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Salmos I Luis Alonso Schokel Cecilia Carniti

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  • Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Schkel, Lus AlonsoSalmos I : salmos 1-72 / Lus Alonso Schkel, Ceclia Carniti; traduo, Joo Rezende Gosta;

    reviso H. Dalbosco e M. Nascimento - So Paulo: Paulus, 1996. - (Coleo grande comentrio bblico)

    ISBN 85-349-0155-4

    1. Bblia. A.T. Salmos - Crtica e interpretao 2. Bblia. A.T. Salmos - Introdues I. Carniti, Ceclia. II. Costa, Joo Rezende. III. Ttulo. IV. Srie : grande Comentrio bblico.

    94-0586 CDD 223.206

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Salmos : Interpretao e crtica 223.2062. Salmos : Introduo 223.206

    GRANDE COMENTRIO BBLICO

    O Apocalipse de So Joo, E. Corsini xodo, G. V. Pixley Profetas I, L. A. Schkel e J. L. Sicre Diaz Profetas II, L. A. Schkel e J. L. Sicre Diaz O Evangelho de So Joo, J. Mateos e J. Barreto Carta aos Romanos, C. E. B. Cranfield O Evangelha.de So Marcos, Ched Myers Os salmos, Artur Weiser J, Samuel Terrien Sabedoria, Jos Vlchez Lndez

    f Salmos I (Salmos 1-72), L. A. Schkel e C. Carniti

  • LUS ALONSO SCHKEL - CECLIA CARNITI

    SALMOS

    PAULUS

  • Ttulo original SALMOS / (Sa/mos 1-72) Editorial Verbo Divino, Estella (Navarra), Espanha 1992

    TraduoJoo Rezende Costa

    RevisoH. Daibosco e M. Nascimento

    PAU LU S-19 96 Rua Francisco Cruz, 229 04117-091 So Paulo (Brasil) Tel.:(011)575-7362 Fax: (011)570-3627

    ISBN 85-349-0155-4ISBN 84-7151-667-5 (ed. original)

  • PRLOGO

    Para efeitos de catlogo, este livro vem depois dos comentrios a Profetas I e II* (em colaborao com J. L. Sicre), Job (com o mesmo colaborador), Provrbios (com a colaborao de J. Vilchez) e Sabedoria* de J. Vilchez). Para efeito de biografia, este livro chega ao final de longa carreira dedicada ao estudo do Antigo Testamento, acompanhado de orao.

    Minha disciplina principal durante decnios foi a teologia do Antigo Testamento. E disciplina que subordina a exegese ao estudo temtico, favorece conhecimento global do Antigo Testamento, impe o exerccio de estender pontes coligantes entre textos afastados e dspares da literatura bblica. E como estender pontes imaginrias entre astros de uma constelao. Embora as peas bblicas no componham constelaes imutveis, mas se unam e se separem para formar novas figuras. Perseguir essas combinaes uma das aventuras mais sugestivas de nossa disciplina. Isso explica por que, limitando o dilogo com colegas atuais, prefiro fazer dialogar os salmos com outros textos bblicos.

    Naturalmente, o professor inicia-se e amadurece numa tradio viva, e a partir dela, s vezes contra ela, vive e atua. Contudo, impossvel e ocioso colar a cada idia ou proposta um rtulo ou marca de origem. Como represa terminal, este livro detm guas de muitos rios e afluentes sem traar o mapa pormenorizado de cada corrente de gua. O leitor que desejar adentrar-se pelos desfiladeiros, s vezes labirintos, das opinies dispe na Introduo de bibliografia articulada e, depois, de bibliografia particular para cada salmo. Para comp-la, vali-me dos repertrios gerais e especiais de uso comum. Vali-me, ademais, de forma dominante, da abundante bibliografia que me oferece em seu monumental comentrio G. Ravasi (a quem agradeo por me ter poupado muitssimo trabalho).

    Trinta anos de estudo e ensino formam s uma vertente deste comentrio; a outra vertente formam-na mais de trinta anos de rezar e meditar os salmos. Se os salmos so, por nascimento, textos para rezar, penso que a orao instrumento privilegiado para penetrar em seu sentido profundo. Sim, o cristo ora sempre por nosso Senhor Jesus Cristo, pois no h outro

    Publicados no Brasil por PAULUS Editora.

  • 6 Prlogo

    mediador na terra. A situao crist, a prtica da orao, orientam a compreenso dos salmos. Contudo, de ordinrio, reservo a apropriao crist a um captulo final de cada salmo.

    Este livro chega tambm depois de outros dois dedicados aos Salmos. O primeiro intitula-se Salmosy Cnticos, e vai pela stima edio. Contm a traduo com notas breves para a orao. Essa traduo, bem revisada, incorporou-se Nueua Bblia Espanola. Agora submeti a traduo dos salmos a nova reviso, no afa de emendar interpretaes, ater-me mais ao original, procurar a expresso mais simples e eficaz.

    O segundo livro intitula-se Treinta Salmos: Poesia y oracin. Nele ensaiei uma aproximao literria, estilstica, como meio para compreender o sentido. Esses comentrios foram treinamento e antecipao. Agora aproveito a experincia sobretudo na explicao global de cada salmo, acrescentando ateno maior aos pormenores.

    Como outros volumes da srie, tambm este se vale da colaborao. Neste caso foi a professora Ceclia Carniti (doutora em lnguas semticas pela Universidade Catlica de Milo e em Sagrada Escritura pelo Instituto Bblico de Roma, e vrios anos professora de hebraico e aramaico no mesmo Instituto). Tocou a ela a tarefa de tecer um comentrio filolgico e lingstico a cada salmo, para prender em sua rede volumes e matizes. Selecionou como fios uns quantos autores, representantes de vrias naes e lnguas, e da fez excurses a outros autores, segundo os casos. Eu revisei o trabalho, simplifiquei-o s vezes (acertadamente?) e at levei ao extremo o estilo telegramtico da informao. Essas pginas mais tcnicas so para a consulta do experto, no para a simples leitura.

    Cada salmo, dentro de seu contexto cultural amplo e de seu gnero particular, um indivduo no qual uma experincia religiosa se faz palavra potica para ser compartida. O estudo do perfil unitrio de cada salmo o mais importante para compreend-lo e talvez a contribuio mais pessoal do presente comentrio. O comentrio, versculo por versculo, pde enriquecer com muitos pormenores e relaes a compreenso global. O comentrio j pde valer-se de duas obras recentes: Diccionrio Bblico Hebreo Espanol (trad. bras. em preparao por Paulus Editora) e o Manual de potica hebrea.

    O comentrio Sabedoria de Vilchez, este primeiro volume dos Salmos e outros quatro volumes em preparao do testemunho de que o projeto de comentrio ao Antigo Testamento segue seu curso.

    Roma, 21 de junho de 1991.

  • Siglas e Abreviaturas 7

    SIGLAS E ABREVIATURAS

    Ordinariamente respeito as siglas e abreviaturas comuns em nossa disciplina. Em particular remeto-me s abreviaturas do Elenchus Bibliograficus Biblicus (de Nober e North) e ao Old Testament Abstracts. Algumas infraes das citadas normas devem-se ao desejo de tornar mais facilmente reconhecvel o ttulo da revista ao usurio conhecedor da matria. Acrescento a nova sigla DBHE = Diccionrio Bblico Hebreo Espanol. FS significa Festschrift, ou seja, Homenagem, Miscelana.

  • INTRODUO

  • HISTORIADA INTERPRETAO DOS SALMOS E TAREFAS PENDENTES

    PERODO DE FORMAO

    I

    Nota prvia

    Nos comentrios aos salmos costuma-se fazer anteceder uma introduo sobre os problemas gerais do saltrio. Essa introduo pode crescer at converter-se em obra autnoma. Alguns comentadores terminam a introduo com breve referncia histria da interpretao; muito breve, se comparada com a informao sobre problemas e discusses atuais.

    Inverterei a ordem e as dimenses. O meu comentrio tem algumas contribuies peculiares, e interessa-me inseri-lo firmemente numa grande tradio exegtica. Por isso darei uma viso panormica onde acompanharei as principais etapas da interpretao, assinalando os problemas dominantes, os mtodos aplicados, alguns nomes mais significativos. Comearei pela poca do Antigo Testamento, quando o saltrio estava se formando. Deter-me-ei no perodo florescente dos Padres. Na Idade Mdia, assinalarei trs movimentos: a lectio monastica, a lectio scholastica e a revoluo crtica dos mestres judeus. O ensinamento desses ltimos penetra e se estende atravs de Nicolau de Lira e fecunda um novo florescimento nos sculos XV a XVII. Nos fins do sculo XVIII advm a era da crtica na qual nos encontramos. Dentro dela, Gunkel o cume que marca mudana de direo, ainda que no esgote as possibilidades e exigncias da interpretao. Por isso falarei das tarefas pendentes, que o meu comentrio quer levar em conta.

    Esse percurso nos possibilitar apreciar como os antigos j estiveram conscientes de muitos problemas que hoje tratamos com outros mtodos. A panormica histrica nos cura de provincianismo, denuncia as pretenses de monoplio de um mtodo, alarga o nosso horizonte atual.

    Depois dessa ampla exposio, vir a Introduo costumeira, com uma bibliografia seleta.

  • 12 Histria da interpretao

    1. Perodo de formao do Antigo Testamento1

    a) Interpretao incorporada ao texto

    A distino entre interpretao reprodutiva e interpretao explicativa tem especial aplicao no caso dos salmos. Porque os salmos, de modo particularssimo, nascem ou so destinados execuo: devem ser recitados ou cantados. Recitadores e cantores so os seus intrpretes primrios. E verdade que qualquer texto literrio deve ser reproduzido para viver, ao menos na mente silenciosa de um leitor. Mas outros textos nascem simplesmente para serem escutados; os salmos, para serem rezados. Se o poeta lrico faz falar o seu eu no poema, o autor dos salmos se sacrifica, se retira da cena, para que outros, talvez desconhecidos e futuros, tomem seus versos e digam neles eu. De verdade, no com a fico do autor dramtico. Na Bblia hebraica e na verso grega da Setenta ficaram pegadas desse destino recitao e ao canto, como veremos mais abaixo.

    Nas pginas seguintes tratarei primeiro da interpretao explicativa. Pois bem, antes de fixar-se no texto definitivo dos salmos hebraicos, o trabalho de interpretao acompanhava o texto e s vezes lograva somar- se a ele, introduzir-se nele. O que alguns especialistas chamam de histria da redao refere-se em boa parte a trabalho de explicao e adaptao que sedimenta sobre texto provisoriamente constitudo. No curso da exegese preciso levarem conta esse trabalho. Nessa introduo histrica, interessa- me a interpretao que fica fora do texto quando esse j definitivo.

    b) Processo de canonizao

    Paralelo ao precedente, outro fato importante sucede aos salmos na histria de Israel: o processo de canonizao. No podemos reconstituir etapas e datas desse processo, porm sim podemos refletir sobre suas implicaes e conseqncias hermenuticas.

    Os salmos no se conservam como monumento nacional ou funerrio, como mera recordao histrica, mas como repertrio para o uso repetido. Ao serem contidos e encerrados num cnon, ficam institucionalmente abertos. Outras pessoas podero e devero ocupar o eu do orante original; outras circunstncias anlogas impor-se-o como referncia do texto original. Isso bvio nos salmos que nascem como peas disponveis de repertrio,

    ^ o a parte das informaes e muitas sugestes teis para essa sntese histrica devo a meu colega Pierre Prouxl.

  • Perodo de formao do AT 13

    mas tambm ocorre com salmos que brotam de circunstncia nica. Desprendem-se dela como modelos de novas situaes semelhantes: um desterro semelhante e modelo de outro, um retorno de outro, uma vitria de outra. A canonizao dos salmos ato interpretativo.

