se a cumprir a ordem recebida.

- Desculpe a minha ousadia, doutor Sebastião Meneses,

porém devo informá-lo de que está a dar demasiada importância

ao Sr. Laurentino. Este louco tem o dobro das consultas do que

têm os outros.

- Obrigado, guarda Alves, pelo seu conselho. No entanto, o

Sr. Laurentino não é louco. E agora peço-lhe para me trazer o

doente.

- Falo pela minha experiência. Aquele homem não me

engana, já saiu por duas vezes e não se ambienta lá fora, sentindo

uma maior segurança na prisão.

- O Sr. Laurentino apenas sofre de uma doença psíquica pela

qual vive alheio à realidade exterior.

- Nunca se recuperará.

- Com que autoridade afirma isso?

- Quando ficamos debilitados não são só os médicos quem se

apercebem do grau dessa nossa fraqueza, mas sim, todos aqueles

que convivem diariamente e há alguns anos connosco.

- Certo. Porém parece-me que o doente se acha mais

subjugado por uma depressão reactiva do que por uma depressão

endógena.

- Não compreendo.

- Eu explico. O Sr. Laurentino recorda o homicídio da filha,

um factor exterior a si próprio. Os sintomas derivam do mundo

exterior, porque ele não nasceu doente. E a sua reacção a um facto

(a morte da filha em condições dramáticas) apenas não é natural

pela duração e intensidade.

- Um neurótico?

- Um neurótico perfeito. Ele tem consciência da sua doença,

contudo nada fez para ultrapassar a neurose.

- Talvez uns remédios…

- Os fármacos neste caso apenas auxiliam.

- Um doido.

- Nunca. O enfermo encontra-se perfeitamente racional, e

neste momento ambiciono dotá-lo da profilaxia necessária.

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- Como pretende precaver a doença dele?

- Felizmente a doença não originou distúrbios digestivos,

colites, úlceras, ou uma infinidade de alterações fisiológicas.

Deixando de prestar atenção ao polícia, o médico principiou a

folhear um livro, numa tentativa silenciosa e inútil de ficar

sozinho. Porém, renitente, o guarda observava pensativo, os

bibelots do gabinete.

- Devia seguir o meu conselho.

O médico fulminou com o olhar o guarda que encolhendo os

ombros, saiu da sala. Dezenas de papéis e cartões amontoavam-se

em cima da secretária, porém, a mão do psiquiatra segurou uma

capa preta com a fotografia de Laurentino Pintassilgo.

- Rara agilidade mental e uma memória pouco estereotipada.

Este homem serve às minhas finalidades. Cada vez me convenço

mais que avanço no caminho certo.

O Dr. Sebastião Meneses interrompeu a sua divagação ao

ouvir a voz dos dois indivíduos que regressavam ao seu gabinete,

como em tantos outros dias. Abotoou a bata descontraidamente e

convidou:

- Sente-se, amigo Laurentino. Hoje irei testar a sua

inteligência lógica, verbal, numérica, técnica, física e estética.

- Por que se preocupa tanto comigo?

- Gosto de si, Sr. Laurentino.

- Como poderei pagar tudo o que faz por mim?

- Apenas exerço a minha profissão, no entanto, vou-lhe dar o

endereço do homem que fez mal à minha filha. Não quero que lhe

faça danos, apenas o assuste para não voltar a ferir ninguém, e

acaba por ser um favor que faz a mim e à sociedade.

O doente calou-se. O psiquiatra voltou a analisar os dados,

murmurando:

- Durante cerca de meia hora avaliarei os seus diversos tipos

de inteligência, depois ocupar-me-ei da sua memória.

O médico passou um pequeno papel com a morada do

chantagista ao doente. O tempo escoava-se naquele gabinete,

pejado de livros encadernados contidos em prateleiras

ornamentadas com estátuas gregas, romanas e egípcias, e pedras

semi-preciosas. Os escritos do prisioneiro passavam para as mãos

hábeis do psiquiatra. Subitamente o telefone tocou sem que o

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médico o atendesse, porquanto conhecia a voz que escutaria ao

levantar o auscultador.

- Sr. Laurentino, por hoje chega, amanhã continuamos.

Lentamente o doente retirou-se e o psiquiatra voltou a

analisar os dados, sussurrando para si próprio:

- Inteligência um pouco abaixo da média, apenas a

inteligência física constitui excepção. Não há dúvida de que ele

sabe utilizar os músculos.

Algumas folhas tornaram a ser retiradas do dossier.

- O temperamento não apresenta aspectos originais, em

conformidade com o sistema de Sheldon, os componentes

viscerotónico e somatónico sobrepõem-se ao componente

cerebrotónico. O doente apresenta um grande apego aos seres

humanos queridos, e não hesita em usar os músculos para vingá-

los ou defendê-los.

O Dr. Sebastião Meneses abriu uma gaveta da secretária e

retirou um frasco de remédio para a esposa.

- Se a minha mulher pudesse resistir às emoções fortes ... eu

não passaria por estes dias horríveis. Ela receberia a fotografia

comprometedora do chantagista, haveria uma discussão, e punha-

se uma pedra sobre o assunto.

Desiludido levantou-se, apagou as luzes do gabinete. Saiu

aconchegando-se no sobretudo ao sentir o ar gelado do corredor.

Com um aceno respondeu às boas noites da sentinela da prisão.

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V

ela última vez o Dr. Sebastião Meneses observava o

dossier de Laurentino Pintassilgo, antes dele sair em

liberdade da prisão do hospital. Um desenho do doente agradara

muito ao médico.

- Pedi ao Laurentino para me desenhar, a ele e à filha. Tanto

eu como a filha somos muito superiores em tamanho à figura que

o representa, indicando que nós possuímos para ele uma

importância mais elevada.

O psiquiatra sorriu e começou a observar outro desenho.

- Neste desenho o Laurentino representou uma aldeia em que

as casas formam um círculo em redor de uma igreja. Não me

restam dúvidas ao interpretar este desenho de que o paciente

mantém-se aferrolhado ao passado, sem discernir uma maneira de

encarar o futuro.

O Dr. Sebastião Meneses guardou os desenhos e buscou o

livrinho de notas.

- Os testes de projecção são bastante significativos. As

principais tendências da personalidade do Laurentino já me foram

reveladas anteriormente e esta radiografia mental não passa da

confirmação de todas as minhas deduções.

Pegando as pranchas o médico levantou-se da cadeira e

espalhou-as pela secretária.

- Ao interpretar as figuras desenhadas nas pranchas, as

declarações dele foram exactamente aquelas que eu esperava ...

Guardou as pranchas e olhou através da janela do gabinete

para a rua deserta e batida pelo Sol.

- Amanhã, quando ele sair desta prisão, a mão da vingança

encontrar-se-á à solta. Aquele vigarista que me telefona nem sabe

o que o espera, e calmamente aguardarei a sua morte.

Satisfeito, puxou a cortina da janela e marcou um número no

telefone, aguardando alguns segundos em silêncio, até ouvir o

sinal da comunicação.

- Olá, estás melhor? Vou já aí para casa.

P

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VI

notícia no jornal, sem relevo, informava da morte

misteriosa de um homem durante a manhã, em

condições dramáticas. O jornal relegara o assunto para as páginas

interiores e sublinhara a confusão da polícia, sem pistas que a

levassem a desvendar o crime. A hipótese mais natural seria que o

homicídio não passara de mais uma consequência de lutas entre

bandos.

A vítima aparecera assassinada com um punhal no ventre, e

testemunhas oculares revelaram ter visto um individuo forte que a

visitara e desaparecera sem deixar rasto. Talvez um assassino

profissional, pois era conhecido o facto de o homicida nunca ter

sido visto naquela zona.

O psiquiatra fechou o jornal e esfregou as mãos, satisfeito.

- A partir deste momento acabou-se a chantagem.

Ajeitou os óculos e meditou:

- Uma conduta agressiva esperada. O nosso homem agiu

negativamente afastando de forma violenta um elemento social

indesejável. O malvado que me andava a martirizar tornou-se o

“bode expiatório”, na ausência do principal culpado pelo seu

estado neurótico.

O médico recostou-se na cadeira, enquanto, que o seu olhar

mórbido percorria todo o ambiente.

- Basta agora contrariar qualquer processo de investigação

contra mim e requerer a inimputabilidade dele. Um pouco difícil,

pois o Laurentino apenas apresenta perturbações de origem

emotiva que reduzem a imputabilidade como agente do crime. De

qualquer modo isolou-se do mundo, e viver numa cadeia ou viver

sozinho na sua casa para ele tornou-se indiferente. Ele contraiu as

relações afectivas referentes ao mundo exterior e ao seu mundo

interior, tornando-se meticuloso, seco e com tendências

depressivas.

Pousando a caneta o homem acendeu um cigarro e puxou o

cinzeiro para perto dele.

- O doente favorece os meus propósitos pela alteração da

clareza de consciência, sintomas de um indivíduo esgotado, não

traduz clareza no tempo e espaço, possui baixa eficiência mental.

A

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Cuidadosamente abriu a pasta de Laurentino Pintassilgo,

sentindo um calafrio ao verificar a existência de uma fotografia.

- Como se encontra a fotografia da festa no dossier? Trata-se

da mesma fotografia que o maldito chantagista tinha e pela qual

me obrigava a dar-lhe o dinheiro...

O médico demorou a analisar a película e um suor frio

começou a escorrer-lhe pela testa.

- Trata-se de uma jovem quase criança, que loucura a minha

abusar desta adolescente ... cada vez entendo menos, como

aparece aqui esta fotografia ...

O Dr. Sebastião Meneses olhou em frente do consultório, o

subconsciente o alertava de que algo não corria bem ... tentou

tocar a campainha não o conseguindo ... sentiu-se puxado para

trás, ao mesmo tempo que um punhal lhe entrava pelo estômago.

A arma mortal habilmente manipulada por Laurentino Pintassilgo

ceifara-lhe a vida.

VII

guarda Alves servia de cicerone ao jornalista.

- O Sr. Laurentino matou o Dr. Sebastião Meneses

neste local, sem qualquer razão aparente.

O repórter coçou o queixo e passando a mão pelo cabelo

perguntou:

- Ninguém sabe o motivo do homicídio?

- Não, já tinha cumprido a pena e o médico sempre o ajudou

muito. Eram muito amigos e ninguém consegue descortinar a

razão para este acto tresloucado. Deixei-o dirigir-se ao consultório

do clinico sem problemas, disse-me que era para lhe fazer uma

surpresa, e eu acreditei

- Nem a polícia sabe os motivos do crime?

- Não sabemos ainda. Estiveram aqui e observaram

demoradamente uma fotografia. Eu bem avisei o psiquiatra que

brincava com o fogo! Como é possível que um homem como o

Laurentino que recebeu tanto amparo, possa pagar deste modo a

ajuda recolhida?

O

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O jornalista correu o consultório curioso, a mente ágil tentava

compor o fato com os poucos dados que conseguira, mas os

leitores queriam acção, drama, talvez a esposa do defunto

soubesse de alguma coisa... mas finalmente abandonou a ideia.

Não havia dúvidas de que apenas tinha sido um acto de loucura de

um homem demente.

Sem demora saiu daquele local lúgubre e desinteressante para

ele.

FIM

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O Julgamento de Páris

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I

m momento muito especial na vida do advogado

Claude Patalim é revivido todos os anos pelo dia 11

de Novembro. Nos dias gélidos de Outono, uma festa sem limites

de tempo toma lugar em Foros do Galeado, pequeno povoado

junto ao litoral alentejano. Numa pequena adega um grupo folião

de juristas, médicos e economistas, no meio de dois copos de

água-pé e ao som dos estalos das castanhas assadas, narram os

factos mais significativos das suas carreiras.

No aprazível lugarejo, outrora composto por uma dúzia de

casinhas caiadas cercando uma humilde taberna, transformada

amiúde em mercearia, a vida evoluiu proporcionando completa

mudança, acompanhando o progresso trazido pelos veraneantes

de todo o país. O povoado cresceu tomando alguma importância e

o local tornou-se o alvo predilecto para forasteiros, desejosos de

retemperar forças durante o período de férias.

- Apenas cerca de 10% dos crimes não apresentam solução e

o réu escapa-se às malhas da justiça.

O optimismo de Claude Patalim não encontrou o apoio

esperado no médico Albano Juncal, professor universitário na

Faculdade de Medicina de Lisboa e prestes a atingir a reforma.

- Actualmente a Justiça não transborda de punições acertadas,

os juízes receosos de condenar inocentes abrandam as penas e…

- Sim! Repara no papel do magistrado ao aplicar a sanção ...

ao pronunciar-se por um veredicto, existe sempre uma margem

de erro.

- Claro! Porém, cada crime por solucionar consiste num

estímulo para os marginais.

- A teia da lei compõe-se de malhas e no meio aparecem os

buracos.

- Demasiados ...

- Os métodos para a descoberta da verdade avançaram, e

longe vai o tempo em que para se obrigar um réu a confessar, o

lançavam à água. Se falasse a verdade morreria no fundo, se

u

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permanecesse à tona isso seria interpretado como se a água o

rejeitasse e, portanto, deveria morrer no cadafalso.

- Épocas bárbaras. Orgulho-me de pertencer a um país

pioneiro na abolição da pena de morte.

- Nos dias de hoje a confissão não dá o julgamento por

encerrado. O juiz deve estudar o réu, bem como todos os

elementos relacionados com o caso, de modo a chegar ao

apuramento da verdade.

Um pão saloio atraiu a atenção dos amigos, e sem hesitações

a faca velhinha de cabo de madeira iniciou a tarefa árdua de corte,

sobre um prato vermelho, típico de inúmeras regiões lusitanas.

A dona da casa aproximou-se, oferecendo pedaços de um

belo chouriço tostado ao fogo, num assador com álcool. Em

seguida distribuiu generosamente água-pé pelos convivas. A

delicadeza da anfitriã cativava quantos lidavam com a senhora. O

advogado Claude Patalim não recusou o pedido, feito com voz

lânguida:

- Caro amigo, rogo que nos narre um caso passado num

tribunal.

Um ruidoso grupo de pessoas envolveu os intervenientes.

Sem tomar consciência, Claude Patalim sentou-se numa cadeira,

tornando-se alvo de uma assistência atenta. Mantendo o olhar

distante, fixo em um ponto qualquer da parede caiada, com voz

grave, iniciou a narrativa:

- Nem sempre chegam aos tribunais homicídios vulgares, e a

personalidade do assassino, muitas vezes complexa, assume

aspectos fascinantes. Um dos casos mais estranhos e sórdidos

desenrolou-se numa aldeia transmontana. Se duvidarem e

estranharem, a princípio, a causa da morte de uma velhota de

meios sólidos e conceituada na sociedade da terra, não menos

curiosa será a forma como o assassino planeou tudo, e como

finalizou o caso. Como devo dar uma denominação a este drama,

intitulo-o “O Julgamento de Páris”.

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II

tarde era fria ... e os campos agitados pelo gélido

vento abanavam como ondas, aparentando ao viajante

o aspecto de um mar revolto. Pássaros em bandos esvoaçavam de

galho em galho caçando insectos minúsculos, enquanto as

escassas árvores despiam-se ao som das cigarras.

Cecília Lando subiu os dois degraus da vivenda e com

dificuldade rodou a maçaneta, penetrando com os dois sacos

numa cozinha antiga, ocupada por um fogão de lenha e uma mesa

de madeira, coberta de utensílios variados.

A governanta não despiu o casaco, pelo contrário,

aconchegou-o ao pescoço e esfregou as mãos num movimento

infrutífero, tentando restabelecer a circulação sanguínea.

Contemplando as ervas e flores murchas de uma jarra, a serviçal

impulsivamente retirou-as do recipiente, acompanhando a

operação com um esgar de protesto, pelo odor emanado das

plantas. Quinze dias haviam decorrido, durante os quais

aproveitara para visitar a filha no Porto. No entanto, o dever a

chamara de novo, pois a dona da casa, a Sra. Adriana Bobadilha,

não tolerava ausências prolongadas.

Vestindo o avental, a mulher espalhou sobre a mesa as

batatas contidas dentro de um saco, procurando uma faca para

descascá-las. Franzindo o sobrolho, indecisa, saiu da cozinha,

subiu o lance das escadas com passos decididos, dirigindo-se para

a porta do quarto da proprietária da habitação.

O silêncio profundo desagradou à Cecília Lando. Ela bateu

com os nós dos dedos na porta carunchosa. Insistindo, e roída

pela curiosidade, entreabriu a porta acabando depois por

escancará-la completamente.

Ninguém se encontrava àquela altura no aposento, sugerindo

que a septuagenária já se levantara para a lida quotidiana.

Aproveitou então a oportunidade para compor o lenço na cabeça.

Mirou-se no espelho do móvel preto encostado a um canto,

enquanto falava para os seus botões: “Como pode uma mulher já

em idade avançada como a Sra. Adriana, viver num local tão

ermo? “

A

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Deixando a sua filosofia desceu as escadas, entrou novamente

na cozinha intencionando retomar a tarefa inacabada. A

curiosidade, no entanto, a venceu. Novamente começou a correr a

casa e encaminhou-se dessa vez para a cave, que servia de

depósito dos vinhos baratos da velhota. Soltou uma blasfémia, ao

verificar que a lâmpada eléctrica não acendia, obrigando-a a

utilizar um velho candeeiro de petróleo para ir buscar o líquido.

Com cuidado começou a descer os degraus de pedra,

enquanto, que com as pontas dos dedos se ia apoiando na parede

há muito tempo necessitada de uma nova pintura. Um vulto

barrava-lhe o caminho ... Adriana Bobadilha jazia a seus pés, e

um fio de sangue serpenteava a escadaria, a partir da nuca da

falecida ... sem perder a calma, Cecília Lando apalpou o pulso

gélido da patroa, fechou-lhe os olhos e benzeu-se receosa.

O médico não demorou a responder ao apelo telefónico da

mulher. A queda aparentava ser a causa da morte da idosa.

Enterrar a falecida foi o primeiro passo, o segundo consistiu numa

visita ao advogado Claude Patalim, para saber do conteúdo do

testamento.

- Sua patroa lhe legou todos os bens, porque não possuía

familiares directos.

A mulher permaneceu impassível, não revelando qualquer

sentimento ou emoção aos olhos penetrantes do causídico,

enquanto ele continuava a sua dissertação:

- Para além do testamento, deixou-me um cofre com as

dívidas de pessoas ligadas às suas empresas. A minha cliente

emprestava dinheiro frequentemente, obrigando os devedores a

assinarem documentos, comprometendo-se a pagá-las em

determinados prazos.

- Esse dinheiro reverterá para mim?

- Claro. Deduzidos os meus honorários e o imposto de

sucessão. O remanescente ser-lhe-á entregue na totalidade.

Cecília Lando levantou-se para sair, não escondendo o

enfezamento que expressava na sua tez de cores rosadas, próprias

da gente do campo.

- A minha patroa mostrou-me um diário, avisou-me de que o

mesmo possuía todas as suas recordações, e nele se revelavam as

suas últimas vontades.

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- Ela incumbiu-me de as fazer cumprir. A única vontade

expressa pelo que li até ao momento, para além do destino da

herança, era que…

- Ser enterrada em campa rasa?

O advogado sorriu antes de responder.

- Não. Se falecesse de morte violenta, mesmo parecendo

natural ou acidental, que se investigasse até se comprovar não ter

havido homicídio.

A mulher traiu a perplexidade, porém o jurisconsulto

acalmou-a, com uma expressão bondosa.

- A Sra. Adriana Bobadilha, como possuidora de três

empresas, chefiava homens. Nem todos aceitam serem mandados

por uma mulher de chicote na mão.

- Sim, a patroazinha comandava como um militar. Quando

queria uma coisa obtinha sempre o ambicionado, e tinha ideias

originais.

Aproximando a sua cadeira à do causídico, baixou o tom de

voz:

- Sabe que descobri um aparelho de ar condicionado na cave,

no dia em que a deparei morta na escadaria da adega?

Por momentos calou-se, como se pensamentos longínquos a

impedissem de se expressar.

- Tal e qual. Um disparate, comprar um aparelho de ar

condicionado para um lugar sempre gelado e húmido.

III

omo todas as manhãs de Domingo, a vila enchera-se de

uma pequena multidão que entrava e saía

apressadamente, nos dois cafés e na igreja do povoado.

Anos a fio, o ritual matutino de Claude Patalim cumpria-se

inexorável. Sem pressas, sentava-se numa espreguiçadeira

colocada na varanda que dava para a praça principal, e abria o

semanário.

Com uma fugaz vista de olhos, sintetizou os assuntos

interessantes no matutino. Munido de minuciosa e especial

atenção, iniciou a leitura do artigo escrito por um professor de

C

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uma terriola vizinha, que acumulava as funções de jornalista e

dono de um periódico local. Possuidor de uma escrita admirável,

o autor ambicionava compor uma reportagem cheia de mistérios,

e no mais puro estilo policial.

