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O objetivo deste artigo é analisar algumas das mudanças políticas mais importantes ocorridas no Estado brasileiro nas últimas duas décadas do século XX. Para isso focalizarei dois processos que alteraram tanto o Estado como suas relações com a ordem social e a ordem econômica: a democra- tização política e a liberalização econômica. Esses dois processos foram dimensões-chave da transição política que transformou a forma au- tocrática e desenvolvimentista de Estado, vigente no Brasil desde os anos de 1930. Ao longo de sua existência, este Estado cumpriu o papel de núcleo organizador da sociedade, deixando pouco espaço para a organização e a mobilização autônomas de grupos sociais (sobretudo dos vinculados às clas- ses populares), e funcionou como alavanca para a construção de um capitalismo industrial, nacional- mente integrado mas dependente do capital exter- no, por meio de uma estratégia de substituição de importações. 1 Essa forma de Estado vem sendo de- nominada “varguista”, pois adquiriu suas caracte- rísticas básicas sob a presidência de Getúlio Vargas. Adotarei essa denominação porque ela acentua o caráter específico do Estado, cuja superação se es- tudará neste artigo. Não tenho dúvidas, porém, de que ele é uma entre outras modalidades autocráti- cas e desenvolvimentistas de Estado ocorridas na periferia capitalista no mesmo período. A transição política brasileira começou com a crise de Estado de 1983-1984 e terminou METAMORFOSES DO ESTADO BRASILEIRO NO FINAL DO SÉCULO XX * Brasilio Sallum Jr. * Agradeço a Lawrence Whitehead, Maria D’Alva Kinzo e Eduardo Kugelmas pelos valiosos comen- tários a este artigo. Ele é uma versão alterada do texto apresentado no Seminário Fifteen Years of Democracy in Brazil organizado pelo Institute of Latin American Studies em Londres, em fevereiro de 2001. Artigo recebido em março/2003. Aprovado em maio/2003. RBCS Vol. 18 nº. 52 junho/2003

Sallum metamorfoses do estado

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O objetivo deste artigo é analisar algumas

das mudanças políticas mais importantes ocorridas

no Estado brasileiro nas últimas duas décadas do

século XX. Para isso focalizarei dois processos que

alteraram tanto o Estado como suas relações com

a ordem social e a ordem econômica: a democra-

tização política e a liberalização econômica.

Esses dois processos foram dimensões-chave

da transição política que transformou a forma au-

tocrática e desenvolvimentista de Estado, vigente

no Brasil desde os anos de 1930. Ao longo de suaexistência, este Estado cumpriu o papel de núcleoorganizador da sociedade, deixando pouco espaçopara a organização e a mobilização autônomas degrupos sociais (sobretudo dos vinculados às clas-ses populares), e funcionou como alavanca para aconstrução de um capitalismo industrial, nacional-mente integrado mas dependente do capital exter-no, por meio de uma estratégia de substituição deimportações.1 Essa forma de Estado vem sendo de-nominada “varguista”, pois adquiriu suas caracte-rísticas básicas sob a presidência de Getúlio Vargas.Adotarei essa denominação porque ela acentua ocaráter específico do Estado, cuja superação se es-tudará neste artigo. Não tenho dúvidas, porém, deque ele é uma entre outras modalidades autocráti-cas e desenvolvimentistas de Estado ocorridas naperiferia capitalista no mesmo período.

A transição política brasileira começoucom a crise de Estado de 1983-1984 e terminou

METAMORFOSES DO ESTADO BRASILEIRO NO FINAL DO SÉCULO XX*

Brasilio Sallum Jr.

* Agradeço a Lawrence Whitehead, Maria D’AlvaKinzo e Eduardo Kugelmas pelos valiosos comen-tários a este artigo. Ele é uma versão alterada dotexto apresentado no Seminário Fifteen Years ofDemocracy in Brazil organizado pelo Institute ofLatin American Studies em Londres, em fevereirode 2001.

Artigo recebido em março/2003.Aprovado em maio/2003.

RBCS Vol. 18 nº. 52 junho/2003

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com o primeiro governo de Fernando HenriqueCardoso, momento em que o Estado ganhou es-tabilidade segundo um novo padrão hegemôni-co de dominação, moderadamente liberal emassuntos econômicos e completamente identifi-cado com a democracia representativa. Nessatransição, a democratização política foi mais im-portante na década de 1980 ao passo que a li-beralização econômica destacou-se nos anos de1990. Essa transformação política só pode sercompletamente entendida se a considerarmosno contexto da transnacionalização do capitalis-mo (desencadeada pela globalização financeira)e da democratização da sociedade brasileira.

Na próxima seção procuro caracterizar a cri-se do Estado varguista em função de sua impor-tância para a explicação dos processos de demo-cratização política e liberalização econômica.Essas duas dimensões serão os objetos centrais dasegunda e terceira seções do artigo, respectiva-mente. Ao final, faço um esboço das mudançaspolíticas recentes que apontam para o predomí-nio de um desenvolvimentismo renovado e paraum aprofundamento da democracia.

Crise de Estado e transição política

O cerne da crise do Estado desenvolvimen-tista brasileiro foi, do ângulo econômico, a inca-pacidade de fazer frente aos pagamentos da dívi-da externa no início da década de 1980,2

colocando em xeque o padrão costumeiro de re-lacionamento do Brasil com a ordem capitalistamundial. Dessa forma, a crise só poderia ser con-tornada ou superada mediante um re-arranjo daarticulação que havia permitido que o país tives-se apresentado até então um desenvolvimento ca-pitalista pujante, embora dependente. Conformefosse o caminho escolhido para enfrentar a situa-ção, poderiam surgir fraturas nas relações do Bra-sil com centros econômicos e políticos mundiaismais importantes e/ou na própria base domésticade sustentação política do Estado.

Ademais, a situação era tanto mais difícil por-que as mudanças em curso nos âmbitos interna-cional e doméstico acentuavam os riscos dessas

fraturas. Externamente, a moratória mexicana re-sultou na suspensão dos fluxos voluntários de em-préstimos bancários para o Brasil e outros paísesdevedores latino-americanos de 1982 até o final dadécada, o que provocou uma profunda crise eco-nômica na região. Além disso, desde meados dadécada de 1970, as idéias predominantes nos paí-ses centrais e nas agências financeiras multilateraisem relação à política econômica moveram-se,cada vez mais, do paradigma keynesiano para aortodoxia monetarista, inclinada a adotar políticasrígidas de contenção de gastos públicos e de con-trole monetário. Essas mudanças nos fluxos eco-nômicos e nas idéias predominantes em relação àgestão econômica restringiram muito a autonomiadas políticas econômicas nacionais.3

Internamente, as mudanças políticas inicia-das nos anos de 1970 e aprofundadas desde entãotambém dificultaram a rearticulação externa. Defato, nas eleições de 1982, o partido de sustenta-ção do regime militar perdeu sua maioria absolu-ta na Câmara dos Deputados e dez governos esta-duais importantes passaram a ser governados porpartidos da oposição.4 Com tais resultados, o pro-cesso de liberalização política, iniciado por Ernes-to Geisel em 1973-1974, pôs mais uma vez em xe-que o controle do regime militar sobre a mudançapolítica do país.5 Com efeito, esses insucessos po-líticos aprofundaram o padrão segundo o qualmudanças sociais empurravam sempre, para alémde seus próprios limites, o projeto de liberalizaçãopolítica do regime militar. De fato, a partir de1970, os alicerces politicamente excludentes do re-gime militar e do velho Estado varguista foramabalados por um vigoroso processo de democrati-zação política. As classes populares tornaram-sepoliticamente muito mais autônomas e tentarampartilhar valores materiais e não-materiais que an-tes eram exclusivos das classes média e alta. Pormeio das eleições, das atividades de novas asso-ciações civis ou da renovação da atuação de ve-lhas associações, as classes populares, parte dasclasses médias e, até mesmo, alguns setores em-presariais passaram a pôr em xeque a capacidadede o Estado controlar, como antes, a sociedade.6

Dessa forma, no início dos anos de 1980, ogoverno brasileiro encontrava-se em campo mina-

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do. Na escolha da estratégia para enfrentar a crise,ele sofria, ao mesmo tempo, pressões externaspara conduzir o país em direção à ortodoxia eco-nômica e estímulos na direção oposta, decorrentesdas novas condições políticas internas. Embora ogoverno tenha optado por um ajuste externo –produção de megasaldos no comércio exteriorpara pagar o serviço da dívida externa – acompa-nhado de um ajuste fiscal pouco drástico, isso foisuficiente para causar sérios danos ao seu supor-te sociopolítico.7

Com efeito, a estratégia escolhida para en-frentar o estrangulamento externo produziu umacrise política muito complexa.8 Ela começou pordissociar o governo da base de sustentação socio-política do Estado varguista. O “ajuste externo”opôs-se ao receituário econômico da coalizão de-senvolvimentista, que via no crescimento econô-mico nacional o valor básico a ser alcançado e fa-zia das empresas estatais seu pilar central desustentação. A política governamental foi conside-rada recessiva, inflacionária e “injusta”, pois trans-feria todos os custos do “ajuste” para os agenteseconômicos domésticos, principalmente para osassalariados e para as empresas estatais, evitandoonerar os credores externos. Assim, as políticasde governo não só se dissociaram dos interessesimediatos da base de sustentação do Estado comopassaram a ser consideradas ilegítimas, contráriasaos valores básicos da aliança desenvolvimentista.

Um dos resultados disso foi que parte da ve-lha coalizão desenvolvimentista passou a se oporao governo. As reações dos dirigentes das empre-sas estatais, duramente atingidas pela política de“ajuste” escolhida, foram pouco explícitas, em fun-ção mesmo do caráter autoritário do regime. Suaoposição manifestou-se indiretamente, pela resis-tência intra-burocrática aos comandos governa-mentais e pela atuação de parlamentares sintoniza-dos com as estatais no Congresso. Os empregadosdas empresas estatais, pelo contrário, manifesta-ram-se pública e claramente contra a política dogoverno, seja com demonstrações de rua, seja pelagreve de protesto.