    Existe momento histrico ou princpio terico que feche a abertura descrita? Poder-se-ia fixar limite numrico artificial, de 150; to artificial que no funciona. Poder-se-o fazer colees dspares de tamanho. A disponibilidade dos salmos, como direito de nascimento ou privilgio adquirido na canonizao, no pode ser abolida. Que isso trar ampliaes e transposies de sentido, especialmente dos smbolos, conseqncia necessria da disponibilidade; no lamentvel, mas feliz, porque sinal de riqueza expansiva. Se para sempre significava para a vida no horizonte do autor e de algumas geraes de orantes, um dia para sempre se prolongar para alm da morte, a outra vida duradoura. No se trata de deformao nem de perda de sentido, mas de dar todo o sentido s palavras. Se um salmo canta que o Senhor vir, quem fixa limites ao modo de sua vinda? At onde pode chegar o sentar-se direita de Deus?

    c) Ttulos e colees

    As primeiras manifestaes de trabalho interpretativo so as colees e os ttulos. Reunir os salmos em cinco livros ou colees no mero expediente prtico, mas significa interpretar o corpo de oraes oficiais como correspondente ao Pentateuco. De sorte que o saltrio seja outro pentateuco, diziam autores antigos. Por esse artifcio, aparentemente to extrnseco, o Davi ideal dos salmos rplica ao Moiss da Tor.

    Mais diretamente interpretativos so os ttulos bblicos em dois aspectos: a referncia histrica e a etiqueta do gnero.

    Referncia histrica. Ao longo do Antigo Testamento, desde Ex 15 at Jz 16, tropeamos com salmos ou cnticos inseridos numa situao histrica ou narrativa.2 Trata-se de artifcio narrativo que detm e retarda o curso do relato, que eleva at Deus a experincia histrica, que convida o leitor a participao mais intensa. De mais a mais, o artifcio reflete provavelmente prticas litrgicas e correlativo da atribuio de ttulos histricos a determinados salmos. Trata-se de atribuir salmos a situaes histricas narradas. Em 2Sm 22 e no livro das Crnicas o processo feito com peas do saltrio, e o costume penetrar no Novo Testamento.

    Somente 23 salmos levam no ttulo referncia histrica concreta, quase sempre aludindo a algum episdio da vida de Davi: quando fugia de

    ^Veja-se A. Gonzles Nnez, La oracin em la Biblia, Madri, 1968.

  • 14 Histria da interpretao

    seu filho Absalo (3,1); quando fugiu diante de Abimelec e este o deixou ir (34,1); quando se lhe apresentou o profeta Nat por suas relaes com Betsabia (51,1) etc. Em certo sentido, esse trabalho de crtica histrica, que busca na histria conhecida por outros documentos a origem e razo de ser de salmos particulares; indiretamente estabelece uma cronologia, ainda que no passe a descrever processo histrico.

    Ainda que desses prlogos no tenhamos mais do que 23, a minoria tem fora de atrao ou difuso. Ao apresentar Davi como autor de 72 salmos, e a contemporneos seus (mais ou menos) como autores de outros 23, o intrprete convidado a buscar na vida de Davi a circunstncia histrica coerente com o contedo do salmo em questo. E muito provvel que essa atividade interpretativa seja muito antiga, mas no se tomou srie sistemtica de ttulos. Os seus resultados tero corrido oralmente, at ser recolhidos e transmitidos nos textos targmicos e midrxicos. E impossvel remontar at a origem e seguir o curso dessa suposta atividade interpretativa.

    Quanto aos gneros poticos dos salmos, os ttulos nos desconcertam, pois as suas etiquetas no correspondem a caractersticas formais ou de contedos coerentes. Os ttulos dizem mizmor, maskil, miktam, shir e compostos. Etiquetar maneira rudimentar de interpretar. Mas permanece oculto para ns o critrio aplicado pelos autores dessas indicaes dos ttulos.

    Autor, circunstncia histrica, gnero, trs preocupaes ativas nos velhos ttulos, que persistiro com mudanas ao longo dos sculos. Repetidamente se perguntaro os comentadores: quem comps o salmo?, em que circunstncia?, como se classifica?3

    2. Os salmos no Novo Testamento

    a) Interpretao por citao ou aluso

    O Novo Testamento introduz um fator novo e radical de interpretao dos salmos: a referncia a Jesus, messias vindo ao mundo da parte do Pai.' Isaas e os salmos so os livros mais citados no NT. Entre citaes formais, frases ocasionais e aluses, um editor moderno do NT pode registrar cerca de quatrocentas presenas. Existem salmos preferidos por sua repetio (2; 110) ou por sua densidade (22). No uso, no se distinguem os evangelhos de outros escritos.

    3Falei dos ttulos que aparecem em nossas edies da Bblia hebraica, que hoje no consideramos cannicos.

  • Os salmos no NT 15

    Isso significavam minhas palavras quando vos disse, estando ainda convosco, que todo o escrito acerca de mim na lei de Moiss, nos profetas e nos salmos tinha que cumprir-se. So palavras de Jesus ressuscitado aos discpulos, segundo Lc 24,44. Nelas consta o que cr a comunidade crist.

    Entrando em Jerusalm, Jesus responde recriminao de algumas autoridades judaicas citando como Escritura Sl 8,3; Mt 21,16.

    Mc 12,10s: Jesus cita como Escritura Sl 118,22s, referindo-se a si.Jo 10,34: Jesus chama lei o Sl 82,6 tirando dele um argumento em seu favor.Jo 13,18: na ceia Jesus cita Sl 41,10 dizendo: Assim se cumpre aquela

    passagem da Escritura; cf. Jo 17,12.Para no alargar a lista, recordo que quarenta salmos esto explicita

    mente citados no NT; alguns versculos repetidas vezes. A modo de exemplos:

    Sl 2,1.2.7: At 2,27; 4,25s; 13,33; Hb 1,5; 3,5; Ap 2,27.Sl 8,3.5.8: Mt 21,16; ICor 15,26; At 2,6-8.Sl 16,8-11: At 2,25-28; 13,35.Sl 95,8: Hb 3,7-11.15; 4,7; etc.

    Instaura-se dessa forma um horizonte novo de interpretao e compreenso dos salmos. Que Jesus recite liturgicamente alguns salmos, como se diz em Mt 26,30 e Mc 14,26, ainda no decisivo. O salto se d na referncia exclusiva ou preferencial a Jesus.

    O uso dos salmos no NT insere-se tranqilamente na abertura inata e tradicional que descrevi acima. Prolonga a disponibilidade e s vezes parece desbordar a capacidade do texto.

    b) Hinos novos por imitao

    Os escritores do NT fazem trs coisas. Pem nos lbios de Jesus ou de outra personagem um salmo ou alguns versculos, apropriando-lhe o eu do orante. Outras vezes citam um salmo ou versculo como tipo ou profecia que se cumpre em alguma circunstncia da vida de Cristo ou de sua comunidade, ou que ilumina algum aspecto do seu mistrio. Terceiro, compem ou citam cantos ou hinos especificamente cristos: uns de corte semtico, como o Benedictus e o Magnificat; e outros de corte mais grego, como em algumas cartas de Paulo e no Apocalipse.4

    As trs prticas resultaro exemplares com varivel intensidade na tradio crist. Quero dizer que os cristos no se contentaro com repetir o que j foi feito pelos escritores do NT, mas os imitaro: tomando o princpio e observando sua aplicao, alargaro o mbito, lanaro as redes at capturar em suas malhas todo o saltrio. Respeitando sempre o carter nico do NT como palavra inspirada.

    4Veja-se Josef Kroll, Die christliche Hymnodik biz zu Klemens von Alexandreia, Braunsberg 1921, Darmstadt 1968, 15-17.

  • 16 Histria da interpretao

    Ademais, se o NT cita expressamente uns 78 versculos de diversos salmos, isso no passa da pegada escrita e canonizada de uma prtica das comunidades primitivas. Outras passagens do NT que mencionam salmos, hinos, cnticos, podem-se considerar testemunhos indiretos. Por exemplo, ICor 14,15 e Tg 5,3 usam o verbopsallein que pode corresponder ao hebraico zmr; Ef 5,19 e Cl 3,16 mencionam psalmois hymnois kai hodais.

    A Igreja primitiva no inventou um novo saltrio que suplantasse o antigo, mas recebeu e transmitiu o saltrio constitudo. E acrescentou por sua conta certo nmero de hinos. E no falo de textos no cannicos, como as Odes de Salomo, cuja composio alguns situam no sc. II.5

    3. At o sculo III

    A partir da concluso do NT at bastante dentro do sc. III, nossa informao escassa. As comunidades crists podiam conservar os salmos como profecia messinica e como fonte de ensinamento, enquanto compunham, de forma espontnea ou profissional, oraes especificamente crists: hinos a Cristo e splicas ao Pai. E, pelo que parece, surgiu um problema que hoje formularamos assim: seria preciso substituir os salmos, repertrio de orao da etapa precedente, por um repertrio novo? Nesse caso, poder- se-iam conservar sem nenhuma dificuldade alguns salmos messinicos, como o 2, o 8, o 22 (21), o 45, o 110... O resto serviria, em leitura tipolgica, para continuar penetrando e expondo o mistrio de Cristo.6

    Que as comunidades compuseram novos textos, sobretudo hinos, consta por diversos documentos, ainda que escassos. Que o novo repertrio tivesse que desbancar o anterior, no consta. Contudo, conseqncia lgica que os salmos perderam importncia e aceitao. Segundo alguns dados, tambm os hereges trabalharam intensamente na elaborao de hinos cristos, como meio de difundir sua peculiar concepo do cristianismo. As dificuldades que sentimos hoje, em plena renovao bblica, diante de muitos salmos, por seus sentimentos pelo que parece alheios e mesmo contrrios ao sentir cristo, no as sentiriam as comunidades incipientes? Que pensavam e sentiam os novos convertidos, seus catequistas e evangelizadores? Infelizmente, no est documentado um captulo da histria que seria muito interessante.

    5AIm de monografias sobre cada livro do NT, podem ver-se as exposies de conjunto, com respectiva bibliografia: L. Venard, Citations de VAT dans le NT, em DBS II, 23-51 (1934); G. Smits, Oud- Testamentiche citaten inhetNieuuie Testament, Amsterdam, 1952-63. Sobre as conseqncias teolgicas da prtica pode consultar-se M. Hengel, Himn and Christology, Studia Biblica 1978: JSNT Supl.3.

    Veja-se B. Fischer, Die Psalmenfrmmigkeit der Mrtyrerkirche, Freiburg, 1949.

  • Desde Orgenes at Cassiodoro: panorama 17

    No sc. IV assistimos a um movimento que procura inverter a direo: exclui ou limita o uso de composies especificamente crists no cannicas, dando, ao invs, direitos exclusivos ou preferenciais aos salmos como textos de orao. Isso exigia uma cristianizao maior e sistemtica dos salmos. Dois dados ilustraro o movimento.

    O conclio de Laodicia (cerca de 360) estabelece que no se devem recitar na Igreja salmos privados ou de particulares (psalmous idiotikous) nem outros livros no cannicos, mas somente textos cannicos do Novo e Antigo Testamento (ta kanonika).

    Por seu lado, a carta de Atansio a Marcelino (veja-se mais abaixo) ensina como orar com os salmos cannicos. Os hinos especificamente cristos no apresentavam problemas particulares, salvo o perigo de contaminao hertica, sentido agudamente na poca.