« Um vulto furtivo apareceu e incendiou um composto

denominado de algodão-pólvora, produto este que associando os

ácidos azótico e sulfúrico a uma mistura por nitração do algodão,

compõem um produto inflamável. Esta substância possui a

particularidade de não deixar resíduos ».

Cada vez mais interessado no artigo o jurista continuou a ler,

esquecendo-se por completo do pequeno-almoço que arrefecia

sobre a mesinha verde à sua frente.

« Depois de arrebentar com o poste que abastece de

electricidade o solar da Sra. Adriana Bobadilha o energúmeno

fugiu, deixando pelo caminho outro saco com que certamente

pensava causar mais danos, só não os levando avante devido à

pronta intervenção dos populares que o perseguiram, sem

contudo o alcançarem.»

A reportagem continuava alertando as autoridades para a falta

de agentes, e o autor opinava ser esta uma forma de se oferecerem

perspectivas óptimas para os malandrins da terra.

Colocando o jornal sobre os joelhos, Claude Patalim

começou a contar com a ajuda inconsciente dos dedos, os dias

entre a explosão e a descoberta do cadáver. E na sua expressão

macambúzia transpareceu apreensão. Reparou na chávena de café

com leite e sorveu um gole, antes de se debruçar de novo sobre a

página.

«Testemunhas oculares que contactámos garantem não terem

reconhecido o agente do crime. Por outro lado, tudo indica que o

indivíduo não chegou a entrar em casa da anciã, que como todos

sabemos, faleceu sensivelmente pouco tempo depois ao

acontecimento transcrito.»

O artigo terminava enaltecendo a coragem e a pronta

intervenção do grupo de perseguidores, e criticando a ousadia

demonstrada pela malandragem.

- Uma estranha coincidência. Talvez se eu levantar um pouco

do véu…

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55

O advogado arrumou o jornal, vestiu o casaco de malha,

procurou as chaves e penteou o cabelo fino.

Poucos quilómetros percorreram o seu velho Opel, até chegar

ao poste de electricidade mencionado na reportagem do matutino.

Um formigueiro emprestava-lhe vida e os pássaros gostavam dele

de um modo especial, como apeadeiro.

Pensou em quantos anos a Sra. Adriana batalhara para

estenderem a luz eléctrica a casa ... talvez seis ou sete anos, e

agora os patifes num ou dois segundos arrebentavam com tudo ...

tanto esforço por parte da idosa.

Profundamente revoltado começou a andar a pé em direcção

ao solar, percebendo a formação de nuvens negras e ameaçadoras

que anunciavam mudança de tempo. Os gansos deram as boas

vindas ao forasteiro, sem se aproximarem demasiado.

- Sra. Cecília Lando!

Ninguém respondeu ao apelo do intruso e a casa parecia

inabitada, como se a tragédia ainda recente não arredasse do

lugar. Uma galinha de pescoço pelado teimosamente esgravatava

a terra, procurando minhocas que imprudentemente vinham à

tona, arriscando a vida perto de um bebedouro. A água jorrava por

uma bica, deliciando um asno pachorrento a enxotar com a calda

uma esquadrilha de mosquitos.

Claude Patalim deu uma volta à casa, arriscando espiar pela

janela harmoniosamente decorada com uma planta trivial por

aquelas paragens. Deixou escapar num sussurro:

- A governanta mantém a decoração intacta ...

O som de passos atrás de si chamou-lhe a atenção. Uma dama

enérgica bombeava, puxando a água para uma celha com o braço

direito, enquanto, que o membro esquerdo baloiçava sem vida,

consequência de uma paralisia infantil.

O advogado chamou a atenção da interlocutora com palavras

pesarosas:

- Desculpe interromper os seus afazeres.

Cecília Lando pareceu deparar pela primeira vez com o

recém-chegado e sorriu, continuando sem hesitações a fazer o

trabalho, sem no entanto deixar de retorquir:

- Nada mudou pois não?

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Claude Patalim agachou-se e, com um lenço, começou a

limpar da lama os sapatos antes de inquirir:

- Assim aparenta. Não tem medo de continuar só, neste

lugarejo?

- Nasci no campo e enxergo bem.

O visitante vislumbrou os campos desertos. A vista percorria

rápida a planície, alcançando infindáveis distâncias.

- Recebeu alguém, nestes últimos dias?

- Este lugar parece esquecido por Deus e pelo diabo, e

abandonado pelos homens. Antigamente vinham os sócios da

patroa, demoravam pouco e logo fugiam como estando esta casa

amaldiçoada.

O vento zumbia levantando um remoinho de folhas. O Sol

ténue brilhava no rosto da transmontana, calejado e enrugado pelo

tempo, meio abrigado num lenço barato de cores sóbrias.

- Se todos os lares recebessem uma maldição, ao morrer

alguém, havia mais fantasmas em Portugal do que nas ilhas

britânicas.

A mulher carregou a celha à cintura, impediu delicadamente

Claude Patalim de a ajudar no transporte e dirigiu-se para a

moradia com passo apressado, enxotando uma ovelha enganada

pelo recipiente.

- A Esmeralda pensa ser já a hora do almoço ...

Ao chegarem à sala de jantar Cecília Lando acendeu o forno

de lenha, afastou um caldeirão do fogo e abriu um armário. Os

fechos rangeram, e meia dúzia de cálices alaranjados

sobressaíram-se no meio a uma infinidade de pratos e copos.

Pegou num deles, e em gesto contínuo escolheu uma garrafa

enegrecida pelo tempo.

- Este era o licor das visitas da senhora. Nunca o provei, mas

sempre que chegavam convidados oferecíamos esta bebida.

- Pode passar-me a lista das visitas mais correntes?

- Normalmente eram cinco, todos directores ou responsáveis

pelos negócios da minha patroa.

- Sabe algo sobre cada um deles? Os nomes, moradas, vidas

particulares, relacionamentos?

A matrona começou a passar com um pano alguns cálices, e

de costas para o companheiro começou a responder:

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- Vamos começar então pelo Luciano Aguiar ... homem

metódico e cuidadoso, braço direito da Sra. Adriana Bobadilha,

calculista, frio como aço, sempre bem vestido e pouco falador.

Dirige uma fábrica de curtumes e passa o tempo no emprego. É

respeitador, de meia-idade. As más-línguas resmungavam que um

dia ainda contrairia matrimónio com a senhora, pois visitava esta

casa frequentemente.

A anfitriã finalmente encheu o cálice, ofereceu-o ao

advogado e continuou:

- O Sr. Elias Peçanha vive em Angola e dirige uma plantação.

Raramente o via. Bem-parecido, de cultura inferior, gostava de

obsequiar a minha patroa com presentes exóticos e aparenta dar

pouco valor ao dinheiro. Possuía total liberdade de movimentos,

em virtude da senhora jamais saber como se dirige uma plantação

em África.

O causídico admirava aquela mulher que, apesar de

subitamente ter ficado rica mantinha uma postura modesta, e a

inesperada fortuna não lhe vinha a alterar em nada o quotidiano.

Ela parecia ignorar a atenção a que estava sujeita, continuando a

narrativa sem interrupções:

- O Sr. Bartolomeu Ochoa ... este é curioso por natureza,

gostava de jogar na vida. De início aprendiz de carpinteiro, a

pulso subiu no emprego e em vinte anos tornou-se o director

principal da fábrica de móveis, em Paços de Ferreira. Toma

decisões com rapidez, e se cai em alguma asneira sai da mesma

airosamente, culpando os subalternos.

A velha governanta limpava agora um castiçal. A mão inerte

segurava-o, enquanto que com a outra agarrava um pano de feltro

amarelo, esfregando-o com vigor.

- O Sr. Lotário Nobre tornou-se director de uma firma

intermediária em aguardentes. Antigo major, adepto do

pensamento “antes quebrar que torcer”, teimoso como um jerico,

facilmente arranja inimigos e as discussões dele com a minha

patroa eram violentíssimas! E ele em momentos de maior

exaltação gritava para ela que apenas o facto de ser mulher, a

salvava de uma surra.

- Por que não despediu ela um indivíduo com tal carácter?

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- Ela adorava irritá-lo e ter alguém que lhe fizesse frente.

Finalmente o Sr. Amorim Basto, repelente como uma víbora. Era

o encarregado das negociatas pouco claras do grupo. Como o

major, vivia no Porto. Explorava os negócios menos

recomendáveis, porém, os mais lucrativos. Possui gostos caros,

não hesita em seguir os meios mais asquerosos para fazer

prevalecer as suas decisões. Quando aqui vinha, raramente falava

e cerimoniosamente acatava as ordens. Contudo, não escondia o

desprezo que nutria pela patroa.

- Um grupo estranho.

- Nunca me meti em negócios. Esta casa parecia a toca do

leão, no meio da selva, aonde as outras feras apareciam a tributar

e depois saíam para comer outros animais mais fracos. O leão

precisava de alguém para lhe cuidar da pele, o acompanhar nos

momentos de ócio e solidão, mas quando debandavam, o rei da

selva despia a capa de ferocidade, aparecia um coração manso e

bondoso, e muitas vezes com os olhos marejados de lágrimas,

contava recordações da infância.

- Compreendo o que sente. Duas personalidades na Sra.

Adriana Bobadilha em constante conflito, uma forçada e outra

natural.

A velha subordinada aquiesceu com a cabeça, concordando.

- Demolida a fachada bravia, um ser bondoso e meigo

despontava quando estávamos sós. Se de manhã a tirania não

dava tréguas com os estranhos a sua volta, a tarde vinha encontrar

uma velhinha tricotando, com os olhos lacrimejantes, contando

lembranças da juventude ... deslumbravam-me ao serem uma e a

mesma pessoa.

- Infelizmente o assassino, apenas conheceu o lado mau.

A governanta calou-se. Claude Patalim pareceu distinguir

duas lágrimas brilhantes escorrendo pelo seu rosto, num

tumultuoso caminho. A amizade daquela servente pela antiga

proprietária da casa comovia-o. Pensou como anos a fio de

companhia podiam ser interrompidos, e uma amizade antiga

terminar de forma tão inesperada... Um louco ceifara a vida da

patroa e, ao mesmo tempo, amiga preciosa para aquela mulher de

cabelos brancos e sobrancelhas louras. Que bela moça não

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presenciaria agora, se os anos não cometessem a imprudência de

alterarem a pele e os cabelos daquela senhora.

- Acredita que mataram a minha patroa? Uma pessoa tão boa,

ser agredida e morta ...

- Sem dúvida. Na minha longa carreira de advogado deparei

com um rol de manifestações insólitas, como dizia um

conceituado psiquiatra “um comportamento perfeitamente normal

será sempre anormal”.

- Os psiquiatras também não são médicos vulgares.

O advogado sorriu ao ouvir a observação da interlocutora,

que acentuara a tónica da frase com uma expressão de nítido

desdém.

- Aglomero uma infinidade de processos, que levados à luz

da razão, obrigariam alguns dos intervenientes a possuírem

lugares cativos em manicómios.

- Acredito. Guardo um sentimento de culpa por me ter

ausentado naquele dia sinistro, porém, nada fazia prever o

desenlace trágico.

- Quem possui as chaves da vivenda para além da senhora?

- A habitação carecia de uma fechadura apropriada. Nós

raramente trancávamos a porta. No campo adquirimos o hábito de

deixar quase sempre as portas e janelas abertas sem receio de

intrusos, as campainhas são substituídas nas suas funções pelo

ladrar dos cães ou o grasnar dos gansos e patos. Reconhecemos os

sons a nossa volta, sabemos o significado do crocitar do corvo, do

relincho do cavalo e da mula.

- Eu sei, lembro-me dos dias na minha adolescência na

província, quando eu acordava com o barulho das galinhas

arrastando os pés e esgravatando a terra, à procura de vermes.

- Os habitantes das cidades desconhecem a beleza dos sons

campesinos, o primeiro homem a alterar os ruídos da Natureza

não pensou nas futuras consequências funestas para o aparelho

auditivo.

- Não seja radical, o som de um disco ou CD sempre agrada a

um apreciador de música. Mudando de assunto, lembra-se da hora

da sua chegada a casa?

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- Dez horas da manhã. A única camioneta que passa perto,

chega à paragem sensivelmente às dez horas, se o trajecto não

sofrer percalços.

- Qual a posição do corpo encontrado no pavimento?

- A face voltada para as pedras frias da escada, possivelmente

fracturou o nariz ao cair, realço o facto de os braços se

encontrarem em forma de cruz em relação ao corpo, como se nada

tivesse feito para defender o rosto na altura da queda.

O advogado sorriu ao constatar a argúcia da interlocutora.

- Uma observação sagaz, possivelmente alguém a transportou

depois de morta. Sentiu um frio anormal depois de penetrar na

cave?

- A temperatura e a humidade eram normais para a época.

- Encontrou algo nas mãos?

- Não reparei bem, mas penso que estavam vazias.

- Como vestia-se? Pintara os olhos? Pelo aspecto, concluímos

se esperava alguém na altura ou, pelo contrário, pensava em ficar

naquele dia, sozinha.

- Vestia a camisa de noite por baixo do robe.

- Apanharam-na de surpresa. Guardam algumas armas em

casa?

- Uma caçadeira para afugentar os lobos e javalis. Quando o

Inverno aperta, os lobos rondam os currais amedrontando os

rebanhos. Os javalis descem às culturas constituindo uma praga,

em que as batidas apenas atenuam os danos às plantações.

- Quem sabia da sua ausência?

- Os sócios da Adriana, avisei-os para eles não se reunirem

durante a minha estadia no lar da minha filha. Nesse dia tinha a

ido visitar.

- Deixou víveres na casa?

- Sim. Desde que deu uma queda, já há cerca de três anos,

que a patroa saía pouco. Gostava de sentir o apoio de alguém ao

seu lado. Não precisava de comprar nada, porque eu trazia-lhe

tudo. Além de dar de comer aos animais, raramente ausentava-se

para lá dos limites do átrio.

- Descobriu alguma ponta de cigarro, num cinzeiro? Alguma

cadeira fora do lugar habitual? Algo de estranho à rotina diária?

- Não, nada de especial.

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- Forçaram a fechadura de alguma porta ou janela?

- Não dei por nada, a aflição de ver o corpo não me deu

discernimento de verificar o fecho das janelas.

- Quem possuía chaves da casa?

- Apenas nós as duas. Nunca as emprestávamos com receio

de duplicações.

- Desapareceu alguma lanterna ou vela?

Acompanhada de Claude Patalim a governanta dirigiu-se ao

armário da cozinha e retirou de uma gaveta vários panos, até

aparecerem duas velas ainda por estrear. O jurista agarrou as

velas, examinando-as.

- Estão intactas. O assassino veio munido da própria lanterna

e utilizou-a quando foi deixar o corpo na adega.

Devolvendo as velas, o advogado encaminhou-se para a cave.

Deu alguns passos como se representasse o papel do homicida, no

dia do crime.

- Quem sabia da existência desta adega subterrânea?

- Eu, o major Lotário Nobre e Elias Peçanha.

- Tudo indica que o assassino contava com a cave. Só uma

sala deste tipo poderia permitir temperaturas muito baixas durante

muito tempo, de modo a não deteriorar o corpo. Julgo-a muito

categórica, ao afirmar que o major e o gestor da plantação eram os

únicos a saberem da existência da adega.

- Tenho a certeza absoluta!

- Costumam vir aqui outras pessoas, como por exemplo,

vendedores, carteiro, etc.?

- Sim. O correio todos os dias, os vendedores mais

esporadicamente. Por exemplo, um peixeiro, um cigano vendendo

roupas, ou um ourives.

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IV

artolomeu Ochoa calcou com a bota um montículo de

terra e determinado, acabou por destruir um

formigueiro, antes de responder ao interlocutor:

- Dr. Claude Patalim, não espero modificar a gestão da

empresa que conduzo desde que a Adriana subiu ao “poleiro”.

O advogado apoiou as costas numa tábua da cerca que servia

de divisória com a propriedade vizinha, deixando o antigo

carpinteiro prosseguir nas suas considerações:

- Sei que ela deixou tudo à governanta, uma velhota muito

apagada que desconhece por completo a estrutura das

organizações.

- Talvez a senhora Cecília Lando seja mais facilmente

manobrável, no que respeita a certas decisões.

Bartolomeu Ochoa manifestou uma expressão de desagrado

ao ouvir a afirmação de Claude Patalim.

- Impossível de determinar as reacções da Sra. Cecília Lando.

Pelo que ouvi dizer, e são meras especulações, a situação vai

acabar por se manter inalterável.

- A Sra. Adriana Bobadilha morreu de forma um pouco

estranha…

- Não me parece. Basta atender à velhice dela, para que uma

queda seja motivo para morte perfeitamente natural. A Adriana

abusava em querer fazer vida de uma mulher com idade muito

inferior àquela que auferia, na realidade. E descer escadas

desacompanhada, enxergando muito mal, vem confirmar aquilo

que eu lhe digo.

- Sim, demonstra um pouco de incúria.

- Uma mulher em idade de “bater a sola” a querer voltar a

contrair matrimónio como uma miúda casadoira. Aonde já se viu

tamanho desaforo?

O director da empresa de Paços de Ferreira gesticulava,

mostrando desagrado pelas decisões da proprietária da empresa,

em particular pela vida privada da chefia.

O advogado procurou moderar o diálogo e tomar outro rumo:

- Os tempos mudaram ... actualmente tomam-se atitudes que

em outras épocas eram impensáveis. A Sra. Adriana sabia que

B

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nem todos concordavam com as suas decisões, temia pela vida e

por isso pediu-me para investigar a sua morte, até às últimas

consequências.

- Foi assassinada?

- Penso que sim, no entanto não tenho provas.

- A polícia não investigou o falecimento?

- Não. O médico afirmou que a pancada que ela recebeu ao

escorregar era suficiente para uma morte imediata.

- Contudo, desconfia de um homicídio ...

Claude Patalim demorou a responder como se procurasse as

palavras certas para expor o seu raciocínio:

- Durante um curto espaço de tempo não duvidei da morte

natural da senhora. No entanto, a chamada de atenção dela para

causas pouco claras e uma súbita explosão perto do desenlace

fatal, fizeram com que eu me decidisse por uma investigação

particular.

- Por que não encarregou a polícia de desvendar o caso?

- Para já quero ser eu a tratar do assunto. Aonde se

encontrava na altura do óbito?

- Trabalhei todos os dias até tarde. Facilmente pode

comprovar junto do meu pessoal.

V

loja mantinha-se inalterável como há cinquenta anos,

na inauguração do único posto de venda da aldeola. A

diversidade de produtos ao dispor da clientela era tão ampla como

o sorriso da mocinha que atendeu ao advogado, quando ele pediu:

- O maço de tabaco do costume ...

Claude Patalim retribuiu o gesto de simpatia e atirou uma

nota para cima do balcão. Depois, sem esperar pelo troco, saiu do

estabelecimento e dirigiu-se para o carro estacionado em frente.

Soltou uma imprecação perante o que os seus olhos observavam:

- Ah, malandragem!

Contrafeito, viu o pneu do automóvel em baixo e não teve

dúvidas de que era obra de um canivete, o corte na borracha da

A

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roda. Preparou o “macaco” retirando um pneu sobresselente e

com cuidado deitou-o ao seu lado, iniciando a operação de troca.

O barulho de um carro a grande velocidade advertiu-o do

perigo e rapidamente desviou-se do caminho da viatura, que num

ápice continuou a rodar rumo à estrada principal.

Sem estabelecer palavra com os curiosos que observavam o

automóvel a afastar-se, e comentavam o incidente, o causídico

acabou o trabalho, entrou no seu velho Opel Corsa cinzento,

arrancando em seguida.

Passados alguns quilómetros, parou a sua viatura atrás do

automóvel que o tentara atropelar minutos antes. Entrou numa

pequena taberna, dirigindo-se à mesa aonde quatro homens

jogavam de maneira pachorrenta o dominó. A chegada de um

indivíduo impecavelmente vestido àquele antro de vício levantou

a curiosidades dos frequentadores, tendo Claude Patalim pousado

o olhar num indivíduo gordo, que fingiu ignorá-lo.

- Gostaria de falar consigo a sós, Sr. Lacerda.

O homem levantou por fim os olhos, enquanto os três

companheiros de jogo se afastaram deixando livre a mesa.

- Bom dia advogado, quer falar comigo acerca de alguma

lembrança de Espanha?

- Não me interessa o seu contrabando.

O candongueiro esboçou um sorriso e apontou uma cadeira

vazia ao advogado.

- Sente-se, ofereço-lhe uma aguardente. A um homem da sua

posição não se presenteia com um bagaço.

- Vamos directos ao assunto que me trouxe. Há alguns

minutos tentaram atropelar-me.

O passador não se impressionou e continuou a arrumar as

peças soltas do dominó numa caixa de madeira.

- Actualmente dão as cartas de condução às pessoas que não

sabem conduzir. Cada vez mais as nossas estradas se enchem de

sangue e são autênticas passagens para os cemitérios.

- Só que foi o senhor a querer comprar a minha passagem

para o “tribunal de São Pedro”.