Foi no empresariado privado, porém, queocorreu a fratura mais importante da base de apoiodo Estado. Parte das elites empresariais não apenas

se opôs à estratégia governamental de ajuste, masaderiu a “projetos” alternativos para enfrentar a cri-se econômica, indicando claramente o esvaziamen-to da liderança do governo. Uma porção da eliteempresarial, a dissidência mais numerosa, foi mag-netizada por uma versão mais nacionalista e indus-trialista de desenvolvimentismo e uma outra, bemmenor, foi atraída por uma variante periférica deneoliberalismo.

Essas reações surgidas no interior da eliteempresarial e no sistema de empresas estatais fa-voreceram a atuação da oposição político-partidá-ria no Congresso e seus esforços para mobilizar asclasses médias e populares na luta contra a per-petuação do regime militar. Essa mobilização demassa resultou, entre janeiro e março de 1984, namais importante demonstração pública ocorridano Brasil em favor da democratização política – acampanha das “ Diretas Já”.

A mobilização popular minou completa-mente o apoio ainda existente à política de de-mocratização gradual e limitada liderada pelo re-gime autoritário. Com isso, a crise políticaexpandiu-se e aprofundou-se: a perda de legiti-midade do governo estendeu-se, incluindo o pró-prio regime autoritário. Mais ainda, naquela con-juntura crítica, foi iniciada a ruptura dos limitesda legitimidade do Estado varguista. A entradamaciça da população na luta política em favor dasuperação rápida do regime autoritário produziuuma inovação substancial na vida política brasi-leira: obrigou o governo a tolerá-la, os meios decomunicação de massa fiéis ao regime a noticiá-la e as elites políticas a rejeitar as costumeirascondicionalidades interpostas à vigência da de-mocracia no Brasil. De fato, a idéia de que nãohá democracia sem participação popular e deque não há participação popular sem a liberdadeplena de associar-se e de manifestar demandascoletivas fortaleceu-se social e politicamente peloamplo apoio das classes médias e das massas po-pulares. A Campanha das Diretas redefiniu o es-paço legítimo da política no Brasil.

Em suma, apoiada pela mobilização de mas-sa, a oposição produziu uma crise no padrão vigen-te de hegemonia política. Daí em diante seria ina-ceitável um Estado que impusesse restrições à

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expressão e à organização políticas das massas po-pulares; um Estado assim só poderia se manter pelaforça e/ou pelo interesse. Dessa forma, a campanha“Diretas Já” anunciou um novo projeto de Estado,orientado por valores democráticos surgidos do cla-mor da sociedade pela democratização.9

Todavia, o regime militar derrotou no Con-gresso Nacional a proposta de eleições diretaspara a Presidência da República, minimizandocom isso os efeitos políticos mais profundos dacrise de hegemonia desencadeada pela mobiliza-ção de massa. O governo conseguiu, usando asalavancas de poder de que dispunha, contornarparcial e provisoriamente a crise: manteve asmassas populares fora do processo imediato deescolha do novo presidente da República, masnão conseguiu evitar que boa parte de sua basepolítico-partidária apoiasse a eleição de um go-verno civil liderado pela oposição. Não há dúvi-da, porém, quanto aos efeitos conservadores daexclusão das massas da sucessão presidencial: aoposição política, minoritária no Colégio Eleitoral,só teve condições efetivas de vencer moderandosuas ambições e efetuando um pacto político comdissidentes do regime autoritário. Ademais, osprogramas dos candidatos permaneceram dentrodos limites dados pelo próprio governo e por em-presários dissidentes. Tancredo Neves, candidatoda Aliança Democrática,10 assimilou algumas daspropostas desenvolvimentistas que contavamprincipalmente com apoio no empresariado in-dustrial. O candidato de direita, Paulo Maluf, fezalgo semelhante em relação ao projeto neoliberal,que tinha suporte de associações comerciais e nosetor agrícola de exportação. Mesmo com tais li-mitações, as propostas anunciavam sua sintoniacom as aspirações populares de implantar a de-mocracia política no país.

A esmagadora vitória de Tancredo Neves noColégio Eleitoral mostrou bem quais eram as as-pirações políticas dominantes na elite política bra-sileira e, implicitamente, qual o projeto políticoque prevaleceria no período presidencial seguin-te: construir uma Nova República, uma democra-cia plena, que não impusesse restrições aos mo-vimentos e às organizações populares, que tivessecomo orientação econômica um nacional-desen-

volvimentismo renovado e que combinasse cres-cimento econômico e redistribuição de renda.

A Nova República: democratização e desenvolvimentismo

Durante o governo Sarney11 o legado institu-cional autoritário ajustou-se ao processo de de-mocratização em curso, traduzindo as demandasde ampliação do espaço da política e do univer-so de seus participantes reconhecidos em regimepolítico democrático. Isso implicou tanto o rompi-mento dos limites institucionais impostos à parti-cipação e à organização política das classes popu-lares como a expansão dos direitos básicos docidadão. Eliminou-se, assim, na Nova República,um dos pilares centrais do Estado varguista emqualquer de suas formas de organização política.

De fato, já no início do governo de José Sar-ney alterou-se um conjunto de leis que bloquea-vam a participação política popular. No primeirosemestre de 1985 foram instituídos: a) eleições di-retas, em dois turnos, para a Presidência da Repú-blica; b) eleições diretas nas capitais dos estados,áreas de segurança e principais estâncias hidro-minerais; c) representação política para o DistritoFederal na Câmara dos Deputados e no SenadoFederal; d) direito de voto aos analfabetos; e) li-berdade de organização partidária, mesmo paraos comunistas; e todo um conjunto de alteraçõesmenores que iam na mesma direção. Além disso,a legislação sofreu algumas mudanças que provo-caram um enorme impacto na atividade políticados trabalhadores, aumentando muito seus direi-tos de participação e liberando-os do controle go-vernamental: a) foram readmitidos líderes sindi-cais, antes demitidos por “mau comportamento”;b) foi cancelado o controle do Ministério do Tra-balho sobre as eleições sindicais; e c) foi elimina-da a proibição de associações inter-sindicais, oque legalizou as atividades das centrais sindicaisque, até então, eram apenas toleradas.

Essas e outras mudanças nas normas que re-gulavam a vida pública e também a tolerância go-vernamental, quando do desrespeito à lei nas ma-nifestações coletivas, permitem caracterizar a Nova

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República como um arranjo político no qual vá-rios segmentos sociais, inclusive as classes popu-lares, puderam lutar por seus interesses e idéiascom grande liberdade de ação e organização. De-monstra bem este ponto o crescimento extraordi-nário do número de greves e dias parados duran-te o governo Sarney.12

O aumento da participação popular afetou ahierarquia entre os centros de poder do Estado, agestão governamental e a amplitude dos direitosde cidadania. De fato, a crise de hegemonia en-fraqueceu a hierarquia que caracterizava o regimeautoritário anterior. Na Nova República as pres-sões da base para o topo da sociedade fortalece-ram a autonomia dos centros de poder que antescostumavam ser subalternos. Portanto, o Congres-so Nacional, o Judiciário, os governos dos estadose os partidos políticos ganharam mais latitude deação em relação à Presidência da República.

As mudanças nas instituições políticas e noâmbito de poder dos diversos atores culminaram naConstituição de 1988, que ampliou o poder de açãodo Legislativo, do Judiciário e do Ministério Públiconos processos de decisão governamentais. Parte dabase material para exercer o poder – impostos e au-tonomia financeira – foi transferida da União para osestados e municípios, a ponto de transformar os úl-timos em verdadeiras unidades federadas (não su-bordinados aos estados). Em relação aos direitos decidadania, a nova Constituição estabeleceu uma re-gra política democrática e ampliou a proteção socialpara todos, trabalhadores ou não. Definiu como de-ver do Estado garantir vários direitos sociais – inclu-sive alguns direitos difusos, como os relacionados àproteção do meio ambiente – e tornou possível quecidadãos e coletividade exigissem o cumprimentodessas garantias pelo poder público. Além disso, osconstituintes ampliaram drasticamente o âmbito dasatividades dos promotores públicos fazendo do Mi-nistério Público um ramo especial do Estado, inde-pendente dos três poderes clássicos. Em sua novaforma, o Ministério Público recebeu a missão de as-segurar o cumprimento dos direitos da cidadania,garantidos em lei, inclusive contra a ação ou a omis-são do Estado.

Ao mesmo tempo, a mesma Constituição de1988 emprestou uma moldura legal rígida ao desen-

volvimentismo democratizado: foram ampliadas asrestrições ao capital estrangeiro, as empresas esta-tais ganharam mais espaço para suas atividades, oEstado obteve mais controle sobre o mercado e osservidores públicos e outros trabalhadores viramaumentar sua estabilidade no emprego e vários be-nefícios, inclusive os de aposentadoria. Portanto, aConstituição de 1988 assegurou a permanência àvelha articulação entre o Estado e o mercado nomomento mesmo em que o processo de transnacio-nalização e a ideologia liberal estavam para ganharuma dimensão mundial em função do colapso dosocialismo de Estado.

Dessa forma, durante a presidência de JoséSarney, a elite política brasileira realizou comple-tamente, do ponto de vista institucional, o proje-to da Nova República. Ainda assim, esta não seconverteu em um sistema estável de poder. A eli-te política dirigente fracassou em articular umanova coalizão sociopolítica que sustentasse o pro-jeto desenvolvimentista democratizado para, poresta via, superar a crise de Estado. A instabilidadeeconômica crescente no governo Sarney sinaliza-va, de fato, a fragilidade política do Estado. Noentanto, não se tratava apenas de a elite políticater ou não ter as idéias certas ou de ela fazer ounão as alianças apropriadas para estabilizar umnovo sistema de poder. Na verdade, as circunstân-cias em que ela operava eram muito difíceis paraque pudesse ter sucesso.

