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8/20/2019 SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio. In Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. p.46-60. http://slidepdf.com/reader/full/said-edward-reflexoes-sobre-o-exilio-in-reflexoes-sobre-o-exilio 1/7 REFLEXÕES SOBRE O EXÍLIO (SAID) O exílio nos compele estranhamente a pensar sobre ele, mas é terrível de experienciar. Ele é uma fratura incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial  jamais pode ser superada. E, embora seja verdade ue a literatura e a hist!ria cont"m epis!dios her!icos, rom#nticos, gloriosos e até triunfais da vida de um exilado, eles n$o s$o mais do ue esfor%os para superar a dor mutiladora da separa%$o. &s realiza%'es do exílio s$o permanentemente minadas pela perda de algo deixado para trás para sempre. (as, se o verdadeiro exílio é uma condi%$o de perda terminal, por ue foi t$o facilmente transformado num tema vigoroso ) enriuecedor, inclusive )da cultura moderna* +abituamonos a considerar o período moderno em si como espiritualmente destituído e alienado, a era da ansiedade e da aus"ncia de vínculos. -ietzsche nos ensinou a sentirnos em desacordo com a tradi%$o, e reud a ver na intimidade doméstica a face polida pintada sobre o !dio parricida e incestuoso. & moderna cultura ocidental é, em larga medida, obra de exilados, emigrantes, refugiados. -os Estados /nidos, o pensamento acad"mico, intelectual e estético é o ue é hoje gra%as aos refugiados do fascismo, do comunismo e de outros regimes dados a oprimir e expulsar os dissidentes. O crítico [p. 46] 0eorge 1teiner chegou a propor a tese de ue todo um g"nero da literatura ocidental do século 22 é 3extraterritorial3, uma literatura feita por exilados e sobre exilados, símbolo da era do refugiado. E sugeriu:  Parece apropriado que aqueles que criam arte numa civilização de quase barbárie, que produziu tanta gente sem lar, sejam eles mesmos poetas sem casa e errantes entre as línguas. Excêntricos, arredios, nostálgicos, deliberadamente inoportunos... Em outras épocas, os exilados tiveram vis'es transnacionais e multiculturais semelhantes, sofreram as mesmas frustra%'es e afli%'es, desempenharam as mesmas tarefas elucidativas e críticas )  brilhantemente afirmadas, por exemplo, em !e "omantic Exiles 4#s exilados rom$nticos5, o estudo clássico de E. +. 6arr sobre os intelectuais russos do século 272 agrupados em torno de +erzen. (as a diferen%a entre os exilados de outrora e os de nosso tempo é de escala: nossa época, com a guerra moderna, o imperialismo e as ambi%'es uase teol!gicas dos governantes totalitários, é, com efeito, a era do refugiado, da pessoa deslocada, da imigra%$o em massa. 8endo por fundo esse cenário amplo e impessoal, o exílio n$o pode ser posto a servi%o do humanismo. -a escala do século 22, o exílio n$o é compreensível nem do ponto de vista estético, nem do  ponto de vista humanista: na melhor das hip!teses, a literatura sobre o exílio objetiva uma ang9stia e uma condi%$o ue a maioria das pessoas raramente experimenta em primeira m$o mas pensar ue o exílio é  benéfico para essa literatura é banalizar suas mutila%'es, as perdas ue inflige aos ue as sofrem, a mudez com ue responde a ualuer tentativa de compreend"lo como 3bom para n!s3. -$o é verdade ue as vis'es do exílio na literatura e na religi$o obscurecem o ue é realmente horrível* ;ue o exílio é irremediavelmente secular e insuportavelmente hist!rico, ue é produzido por seres humanos para outros seres humanos e ue, tal como a morte, mas sem sua 9ltima miseric!rdia, arrancou milh'es de pessoas do sustento da tradi%$o, da família e da geografia* <er um poeta no exílio ) ao contrário de ler a poesia do exílio ) é ver as antinomias do exílio encarnadas e suportadas com uma intensidade sem par. +a vários anos, passei algum tempo corn aiz &hamad aiz, o maior dos poetas urdus contempor#neos. Ele foi exilado de seu =auist$o nativo pelo regime miltar [p.47] de >ia e encontrou uma espécie de acolhimento na ?eirute dilacerada pela guerra.  -aturalmente, seus amigos mais pr!ximos eram palestinos, mas eu percebia ue, embora houvesse uma afinidade de espírito entre eles, nada combinava muito bem ) língua, conven%$o poética ou hist!ria de vida. 1omente uma vez, uando Ebal &hmad, um amigo pauistan"s e colega de exílio, foi a ?eirute, aiz deu a impress$o de superar seu sentimento de aliena%$o constante. 6erto fim de noite, n!s tr"s nos instalamos num restaurante encardido e aiz recitou poemas. @epois de algum tempo, ele e Ebal pararam de traduzir os versos para mim, mas, com o avan%ar da noite, isso deixou de ter import#ncia. -$o era preciso tradu%$o para o ue eu observava: era uma representa%$o da volta para casa expressa por meio de desafio e perda, como se uisessem dizer: 3>ia, aui estamos3. Evidentemente, >ia era uem estava, de fato, em casa e n$o escutaria suas vozes exultantes. Aashid +ussein era palestino. Ele traduziu para o árabe ?ialiB, um dos grandes poetas modernos hebreus, e sua eloC"ncia fez com ue n$o tivesse par como orador e nacionalista no período p!sDFG. @e

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REFLEXÕES SOBRE O EXÍLIO (SAID)

O exílio nos compele estranhamente a pensar sobre ele, mas é terrível de experienciar. Ele é umafratura incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro lar: sua tristeza essencial

 jamais pode ser superada. E, embora seja verdade ue a literatura e a hist!ria cont"m epis!dios her!icos,rom#nticos, gloriosos e até triunfais da vida de um exilado, eles n$o s$o mais do ue esfor%os para superar ador mutiladora da separa%$o. &s realiza%'es do exílio s$o permanentemente minadas pela perda de algodeixado para trás para sempre.

