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Salvador-Roma Negra: cidade diaspórica
Maria Alice P. da Silva1
O Brasil, entre os séculos XVI e XIX, recebeu mais de cinco milhões de negros,
de várias nações e etnias, oriundos do continente africano. Eles não aceitaram
pacificamente a ordem escravocrata. Faziam levantes, rebeliões na capital e no interior,
fugiam para regiões bem escondidas e fortificadas no meio das matas, conhecidas
como quilombos, levando insegurança para os seus senhores. (SILVA, 2017)
Na Bahia, segundo Verger (2002b), o tráfico dos escravos foi dividido em quatro
períodos: I - Ciclo da Guiné – costa oeste da África – ao norte da linha Equador durante
a segunda metade século XVI; II - Ciclo de Angola e do Congo no século XVII; III -
Ciclo da Costa da Mina nos três primeiros quartos do século XVIII; IV - Ciclo da Baía
Benin, entre 1770 e 1850, incluindo aí a fase da ilegalidade, ou seja, o tráfico
clandestino.
Ao chegar ao solo brasileiro, não só a liberdade do negro africano era perdida
definitivamente, mas também os seus laços familiares, sociais e culturais. A tristeza,
saudade, a nostalgia e a depressão, muitas vezes chamada de banzo, refletiam o desejo
dos africanos de retornar à terra natal, ao lugar de origem de onde fora retirado à força.
Eles não aceitaram pacificamente a ordem escravocrata. Faziam levantes,
rebeliões na capital e no interior, fugiam para regiões bem escondidas e fortificadas
no meio das matas, conhecidas como quilombos, levando insegurança para os seus
senhores. (SILVA, 2017)
1 Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pelo PPGAU/FAUFBA, Mestra em Arquitetura e Urbanismo
pelo PPGAU-FAUFBA, Advogada, Bacharel em Direito pela UCSAL. Trabalha com Direitos de Povos
de matrizes Africanas, Diáspora Negra no Mundo Atlântico, e Cidade e Negritude. E-
mail:[email protected].
Nas suas angústias, aflições, incertezas, pressões, a espiritualidade tornou-se
uma arma poderosa. Assim, deslocando-se física e espiritualmente na diáspora africana,
os escravizados foram capazes de preservar os seus costumes, a sua cosmovisão de
mundo influenciando, decisivamente, na construção imagética da cidade de Salvador,
enquanto lugar de religiosidade – resistência - centro das mais diversas manifestações
culturais negras.
Neste artigo pretendemos demonstrar como os movimentos diaspóricos entre
Salvador e África, as idas e vindas, empreendidas por africanos e brasileiros
desempenharam um papel decisivo na consolidação da cidade de Salvador como berço
da religiosidade afro-brasileira, a matriarca Roma Negra, a capital da negritude no
mundo.
Palavras chaves: SALVADOR, ROMA NEGRA, CIDADE DIASPÓRICA.
Eu sou a chuva que lança a areia do Saara,
Sobre os automóveis de Roma
Eu sou a sereia que dança,
A destemida Iara, Água e folha da Amazônia
Eu sou a sombra da voz da matriarca da Roma Negra,
Você não me pega. Você nem chega ame ver,
Meu som te cega careta, quem é você?
Que não sentiu o suingue de Henri Salvador,
Que não seguiu o Olodum balançando o Pelô (VELOSO,1989)
Introdução
Diáspora é uma palavra de origem grega, impregnada de conteúdo ideológico e
empregada de várias maneiras a depender das realidades e do contexto histórico. No
sentido clássico, significa deslocamento, dispersão voluntária ou forçada dos povos por
motivos políticos, econômicos ou religiosos. (SILVA, 2017)
Diáspora africana ou diáspora negra, por sua vez, é o nome que se dá ao
fenômeno ou a experiência vivida por descendentes africanos nas Américas, na Europa
e em outros lugares e o rico patrimônio cultural que construíram. (LOPES, 2004)
A noção de diáspora africana é um processo dinâmico que está, e sempre esteve
associado à memória viva da escravidão, à experiência e luta contra o racismo, e ao
sentimento de dupla consciência onde o sujeito encontra-se dividido entre duas
realidades.
O deslocamento de africanos escravizados para o Brasil tem sido a principal
fonte inspiradora para “as chamadas culturas negras que se criam e se recriam por toda a
diáspora”. (PINHO, 2004, p.28) “Na margem de lá e na margem de cá” como diria
poeticamente Silva (2003) na obra “Um rio chamado Atlântico, a África no Brasil e o
Brasil na África” há toda uma história do Atlântico Negro. História da África ou de
várias Áfricas. História densa, profunda, de disputas políticas, comerciais, mas,
sobretudo, história de criação de redes, de solidariedades culturais, de elos construídos,
de ligações físicas, afetivas da memória material e imaterial que sobreviveram e
sobrevivem ao longo dos anos.
Patrícia Pinho (2004, p.30) revela que “a linguagem da diáspora é criada por
povos que sentem, vivem e inventam uma conexão com o lar primordial”. O que eles
buscam reencontrar são às raízes perdidas, a África mítica e que a cidade de Salvador
enquanto polo disseminador de uma cultura que não está congelada em uma “herança
africana”, mas que se reeinventa e desenvolve, exerce um papel de destaque nessas
relações transnacionais ao conectar os imaginários da negritude e africanidade à
multiplicidade do Atlântico Negro.