Com efeito, a elite política tentou renovar aestratégia desenvolvimentista, combinando distri-buição e crescimento econômico, mas o fez emum contexto externo muito adverso que, em vezde ser uma fonte de capitais (empréstimos estran-geiros ou investimentos), os drenava continua-mente do país (como obrigações internacionais).Ademais, a elite dirigente enfrentou esse ambien-te inóspito em circunstâncias políticas muito des-favoráveis. Ela teve de lidar com uma sociedadeonde os movimentos sociais e as organizações co-letivas floresciam e demandavam enfaticamente asatisfação imediata de suas carências. Talvez sepossa dizer que, em uma sociedade tão esperan-çosa como era o Brasil da Nova República, a es-cassez de recursos não dava muito espaço paranegociações políticas bem-sucedidas.

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Ademais, a elite política tentou resolver osproblemas surgidos com a crise do Estado varguis-ta como se o Estado não tivesse perdido muito desua autoridade política e de sua força material. Emfunção dessas perdas, as tentativas ortodoxas ouheterodoxas13 de enfrentar a instabilidade econô-mica depararam-se seja com ameaças coações ex-ternas decorrentes da ameaça ou da falta de paga-mento de débitos, seja com o veto e/ou a adesãoreticente de membros da velha aliança desenvolvi-mentista que sustentava o Estado, embora já semarticulação e objetivos definidos. Com efeito, alémdos credores privados externos, governos estran-geiros e organizações multilaterais, as atividadesdas coletividades novas ou renovadas, inspiradasem ideário ora conservador ora reformista e cons-tituídas a partir de distintas bases socioeconômicas,ajudaram a moldar as políticas estatais, algumas ve-zes estimulando e outras colocando alguns limitesà ação do Estado. Organizações de empresáriosagrícolas e de proprietários de terra, por exemplo,restringiram o programa de reforma agrária a ummínimo e, por sua atuação junto ao CongressoConstituinte, conseguiram assegurar amplamenteos direitos de posse da terra. Em sentido oposto,em 1989, ano da sucessão presidencial, fortes ma-nifestações organizadas pela Central Única de Tra-balhadores(CUT) e por sindicatos levaram o Con-gresso Nacional a não aprovar na íntegra ochamado Plano Verão visto que ele tentava estabi-lizar a moeda reduzindo os salários reais dos traba-lhadores. Seguramente, a eficácia da atuação dosmovimentos e das organizações populares e dascamadas médias na Nova República podem ser ex-plicadas, em boa parte, pela fragilidade material doEstado e pela articulação frouxa de sua base desustentação social.

Em síntese, a Nova República tornou-se umsistema instável de dominação política, em quenão se articulavam bem a dimensão institucional,a esfera sociopolítica e as condições econômicas.

Essa instabilidade resultou, de um ponto devista material, numa trajetória decadente de desen-volvimento. O Estado continuou a proteger o mer-cado interno, mas o dinamismo econômico ante-rior, que tinha permitido ao Brasil ter uma dasmaiores taxas de crescimento econômico do mun-

do, se esvaiu. As taxas de investimento caíram dras-ticamente: estancou a entrada de capital estrangei-ro e o Estado perdeu sua capacidade de investir. Osistema de empresas estatais, que tinham sido avanguarda do modelo desenvolvimentista anterior,perdeu seu dinamismo próprio passando a se su-bordinar aos objetivos governamentais do “ajusta-mento”, que visava a produzir insumos de preçosbaixos para combater a inflação e/ou ajudar o setorprivado a produzir saldos crescentes no comércioexterior. A desorganização tanto da economia comodas finanças públicas geraram flutuações súbitas nocrescimento do PIB, uma redução do crescimentoeconômico médio além de intensas pressões infla-cionárias. A inflação substituiu o desenvolvimentocomo questão política básica daquele período.Tudo isso constituiu um poderoso obstáculo paraque na Nova República o processo de democratiza-ção política produzisse o seu equivalente material.Assim, embora tenha havido expansão dos serviçospúblicos de bem-estar, na década de 1980 os brasi-leiros mais pobres não aumentaram sua participa-ção na renda nacional.

Ademais, as dificuldades de estabilizar umanova forma de Estado estimularam o crescimentono interior da elite brasileira de um novo projetopolítico para o país. Com efeito, na medida emque a elite econômica se tornava insegura e as-sustada com as iniciativas reformistas do governoda Nova República, sobretudo com as políticasheterodoxas de estabilização monetária, as idéiaseconômicas liberais passaram a se tornar relevan-tes para ela. Além de se mostrarem ineficientespara restringir a inflação e retomar o crescimentoeconômico de forma sustentada, as políticas hete-rodoxas foram interpretadas como ameaças à pro-priedade privada, pois restringiam a liberdade demercado e ameaçavam os contratos. Daí em dian-te, a elite empresarial mobilizou-se para moldar asestruturas e controlar as ações do Estado orientan-do-se, pelo menos parcialmente, pelas concep-ções neoliberais que vinham sendo difundidas,desde os anos de 1970, pelas instituições econô-micas multilaterais, por think tanks e governosdos países centrais.14 Dessa maneira, sobretudo de1987 1988 em diante, a elite econômica passou aconfrontar o intervencionismo do Estado, exigin-

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do desregulamentação, melhor acolhida para ocapital estrangeiro, privatização das empresas es-tatais etc. Assim, embora o liberalismo econômicono Brasil só tenha se tornado politicamente hege-mônico nos anos de 1990, essa hegemonia come-çou a ser socialmente construída ainda na segun-da metade da década de 1980.

Entretanto, mesmo que a retórica liberal te-nha sido absorvida pelos meios de comunicaçãoe tenha se difundido entre as camadas médias dapopulação, isso ocorreu em menor proporção naelite política, entre os trabalhadores organizadose servidores públicos, que continuaram a defen-der os ideais de “ propriedade nacional” e “regu-lação estatal”.

Eis porque a Constituição de 1988, que ma-terializou o projeto político da Nova República –democratização política e desenvolvimentismo de-mocratizado – tornou-se um alvo para os ataquesda elite empresarial e de seus líderes políticos e in-telectuais e, inversamente, converteu-se em trin-cheira para as organizações de trabalhadores, ser-vidores, funcionários das companhias estatais e daclasse média assalariada ligada ao serviço público.

A eleição direta para presidente da Repúbli-ca em 1989 sumariou os resultados políticos doperíodo anterior. Depois de quase trinta anos deinterrupção de disputas diretas para a Presidência,a eleição foi realizada com total liberdade de ex-pressão e reunião, constituindo um dos pontosmais altos de participação das classes populares edas camadas médias na política brasileira. Certa-mente, foi a crescente presença das classes popu-lares e média na esfera pública que abriu cami-nho para o desempenho eleitoral dos candidatosda esquerda no primeiro turno da eleição presi-dencial e, especialmente, para o ex-operário me-talúrgico e líder sindical Luiz Inácio da Silva (Lula)no segundo turno. Mesmo sendo candidato deum partido tão pequeno como o Partido dos Tra-balhadores (PT), Lula foi derrotado apenas poruma pequena margem de votos.15 Sublinhe-se,ainda, que este ótimo resultado foi obtido semmascarar as intenções reformistas do PT. Lula pro-meteu durante sua campanha uma ruptura efetivado padrão autocrático de dominação social: asclasses populares seriam conduzidas ao poder, o

governo faria uma redistribuição de renda deslo-cando recursos do topo para a base da sociedade,realizaria uma “verdadeira” reforma agrária e asempresas estatais seriam preservadas, embora suaadministração devesse ser democratizada. Emsuma, o reformismo de esquerda visava a elimi-nar, pelo menos em parte, a “exclusão social”, ra-dicalizando o processo de democratização ao lhedar bases materiais adequadas. No pólo oposto,dando menos de 5% dos votos aos candidatos doPMDB e do PFL o eleitorado ratificou o fracassoda elite política em converter a Nova Repúblicanuma forma estável de domínio político.

O processo eleitoral foi um momento de in-flexão nas referências ideológicas que polarizavamo sistema partidário. A partir da campanha de 1989,o confronto entre democracia e autoritarismo, quecaracterizava o sistema partidário desde a liberali-zação política do regime militar, tornou-se menosrelevante. As forças partidárias reorganizaram-se deacordo com novas polarizações, e, nesse processo,sobretudo as relações Estado/mercado ganharamespaço. Os partidos foram magnetizados pelasidéias econômicas liberais, de um lado, e pelo de-senvolvimentismo democratizado, de outro. O Par-tido da Social Democracia Brasileira (PSDB), dissi-dência do PMDB organizada como partido em1988, inclinou-se decisivamente para o liberalismo,como enfatizou seu candidato Mário Covas ao exi-gir para o país um “choque de capitalismo”. O Par-tido Democrata Cristão (PDC) e o Partido Liberal(PL) também adotaram um programa liberal. OPDS, partido do extinto regime militar, já havia seadaptado às idéias do livre mercado desde a crisede 1983/ 84, embora elas tenham sido sufocadasna disputa eleitoral, tal como na sucessão presi-dencial anterior, pelo populismo conservador deseu candidato Paulo Maluf. E, apesar da retóricanacional-desenvolvimentista do candidato do PFL,Aureliano Chaves, o partido vinha apresentando,desde a Constituinte, uma crescente inflexão libe-ral e não lhe deu apoio significativo. Na direçãocontrária, o PMDB, o PDT e o PT radicalizaram odesenvolvimentismo em sua versão nacionalista edistributivista.

A campanha eleitoral de 1989 mostrou tam-bém outra polarização ideológica: a oposição en-

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tre dois tipos diferentes de ideais democráticos.Embora todos os partidos fossem favoráveis à de-mocracia, aqueles que tinham a liberalização eco-nômica no centro de sua agenda sinalizavam aaceitação da democracia representativa, mesmoquando questionavam a forma presidencialista degoverno. No outro pólo, o da esquerda, enfatiza-va-se o caráter limitado da democracia represen-tativa (o de só dar espaço para atuação popularnos períodos eleitorais) e predominava a idéia deavançar em direção a formas mais participativasde democracia.