(as, se o verdadeiro exílio é uma condi%$o de perda terminal, por ue foi t$o facilmentetransformado num tema vigoroso ) enriuecedor, inclusive )da cultura moderna* +abituamonos aconsiderar o período moderno em si como espiritualmente destituído e alienado, a era da ansiedade e daaus"ncia de vínculos. -ietzsche nos ensinou a sentirnos em desacordo com a tradi%$o, e reud a ver naintimidade doméstica a face polida pintada sobre o !dio parricida e incestuoso. & moderna cultura ocidentalé, em larga medida, obra de exilados, emigrantes, refugiados. -os Estados /nidos, o pensamentoacad"mico, intelectual e estético é o ue é hoje gra%as aos refugiados do fascismo, do comunismo e deoutros regimes dados a oprimir e expulsar os dissidentes. O crítico [p. 46] 0eorge 1teiner chegou a propor atese de ue todo um g"nero da literatura ocidental do século 22 é 3extraterritorial3, uma literatura feita porexilados e sobre exilados, símbolo da era do refugiado. E sugeriu:

 Parece apropriado que aqueles que criam arte numa civilização de quase barbárie, que produziu

tanta gente sem lar, sejam eles mesmos poetas sem casa e errantes entre as línguas. Excêntricos,

arredios, nostálgicos, deliberadamente inoportunos...

Em outras épocas, os exilados tiveram vis'es transnacionais e multiculturais semelhantes, sofreramas mesmas frustra%'es e afli%'es, desempenharam as mesmas tarefas elucidativas e críticas )

 brilhantemente afirmadas, por exemplo, em !e "omantic Exiles 4#s exilados rom$nticos5, o estudo clássicode E. +. 6arr sobre os intelectuais russos do século 272 agrupados em torno de +erzen. (as a diferen%aentre os exilados de outrora e os de nosso tempo é de escala: nossa época, com a guerra moderna, oimperialismo e as ambi%'es uase teol!gicas dos governantes totalitários, é, com efeito, a era do refugiado,

da pessoa deslocada, da imigra%$o em massa.8endo por fundo esse cenário amplo e impessoal, o exílio n$o pode ser posto a servi%o do

humanismo. -a escala do século 22, o exílio n$o é compreensível nem do ponto de vista estético, nem do ponto de vista humanista: na melhor das hip!teses, a literatura sobre o exílio objetiva uma ang9stia e umacondi%$o ue a maioria das pessoas raramente experimenta em primeira m$o mas pensar ue o exílio é

 benéfico para essa literatura é banalizar suas mutila%'es, as perdas ue inflige aos ue as sofrem, a mudezcom ue responde a ualuer tentativa de compreend"lo como 3bom para n!s3. -$o é verdade ue as vis'esdo exílio na literatura e na religi$o obscurecem o ue é realmente horrível* ;ue o exílio é irremediavelmentesecular e insuportavelmente hist!rico, ue é produzido por seres humanos para outros seres humanos e ue,tal como a morte, mas sem sua 9ltima miseric!rdia, arrancou milh'es de pessoas do sustento da tradi%$o, dafamília e da geografia*

<er um poeta no exílio ) ao contrário de ler a poesia do exílio ) é ver as antinomias do exílioencarnadas e suportadas com uma intensidade sem par. +a vários anos, passei algum tempo corn aiz&hamad aiz, o maior dos poetas urdus contempor#neos. Ele foi exilado de seu =auist$o nativo peloregime miltar [p.47] de >ia e encontrou uma espécie de acolhimento na ?eirute dilacerada pela guerra.

 -aturalmente, seus amigos mais pr!ximos eram palestinos, mas eu percebia ue, embora houvesse umaafinidade de espírito entre eles, nada combinava muito bem ) língua, conven%$o poética ou hist!ria de vida.1omente uma vez, uando Ebal &hmad, um amigo pauistan"s e colega de exílio, foi a ?eirute, aiz deu aimpress$o de superar seu sentimento de aliena%$o constante. 6erto fim de noite, n!s tr"s nos instalamos numrestaurante encardido e aiz recitou poemas. @epois de algum tempo, ele e Ebal pararam de traduzir osversos para mim, mas, com o avan%ar da noite, isso deixou de ter import#ncia. -$o era preciso tradu%$o parao ue eu observava: era uma representa%$o da volta para casa expressa por meio de desafio e perda, como seuisessem dizer: 3>ia, aui estamos3. Evidentemente, >ia era uem estava, de fato, em casa e n$o escutariasuas vozes exultantes.