    No me toca descrever aqui o que ocorreu depois, contento-me com uma referncia de passagem. Os salmos entraram e continuaram vivendo nas comunidades crists como repertrio oficial de orao. Os hinos cristos continuaram a ser cultivados e recitados em lugar inferior, mais no oriente que no ocidente. Entre os autores de hinos cristos, destacam-se: Efrm na igreja sria (306-372), Meldio Romano em grego (cerca de 490560); em latim, Hilrio (f 367), Ambrsio (t 397), Prudncio (f depois de 405), Sedlio (f metade do sc. V), Venncio Fortunato (t depois de 600), Beda 735). O quarto conclio de Toledo (633) defende os hinos litrgicos no cannicos. A convivncia dura at os nossos dias. Os hinos cristos no so comentrios dos salmos em sentido estrito. Mas so testemunho insigne da recepo dos salmos, uma recepo vital, que assimila o poder regenerador de smbolos e formas poticas. Poder-se-ia escrever uma histria interessante da interpretao dos salmos nos hinos da igreja.7

    Conservamos papiros com textos de salmos, datados dos sculos II eIII, e, com mais abundncia, nos sculos seguintes. As vezes esses papiros eram usados como amuletos.8

    4. Desde Orgenes at Cassiodoro: panoramaComeando por Orgenes e acabando com Cassiodoro, desde o sc. III

    at bem dentro do sc. VI, desenvolve-se intensa atividade intelectual em torno dos salmos. Chamo-a de intelectual para distingui-la do uso litrgico

    7Veja-se em Lexikon fr Theologie und Kirche V, 559-573: Hymnendichter, Hymnengesang, Hymnodie, Hymnologie, Hymnus', com bibliografia diferenciada.

    Veja-se Orsolina Montevecchi, La Papirologia, 1973, 301-306.

  • 18 Histria da interpretao

    e espiritual, nunca interrompido, que alimentava o trabalho intelectual e aflorava em suas linhas. Considero-a intensa em proporo cultura da poca.

    Repassando o que nos foi conservado, que certamente no tudo, apreciamos notvel unidade de critrios, grande variedade de mtodos e resultados, amplo arco de questes tratadas. O texto usado a verso grega da Setenta e a latina Galicana da Vulgata. Antes de passar revista a comentadores em particular e levando em conta o descuido com que essa poca tratada por alguns especialistas modernos, parece-me conveniente delinear um mapa estilizado que permita compreender e abarcar a ramificao da exegese.

    Seguindo a tradio judaica de alguns ttulos, os comentadores se interessam pela insero histrica dos salmos. Seguindo o exemplo do NT, os Padres buscam nos salmos a referncia a Cristo, que os diz ou de quem se dizem. As duas perspectivas podem superpor-se e cruzar-se. Contudo, legtima a diviso principal em interpretao histrica e interpretao cristolgica.

    Algumas questes tratadas so: sobre o autor ou autores dos salmos; gneros poticos e argumentos; forma de execuo; apropriao. Praticam- se vrios tipos de exposio: analtica e sinttica, notas e comentrio, homilia e tratado. Na interpretao cristolgica distinguirei os seguintes pontos: proftica, tpolgica, alegrica, prosopolgica.

    a) Interpretao histrica

    Treze salmos tm no hebraico brevssima introduo histrica que os refere a episdios da vida de Davi, contada nos livros de Samuel. A verso grega Setenta e a Vulgata galicana acrescenta outros oito ttulos histricos. A maioria dos Padres, excetuando Teodoro, aceitam a autoridade dos ttulos e, seguindo seu exemplo, rebuscam na histria bblica de Davi circunstncias em que possam alojar historicamente outros salmos sem ttulo histrico, ainda que atribudos a Davi ou a seus contemporneos; a atribuio histrica pode prolongar-se a fatos e pocas posteriores a Davi. Teodoro de Mopsustia no aceita os ttulos tradicionais, mas abraa fervorosamente o critrio da atribuio histrica. Ao longo da histria do povo judeu, at depois do exlio, busca circunstncias que lhe permitam, por coerncia, situar historicamente os salmos. Portanto, aceita fatos futuros a respeito de Davi. Os resultados de sua exegese antioquena pesam ou influem na tradio da igreja da Sria.

    Vale dizer, os Padres manifestam interesse histrico crtico enquanto aplicam um critrio de coerncia; e pouco crtico, porque no possui critrios rigorosos e se contenta facilmente com a coerncia ou a tradio

  • Desde Orgenes at Cassiodoro: panorama 19

    como critrio vlido de atribuio. Somente Teodoro sabe criticar com independncia a tradio dos ttulos, embora no chegue a construo criticamente controlada. Em nosso sentido moderno, no podemos falar de crtica histrica nessa atividade; por outro lado, injusto dizer que os Padres no se interessavam pela histria nem pela crtica.

    b) Interpretao proftica

    Pode-se entender a profecia em sentido estrito como predio do faturo, e em sentido lato como viso inspirada. Como predio, uma profecia pode referir-se a fatos da histria judaica posteriores a Davi, autor suposto, e pode em princpio referir-se a Cristo em sua vida e sua igreja. O profeta autor sai de sua coordenada temporal e d salto mental a fatos futuros precisos que conhece por revelao divina. O fato futuro no deve ser por si homogneo ou parecido com a situao do autor; se parecer, ser por simples coincidncia que no diz respeito ao sentido proftico. A profecia no continuidade, mas salto; no anuncia o previsvel, mas a surpresa, com o risco de ser mal-entendida. Teodoro de Mopsustia, lendo com critrio minimalista o NT, aceita quatro salmos como profecia de Cristo: 2, 8, 22(21), 110( 109). Considera vrios salmos como profecia davdica referente a fatos futuros de seus descendentes e de seu povo. Por esse minimalismo, que soa contrrio prtica do NT, Teodoro foi condenado, e suas teorias foram evitadas at por antioquenos, como Teodoreto. A maioria dos Padres repetem em muitas ocasies que alguns salmos inteiros ou alguns versculos de outros se referem somente a Cristo e sua Igreja, sem a mediao do sentido histrico imediato. A falta de mediao, de referncia situao prpria, salto lmpido ao ponto futuro, essencial profecia.

    Se muitos salmos ou versculos so profecia clara, comprovada a posteriori pelos acontecimentos (pensam os Padres), se muitas vezes se referem pura e simplesmente economia crist, o seu autor tem que ser declarado profeta. Ainda que a tradio no inclua os salmos na srie dos nebVim, mas entre os ketubim, Davi o profeta por antonomsia, ho prophetes. Prolonga e alarga essa tradio o abade Gerho (sc. XII) quando afirma e tenta mostrar que Davi no saltrio o primeiro revelador da Trindade. Nos incios do sc. XVII, Lorinus atreve-se a afirmar que todos os mistrios da religio catlica podem-se provar com os salmos. O captulo 3 da longa introduo de seu comentrio tem esta epgrafe: An David fuerit propheta et quamvis; et cur inter alios prophetas non censetur.

    Ora, os salmos que cantam a criao do mundo ou a sada do Egito podem-se chamar profecia? Alguns autores respondem recorrendo ao sentido lato de profecia, como viso inspirada ou iluminada de qualquer aconteci

  • 20 Histria da interpretao

    mento. Esse alargamento permite unificar os salmos como profecia e justificar o seu autor como profeta por antonomsia. Mas ao preo do uso ambguo do termo, que o torna incapaz de servir para o nosso exame histrico. Tambm Teodoro considerava Davi inspirado e profeta, ainda que pense que somente quatro vezes tenha anunciado Cristo (extremando a posio do seu mestre Diodoro de Tarso). A maioria dos Padres considera Davi como o autor de todos ou quase todos os salmos, profeta de Cristo: ho prophetes.

    c) Interpretao tipolgica

    A tipologia baseia-se numa semelhana entre dois acontecimentos. O termo typos, usado no NT (Rm 5,14; ICor 10,6), procede das artes plsticas. Significa o molde ou a forma, o modelo ou a cpia, a figura. Por isso dizemos que a interpretao tipolgica figurativa.

    Em sentido amplo, a tipologia pode-se aplicar coincidncia ou semelhana de dois acontecimentos que permite consider-los como modelo e cpia ou como dois vazios de um molde. Esse sentido amplo, de simples coincidncia ou semelhana humana, no basta para definir o mtodo dos Padres, pois eles exigem que a correspondncia forme parte de um desgnio ou plano de revelao: um acontecimento deve desenvolver-se de sorte a prefigurar outro futuro. Como se um artista fizesse um molde antes de fundir a esttua; ou melhor, como se fizesse um esboo antes de realizar a obra definitiva.

    A Davi perseguido podem parecer-se inumerveis inocentes perseguidos, mas isso no basta para fazer de Davi tipo em sentido tcnico. Segundo o plano definido de Deus, Davi ser perseguido para prefigurar a perseguio do Cristo inocente, em si ou em seus membros. Em tais condies, Davi tipo de Cristo. O tipo uma espcie de profecia em ao, s que no indefinidamente aberta e difusa. Um desgnio superior a polariza e a dirige a ponto preciso: Cristo e sua Igreja. Mas, como Davi atua numa constelao de personagens histricas, ao entrar essas em conjuno ou interseco com ele, podem converter-se em tipos de personagens em torno de Cristo: Saul pode ser tipo de Pilatos; Absalo, tipo do demnio que persegue o cristo...

    Tiremos a referncia individual a Cristo e o desgnio divino, e a exemplaridade se reduz de um texto literrio que, por generalizao, se aplica a muitos casos humanos. Um bom texto literrio pode dar expresso singular a uma pluralidade, talvez a uma universalidade. Nem por isso tipo no sentido tcnico aqui exposto.

    O autor tem que estar consciente de que sua experincia se refere ao acontecimento futuro preciso? Alm de viver na angstia e ser libertado,

  • Desde Orgenes at Cassiodoro: panorama 21

    tem Davi que estar consciente de que nele prefigura a angstia e a libertao do messias? Se o sentido tipolgico deve entrar na inteno do autor humano, ento sim. Teoricamente bastaria que o conhea o autor divino, acima da inconscincia do autor humano. Os Padres no se propem com rigor essa questo, se bem que sua maneira de falar tenda a supor a conscincia reflexa de Davi.

    Como se v, a tipologia pode sobrepor-se profecia, acrescentando a mediao histrica do fato.

    d) Interpretao alegrica

    No fcil distingui-la da precedente. Para delimit-la, diria que a alegoria move-se no campo dos smbolos literrios. De personagens e acontecimentos enquanto apresentados e representados num texto.

    A Sio do Sl 87 smbolo da Igreja; por alegoria, interpreto como dito da igreja o que o salmo diz de Sio. O Moiss do Sl 106(105), que se pe como mediador para fechar a passagem clera divina, smbolo de Cristo que intercede pelos pecadores. Por alegoria, refiro a Cristo o que o salmo diz de sua personagem Moiss. A alegoria dos Padres mais ampla e livre, mais literria e potica. Tambm mais perigosa, quando, abandonando a viso global do smbolo, perda-se em mincias, fragmenta-se em correspondncias de pormenor. Quando da alegoria vlida se decai no discutvel ale- gorismo. Com razo, escritores modernos e antigos rechaam o alegorismo, que deformao maximalista da alegoria.

    Em rigor, a interpretao alegrica no nega nem exclui o sentido histrico do salmo, costuma, ao contrrio, apoiar-se nele. Que a Sio do salmo simbolize ou signifique a Igreja no quer dizer que a cidade de Sio no existiu ou que o salmo deve aboli-la mentalmente. Dado que a explicao dos Padres muitas vezes homiltica ou contemplativa, no se pode pedir-lhes sempre preciso neste ponto. Contudo, h casos em que o comentador nega toda referncia do smbolo literrio a uma realidade emprica de sua poca.

    A interpretao alegrica delata em seus praticantes aguda e cultivada sensibilidade para a linguagem simblica, nem sempre controlada por critrios racionais. O leitor de comentrios patrsticos dos salmos deve sintonizar-se com essa sensibilidade para a linguagem simblica, pois ocorre que a linguagem simblica fator dominante na poesia dos salmos. Em nome da objetividade, o comentador deve respeitar o seu objeto, no menos quando esse simblico. Porm no deve confundir a alegoria aqui descrita com a figura retrica do mesmo nome.

  • 22 Histria da interpretao

    e) Interpretao prosopolgica

    Foi estudada recentemente com singular acerto e brilho por M. Rondeau. O princpio bsico do mtodo fcil de entender; suas ramificaes so difceis de acompanhar. Se o typos procede das artes plsticas, o prosopon provm da dramtica e da lrica. Em grego, prosopon pode significar a mscara do ator, a personagem representada, a personalidade; para a pessoa metafsica, os autores preferem o termo tcnico hypostasis. Os latinos traduzirampersona, que pode significar a mscara teatral, a personagem, a personalidade e tambm a pessoa metafsica, o que produz ambigidades perigosas. Na linguagem teatral, s vezes usam vox em vez de persona.