Em suma, com a vitória de Fernando Collorde Mello – político identificado com o neolibera-lismo e pouco simpático aos experimentos parti-cipativos da democracia –, as eleições presiden-ciais de 1989 tornaram-se o marco divisório entredois momentos da transição política brasileira,quais sejam, o período em que predominou a de-mocratização política e o que teve como seu im-pulso básico a liberalização econômica.

A nova hegemonia liberal e suas conseqüências16

O governo Collor confirmou, em parte, a in-flexão liberal manifestada no embate eleitoral de1989. Contribuiu para danificar o quadro institu-cional nacional-desenvolvimentista e redirecionara sociedade brasileira em um sentido anti-estatale internacionalizante.

Ainda assim, embora dando ao Estado o im-pulso inicial para conformar uma nova estratégia dedesenvolvimento, o governo Collor não conseguiuvencer a crise de Estado experimentada pela socie-dade brasileira desde o início da década de 1980.

Durante o período Collor, as licenças e asbarreiras não tarifárias à importação foram suspen-sas e as tarifárias alfandegárias foram redefinidas,criando-se um programa para sua redução progres-siva ao longo de quatro anos.17 Ao mesmo tempo,programou-se a desregulamentação das atividadeseconômicas e a privatização das companhias esta-tais que não estivessem protegidas pela Constitui-ção, afim de recuperar as finanças públicas e redu-zir aos poucos o papel do Estado no incentivo à

indústria doméstica. Finalmente, deu-se seqüênciaà política de integração regional com os países dafronteira sul, instituindo-se o Mercosul (1991), comvistas a ampliar o mercado para os produtos do-mésticos de seus participantes.

Essas medidas significavam o descarte daestratégia anterior de desenvolvimento, vigenteplenamente até o início dos anos de 1980, cujapretensão era construir uma estrutura industrialcompleta e integrada, usando o Estado como es-cudo protetor ante a competição externa e comoalavanca do desenvolvimento industrial e da em-presa privada nacional.

Essa reorientação estratégica, embora sintoni-zada com as novas inclinações liberais dos empre-sariado local e com as tendências ideológicas domi-nantes no plano internacional, foi insuficiente parasoldar um novo pacto político que superasse a cri-se de hegemonia iniciada em 1983. Não obstanteCollor parecesse ser um César auspicioso surgidodas fissuras da ordem política em crise com a pro-messa de superá-la, seu governo, em vez disso,contribuiu para aprofundá-las drasticamente, frus-trando as expectativas das forças políticas em cena.Para estabilizar a moeda o Plano Collor congeloupreços, confiscou provisoriamente e reduziu parteda riqueza financeira das classes médias e empre-sariais. Assim, além de atingir a riqueza material,ameaçou a segurança jurídica da propriedade priva-da. Ademais, o governo submeteu as organizaçõestradicionais dos empresários a ataques verbais sis-temáticos organizando, ao mesmo tempo, gruposde empresários para apoiá-lo na implementação desuas políticas. Também procurou exercer o poderdissociado da classe política e de seus mecanismostradicionais de sobrevivência; reduziu as despesasdo Estado de forma arbitrária por meio da demis-são em massa de servidores, desorganizando a ad-ministração pública; e tentou enfraquecer as orga-nizações oposicionistas de trabalhadoresestimulando organizações alternativas ligadas aogoverno. No campo internacional, Collor tambémteve dificuldades. Apesar de sua orientação liberale internacionalizante, a primeira equipe econômicado governo tentou postergar o fim da moratóriaherdada do período Sarney e enfraquecer a posiçãodos bancos estrangeiros privados na negociação da

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dívida externa. Essa estratégia contribuiu para en-fraquecer ainda mais o suporte da elite econômicabrasileira e estimulou o governo dos Estados Uni-dos a opor-se a ele e a proteger o sistema bancárionorte-americano. As dificuldades externas só dimi-nuíram quando uma equipe econômica muito maisliberal tomou posse, em 1991.18

Nesse contexto político tão perturbado éque Fernando Collor foi acusado de ser o chefeoculto de um esquema governamental de corrup-ção. Depois de ser investigado e processado peloCongresso, renunciou à Presidência da Repúblicapara evitar o impeachment.19 Em suma, Collor fra-cassou como César.20 Suas ações acirraram a crisepolítica. Em vez de dar às forças políticas em dis-puta os meios para resolver de forma negociadaseus próprios impasses, ele tentou impor-lhesuma solução alternativa “de cima para baixo”.Tentou restaurar de forma autocrática a estabilida-de da moeda – base das relações de troca e da au-toridade do Estado sobre o mercado – em umasociedade que, embora mal alinhavada politica-mente, já havia avançado muito no caminho dademocratização. Com efeito, o impeachment dopresidente Collor de Mello dificilmente teria ocor-rido se não houvesse avançado tanto na socieda-de o sentimento/concepção de que o governo e oEstado deviam obedecer a limites políticos e mo-rais muito mais estreitos do que anteriormente.Ele também não teria ocorrido se a capacidade deação autônoma dos vários agrupamentos sociais edos vários centros de poder do Estado não tives-se crescido tanto. As manifestações de dezenas demilhares de jovens “caras pintadas” que exigiramnas ruas o impeachment, os testemunhos corajo-sos de trabalhadores subalternos contra o chefede Estado, a conduta autônoma da imprensa, dorádio e da televisão, assim como do Congresso edo Judiciário são expressões – cada uma a seumodo – do processo de democratização políticado país.

Embora este governo tenha fracassado natentativa de superar a crise brasileira, desde o finaldos anos de 1980 as condições econômicas inter-nacionais vinham se tornando mais positivas paraos países da periferia. Alguns fatores e decisõespolíticas possibilitaram essa reversão, como o gran-

de aumento no volume das aplicações financeirasnos países centrais e em direção aos mercados“emergentes”, o “alívio” produzido nas carteirasdos credores em função do Plano Brady de rene-gociação da dívida externa e o aperfeiçoamentodas políticas de liberalização econômica nos paísesperiféricos.21 De qualquer forma, “depois de quasedez anos de transferências de recursos líquidos ne-gativos, a América Latina recebeu transferênciaspositivas do resto do mundo. A magnitude dos flu-xos de capital líquido para a nação cresceu drasti-camente em 1992 e 1993, ultrapassando 20 bilhõesde dólares” (Edwards, 1995, p. 82).

O grande afluxo de capital para o Brasil,22 oslegados do período Collor (avanço do liberalismoeconômico, no plano ideológico e institucional, erejeição a soluções autocráticas para a crise), aexacerbação da instabilidade político-econômicadurante o período Itamar Franco e o avassaladorcrescimento do prestígio popular de Luiz Inácioda Silva, candidato de esquerda à Presidência deRepública, foram algumas das condições e, aomesmo tempo, alavancas poderosas para a novatentativa, realizada em 1994, de superar a crise dehegemonia que minava a sociedade brasileiradesde o início da década de 1980.23

As condições e as características do sistema ins-titucional brasileiro especificam a fortuna com que sedefrontaram algumas lideranças políticas que, bemsituadas no seio do Estado e temerosas de perder oseu controle, tiveram virtú suficiente para aproveitara ocasião e negociar a associação entre partidos decentro e de direita em torno da continuidade das re-formas liberais, da estabilização da economia e datomada do poder político central. Tudo isso foi ma-terializado nos lançamentos bem-sucedidos do Pla-no Real e da candidatura à Presidência da Repúbli-ca de seu articulador, o então Ministro da Fazenda,Fernando Henrique Cardoso.

A referência à fortuna e à virtú permite reto-mar cum grano salis a idéia de “momento maquia-veliano”, de John Poccok, que enfatiza o papel daliderança na manipulação criativa das oportunida-des legadas pela fortuna para fazer prevalecer osinteresses gerais da comunidade política ameaça-da pela confrontação entre interesses particularis-tas, reconstruindo com isso o Estado.24

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Segundo Sola e Kugelmas (1996), o próprioPlano Real teria sido a construção desse “princí-pio de universalidade [...] capaz de assegurar a su-peração da particularidade e da contingência ine-rentes ao comportamento descontrolado dasforças em conflito”, para retomar os termos se-gundo os quais Malloy e Connaghan (1996) defi-nem o momento maquiaveliano. Seguindo esseraciocínio, a utilização criativa da Revisão Consti-tucional25 em curso no sentido de gerar condiçõesfiscais mínimas para a estabilização (Fundo Socialde Emergência, votado em fevereiro de 1994); ainstituição de uma moeda paralela, a URV (Unida-de de Referência Variável), unidade de conta quegeneralizou a indexação e sincronizou preços esalários, criando uma espécie de “hiperinflação delaboratório”; e a substituição, no dia 1º de julhode 1994, da URV pelo real, nova moeda ancora-da, mas não igual, ao dólar; tudo isso, além dedezenas de regulamentações específicas, teriaproduzido a estabilidade.

Contudo, o Plano Real não foi senão umpasso, certamente essencial, na construção do“princípio de universalidade” que permitiu supe-rar a conjuntura crítica anterior. Embora tenhasido uma fórmula técnica brilhante para estabili-zar a moeda, cujo sucesso foi essencial tambémdo ponto de vista eleitoral, o Plano foi apenasuma peça subordinada do “momento maquiave-liano”, cujo elo principal foi a aliança política en-tre partidos de centro e direita em torno de umprojeto de tomada de poder e de reconstrução doEstado em uma perspectiva liberal. O próprio pa-pel da liderança, sua virtú, embora crucial foi li-mitado, na medida em que deu o acabamento fi-nal a um processo de construção da hegemonialiberal cujos alicerces tinham sido erguidos, noplano societário, durante a segunda metade dadécada de 1980.