O contrabandista olhou para Claude Patalim e cruzou os

braços com lentidão, fazendo realçar o volumoso ventre que a

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camisa de xadrez desabotoada não disfarçava, antes pelo

contrário, salientava.

- O senhor mete o nariz em coisas que não lhe dizem respeito.

Era notório que a conversa estava a ser escutada pelos demais

fregueses o que acentuou o mal-estar do advogado, expressando

num gesto o seu aborrecimento.

- Meu amigo, defendi inúmeros processos seus quando os

fiscais o apanharam trazendo sacos de “recuerdos” para a família.

Detestaria ter de o enviar à barra dos tribunais por assassínio.

- Ninguém o atropelou.

- Não me refiro ao meu assassínio, mas ao da Sra. Adriana

Bobadilha.

Espantado, o candongueiro respondeu ao advogado em voz

viva e lamurienta:

- Espere, eu nunca matei nem feri ninguém ... O senhor está a

fazer chantagem comigo.

- Senhor Lacerda, não tenho dúvidas que a sua tentativa de

atropelamento foi apenas um aviso. O senhor não me queria

matar, apenas me meter medo. Contudo, tenho também a certeza

de que a explosão de um poste de electricidade está

correlacionada com o assassínio da idosa, e sei que está

comprometido com esse caso.

- Por que pensa que fui eu, o autor?

- Vivo nesta zona há muitos anos, como advogado. Tenho

aqui óptimas fontes de informações. Também há pessoas que

ouvem frases soltas em tabernas, casas de pasto e depois me

repassam dados importantes, quando eu as solito.

O candongueiro remexeu-se na cadeira, inquieto. Olhou os

circundantes que, de soslaio, ouviam o seu diálogo com o

advogado.

- Pediram-me para fazer o serviço de deitar abaixo o poste de

electricidade, porém juro-lhe que jamais iria ferir alguém.

- Quem lhe pagou pelo trabalho?

- Não o conheço

O causídico levantou-se e encarou o malfeitor trémulo à sua

frente.

- Cuidado com as companhias. Uma pena de prisão por

contrabando é uma coisa, por homicídio é outra. Para o seu ramo

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de negócio, a popularidade não é benéfica. Agradecido pela

aguardente ...

Dando uma volta o advogado deu as costas ao contrabandista.

Este, com raiva deu uma palmada na mesa, fazendo saltar as

peças do dominó que se espalharam sobre a mesa de madeira

carunchosa.

VI

uciano Aguiar agarrou o regador e encaminhou-se para

uma mangueira, secundado por Claude Patalim. O

advogado admirava a perícia do ex-pretendente à mão da falecida

Adriana Bobadilha. De palavra fácil, cabelos brancos

encaracolados e nariz arrebitado, o único sócio que comparecera

ao enterro da principal proprietária das Empresas Bobadilha,

parecia um simples jardineiro no desempenho das suas funções.

- Só planto “amores-perfeitos” no meu jardim. Para mim

estas plantas revelam qualidades que não figuram nas outras

flores. São simples, pequenas, graciosas, não requerem

demasiados cuidados, não são plantas agressivas como as rosas

com espinhos e atribuem aos jardins tonalidades maravilhosas,

graças à harmonia das suas cores.

Abaixando-se, arrancou uma erva daninha que ousara

infiltrar-se num canteiro, continuando a falar:

- O povo sabiamente deu-lhes o nome de “amores-perfeitos”.

Amor, porque reúne todos os condimentos necessários a esse

sentimento, contudo a sua beleza transcendente precisava do

epíteto de “perfeito”.

Limpando o suor na testa com a manga da camisa e afastando

uma folha de árvore trazida pelo vento, Luciano Aguiar continuou

na sua confidência:

- Desde a morte de Adriana, dedico-me com mais empenho a

eles. Não largo o meu jardim. Para mim, constituiu um rude golpe

o falecimento dela, era uma mulher que tinha ainda bastante para

dar.

- Calculo o seu desgosto.

L

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- Quando soube de sua morte, cheguei à conclusão de que

não serve de nada fazermos planos para o futuro.

- Como a conheceu?

- Não pensávamos casar já. Ambos considerávamos o

matrimónio uma instituição muito séria, teríamos de limar

algumas arestas de que não abdicávamos, antes de nos

ajoelharmos juntos defronte ao altar.

- Em que aspectos não estavam de acordo?

- Ela aspirava a que eu morasse em casa dela. Eu opunha-me,

porque não desejava afastar-me das minhas flores.

- Esperavam cada um a cedência do outro?

- Nem mais. Há cerca de trinta anos eu vendia sapatos nas

feiras perto da fronteira com Espanha. A banca, apesar de

pequena, dava-me o pecúlio suficiente para eu me sustentar pois

não embalava em gastos demasiado supérfluos e incomportáveis.

O advogado gracejou interrompendo o quadro das Empresas

Bobadilha.

- Levava a vida do feirante comum daquele tempo? A

existência dos ciganos, uma carroça puxada por mula e um burro,

um cachorro preso por uma corda, atrás da caravana?

Luciano Aguiar sorriu e negou com a cabeça.

- Tinha uma carrinha branca, grande e velha, que me servia

de transporte dos sapatos e de lar nas noites tempestuosas, pois no

Verão dormia numa pequena tenda. Mudava sempre de lugar,

visitava as feiras mais importantes da região, e comecei a notar

numa cliente que semanalmente me comprava uns sapatos

baratos, e conversava muito comigo.

- Escusado será dizer-me que essa sua cliente era a Sra.

Adriana Bobadilha.

- Sim, vinha sempre acompanhada da governanta. Ela

comprou-me dezenas de sapatos, contudo nunca os vi com eles

calçados, pois raramente os usava. O calçado dela era sempre de

luxo. Um dia ofereceu-me emprego numa fábrica de curtumes e

pretendia que eu a representasse lá, como administrador.

- Aceitou logo?

- Não. Recusava perder a minha liberdade, metido num

gabinete e só aceitei quando me ofereceu o lugar de vendedor na

fábrica. Felizmente concordou de imediato.

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- Gostou da nova experiência?

- Durante dois anos percorri o país. Uma manhã o director da

fábrica teve uma enorme discussão comigo por eu me ter

demorado mais um dia do que o previsto, numa viagem,

obrigando-me a me despedir e a regressar para as minhas feiras.

- Uma experiência frustrante.

- Sim, muito. Para ele. No dia seguinte ao meu afastamento

da firma ela foi buscar-me. Entrou comigo no escritório do

director, mandou-o para a zona de produção e colocou-me no

lugar dele.

O advogado soltou uma gargalhada e retorquiu.

- Meu Deus! Uma mulher diabólica e determinada.

- Ainda me lembro da cara de pasmado do director comercial,

reunindo os pertences, a olhar espantado para mim e para ela. Eu

não queria aceitar o novo posto, mas era impossível contrariar a

Adriana.

- Imagino ...

- Como não percebia nada do funcionamento da empresa,

nomearam-me dois assessores que na realidade foram eles que

assumiram a gestão do cargo. Passei a visitar a minha benfeitora

quinzenalmente, eu nunca ia contra a sua vontade, não deixando

no entanto que ela controlasse a minha vida particular.

- Deseja continuar na fábrica?

- Parece que ela deixou os bens à governanta. Esta considera-

me um oportunista que queria apenas casar com a antiga patroa

por ambição, esquecendo-se que se assim fosse, há muito tempo

teríamos contraído matrimónio.

- Aonde se encontrava no dia do falecimento?

- Almoçando com uns amigos e clientes. Quando mais

bebidos estão os clientes, mais facilmente assinam os contractos.

Num daqueles almoços que começam de manhã, vamos

prolongando pela tarde, e chegada a noite, regressamos aos nossos

domicílios.

- Desconfio da existência de um crime.

O antigo vendedor ambulante pareceu surpreendido.

- A Adriana não era popular, apenas eu e a governanta a

acompanhámos à última morada, porém nunca pensei que ela

viesse a ter uma morte violenta.

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- Ela temia pela sua integridade física.

- Nunca me confidenciou esses receios.

- Sabe quem a convenceu a comprar um aparelho de ar

condicionado para a cave?

- Não sabia que ela adquirira um aparelho e admira-me havê-

lo colocado numa cave fria e húmida.

- Ela ia muito à adega?

- Não sei. Nunca passei por lá.

- Quando a visitou pela última vez?

- Quinze dias antes de morrer, e pensava visitá-la no dia de

anos.

- Encontrava-se muitas vezes com os outros sócios?

- Nunca. Eles desprezavam-me e eu não morria de amores

por eles.

- Conhecia o Sr. Lacerda, o contrabandista?

- Sim, de longe. Vendia muitos artigos a alguns dos meus

amigos, contudo nunca falei pessoalmente com ele.

Luciano Aguiar acabara de regar os “amores-perfeitos”,

guardou a mangueira e descalçou as galochas.

- Gosta de rojões?

O advogado cavalheirescamente recusou o convite, dirigiu-se

para o automóvel ligando o motor. Saiu novamente do carro,

limpou os vidros com um pano de feltro e acenou em jeito de

despedida para o director da fábrica de curtumes Bobadilha.

O manto da noite descia envolvendo a serra. Pastores,

auxiliados por cães, conduziam os rebanhos. Abalavam-se por

atalhos, procurando o sossego dos currais. As mulheres de uma

fábrica de têxteis animavam a estrada, palrando ao desafio como

os pardais, em perfeita simbiose. O velho Opel Corsa entrou na

estrada aos soluços, e penosamente arrancou naquele caminho

cheio de buracos e remendos, ladeado por árvores frondosas e

campos de milho.

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VII

assassino olhou indiferente o galo de metal no cimo

do campanário, até ao momento em que o ruído

metálico das badaladas do sino o acordou da letargia. O som

invadiu a aldeia, despertando um coro uníssono de animais

preguiçosos. Os primeiros tractores puxando atrelados saíam para

a rua principal, por entre cortejos de agricultores debandando para

as jornas, de enxadas e forquilhas ao ombro, bonés de tecidos

axadrezados e botas posando o alcatrão luzidio.

A aurora espalhava os ténues raios de Sol por entre farrapos

de nuvens, movendo-se lentamente ao sabor do vento sul.

O homicida puxou levemente o punho da manga da camisa

para cima e consultou o relógio. Depois, os dedos da mão

esquerda baterem de leve no volante do automóvel, imitando o

cavalgar de um garanhão à desfilada, e a mão direita acariciou a

coronha da espingarda maciça que jazia no banco ao seu lado.

Apesar da leve claridade, puxou a aba do chapéu para os olhos,

ocultando habilmente a expressão de ódio.

Um camponês acompanhado de um rafeiro coçando

constantemente uma orelha doente, debruçou-se junto à janela do

veículo.

- O patrão tem lume?

Maquinalmente o condutor procurou num dos bolsos do

gibão um isqueiro. Rígido, entregou-o ao interlocutor, sem mover

a cabeça. O trabalhador rural aparentou procurar nos bolsos das

calças o tabaco e após esforços infrutíferos, curvou-se novamente

para a janela do carro.

- O patrão desculpe, não tem um cigarro? Devo ter deixado o

maço em casa, no outro par de calças.

O assassino retirou da bolsa de couro um cigarro longo e

ofereceu-o em silêncio, mas o campesino não estava com pressa.

Depois de o acender, soltou uma nuvem de fumaça que a brisa

arrastou inalterável.

- Não há dúvida que um bom trago dispõe-nos de modo

diferente, logo pela manhã.

O cachorro sentara-se imprudentemente em frente ao carro,

esforçando-se por enterrar as garras sujas numa orelha

O

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ensanguentada e coberta de carraças. As tentativas vãs para

expulsar os parasitas obrigavam-no a cair inúmeras vezes, como

que em estado ébrio.

Subitamente o criminoso ligou o motor e arrancou, ignorando

o animal que não conseguiu desviar-se a tempo da rota do

Mercedes. Enquanto o camponês, aos gritos procurava

desesperadamente acudir ao cão, o condutor deitou o cano da

espingarda pela janela e, passados alguns segundos, carregava no

gatilho disparando os chumbos que se alojaram numa caixa do

correio, único obstáculo ao programado alvo, um homem de

bigode farto que instintivamente se deitara no chão.

Claude Patalim levantou-se, benzeu-se e sacudiu a poeira do

fato observando o automóvel do meliante a desaparecer ao fundo

da rua. Apreensivo, analisou o marco do correio danificado pelos

chumbos do fuzil, enquanto, que o assalariado rural se

aproximava com as lágrimas escorrendo pelas bochechas

vermelhas.

- Pobre Pancho, nunca mais se deitará aos meus pés quando

eu jantar perto do fogão.

- Ele salvou-me a vida. O uivo chamou-me a atenção para o

carro.

- Não conheço o condutor e o Mercedes. É gente de fora da

região.

O advogado ainda sacudia o chapéu enquanto resmungava.

- O automóvel não trazia matrícula, o atirador sabe os meus

hábitos.

- Nunca o tinha visto pela terriola.

O jurista ajeitou os óculos e passou a palma da mão pelo

crânio parecendo querer pentear o cabelo ralo.

- Desta vez queriam mesmo matar-me. Conheço demais o

caso ou melhor, pensam que eu sei demasiado. Para a próxima

tentativa talvez não saia ileso.

Após breve hesitação entrou no velho Opel e dirigiu-se para a

estrada principal.

Meia hora percorrida ao volante abrandava junto a uma

casinha modesta debruçada sobre um barranco imerso de urze,

separado da estrada por um muro de pedra.

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Claude Patalim pareceu renitente em sair do automóvel.

Retirou do porta-luvas um revólver, escondendo-o no bolso do

casaco. Uma dama de cerca de trinta anos vestida de negro

oferecia grãos de milho aos pombos, dando risadas, divertida com

a batalha das aves pela posse dos lugares privilegiados.

- Tiazinha, posso falar com o Sr. Lacerda?

A mulher voltou-se, interrompendo a tarefa para se dirigir ao

advogado.

- Por que quer falar com ele?

- Um assunto de interesse.

- Para quem?

- Vamos modificar o esquema da conversa? Eu pergunto e

você responde...

Ela soltou uma gargalhada e enxotou alguns pombos que

tentavam rapinar o milho do saco de pano remendado.

- O meu marido não atende ninguém neste momento.

- Então passo mais logo.

- Logo também não o pode receber.

- Quando poderei vir conversar com o esposo?

- Dentro de aproximadamente dois anos. A semana passada

prenderam-no por contrabando e aguarda julgamento na prisão.

O advogado franziu o nariz e acenou em jeito de despedida.

Pela primeira vez sentiu que não conseguia controlar os

acontecimentos. Cada minuto que passava era importante para

preservar a vida. Brincava ao gato e ao rato, persuadira-se da

desagradável sensação de ser o rato, e o gato faminto e sem

escrúpulos, certamente que não desistiria de o apanhar.

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VIII

Major sacudiu com o lenço a poeira levantada ao

abrir a porta da adega, desviou-se para o lado, dando

passagem a Claude Patalim que sentiu o odor, o bafio e podridão

do compartimento.

- Está tudo como deixei quando a Sra. Cecília Lando me

chamou, no dia em que descobriu o corpo, sensivelmente a meio

destes degraus de pedra. O médico já observara a Adriana,

passando a certidão de óbito.

- O assassino deveria trazer algo para iluminar a cave, tendo

em conta que a lâmpada está fundida.

O militar pareceu embaraçado, e cautelosamente respondeu:

- Não sei, não me lembro de ver nenhuma lanterna ou vela.

- Quem retirou o corpo?

- A governanta e o médico, depois de ele verificar o óbito

transportaram o cadáver para um sofá.

Claude Patalim abaixou-se, verificando a poeira dos degraus,

como se procurasse sinais reveladores da sequência dos actos do

homicida. O militar que aguardava e observava o companheiro

encostou-se às pedras húmidas da parede, arriscando algumas

palavras.

- Quais as conclusões da análise?

- Um bom perito, analisando as pegadas rapidamente,

prognosticaria o número exacto das pessoas que subiram e

desceram as escadas desde a altura que arrastaram o corpo para

aqui.

- Não interessa para já a polícia metida no assunto. A

clientela das Empresas Bobadilha é gente que não gostaria de ver

o nome das organizações envolvido em crimes e escândalos.

- Poderia realmente advir ao grupo uma má publicidade.

Com um gesto amplo o advogado convidou o militar a

abaixar-se, porém, este renunciou, desculpando-se.

- Sofro de uma escoliose profunda ... as minhas costas não

suportam certas posições.

- Repare, não existem riscos ou marcas do corpo ter sido

arrastado, no meio da “selva” de pegadas que aparecem nas

escadas.

O

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- E daí?

- Ao não ter sido o corpo puxado pelo soalho, isso indica que

apenas um indivíduo forte poderia transportar ao colo, e para a

cave, a Sra. Adriana Bobadilha. Aonde está situado o aparelho de

ar condicionado?

Lotário Nobre apontou para o alto, o advogado subiu para um

banco e observou-o atentamente, exclamando:

- Tem uma potência muito grande para ter sido comprado na

vila.

Depois de revistar a sala, algo o interessou e pediu um

escadote, exigência satisfeita pelo major. Cuidadosamente calçou

luvas de borracha, com um canivete raspou alguns líquenes e

recolheu duas pequenas carcaças de ratos que jaziam sobre as

traves de madeira, metendo-as dentro de um saco, perante a

curiosidade do companheiro.

- A empresa que dirige passa por uma crise, e a sua direcção

atravessa uma fase periclitante.

O militar pareceu surpreendido com a constatação do

advogado e retorquiu:

- Não entendo aonde quer chegar ...

- Esta morte providencial salvou-o de um despedimento.

Vermelho de raivas, o militar avançou ameaçador para o

advogado.

- Quem lhe disse tamanha mentira!!?

- É a opinião que ouvi a alguns empregados que o senhor

chefia.

- Eu bato nos hipócritas que andam espalhando calúnias!!

- Sem dúvida. O meu pai também serviu artilharia e no meu

quarto de criança ainda estão os canhões cruzados, símbolo da

arma. Ele também não deixaria ficar o caso em claro, se soubesse

quem eram os funcionários.

O militar voltou a acalmar-se, ajudando a arrumar o escadote

junto às paredes frias da cave.

- Para onde telefonou a governanta ao chamá-lo?

- Na altura, estava em minha casa a ler a Revista de

Artilharia.

- Como reagiu ao futuro casamento da Sra. Adriana

Bobadilha?

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- Ri que nem um perdido ao saber que o futuro consorte era

aquele maluco dos “amores-perfeitos”. Todos os outros sócios o

escorraçam, pode ser uma autoridade em flores, porém para

dirigirmos uma organização precisamos de nos saber fazer

respeitar. Um indivíduo que passa o tempo de regador na mão,

não possui o perfil indicado para o lugar que ocupa.

- Demonstrou ser um “duro”, persistente e com personalidade

vincada, ao não ceder aos caprichos da futura consorte.

- Ele sabia dar as voltas às ideias da Adriana, nunca a

contrariou frontalmente como os outros, era um apaziguador.

- Casando os dois, talvez houvesse mudanças de topo nas

administrações das empresas, sendo ele votado ao ostracismo

pelos restantes administradores. Esta morte foi oportuna e

providencial para todos.

O advogado retirou as luvas das mãos e sacudiu-lhes o pó

contra a parede da cave. Com olhar de lince corria a adega à

procura de outros vestígios, e acrescentou:

- Ele tinha um feitio conciliador. Admito a hipótese de terem

assassinado a Adriana.

O major Lotário Nobre esboçou uma exclamação de espanto.

- Impossível!! Percebi já essa sua desconfiança, todavia

apesar de ela ser um “osso duro de roer” todos a estimávamos.

- Desejam a minha morte? Sofri ameaças de homicídio.

- Quem o intimidou?

- Não sei. Apanhei o mariola que tentou a primeira vez

atropelar-me, contudo, desconheço o autor da segunda tentativa.

- Garanto que não haverá terceira.

- Sabe quem se trata o mandante?

- Desconfio. Mas não lhe digo quem penso ser.

O militar subiu a escadaria seguido do advogado e entraram

na cozinha. Cecília Lando lavava uns tachos e recebeu-os

amavelmente.

- Preparei um café. Estão duas chávenas em cima dessa mesa,

o açucareiro e o termo. Desculpem a toalha ser de plástico, ainda

não arranjei tempo para arrumar esses ovos que trouxe há

momentos da capoeira.

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IX

lias Peçanha atirou confiante o passaporte para cima

da mesa, estremecendo os gladíolos dentro de uma

jarra chinesa. Esperou a reacção de Claude Patalim que fungou e

assoou-se, antes de pegar o documento.

- Posso provar que estava em Angola, no dia que descobriram

o corpo.

O advogado pousou os óculos em cima da lareira de

mármore, antes de continuar:

- Porém, visitou a Sra. Adriana Bobadilha uma semana antes

da pretensa data do homicídio.