    Na obra teatral, o autor introduz (eisagei) em cena (schematizei) a sua personagem (prosopon); f-lo falar ou fala por ele. Um mesmo ator pode representar (echein, sustinere) diversos papis ou personagens, segundo as obras representadas; uma personagem teatral pode aparecer em diversos papis, como pai, como marido, como comerciante... Tambm na poesia lrica, o autor pode introduzir uma personagem ou vrias, pode faz-las falar ou dialogar, pode introduzir mudanas de locutor na cena. Essa a prosopopoia em sentido amplo, em latimpersonificatio. O autor pode ficar fora do texto e pode entrar nele como locutor nico ou como interlocutor. Como se fosse pouco, os interlocutores podem referir-se a terceiros e falar deles, podem citar literalmente palavras alheias, dando-lhes a voz em estilo direto ou indireto. Um locutor pode falar em nome de outro ou de outros, pode incluir como representante uma comunidade inteira. O locutor deve falar de modo coerente com a personagem ou o aspecto representado, o ator deve adaptar-se personagem ou assimilar seus sentimentos.

    A arte dramtica e a personificao lrica introduzem uma rede de relaes e suscitam um repertrio de perguntas: quem fala, em nome de quem (ek prosopou, ex persona, ex voce), a quem se dirige, de quem fala. Um crtico acostumado no confundir autor com locutor ou personagem.

    Desse .captulo abreviado de uma potica passemos para a interpretao patrstica dos salmos e entraremos na ramificada interpretao prosopolgica, que da exegese pode facilmente acender teologia. Os salmos foram compostos por (hipo) o Esprito Santo como autor principal, por meio de (dia) Davi. O salmo introduz um sujeito falante, o eu do poema, que fala em nome de, como tal personagem (ek prosopou, ex persona, ex voce), segundo tal ou qual aspecto, em nome prprio ou de outros ou inclusivo. Ao entrar em jogo a figura transcendente de Cristo, o esquema dramtico se complica, se o caso.

    Suponhamos que num salmo Davi fala em prpria pessoa: o eu do autor identifica-se liricamente com o eu do salmo. Pode falar representando o

  • Desde Orgenes at Cassiodoro: panorama 23

    futuro messias, ek prosopou Christou. Suponhamos que o falante, o eu do salmo, Cristo, caso freqente de acordo com os Padres. Pode falar como Deus ou como homem, em nome prprio ou de seus membros, ou incluindo a ambos, pode dirigir-se ao Pai ou a outros. Existe algum critrio para definir locutor ou personagem de um salmo ou de uma seco?

    O grande critrio a coerncia (harmazon). Existem nos salmos expresses, afetivas ou doutrinais, que somente convm a Cristo em sua natureza divina, outras somente em sua natureza humana, outras somente a seus membros pecadores, outras a ele como cabea incluindo os seus membros. Dentro de um salmo pode ocorrer mudana de pessoa falante, no s no intercmbio explcito do dilogo, mas tambm na continuidade potica do prprio eu. Se bem que, de acordo com os Padres, boa parte do saltrio se pronuncie expersona Christi, esse um princpio a um s tempo de unidade e de variedade. O princpio no uma niveladora que iguale monotonamente a variedade dos salmos e de suas personagens.

    Os antioquenos cultivam um mtodo que designam com o nome tcnico de theoria. Supe uma anlise psicolgica: na mente do autor, referncia histrica imediata ou prxima se sobrepe uma imagem futura semelhante e maior do que a primeira. O texto significa em sentido prprio a personagem ou o acontecimento prximo, significa, ademais, por excesso, kath hyperbolen, o acontecimento futuro. Os casos so contados. Parece-me que os antioquenos no aplicam o mtodo interpretao dos salmos.9

    f) Gneros de salmos e de comentrios

    Os comentadores antigos so conscientes dos tipos diversos que se encontram no saltrio, especialmente louvor e splica, narrao e consolo. Tambm so conscientes da enorme variedade de sentimentos que se expressam e que, logicamente, produzem tipos diversos de oraes. O que no fizeram foi relacionar sistematicamente afetos e temas com formas literrias. Por isso, costumam se contentar com enunciar e enumerar, sem fazer do estudo dos gneros fator de interpretao.

    Tambm so conscientes de diversos gneros de comentrios. Ao lado do comentrio do estudioso, bem elaborado de pensamento e redao, floresce o comentrio homiltico, destinado comunidade crist. Ora comentando ocasionalmente um salmo recitado na liturgia, ora pregando em srie sobre os salmos. Comparem-se os textos parenticos de Baslio com a elaboradssima explicao de doze salmos por Ambrsio, ou as duas etapas de Agostinho. Na Antiguidade, era comum o uso da taquigrafia.

    9Pode ver-se uma exposio resumida de alguns pontos precedentes, com bibliografia, em Comentrios a ia Dei Verbum (BAC 284). El Antiguo Testamento incorporado al Nuevo, pp. 532-575.

  • 24 Histria da interpretao

    Alguns dos comentrios que conservamos, dir-se-ia que so homilias pregadas e logo revistas pelo autor quanto a estilo e erudio. Num caso, Ddimo, o Cego, conservaram-se as notas de um aluno feitas de exposio escolar. Outra variante o comentrio proposto pelo abade ou por mestre comunidade de monges. Essa variedade de gneros atesta a vitalidade dos salmos nas comunidades crists antigas.

    No comentrio de estudo distinguem s vezes entre o mtodo analtico (katamerike), que examina o texto versculo por versculo e palavra por palavra, e o sinttico (epoptike), que busca captar a unidade do salmo estudado. E a distino formulada mais tarde por Proclo (412-485). s vezes se combinam as duas frmulas, adiantando-se um resumo do argumento (hypothesis) antes de analisar cada versculo ou alguns escolhidos por motivos diversos.

    g) Execuo

    Finalmente, os Padres do ateno execuo do salmo sob aspecto material e espiritual. Ambos constituem parte da que Betti chama interpretao reprodutiva, que , por exemplo, a do pianista com sua partitura. A prtica precede teoria, e s vezes a polmica ou a controvrsia obrigam a esclarecer posies e a aprofundar no problema.

    No terreno da execuo material, colocam-se a recitao e o canto. Aproveito esse momento para introduzir uma referncia sumria ao tema do canto, ainda que antecipando dados posteriores. Por um lado, os pastores, na prtica e na teoria, apreciam a importncia do canto como forma natural de execuo, de apropriao do salmo. Cantando expressam- se os sentimentos melhor do que falando; por isso, disse Agostinho: Qui bene cantat bis orat. O canto unifica sentimento e expresso, manifesta e fomenta a harmonia no homem, corpo e esprito, sentidos e emoes. Se coral, o canto unifica em uma melodia a comunidade, convertendo-a em instrumento bem afinado. A msica pode inclusive simbolizar a harmonia do universo e interiorizar e fazer pregustar o gozo celeste. Resta decidir como cantar os salmos: em forma simples e plana (planus) ou com ornamentao, em linguagem tcnica melismtica; com uma frmula meldica para todos os versculos ou variando, com instrumentos ou a capella, alternando, jogando um solo com o coro.

    Na liturgia da palavra da igreja latina passou-se do salmo responsorial, ainda conhecido por Agostinho, ao gradual, que privilegia a msica e reduz o texto a dois ou trs versculos.

    Dois dados emergem da antiga controvrsia. Primeiro, a preferncia por melodias simples, sem ornamentos; segundo, a oposio ao acompanha

  • Desde Orgenes at Cassiodoro: autores 25

    mento instrumental. As duas podem surpreender a ns que vivemos acostumados com riqussima tradio musical. O texto dos salmos com freqncia complexo, com mudana de vozes e sentimentos: acaso no os expressar melhor uma melodia variada e rica de matizes? E, quanto aos instrumentos, a est a srie do salmo 150, tutti final que recolhe tantas indicaes explcitas.

    Tambm agora me contento com indicar um tema que sai dos limites previstos. Seria interessante uma histria da interpretao musical dos salmos. Desde os octo toni gregorianos (com o tonus peregrinus), complexidade dos mestres do contraponto, at Sinfonia dos Salmos de Strawinsky, sem desdenhar as composies austeras de Gelineau ou as melodias populares que pulularam nos ltimos decnios. Tambm a msica uma forma de interpretao dos salmos.10

    Na vertente espiritual, a execuo o que hoje chamamos de apropriao. O cristo que recita os salmos deve fazer seus os sentimentos expressos e as palavras do texto, respeitando a prosopologia, harmonizando os lbios com o corao e o homem todo com o texto inspirado. A teoria ou doutrina exposta pelos Padres de passagem; o princpio informa vitalmente toda a pregao sobre os salmos, e, indiretamente, todo o seu estudo. Pois o destino inato dos salmos no ser estudados ou escutados, mas ser recitados.

    Tendo presente esse mapeamento simplificado de questes, princpios, mtodos e tendncias, podemos seguir agora a histria dos comentadores sem nos perdermos; ou seja, pondo cada pea em seu lugar espiritual.

    5. Desde Orgenes at Cassiodoro: autores

    a) Gregos

    Orgenes (cerca de 185-254). Devemos comear com o genial comentador da Escritura, pois, segundo o testemunho de Jernimo, Orgenes foi o primeiro que comentou todos os salmos. Ele o fez de trs formas: em esclios ou notas breves, em homilias pregadas em Alexandria (222-225) e Cesaria (239-242), nos tomoi ou volumes ou comentrios compostos cerca de 239-242. De to ingente trabalho pouco o que se conserva: nove homilias de cunho mais moralizante, traduzidas para o latim por Rufino (345-410), setenta e quatro homilias traduzidas e s

    10Para a Antiguidade podem-se consultar duas obras fundamentais: J. Quasten, Musik und Gesang in den Kulten der heidnischen Antike und christlichen Frhzeit (1930, 1973; J. McKinnon, Music in Early Christian Literature, Cambridge, 1987.

  • 26 Histria da interpretao

    vezes adaptadas por Jernimo, que se conhecem como Tractatus in Psalmos de Jernimo. Acrescentam-se fragmentos correspondentes a vinte e sete salmos, conservados em diversas cadeias. (A cadeia gnero exegtico secundrio que de cada versculo colige, maneira de elos, comentrios em srie dos Padres). O magistrio de Orgenes foi reconhecido por todos, sua influncia foi sem par. Dir-se-ia que seu destino foi morrer na terra como semente para multiplicar o seu fruto por todas as partes. Bom destino para quem teve to intensa a preocupao espiritual e pastoral.

    Orgenes depende de Filon em seu mtodo alegrico, de gramticos, como Teon e o pseudo-Plutarco, para a prosopologia. Com mudanas importantes. A alegoria de Filon interpreta fatos de um texto bblico como smbolo de idias; Orgenes interpreta fato do texto do AT como smbolos de fatos do NT, de Cristo e sua Igreja. Tambm a teoria dos gramticos sobre as personagens de uma narrativa (por exemplo, Homero), do teatro e da personificao lrica servem a Orgenes para encontrar nos salmos a pessoa de Cristo como falante, como interlocutor, como representante, em seu aspecto humano ou divino. Cita o Cntico dos cnticos como exemplo de forma dramtica, mas tambm encontra o uso de vrias personagens na carta aos Romanos. Sem negar a primazia e centralidade de Cristo, sabe identificar diversas personagens no falante, o eu do salmo:

    Vemos que nos salmos Deus se comove e diz (Hom. in Num. 7, GCS 30,37). O Profeta diz em nome (ek prosopou) de Deus (In Rom 9,1: PG 14,1207). O Profeta tinha pregado em nome (ek prosopou) de Jesus: Minha carne repousa com esperana (Sl 15(16), 10: CGS 2,184).A igreja de Cristo tinha dito por meio do Profeta (CGS 29,43).O salmo 5 se diz em nome (ex persona) da igreja (CCSL 78,48).Davi fala em nome (expersona) do pecador arrependido (Sl 37(38),6: CGS 29,102).