Aashid +ussein era palestino. Ele traduziu para o árabe ?ialiB, um dos grandes poetas modernoshebreus, e sua eloC"ncia fez com ue n$o tivesse par como orador e nacionalista no período p!sDFG. @e

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início, foi jornalista em língua hebraica em 8el &viv e conseguiu estabelecer um diálogo entre escritores judeus e árabes, ainda ue defendesse a causa do nasserismo e do nacionalismo árabe. 6om o tempo, n$o

 pode mais suportar a press$o e foi embora para -ova HorB. 6asouse com uma mulher judia e come%ou atrabalhar no escrit!rio da OI= das   -a%'es /nidas, mas periodicamente deixava seus superioresescandalizados com idéias n$oconvencionais e uma ret!rica ut!pica. Em DJK, partiu para o mundo árabe,mas poucos meses depois estava de volta aos Estados /nidos: sentirase deslocado na 1íria e no Iíbano,infeliz no 6airo. -ova HorB recebeuo novamente, mas ele se entregou a infindáveis bebedeiras e ao !cio.1ua vida estava em ruínas, mas continuava a ser o mais hospitaleiro dos homens. (orreu ap!s uma noitadade muita bebida uando, ao fumar na cama, seu cigarro deu início a um inc"ndio ue se espalhou para sua

 peuena cole%$o de fitas cassete, composta principalmente de poetas lendo seus poemas. & fuma%a das fitasasfixiouo. 1eu corpo foi repatriado para ser enterrado em (usmus, a peuena aldeia de 7srael onde suafamília ainda morava.

Esse e tantos outros poetas e escritores exilados conferem dignidade a uma condi%$o criada paranegar a dignidade ) e a identidade as pessoas. & partir da hist!ria deles fica claro ue para tratar o exíliocomo uma puni%$o política contempor#nea é preciso mapear territ!rios de experi"ncia ue se situam paraalém [p.48] daueles cartografados pela pr!pria literatura do exílio. @evese deixar de lado LoMce e -aboBove pensar nas incontáveis massas para as uais foram criadas as ag"ncias da O-/. N preciso pensar noscamponeses refugiados sem perspectiva de voltar algum dia para casa, armados somente com um cart$o de

suprimentos e um n9mero da ag"ncia. =aris pode ser a capital famosa dos exilados cosmopolitas, mas étambém uma cidade em ue homens e mulheres desconhecidos passaram anos de solid$o miserável:vietnamitas, argelinos, cambojanos, libaneses, senegaleses, peruanos. N preciso pensar também em 6airo,?eirute, (adagascar, ?angBoB, 6idade do (éxico. medida ue nos afastamos do mundo do &tl#ntico, acena se torna mais terrível e lastimável: multid'es sem esperan%a, a miséria das pessoas 3sem documentos3subitamente perdidas, sem uma hist!ria para contar. =ara refletir sobre mu%ulmanos exilados da Pndia,haitianos nos Estados /nidos, habitantes de ?iBini na Oceania, ou palestinos em todo o mundo árabe, é

 preciso deixar o modesto ref9gio proporcionado pela subjetividade e apelar para a abstra%$o da política demassas. -egocia%'es, guerras de liberta%$o nacional, gente arrancada de suas casas e levada Qs cutucadas, deRnibus ou a pé, para enclaves em outras regi'es: o ue essas experi"ncias significam* -$o s$o elas, uaseue por ess"ncia, irrecuperáveis*

6hegamos ao nacionalismo e a sua associa%$o essencial ao exílio. O nacionalismo é a umadeclara%$o de pertencer a um lugar, a um povo, a uma heran%a cultural. Ele afirma uma pátria criada poruma comunidade de língua, cultura e costumes e, ao faz"lo, recha%a o exílio, luta para evitar seus estragos. 6om efeito, a intera%$o entre nacionalismo e exílio é como a dialética hegeliana do senhor e do escravo,opostos ue informam e constituem um ao outro. Em seus primeiros estágios, todos os nacionalismos sedesenvolvem a partir de uma situa%$o de separa%$o. &s lutas pela independ"ncia dos Estados /nidos, pelaunifica%$o da &lemanha e da 7tália, pela liberta%$o da &rgélia foram de grupos nacionais separados )exilados ) dauilo ue consideravam seu modo de viver legítimo. O nacionalismo triunfante justifica ent$o,tanto retrospectiva como prospectivamente, uma hist!ria amarrada de modo seletivo numa forma narrativa:todos os nacionalismos t"m seus pais fundadores, seus textos básicos, uase religiosos, uma ret!rica do

 pertencer, marcos hist!ricos e geográficos, inimigos e her!is oficiais. Esse et!os coletivo comp'e o ue o

soci!logo franc"s =ierre ?ourdieu chama de !abitus, o amálgama coerente de práticas ue ligam o hábito ahabita%$o.[p.49] 6om o tempo, os nacionalismos bemsucedidos atribuem a verdade exclusivamente a elesmesmos e relegam a falsidade e a inferioridade aos outros, como na ret!rica do capitalista contra ocomunista Sou do europeu contra o asiáticoT.

E logo adiante da fronteira entre 3n!s3 e os 3outros3 está o perigoso territ!rio do n$opertencer, parao ual, em tempos primitivos, as pessoas eram banidas e onde, na era moderna, imensos agregados dehumanidade permanecem como refugiados e pessoas deslocadas.