Enrugando a testa, o dirigente da plantação angolana recebeu

de volta o passaporte, guardando-o dentro do casaco.

- Houve homicídio?

- Não duvide.

- Porque desconfia de um assassínio?

- Primeiro, a vítima receava pela vida.

- Todos, quando chegamos a uma certa idade, tememos a

morte.

- Segundo, existem circunstâncias muito estranhas que

envolvem a morte da Sra. Adriana Bobadilha, tais como um

aparelho de ar condicionado numa cave, normalmente gélida, um

ataque a um poste de electricidade, sem explicação, o falecimento

ter ocorrido pouco antes do casamento dela, etc..

- Podem ter sido factos perfeitamente explicáveis, meras

coincidências…

- Conhecia o Sr. Lacerda, O Candongueiro?

- Não, pessoalmente. Ele vincula-se ao folclore da região, dá

o colorido de uma figura típica a que nos habituámos, esquecendo

o que ele representa para a sociedade.

O causídico baixou a cabeça, apoiou o cotovelo no braço do

sofá e o queixo nas costas da mão direita.

- Pode-me dar uma fotografia sua para eu comprovar com o

Sr. Lacerda que nunca contactaram um com o outro?

- Claro, ofereço-lhe uma das mais recentes para não restarem

dúvidas.

E

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- Qual a sua opinião sobre a governanta e o futuro esposo da

sua ex-chefe?

- Não mantinha relações com os dois, para mim nada se irá

alterar com o encerramento do reinado da patroa.

- Quando viu pela última vez os outros sócios?

Elias Peçanha hesitou antes de responder:

- No último dia em que nos reunimos com a Adriana.

O advogado levantou-se e despediu-se. Saiu da habitação,

entrou no velho Opel Corsa cinzento, e passados alguns minutos

rodava em direcção a casa. Mais velozes que o automóvel que

dirigia, iam os seus pensamentos ...

- Por que mentiria ele, quando afirmou desconhecer o

contrabandista?

Dando por falta dos óculos esquecidos em cima da lareira de

mármore, inverteu o sentido da marcha. Um súbito clarão na

encosta da estrada, advertiu-o de que algo de anormal se passava

no fundo do monte. Saindo do carro, reconheceu o Mercedes que

conduzira o autor do atentado do qual fora vítima dias atrás. As

chamas consumiam a viatura, ao lado jazia um vulto imóvel,

estendido e gravemente ferido.

Claude Patalim desceu cautelosamente a encosta e voltou o

indivíduo inconsciente para ver dr o conhecia. Mas pouco podia

fazer por Elias Peçanha, ao verificar os golpes e as queimaduras

diversas na pele. Metendo a mão no bolso do casaco, procurou o

livrete da viatura e abriu-o, confirmando a suspeita de que o

fazendeiro era o dono do automóvel.

Os olhos percorreram rapidamente os arredores em busca de

pistas, a ponta do cano de uma espingarda avisou-o do perigo e na

falta de abrigo no arvoredo enrolou-se todo procurando proteger

as zonas vitais do corpo, o disparo acertou em Elias Peçanha que

soltou um último gemido ficando inerte ao seu lado.

Longos segundos se passaram. A erva em redor tornou-se

também pasto das chamas. O advogado dorido da posição

incómoda, sempre à espera de um tiro fatal, arriscou um olhar

para o local aonde vislumbrara o fuzil ameaçador, verificando que

ele desaparecera inexplicavelmente.

- Alguém desejava o silêncio de Elias Peçanha ... desapareceu

o meu principal suspeito.

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De volta ao Opel, admirou os esforços dos camponeses que,

em tempo, tinham chegado a apagarem o fogo que se estendia

para um vinhedo próximo. Precisava de recomeçar toda a

investigação. O assassino seguia-o como o arado percorria

vagarosamente atrás do boi, na época das sementeiras. Por que o

homicida acabara com a vida do fazendeiro e não o atingira,

quando teria sido tão fácil?

A peritagem ao automóvel, pelos técnicos da Policia

Judiciária, esclarecia pormenores que o advogado poderia ler no

matutino do dia seguinte.

X

morim Basto deixou o lenço ensopar o suor que lhe

escorria pela testa, limpando o pescoço. O sócio

gerente da firma mais lucrativa das organizações Bobadilha

demonstrava invejável tranquilidade, não obstante o atraso com

que chegara acompanhado por um indivíduo forte e sisudo, que

discretamente se deixara ficar ao balcão do bar, sem no entanto

retirar os olhos do patrão. No bolso do casaco de linho branco

traía o relevo da coronha da Walter.

- Dr. Claude Patalim, desculpe a minha chegada tardia, a

minha vida não permite o cumprimento integral dos horários dos

meus compromissos.

Com um gesto o advogado o convidou a sentar-se no maple

creme, a seu lado, deixando-o recuperar o fôlego.

- Bebe um Martini?

- Não, colega.

Depois de um sorriso, Amorim Basto sentou-se, chamou o

criado e pediu uma cerveja antes de continuar.

- Também exerci advocacia antes de principiar a dirigir

alguns negócios da Sra. Adriana Bobadilha ... Quando acabei o

meu estágio fundei, com um companheiro, um escritório. Pouco a

pouco notei que a justiça é secundária no desenrolar dos

julgamentos. Apenas os conhecimentos de oratória e outros

factores insignificantes prevalecem, no momento da leitura das

sentenças. Uma lei muito extensa, coberta de muitos artigos,

A

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lacunas e parágrafos neutros, presta-se a múltiplas interpretações.

Vulgarmente, nomes sonantes obrigam os jurados a serem

condescendentes na pena aplicada ao réu.

Claude Patalim deixou escapar uma expressão de desagrado:

- Exagera.

Amorim Basto continuou a sua defesa, sem se impressionar

com a interrupção.

- Cada membro do júri judicial embora consciente do seu

papel, não se separa da pessoa humana, receosa de represálias.

- O sentido da justiça não se perdeu.

- Nas minhas actividades nunca pisei o risco da ilegalidade.

Formei elementos em ramos permitidos pela lei, antagónicos aos

bons costumes tradicionais. Controlo grupos encarregados de

“cobranças difíceis” angariando clientes pelos jornais sem

oposição policial.

O gestor bebeu um trago de cerveja, ficando nos lábios uma

linha branca de espuma que rapidamente limpou a um guardanapo

de papel, antes de continuar:

- Fundei bares, clubes de encontros íntimos, se os mesmos

desvirtuam o sentido de associações pacatas, e desaguam na

prostituição, nunca o meu nome aparece escrito nas colunas

principais dos raros jornais diários que denunciam imoralidades,

nos escassos artigos sobre o assunto.

- São negócios obscuros.

- Exploro cinemas de pseudo-filmes para público adulto, com

o consentimento dos trabalhadores das casas de espectáculos que

sabem de antemão, que no dia em que a qualidade dos filmes

passados melhorar, os espectadores ficarão a ver televisão no

aconchego dos lares, sem gastarem dinheiro nos bilhetes, e os

empregados serão despedidos para desespero das respectivas

famílias.

- A situação modificar-se-á, pode crer.

- Quando? Muitos desses membros de encontros íntimos

ficarão fichados e quando se estabelecem em lugares de relevo na

sociedade, são alavanca para os meus desígnios...os devedores

dos meus serviços de “cobranças duvidosas” raramente deixam de

pagar.

- Exerce chantagem?

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- Tolice...! Digamos que peço-lhes alguns favores e eles são

livres de os concederem ...

- Compreendo aonde quer chegar! O senhor desvirtua o

sentido da nossa profissão.

- Pertenço à Ordem dos Advogados. Todos os meses pago a

minha quota integralmente e sem demoras. Quantas vezes já

pensou em convencer o juiz da inocência do seu cliente, sabendo

por instinto e de antemão que o réu pertence ao grupo daqueles

que devemos manter por detrás das grades, para defesa da

sociedade?

Claude Patalim não respondeu. Retirou alguns aperitivos do

pires coberto de castanhas de caju. Depois em jeito de desafio

desabafou:

- Parece-me uma pessoa capaz de ordenar um homicídio,

nomeadamente o da sua patroa.

Amorim Basto emitiu um grunhido como de um animal

ferido e o capanga imediatamente colocou a mão no bolso do

revólver. Depois, mais calmo, soltou um esgar parecido com um

sorriso, principiando a fazer pequenos desenhos no copo frio e

embaciado, antes de continuar:

- Deduziu mal. A Adriana Bobadilha reunia duas qualidades

muito importantes nos negócios. A primeira, consistia nos cabelos

brancos, tão necessários para a credibilidade de uma gestora. Ao

chegar, todos os presentes se levantavam da cadeira em sinal de

respeito, e esse pormenor continha um peso considerável na

conclusão de um possível contrato. A segunda qualidade dela era

o valor que ela dava ao dinheiro. Repudiava as minhas acções e

negócios, contudo, nunca me manifestou pessoalmente a antipatia

nutrida pelo meu modo de proceder, e jamais se exaltou comigo,

como o fez tantas vezes com os outros sócios.

- Conhecia alguém com motivos suficientes para a

assassinar?

- Enquanto pratiquei a advocacia defendi réus que bateram

em familiares por batota em jogos a feijões.

- Uma resposta dúbia. Na última reunião passou-se algum

facto invulgar?

- Não me lembro de nada a assinalar.

- Conhece Lacerda, um contrabandista?

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- Não

Claude Patalim sorriu, observando as faces redondas do

parceiro.

- Então desvendo um curioso caso de conhecimento

unilateral. Ontem visitei-o e ele disse-me que o contactara, com

outros dois sócios, para me pregarem um valente susto.

- Uma reles mentira.

Por momentos as bochechas de Amorim Basto tornaram-se

vermelhas e o guarda-costas simultaneamente acariciou a Walter

no bolso. Passado o momento de tensão, já mais calmo, esboçou

um sorriso aberto mostrando uma dentadura alva.

- Está a fazer “bluff”. Confesso que nunca contrataria um

marginal com cadastro tão rico e residente na zona.

- Qual o vosso objectivo ao quererem afastar-me das

investigações?

- Ainda não rompeu com as pesquisas?

Uma certa ameaça velada secundou a pergunta, porém o

jurista fingiu ignorar o facto.

- Responda.

- Até agora remediámos um mal que não provocámos e que

aumentaria a curto prazo.

- Que mal? O assassínio da velhota?

Amorim Basto levantou-se seguro de si e apertou a mão a

Claude Patalim com firmeza.

- Não. Se descobrir a verdade, começará a perceber a

sensatez do nosso procedimento…

Fazendo um gesto com a mão, chamou o jagunço e hesitou

antes de prosseguir:

- Pela primeira vez não procederá de acordo com a lei ...

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XI

m se perpetuando as imagens da juventude,

desanuviam-se as de momentos próprios da

adolescência: lapsos de sensações restritas à idade que se segue à

puerícia, os anos da fraternidade e amizade desinteressada, sem

barreiras de status, de raças, ou políticas. O grito do despertar

ecoa, germina o carácter e fecundam os estímulos do ser

circundante, como o desabrochar de uma planta da quinta.

E a vocação?

Claro, precisamos de realçar a vocação, essa sucessão de

tendências, os comportamentos indissociáveis do indivíduo, a

predisposição para certos labores.

Claude Patalim relembrou os tempos de camisolão quente e

botas forradas de pele branca de carneiro, conversando com dois

amigos ao som da máquina de discos recentemente adquirida pelo

proprietário do bar, um colosso sempre com as mangas de camisa

de xadrez arregaçadas, expondo os músculos dos braços negros

em que emergiam as divisas dos pára-quedistas.

Não esqueceria a filosofia de Perdigão, velho amigo de uma

infância feliz, sempre disposto a repetir com o ar mais cândido

deste mundo a sua teoria. Ele estudava Gestão de Empresas e

ignorando as risadas dos companheiros explicava entusiasmado:

- Uma empresa parece-se com uma vaca. Se a alimentam bem

ela dá o leite necessário. Devemos ordenhá-la sempre para não se

criarem problemas, e tudo correrá às-mil-maravilhas. Se a

desgastam ou a vão comendo ainda viva, procurando retirar mais

leite do que o que pode dar, o animal adoece e cedo entrega a

alma ao criador.

Todos se riam e o Jácome, invariavelmente, respondia que o

amigo deveria seguir a profissão de veterinário. O destino pregara

uma partida ao Jácome, a sua ambição de abraçar a carreira de

médico diluíra-se e presentemente auxiliava em autópsias,

atestava de algodão hidrófilo os ventres inertes, perfumando

aquelas carnes sem vida de iodofórmio e untando-as de parafina.

Claude Patalim recorrera ao seu antigo companheiro. Ele o

introduziu naquela sala transbordando de cheiro a amoníaco,

apresentando-o a um médico. Uma infinidade de provetas e

E

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83

frascos colocados assimetricamente, jaziam em prateleiras

metálicas que ocultavam a fragilidade das paredes em aglomerado

de madeira.

O médico-legista, de cabeça redonda, bata alva amarrotada e

gravata à banda retirou de uma gaveta um dossier de capa azul,

abriu-o e folheou-o com rapidez, procurando a conclusão do

extenso relatório.

- Depois de uma análise detalhada aos tecidos dos ratos que o

Claude encontrou na adega, constatei, pelas alterações assépticas

nos órgãos, que os bichos devem ter morrido ambos no mesmo

dia.

- Pode revelar a causa da morte dos animais?

- O frio. Sem agonia prolongada, com ausência de causas

traumáticas, uma morte natural sem sombra de dúvida, talvez

devido a um rigor do clima tendo em conta os leves danos no

aparelho respiratório e no pêlo. A velocidade de arrefecimento é

lenta, os cristais de gelo formaram-se nos espaços extra-celulares

dos ratinhos, ao contrário do que sucederia se eles estivessem

expostos a uma rápida congelação, que imediatamente levaria à

cristalização da água tecidular.

- E em relação ao líquenes?

- Investigações desenvolvidas demonstraram o aparecimento

de acções que interromperam a senescência ou processo de

envelhecimento dos líquenes. O amigo quer que eu confirme se

sucederam na mesma altura da morte dos ratos? Sim, essas acções

foram simultâneas.

- Pode-me dar uma opinião sobre o cadáver da Sra. Adriana

Bobadilha que foi exumado?

- Verifiquei não haver lesões no aparelho respiratório,

derivadas da respiração a baixa temperatura. Realizei a necrópsia,

desenvolvi estudos histológicos reveladores de pormenores que

talvez interessem. Assim, depois da utilização de vários corantes e

de estar cerca de duas horas agarrado ao microscópio, garanto a

existência de um crime, antes de o corpo resfriar intensamente.

- Bom trabalho.

- Não me restam dúvidas pelos exames serológicos,

biológicos e bacteriológicos, da exposição do corpo ao frio

durante um longo período de tempo, possivelmente uma ou duas

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semanas. Preenchi o inquérito médico-legal aonde exponho os

detalhes do homicídio.

- Acredita num assassínio?

- Claro. A morte não se deveu à senhora ter escorregado e

caído com a cabeça no degrau, como o assassino certamente nos

tentou fazer acreditar. O homicida bateu certamente com um pau

ou bastão na nuca da vítima e transportou-a para as escadas da

cave. As próprias hemorragias confirmam a cronologia dos actos

- Pode precisar com segurança quando a senhora faleceu?

- Passaram-se vários dias, contudo penso que pela

entomologia forense, isto é, a ciência que trata de saber a data e as

causas da morte através dos insectos que vivem no organismo do

cadáver, é possível determinar. No entanto, verifiquei já que

desapareceu qualquer tipo de vida residual. Os microrganismos

anaeróbios e aeróbios cumprem a sua função devastadora

antecedendo à entomologia do cadáver, ou o acto de destruição

rápida das partes moles. No relatório do escrivão apresento como

se deu a sucessão de acontecimentos.

- Certo.

- Durante as primeiras horas, geralmente entre as duas e as

quatro, aparece a rigidez cadavérica que pode durar até perto de

vinte horas depois da morte, mas pode subsistir até perto das

setenta, em casos especiais. A rigidez cadavérica ocorre por causa

da coagulação do plasma do tecido muscular esquelético, sendo

factores para que isto suceda, a desidratação e a acção do ácido

láctico.

- Entendo.

- A sua cliente não apresentava livores de cor vermelho-claro,

logo está afastada a hipótese de ter morrido pelo frio do ar

condicionado. Livores são acumulações do sangue no cadáver, em

determinados locais, e aparecem entre a terceira e quarta hora,

atingindo o máximo de intensidade ao fim das doze horas, ou

pouco mais, após a morte. Ao fim de 5 ou 6 dias, os livores ficam

mais pronunciados e deixa de haver rigidez cadavérica. O

abdómen toma uma cor esverdeada, aparecem gases sob a pele e

as veias superficiais parecem riscas violetas. O cadáver

apresentava sinais de espasmo cadavérico, resultado de

ferimentos nos centros nervosos superiores.

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- Pode o corpo ter sido conservado de outra forma para além

do ar condicionado?

- Pergunta-me se a defunta esteve sob acção citolítica? Não

notei influência de resíduos de substâncias capazes de destruir as

células à temperaturas baixas, como o azoto líquido ou mesmo a

neve carbónica, que não deixa cicatrizes residuais. Torna-se

difícil, nestas condições, diferenciar as alterações patológicas.

Contudo, os próprios tendões e ossos denunciam um frio

prolongado. Assim como uma fuga de plasma dos vasos

sanguíneos para os tecidos envolventes.

- O doutor confirma a tese do corpo ter estado exposto a um

frio dilatado, durante dias?

- Sim. Não há lesões no tecido nervoso. O corpo nunca sofreu

a agressão de uma temperatura fria muito rigorosa, causada pelas

substâncias mencionadas. A putrefacção foi certamente acelerada

pela humidade da adega. De início o abdómen fica com uma cor

verde que se vai espalhando ao longo do tempo. Nos tegumentos,

vesículas, aparece depois um líquido escuro e gases de

putrefacção, começando o descascar da pele, queda do cabelo e

unhas.

Um enorme painel com gigantescas fotografias afixadas,

salientava-se na parede nua do gabinete do anfitrião.

- Concluímos pela inexistência de impressões latentes.

Utilizamos um pó para as revelar, quando aparecem. Os nossos

estudos dactiloscópicos não mentem.

- Então é uma evidência de que o assassino ao matar a Sra.

Adriana Bobadilha, para evitar a decomposição do corpo, ligou o

ar condicionado a uma temperatura negativa, causando

acidentalmente a morte dos dois ratitos e dos líquenes?

- Pode ter sido mesmo isso o que realmente aconteceu.

- O médico de aldeia sem saber de nada e vendo o bom

estado de conservação da vítima, pode ter concluído que a morte

se desenrolou no dia anterior, quando na realidade aconteceu dez

dias antes, ou até mais?

- Sem dúvida! Além disso, o assassino sabia o que estava

fazendo e provavelmente utilizou luvas. No entanto, o facto de

existirem outras formas de vida, expostas às mesmas condições de

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temperatura, levantou a suspeita, e possibilitaram a posterior

comprovação da verdadeira altura da morte da senhora.

- Mesmo utilizando luvas, só seria possível determinar as

impressões digitais durante dois ou três dias. Depois disso

desaparecem.

- Quando um médico manda fazer uma autópsia elabora um

relatório, tem já uma desconfiança sobre as razões do falecimento,

ou seja, o técnico que completa a autópsia faz um trabalho

circunscrito.

O advogado despediu-se do clínico e saiu para a rua, envolto

em seus pensamentos. Naquele momento travava-se em seu

íntimo uma disputa: Cumprir a lei, ou fazer o que lhe ditava a sua

consciência?

XII

amplo escritório de Claude Patalim, como sempre,

apresentava-se limpo e organizado. As três cadeiras

almofadadas de mogno em frente do estrado, contrastavam com a

disposição habitual do local de trabalho do advogado.

O jurista enfrentava três homens maduros, de semblantes

carregados, que não desviavam o olhar do seu rosto aguardando

as suas palavras, como se elas viessem a ditar destinos.

O causídico dirigiu-se para um quadro reproduzindo uma

cena helénica de Rubens, e observou-o em silêncio, antes de

começar a falar para a pequena assembleia:

- Belo quadro! ... Ele compreende a resolução de um enigma

que, se eu tivesse decifrado um pouco antes, teria poupado uma

vida humana. Conhecem a lenda que representa este quadro do

Julgamento de Páris?

Todos se mantiveram mudos, levando o advogado a

continuar:

- Três deusas: Juno, Atena e Afrodite, pediram a Páris que

elegesse a mais bela. Ele não se fez rogado, escolhendo Afrodite

como a mais formosa delas. Juno e Atena despeitadas juraram

vingança, cumprindo-a mais tarde. O príncipe troiano ao raptar

Helena deu origem à invasão de Tróia pelos gregos, sendo

O

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responsável pela destruição da sua cidade natal, às mãos das

hostes helénicas.

Bartolomeu Ochoa interrompeu a narração:

- Pediu-nos para virmos ao escritório a fim de nos contar uma

lenda?