    Orgenes procura tambm identificar a pessoa a quem se dirige o falante. Assim, no Sl 2 Deus fala ao Filho e o Filho convida o Pai ou o Esprito Santo (CCSL 78,179). Orgenes pode superpor a perspectiva cristolgica histrica: sendo Davi figura de Cristo, inclusive consciente, pode falar em nome de e como representante de Cristo. Alternando ou conjugando as duas perspectivas, Orgenes pode pr a exegese a servio da teologia. Se os salmos se pronunciam ex persona Christi, revelam seu mistrio: sua divindade e sua humanidade, sua alma e psicologia: tambm sua misso de salvador solidrio dos homens. Se bem que no de modo sistemtico, Orgenes extrai dos salmos materiais para uma cristologia, soteriologia e eclesiologia.

    No esqueamos que, com seus Hexapla, o alexandrino contribuiu decisivamente para a crtica do texto bblico e influiu em tradues

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    posteriores. Podemos concluir que nas mos de Orgenes a exegese sistemtica dos salmos nasce adulta.

    Eusbio de Cesaria (cerca de 265, f 339). Comps um comentrio completo ao saltrio, do qual se conserva o correspondente ao Sl 51-95,3 (5296,3). Antes da explicao prope o argumento (hypothesis). Em suas Eclogse propheticas comenta s vezes versculos soltos de salmos. Sua tendncia a chamaramos hoje filolgica e cristolgica. Para o texto se vale dos Hexapla de Orgenes; para a insero histrica de cada salmo busca circunstncias coerentes nos livros de Samuel e Reis. Alm disso l em alguns salmos profecias da converso dos pagos e da vida da Igreja. Preocupa-se por identificar o gnero de cada salmo e colige, com amor de antiqurio, qualquer dado ou referncia histrica. Em sua Demonstratio evangelica, cita textos de salmos como profecias do NT. A influncia de Eusbio foi muito grande.

    Atansio (cerca de 295, t 373). Embora o seu comentrio seja menos importante, sua carta a Marcelino exige que nos detenhamos nele. O seu comentrio adota a forma de argumento e glosas breves. Sua interpretao larga: por meio da experincia humana de Davi e de outros, os salmos falam de Cristo, da Igreja, dos homens em geral. Neste ponto, introduz um conceito novo: ek prosopou anthropotetos = em nome da humanidade. Humanidade coletividade ou conceito abstrato que, para falar, necessita de uma personificao, o eu dos salmos, Cristo, assumindo inteira a experincia humana

  • 28 Histria da interpretao

    11.Em outros livros, o leitor ou ouvinte se distingue e se distancia das personagens; nesse pode acontecer o mesmo; porm muitas vezes o leitor ou ouvinte se encontra dentro, a personagem, so suas as palavras que pronuncia (hos idious ontas logous anaginoskei).

    13.0 qual dom de Cristo, que tomou nossa condio humana. Antes de habitar entre ns, expressa nos salmos essa condio humana, e tambm a divina, para exemplo do homem.

    14.Toda a Escritura mestra de virtude e f. Os salmos apresentam modelo de vida espiritual (eikona pos tes diagoges tonpsykhon). Diversificavam-se em vrios gneros: narrao, splica, colquio, ao de graas, confisso, confisso com narrao, com louvor, admonio, profecia, exortao, cntico, descrio da virtude... bem-aventurana, demonstrao, exortao ao valor, reprovao, invocao, acusao, gloriar-se em Deus, hino, canto de jbilo. Em 15-26 aparecem diversas circunstncias da vida espiritual.

    27,Por que se cantam? No bastam o gosto e o prazer. Exige-o a honra de Deus; para expressar a harmonia da alma. Que o homem seja como instrumento musical bem afinado a servio de Deus. A recitao meldica dos salmos imagem e modelo de alma serena e tranqila (ataraxias kai ahymonos).

    Serapio de Tmuis (f depois de 362). Segundo o testemunho de Jernimo. No se conserva nada.

    Apolinrio de Laodicia (f cerca de 390). Conservam-se fragmentos nas cadeias. Representa um comentrio cientfico com curiosidade cosmolgica e antropolgica.

    Baslio (330-379). Conservam-se quinze homilias sobre salmos em estilo parentico.

    Astrio, o Sofista (ativo at 337-341). Conservam-se cerca de trinta homilias sobre os salmos 1-18.

    Teodoro de Heraclia (bispo na Trcia 335-355). Segundo o testemunho de Jernimo. No se conserva nada.

    Gregrio deNissa (f 394). Comps um comentrio muito original. Nas palavras de Rondeau, Gregrio busca descobrir a estrutura do discurso que corresponde a uma estrutura da vida espiritual inscrita numa metafsica coerente. Quer estudar centificamente a unidade do livro e de cada salmo em funo de sua finalidade. O ponto de vista a asctica e a mstica; o mtodo o estudo unitrio, mais lgico do que filolgico (Orgenes) ou histrico (Eusbio).

    Ddimo, o Cego (cerca de 313-389). Os seus comentrios se conservam parcialmente em cadeias e talvez em notas de um aluno. Pratica exegese minuciosa, dedicando bastante espao lexicografia, na linha de Orgenes. Se seus pensamentos filosficos so platonizantes, seu instrumental crtico aristotlico. O destino de seu comentrio a vida espiritual do cristo.

  • Desde Orgenes at Cassiodoro: autores 29

    Os dois antioquenos, Diodoro de Tarso (f 394) e seu discpulo Teodoro de Mopsustia (t 428) representam a reao crtica ao modo comum de interpretar os salmos. De Diodoro se conserva o comentrio aos salmos 150; de Teodoro, bastante material em cadeias. No histrico: rejeitam os ttulos histricos tradicionais e os substituem por outros da histria do povo judeu. Admitem quatro salmos como profecia de Cristo em sentido literal;2. 8, 22(21), 109(110). As outras citaes de salmos no NT so adaptao, acomodaes do sentido original nova circunstncia. Admitem outra srie de profecias davdicas, todas referentes a fatos da velha economia. Neles, Davi desempenha o papel (ek prosopou) de alguma personagem futura, como Ezequias no salmo 26(27) e Jeremias em 34(35). O autor, Davi, cria os discursos que pe nos lbios de suas personagens como convm a seu carter. A influncia dos dois antioquenos estendeu-se sobretudo igreja sria e oriental. Seu minimalismo teolgico foi condenado.

    Evgrio Pntico (346-399). Os seus comentrios se conservam em cadeias. Tm a forma de esclios e so obra de um monge para monges; portanto, a tendncia asctica e mstica. Embora siga Orgenes e Ddimo, original no pensamento e elaborao na dico, s vezes aforstico, s vezes silogstico.

    Joo Crisstomo (345-407). Conservam-se do grande pregador 58 comentrios que chama hermenesiai. Parecem tratados, mas poderiam ser sermes revistos para a publicao.

    Cirilo de Alexandria (t 444). Pelo pouco seguro que conservamos, estimamos um comentrio mais erudito, com inteno teolgica.

    Teodoreto de Ciro (f cerca de 466). Um dos mais importantes e da mais larga influncia entre os Padres gregos. Sua grande personalidade parece consistir num conjunto de qualidades das quais nenhuma por si s chamativa. E antioqueno e como tal conserva o interesse pelo sentido literal, pelo trabalho filolgico refinado. Como domina o grego e talvez conhea o hebraico, pode controlar o original. Dos alexandrinos quer evitar o alegorismo e a abundante alegoria; de seus antecessores antioquenos quer corrigir o minimalismo, que lhe parece, como a outros, judaizante; segue assim uma linha mdia muito aceitvel. Homem de vasta cultura e erudio, aproveita-a sem alardes e escreve em estilo breve e claro. Em seus comentrios retorna o sentido cristo de no poucos salmos, como, por exemplo, 15(16), 21(22), 39(40), 108(109); neles reconhece o eu de Cristo. Em outros casos, aceita com moderao a tipologia. De todos os Padres gregos, Teodoreto talvez o mais acessvel a ns.

    Hesquio de Jerusalm ff depois de 450). O seu comentrio dedicado aos seus monges. O seu estilo de glosas e de parfrases seguida, maneira de targum. Em Jerusalm um monge fecha uma poca. Atrs vir o

  • professor de retrica Procpio de Gaza (cerca de 460-530), que inventa as cadeias, seirai ou eklogai. O estudo criativo cessa, e a tradio se salva.

    b) Latinos

    Os Padres latinos oferecem-nos colheita mais modesta. Deixemos os que comentam um ou outro salmo em suas homilias ou tratados, como Zeno de Verona, Prisciliano, Gregrio de Elvira, Cromcio de Aquilia, Mximo de Turim, Pedro Crislogo. Basta breve aluso aos ressonadores, como Eusbio de Verceilas, que traduz, expurgando-o, o comentrio de Eusbio de Cesaria; a Ambrsio, que comenta em chave alegrica e moral 12 salmos; a Prspero de Aquitnia, que resume Agostinho. Restam-nos sete que podem interessar por mritos diversos.

    Hilrio (cerca de 315-367). Do seu tratado, que provavelmente era completo, conserva-se o comentrio a 58 salmos. Parece redao elaborada de sermes pregados. Segue Orgenes com personalidade prpria. preciso ler a ampla introduo ao salmo primeiro, em que expe clara e lucidamente os seus princpios:

    Para entender um salmo, preciso saber quem fala e a quem. A pessoa que fala pode ser o Pai, de ordinrio Cristo. Tambm preciso saber de quem se fala. E embora toda profecia se refira de algum modo a Cristo, preciso discernir cientificamente quando se refere diretamente a ele. O critrio principal a coerncia.

    Jernimo (347-419) interessa-nos como eco e conservador de Orgenes. Segue-o e seleciona em seus Commentarioli, setenta pginas de notas concisas e essenciais; traduze-o sem diz-lo, com algumas incurses pessoais, nos Tractatus (cerca de 400). Se cala nome de Orgenes, deve-se talvez crise origeniana do momento. Mais permanente o trabalho de Jernimo como tradutor de salmos. Em 384 corrigiu segundo o grego uma verso latina em uso; entre 389 e 392 revisa-a segundo os Hexapla: a verso chamada galicana; em 392-393 traduz diretamente do hebraico, iuxta hebraicam veritatem.11

    Citamos Nicetas de Remesiana (f depois de 414) simplesmente pelo seu pequeno tratado De utilitate hymnorum, em que justifica o uso litrgico dos salmos. Em fins do sc. IV estava se formalizando esse uso.

    Juliano de Eclana (418-454) a nica presena antioquena no ocidente, pois adapta segundo suas teorias o comentrio de Teodoro de Mopsustia. Limita a profecia histria judaica e pratica uma exegese literalista.

    30 Histria da interpretao

    1 'Discute o ltimo C. Estin, Les psautiers de Jerme la lumire des traductions juives antrieures, Roma,

  • Desde Orgenes at Cassiodoro: autores 31

    O maior dos latinos Agostinho (354-430). Dos salmos 1-32 nos deixou notas que prolongam a tradio precedente. A partir do 33 desdobra o seu gnio teolgico e literrio. As suas Enarrationes in Psalmos so uma de suas obras exegticas capitais, talvez o maior comentrio escrito sobre os salmos. No pratica exegese filolgica, como a de Teodoreto; pratica, ao invs, leitura em profundidade e unidade. Dir-se-ia que o comentador se submerge numa profundidade de experincia religiosa, de compreenso do mistrio, da qual o texto superfcie mnima de entrada. Nessa profundidade, encontra correntes e relaes novas, iluminaes surpreendentes; delas surge com suas descobertas. A unidade ele a encontra na profundidade. Por isso, pode ocorrer que o melhor sobre um versculo de um salmo se leia a propsito de outro. Sua maneira de relacionar textos bblicos pode ser discutvel em termos filolgicos, muitas vezes certeira e quase sempre sugestiva, e s vezes apenas engenhosa. Tudo isso expresso em sua admirvel prosa latina, de frase breve e lmpida, de progresso rigoroso e lcido, de entusiasmo ou afeto entre lrico e retrico. Perdoamos-lhe sua complacncia ocasional em jogos de palavras; suas escapatrias do tema valem a pena. Quem tiver lido atentamente as Enarrationes ter adquirido compreenso global e vital dos salmos que depois poder afinar e precisar com outros instrumentos filolgicos.