O extraordinário sucesso do Plano Real, aeleição de Fernando Henrique Cardoso para a Pre-sidência da República já no primeiro turno, a es-colha de um Congresso Nacional onde o chefe deEstado pode construir uma aliança partidária am-plamente majoritária, a vitória de políticos aliadosdo presidente em quase todos os estados – tudoisso já permitia antever que no dia 1º de janeiro

de 1995 os representantes de um novo sistemahegemônico de poder assumiriam o comando deum Estado ancorado numa moeda provavelmenteestável. Nada parecia faltar para que eles pudes-sem completar bem a tarefa de moldar a socieda-de ao ideário econômico liberal.

A partir de 1995, os novos governantes trata-ram de eliminar os resíduos do Estado varguista ede construir novas formas de regulamentar o mer-cado, seguindo um sistema multifacetado deidéias, cujo denominador comum era um liberalis-mo econômico moderado. As características cen-trais desse ideário podem ser assim resumidas: oEstado deveria transferir quase todas as suas fun-ções empresariais para a iniciativa privada; teriaque expandir suas funções reguladoras e suas po-líticas sociais; as finanças públicas deveriam serequilibradas e os incentivos diretos às companhiasprivadas seriam modestos; haveria também restri-ção aos privilégios existentes entre os servidorespúblicos; e o país deveria intensificar sua articula-ção com a economia mundial, embora dandoprioridade ao Mercosul e às relações com os de-mais países sul-americanos.

Esse conjunto básico de idéias liberais mate-rializou-se em iniciativas que mudaram drastica-mente as relações anteriores entre mercado/Esta-do e a ordem de prioridades do Estado em relaçãoaos segmentos socioeconômicos, tanto em termospatrimoniais como institucionais. O alvo centraldessas políticas era solapar alguns dos fundamen-tos legais do Estado nacional-desenvolvimentista,em parte assegurados pela Constituição de 1988,e diminuir a participação do Estado nas atividadeseconômicas. Neste ponto, o governo de Cardosofoi bem-sucedido, já que os projetos de reformaconstitucional e infra-constitucional submetidosao Congresso foram quase todos aprovados, entreos quais se destacaram a) o fim da discriminaçãoconstitucional ao capital estrangeiro; b) a explora-ção, o refino e o transporte de petróleo e gás, mo-nopolizados pela companhia estatal de petróleo(Petrobrás), foram transferidos para a União econvertidos em concessão do Estado às empresas,principalmente a estatal, que manteve grandesvantagens em relação a outras concessionáriasprivadas; e c) o Estado foi autorizado a conceder

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os direitos de exploração dos serviços de teleco-municação (telefonia fixa e celular, exploração desatélites etc.) a companhias privadas (anterior-mente as empresas públicas tinham o monopóliodos serviços).

Além de promover esse conjunto de reformasconstitucionais, o governo Fernando Henrique Car-doso não só estimulou o Congresso a aprovar a leicomplementar que regulava as concessões de ser-viços públicos à iniciativa privada, autorizada pelaConstituição (eletricidade, estradas, ferrovias etc.),mas também conseguiu a aprovação de uma lei deproteção aos direitos de propriedade industrial eintelectual, tal como recomendado pela OMC e,ainda, efetuou um enorme programa de privatiza-ções e venda de concessões, preservando o pro-grama de abertura comercial já implementado. Deforma similar, os governos dos estados realizaramprogramas de privatização e concessões, mas emmenor escala.

Outra área importante atingida por medidasdisciplinares foram as finanças públicas. Fixaram-se limites máximos para todos os pagamentos depessoal, as dívidas dos estados e municípios fo-ram renegociadas e foram proibidos, por muitotempo, novos empréstimos e renegociações juntoao governo Federal.26

Esse conjunto de iniciativas parecia ter ma-terializado o código comum de um novo blocohegemônico de dominação, adotado por políticose burocratas com comando sobre o poder Execu-tivo, pela grande maioria de parlamentares, porempresários dos mais variados setores, pela mídiaetc. e, gradualmente, dominou a classe média eparte do sindicalismo urbano e das massas popu-lares. Com efeito, as medidas legislativas foram fa-cilmente aprovadas pelo Congresso Nacional,apesar da oposição de uma minoria da esquerdaportadora das bandeiras da “defesa do patrimôniopúblico” e da “economia nacional”. As privatiza-ções e as vendas de concessões também forambem-sucedidas e tiveram apoio popular, apesardas disputas forenses e das manifestações de ruapromovidas por organizações de esquerda.

Contudo, nesse novo bloco político hegemô-nico, vinculado pelo já mencionado liberalismoeconômico moderado, fortes divisões internas ge-

raram conflitos reiterados sobre a política econô-mica e acabaram dando um caráter híbrido àsações do Estado. No se interior havia, de um lado,uma corrente liberal fundamentalista orientada ba-sicamente para a estabilização monetária e com-prometida com a promoção de uma economia delivre mercado e, de outro, uma tendência liberal-desenvolvimentista, mais inclinada a equilibrar es-tabilização monetária com um crescimento com-petitivo da economia local mediante a intervençãomoderada do Estado.

Ao longo do primeiro mandato de FernandoHenrique Cardoso, a primeira versão de liberalismopredominou, servindo de orientação e dando con-sistência à ação dos que dirigiram a política econô-mica governamental.27 Os fundamentalistas tenta-ram obter a estabilização monetária com políticasde câmbio sobrevalorizado,28 juros altos e ajuste fis-cal brando. A segunda corrente liberal, a desenvol-vimentista, não tinha a consistência da primeira,pois não possuía um texto programático nem orien-tava sistematicamente a ação governamental.29 En-tretanto, o liberal-desenvolvimentismo inspirou al-gumas políticas destinadas a contrabalançar asconseqüências negativas da ortodoxia liberal parasetores específicos da economia ou mesmo promo-ver o crescimento de algumas atividades produtivasno país. Deve-se salientar que esse tipo de desen-volvimentismo liberal, em lugar de visar à constru-ção de um sistema industrial nacionalmente integra-do, reivindica que a produção doméstica tenhauma participação significativa no sistema econômi-co mundial. Ele só aceita formas bem definidas deintervenção estatal no sistema produtivo, como po-líticas industriais setoriais, desde que limitadas notempo e no montante de subsídios. Não desejasubstituir importações a qualquer custo, mas au-mentar a competitividade de alguns setores econô-micos e, no máximo, reduzir a dependência exter-na pelo “adensamento das cadeias produtivas”,introduzindo novos elos no tecido industrial, semperder de vista, porém, a necessidade de equipararsua competitividade aos padrões internacionais.30

Embora durante o primeiro governo Cardosoa sobrevalorização do câmbio e as altas taxas de ju-ros tenham produzido estabilidade monetária, tam-

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bém conduziram a economia brasileira a um dese-quilíbrio externo bastante sério. Para reduzi-lo ogoverno limitou um pouco a apreciação cambial eacentuou a elevação dos juros com dois objetivoscomplementares: refrear a atividade econômica do-méstica e as importações, diminuindo em conse-qüência o déficit comercial, e atrair capitais do Ex-terior para financiar o desequilíbrio externo dopaís, mantendo assim um nível de reservas alto obastante para ancorar a nova moeda nacional. Esseprograma de estabilização sustentava-se numa per-cepção otimista do mercado financeiro global, quevia sua liquidez como permanente e capaz deequilibrar com empréstimos e investimentos dese-quilíbrios ocasionais no balanço de transações cor-rentes do Brasil com o Exterior, caso o desempe-nho econômico do país fosse adequado.

A crise financeira do México, em dezembrode 1994, mostrou pela primeira vez os riscos deadequar a política macroeconômica à orientaçãoliberal fundamentalista. De fato, tal crise deixouclaro que, dependendo das circunstâncias inter-nacionais, poderia ser difícil obter capital no Ex-terior para financiar um desequilíbrio acentuadonos balanços comerciais e de serviços. Apesardessa advertência e embora o governo tenha ado-tado algumas políticas compensatórias para prote-ger a economia doméstica, sua orientação ma-croeconômica básica foi mantida até a crisecambial de janeiro de 1999.

Essa obstinação contribuiu para aumentarmuito a fragilidade financeira externa da econo-mia brasileira e a debilidade do Estado ante oscredores privados, pois levou ao endividamentocrescente para cobrir os desequilíbrios geradospela política macroeconômica. Como resultado dadependência financeira, as mudanças nas condi-ções do mercado internacional afetaram cada vezmais, pela variação do fluxo de capitais, o equilí-brio das contas externas do país e expuseram amoeda nacional a ataques especulativos tenden-tes a desvalorizá-la. Assim, depois da crise mexi-cana, a crise financeira asiática de 1997 e a mora-tória russa de agosto de 1998 abriram caminho atais ataques especulativos.

Em todas essas situações críticas o país per-deu uma grande quantidade de reservas interna-

cionais e o governo agiu de forma semelhante, ouseja, manteve a estabilidade da moeda elevandodrasticamente os juros para preservar as reservas erefrear tanto a atividade econômica interna como odesequilíbrio externo. Essas medidas conseguirampreservar o valor da moeda em relação ao dólar emanter a inflação em nível muito baixo, emboranão reduzissem a fragilidade financeira externa dopaís, pois aumentavam a dívida pública e não re-duziam o déficit de transações correntes com o Ex-terior. Além disso, elas restringiram muito o cresci-mento do produto nacional bruto e elevarambastante as taxas de desemprego.31

A fragilidade financeira do país em relaçãoao Exterior acabou cobrando um preço alto de-mais. A política cambial brasileira teve de ser alte-rada no início do segundo mandato de FHC paraevitar o esgotamento das reservas em moeda es-trangeira que ancoravam o real. Sublinhe-se aindaque a mudança ocorreu apesar de o governo terassinado acordo com o FMI em novembro de 1998e ter obtido grande empréstimo dos Estados Uni-dos para se defender com mais segurança da fugade capitais externos.