- Não. Este mito ajuda a compreender uma sucessão de

acontecimentos que culminou com dois homicídios. Tal como

Páris, a Sra. Adriana manifestou uma preferência escolhendo um

dos sócios para cônjuge, deixando despeitados os restantes

pretendentes.

O major Lotário Nobre tentou protestar, mas o advogado,

inflexível, mandou-o calar com um gesto.

- De início não havia opinião unânime quanto ao modo de

agir. Enquanto Elias Peçanha reclamava uma vingança mais

radical que culminaria na morte daquela que ousou fazê-los cair

no ridículo, de acordo o vosso entendimento, os outros pensavam

refrear os ímpetos do assassino.

Amorim Basto, o último do grupo no gabinete baixou os

olhos desalentado.

- Como eu narrava ... Elias Peçanha, o responsável pela

fazenda angolana, sentiu a oposição dos restantes associados. E se

o criticaram pela morte da Sra. Adriana, a tentativa de me

matarem obrigou os três a tomarem uma atitude drástica, ou seja,

cercearem o mal com a morte do homicida, provocando-lhe o

acidente e lançando-o pela ravina.

Bartolomeu Ochoa levantou-se e apontou para o advogado.

- Nunca quisemos fazer-lhe mal!!

- Eu sei. Vi que deparava com dois modos de procedimentos

diferentes. No primeiro caso, tentavam apenas assustar-me e não

fazer-me dano. A vosso soldo o contrabandista fingiu querer

atropelar-me. Mais tarde, quando do assassínio de Elias Peçanha,

o atirador podia perfeitamente ferir-me, só não o fazendo porque

tinha instruções para não me maltratar, apenas matar o fazendeiro.

- Nada tínhamos contra si.

- Na segunda ocasião, quando vi uma caçadeira ser

descarregada na minha direcção danificando um marco do

correio, senti que quem pressionava o gatilho não hesitava em

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furar-me a pele. Havia alguém que procurava deliberadamente o

meu assassínio. Neste momento sei que era o Elias Peçanha.

O major Lotário Nobre inquiriu Claude Patalim com a sua

peculiar voz roufenha:

- O que pretende fazer connosco?

- Devia entregá-los à lei para serem julgados pelo susto que

apanhei do “atropelamento” e pelo homicídio de Elias Peçanha.

Contudo, entendo que foi devido ao assassínio dele que me

mantenho ainda vivo.

Ao encarar Amorim Basto, as palavras do advogado brotaram

gélidas como uma chuva de granizo.

- Condeno-os a viveram com a personalidade forte da vossa

nova patroa, que certamente lhes vai dar muito que fazer.

O som estridente da campainha do escritório tocou, e de

imediato o advogado dirigiu-se até à porta, convidando os três

homens a sair e permitindo a entrada de uma mulher magra, de

feições rudes. Ao ficar sozinho com a cliente, esperou a reacção

dela.

- Boa tarde Sra. Cecícia Lando! Fico feliz por a ver

novamente ...

A mulher não respondeu e inquiriu curiosa:

- Que vieram fazer aqui estes “trastes”?

- Conversar comigo.

- Descobriu quem matou a minha patroa?

- Sim. O Sr. Elias Peçanha. Veio propositadamente de África

para assassinar a Sra. Adriana. Após golpear-lhe a cabeça, levou-a

ao colo até às escadas, deixando o aparelho de ar condicionado

que comprara previamente a uma temperatura extremamente

baixa, para o corpo não se decompor, enquanto ele não saísse de

Portugal.

- Nunca gostei dele.

- Deixou instruções a um candongueiro, que a polícia mais

tarde prendeu por delito de contrabando, para danificar o poste de

electricidade cortando a corrente ao aparelho de ar condicionado.

O médico da aldeia ao observar o corpo da senhora Adriana

Bobadilha, passou a certidão de óbito, afirmando que a morte

ocorrera numa altura em que o Sr. Elias Peçanha já se encontrava

a salvo, em Angola.

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- Era para confundir a data da morte?

- Sim. O aparelho de ar condicionado manteve a temperatura

de tal modo baixa que conservou o corpo durante largos dias,

embaralhando o médico sobre a data em que ocorreu o óbito. Os

gestores das suas novas empresas acabaram por o mandar matar.

- Como descobriu ser ele o assassino da Adriana?

- Apenas três pessoas conheciam a cave, o tipo de

compartimento ideal para o corpo permanecer frio durante um

longo período. E duas delas estavam impossibilitadas de aguentar

ao colo um cadáver pesado, como o da Sra. Bobadilha. O major

Lotário Nobre sofria de escoliose, como vim a confirmar. A

doença impede-o de transportar pesos. E a Sra. Cecília Lando,

impossibilitada pela paralisia de utilizar um braço, nunca

conseguiria elevar o corpo, restando apenas Elias Peçanha no

grupo dos que sabiam da existência da cave.

- Também suspeitou de mim?

- De início todos eram suspeitos. A morte acidental dos dois

ratinhos, a uma temperatura muito baixa, levou-me a suspeitar do

procedimento do assassino. Quem mais poderia estar interessado

em iludir vários dias a cronologia do crime, além de Elias

Peçanha?

- Como desvendou que o grupo o assassinou mais tarde?

- Todos, descaradamente o afirmaram.

- Não compreendo.

- O major afiançou não haver terceira tentativa para me

matarem. Sabia o que se estava a passar e iria tomar medidas para

pôr cobro a isso. O advogado Amorim Basto disse que, pela

primeira vez eu não procederia de acordo com a lei ao desvendar

os acontecimentos. E realmente estava dentro da razão. Não vou

entregar os assassinos de Elias Peçanha à polícia, pois eles

salvaram-me a vida.

- Como concluiu o envolvimento de Bartolomeu Ochoa?

- Enervou-se muito quando lhe falei no Julgamento de Páris,

desconfiou logo da razão para eu falar da lenda. Salvas as devidas

diferenciações, este caso contém similaridades notáveis com o

mito.

Cecília Lando sorriu e exclamou:

- Acho a morte de Elias Peçanha muito oportuna.

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Claude Patalim não respondeu e acompanhou a nova

proprietária das Empresas Bobadilha até à saída do escritório.

Com um sorriso nos lábios frisou:

- Este mundo tem destas coisas. Ao matarem Elias Peçanha

livraram-nos aos dois de sermos as próximas vítimas do

homicida.

A senhora deixou-se conduzir pelo braço do advogado para

sair, piscando-lhe o olho.

- Claro ... o mundo tem destas coisas. Alegra-me o não

envolvimento do Luciano Aguiar, o pretendente à mão da minha

finada patroa, neste crime colectivo.

Um pequeno cartuxo contendo sementes de “amores-

perfeitos” ficou esquecido sob o tampo da secretária. Claude

Patalim sentou-se no cadeirão e olhou para o embrulho pensativo.

- A Sra. Cecília Lando não abdicou de nada do que herdou.

Luciano Aguiar enganou-se, ao afirmar que a governanta o

considerava um mero oportunista, caçador de fortuna ...

Com gestos lentos, guardou a embalagem numa gaveta.

Agora, tinha a certeza de ter tomado o rumo correcto da sua

decisão. Nos tribunais portugueses aplicava-se a lei, todavia, nem

sempre a justiça ...

FIM

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Palco da Vida

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I

grandiosa vivenda do sr. Rodrigo Soutelo erguia-se

nos arredores de Lisboa a escassos minutos de Queluz.

Mobilada com requinte, nada faltava aos convidados do

proprietário, sempre ansioso de agradar, proporcionando o

máximo possível de conforto e deleite aos frequentadores da casa.

Não obstante os serões serem vulgarmente preenchidos com

intermináveis jogos de cartas, o dono da casa resolveu que na

noite de São Martinho a reunião fugisse à monotonia e fosse

gozada de maneira inusual.

- Meus amigos, proponho hoje uma noite diferente das

habituais.

- Qual a ideia?

A pergunta formulada pelo Dr. Rubens Urbano, veterinário

de profissão, ecoava de um modo como quem não estava muito de

acordo com a sugestão, todavia o construtor civil Rodrigo Soutelo

pareceu ignorar o fato, e continuou:

- Cada um irá relatar um crime que haja cometido.

Os olhares estupefactos dos convidados fizeram o construtor

civil esboçar um sorriso.

- Um crime?

Álvaro Feiticeiro interrogava com a boca e com os olhos.

- Sim. Como prémio, deixarei a maior parte da minha herança

àquele que me contar o crime mais real e convincente. Como

sabem, sou viúvo, logo posso entregar-me à extravagâncias, como

a de hoje.

Imediatamente a assistência ficou em polvorosa, cada qual

tentando falar mais alto do que o parceiro, perguntando pelos

regulamentos daquele original e chorudo concurso.

- Meus senhores, tenham calma, volto a afirmar a necessidade

de serem explícitos. Cada qual poderá contar o homicídio como

lhe agradar, e todos entrarão na minha decisão final. Atenção, os

vossos crimes poderão ser fictícios, mas se um aconteceu na

realidade, esse açambarcará o primeiro lugar. No entanto, o

criminoso terá de dar todos os pormenores sobre ele, para

comprovarmos que é verdadeiro.

A

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Rodrigo Soutelo esclarecia aos seus convidados observando-

os nervosos, nos seus lugares. Durante longos segundos, nenhum

se pronunciou, nem ligaram aos dois novos criados que apareciam

na sala de estar, servindo castanhas assadas e água-pé, muito

apreciadas por altura do São Martinho.

- Mas quem começa?

A pergunta partira de Adomar Neiva, antigo industrial de

plásticos, que num dia trágico perdera todos os bens num enorme

incêndio, vivendo actualmente graças à generosidade do anfitrião.

O dono da casa percorreu com os olhos todos os convidados,

até se fixar nas feições do industrial Celestino Magalhães, homem

obeso, calvo, de lábios finos e expressão belicosa.

- Celestino, podes começar.

A chuva intensa caía na rua naquele mês de Novembro, mas

o frio lá fora contrastava com o calor vivido dentro do salão. O

ambiente era escaldante, era como um jogo em que qualquer um

procurava ganhar aquele ambicionado prémio.

II

elestino Magalhães levantou-se do sofá, olhou em redor

e passaram-se alguns segundos, antes das suas palavras

atingirem como alvo os ouvidos do atento auditório:

- O caso que vos vou relatar passou-se em África, há perto de

trinta anos. Uma noite, no Cairo, durante a minha estadia no “Isna

Hotel”, um cidadão britânico acercou-se da minha mesa estando

eu sozinho, e cordialmente sentou-se, tendo-me surpreendido a

maneira natural com que o fazia, pois não o conhecia de nenhum

lugar. Sem rodeios e aparentando uma calma notável o inglês

começou a conversa:

- Mister, quer ganhar um dinheiro extra e contribuir para o

bem da humanidade?

Se o bem da humanidade nunca foi uma das minhas grandes

prioridades, pois a dita sempre foi madrasta com a minha modesta

figura, o mesmo não sucedia com o dinheirinho que naquela

altura muita falta me fazia para regressar a Portugal. Interroguei-o

desconfiado.

C

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- Quanto?

O súbito britânico nem me deu tempo de lhe perguntar

segunda vez, colocando em frente do meu robusto nariz várias

notas de cem libras. A minha atrapalhação foi idêntica à de um

gato faminto ao se lhe colocar diante dos bigodes um caixote

cheio de peixe. Aceitei o negócio de imediato e inquiri:

- O que deseja?

- Pois bem, o recepcionista do hotel informou-me que o

senhor não está a pagar a conta do hotel, precisa de dinheiro, e

disse-me também que o senhor viajou diversas vezes ao longo do

Nilo, pois o seu negócio é de importação de artigos de artesanato

para Portugal. O meu objectivo e o da minha expedição consiste

em encontrarmos um mosquito.

Eu estava farto de encarar ingleses bêbados, mas aquele nem

cheirava a álcool nem possuía o nariz encarnado. Surpreendido,

perguntei:

- Um mosquito?

- Sim. O Aedes Aegypti

Na altura, comecei a duvidar da sanidade mental do

indivíduo. De todos os amiguinhos que eu conhecia nenhum

desejava visitar o bicharoco pelo menos enquanto houvesse um

surto de febre-amarela. O Aedes Aegypti capta os micro-

organismos, dos doentes atacados de febre-amarela e serve de

transmissor. Apenas um doente com mais de três dias com a

enfermidade não transmite a infecção a outras pessoas.

- Mas, porque não escolheram a América Central ou do Sul

para visitarem o bicharoco?

O inglês soltou uma gargalhada e mandou vir uma cerveja

para os dois, antes de responder:

- Gozamos de apoios neste país. O Egipto já foi uma colónia

britânica e a nossa expedição é financiada por um acordo de

cooperação entre os dois países. Além disso ainda temos o apoio

de uma organização não-governamental.

- Porque desejam encontrar o mosquito?

- Para ver se inventamos novas vacinas contra a febre-

amarela. Mais eficazes e duradouras.

Nessa noite não adormeci. Naquele nauseabundo quarto que a

gerência do hotel me arranjou ao não ter pago a conta, porém

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evitando que eu fosse dormir para o exterior, sonhei com

mosquitos a voarem por cima da minha cabeça e a picarem-me

todo o corpo. Na manhã seguinte o malfadado britânico e mais

cinco sujeitos mascarados de expedicionários encontravam-se no

pátio do hotel, esperando por mim e prontos a partirem.

Antes de seguirmos rumo ao nosso destino tomamos uma

vacina chamada 17-B, subimos o Nilo e atravessamos uns

pântanos, aonde demoramos um mês, após o que regressamos

com inúmeros frasquinhos transbordando de mosquitos, e cheios

de cansaço.

Regressei a Portugal e à aldeia aonde vivera com um padrasto

sempre ébrio, rico e grosseiro, que nunca me acudiu nas minhas

alturas de aflição batendo amiúde na minha mãe. A todos ofereci

lembranças e a ele em particular um souvenir que ele nunca soube

do que se tratava, nem o médico que o começou a tentar curá-lo

de uma doença misteriosa, nunca vista lá na parvoeira daquela

vila.

A cara do meu padrasto começou a inflamar-se, os olhos

ficaram com um véu e atingiu um esgotamento extremo. Passados

alguns dias entregava a alma ao Criador, depois de vomitar

substâncias negras, manter o pulso fraquíssimo e a temperatura de

um defunto.

Este crime nunca foi desvendado e acredita-se na aldeia que o

meu padrasto, depois de haver pactuado com o diabo, quebrou a

aliança mantida com o mafarrico e este último, vingou-se.

A assistência sentia-se incomodada depois de Celestino

Magalhães se calar, mas o anfitrião subitamente bateu palmas e

gritou entusiasmado:

- É verdadeiro o crime?

- Não, mas bem podia ter sido.

- Muito bem, outro orador por favor.

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III

veterinário Rubens Urbano levantou-se da cadeira,

apagou o cigarro no cinzeiro e olhou em volta para os

companheiros. A chuva fustigava os vidros da janela, contudo, a

atenção estava presa no convidado.

- O crime que vos vou relatar consiste no crime prefeito, logo

sem incriminação.

- Conta...conta que eu preciso de um assassinato assim para

matar certos trastes que por aí andam.

As palavras do anfitrião produziram uma risota geral, porém

Rubens Urbano continuou impassível, antes de continuar:

- Ainda adolescente, apaixonei-me por uma vizinha do

povoado aonde crescia. Depois do curso do liceu, os meus pais,

lavradores abastados, obrigaram-me a seguir a carreira de

veterinário.

Como a universidade se distanciava bastantes quilômetros do

povoado aonde residíamos, resolvemos casar, não obstante eu ter

17 anos e ela ser um pouco mais nova. Os meus pais não se

opuseram ao nosso enlace, contudo a tutora dela assim fez, talvez

por poder vir a perder muitas das regalias obtidas com a morte

dos pais de Luísa, a minha apaixonada.

- Como resolveram o problema?

O construtor civil Rodrigo Soutelo interrompia interessado o

amigo.

- Naquele momento nada podia fazer. Saí da aldeia desolado

e com muita pena de não podermos contrair matrimónio,

separamo-nos durante aproximadamente cinco anos, para eu

completar o curso, só nos vendo durante os raros fins-de-semana

em que eu estava livre dos meus estudos. O primeiro ano de

separação foi particularmente doloroso para ambos. Eu só dormia

após o médico me haver receitado um barbitúrico chamado

Pentobarbical que existia no mercado com o nome de Nembutal.

O Dr. Rubens Urbano interrompeu o seu relato para beber um

copo de água e a expectativa crescia no salão antes de ele

continuar:

- Pouco a pouco a calma voltou a reinar, porém a minha

vingança começou a criar forma.

O

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- Como? O dono da casa interessado no relato, interrompia

mais uma vez.

- Passados seis meses acabei de tomar os barbitúricos,

contudo resolvi dizer ao médico que eles continuavam a ser

imprescindíveis para o meu sono repousado. O médico receitou-

me durante cerca de três anos outros barbitúricos como Seconal,

Amytal e Luminal, que eu cuidadosamente guardava sem a

desconfiança dele.

- Imagino o stock.

- Um ano antes de acabar o meu curso já possuía uma enorme

quantidade de fármacos, que transportei para o meu quarto em

casa dos meus pais, fechando-os à chave num botequim comprado

previamente. Disse aos meus pais, para não levantar

desconfianças, que eram remédios para animais.

- Uma boa desculpa para não levantar suspeitas.

- Finalizei o curso, voltei ao povoado e a minha vizinha Luísa

atingia a maioridade. Podíamos portanto casar-nos, sem entraves,

pois a tutora já não tinha autoridade para impedir o matrimónio

naquele momento. O nosso ódio por aquela mulher crescera

durante os anos de separação, e só aguardávamos a altura

oportuna de podermos levar em frente o nosso plano de vingança,

engendrado há tanto tempo.

- E a oportunidade surgiu?

- Sim. Passados alguns meses depois da minha chegada ao

povoado surgiu uma doença que atacou o gado vacum. Esta

enfermidade parasitária cujo nome técnico é Actinomicosis

começa por atacar os animais e depois os seres humanos,

alojando-se os micro organismos nas membranas mucosas da

boca, em torno dos dentes cariados.

- Essa doença pode ser mortal

- Não. Apenas produz mal- estar. Cura-se com raios X,

sulfamidas e antibióticos. A tutora que ordenhava todos os dias

duas vacas no estábulo foi contagiada e para poder dormir

normalmente começou a tomar os barbitúricos prescritos pelo

médico. Escusado será eu dizer a todos que fui eu quem

contaminei os animais, pois após as núpcias tinha ido viver para

casa da Luísa e da tutora.

- Como morreu?

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- Durante o período em que esteve enferma, Luísa e eu

disfarçadamente começamos a aumentar as doses de barbitúricos

nas refeições que eu tinha guardado durante o curso. A doente

começou a melhorar fisicamente da doença, mas a debilitar-se

psicologicamente, apesar de dormir em perfeitas condições,

sarando-se da actinomicosis e deixando de estar sob vigilância

médica.

- Começou a ficar dependente dos comprimidos?

- Em dois meses habituou-se aos meus barbitúricos que

permanentemente ingeria disfarçados nas refeições, nunca mais

tomando os comprimidos de Luminal, composto de fenobarbital

existentes no botequim da casa e inicialmente receitados pelo

médico.

Todos os ouvintes da reunião tentavam adivinhar o final, de

como se desenrolaria o desenlace fatal.

- Depois de estar tremendamente habituada aos meus

comprimidos, eu e a Luísa fomos passar um fim.de.semana a um

hotel deixando-a sozinha em casa. A tutora num desses dias em

que estivemos ausente, mais débil psicologicamente, saiu de noite

da cama em estado de loucura por não conseguir dormir.

Dirigindo-se ao botequim abriu o frasco de Luminal e engoliu

todos os comprimidos. Sem ninguém para chamar ajuda acabou

por falecer no soalho, sem assistência.

Posteriormente o médico apenas passou a certidão de óbito,

nunca se apurando a verdadeira razão da insensatez da velha

senhora. Como o crime não compensa, rompi o casamento com a

Luísa pois ela nunca me perdoou o haver induzido naquele nosso

ato indigno.

Durante alguns segundos ninguém se pronunciou, mantendo-

se todos calados até que a voz do Sr. Rodrigo Soutelo se elevou:

- Esse crime é verdadeiro?

O veterinário esboçou um sorriso e acenou negativamente

com a cabeça, deixando o anfitrião continuar:

- Bem pensado de qualquer forma, apesar de fictício é um

assassínio demoníaco e inteligente. O próximo orador tem a

palavra.

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IV

urante algum tempo ninguém se manifestou, todos

vivamente impressionados com a história de Rubens

Urbano. O anfitrião decidiu-se por tomar a iniciativa e apontou o

dedo a Álvaro Feiticeiro:

- Álvaro, importas de mostrar aquilo que vales?

O novo orador levantou-se do seu lugar e impôs a sua enorme

presença à assistência curiosa.