Os nacionalismos dizem respeito a grupos, mas, num sentido muito agudo, o exílio é uma solid$ovivida fora do grupo: a priva%$o sentida por n$o estar com os outros na habita%$o comunal. 6omo, ent$o,alguém supera a solid$o do exílio sem cair na linguagem abrangente e latejante do orgulho nacional, dossentimentos coletivos, das paix'es grupais* O ue vale a pena salvar e defender entre os extremos do exílio,

de um lado, e as afirma%'es ami9de teimosas e obstinadas do nacionalismo, de outro* O nacionalismo e oexílio possuem atributos intrínsecos* 1$o eles apenas duas variedades conflitantes de paran!ia*

Essas uest'es nunca podem ser respondidas plenamente porue partem do princípio de ue o exílioe o nacionalismo podem ser discutidos com neutralidade, sem referirse um ao outro. 7sso é impossível. N

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ue os dois termos incluem tudo, do mais coletivo dos sentimentos coletivos Q mais privada das emo%'es privadas dificilmente há uma linguagem adeuada para ambos. (as n$o há certamente nada nas ambi%'es p9blicas e abrangentes do nacionalismo ue toue no #mago da condi%$o do exílio.

O exílio, ao contrário do nacionalismo, é fundamentalmente um estado de ser descontínuo. Osexilados est$o separados das raízes, da terra natal, do passado. Em geral, n$o t"m exércitos ou Estados,embora estejam com freu"ncia em busca deles. =ortanto, os exilados sentem uma necessidade urgente dereconstituir suas vidas rompidas e preferem ver a si mesmos como parte de uma ideologia triunfante ou deum povo restaurado. O ponto crucial é ue uma situa%$o de exílio sem essa ideologia triunfante)criada parareagrupar uma hist!ria rompida em um novo todo ) é praticamente insuportável e impossível no mundo dehoje. ?asta ver o destino de judeus, palestinos e arm"nios.

 -oubar é um arm"nio solitário e um amigo. 1eus pais tiveram de deixar a 8uruia em DDU, uandosuas famílias foram massacradas: sua av! materna foi decapitada. & m$e e o pai de -oubar foram para&leppo, depois para o 6airo. -a [p. 50] década de DVW, a vida no Egito tornouse difícil para uem n$o eraegípcio, e seus pais, junto com uatro filhos, foram levados para ?eirute por uma organiza%$o internacionalde auxílio. -a capital do Iíbano, moraram por pouco tempo numa pens$o e depois foram enfiados em doiscRmodos de uma peuena casa nos arredores da cidade. -$o tinham dinheiro e ficaram esperando: oitomeses depois, uma ag"ncia de ajuda embarcouos num vRo para 0lasgoX. E em seguida para 0ander. E emseguida para -ova HorB. oram de Rnibus de -ova HorB para 1eattle, cidade designada pela ag"ncia como

destino final para eles. ;uando perguntei 31eattle*3 -oubar sorriu com resigna%$o, como se dissesse, melhor1eattle do ue a &rm"nia, ue ele nunca conheceu, ou a 8uruia, onde tantos foram massacrados, ou oIíbano, onde ele e sua família teriam certamente arriscado suas vidas. s vezes, o exílio é melhor do ueficar para trás ou n$o sair: mas somente Qs vezes.

=orue nada é seguro. O exílio é uma condi%$o ciumenta. O ue voc" consegue é exatamente o uevoc" n$o tem vontade de compartilhar, e é ao tra%ar linhas ao seu redor e ao redor de seus compatriotas ueos aspectos menos atraentes de estar no exílio emergem: um sentimento exagerado de solidariedade de grupoe uma hostilidade exaltada em rela%$o aos de fora do grupo, mesmo aueles ue podem, na verdade, estar namesma situa%$o ue voc". O ue poderia ser mais intransigente do ue o conflito entre os judeus sionistas eos palestinos árabes* Os palestinos acham ue foram transformados em exilados pelo povo proverbial doexílio, os judeus. (as os palestinos também sabem ue seu pr!prio sentimento de identidade nacional foi

alimentado no ambiente do exílio, onde todos ue n$o sejam irm$os de sangue s$o inimigos, onde cadasimpatizante é agente de alguma pot"ncia hostil e onde o menor desvio da linha aceita pelo grupo é um atoda mais extrema trai%$o e deslealdade.

8alvez este seja o mais extraordinário dos destinos do exílio: ser exilados por exilados, reviver o processo de desenraizamento nas m$os de exilados. -o ver$o de DGK, todos os palestinos se perguntaramual seria o anseio inarticulado ue levou 7srael, depois de deslocar os palestinos em DFG, a expulsáloscontinuamente de seus acampamentos e seus abrigos de refugiados no Iíbano. N como se a experi"nciacoletiva judaica reconstruída, tal como representada por 7srael e pelo sionismo moderno, n$o pudesse toleraroutra hist!ria de expropria%$o e perda ao lado da sua, uma intoler#ncia constantemente refor%ada pelahostilidade [p. 51]  israelita ao nacionalismo dos palestinos, ue durante FV anos reconstruíram comdificuldades a identidade nacional no exílio.