A substituição do antigo nacional-desenvol-vimentismo por uma estratégia liberal de desen-volvimento redirecionou o Estado em relação avários setores socioeconômicos. Ressalte-se a pro-pósito que, desde o lançamento do Plano Real atéjaneiro de 1999, a estratégia liberalizante privile-giou nitidamente a esfera financeira ante as ativi-dades produtivas e comerciais por meio das polí-ticas de juros altos e câmbio sobrevalorizado.Estas duas políticas funcionaram o tempo todocomo bombas de sucção dos recursos do Estadoe das atividades produtivas e comerciais para osdetentores, locais ou estrangeiros, de capital fi-nanceiro. Isso mostra haver nítida afinidade entreo predomínio do fundamentalismo liberal no blo-co político hegemônico e a fase da “financeiriza-ção da riqueza” que caracteriza o capitalismomundial contemporâneo.32

Entretanto, a transformação mais distintivaocorrida na relação Estado/economia foi terem asempresas estatais deixado de ser os suportes dagestão econômica governamental. Além de a maio-ria das estatais ter sido privatizada, algumas áreas

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antes atendidas pela administração direta do Estadopassaram aos cuidados de empresas privadas (ma-nutenção de estradas de rodagem, por exemplo). Adiminuição drástica das funções empresariais do Es-tado não eliminou o intervencionismo estatal, maso modificou profundamente. O Estado expandiusuas funções normativas e de controle por meio deagências reguladoras setoriais (telecomunicações,eletricidade, petróleo e gás, por exemplo) e mante-ve grande parte de sua capacidade de moldar a ati-vidade econômica pelo financiamento de longoprazo às empresas privadas e pela compra de bense serviços.

Também as companhias privadas nacionaisdeixaram de ser o foco privilegiado das políticasestatais. Não só as companhias estrangeiras foramconstitucionalmente equiparadas às nacionais,mas também a orientação estatal básica foi a deatrair ao máximo os investimentos externos e a depromover sua associação com as empresas lo-cais.33 Além dessa orientação geral (tanto da Uniãoquanto dos estados), o governo federal tentouatrair, sistematicamente, as companhias multina-cionais para ramos da indústria como o automoti-vo, o de telecomunicações etc., modulando as leistributárias e o sistema de financiamento e toman-do iniciativas para “vender” a imagem do Brasilcomo um excelente destino para o capital estran-geiro. É possível que isso tenha ajudado o Brasila se tornar um dos maiores destinos do investi-mento estrangeiro direto no mundo, embora sem-pre ultrapassado, entre os países “emergentes”,pela China.34

Outra mudança importante introduzida narelação Estado/economia é que, desde 1995, ten-deu a desaparecer a prioridade política antesconcedida ao desenvolvimento das manufaturasindustriais. No âmbito de BNDES, principal agen-te financeiro da industrialização brasileira, foi no-tável a diversificação das atividades econômicasatendidas. Além de manufaturas, foram financia-das empresas comerciais, agrícolas etc. A agricul-tura empresarial, sobretudo, foi diretamente be-neficiada pelo governo federal e teve seusinteresses de expansão convertidos em demandaprioritária da política externa brasileira. Desde1996 – quando ganharam impulso as discussões

em torno da assinatura de acordos de livre-comér-cio com os Estados Unidos e a União Européia –os assuntos agrícolas e a luta contra as políticasprotecionistas dos países centrais tornaram-se umponto central da diplomacia brasileira.

As mudanças na orientação do Estado foramtão profundas que romperam um dos parâmetrosbásicos da velha aliança nacional-desenvolvi-mentista: a propriedade agrária deixou de ser in-tocável. A própria estabilização monetária redu-ziu os preços da propriedade territorial, antesmuito usada como reserva de valor. Além disso,não só por iniciativa do próprio governo, mastambém por pressão social do Movimento dosTrabalhadores sem Terra (MST), da ConfederaçãoNacional dos Trabalhadores Agrícolas (Contag) eda Igreja Católica, durante os dois mandatos deCardoso desenvolveu-se um grande programade reforma agrária. Este incluiu desapropriações depropriedades improdutivas e o assentamentode centenas de milhares de famílias de trabalha-dores agrícolas sem terra, assim como um con-junto de reformas institucionais e medidas espe-cíficas que elevaram a taxação sobre terrasimprodutivas e aumentaram o controle do poderpúblico sobre a propriedade fundiária, inclusivepela retomada da posse sobre imensas áreas ile-galmente apropriadas por grileiros.

Liberalismo, desenvolvimentismo e democracia

Embora a reeleição de Fernando HenriqueCardoso em 1998 e a manutenção quase total deseu suporte político (no Congresso e entre os go-vernadores) tenham confirmado a aquiescênciada maioria em relação ao programa liberal, o go-verno perdeu sua força política anterior, pois dei-xou de ter controle sobre sua política econômica(foi levado a desvalorizar da moeda em janeiro de1999 mesmo depois de recorrer ao apoio do FMIe do governo norte-americano) e foi constrangidopor enormes dificuldades econômicas.

É verdade que o governo teve sucesso nasubstituição do regime de câmbio semi-fixo e so-brevalorizado pelo câmbio flutuante e no manejo

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da política monetária. A estabilidade da moeda foimantida e, depois da estagnação de 1999, houveum crescimento de 4% do PIB em 2000. Entretan-to, o apoio do FMI foi dado e renovado em trocado compromisso de o governo fazer um severoajuste fiscal, objetivando produzir um grande su-perávit anual nas contas públicas (sem consideraros juros devidos), um superávit grande o bastantepara permitir reduzir a proporção da dívida públi-ca em relação ao PIB.35 Além disso, a estagnaçãointernacional de 2001 e 2002, a crise da Argentinae o risco político associado à eleição presidencialde 2002 produziram constrangimentos adicionaisàs políticas governamentais. Houve, de fato, umaimportante redução dos fluxos de investimentosexternos diretos (IDE) para o Brasil e dificuldadespara rolar as dívidas externa e interna.36

Assim, uma vez mais, revelaram-se a depen-dência externa e a fragilidade econômica do Bra-sil, apesar da nova política de câmbio flutuante.Esta não pode proteger plenamente a economiada conjuntura internacional negativa e das incer-tezas políticas em função das enormes dívidas ex-terna e interna produzidas pela política de estabi-lização do primeiro governo Cardoso e docrônico déficit brasileiro nas suas transações cor-rentes com o exterior. As contramedidas do Ban-co Central – aprofundar o ajuste fiscal, aumentaras taxas de juros e assinar novos acordos com oFMI –, embora protegessem a solvência financei-ra do Brasil, reduziram o crescimento do PIB em2001 e 2002 a menos de 2% anuais.37

A nova gestão macroeconômica surgida apartir da crise cambial de janeiro de 1999 implicoualgumas mudanças nas relações Estado/setoreseconômicos. As atividades não financeiras tende-ram a ganhar mais relevância e o governo estimu-lou de diferentes maneiras os segmentos econômi-cos que podiam ajudar a produzir superávit nocomércio exterior. Durante do segundo governoCardoso até foi dada atenção e alguma ajuda àscompanhias que tinham certa probabilidade decompetir internacionalmente como multinacionais.

Essas mudanças podem ser vistas como si-nais de transformação política dentro do blocohegemônico. Este se inclinou de forma irregular ehesitante em direção a seu pólo liberal-desenvol-

vimentista. Com efeito, desde o começo de 2000o Ministério do Desenvolvimento, o da Ciência eTecnologia, a Secretaria do Planejamento e até aPresidência da República manifestaram sinais des-se tipo de transformação, mais acentuada aindacom a aproximação das eleições de 2002. Mesmoassim, os portadores do fundamentalismo liberalmantiveram o controle sobre as principais alavan-cas do poder – o Ministério da Fazenda e o Ban-co Central – e por meio delas preservaram a prio-ridade para a estabilização, embora tenhamadotado a política fiscal, em lugar da política cam-bial, como instrumento central para conservá-la.Em suma, o bloco hegemônico manteve suas di-visões internas, embora atenuadas, e seus confli-tos internos foram deslocados da questão cambialpara assuntos fiscais. Como conseqüência, as de-cisões governamentais tenderam a ser lentas enão sistemáticas.

As dificuldades econômicas e políticas men-cionadas contribuíram também para enfraquecera coalizão política que governava o Estado du-rante o segundo governo Cardoso. No seu pri-meiro mandato, o presidente FHC tinha um altoprestígio popular, originado principalmente dasúbita estabilização monetária, o que reforçou ospoderes presidenciais usuais e o ajudou muito alidar com a ampla coalizão de partidos governis-tas para executar o programa reformista liberal.Além disso, a estabilidade monetária conseguidapelo Plano Real e a política de contenção econô-mica que predominou no primeiro governo deFernando Henrique Cardoso restringiu a açãodos movimentos e das organizações das massaspopulares. A hegemonia liberal também dificul-tou a mobilização dos sindicatos que se mantive-ram ideologicamente vinculados a idéias estatis-tas ou social-democratas. Ademais, a propagaçãodo apoio popular ao governo facilitou a adoçãode um estilo tecnocrático de exercer o poder ereforçou as dificuldades de participação políticapopular fora dos períodos eleitorais. É notávelque, apesar dessas dificuldades, tenha aumenta-do muito a mobilização dos trabalhadores agríco-las em favor da reforma agrária, forçando o go-verno a desenvolver o amplo programa dereforma agrária antes mencionado.

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No segundo governo Cardoso, entretanto, opresidente perdeu muito prestígio, principalmen-te porque o governo não manteve as promessas,desvalorizando a moeda em janeiro de 1999 e de-sencadeando a desconfiança na sua capacidadede manter a estabilidade monetária. A crise cam-bial afastou, ao mesmo tempo, a possibilidade deo governo realizar em tempo as promessas de re-tomada do crescimento econômico. A inflaçãoalta não voltou e as atividades econômicas come-çaram a crescer, pouco mais de um ano depois,mas, mesmo assim, o presidente não recuperou oprestígio político e a liderança que tinha no seuprimeiro mandato. Dessa forma, a coalizão políti-ca governamental tornou-se menos disciplinada eo governo perdeu muito de sua capacidade paraaprovar leis no Congresso e para definir políticasespecíficas, dando margem ao fortalecimento dospartidos de oposição. Em contrapartida, tais parti-dos passaram por grande metamorfose ao longodos anos, tornando-se cada vez mais permeáveisàs idéias liberais. A mudança foi até o ponto de acamada dirigente do principal partido oposicio-nista, o Partido dos Trabalhadores, não ultrapas-sar os limites do que temos denominado liberal-desenvolvimentismo.