    Rondeau indica trs contribuies importantes de Agostinho. Uma teolgica, a viso do Cristo total, corpo e membros, esposo e esposa, assimilado aos seus e assimilando-se a eles. Do anterior nasce novo repertrio de textos do NT relacionados com o saltrio: a imagem do corpo, a imagem conjugal, a identificao de Paulo com Cristo. De ordem pastoral a pratica de dirigir-se ao povo.

    Cito de passagem Arnbio, o Jovem (t depois de 455), que segue Agostinho, refutando sua teoria da predestinao. E passo ao ltimo, chamado o executor testamentrio da antiguidade.

    Cassiodoro (485-583). Recolhe elementos tradicionais, especialmente de Agostinho, com inteno escolar. Aporta seus conhecimentos de cincias profanas, especialmente da retrica. E encerra uma poca.

    Dos Padres srios comentaram os salmos Efrm (t 372) e, j na Idade Mdia, Ishodad (ativo at 850) e Gregrio Bar-hebreu (1222-1286).

    Deste exame, creio que ter surgido a riqueza e a variedade da exegese patrstica dos salmos: o,amplo repertrio de questes certeiramente assinaladas e tratadas com rigor, o manejo consciente de mtodos de interpretao, a viso de histria, profecia e figura, a unio de filologia e teologia, o estudo enformado pela piedade e dirigido vida crist, a sensibilidade desperta para a linguagem simblica. Desconhec-los e romper com eles parece-me empobrecimento; desprez-los com superioridade soa arrogn-

  • 32 Histria da interpretao

    cia; cobri-los todos juntos com a cobertura de alegorismo, como quem esconde o lixo debaixo do tapete, no prova de discernimento.12

    6. Desde Cassiodoro at Nicolau de Lira

    Estamos acostumados a dividir como poca histrica a Idade Mdia. Para a histria da interpretao dos salmos no me serve a etiqueta ordinria, porque pela metade do sc. XIV comea uma revoluo exegtica. Cassiodoro encerra como executor testamentrio a antiguidade. O franciscano Nicolau de Lira introduz e aclimata entre os cristos um novo modo de comentar. Dentro da etapa preciso distinguir a poca monstica e a escolstica.

    Comeo propondo uma lista aproximadamente cronolgica:Fcio (sc. VI)Columbano (f cerca de 615)Beda (674-735)Ambrsio Autperto (f 778)Alcuno (730-804)Walfrido Estrabo (sc. IX)Haimo de Halberstadt (f 853) Pascsio Radberto (cerca f 859) Remgio de Auxerre (f cerca de 908) Bruno de Vurzburgo (f 1045)Bruno Cartuxo (1030-1101)Bruno de Asti (cerca de 1045, f 1129) Ruperto de Deutz (t 1130)Pedro Lombardo (f 1150)

    Ruperto de Deutz (f 1130)Pedro Lombardo (f 1150)Gilberto Porretano (f 1154)Gerho(1093-1179)Eutmio Zigabeno (sees. XI-XII) Ricardo de S. Vtor (f 1173)Michael Meldensis (f 1199) Alexandre de Hales (cerca de 11851245)Hugo de So Caro (f 1263)Alberto Magno (cerca de 1200, f 1280) Toms de Aquino (1225-1274) Ricardo de Hampoole (f 1349)Pedro de Harental (f 1390)

    a) Lectio monastica

    A partir de Cassiodoro, a corrente tradicional se transmite em cadeias, na cpia de manuscritos, na vida litrgica e contemplativa dos cristos. Da corrente emergem alguns autores com nome prprio. Fixo-me em Beda, ressonador da Antiguidade em momento de renovao intelectual; em Hamo, testemunha da interpretao alegrica e espiritualista; em Walfrido Strabo (ou seja, Alfredo, o Estrbico), que pe em marcha o gnero glosa,

    iJCf. M. f. Rondeau, Les commentaires patristiques du Psautier (llle-Ve sicles), vol. II: Exgse prosopologique et thologique (Orientalia Christiana Analecta 220), Roma, 1985; C. Andersen, Zur Entstehung und Geschichte der trinitarischen Personenbegriffe, in: ZNTW 52 (1961 ) 1-39; La Bible de tous le temps: vol. I, Paris, 1984. Sobre os Padres gregos: vol. II (Paris, 1985). Sobre os Padres latinos: C. Estin, Les psautier de Jerme la lumire des traductions juives antrieures, Roma, 1984; P. Canivet, Histoire dune entreprise apologtique au Ve sicle, Paris, 1958; W. Hulst, Hymni latini antiquissimi, Heildelberg, 1956; C. Emerreau, Hymnographi grci, 1922-1926.

  • semelhante cadeia; a corrente que ele iniciou tomou corpo em vrios afluentes, que hoje se acham reunidos na Glosa ordinaria.

    Dominam o campo bispos e abades, ou seja, a orientao pastoral e espiritual; a qual favorece a interpretao crist segundo os sentidos alegrico, tropolgico e anaggico. O estudo filolgico e histrico no se abre caminho, mas se respeita o testo sem manipulaes. Um autor to criativo em seus comentrios como Ruperto de Deutz despacha rapidamente os salmos, impondo-lhes uma unidade e desenvolvimento doutrinal artificiosos. Seleciono da lista dois nomes como representantes de outros muitos: Eutmio Zigabeno, grego, e Gerho, latino.

    Eutmio. Na introduo a seu comentrio dos salmos, Eutmio interessa-se por uma srie de problemas tradicionais: quem o autor? Davi; se outros nomes so citados, trata-se de executores. Circunstncia histrica de composio? Algum fato na vida de Davi. Temas histricos e messinicos. Gneros: louvor, ao de graas, splica e votos, de alento (confiana?), exortao, instruo moral. Explicao dos ttulos. Importncia da execuo musical. Quanto s profecias, inverte a posio de Teodoreto. Esse dizia que as profecias so claras quando se observa seu cumprimento. Eutmio diz que Davi profetizou obscuramente sobre o messias, para que os judeus no destrussem suas profecias. O princpio da obscuridade converte-se em critrio ambguo e perigoso manejado por buscadores de profecias. Finalmente, diz- nos que o salmo se pode acomodar (prosarmozein) vida do cristo.

    Gerho. Escreve para monges, e o seu comentrio teve bastante fortuna na Idade Mdia. Nos salmos, busca a inteligncia espiritual, encoberta sob o vu dos smbolos. Davi autor dos salmos e o primeiro profeta a testemunhar a Trindade, tema que Gerho desenvolve valendo-se de vrias passagens do saltrio. Depois trata dos temas seguintes: a matria dos salmos o Cristo inteiro, ou seja, Cristo com sua igreja (seguindo Agostinho); a inteno ou finalidade que os membros se assemelhem cabea (enfoque asctico, tropolgico). Distingue na Bblia trs modos de exposio: narrativo, quando fala o autor ou personagem explicitamente introduzidas por ele; dramtico, quando falam diretamente as personagens (como o Cntico dos cnticos); mixto, que apto para expor os mistrios e domina nos profetas e nos salmos. O leitor deve apropriar-se os afetos dos salmos:

    Ut psalmorum effectui nostrum in psallendo iungamus affectum (como faz o ator teatral com sua personagem). Conformari debemus illorum affectionibus quorum verba resonamus... Solus enim David multas in se personas (prosopologia), multarum personarum affectiones repraesentat, dum omnibus omnia factus, illum [Christum] non solum precinit, sed etiam prasfiguravit (tipologia). Segue uma enumerao explicada de alguns afetos expressos e combinados nos salmos: a mudana e a mistura de afetos dentro de um salmo um fato que se deve respeitar.

    Desde Cassiodoro at Nicolau de Lira 33

  • 34 Histria da interpretao

    b) Lectio scholastica

    A escolstica traz um mtodo novo ou um instrumental novo para explicar os salmos. E o instrumental da nova cincia, que irrompe no ocidente, instala-se, triunfa e produz em cerca de dois sculos obras mestras de pensamento. A escolstica aplicada a comentar os salmos d resultados na verdade mais discutveis, porque mtodo mais especulativo do que filolgico.

    Antes de tudo, o escolstico professor: a lectio scholastica rouba espao lectio monastica para conviver em paz ou guerra com ela. A diviso traz especializao que mal existia antes: o professor pode prescindir do aspecto pastoral ou pode contar com que brotar como conseqncia de seu discorrer. O professor escolstico acede ao comentrio dos salmos com sistema de conceitos e categorias que se podem dividir e subdividir e organizar logicamente. Ao mesmo tempo pode lanar na lia quaestiones, perguntas ou problemas que se resolvero com o mtodo consubstanciai.

    Vejamos como funciona o novo mtodo de explicao em mos de seu representante mais extremado, Hugo de So Caro (f 1263). Comeo por seu comentrio ao Sl 1, deixando os seus termos em latim, lngua constitucional da escolstica.

    A apresentao j nos orienta, pois vem acompanhada de chaves que distribuem logicamente os materiais do salmo depois de transform-los em conceitos.

    Beatitudo consistit in: immunitate a peccato triplici: Operis qui non abiit operando in concilio impiorum, Cordis et in via peccatorum non stetit. Oris et in cathedra pestilentias non sedit. In bona voluntate... voluntas eius, In meditatione legis divinae et in lege.. In bona operatione... fructum suum dabit, In bona locutione folium eius defluet, In perseverantia... semper prosperabuntur.

    E st beatitudo: Vise Sinistrae: Sal 143... Dextrae... Mt 5. Patriae... Lc 14. Ad hanc beatitudinem requiritur: Vitare. Plangere. Non publicare peccatum. Futurum. Praeteritum. Praesens. Velle bonum, scire bonum, posse bonum. Opere exequi. Discretio. Modstia. Patientia. Velle bonum voluntas eius, scire bonum meditabitur, posse bonum lignum plantatum.

    No que o Sl 1 seja um prodgio de imagens originais e felizes, mas em certa medida sugere a vitalidade espiritual em termos vegetais de folhagem e fruto. O cardeal Hugo, com sua varinha mgica escolstica, transforma a folha no caduca em palavra que no se rebaixa, em modstia no falar, e o fruto maduro em execuo do bem e discrio. Transformadas em conceitos, as imagens tornam-se inteligveis, podem agrupar-se em articulaes lgicas rigorosas ou aproximadas. Vejamos outro exemplo:

    Sl 2,2: Conjuram-se contra o Senhor e contra o seu Ungido: Explica Hugo: Contra O Senhor abusam dos dons da natureza, contra o Ungido

  • Desde Cassiodoro at Nicolau de Lira 35

    abusam dos dons da graa. Assim entra no salmo a distino de natureza e graa. Lemos no Sl 18,34: D-me ps de cervo. Pensando em lJo 2,16: concupiscentia carnis, concupiscentia oculorum et superbia vitae, explica Hugo: Pedes meos, i.e. affectus meos ut transiliant omnia quae sunt in mundo. Cervi enim transiliunt lutosa, spinosa et foveas, per quae tria illa sunt in mundo designantur.

    O comentrio de Hugo, em belssima edio de 1754, ocupa 1432 colunas de pginas in folio; praticamente de dez colunas, ou vinte pginas nossas, por salmo. No nos enganemos ao lermos margem allegorice de Christo, moraliter, pensando que persiste a explicao tradicional per sensus. Persiste como esquema subordinado conceptualizao escolstica.