Essa necessidade do exilado de reconstruir uma identidade a partir de refra%'es e descontinuidadesencontrase nos primeiros poemas de (ahmoud @arXish, cuja obra considerável euivale a um esfor%oépico para transformar a lírica da perda no drama infinitamente adiado da volta. &ssim, ele representa seusentimento de aus"ncia de um lar na forma de uma lista de coisas incompletas e inacabadas:

 %as eu sou o exilado.

&ela'me com teus ol!os.

 (eva'me para onde estiveres )

 (eva'me para o que *s.

 "estaura'me a cor do rosto

 E o calor do corpo

 + luz do coração e dos ol!os,# sal do pão e do ritmo,

# gosto da terra... a terra natal.

 Protege'me com teus ol!os.

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 (eva'me como uma relíquia da mansão do pesar.

 (eva'me como um verso de min!a trag*dia

 (eva'me como um brinquedo, um tijolo da casa

 Para que nossos -il!os se lembrem de voltar.

O pát!os do exílio está na perda de contato com a solidez e a satisfa%$o da terra: voltar para o lar estáfora de uest$o.

O conto 3&mM oster3, de Loseph 6onrad, talvez seja a mais intransigente representa%$o do exílio jamais escrita. 6onrad julgavase um exilado da =olRnia e uase toda a sua obra Sbem como sua vidaTcarrega a marca inconfundível da obsess$o do emigrado sensível com seu pr!prio destino e com as tentativasdesesperadas de fazer contato satisfat!rio com os novos ambientes. Em certo sentido, 3&mM oster3 serestringe aos problemas do exílio ) e se restringe tanto ue talvez esse n$o seja um dos contos maisconhecidos de 6onrad. Eis, por exemplo, a descri%$o da agonia de seu personagem principal, [p.52] HanBo0oorall, um campon"s da Europa oriental ue, a caminho da &mérica, naufraga na costa brit#nica:

om e-eito, * duro para um !omem ac!ar'se como um estrangeiro perdido, inde-eso,

incompreensível e de origem misteriosa, em algum canto obscuro da erra. ontudo, entre todos os

aventureiros nau-ragados em todas as regi/es selvagens do mundo, não !á um, assim me parece,

que ten!a so-rido um destino tão simplesmente trágico quanto o !omem de quem estou -alando, omais inocente dos aventureiros expulso pelo mar.

HanBo deixou sua terra porue as press'es eram grandes demais para ue ele continuasse a viver lá.& &mérica o atrai por ser t$o promissora, embora ele acabe na 7nglaterra. Ele permanece na 7nglaterra, cujalíngua n$o fala e onde é temido e mal interpretado. 1omente &mM oster, uma camponesa perseverante esem atrativos, tenta comunicarse com ele. Eles se casam, t"m um filho, mas, uando HanBo fica doente,&mM, com medo e alheada, recusase a cuidar dele, pega o filho e vai embora. & deser%$o apressa a mortemiserável de HanBo, ue, como o fim de muitos her!is conradianos, é representada como resultado de umacombina%$o de isolamento esmagador e indiferen%a do mundo. O destino de HanBo é descrito como 3osupremo desastre da solid$o e do desespero3.

& situa%$o de HanBo é comovente: um estrangeiro perpetuamente assombrado e sozinho numasociedade ue n$o o compreende. (as o exílio de 6onrad faz com ue ele exagere as diferen%as entre HanBoe &mM: ele é arrojado, leve e tem olhos cintilantes, enuanto ela é pesada, sem gra%a e apática. ;uando elemorre, é como se a generosidade anterior dela fosse uma armadilha para atraílo e depois aprisionálofatidicamente. & morte de HanBo é rom#ntica: o mundo é rude, ingrato ninguém o compreende, nemmesmo &mM, a 9nica pessoa pr!xima dele. 6onrad criou um princípio estético a partir do medo neur!tico doexilado. -inguém é capaz de compreender ou se comunicar no mundo de 6onrad, mas, paradoxalmente,essa limita%$o radical das possibilidades da linguagem n$o impede esfor%os esmerados para se comunicar.8odas as hist!rias de 6onrad s$o sobre pessoas solitárias ue falam muito Scom efeito, uem, entre osgrandes modernistas, era mais vol9vel e 3adjetivesco3 do ue o pr!prio 6onrad*T e cujas tentativas deimpressionar os outros aumentam, em vez de reduzir, o sentimento [p.53] original de isolamento. 6ada

exilado de 6onrad teme e está condenado para sempre a imaginar o espetáculo de uma morte solitáriailuminada, por assim dizer, por olhos indiferentes, sem comunica%$o.

Os exilados olham para os n$oexilados com ressentimento. 1entem ue eles pertencem a seu meio,ao passo ue um exilado está sempre deslocado. 6omo é nascer num lugar, ficar e viver ali, saber ue se

 pertence a ele, mais ou menos para sempre*Embora seja verdade ue toda pessoa impedida de voltar para casa é um exilado, é possível fazer

algumas distin%'es entre exilados, refugiados, expatriados e emigrados. O exílio tem origem na velha práticado banimento. /ma vez banido, o exilado leva uma vida anRmala e infeliz, com o estigma de ser umforasteiro. =or outro lado, os refugiados s$o uma cria%$o do Estado do século 22. & palavra 3refugiado3tornouse política: ela sugere grandes rebanhos de gente inocente e desnorteada ue precisa de ajudainternacional urgente, ao passo ue o termo 3exilado3, creio eu, traz consigo um toue de solid$o e

espiritualidade.Os expatriados moram voluntariamente em outro país, geralmente por motivos pessoais ou sociais.