A luta eleitoral pela Presidência da Repúbli-ca, em 2002, exprimiu muito bem as mudançasocorridas no bloco hegemônico, a debilidade dacoalizão política governante e a mudança ideoló-gica dos principais partidos de oposição. Nenhumcandidato à Presidência defendeu o fundamenta-lismo liberal. Além de advogar idéias liberal-de-senvolvimentistas, o candidato situacionista nãoconseguiu manter o apoio de toda a coalizão desustentação de Cardoso. A ala direita da coalizãoabandonou a candidatura oficial mas não tevecondições de lançar o seu próprio candidato àPresidência. Foi capaz de mostrar apenas algumaforça no plano regional. Por outro lado, os con-correntes de oposição mostraram-se sintonizadoscom as idéias liberal-desenvolvimentistas, a des-peito da exacerbada retórica nacionalista de al-guns deles. Especialmente o Partido dos Trabalha-dores e seu candidato fizeram grandes esforçospara se ajustar ao establishment, seja comprome-tendo-se a manter o eixo da gestão econômica de

Cardoso seja aproximando-se do centro do espec-tro partidário. De fato, além do PT se comporcom alguns partidos de esquerda, aliou-se ao Par-tido Liberal e fez de um empresário, senador poreste partido, o seu candidato à vice-presidente.

Em suma, nas eleições de 2002, o conjuntodas forças políticas tentou posicionar-se na ala es-querda do establishment. Isto significa que todoseles advogavam mais controle do Estado sobre omercado, mais incentivos estatais para as atividadesprodutivas e maior proteção do Estado para os maispobres, mas tudo isso sem quebrar o molde liberalque conforma a coalizão sociopolítica no poder.

Assim, embora a vitória do Partido dos Tra-balhadores na eleição para a Presidência presidên-cia da República tenha resultado, evidentemente,em mudança da coalizão política governamental,ela não tende a produzir qualquer ruptura na he-gemonia liberal estabelecida anos atrás. Mesmoque haja tensão entre a nova coalizão político-par-tidária que comanda o Estado e a coalizão socio-política que o vem sustentando, o eixo da agendado novo governo é liberal-desenvolvimentista: seuobjetivo não é reconstruir o Estado empresarial,mas reformar o Estado para que possa estimular odesenvolvimento privado e a igualdade social.38

É certo que os novos governantes vêm afir-mando que suas políticas ortodoxas são apenas“um remédio inevitável mas provisório”, a ser uti-lizado só enquanto a dívida interna e externa e aestagnação econômica internacional continuarema constranger a capacidade de ação do Estado.Embora o novo governo queira sugerir com issoque há uma diferença qualitativa da política queadota com a do anterior, não se vislumbra no ho-rizonte nenhuma alternativa de gestão macroeco-nômica que, alterados os atuais constrangimentos,não pudesse ser adotada também pelo governoCardoso, caso ainda estivesse no poder. O que sepode esperar, sim, é que o governo Lula no futu-ro expanda e dê uma maior consistência às polí-ticas de desenvolvimento e às políticas sociaisempreendidas pelo governo Cardoso. Dada a de-pendência do Estado em relação ao capital finan-ceiro, não parece provável a adoção de políticasmuito drásticas de redistribuição do patrimônio eda renda, ainda que haja muita boa vontade entre

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as elites em relação a programas de combate à mi-séria e à pobreza. É verdade, também, que o novogoverno tem advogado uma maior participaçãopolítica no desenho e na gestão das políticas esta-tais, contrariando o estilo tecnocrático de decisãodo governo anterior. E que, em função disso, fo-ram criados vários conselhos consultivos – com-postos por representantes convidados de organi-zações sociais e por membros do governo.Embora as promessas de maior participação polí-tica tenham tido, sem dúvida, um alto valor polí-tico para a eleição do atual presidente, especial-mente entre os empresários e a classe média,ainda é muito cedo para avaliar se os mecanismosimaginados para realizá-las produzirão transfor-mações institucionais significativas que aprofun-dem a ordem democrática vigente.

Seja como for, o extraordinário conjunto dereformas liberalizantes efetuadas nos anosde 1990 definiu o quadro institucional básico queregulará as relações entre o Estado e o mercado eentre o sistema econômico nacional e o capitalis-mo mundial no começo do século XXI. Esse qua-dro dificilmente será alterado a médio prazo, poisé a materialização de uma nova perspectiva hege-mônica na sociedade. As mudanças ocorridas nagestão econômica inclinaram-na cada vez maispara o liberal-desenvolvimentismo, e é razoávelsupor que o novo governo de esquerda tenda areforçar as características centrais dessa inflexãono campo hegemônico liberal. A dependência ex-terna e o Mercosul são os elos mais frágeis danova forma de integração do país no capitalismomundial. De um lado, a incapacidade crônica degerar poupança interna suficiente para sustentarinvestimentos ameaça o desenvolvimento econô-mico contínuo do Brasil. De outro, a fraquezaeconômica e a política dos países membros doMercosul no plano mundial e a falta de harmoniaentre eles pode complicar a sua consolidaçãocomo bloco regional. Ademais, os Estados Unidospressionam intensamente para subordinar o Mer-cosul a um processo de integração que com-preende toda a América sob sua liderança.

De uma perspectiva mais ampla, foi notável oprogresso brasileiro na direção de uma sociedademais democrática. Há nítidas manifestações de in-

tolerância crescente das classes médias e popularesdiante do comportamento predatório das elites etambém cada vez mais exigências de distribuiçãomais justa da renda. Essas demandas de responsa-bilidade política e social tendem a consolidar asinstituições políticas democráticas e, como a válvu-la inflacionária – mecanismo de escape típico da-quela elite em face das pressões distributivas – estárazoavelmente bloqueada, parece provável queparalelamente ao crescimento econômico venha aocorrer uma maior redução dos índices brasileirosde desigualdade material e cultural.

Nas últimas décadas do século XX, pormaiores que tenham sido as mudanças ocorridas,o Brasil não escapou de sua condição periférica.A retomada do crescimento acelerado e a conso-lidação do Mercosul não serão suficientes parapermitir que isso ocorra. Superar essa condiçãoexige a inclusão social e econômica dos mais po-bres, que ainda permanecem à margem das con-quistas materiais da civilização moderna. Este é odesafio mais difícil e mais necessário para a socie-dade brasileira superar neste século XXI.

NOTAS

1 Sobre o padrão autocrático de dominação na socie-

dade e no Estado brasileiros consultar Fernandes

(1975). Em relação ao Estado desenvolvimentista

brasileiro ver Draibe (1985). Marçal Brandão (1997)

faz uma análise das dificuldades da população em

participar autonomamente da política mesmo du-

rante o período de democracia populista anterior ao

regime militar autoritário instalado em 1964.

2 A moratória brasileira do final de 1982 e a assinatu-

ra de acordo com o FMI em janeiro de 1983 sinali-

zam o caráter externo da crise. Isso não significa

ausência de desequilíbrio fiscal. Este não dava, po-

rém, especificidade à crise, ao contrário do que tem

sublinhado Bresser Pereira (1993). A diferença é im-

portante pois, se o desequilíbrio fiscal não decor-

resse principalmente do endividamento externo, o

Estado teria maior raio de manobra para resolvê-lo

de outra forma. Ver Whitehead (1993, pp.1380 e

1382) para uma análise crítica da interpretação de

Bresser Pereira.

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METAMORFOSES DO ESTADO BRASILEIRO NO FINAL DO SÉCULO XX 51

3 Tais mudanças de paradigma e nas políticas econômi-

cas foram estudadas por Helleiner (1994, caps. 6 e 7).

4 A reforma partidária de 1979 rompeu o sistema bi-

partidário, instituído pelo regime autoritário em

1965. O PDS (Partido Social Democrata) tomou o lu-

gar da Arena como representante do regime e os

partidos PMDB, PDT, PTB e PT assumiram o lugar

do MDB (Movimento Democrático Brasileiro) como

oposição política. Na eleição de 1982, o PMDB ele-

geu nove governadores de estado e o PDT, um.

5 Em relação à liberalização política ver Velasco e

Cruz e Martins (1983) e Lamounier (1985).

6 Sobre o processo de democratização política, ado-

to a perspectiva de Touraine (1995). A democrati-

zação política tem sido sustentada por processo

mais amplo de democratização da sociedade bra-

sileira, que não será examinado aqui.

7 O ajuste fiscal escolhido foi muito menos drástico do

que o realizado pelo México, em situação similar. Para

uma visão comparativa, consultar Kaufman (1988).

8 Faço um relato detalhado dessa crise em Sallum Jr.

( 1996, cap. 2).

9 A campanha das “Diretas” ultrapassou em parte os

próprios valores básicos que legitimavam o Estado.

A partir de então seria insustentável uma hegemo-

nia fundada na restrição à participação política das

classes populares.

10 A Aliança Democrática foi constituída pelo PMDB e

pela Frente Liberal, dissidência do PDS, que depois

converteu-se no Partido da Frente Liberal (PFL). A

candidatura de Paulo Maluf foi lançada pelo PDS e

apoiada pelo governo militar.

11 O presidente eleito Tancredo Neves não tomou pos-

se em 15 de março de 1985 porque ficou repentina-

mente doente, morrendo poucas semanas depois.

Em seu lugar foi empossado o vice-presidente José

Sarney que governou até 15 de março de 1990.

12 A esse respeito, consultar o trabalho de Noronha,

Gebrin e Elias Jr. (2003).