    Na mesma linha, de conceitos bem articulados, trabalhou santo Toms. Comentando o Sl 46,5: fluminis impetus laetificat civitatem Dei, descreve trs qualidades da cidade que a Igreja:

    Primum est quod sit ibi multitudo liberorum... Secundum est quod habeant sufficientiam per se... Tertium est unitas civium... Cada qualidade comprovada com uma citao bblica: G1 4,31; Sl 65,5; Jo 17,22.

    Mais moderado na distino, se bem que igual na transmutao de imagens em conceitos, o comentrio seguinte, tomado de uma obra falsamente atribuda a Boaventura. Descrevendo a teofania, diz o Sl 97,5: "os montes se derretem como cera. Diz a explicao: Hicostendit superbiam unde dicit montes, instabilitatem unde sicut cera fluxerunt.

    Aplicado o mtodo sistematicamente ao Saltrio, desaparece a fantasia, espiritualiza-se o corpreo, congela-se o sentimento. E como se uma grande pintura, rica de formas e cores, viesse a se transformar num quadriculado branco e preto.

    Quanto s quaestiones, vejamos um exemplo de Ricardo de S. Vtor. A Vulgata do Sl 2,4 diz qui habitat in coelis. Uma anlise filolgica diria que o hebraico yshb significa a estar sentado, entronizado, governar; a anlise literria explicaria que cu representao simblica comum a muitas religies. Ricardo se prope um problema, uma quaestio:

    Se o Senhor est em todas as partes, como se diz que est no cu e no em todas as partes? E se est s no cu, como se cr que est em todas as partes? Em seguida, o escolstico busca uma resposta apelando ao conceito de ser visto, mostrar-se (pouco convincente).

    Em conjunto, o mtodo escolstico no enriqueceu a compreenso dos salmos, e, em meados do sc. XIV, provocou reao salutar. Para compreend- la, devemos aludir a outra tradio importante, decisiva.

    guisa de complemento, direi algo acerca de ttulos latinos e captulos. Introduzo-os aqui, porque a composio de muitos e a difuso de todos

  • 36 Histria da interpretao

    pertencem a essa segunda poca. Os tituli psalmorum servem para orientar a orao e facilitam a interpretao crist. Tendem a amplificar, a explicitar. Os captulos so resumos articulados, oferecem o argumento do salmo por seces: primeiro... segundo... terceiro. Esto mais prximo do estudo que da orao.13

    c) Os mestres judeus

    Que foras misteriosas, que condies ambientais fazem com que um dia da matria salte a chispa da vida? Que correntes espirituais, que ventos invisveis empurram e provocam a conjuno onde algo de novo comea? Enquanto a idade medieval crist discorre tranqilamente e se aproxima do sobressalto cultural da escolstica, entre os comentadores judeus ocorre autntica revoluo que se coagula no triumvirato Rashi (1040-1105), Abrao Ibn Ezra (1089-1164) e Davi Qimchi (1160-1235).

    E preciso remontar mais de um sculo para entender essa revoluo exegtica. A exegese judaica dos salmos, como de resto da Bblia, corre pelo canal sisudo dos targuns e pelo largo e acolhedor dos midraxes (traduo parafrstica e comentrio espiritual). Na primeira metade do sc. X, aproveitando resultados da cincia grega clssica, transmitidos pelos rabes, um rabino genial pe no Egito os alicerces de um estudo cientfico e filolgico da Bblia hebraica. E o gao (= mestre) Saadias al-Fayyumi (de Faium). Os seus estudos se propagam pelo norte da frica, passam para o sul da Espanha e se encontram numa escola de gramticos e retricos sensacionais. Crdova e Lucena so os centros do movimento intelectual. Cito os dois rivais Menahen Ibn Sarug e Dunas Ben Labrat, alguns discpulos menores e o mestre inconteste Abulwalid = Ibn Yanah, perito em gramtica sem se descuidar da retrica. Na segunda emerge Moiss Ibn Ezra. Com esses antecedentes, em um sculo, floresce e alcana grande altura a exegese literal, filolgica, do texto bblico. Os judeus a chamam peshat para distingui-la do derash.

    No se nos conservou o comentrio ao salmos do cordovs Moiss Ibn Gekatilla nem o do toledano Judas Ibn Balaam. Conhecemo-los por citaes ocasionais coligidas pelo grande comentador Abrahan Ibn Ezra. Com esse triunfa a exegese literal sobre a midrxica. O mestre viaja e reside por alguns anos em Roma e em diversos lugares na Frana. Em seus escritos,

    13 P. Salmon, Les tituli psalmorum des manuscrits latins (Collectanea Biblica Latina 12; Roma 1959); H. Boese, Capitula Psalmorum: Revue Bendicinne 91 (1981) 131-163. Para informao sobre nomes desta poca e a seguintes: H. Hurter, Nomenclator litterarius theologiae catholicae (Innsbruck 1903-13). Tambm as obras de conjunto, como a Cambridge History ofthe Bible e La Bible de tous les temps, em seus volumes correspondentes. E a srie exaustiva de P. Stegmller, Repertorium Biblicum Medii Aevi, continuada por Reinhardt.

  • Desde Cassiodoro at Nicolau de Lira 37

    ope-se excessiva e impertinente erudio dos gaes, ao descuido da tradio oral dos caratas, alegoria e ao derash. Sua influncia se estende a judeus e cristos. O seu comentrio ser duradouro fermento.

    Algo antes e atravs dos mestres Sarug e Labrat, Rabi Salomo Ben Isaac = Rashi descobre a exegese literal ou peshat e procura harmonizar com ela alguns elementos tradicionais do midrash. O seu comentrio ao Pentateuco o mais importante dos judaicos medievais, e o seu comentrio aos salmos competiu em infuncia com o de Ibn Ezra.

    Em Narbona atua, um sculo mais tarde, Davi Qimchi. O seu comentrio distingue-se pela preciso filolgica, pela busca do sentido bvio e simples. E estranho que tivesse que buscar o bvio. Ainda que tenha respondido polemicamente polmica dos cristos, a influncia do seu comentrio estendeu-se a todos. H quem pense que o seu comentrio foi o mais influente.

    Aproveito esse espao para acrescentar alguns dados sobre comentrios judaicos aos salmos.

    Saadia (892-942) traduziu ao rabe, escreveu uma introduo e anotou os salmos. Jafet Ibn Ali, carata de Bosra (segunda metade do sc. IX [?]): conservam-se fragmentos. Josef Ibn Abitur de Crdova (sc. XI [?]): um comentrio midrxico.

    Depois do triunfo da exegese literal, voltou a impor-se a midrxica, sem cancelar nem anular a influncia da precedente. Cito outros nomes de comentadores, certos ou provveis, dos salmos:

    Menahem Ben Salomo Meiri (Perpignan 1249-1306).Immanuel Ben Salomo (Roma 1270-1330): poeta, cultiva o sentidoliteral.Semaria Ikriti (= Cretense) (entre os sc. XIII e XIV, Npoles).Josef Caspi (t 1340).Josef Ibn Chayun, rabino portugus (cerca de 1450-1480).Joel Ibn Shoeb (Tudela 1485).Josef Yabetz (Salnica, finais do sc. XV); publicado por um neto.

    Em fins do sc. XV, imprime-se pela primeira vez, em Npoles, o comentrio de Qimchi; nos incios do sculo seguinte imprimem-se em Veneza e outros lugares alguns comentrios judaicos clssicos: Npoles desde 1487, Veneza desde 1525. So famosas as colees de Athias (1549) e de Fagius (1542). Em 1712, Bashuysen publica uma coleo importante em Amsterdam.

    Encerro essa exposio com uma lista de comentadores certos e provveis at os fins do sc. XVII:

    Leo Hebreu (Abravanel) (primeira metade do sc. XVI).Meir Arama (1512).Ibn Yahya (Bolonha 1494-1534).

  • 38 Histria da interpretao

    Elias Levita (1469-1549).Moiss Alsech (Veneza 1605).Davi Melo (Frankfurt 1620 = verso rtmica).Jacobo Lombroso (Veneza 1639 [?]).Elias Aboab (Amsterdam 1644 [?]).Moiss de Mercado (Amsterdam 1653 [?]).Davi ben Uri (Amsterdam 1681 [?]).

    Com influncias da Cabala assinalam-se um comentrio publicado em Saionetta em 1556 e outro de Israel Ben Mose de 1592. Esses dois e os que indiquei com interrogao no consegui control-los em outros repertrios; devo-os ao erudito e nem sempre muito crtico Jakob Ecker, Porta Sion (1903).14

    7. Desde Nicolau de Lira at a era da crtica

    a) Sculo XIV

    E de repente, a est Nicolau de Lira. Talvez no de repente, pois o seu livro tem ttulo curioso: Postillse. Ou seja,post la, o que vem depois daquilo. E o que aquilo? O texto bblico que comenta, que apostila. Mas para o momento vamos torcer o sentido rumo a outros la. Lira vem depois de aqueles, depois da lio monstica e da lio escolstica. A primeira tinha subtrado realismo e corporeidade aos salmos a fora de espiritualizar; a segunda, a fora de abstrair e conceitualizar. A primeira conservava pelo menos a capacidade de escutar smbolos, a tenso para vibrar emotivamente por ressonncia. A segunda era mais rida e fria. Nas duas, os salmos no cheiravam a hmus molhado do terreno nativo. E depois, vem Nicolau de Lira.

    Lira depende dos comentadores judeus, cujas teorias e mtodos transmite aos cristos de modo pessoal e com contribuies prprias. Pode mediar tranqilamente, porque cristo: filho fiel de so Francisco, devoto discpulo de Boaventura, formado na escolstica (comenta as Sentenas de Lombardo). Chamaram-no doctor planus e doctor utilis: sua simplicidade evita que tropecemos e no pobreza, sua utilidade mltipla. E como se suas apostilas retirassem escombros acumulados sobre o texto ou tirassem escamas dos olhos dos leitores. Com ele comea e se impe novo modo de ler

    14 Aqui me detenho para voltar exegese crist no sculo XIV. W. Bacher, Die Bibelexegese, em J. Winter e A. Wnsche, Geschichte der rabbinischen Literatur whrend des Mittelalters und hrer Nachblte in der neueren Zeit (Hildesheim 1965); S. Lehmann, Saadia al-Fajums arabische Psalmenilbersetzung und Kommentar (Berlim 1902); Yafet Ben Heli de Bassora, Liber Psalmorum DavidRegis et Profhetae, a R. Y. karaita auctore decimi saeculi arabice concinnatum (ed. J.J.L. Bargs, Paris 1861).

  • Desde Nicolau de Lira at a era da crtica 39

    e entender o Antigo Testamento. A partir dele raro o comentador que se sinta dispensado de tratar primeiro do sentido literal do texto. Com as 1.100 adies crticas do judeu convertido Paulo de Burgos e as 400 "rplicas crticas do franciscano Matias Dring, as Postillae ganharam inclusive aceitao. Da segunda metade do sc. XIV conservam-se mais de 700 exemplares inteiros ou parciais; imprimiu-se pela primeira vez em 1471; durante o sc. XVI, alcanou mais de cento e quarenta edies. Durante mais de trs sculos a obra bblica mais usada. Nos incio do sc.XVI surgiram outras obras originais de gramtica e lexicografia, e a influncia de Lira deixou de ser to exclusiva.

    b) Sculo XV

    Do sc. XV conto oito autores no Nomenclator de Hurter:Michael Ayguanus (Angrianus)Joo de Torquemada (1388-1468)Henrique de Loe (f 1481)Joo de Waldheim (fl482)Jacobo Prez de Valncia (f 1490)Toms de Oppenheim (f 1493)Toms Schifaldis (| 1495).

    O comentrio de Ayguanus, cuja datao conjectural, se bem que tenha merecido juzos opostos da crtica posterior, continuou sendo impresso muitas vezes sem o nome do autor. Apresenta sobriamente o sentido literal.