+emingXaM e itzgerald n$o foram obrigados a viver na ran%a. Eles podem sentir a mesma solid$o ealiena%$o do exilado, mas n$o sofrem com suas rígidas interdi%'es. Os emigrados gozam de uma situa%$o

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ambígua. @o ponto de vista técnico, tratase de alguém ue emigra para um outro país. 6laro, há sempreuma possibilidade de escolha, uando se trata de emigrar. uncionários coloniais, missionários, assessorestécnicos, mercenários e conselheiros militares podem, em certo sentido, viver em exílio, mas n$o foram

 banidos. Os colonos brancos na Yfrica, em partes da Ysia e na &ustrália podem ter sido inicialmenteexilados, mas, em sua ualidade de pioneiros e construtores de uma na%$o, perderam o r!tulo de 3exilado3.

0rande parte da vida de um exilado é ocupada em compensar a perda desorientadora, criando umnovo mundo para governar. -$o surpreende ue tantos exilados sejam romancistas, jogadores de xadrez,ativistas políticos e intelectuais. Essas ocupa%'es exigem um investimento mínimo em objetos e d$o umgrande valor Q mobilidade e Q perícia. O novo mundo do exilado é logicamente artificial e sua irrealidade se

 parece com a fic%$o. 0eorg IuBács, na eoria do romance, sustentou de modo convincente ue o romance,forma literária criada a partir da irrealidade da ambi%$o e da fantasia, é a forma da 3aus"ncia de uma [p.54]

 pátria transcendental3. @e acordo com o te!rico h9ngaro, as epopéias clássicas emanam de culturasestabelecidas em ue os valores s$o claros, as identidades estáveis, a vida imutável. O romance europeu

 baseiase exatamente na experi"ncia oposta, a de uma sociedade em mudan%a na ual um her!i de classemédia, itinerante e deserdado, busca construir um mundo novo ue de alguma forma se pare%a com o antigo,deixado para trás para sempre. -a epopéia n$o há outro mundo, somente a finalidade de nosso mundo./lisses retorna a 7taca ap!s anos de err#ncia. &uiles morrerá porue n$o pode escapar de seu destino. Oromance, no entanto, existe porue outros mundos  podem  existir ) alternativas para especuladores

 burgueses, errantes, exilados.=or mais ue tenham "xito, os exilados s$o sempre exc"ntricos ue sentem sua diferen%a Sao mesmotempo ue, com freC"ncia, a exploramT como um tipo de orfandade. &ueles ue realmente n$o t"m larconsideram uma afeta%$o, uma exibi%$o de modismo o hábito de ver a aliena%$o em tudo o ue é moderno.&garrandose Q diferen%a como a uma arma a ser usada com vontade empedernida, o exilado insisteciosamente em seu direito de se recusar Q pertencer a outro lugar.

7sso se traduz geralmente numa intransig"ncia ue n$o é ignorada com facilidade. Obstina%$o,exagero, tintas carregadas s$o características de um exilado, métodos para obrigar o mundo a aceitar suavis$o ) ue ele torna mais inaceitável porue, na verdade, n$o está disposto a v"la aceita. N a vis$o dele,afinal de contas. 6ompostura e serenidade s$o as 9ltimas coisas associadas Q obra dos exilados. Os artistasno exílio s$o decididamente desagradáveis, e a teimosia se insinua até mesmo em suas obras mais elevadas.

& vis$o de @ante na 0ivina com*dia é imensamente vigorosa em sua universalidade e seu detalhamento,mas mesmo a paz beatífica alcan%ada no  Paraíso apresenta tra%os do caráter vingativo e da severidade de julgamento do  1n-erno. ;uem, sen$o um exilado como @ante, banido de sua loren%a natal, usaria aeternidade como um lugar para acertar velhas contas*

Lames LoMce escol!eu o exílio, para dar for%a Q sua voca%$o artística. @e um modo estranhamenteeficaz)como Aichard Ellmann mostrou em sua biografia do romancista irland"s), LoMce arranjou umauerela com a 7rlanda e a manteve viva, de maneira a sustentar a mais rigorosa oposi%$o ao ue era familiar.Ellmann diz ue 3sempre ue suas rela%'es com a terra natal corriam o perigo de [p.55] melhorar, 4ele5achava um novo incidente para solidificar sua intransig"ncia e reafirmar a corre%$o de sua aus"nciavoluntária3. & fic%$o de LoMce tem a ver com o ue, em uma carta, ele descreveu como o estado de ser3sozinho e sem amigos3. E, embora seja raro escolher o banimento como um modo de vida, ele

compreendeu perfeitamente suas prova%'es.(as o sucesso de LoMce como exilado enfatiza a uest$o localizada em seu #mago: será o exílio t$o

extremo e privado ue ualuer uso instrumental dele é, em 9ltima análise, uma trivializa%$o* @e ue modoa literatura do exílio assumiu seu lugar como um topos da experi"ncia humana, ao lado da aventura, daeduca%$o ou da descoberta* 8ratase do mesmo exílio ue mata literalmente HanBo 0oorall e engendra arela%$o custosa e ami9de desumanizadora entre o exilado do século 22 e o nacionalismo* Ou se trata dealguma variedade mais benigna*