- Para vosso sossego o crime cometido por mim não se

localizou em Portugal, mas sim numa cidade costeira do sul dos

Estados Unidos, no fim da 2ª Grande Guerra.

Quando ainda era jovem embarquei num navio à descoberta

do mundo, mais concretamente no “Last People”, um antigo

barco americano de pavilhão liberiano. Tendo um dia acostado a

uma cidadezinha das múltiplas existentes na costa oriental dos

USA. No momento do desembarque, fui abordado por um sujeito

pálido, com as bochechas rosadas e um fino bigode, falando

correctamente espanhol, que me convidou a ir conversar com ele

a um bar existente no centro da povoação.

Álvaro Feiticeiro fechou os olhos parecendo tentar recordar

os tempos da sua mocidade.

- Depois durante as apresentações o indivíduo esclareceu-me

que se chamava Black, perguntou-me se eu era racista e se

gostaria de ganhar o suficiente para a minha reforma. Naquela

altura o dinheiro escasseava. Perguntei-lhe qual o motivo para

desejar os meus serviços e a razão de me terem escolhido a mim.

Ele, sem rodeios, foi directo ao assunto.

- Desejo a morte de um mulato. Quero contratá-lo porque não

é ianque, o seu barco sai dentro de dois dias e queremos que

depois o homicida desapareça para sempre daqui da cidade.

As palavras não me soaram bem, pois se efectivamente já

fizera algumas patifarias até aquela data, nunca assassinara

ninguém. Pensativo, interroguei:

- Mas Sr. Black, por que quer a morte desse mulato?

O americano, sentado numa mesa sozinho comigo, acercou-

se mais de mim e diminuiu a intensidade da voz:

D

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- Pertenço a uma organização parecida com a Ku-Klux-Klan

e este mulato barra-nos o caminho.

- Aceito desde que receba antes do trabalho e que o golpe

seja viável, bem planeado e com o mínimo de riscos de ser

descoberto.

Apertamo-nos as mãos, entramos num automóvel estacionado

perto, percorremos alguns kilometros por entre bosques, e por fim

paramos junto a uma barraca de madeira camuflada, aonde fomos

recebidos por um sujeito de cara coberta por uma máscara de

pano branco. Penetramos na habitação, aonde cinco marmanjos

todos com os rostos cobertos se encontravam sentados em torno

de uma mesa. O Black mandou-me sentar e apresentou-me aos

companheiros, em inglês:

- Meus senhores, apresento-vos mister “Álvaro” encarregado

de matar o nosso mulato.

A partir daquele momento senti-me mal, tudo indicava não

poder retroceder enquanto guardava um saco com uma grossa

maquia em dinheiro.

- Vamos mostrar-lhe o que tem a fazer.

Conservei o sangue frio a custo, deixando-o continuar,

verifiquei a maldade do grupo. O meu interlocutor ao ver-me

guardar os dólares continuou:

- O mulato de que lhe falei na nossa entrevista percorre uma

estrada todos os dias que atravessa uma vegetação baixa. Ele

dirige um movimento de emancipação contrário ao nosso plano

de fazermos desaparecer os negros da nossa região.

- Como vou desempenhar a minha função? Não tenho arma.

- De noite, para ser mais seguro e sem testemunhas. Vamos

lhe dar uma com um sniperscope.

Fiquei na altura um pouco surpreendido devido a

desconhecer por completo como se manejava aquele aparelho,

não obstante pelo desenrolar da conversa, não duvidava que o

plano havia sido amadurecido com precaução. O Sr. Black sempre

muito atento às minhas feições, esclareceu-me:

- Sabe servir-se do aparelho e as suas características?

Respondi negativamente com a cabeça e encolhi os ombros

dando azo a ele continuar:

- Sabe algo acerca de electricidade?

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- Pouco.

O americano sorriu trocista e olhou em redor para os mariolas

porém, eles fixavam-me.

- Bem, dar-lhe-ei um breve esclarecimento sobre o

sniperscope: As ondas de rádio, luz e raios X são ondas electro-

magnéticas. Existem vários comprimentos.

Para não demonstrar total ignorância condescendi fazendo

um sinal com a cabeça.

- Exactamente.

- As ondas originárias dos raios X são muito curtas e apenas

se forem um pouco mais longas serão visíveis aos olhos humanos,

contudo se tornarem mais extensas como as de rádio, novamente

voltam a ser invisíveis. As próprias luzes, conforme o

comprimento, originarão uma cor diferente. Por exemplo, uma luz

amarela terá origem em ondas mais longas do que uma luz azul.

Eu preferia as ondas marítimas às de electricidade, pois as

últimas não consistiam no meu forte. Por isso me mantive calado

deixando o indivíduo continuar:

- As ondas de rádio viajam pelo espaço ou por terra. Se

durante a sua viagem aérea encontram um objecto, curvam-se em

volta dos contornos. Dá-se a este tipo de curvatura o nome de

difracção.

Naquele momento começava a estar aborrecido da lição, não

compreendo a correlação da minha contratação com aquele mar

de palavras. “Mister” Black notou a minha impaciência e resolveu

finalmente ir ao fundo da questão.

- Não seja impaciente, pois vou terminar. Outro tipo de

curvatura conhecido por este derradeiro nome ocorre quando as

ondas percorrem de maneira oblíqua o ar que possui propriedades

eléctricas diferentes da atmosfera que deixaram. Como diria um

especialista neste assunto “ Há mudanças nas características do ar,

nas zonas de separação entre massas atmosféricas de diferentes

temperaturas e graus de humidade". Naquela altura percebi como

deveria funcionar o sniperscope, deixei no entanto que o

americano prosseguisse:

- O sniperscope recebe a luz infravermelha invisível e

transforma-a em luz visível. Em cima de uma espingarda,

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102

proporciona oportunidade a um atirador disparar, mesmo na noite

mais escura, bastando accionar o gatilho.

- Como obterei o aparelho?

- De imediato, vamos dar-lhe um. Utilizou-se muito este

aparelho na segunda guerra mundial, e actualmente ainda se

aproveita para ajudar a aterrar aviões em noites como a próxima

em que vai cometer o homicídio. Consultamos os serviços de

meteorologia para saber a noite ideal para o assassínio.

- Após alvejar o mulato o que faço?

- Depois de disparar, foge para a cidade e enterra a

espingarda. O mulato virá de motorizada, se souber esperar e agir

com calma, ele nem saberá como morreu.

- E os senhores?

- Hoje ao fim da tarde iremos para o bar aonde estivemos,

provocaremos uma zagarata para nos conduzirem à prisão.

Passaremos lá a noite como acontece a todos os bêbados e

teremos mais tarde um álibi indestrutível.

Combinamos pormenores, fiz o reconhecimento do território

e deram-me a arma que utilizei nessa noite com êxito. No dia

seguinte pagaram-me o resto acordado. Passados dias regressava à

Europa, de onde escrevi uma carta anónima à polícia local

denunciando “Mister” Black e relatando aonde escondera a

espingarda.

Álvaro Feiticeiro acabara de descrever o seu caso quando a

voz curiosa do Sr. Rodrigo Soutelo se elevou.

- E prenderam os teus compinchas?

- Não. Mais tarde descobri que o chefe da polícia local

localizou o sniperscope, contudo ajudado pelo seu grande amigo

Sr. Black, nunca veio a descobrir a arma e o processo foi

arquivado.

- Esse crime é real?

- Não, meu querido amigo ...

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103

V

final da narrativa do Sr. Álvaro Feiticeiro possuiu o

condão de obrigar pela primeira vez naquela noite, os

circundantes da mesa a esboçarem um sorriso. O engenheiro João

Noé aproveitou a oportunidade para se erguer e conquistar a

posição de orador:

- O meu caso, por coincidência, também se passou no

estrangeiro mais concretamente durante o meu estágio numa

firma alemã fornecedora de produtos radioactivos. A empresa era

um colosso mundial no ramo e das principais fornecedoras de

sódio radioactivo, substância descoberta a partir do momento em

que os isótopos radioactivos se patentearam.

O anfitrião enrugou a testa, e curioso perguntou encostando-

se no sofá aonde se sentara:

- Qual a utilidade do sódio radioactivo?

- O sódio radioactivo misturando-se com o sangue permite

determinar a velocidade de circulação deste último no corpo

humano, beneficiando de forma directa a ciência médica.

Embolias e as arterioscleroses curam-se mais eficazmente graças

a este sistema.

O Sr. Engenheiro João Noé calou-se para avaliar pela

expressão facial de Rodrigo Soutelo se a explicação tinha sido

clara. Ao confirmar, continuou a narrativa:

- Uma manhã controlava o fabrico de um produto chamado

iodo radioactivo, muito útil no combate ao cancro da glândula

tiróide, inspeccionando os aparelhos detectores colocados nos

fatos dos empregados obrigados a trabalhar com os componentes

do produto. As máquinas baseadas em películas fotográficas e em

contadores Geiser protegiam o protoplasma no organismo do

pessoal, evitando graves danos como alterações nos cromossomas

celulares.

- Um trabalho de muita atenção?

- Sim, Rodrigo. Ao observar cada operário, contava os

roentgenios ou seja a intensidade de radiação, controlando se cada

trabalhador não recebia um volume superior a 100 roentgenios a

partir do qual estava em risco a sua saúde.

- Muito monótono, essa tua tarefa.

O

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- Um trabalho enfadonho sem dúvida e para espairecer,

resolvi sair para beber um café para me estimular. Ao voltar ao

laboratório verifiquei que o aparelho de uma moça acusava um

número de roentgenios muito superior ao desejável, sem que

ninguém se apercebesse da situação. Não perdi a calma e passado

pouco tempo a radiação baixava para os valores aconselhados.

- Aconteceu alguma coisa com ela?

- Sim, regressei a Portugal por dois anos, quando voltei à

Alemanha para uma reciclagem subordinada ao tema “Influência

dos radioisótopos de fósforo na diminuição dos glóbulos

vermelhos na policitemia e na contribuição nos casos crónicos de

leucemia”, um antigo companheiro da firma aonde eu estivera a

estagiar contou-me que a moça tivera um filho com uma

deformação congénita, ocorrendo a morte do bebé pouco tempo

depois, pois à mãe diminuíra o número de linfócicos que circulam

no sangue.

- Um homicídio involuntário por negligência.

- Assim foi. Nos meses seguintes a receber a notícia quase

enlouqueci e actualmente em muitas ocasiões amaldiçoei a minha

negligência. Este crime permaneceu sempre na obscuridade até

hoje. Sabe Deus se não preferia passar o resto dos meus dias na

prisão sem este peso na alma.

O engenheiro sentou-se absorto na sua tristeza, fixando com

olhar distante os amigos. De súbito um sorriso aflorou-lhe na cara

e exclamou:

- Felizmente nada disto se passou na realidade.

VI

música de um salão de festas em ambiente

descontraído na rua chegou aos ouvidos dos

convidados, contrastando com a tensão reinante naquela

atmosfera viciada pelo fumo do tabaco. O baile do clube

recreativo situado ao lado da casa começara a sua festa de todos

os sábados.

- General Custódio Praça não gostaria de intervir?

A

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Rodrigo Soutelo mantinha o papel de mediador. A voz

possante do militar ecoou no salão prendendo a atenção dos

presentes.

- Meus amigos, para satisfazer o pedido do Soutelo irei

relatar uma história passada no Ultramar durante a guerra

colonial.

- Muito bem.

- O nosso batalhão estacionara em Damba, o período da

missão acabava dentro de dias, eu dera folga aos soldados para se

divertirem. A certa altura uma enorme explosão estremeceu o

quartel, morrendo o meu impedido. Para os que não sabem um

impedido é um soldado que está ao serviço particular de um

oficial. Não preciso dizer que tinha nomeado para o meu serviço o

Bernardino e a escolha não fora obra do acaso.

O general abanou o charuto no cinzeiro estrategicamente

colocado em cima do braço do sofá, e continuou:

- Posteriormente nos jornais viria escrito que o jovem soldado

Bernardo Silva falecera em acidente, não se dando outro relevo ao

assunto.

Propositadamente, Custódio Praça aguardou alguns segundos

esperando pela pergunta que se impunha na ocasião. Ela dimanou

de Celestino Magalhães.

- Caro general, não houve um crime, mas sim um acidente

pelo que nos diz.

O oficial em aposentadoria na reserva sorriu para o amigo e

continuou o relato, após piscar o olho:

- O acidente não foi fortuito como poderá parecer aos mais

ingénuos, desenrolou-se conforme um plano cuidadosamente

elaborado por mim, previamente.

Um silêncio profundo instalou-se na sala só se ouvindo a

música na rua, que teimava em não parar.

- Durante a minha apresentação aos soldados componentes do

batalhão recebi uma lista com os nomes deles e descobri um

elemento de uma família rival da minha, na aldeia aonde nasci.

Esse personagem do drama a desenrolar-se nos dias seguintes

chamava-se Bernardo Silva. Quando o vi jurei matá-lo, esperando

apenas a oportunidade para levar o meu objectivo adiante.

- Mas qual a razão dessa raiva toda?

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- Por causa de uma disputa de águas. No campo os ribeiros

são um bem precioso e cada qual procura que as águas passem

pelas suas terras. Ora numa disputa mais acesa o avô do Bernardo

matou um meu irmão, com uma enxada.

- Não foi preso?

- Devido à avançada idade, cumpriu uma pena ínfima.

- Entendo.

- Pois bem, na tarde do crime entrei na caserna quando

ninguém estava. Juntei as malas dos soldados e coloquei um saco

contendo dentro cobre e uma granada pronta a explodir. Muitos

soldados traziam dos locais aonde estavam em operações de

guerra, sacos de cobre como recordação.

- Porque o fez? Com que intuito?

- Bem, para quem não sabe uma granada só explode depois

de se puxar uma espécie de anel chamado pino ou cavilha e

quando se deixa de pressionar uma espécie de braço que nós

chamamos de alavanca. Ora, apesar de retirada a cavilha, a

pressão exercida pelo cobre na alavanca impedia que ela

explodisse, só acontecendo quando alguém a retirasse de dentro

do saco. Passados poucos segundos a granada rebentaria.

Alguns segundos de suspense antecederam as palavras

seguintes do militar:

- Saí da caserna. Passados poucos minutos chamei o

Bernardo Silva e pedi-lhe para ver o que se encontrava dentro do

saco na caserna e vir dizer-me ao meu escritório. Ao retirar o

cobre e a granada, ela explodiu.

A expectativa era imensa, todos ouviam atentamente o relato

do militar.

- Depois do estrondo, saí a correr do meu escritório.

Seguiram-se momento de grande confusão deduzindo-se um

ataque inimigo sem se desconfiar do que realmente tinha

ocorrido.

- Não se descobriu a verdade?

- Um inquérito pouco consciencioso foi escrito em que

relatava que o desleixo de um soldado em guardar na caserna uma

granada provocara a sua morte repentina, chamando a atenção

para o perigo de acções similares.

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O general Custódio Praça batia com os dedos no braço do

sofá, parecia querer tocar a música que se ouvia no exterior num

piano invisível, mantendo-se por momentos calado. Bebeu em

seguida um gole de vinho verde e um arrepio passou pela espinha

dos convidados ao lembrarem-se de que o sucedido poderia

perfeitamente acontecer numa época de guerra. Ninguém se

pronunciou até ele quebrar o silêncio da conversa:

- Claro que felizmente se trata de uma narrativa fictícia ...

nada disto corresponde à verdade.

VII

lareira acesa não aquecia o ambiente gelado da sala,

os candelabros com as velas acesas retiravam de modo

ténue o fumo dos cigarros ainda acesos e atirados de forma

descuidada para os cinzeiros de alumínio. Na rua uma chuva

miudinha molhava os passantes apressados por chegarem a casa e

sossegarem do bulício quotidiano

Adomar Neiva bebeu o resto do líquido que jazia no fundo do

copo de vinho verde “Ponte de Lima” e erguendo-se penosamente

começou a narrar a sua odisseia criminal.

- O crime que vou narrar efectivamente sucedeu na realidade,

ou dificilmente alcançaria o prémio em jogo, depois de ouvir

tantos homicídios engenhosamente formulados. O caso que vos

vou relatar passou-se há cerca de 15 anos, numa pequena

povoação chamada Bizau, situada na estrada entre as povoações

de Vila Franca de Xira e da Arruda dos Vinhos.

Todos os olhos se fixavam naquele corpo frágil, magro,

esvaziado pelo tempo, que abeirando-se da janela procurava com

o olhar recordar-se de tempos longínquos.

- Poucos anos antes de vir definitivamente para Lisboa,

trabalhava arduamente no campo, recebendo uma jorna magra que

era repartida pela casa aonde sempre morei sozinho, pois

enviuvara, e uma pequena taberna que era o meu habitat

nocturno. Aos Sábados e Domingos reunia-me com vários outros

camponeses que normalmente jogavam “Rami” a dinheiro,

A

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ansiosos por esquecerem as vicissitudes da semana, no entanto,

raramente os lances de dinheiro atingiam verbas avultadas.

- Uma forma de passar o tempo.

O anfitrião interrompia o diálogo do amigo, contudo o orador

pareceu ignorá-lo, tão absorto estava na sua narração.

- Uma noite depois de ingerirem demasiado álcool, quatro

jogadores começaram a arriscar quantias pouco comuns,

proporcionando momentos de suspense aos restantes

frequentadores do estabelecimento. Um deles acabou por ganhar

uma quantia invejável e houve quem suspeitasse de tanta sorte,

porém, o certo é que ninguém reclamou.

Adomar Neiva fazia um esforço enorme, as palavras saiam da

sua boca com esforço, recordando aquela noite fatídica.

- Naquele momento engendrei um plano tenebroso. Saindo

daquele antro de vício, fui buscar uma antiga espingarda de caça

do meu sogro, que ele deixara quando faleceu, para fazer uma

emboscada àquele a quem a sorte tinha sorrido durante o jogo.

Tive o cuidado de calçar umas antigas botas também do meu

sogro, que era mais corpulento do que eu, para o caso de a polícia

procurar pegadas. Iriam ver um número de calçado maior do que

o meu, não suspeitando de mim.

Um dos dois criados encheu o copo do orador, sem deixar de

escutar o enredo.

- À hora de fechar a tasca, cada um seguiu para as suas

residências. Eu como habitante do lugarejo, conhecedor dos

atalhos da aldeia, previ por onde passaria o feliz contemplado

com o prémio do jogo. Escondi-me atrás de uma moita e passados

alguns minutos, debaixo de um temporal imenso, aparecia o

jogador a quem a sorte escolhera para companheira nas cartas,

acompanhado de um amigo.

- Mataste-o?

- Disparei um tiro e ele caiu de imediato, o outro começou a

correr fugindo do local. Quando me acerquei dele verifiquei que

ainda respirava. Olhou-me com terror enquanto eu lhe furtava a

carteira.

- Ninguém o auxiliou depois?

- Pensei que o amigo fosse buscar assistência e eu queria sair

do local o mais depressa possível. No dia seguinte informaram-

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me da sua morte e que a polícia prendera o acompanhante da

noite fatal, não descobrindo rasto do dinheiro roubado.

Olhando os circundantes, Adomar Neiva sentou-se e respirou

fundo antes de continuar:

- Depois deixei passar um tempo, até os acontecimentos

esfriarem e, passado cerca de ano e meio o meu amigo Rodrigo

Soutelo perguntou-me se eu não queria ir trabalhar para uma

oficina que ele tinha perto da povoação. Em vez de ir para lá

trabalhar, resolvi a comprar com o dinheiro roubado. Para não

levantar desconfianças, disse que tinha recebido o pecúlio da

herança de um tio que havia morrido no Brasil.

O anfitrião acenou afirmativamente aos circundantes.

Contudo não interrompeu o orador:

- Passados dois dias, depois de montar a oficina, ela

incendiou-se por completo perdendo o dinheiro que roubara,

pequenas poupanças empatadas nela e ainda fiquei devendo um

empréstimo. Não tinha nada no seguro, fiquei sem a oficina, em

situação desesperada, pois tinha-me despedido do meu patrão. Até

este momento apenas tenho uma miserável pensão de

sobrevivência e a solidariedade do meu benemérito.

Adomar Neiva apoiou a cabeça nas duas mãos. Todos

acreditavam no tremendo esforço que fizera para reviver a

memória e relatar os acontecimentos passados.

Um silêncio absoluto mergulhara a sala por um longo

momento, sendo quebrado depois pelo dono da casa que

observava atento as feições dos convidados e criados.

- Meus amigos, a escolha está feita, tendo em atenção a

veracidade deste crime, no entanto, antes de encerrarmos este

capítulo do nosso excelente serão e bebermos um óptimo vinho

do Porto que me deram, quero acrescentar umas palavras para

todos ouvirem com a máxima atenção.

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VIII

anfitrião ergueu-se e a sua voz aparentemente calma

penetrou nos ouvidos tensos da assistência:

- Sendo filho de um abastado proprietário rural, passei a

minha mocidade no meio de vinhas e pomares, sem pretensões,

alegre, mantendo relações cordiais com os mais folgazões da

aldeia aonde nascera.