    A obra de Torquemada (no confundi-lo com o seu sobrinho, o inquisidor) alcanou bom nmero de edies (1470, 1474, 1476, 1485, 1513, 1524, etc.) e cumpre sobretudo o ofcio de transmitir, pois o comentrio em grande parte cpia ou resumo de Jernimo, Agostinho, Cassiodoro e Remgio. Se recordarmos que Jernimo tradutor e adaptador de Orgenes e que Cassiodoro o grande coletor do sc. VI, vemos que Torquemada repete a distncia a funo de cadeia de transmisso.

    O mais importante desse sculo em muito Prez de Valncia. Foi publicado em Valncia em 1484 e 1493, em Paris em 1509 e 1518, em Lio em 1499 e 1514, em Veneza em 1526 e 1586 etc. Para o sentido literal, segue Lira; apresenta os quatro sentidos tradicionais (histrico, alegrico, tropolgico e anaggico) com grande riqueza de pensamento e clareza de exposio, embora um tanto difuso. No exagerado dizer que com Valncia comea o grande sculo do esplendor exegtico. Se os nmeros no se interpusessem, este ano de 1490 seria posto por ns na prxima seco. Aceitando a soberania dos nmeros, direi que viglia solene de um sculo solene.

  • 40 Histria da interpretao

    c) Sculos XVI e XVII: Catlicos

    Durante o sc. XVI se consuma a diviso da cristandade ocidental nos dois movimentos, opostos e polmicos, que costumamos chamar de Reforma e Contra-reforma. No esqueamos aquilo que alguns autores chamaram Pr-reforma, ou seja, um intenso movimento espiritual que se faz sentir em toda a Europa at fins do sc. XV e comeos do sc. XVI. No campo bblico a coisa clara. O estudo das lnguas bblicas, os trabalhos sobre texto e tradues, a fundao da Universidade de Alcal, o monumento surpreendente que a Poliglota de Alcal so alguns sinais conspcuos.

    O movimento to vigoroso e unitrio que a diviso entre catlicos e protestantes menos decisiva em exegese. Se no se toca uma questo teolgica controvertida, a exegese catlica e protestante de um salmo no so to diversas. Lutero to devedor de Lira e to cristolgico como qualquer dos exegetas catlicos. Talvez tenha sido uma bno o nascimento e desenvolvimento de uma teologia especificamente de controvrsia, pois deixou mais livre de polmicas a exegese, ainda que no totalmente.

    Est por fazer, e seria interessante e til, o trabalho comparativo de exegetas catlicos e protestantes do sc. XVI e metade do sc. XVII. A exegese dos salmos poderia ser bom terreno de experimentao, porque os salmos continuaram sendo rezados em ambas as partes da cristandade dividida, e no cabe dvidas de que muitas oraes assim pronunciadas, com palavras inspiradas, tenham sido acolhidas por Deus sem distino de pessoas.

    Se a alta Idade Mdia esteve dominada por monges e bispos, a etapa presente, assim como a precedente imediata, acha-se dominada por professores universitrios. O carter universitrio da exegese no anula nem atenua a preocupao pastoral e espiritual; s se lhe imprime um selo novo, mais reflexo e mais culto. A maioria dos chefes espirituais da poca se formaram em universidades e colgios. Pregadores como Alonso de Cabrera, mestres espirituais como Joo dos Anjos, poetas como Lope de Vega e Joo da Cruz formaram-se em salas universitrias e inspiraram-se em livros de exegese universitria.

    Embora o mtodo no tenha mudado radicalmente, melhoraram muitssimo os instrumentos de trabalho e, pela inveno da imprensa, so muito mais acessveis os dicionrios, as gramticas, os textos em vrias lnguas, novas tradues latinas do hebraico e do grego, enciclopdias sobre antiguidades bblicas, concordncias. A imprensa aproxima e propaga obras antes quase inacessveis, difunde rapidamente as novas por toda a Europa e o novo mundo na lngua franca que o latim.

    Os impressores daquela poca, admirveis na arte de compor e distribuir os textos em colunas e notas marginais, no merecem a mesma

  • Desde Nicolau de Lira at a era da Crtica 41

    admirao em sua capacidade de reproduzir textos hebraicos e gregos. Com muitssima freqncia, com reincidncia alarmante, confundem as letras de alfabetos no latinos. Se em vez de cilcios e disciplinas tivessem revisto pacientemente as provas...

    Continua-se comentando per sensus, os quatro tradicionais ou outros equivalentes, e menos per quaestiones. A escolstica continua presente e no desaparecem os alegorismos conceituais:

    Assim, Belarmino comenta o cedro do Lbano do Sl 92,13: Multiplicados os ramos de boas obras, assegurados por razes tenazes de perseverana, no os abater vento algum de tentaes. Finalmente, sero teis para decorar, como tbuas de cedro, o teto de artesos do Rei dos reis na Jerusalm celeste.

    Nesse contexto global, produz-se florescimento exegtico, dentro do qual devemos contemplar a exegese dos salmos. Raro o comentador que no d ateno de alguma maneira ao sentido literal, apoiado no texto hebraico. Mesmo depois do decreto tridentino sobre a Vulgata, o exegeta consulta, se pode, o original hebraico e expe o seu sentido. Alguns autores empenham-se em concordar e harmonizar o latim com o hebraico, inclusive valendo-se de circunvolues engenhosas. No faltam os que defendem a superioridade do texto latino (goza de enorme favor so Jernimo, como o atestam tambm pintores e escultores).

    Graas penetrao poderosa, invaso pacfica do estudo do sentido literal, um princpio, antes mais bem anunciado do que praticado, pode introduzir uma sntese nova: historia est fundamentum. Quer dizer que o sentido literal a base do espiritual. De mais a mais, as quaestiones soem resolver-se apelando ao mesmo sentido literal, coisa que j preconizava santo Toms.

    Dou primeiro uma lista de comentrios, com a data de publicao, embora no tenha podido control-los todos:

    J. Pelbart 1513 M. A. Flamnio 1548J. Pocken (Potken) 1513 A. Nefchamp 1548F. Prato 1524 P. Wirth 15580 . Luscinius (Nachtigall) 1524 J. Oliveira 1558C. Pulsictus 1528 J. Verlenius 1558T. V. Caietanus 1530 P. Bechigni 1559F. dei Pozo 1534 M. Bredenbach 1560A. Justiniani 1536 J. a Pasturaz 1560R. Snoyus 1536 P. Car anus 1562J. van Campen 1538 J. Price 1565Fr. Vatablus 1547 C. Jansenius Gand: 1568J. Gagneus 1547 P. Parmense 1569A. Steuchus 1548 L. Tiraboschi 1572

  • 42 Histria da interpretao

    D. Barbaro 1574J. D. Lindanus 1576G. Genebrardus 1577B. Botta 1581G. de la Cerda 1583A. Buonriccio 1584J. Osorio 1592Manuel Sa 1596L. da Cruz 1597J. P. Pallanterius 1600R. Dosma 1601B. Arias Montano 1605A. Agellius 1606S. Lampertus 1611R. Bellarmino 1611L. de Alcazar 1613J. Hajus 1614N. de Gorham 1617J. Jansonius 1625A. Alleret 1625F. Justiniani 1627A. Crommius 1628T. Maluenda 1628M. Hoen 1630J. J. Menochio 1630S. de Muis (Marotte) 1630J. Tirinus 1632J. Lorinus 1634

    D. Ginnasius 1636J. Gordon 1641H. Drexelius 1643E. L. Castaneus 1643J. J. Sopranis 1643B. Corderius 1643-46O. Bonaert 1654G. Heser 1654P. de Cadenet 1660J. de la Haye 1661T. Basellus 1662P. Caranus 1662T. Carrire 1663T. le Blanc 1664-76B. de la Palisse 1665G. de Matta 1665A. Escobar 1667G. Mentzius 1668-72A. a S. Bonaventura 1673A. E. Mege 1675D. a S. Renato 1679L. Ferrandus 1683J. B. Bossuet 1691L. Dupin 1691F. Nottens 1692I. le Matre de Saci 1696J. M. Thomasius 1697

    Mais de oitenta e provavelmente no esto todos arrolados.15 O catlogo atesta o interesse e a diligncia daquelas geraes pelo estudo dos salmos. O nmero de autores e obras preciso arredond-lo com as numerosas edies de alguns. E devemos acrescentar todo o trabalho indito de tantos professores que ditavam simplesmente as lies e que os alunos copiavam por sua conta (ou por meio de um criado os mais ricos), sem chegarem publicao. Na ratio studiorum dos jesutas, manda-se que nunca se deixem de explicar os salmos e cnticos. No podendo apresentar todos, seleciono de novo alguns.

    Comeo pelas cadeias. Destacam-se a de Padres gregos traduzidos ao latim, compilada por Daniel Barbaro ( f 1578) e publicada em 1572. Baltasar Corderius (Cordier, 1592-1650) compilou uma cadeia grega,

    15 M. Marini deixou indito se comentrio literal em forma de notas. Publicou-o Mingarelli em 1948-1950.

  • Desde Nicolau de Lira at a era da crtica 43

    publicada em 1630. Menos importante a cadeia ou compilao de F. Dupuy (t 1521), publicada em 1510.

    Para o texto e as verses basta mencionar dois autores. Joo Pocken publicou em 1518 um saltrio quadrilnge, em hebraico, grego, latim e aramaico (caldaico, diziam na poca), adiantando-se em data de publicao, no em trabalho preparatrio, Poliglota de Alcal. Obra de erudio insigne a Octapla de Agostinho Justiniani (t 1536), que apresenta em oito colunas o texto hebraico, o grego da Setenta, a Vulgata, o aramaico, o rabe e trs verses latinas anteriores.

    Alguns autores comentam os salmos como parte de comentrio completo Escritura ou ao Antigo Testamento. Nesse caso, o comentrio pode ser breve, maneira de notas ou esclios. Hoje o chamaramos manual; em sua poca desempenhou funo equivalente. Enorme xito teve F. Titelman, reeditado, lido e citado com muita freqncia como autoridade. Sua exegese triunfa na parfrase descritiva ou retrica do texto, muito ao gosto da poca. Eis um exemplo:

    Comenta o Sl 75,9: Calix in manu Domini vini meri plenus mixto: Na mo do juiz est a administrao de retribuio digna, a repartio do pagamento devido, como est o clice na mo do homem; clice cheio de vinho fortssimo e no potvel, mesclado com fezes e impurezas, todo turvo de sedimentos, tal a produzir asco e no existe quem o beba. E o clice da ira e indignao de Deus onipotente, que contm o castigo mais amargo, a sentena mais insuportvel, que como um vinho concentradssimo, fortssimo, asprrimo, turvo de sedimentos, impossvel de se beber.

    Semelhante em autoridade, mas um tanto inferior em nmero de edies, foi obra de F. Vatablus (= Watebled), escrita em forma de esclios ( cuja edio vlida a segunda, de 1584). Manuel S compe um pronturio breve, certeiro, em que discute especialmente passagens difceis; sua obra continuou a ser publicada em todo o sc. XVII. Menos conhecido o comentrio maneira de notas de Joo de Mariana. De Maluenda falarei mais abaixo.

    Do sc. XVII destaco A. Alleret, J, Gordo, S. S. Menochio, J. Tirino e L. I. le Matre de Saci. J. de la Haye publicou suaBiblia Magna em 1643 e suaBiblia Maxima em 1660: obra basicamente de compilao com notas de erudio. E curioso que na grande obra de Cornlio a Lpide faltem precisamente os salmos.

    Alguns comentadores merecem especial meno pela ateno dedicada ao hebraico e ao sentido literal. Comeo por Otmar Luscinius (Nachtigall), que dedicou trs trabalhos ao saltrio: uma verso do hebraico e do grego com breves notas morais, uma verso em alemo, e alguns resumos. Segue- o o professor de hebraico Agcio de Giudici, que traduz do hebraico e

  • 44 Histria da interpretao

    comenta os salmos 1-24