0rande parte do interesse contempor#neo pelo exílio pode ser remontado Q no%$o um tanto descoradade ue os n$oexilados podem partilhar dos benefícios do exílio como um motivo redentor. +á, de fato, certa

 plausibilidade e verdade nessa idéia. 8al como estudiosos medievais itinerantes ou escravos gregos cultos no7mpério romano, os exilados ) os excepcionais entre eles ) de fato fermentam seus ambientes. E é natural

ue 3n!s3 concentremos nossa aten%$o nesse aspecto iluminador da presen%a3deles3 entre n!s, n$o noinfort9nio ou em suas necessidades. (as, vistos com a indiferen%a ue caracteriza o ponto de vista políticodos deslocamentos maci%os da atualidade, os exilados individuais nos for%am a reconhecer o destino trágicoda falta de lar num mundo necessariamente implacável.

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/ma gera%$o atrás, 1imone Zeil expRs o dilema do exilado do modo mais conciso possível: 38erraízes é talvez a necessidade mais importante e menos reconhecida da alma humana3. (as Zeil tambémconsiderava ue a maioria dos remédios para o desenraizamento nessa época de guerras mundiais,deporta%'es e extermínios em massa s$o uase t$o perigosos uanto o ue eles supostamente remedeiam.@eles, o Estado)ou mais precisamente, o estatismo)é um dos mais insidiosos, pois a adora%$o do Estadotende a suplantar todos os outros la%os humanos.

Zeil nos exp'e novamente Quele complexo de press'es e restri%'es ue está no centro da condi%$ode exilado e ue, como sugeri, é o ue temos de mais [p. 56] pr!ximo da tragédia na era moderna. +á osimples fato do isolamento e do deslocamento, ue produz o tipo de masouismo narcisista ue resiste atodos os esfor%os de melhoramento, acultura%$o e comunidade. -esse ponto extremo, o exilado pode fazerdo exílio um fetiche, uma prática ue o distancie de uaisuer conex'es e compromissos. <iver como setudo a sua volta fosse temporário e talvez trivial é cair na armadilha do cinismo petulante, bem como da faltalamuriosa de amor. N mais comum a press$o sobre o exilado para entrar)em partidos, movimentosnacionais ou no Estado. O exilado recebe a oferta de um novo conjunto de afilia%'es e estabelece novaslealdades. (as há também uma perda)de perspectiva crítica, de reserva intelectual, de coragem moral.

@evese também reconhecer ue o nacionalismo defensivo dos exilados favorece ami9de aconsci"ncia de si mesmo tanto uanto as formas menos atraentes de autoafirma%$o. =rojetos dereconstru%$o, tais como montar uma na%$o a partir do exílio Scomo é o caso de judeus e palestinos no século

22T, envolvem a constru%$o de uma hist!ria nacional, o reavivamento de uma língua antiga, a funda%$o deinstitui%'es nacionais como bibliotecas e universidades. E, embora tudo isso Qs vezes promova umetnocentrismo estridente, também dá origem a investiga%'es ue inevitavelmente v$o muito mais além defatos simples e positivos como a3etnicidade3. +á, por exemplo, a consci"ncia de si mesmo de um indivíduoue tenta entender por ue a hist!ria de palestinos e judeus apresenta certos padr'es pr!prios por ue,apesar da opress$o e da amea%a de extin%$o, um determinado et!os permanece vivo no exílio.

=ortanto, n$o falo do exílio como um privilégio, mas como uma alternativa Qs institui%'es de massaue dominam a vida moderna. -o fim das contas, o exílio n$o é uma uest$o de escolha: nascemos nele, ouele nos acontece. (as, desde ue o exilado se recuse a ficar sentado Q margem, afagando uma ferida, hácoisas a aprender: ele deve cultivar uma subjetividade escrupulosa Sn$o complacente ou intratávelT.

O exemplo mais rigoroso de tal subjetividade talvez se encontre nos escritos de 8heodor &dorno, o

fil!sofo e crítico judeu alem$o. 1ua obraprima, %ínima %oralia, é uma autobiografia escrita no exílio seusubtítulo é  "e-lexionen aus dem besc!2digten (eben  S "e-lex/es de uma vida mutiladaT. &dorno era umopositor implacável do ue chamou de mundo 3administrado3 para ele, a vida era comprimida em formas

 prontas, 3lares3 préfabricados. 1ustentava ue tudo o ue [p. 57] dizemos ou pensamos, assim como todosos objetos ue possuímos, s$o, em 9ltima análise, uma mera mercadoria. & linguagem é jarg$o, os objetoss$o para venda. Aecusar esse estado de coisas é a miss$o intelectual do exilado.

&s reflex'es de &dorno s$o animadas pela cren%a de ue o 9nico lar realmente disponível agora,embora frágil e vulnerável, está na escrita. ora disso,

a casa * passado. # bombardeio das cidades europ*ias, bem como os campos de trabal!o e de

concentração, * apenas antecedente do que o desenvolvimento imanente da tecnologia decidiu !á

muito tempo que seria o destino das casas. Elas agora servem apenas para serem jogadas -ora,como latas vel!as.