Um dos criados aproximou-se de Rodrigo Soutelo para

servir-lhe mais vinho, porém ele impediu o acto com um gesto.

- Mais não, senhor Wang-Ho. Como dizia, de trabalhador

cumpridor passei aos poucos a possuir como objectivo divertir-

me, o máximo possível. Em pouco tempo tornei-me um alcoólico

desaparecendo-me por completo a personalidade. Subjugado

mentalmente por amigos, passava as noites numa taberna de um

povoado próximo de minha casa, contudo, suficientemente longe

de casa do meu pai para que ele não descobrisse o sítio aonde ia

diariamente.

- Que coincidência, outra história com taberna.

O general Custódio Praça intervinha com a sua voz de trovão.

Rodrigo Soutelo continuou, ignorando por completo a afirmação

do militar:

- Com o vinho veio o delírium tremens e começaram-me a

surgir visões perdendo gradualmente todo o sentido do tempo e

do espaço. Em várias ocasiões passei os dias no hospital, aonde

me obrigavam a tomar antabús para deixar de beber, nunca

surtindo qualquer efeito e muito menos me curei. As noites

apenas, as passava calmas, quando me receitavam tranquilizantes

como a cloropromazina.

- Um drama, um caminho sem retorno.

- Meu pai, cada dia mais preocupado com a minha saúde e

sabendo que eu adorava mecânica de automóveis, montou-me

uma pequena oficina pensando que com o entusiasmo eu alterasse

a minha conduta.

- Tinha de estar preocupado.

- Uma noite tempestuosa, tendo eu ido à taberna uma vez

mais e estando meio ébrio, sendo o último cliente a sair. Estava já

no exterior e preparando-me para regressar a casa, quando ouvi

O

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um disparo do local por onde antes tinham debandado dois

trabalhadores.

- Foi ver o que era?

- Sim, cautelosamente dirigi-me pelo trilho e passada meia

centena de metros vi um vulto no chão. A noite estava negra, sem

luar. Aproximei-me dele para ver o que tinha acontecido,

deparando-me com uma cena aterradora, pois o homem caído

estava com o peito todo ensanguentado. Quando abaixei-me ele

segurou o meu braço, disse-me o nome do assassino e fez-me

prometer que o vingaria, voltando de seguida a cabeça para o lado

e morrendo na minha presença.

- Que horror, deve ter sido muito traumatizante.

- A partir daquele instante a minha vida mudou

completamente e de forma radical. Todas as noites voltava à

taberna, não era para me embriagar apenas vingar a morte daquele

infeliz a quem eu prometera que o faria.

- O homicida também ia à taberna?

- Sim, o assassino era o aqui presente Adomar Neiva.

Um murmúrio de vozes espalhou-se pela sala. O visado não

teve qualquer reacção olhando espantado para o Rodrigo Soutelo.

- Sabia quem era o homicida. Não tinha planos para a

vingança até o meu pai me doar, pouco tempo depois, uma

oficina. Nessa altura arquitectei o meu plano de forma, a que

cumprisse a promessa e ainda saísse beneficiado.

O espanto era geral no salão, a música na rua começou de

novo a ouvir-se, porém todos a ignoravam por completo,

embebidos nas palavras do narrador:

- Passado um tempo propus a venda da oficina ao Adomar

Neiva que ele aceitou de imediato, dando-me todo o dinheiro que

tinha e ainda contraindo um empréstimo para completar o

montante exacto da venda. Na altura da transacção não disse ao

meu pai que tinha efectuado o negócio.

Um sorriso aflorou nos lábios finos do dono da casa,

enquanto olhava de soslaio para o homicida.

- Dois dias depois de concluída a venda, tendo ainda as

chaves, sabendo que podia se entrar na oficina sem qualquer

problema, resolvi incendiá-la de modo a cumprir a vingança

prometida.

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112

Adomar Neiva deu um salto do lugar aonde se sentara, sendo

prontamente seguro pelos dois criados que estrategicamente se

tinham colocado perto dele. O anfitrião ignorou o fato e

continuou:

- Meu pai, sabendo do incêndio da oficina e desconhecendo

que eu já não era o proprietário, deu-me dinheiro para comprar

outra. Acabei por não o fazer, pois já tomava conta dos negócios

da propriedade com total satisfação do meu progenitor. Era com

um sorriso, desta vez triste, que o anfitrião brindava os

convidados, contudo ninguém tirava os olhos do homicida que se

debatia para soltar-se dos dois criados que o seguravam.

- Quero agradecer a todos vós meus amigos pelo vosso

desempenho e de terem aceite, como atores, este papel que vos

coube de contarem cada um o seu crime. Sei que são atores

amadores de teatro, mas portaram-se como verdadeiros

profissionais nesta farsa, para que o homicida revelasse o seu

crime. Quero ainda tornar público a minha gratidão ao inspector

Novais e ao seu amigo Wang-Ho, por terem acedido a vestirem-se

de criados e estarem presentes para prenderem o homicida, após a

sua confissão.

Durante um breve período ninguém se pronunciou, deixando

o polícia e o amigo algemarem Adomar Neiva e dirigirem-se até a

porta da saída. Antes de se afastarem, o dono da casa lhes dirigiu

a palavra obrigando-os a voltarem a cabeça:

- Meus senhores, muito obrigado.

IX

m grande letreiro iluminado na parede externa do

teatro anunciava a peça “Palco da Vida”. A peça

estreada naquele dia era o mais recente sucesso do panorama

cultural lisboeta.

Em frente ao café, duas senhoras conversavam depois de

haverem assistido à estreia.

U

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- Laura, como lhe digo a peça é engraçada mas não acredito,

como nos disseram, que todo o enredo se baseou em fatos

autênticos.

Numa mesa próxima, dois sujeitos bebiam café, e

casualmente ouviram as palavras da senhora.

- Inspector Novais, sabe-me dizer aonde acaba a fantasia e

começa a realidade?

- Não sei amigo Wang-Ho. Em abono da verdade, não sei.

- Voltou a falar com o Sr. Rodrigo Soutelo?

- Sim. Falei com ele a semana passada.

- Ele vai preso por ter incendiado a oficina?

- Não. Esse crime de incêndio prescreveu, ao contrário do

crime de homicídio. A prescrição dos crimes é de acordo com a

gravidade e um homicídio demora muito mais tempo a prescrever

que um ato de incendiário. Adomar Neiva irá passar uma longa

temporada na prisão.

- O Rodrigo vai deixar a fortuna como prémio?

- O senhor Rodrigo Soutelo não tem bens pessoais. Todos os

bens imobiliários e valiosos que tinha, colocou em nome dos

filhos. O assassino pode ter confessado o crime para ganhar o

prémio, porém acaba por praticamente nada receber.

Pagando as despesas dos cafés os dois amigos deixaram a

esplanada, para darem um passeio pelas ruas de Lisboa. A

multidão aglomerava-se nas ruas, as montras eram paragens

obrigatórias de turistas dos mais diversos credos e raças, enquanto

os alfacinhas corriam de volta às suas moradas ansiando por

descanso. Uma noite igual a tantas outras.

FIM

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Regresso do destino

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117

Introdução

onge da Lisboa da “Arte Nova” dos princípios do

século, ergue-se uma outra cidade, diferente e mais

moderna, inserida numa mesma metrópole.

Não figuram aí os floreados “Rócócó” construídos em pedra

ou gesso, nem as habitações convidam o viajante a confraternizar

a sua sensibilidade numa arte rebuscada e monumental. Tudo é

austero, simples e singelo, como as almas que ruminam dores e

esperanças infundadas, na bruma das suas existências.

Velhos edifícios de tijolos e argamassa, cujas fachadas

corroídas pelo tempo observam as árvores desnudadas, que

tentam ocultar um lago imundo coberto de lama e fungos. Mais

abaixo uma igreja, teimosamente resiste aos séculos e aos

homens.

Sob o seu olhar inquieto, velhas tabernas e casas de pasto

foram sucessivamente transformadas em cafés e bancos. É tempo

de mudanças ... é cenário de crime.

I

noite amena convidava a uma passeata pela esplanada

do “Leão Tosco” situado no Jardim das Hortenses, nos

arredores de Lisboa.

Na esplanada da cervejaria aparecem os mais curiosos tipos

desta humanidade, que observados com atenção, certamente

constituiriam modelos com quem se pudesse passar uma noite

agradável. Ao lado de “jeans” e camisolas largas ordinárias,

surgem ternos de riscas elegantes aconchegados por sóbrias

gravatas, dando um toque de personalidade aos proprietários.

Por normas sociais e morais rígidas, o som originado pelas

conflituosas conversas nunca deverá incomodar os calmos leitores

dos vespertinos, que entre um café e um pastel de nata, lêem a

apreciação partidária do último Orçamento Geral do Estado.

O Sr. Wang-Ho não consistia excepção, e debruçava-se

interessado sobre a crítica severa do conservador Dr. Daniel

O´Hara. O chinês, na noite anterior, assistira à entrevista do

L

A

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conceituado político na televisão, mas as palavras mordazes,

brotadas com perícia, não puderam ser analiticamente

interpretadas por entre o movimento do seu snack-bar “Lhu-Lhu”.

Finalmente o seu dia de folga chegara e Wang-Ho havia

comprado o jornal “Nova Liberdade”, aonde sabia de antemão

que a entrevista estaria transcrita na totalidade.

O ilustre político recordara a necessidade do uso dos

instrumentos necessários, como a obrigatoriedade da libertação

dos recursos monetários, subjacentes à prática da realização do

plano de modernização do país. Sem uma conscientização plena

da população, e do Funcionalismo Público em particular, o

desenvolvimento sócio/técnico não lograria atingir a melhoria

estrutural esperada pelos utentes.

A hipnótica concentração de Wang-Ho quebrou-se face ao

olhar indiscreto de um indivíduo espadaúdo, de camisa de manga

curta, que sem cerimónias se sentara na cadeira oposta a sua

mesinha metálica.

- Quais as balelas de hoje?

O inspector Novais cumprimentava deste modo ríspido e

indiscreto o seu velho amigo oriental. Sabia contudo, de antemão,

que seria recebido de forma cordial.

- Estava lendo a entrevista do Dr. Daniel O´Hara sobre o

Orçamento Geral do Estado, escrita no jornal. Um político

brilhante, não compartilha a minha opinião?

O detective da Brigada de Homicídios da Policia Judiciária

de Lisboa moveu a cabeça negativamente, em desacordo.

- Não me parece muito inteligente.

Wang-Ho levantou os olhos e observou as antigas árvores

rodeando a piscina prateada pelo luar. A beleza sombria da água

contrastava com a alegria e a vida dada pela pequenada durante o

dia. O policial, alheio ao deslumbramento do amigo, reatava o

monólogo.

- O Dr. Daniel O´Hara acarreta neste momento uma forte

suspeita de homicídio.

Wang-Ho desceu repentinamente do castelo de nuvens,

dirigindo um olhar inquiridor ao inspector Novais.

- Como sucedeu isso?

O agente bebeu um gole de café antes de relatar.

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- Um crime confuso ocorrido à noite passada, por volta das

20 horas.

- Impossível, a essa hora o Dr. Daniel O´Hara dava a

entrevista em directo pela televisão.

- As impressões digitais existentes na faca de abrir livros, que

serviu de arma do crime, são dele. Confesso ele possuir um álibi

de peso, contudo qual a verdade?

Wang-Ho não respondeu, enquanto o inspector Novais se

levantava e despedia-se.

- Amanhã, espero que me acompanhe à casa dele, passo na

paragem dos autocarros na Rua de São José pelas 14 horas. Fico à

sua espera.

II

Rua de São José situada no centro de Lisboa constitui

um dos atractivos para muitos estrangeiros, desejosos

de conhecerem os domicílios dos resíduos da velha nobreza

cosmopolita.

Espaçosas e robustas vivendas ladeiam uma estrada calcetada

e a hera ocupando as paredes, testemunha o cuidado peculiar dos

servidores desses chalés apalaçados.

A moradia da família O´Hara em nada devia dm majestade e

casta às suas congéneres vizinhas. Ao transpor o portão, o

visitante subia um carreiro de pedra ladeado de erva viçosa, de

onde emergiam espaçadamente canteiros de flores em múltiplos

jogos de cores.

Uma jovem fardada convidou Wang-Ho e o inspector Novais

a penetrarem num salão ricamente recheado, com chão de ladrilho

e possuindo uma lareira de mármore, ao lado do qual se podia

distinguir uma garrafeira. Um homem calvo e de óculos,

refastelava-se num sofá, lendo calmamente o jornal e bebendo

num grande copo de cristal, um líquido acastanhado. Ao se

aperceber da chegada dos visitantes levantou-se e afavelmente

apertou-lhes a mão, convidando-os a sentarem-se.

- Acompanham-me num whisly? Berta, traga-me gelo, por

favor ...

A

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O Dr. Augusto O´Hara aparentava cinquenta anos e possuía a

segurança de trinta anos ao serviço da área de Medicina. Mais alto

do que o seu irmão Dr. Daniel O´Hara, nas suas feições retalhava-

se mais a dureza da vida.

O inspector sentou-se numa cadeira minuciosamente

trabalhada, enquanto o asiático escolhia um confortável sofá.

- Dr. Augusto O´Hara, chamo-me Novais, sou da Policia

Judiciária e encarregaram-me de investigar as circunstâncias e

pormenores relacionados com o assassínio do seu mordomo, Sr.

Aníbal Costa. Aonde se encontrava na altura do homicídio?

- Poucos dados lhe poderei fornecer. O Aníbal Costa

acompanhava-nos há anos. Esta vivenda, herdei-a com o meu

irmão Daniel O´Hara após a morte da nossa mãe Helena,

passando a vivermos sozinhos. Posteriormente, convidamos uma

tia para vir habitar connosco, mas sendo muito doente e

necessitando de cuidados especiais, arranjamos para cuidar dela a

Sra. Henriqueta Costa, pessoa de reconhecida competência como

enfermeira, passando o seu marido Aníbal Costa a desempenhar

as funções de mordomo e motorista. Foi com muito desgosto que

tomei conhecimento do crime, pois considerava-os como família.

O nosso jardineiro, o Sr. Joaquim Rego e esta jovem, Berta

Carica, trabalham para nós mais recentemente.

- Ninguém mais vive na habitação?

Não, senhor inspector. Na altura que se desenrolou o crime,

acabava de deixar o meu irmão nos estúdios da televisão e

regressava a casa. Encontrei a Berta com o saco cheio de compras

dando-lhe boleia. Ao chegarmos à moradia vi o Sr. Aníbal Costa

sangrando, com uma faca de abrir livros suja de sangue ao lado.

Comuniquei de imediato para a polícia.

- Notou algo mais de estranho na sala, algum objecto

desarrumado?

- Nada mais de anormal. Após uma breve análise confirmei

que o nosso mordomo morrera há cerca de breves minutos, pelos

livores ou acumulações de sangue no cadáver. Penso que o

médico especialista em Medicina Legal coincide comigo, quanto

à hora que ele morreu. Pouco passava das 20 horas.

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121

O agente da Brigada de Homicídios coçou o nariz, que uma

mosca tinha escolhido por alvo, antes de novamente interrogar o

anfitrião.

- Sim, confirma a morte por essa altura. O médico legista

afirmou a existência de um narcótico, nomeadamente morfina, no

interior do estômago. Sabe qual é o motivo?

- Receitei-lhe um fármaco à base de opióides, pois considero

um bom analgésico. Devido a fortes discussões com a esposa, o

Sr. Aníbal Costa tinha dificuldade em adormecer, e

consequentemente em descansar, de tal forma que dormiam cada

um em seu quarto.

- Essas discussões eram frequentes?

- Sim. Aproveitando certamente o dia de folga de anteontem,

o falecido aproveitou o tempo para descansar de 3 a 6 horas,

tempo de duração dos efeitos da hipnolamina. Sublinho que o

vosso médico confirmou a inexistência de lesões orgânicas da

responsabilidade da morfina, ou outro qualquer narcótico.

- Após a recolha das impressões digitais no objecto do crime

verificou-se serem do Dr. Daniel O´Hara. Qual a sua opinião?

O Dr. Augusto O´Hara encheu o copo de “scotch”, colocou

dentro duas pedras de gelo e encostou-se às costas do sofá,

logrando deste modo ganhar preciosos segundos, antes de

responder.

- Penso sinceramente na existência de alguém a querer

comprometer o Daniel, sem o conseguir, pois ele pode ter

utilizado a faca horas antes do crime, para abrir os envelopes do

correio, e o assassino ter-se utilizado de luvas. Felizmente o seu

álibi não deixa margem para dúvidas a ninguém, da sua inocência.

Reafirmo novamente que partilho da opinião do vosso médico

legista de que o crime se consumou breves minutos depois das 20

horas, e nessa altura o meu irmão aparecia em directo diante de

milhares de espectadores.

O inspector Novais observava a face inexpressiva de Wang-

Ho, retomando de seguida o inquérito.

- Poderia alguém de fora cometer o crime. Estava alguma

janela aberta?

- Duvido. Ao anoitecer soltamos os cães pelo jardim, e

nenhum deu sinal de alarme, ladrando, segundo os vizinhos. Já

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confirmei isso com os vizinhos e os próprios senhores também

poderão comprovar as minhas palavras.

O policial olhou para a porta do salão, e virou-se para o Dr.

Augusto O’Hara.

- Importa-se que eu troque algumas palavras com a Sra. Berta

Carioca?

O médico não respondeu. De imediato, agarrou num sino

metálico em forma de camponesa, e começou a badalar. Passados

alguns segundos a moça que recebera os investigadores aparecia,

limpando as mãos a um avental branco.

Berta Carioca, de cabelo louro, grossas sobrancelhas e olhos

castanhos amendoados, trajava toda de negro, aparentava perto de

trinta anos. O seu rosto apresentava traços correctos e as suas

maneiras demonstravam educação. O inspector Novais convidou-

a a sentar-se o que ela fez com relutância, e só após um aceno

afirmativo do dono da casa.

- Aonde se encontrava quando ocorreu o crime?

A serviçal esfregou as mãos, agarrou com força os braços do

cadeirão antes de responder. Estava nervosa, e isso era visível

naquele rosto rosado.

- Eu regressava das compras quando o Dr. Augusto O´Hara

passou por mim e me deu boleia para casa. Os senhores são

ambos solteiros e todas as compras estão a meu cargo. A Sra.

Henriqueta Costa passa o tempo a fazer companhia à Sra.

Clementina Pascoal e pouco ou nada se ausenta.

- Há quanto tempo veio para esta casa?

- Encontro-me aqui há já cinco anos. Vim a convite do Dr.

Augusto O’Hara, que me conheceu no hospital aonde trabalha, e

considero todos os que aqui vivem neste momento como se

fossem família.

- Viu o cadáver?

- Entrei no quarto com o Dr. Augusto O´Hara e contemplei o

Sr. Aníbal numa poça de sangue.

- Quem possuiria motivos para o matar tão cruelmente?

Berta Carioca hesitou antes de responder. Naquele momento,

mais calma, respondia sem tirar os olhos do patrão.

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- O sr. Aníbal Costa discutia muitas vezes com a Sra.

Henriqueta Costa, porém não ouso afirmar que seja ela a

criminosa.

- Esteve a trabalhar noutra casa antes de vir para esta

moradia?

- Nunca. Com a morte do meu irmão empreguei-me pela

primeira vez aqui para ganhar o meu sustento.

- Existe algum dado importante que ache necessário anexar a

este caso?

- Nada mais de relevante acrescento.

O inspector Novais levantou-se, sendo acompanhado pelos

restantes, para continuar o inquérito junto dos outros inquilinos. O

Dr. Augusto O´Hara tomou a dianteira, subindo uma escada em

caracol que terminava num vasto corredor. Os quartos ocupavam

a quase totalidade do primeiro andar.

Numa sala, com um cheiro pestilento a antibióticos e outros

fedores, encontravam-se duas senhoras de meia-idade. Uma

robusta mulher vestida de cinzento conversava com uma senhora

pálida, em camisa de noite e roupão, enquanto inconscientemente

bordava e ouvia o noticiário da telefonia.

III

Sra. Clementina Pascoal aparentava ser a “eterna

doente” padecendo certamente de hipocondria. A luz

mórbida reflectia-se numa pele branca, ramificada de veias

salientes devido à magreza, dir-se-ia recolhida de um dos filmes

de terror, abundantes nos cinemas da capital. A voz roufenha

pronunciou-se após as identificações dos investigadores.

- Chamo-me Clementina Pascoal. Esperava os senhores e

penso que estão incumbidos da investigação da morte do nosso

querido e estimado Aníbal. Façam o favor de se sentarem.

O inspector Novais tossiu, sentou-se acompanhado de Wang-

Ho, enquanto o médico abria a janela e encostava-se a uma parede

do quarto.

- A senhora desculpe o incómodo, no entanto são necessários

os dados com vista ao esclarecimento completo das circunstâncias

A

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em que se desenrolou o assassínio. Pode-me indicar todos os seus

passos no dia e mais concretamente, à hora em que foi cometido o

trágico desenlace?