13 Durante o governo Sarney, podem ser contadas como

tentativa heterodoxas de superar a instabilidade eco-

nômica os planos “Cruzado”, lançado em fevereiro de

1986, “Bresser”, editado em meados de 1987, e “Ve-

rão”, cuja vigência foi iniciada em janeiro de 1989.

14 Biersteker (1995) trata desse processo de difusão.

15 No segundo turno eleitoral 37% votaram em Lula,

apenas 4% menos do que no candidato vencedor,

Fernando Collor de Mello.

16 Nesta seção reelaboro parte de análises e informa-

ções que constam de Sallum Jr. (1999, 2000). O pri-

meiro texto faz parte, com outros artigos, do “Dossiê

FHC – 1º Governo”, publicado na revista Tempo So-

cial (Revista de Sociologia da USP). Mais recente-

mente, Lamounier e Figueiredo (2002) organizaram

uma coletânea de trabalhos sobre o governo FHC,

redigidos por jornalistas com base em pesquisas aca-

dêmicas. Este trabalho contém análises de ótima qua-

lidade, mas seus resultados não alteram substancial-

mente a interpretação aqui desenvolvida.

17 As tarifas médias eram 31,6% em 1989. Foram re-

duzidas para 30% em 1990, para 23,3% em 1991,

para 19,2% em janeiro de 1992, para 15% em outu-

bro de 1992 até 19,2% em Julho de 1993.

18 A primeira equipe econômica de Collor foi substi-

tuída em maio de 1991. A negociação da dívida ex-

terna, durante seu governo, foi analisada com exa-

tidão em Candia Veiga (1993).

19 Collor renunciou em outubro de 1992.

20 Emprego o termo cesarismo em sentido metafórico.

Ver em Bobbio et al.(1994) um texto curto, mas rico

sobre o assunto.

21 Sobre o Plano Brady, ver Cline (1989). Um texto

sintético sobre os novos fluxos de capital e refor-

mas que caracterizaram a passagem doa anos de

1980 para a década de 1990, consultar Naím (1995).

22 O fluxo voluntário de capital externo começou a

voltar ao Brasil em 1991. Suas reservas de câmbio

atingiram 42 bilhões de dólares na metade de 1994,

quando o Plano Real foi lançado.

23 Há um bom estudo sobre as condições políticas e

econômicas na época do Plano Real em Sola e Ku-

gelmas (1996).

24 Malloy e Connaghan (1996) e Mettenhein e Malloy

(1998) analisaram algumas experiências políticas lati-

no-americanas sob à luz do que Pocock entende por

“ momento maquiaveliano”. Sola e Kugelmas(1996)

estudaram a eleição e o Plano Real de Cardoso sob

a mesma ótica.

25 Durante o período de Revisão Constitucional as re-

formas podiam ser aprovadas por maioria simples.

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52 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

26 No segundo governo de Fernando Henrique Cardo-

so foram aprovadas normas estritas de “responsabi-

lidade fiscal” para os governantes e penalidades

para os transgressores.

27 Os principais representantes dessa corrente ideoló-

gica no governo foram o primeiro presidente do

Banco Central, Gustavo Franco, e o Ministro da Fa-

zenda, Pedro Malan. Fora do governo suas princi-

pais expressões intelectuais foram os economistas

da PUC-Rio de Janeiro.

28 Apesar da retórica política da oposição política, a

sobrevalorização do câmbio não se vincula ao ideá-

rio neoliberal, que recomenda, ao contrário, um

market exchange. A versão brasileira radical de li-

beralismo adotou a sobrevalorização para forçar as

empresas brasileiras a se enquadrarem rapidamen-

te, sob pena de desaparecimento, aos padrões do

mercado, isto é, aos níveis internacionais de preços

e produtividade. Eis porque denomino fundamenta-

lista esse tipo de liberalismo.

29 Representavam esse ponto de vista, no primeiro go-

verno FHC, principalmente José Serra, ministro do

Planejamento, Luiz Carlos Mendonça de Barros,

presidente do BNDES, e José Roberto Mendonça de

Barros, secretário de Política Econômica. Fora do

governo o nome mais relevante era o do deputado

federal Delfim Neto, figura importante do regime

autoritário, em que ocupou diversos ministérios da

área econômica.

30 Em Sallum Jr. (2000) tratei dessas medidas compensa-

tórias. Sobre o conceito de política industrial referido,

consultar Mendonça de Barros e Goldenstein (1997).

31 As taxas médias anuais de desemprego evoluíram

da seguinte maneira: 4,85% (de julho de 1994 a ju-

nho de 1995); 5,75% (1995-1996); 5,77% (1996-

1997); 7,37% (1997-1998); e 8,32% (1998-1999).

32 Tomo o conceito de Braga (1997). Além do texto ci-

tado podem ser consultadas os trabalhos de Chesnais

(1996, 1998) que, embora de forma um pouco diver-

sa, vão na mesma direção.

33 A própria política de estabilização no primeiro go-

verno de FHC contribuiu para dar vantagens às em-

presas estrangeiras em relação às nacionais.

34 Em 1996 o IDE atingiu apenas US$ 9,6 bilhões; em

1997 subiu para US$ 17,9 bilhões e depois para US$

26,8 bilhões em 1998, e finalmente para US$ 31,2

bilhões em 1999.

35 O compromisso de produzir superávit primário

anual de 3,5% do PIB (elevado em 2002 para

3,75%) implicou uma grande contenção de gastos.

Ainda mais que os números foram de fato supera-

dos. Sublinhe-se que, durante o primeiro mandato

de FHC, embora o governo defendesse a necessida-

de de ajustar as contas públicas, apenas as mante-

ve equilibradas (não contando os juros pagos).

36 Os fluxos de IDE foram de US$ 33,3 bilhões em 2000,

caíram para US$ 20 bilhões em 2001 e para US$ 16,6

bilhões em 2002. As dificuldades de rolagem da dívi-

da interna manifestaram-se apenas em termos de cus-

to monetário mais alto. Em relação à dívida externa,

houve redução dos montantes disponíveis para reno-

var linhas de crédito às exportações, algo que não

ocorrera sequer na crise dos anos de 1980.

37 Apesar do considerável ajuste fiscal, o Brasil não

conseguiu reduzir a proporção de sua dívida pública

em relação ao PIB. Em compensação, a enorme des-

valorização cambial relacionada à incerteza eleitoral

de 2002 ajudou o Brasil a gerar um superávit comer-

cial de US$ 13,1 bilhões, o que reduziu o déficit ex-

terno corrente a 1,7% do PIB (entre 1998 e 2001 o

déficit anual tinha atingido mais de 4% do PIB).

38 É importante sublinhar que no Brasil e em outros

países latino-americanos os adeptos do liberalismo

econômico não costumam se opor ao Estado de

Bem-Estar, mas ao Estado Empresário (nacional-de-

senvolvimentista), manifestando-se a favor de polí-

ticas sociais.

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RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 213

METAMORFOSES DO ESTADOBRASILEIRO NO FINAL DOSÉCULO XX

Brasilio Sallum Jr.

Palavras-chaveEstado; Desenvolvimentismo; De-mocratização; Liberalização econô-mica; Transição política; Brasil.

O artigo procura reconstruir o pro-cesso de crise do Estado varguista ede transição para a forma nova for-ma de Estado, moderadamente libe-ral em termos econômicos e demo-crática em termos políticos, queemergiu nos anos de 1990, ganhousolidez durante sob a presidênciade Fernando Henrique Cardoso e foireiterada com a eleição de Luiz Iná-cio da Silva. Procura-se explorar anatureza da crise de hegemonia quemarcou o início da transição políticabrasileira, no início dos anos de 1980,e caracterizar a emergência de umnovo padrão hegemônico de domi-nação. Ressalta-se principalmente osdois aspectos principais da transiçãopolítica – a democratização políticae a liberalização econômica – pro-curando-se salientar as transforma-ções da sociedade nacional e da or-dem mundial em que se inserem.

METAMORPHOSIS OF THEBRAZILIAN STATE IN THE ENDOF THE TWENTIETH CENTURY

Brasilio Sallum Jr.

Key wordsState; Development; Democratiza-tion; Economic liberalization; Politi-cal transition; Brazil.

The article aims at reconstructingboth the process of crisis of the Stateduring the Vargas era and the transi-tion process towards a new format ofState, which was moderately liberalin terms of economy and democraticin terms of politics, that emerged inthe nineties, became consolidatedduring the presidency of FernandoHenrique Cardoso, and has been rei-terated with the election of Luiz Ina-cio Lula da Silva. It also explores thenature of the hegemony crisis foundin the beginning of the Brazilian po-litical transition in the early eighties,as well as characterizes the appea-rance of a new hegemonic standardof domination. It calls attention fortwo main aspects of the so-calledpolitical transition – the political de-mocratization and the economic li-beralization – as it enhances the tra-nsformations of both the nationalsociety and the world order in whichthey are inserted.

MÉTAMORPHOSES DE L’ÉTATBRÉSILIEN À LA FIN DU XXE

SIÈCLE

Brasilio Sallum Jr.

Mots-clésÉtat; Processus de développement;Démocratisation; Libéralisation éco-nomique; Brésil.

Cet article propose une reconstruc-tion de la crise de l’État sous l’èreVargas ainsi que du processus detransition vers une nouvelle formed’État, modérément libéral en termeséconomiques, et démocratique dupoint de vue politique. Cette nouvel-le forme d’État apparue dans les an-nées 1990, s’est consolidée sous legouvernement de Fernando Henri-que Cardoso et a été réaffirmée sui-te à l’élection de Luiz Inácio Lula daSilva. Nous explorons la nature de lacrise d’hégémonie qui marqua le dé-but de la transition politique brési-lienne au début des années 80 ettentons de caractériser l’émergenced’une nouvelle référence hégémoni-que de domination dans les annéessuivantes. Nous nous sommes atta-chés, particulièrement, à deux as-pects principaux de la transition – ladémocratisation politique et la libé-ralisation économique –, en mettantl’accent sur les transformations de lasociété nationale et sur l’ordre mon-dial dans laquelle elle s’inscrit.