&dorno diz, com grave ironia, ue 3faz parte da moralidade n$o se sentir em casa na pr!pria casa3.1eguir &dorno é ficar longe de 3casa3, a fim de olhála com o distanciamento do exílio, pois há

mérito considerável em observar as discrep#ncias entre os vários conceitos e idéias e o ue eles produzem defato. @amos como certas a pátria e a língua, elas se tornam natureza, e seus pressupostos subjacentesretrocedem para o dogma e a ortodoxia.

O exilado sabe ue, num mundo secular e contingente, as pátrias s$o sempre provis!rias. ronteiras e barreiras, ue nos fecham na seguran%a de um territ!rio familiar, também podem se tornar pris'es e s$o, comfreC"ncia, defendidas para além da raz$o ou da necessidade. O exilado atravessa fronteiras, rompe barreiras

do pensamento e da experi"ncia.+ugo de 1aint <ictor, um monge da 1axRnia ue viveu no século 277, escreveu estas linhas

assustadoramente belas:

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 Portanto, * -onte de grande virtude para a mente exercitada aprender, pouco a pouco, primeiro a

mudar em relação 3s coisas invisíveis e transit4rias, de tal modo que depois ela possa deixá'las

 para trás completamente. # !omem que ac!a doce seu torrão natal ainda * um iniciante -raco

aquele para quem todo solo * sua terra natal já * -orte mas per-eito * aquele para quem o mundo

inteiro * uma terra estrangeira. + alma -rágil -ixou seu amor em um ponto do mundo o !omem -orte

estendeu seu amor para todos os lugares o !omem per-eito extinguiu isso. [p. 58]

Erich &uerbach, o grande estudioso do século 22 da literatura, ue passou os anos da guerra exiladona 8uruia, citou esse trecho como um modelo para uem ueira transcender os limites nacionais ou

 provinciais. 1omente ao adotar essa postura o historiador pode come%ar a captar a experi"ncia humana eseus registros escritos em sua diversidade e particularidade de outro modo, permanecerá maiscomprometido com as exclus'es e rea%'es de preconceito do ue com a liberdade ue acompanha oconhecimento. (as observese ue +ugo deixa claro ue o homem 3forte3 ou 3perfeito3 alcan%aindepend"ncia e desapego trabal!ando mediante apegos, n$o com a rejei%$o deles. O exílio baseiase naexist"ncia do amor pela terra natal e nos la%os ue nos ligam a ela)o ue é verdade para todo exílio n$o é a

 perda da pátria e do amor Q pátria, mas ue a perda é inerente Q pr!pria exist"ncia de ambos.6onsideremos as experi"ncias como se elas estivessem prestes a desaparecer. O ue as prende na

realidade* O ue salvaríamos delas* @o ue desistiríamos* 1omente alguém ue atingiu independ"ncia e

desapego, alguém cuja terra natal é3doce3, mas cujas circunst#ncias tornam impossível recapturar essado%ura, pode responder a essas perguntas. SEssa pessoa também descobriria ue é impossível obtersatisfa%$o de arremedos fornecidos pela ilus$o ou pelo dogma.T 7sso pode parecer uma receita para aobten%$o de um panorama uniformemente tenebroso e, concomitantemente, uma desaprova%$o

 permanentemente sombria de toda possibilidade de entusiasmo ou de leveza de espírito. -$o necessariamente. Embora talvez pare%a estranho falar dos prazeres do exílio, há certas coisas positivas para sedizer sobre algumas de suas condi%'es. <er [o mundo inteiro como uma terra estrangeira\ possibilita aoriginalidade da vis$o. & maioria das pessoas tem consci"ncia de uma cultura, um cenário, um país osexilados t"m consci"ncia de pelo menos dois desses aspectos, e essa pluralidade de vis$o dá origem a umaconsci"ncia de dimens'es simult#neas, uma consci"ncia ue para tomar emprestada uma palavra da m9sica

 )é contrapontística.

=ara o exilado, os hábitos de vida, express$o ou atividade no novo ambiente ocorrem inevitavelmentecontra o pano de fundo da mem!ria dessas coisas em outro ambiente. &ssim, ambos os ambientes s$ovívidos, reais, ocorrem juntos como no contraponto. +á um prazer específico nesse tipo de apreens$o, emespecial se o exilado está consciente de outras justaposi%'es contrapontísticas ue reduzem o julgamentoortodoxo e elevam a simpatia compreensiva. 8emos [p. 59] também um sentimento particular de realiza%$oao agir como se estivéssemos em casa em ualuer lugar.

6ontudo, isso apresenta seus riscos: o hábito da dissimula%$o é cansativo e desgastante. O exílio jamais se configura como o estado de estar satisfeito, plácido ou seguro. -as palavras de Zallace 1tevens, oexílio é 3uma mente de inverno3 em ue o  pát!os do ver$o e do outono, assim como o potencial da

 primavera, est$o por perto, mas s$o inatingíveis. 8alvez essa seja uma outra maneira de dizer ue a vida doexilado anda segundo um calendário diferente e é menos sazonal e estabelecida do ue a vida em casa. O

exílio é a vida levada fora da ordem habitual. N nRmade, descentrada, contrapontística, mas, assim ue nosacostumamos a ela, sua for%a desestabilizadora entra em erup%$o novamente.

 p.VW

SAID, Edward. Reflexões sobre o exílio. In: ___________ Reflexões sobre o exílio e outros ensaios. São Paulo:Coman!ia das "e#ras, $%%&. .'()(%.