- Certamente. Nesse dia e nessa hora, conversava com a Sra.

Henriqueta Costa, aqui presente, como faço inúmeras vezes desde

que a tomei ao meu serviço.

- Nenhuma das senhoras se ausentou pelas 20 horas?

Clementina Pascoal pareceu chocada com a pergunta, como

se estivesse acordando de um pesadelo. Pôs a mão no peito em

sinal de sofrimento.

- Encontro-me muito doente. Actualmente habito com os

meus sobrinhos por caridade. Bondosamente acolheram-me em

casa, empregando a Sra. Henriqueta Costa para cuidar de mim.

Ser-me-ia impossível devido a minha doença, ausentar-me, e do

mesmo modo testemunho que a minha dama de companhia não se

ausentou durante essa hora.

- Há quanto tempo mora nesta casa?

- Praticamente desde a morte da minha irmã Helena O’Hara,

que morreu no hospital aonde trabalha o meu Augusto. Apesar do

amor que tenho aos meus adorados sobrinhos, nunca poderei

substituir um amor de mãe.

- Que doença é que a senhora padece?

- São os meus ossos, que desde muito nova não possuem a

calcificação normal. Para me deslocar preciso do amparo de outra

pessoa.

- Viu a entrevista do seu sobrinho na TV?

- Claro que sim. Jamais iria perder o noticiário e ver o Daniel

a ser entrevistado em directo. Nem tomei os meus remédios desde

a hora do almoço, para não cochilar e ver com a máxima atenção

todo o programa, na íntegra.

- Foi à hora do vosso jantar?

- Sim, pelas 20 horas. Temos no meu quarto sempre muitas

peças de fruta que são o nosso jantar. Estão em cima daquela

mesa. Com a nossa idade não é conveniente comer muito nessa

refeição.

- Afirmativo. O Dr. Daniel O´Hara veio aqui despedir-se

antes de abalar para os estúdios?

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- O meu sobrinho é uma pessoa muito atenciosa que me cobre

de carinhos, vindo despedir-se de mim cerca de meia hora antes

de começarem as notícias. Seriam 19 horas e 30 minutos. Deu-me

um longo abraço aqui no quarto, eu e a Henriqueta fomos ainda

posteriormente dizer-lhe adeus à janela e o vimos a seguir de

carro sozinho a caminho dos estúdios. Não imagina o orgulho que

senti em o ver, a ele que conheci de pequeno, tornar-se uma figura

tão popular e respeitada por toda a gente.

O policial enfrentou Henriqueta Costa que durante o diálogo

anterior se mantivera hirta e atenta.

- Desculpe a languidez da conversa, mas podia confirmar as

palavras da Sra. Clementina Pascoal?

- Certamente, mesmo quando uma de nós vai ao WC nunca

deixamos de nos vermos uma à outra, pois certamente como

reparou ela tem um privado aqui junto ao quarto. Sempre que

necessitamos lá ir a porta fica sempre aberta.

- Reparei sim, minha senhora. Em que circunstâncias veio

trabalhar aqui para esta casa?

- Conheci o Dr. Augusto O´Hara no hospital e sempre o

admirei como um brilhante cirurgião, dotado para a profissão. Ele

ofereceu-me este emprego, e como o meu esposo estava

desempregado na altura eu aceitei de imediato, devido às

excelentes condições dos salários e benesses.

- Segundo ouvi dizer, discutia frequentemente com o seu

marido.

- Exactamente, no entanto nunca cheguei ao extremo de lhe

desejar a morte.

-Alguma das senhoras pensa em alguém com motivo

suficientemente forte para um crime?

As duas senhoras mantiveram-se impassíveis, sem responder.

Abandonando o quarto, desceram a escadaria, e o inspector

Novais dirigiu-se ao Dr. Augusto O´Hara.

- Seria possível a existência de um lapso de tempo no qual a

sua tia se encontrasse inconsciente durante pelo menos cinco

minutos?

- Com toda a certeza. Para lhe acalmar as dores a Sra.

Henriqueta Costa injecta frequentemente a minha tia com

“Sedantocil”, sendo este produto um anestesiante. O sintoma de

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abstinência desta droga resulta em apatia, longos períodos de sono

e desorientação.

Os três homens saíram da casa apalaçada em direcção ao

jardim e encaminharam-se na direcção de um personagem

taciturno, que com carinho especial regava um canteiro de

hortenses.

O jardineiro Joaquim Rego olhou de soslaio para o crachá do

agente da Brigada de Homicídios, e sem interromper a tarefa,

começou a falar:

- Senhor inspector, apenas lhe posso referir a inexistência de

qualquer álibi da minha parte, pois no dia e hora que mataram o

meu amigo Aníbal Costa estava sozinho e entretinha-me a

escrever uma carta ao meu pai, que está há longos anos no Brasil,

dando cumprimento a um costume que consiste em redigir-lhe

uma carta todas as semanas.

O inspector Novais enfiou as mãos nos bolsos e olhou para

uma árvore frondosa à sua frente.

- Nesse caso confirma que não tem qualquer álibi?

- Infelizmente, não.

- Tem a chave de casa?

- Não. Quando preciso das ferramentas para o jardim procuro

no anexo, junto à garagem. Lá é que estão a enxada, a tesoura de

poda, os fertilizantes, remédios para as pragas, etc..

- Viu o Dr. Daniel O’Hara e o Dr. Augusto O´Hara saírem de

carro a caminho dos estúdios da televisão?

- Não. O meu horário de trabalho é das 9 horas da manhã até

às 19 horas da tarde, com uma hora no meio para almoçar. Eu

nesse dia saí cerca de 10 minutos antes do horário normal, para

adquirir uns envelopes no Centro Comercial aonde costumamos

procurar os bens que precisamos. Ele costuma encerrar pelas 19

horas, e eu não queria deixar de fazer a minha compra.

- A que nível se estabeleceram as relações entre a Sra. Berta

Carica e o casal Costa?

- A Berta Carica simpatizava particularmente com o Aníbal

Costa, havendo uma rivalidade permanente com a Sra. Henriqueta

Costa. Penso que a Berta procurava que ele se divorciasse da

Henriqueta, para terem uma relação mais próxima, porém ele não

gostava dela no sentido amoroso e rejeitava-a. A Berta e a

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127

Henriqueta como calcula não discutiam, no entanto o

relacionamento resumia-se ao indispensável.

- O senhor, segundo ouvi dizer, possuía uma profunda

amizade pelo defunto. Nalguma conversa ele demonstrou receio

de ameaça que o preocupasse?

- O meu amigo raramente falava da sua vida privada, contudo

era pública a pouca harmonia do casal.

- Seria suficiente para um assassínio?

- Não.

Joaquim Rego abanava negativamente a cabeça, peremptório,

dando ênfase as suas palavras.

- Jamais! Isso nunca.

IV

conhecido advogado Dr. Daniel O´Hara, membro do

partido Conservador, possuía o escritório numa das

mais movimentadas ruas da Baixa Pombalina. Num prédio antigo,

entrava-se por uma escada de madeira em cujas paredes se

sobressaíam azulejos, representando cenas de caça em azul e

branco. Disfarçadamente notavam-se diversas regalias da

actualidade, como o sóbrio elevador, a condizer com o ambiente.

O advogado delicadamente recebeu os dois amigos à porta da

entrada, dispensando uma dama com borbulhas na face, sentada

estrategicamente a uma secretária no hall da entrada do escritório.

O ruído de automóveis e autocarros constituía uma permanente

tortura para quem ainda não se habituara ao intenso tráfego.

- Façam o favor de se sentarem.

O causídico apontava duas cadeiras colocadas no meio da

sala à frente da sua secretária de mogno, para onde se dirigiu

sentando-se, assumindo uma atitude de autoconfiança.

O inspector Novais puxou a sua cadeira para a frente, antes

de começar o inquérito.

- A minha presença aqui, como já deve calcular, relaciona-se

com a morte do sr. Aníbal Costa.

Daniel O`Hara respondeu com a calma de quem já antevira

aquele diálogo, e com a certeza das respostas estudadas.

O

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-Lamento profundamente a morte do meu mordomo e até ao

homicídio julgava-o sem inimigos. Foi trabalhar com a Sra.

Henriqueta Costa, sua esposa, para a minha casa e sempre o

considerei uma pessoa muito cumpridora das suas tarefas.

Wang-Ho observava a diferença física existente quando o

Daniel O´Hara aparecia na televisão e naquele momento dentro

do escritório. No entanto a delicadeza e a fácil comunicação não

desiludira o chinês.

- Escuso de lhe perguntar aonde se encontrava quando da

ocorrência do crime. Mas como explica os vestígios das suas

impressões digitais na arma do crime?

-Sinceramente não compreendo. Felizmente possuo um álibi

indestrutível, no entanto penso que alguém me procura

comprometer com o homicídio. Todos lá em casa sabiam que

aquela faca se encontrava sobre a minha escrevaninha, no meu

escritório, e servia para separar as folhas coladas dos livros.

Durante a tarde a utilizei para abrir alguns envelopes.

- Possui inimigos?

- Os advogados só existem devido à discórdia e tomam

sempre um partido.

- Recebeu alguma visita à hora do crime, nos estúdios?

- Estava a ser na altura entrevistado. O meu irmão trouxe-me

ao edifício da televisão, e por volta das 20 horas acabou por me

deixar.

- Suspeita de alguém que tenha cometido o crime?

- Não ouso acusar ninguém.

Delicadamente o Dr. Daniel O’Hara acompanhou Wang-Ho e

o agente da Brigada de Homicídios à porta do seu escritório.

Carregou num botão chamando o elevador, que desceu

penosamente, rangendo.

Em segundos os amigos já encontravam-se na rua e

caminhavam silenciosos, parecendo pouco se importarem com os

encontrões em meio à multidão. Com um sussurro o inspector

despediu-se do companheiro e apanhou um táxi.

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129

V

snack-bar “Lhu-Lhu” encontrava-se à tarde

praticamente sem clientes, ainda desarrumado devido

à enchente e turbulência da hora do almoço. Wang-Ho varria por

baixo de uma mesa, quando sentiu uma mão por cima do ombro.

- Como está o meu amigo?

O oriental inclinou a cabeça, acenou e puxou uma cadeira

para o visitante se sentar.

- Bem, e o senhor inspector Novais? Afinal, descobriu a

identidade do criminoso?

O agente da Brigada de Homicídios olhou desconfiado para o

oriental, desaparecendo-lhe de imediato o sorriso mantido até ao

momento.

- O crime foi cometido pela Sra. Henriqueta Costa pois fruía

o motivo e a oportunidade. O álibi dela, fornecido pela Sra.

Clementina Pascoal, não goza de credibilidade devido às drogas

contidas nos remédios.

Wang-Ho começou a limpar a superfície da mesa junto do

companheiro com um pano, esforçando-se por tirar uma nódoa

que teimava em sair do tampo. O silêncio do proprietário do

snack-bar encorajou o investigador a continuar o seu raciocínio.

- O motivo consistia nas deterioradas relações existentes

entre o casal, e a oportunidade pela ausência de todos aqueles

com acesso ao escritório do Dr. Daniel O’Hara.

O chinês meteu o pano debaixo do braço e sentou-se ao lado

do amigo perguntando:

- Como explica as impressões digitais na faca?

- Já lá se encontravam, antes da Sra. Henriqueta Costa lhe

pegar com as luvas. Lembre-se que o Dr. Daniel O’Hara abriu

alguns envelopes de tarde com ela, para ver o correio. Pode ter

deixado as impressões digitais, mas não pode ser o assassino, pois

está na TV à hora do homicídio.

O oriental passou novamente o pano pela mesa e ficou a olhar

para o tecido, a verificar se tinha pó antes de responder.

- Parece-me impossível tal hipótese devido às impressões

digitais. Se encontram por quase toda a superfície do gume da

faca, e sendo este pequeno, minúsculo, penso não existir apoio

O

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suficiente para outra mão agarrá-lo com a força necessária, e com

luvas, cometer o crime.

O agente da Polícia Judiciária franziu o sobrolho. Wang-Ho

entendeu aquele enrugar da testa e recomeçou a expôr as suas

ideias.

- Este caso imediatamente me levantou suspeitas com três

peças do puzzle que não se enquadravam na perfeição: A primeira

consistia na estranha hora ( 20 horas ) para Berta Carica regressar

das compras. Se as lojas fecham às 19 horas e o jardineiro em

menos de 10 minutos foi comprar o envelope no mesmo Centro

Comercial, por que razão ela demorava uma hora a chegar a casa?

- Suspeita dela?

Wang-Ho não respondeu e continuou o seu raciocínio:

- Casualmente ela viria a encontrar o Dr. Augusto O’Hara,

após este último haver transportado os estúdios da televisão.

Demorando cerca de 30 minutos o tempo entre a casa e os

estúdios, como podia ele regressar tão rápido a casa? Se deixou o

irmão pelas 20 horas, como dá boleia perto de casa quase à

mesma hora à empregada, sendo o tempo normal a percorrer entre

os dois locais de 30 minutos?

- Realmente é impossível. Quem será que está a mentir?

- Aparecem demasiados acontecimentos fora do vulgar. O

álibi do Dr. Daniel O’Hara parece construído de propósito, algo

verdadeiramente espectacular e talvez ninguém suspeitasse dele,

se não fosse a impressão digital.

- Ele tem um álibi incontornável. Ele está nos estúdios da

televisão à data da morte.

O oriental olhou para um cliente que saia pela porta do

estabelecimento, e continuou parecendo não notar o reparo do

companheiro.

- Surge também algo muito estranho relacionado com a não

utilização do motorista, ou seja, a coincidência de ser o dia de

folga deste, ou melhor, do assassinado. Procuro descobrir os

inimigos do Sr. Aníbal Costa e verifico ser estimado por todos,

apenas com excepção da Sra. Henriqueta Costa. Também certa

aversão de Berta Carica a ele, como afirmou o jardineiro, por ele

não se decidir a divorciar. Mas seria mesmo assim?

- Ele dava-se muito mal com a esposa.

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- Realmente. Mas despreza também Berta Carica e isso vai-

lhe ser fatal.

- Foi a empregada a assassina?

- Não, penso ser cúmplice. Uma pergunta que imediatamente

eu me fiz, foi por que motivo o Dr. Augusto O’Hara contrata a

Sra. Henriqueta Costa para tomar conta da tia mais o esposo?

- Ele precisa que alguém tome conta da tia.

- Sim, porém a tia só vai para casa deles depois da mãe

Helena ter morrido. A tia está doente e realmente arranjam uma

dama de companhia e simultaneamente enfermeira. Realmente é

interessante oferecerem tão belas condições que a façam deixar o

hospital e estenderem o convite ao marido.

- Wang-Ho ... não estou a entender.

- Por que acolhem a tia, logo após a mãe morrer? Que

interesse existe na altura por parte deles, que não se poupam a

despesas de salários com Henriqueta Costa e Aníbal Costa, para

Clementina Pascoal lá ficar, estando ela abandonada enquanto a

mãe foi viva?

Wang-Ho começou a caminhar parecendo alheio às perguntas

e respostas do parceiro. Colocou a mão por baixo do queixo e

continuou:

- Após informações recolhidas no hospital, junto de pessoal

administrativo e dos médicos mais antigos em serviço naquele

estabelecimento hospitalar, descubro que a enfermeira Henriqueta

Costa fez parte da equipa médica assistente à operação de Helena

O’Hara, mãe dos dois irmãos. A operação resultou num fracasso e

a enfermeira Henriqueta Costa foi considerada responsável pela

morte da senhora devido a uma asneira por ela praticada e

relacionada com uma injecção de soro.

- Não teve um processo disciplinar... e não foi despedida?

- Sim, teve um processo sem consequências e a partir daí dois

cérebros diabólicos engendram a vingança.

- Entendo. Os dois irmãos não lhe perdoam a negligência.

Mas se ela é desleixada, eles contratam-na para tomar conta da

tia? Parece um paradoxo.

- O Dr. Augusto O’Hara consegue não demonstrar o ódio que

lhe vai no coração e consegue impedir a irradiação do hospital da

Henriqueta Costa, chegando a convidá-la para ir trabalhar para

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sua casa, deste modo poder controlá-la e mais facilmente levar a

cabo a vingança.

O inspector Novais fixou o olhar no amigo, no entanto não o

interrompeu.

- Mas o médico precisava de uma doente para ser tratada.

Não fazia sentido contratar uma enfermeira sem uma paciente e a

sua tia Clementina Pascoal surge com o perfil ideal para o efeito.

Convidam a tia para ir viver com eles.

- Estou sem palavras.

- O Dr. Augusto O’Hara precisará no entanto de mais uma

testemunha de confiança para corroborar as suas falsas

afirmações, quando pusesse em prática o seu plano de desforra.

Era preciso alguém que não esteja à primeira vista relacionado

com o hospital.

- Por isso contratam a empregada?

- Sabendo da morte do irmão de Berta Carica no hospital, o

Dr. Augusto O’Hara oferece-lhe emprego, apoio monetário, e

consegue convencer a moça a juntar-se à tramóia.

- Como a vai persuadir a juntar-se a ele em toda esta farsa?

Apenas dando emprego?

- Não. Convencendo a serviçal que Henriqueta Costa foi

igualmente responsável pela morte do irmão dela. Ela igualmente

então partilha da opinião do médico de que a pena de expulsão do

hospital não é castigo suficientemente severo para a morte do

irmão, e igualmente não descansará enquanto não vir a enfermeira

atrás das grades.

- Existe outro bom motivo para ela entrar na trampolinice.

Ela não perdoa a Aníbal Costa por ele não querer divorciar-se da

esposa para ficar com ela. Sente-se despeitada.

- Continuo sem entender. Quem é o assassino?

- Finalmente o crime desenrola-se. O Dr. Daniel O´Hara

apunhala o inconsciente ( devido à droga ) Aníbal Costa. O local

exacto do corpo a apunhalar fornece-lhe o Dr. Augusto O’Hara,

que tem o cuidado de não atingir um ponto vital. O médico

estanca a hemorragia não retirando a faca do corpo da vítima.

Como cirurgião com experiência, sabe que a vítima não morrerá

de imediato.

- Então é o político o assassino?

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O oriental não responde e o seu olhar parece visionar o

dramático acontecimento. As palavras lhe saem calmas e seguras.

O Dr. Daniel O’Hara despede-se da tia e retira-se

rapidamente para os estúdios da televisão aonde, como vem a

suceder, contava chegar às 20 horas.

- Não foi com o irmão?

- Foi sozinho. Isso foi-nos dito pela tia Clementina Pascoal e

por Henriqueta Costa que foram dizer-lhe adeus à janela e o viram

partir sem acompanhante.

- À hora marcada do início da entrevista, o Dr. Augusto

O’Hara com o auxílio de uma tesoura, pressiona o gume para a

faca sair do corpo, e por isso não encontramos outras impressões

digitais, retira a faca e a hemorragia torna-se mais intensa

acabando com a morte do Sr. Aníbal Costa.

- Terei de mandar fazer nova perícia ao corpo. A próxima

autópsia terá de me dizer a que horas a vítima foi apunhalada, e

não a hora que ela faleceu. Nesse caso Aníbal Costa foi

apunhalado pelo Dr. Daniel O’Hara antes das 19,30 sem ser num

ponto vital, num local indicado pelo irmão Dr. Augusto O’Hara,

que sabe que a vítima não morrerá de imediato. Como o mordomo

está drogado está indefeso.

- Verdade.

- Mais tarde, enquanto o irmão Daniel O’Hara é entrevistado,

o Dr. Augusto O’Hara retira-lhe a faca com uma tesoura, sem

tocar no gume, causando a hemorragia que conduzirá à morte.

- Certamente.

- O Dr. Daniel O´Hara terá o álibi de milhões de espectadores

que verão ele na TV à hora do óbito. O Dr. Augusto O´Hara e

Berta Carica testemunham que estiveram juntos, quando da

morte.

- Nem mais.

- O jardineiro Joaquim Rego não tem as chaves de casa, logo

não tem acesso ao quarto de Aníbal Costa. A tia demasiado frágil

tem o testemunho de Henriqueta Costa de que não saiu do quarto.

- Muito bem, inspector.

- A única em quem recairiam todas as suspeitas, sem álibi

válido, e seria condenada, acabava por ser a enfermeira

Henriqueta Costa. Isto porque a Sra. Clementina Pascoal, por

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tomar remédios que a fazem ter sonolência, apatia e

desorientação, o testemunho da mesma não teria qualquer

credibilidade.

Wang-Ho já não ouviu a última frase do inspector Novais.

Junto ao balcão, enchia uma caneca com cerveja, pois já conhecia

bem os gostos do amigo.

FIM

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Indice

O Testamento de Dario Norton Mateus ……..… 7

Chantagem ………………………………….….. 31

O Julgamento de Páris ………………………… 47

Palco da Vida …………………...……………… 91

O regresso ao destino ………………………… 115

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