Considerada fenômeno sempre em construção, a diáspora problematiza a
mecânica cultural e histórica do pertencimento, da definição de identidade étnica ao
quebrar a sequencia simples de elos explanatórios entre lugar, localização e consciência.
(GILROY, 2007)
Paul Gilroy, ao conceituar a diáspora, apresenta-nos o papel dos africanos na
formação e transformação da cultura Atlântica. Sua pesquisa oferece um modelo para
quem quiser tentar entender o processo de formação cultural e sua adaptação ao Mundo
Atlântico. O termo Atlântico Negro por ele criado busca explicar as estruturas
transnacionais que se desenvolveram durante a era do comércio de escravos e que se
perpetuou ao longo dos anos ao proporcionar um sistema de redes e conexões,
constituídos por fluxos que transportam imagens, símbolos negros por todo o Atlântico.
A cidade de Salvador é conhecida como a “Roma Negra”, e, também, como a
maior cidade da diáspora atlântica. A incessante busca da África na Bahia tornou
Salvador ainda mais africanizada o que ampliou a sua imagética de negritude. Neste
trabalho investigamos como surgiu esse conceito e quando se consolidou essas trocas
diaspóricas, essas idas e vindas? Para tanto dividimos o artigo em três momentos: I –
Primeira diáspora: Roma Negra enquanto lugar da religiosidade afro-brasileira (1920);
II – Segunda diáspora: Roma Negra enquanto lugar da resistência da negritude (1970);
III – Terceira diáspora: Roma Negra enquanto lugar do turismo étnico (2000).
1.1 Primeira Diáspora - Roma Negra enquanto lugar de religiosidade afro-
brasileira (1920).
O Brasil, entre os séculos XVI e XIX, recebeu mais de cinco milhões de negros,
de várias nações e etnias, oriundos do continente africano. Eles não aceitaram
pacificamente a ordem escravocrata. Faziam levantes, rebeliões na capital e no interior,
fugiam para regiões bem escondidas e fortificadas no meio das matas, conhecidas
como quilombos, levando insegurança para os seus senhores. (SILVA, 2017)
Na Bahia, segundo Verger (2002b), o tráfico dos escravos foi dividido em quatro
períodos: I - Ciclo da Guiné – costa oeste da África – ao norte da linha Equador durante
a segunda metade século XVI; II - Ciclo de Angola e do Congo no século XVII; III -
Ciclo da Costa da Mina nos três primeiros quartos do século XVIII; IV - Ciclo da Baía
Benin, entre 1770 e 1850, incluindo aí a fase da ilegalidade, ou seja, o tráfico
clandestino.
A tristeza, saudade, a nostalgia e a depressão, muitas vezes chamada de banzo,
refletiam o desejo dos africanos de retornar à terra natal, ao lugar de origem de onde
fora retirado à força.
Ao chegar ao solo brasileiro, não só a liberdade do negro africano era perdida
definitivamente, mas também os seus laços familiares, sociais e culturais. Sweet, na
obra “Recriar a África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português (1441-
1770)”, descreve as histórias de negros africanos que lutaram para manter o seu legado
cultural, à medida que se movia, literal e espiritualmente, pela diáspora luso-africana –
de Angola ao Brasil, do Brasil a Portugal e de volta a Angola”. (SWEET, 2003, p. 30)
Desterritorializados2, reterritorializados os africanos dos mais variados grupos
étnicos exerciam suas práticas religiosas. Isso muito contribuiu para o processo de
formação da identidade afro-brasileira. As suas crenças, as suas concepções religiosas e
2.Desterritorialização – ato ou efeito de desterritorializar; anular ou reduzir os limites territoriais.
“Desterritorializar uma etnia é a melhor maneira de vê-la desaparecer para se fundir num magma
sociológica, como ocorre com as favelas do Terceiro Mundo ou de outros locais. Nesses lugares de
aculturação e de desenraizamento, o único meio de sobrevivência que resta a um grupo é constituir um
novo território, por ínfimo que ele seja, e, se isso não for possível, recriar um, num outro lugar, no sonho
e no mito [...]” (BONNEMAISON, 2012, p.291)
as suas culturas foram “trasladadas para o novo espaço social”, (PARÉS, 2007, p.109)
sendo ressignificadas e disseminadas em solo brasileiro.
Em Salvador- Bahia-Brasil, “a reunião simultânea de cultos de várias
divindades num mesmo terreiro deu origem[...] a fundação do primeiro terreiro de
Candomblé, o Ilê IyáNassô – ocorrida, segundo os cálculos mais arriscados, na última
década do século XVIII, ou segundo os mais conservadores, nas primeiras décadas do
século XIX”. (PARÉS, 2007, p.271), o terreiro é o espaço e território por excelência do
negro no Brasil;
O patrimônio simbólico do negro brasileiro (a memória cultural da
África) afirmou-se aqui como território político-mítico-religioso, para
a sua transmissão e preservação. Perdida a antiga dimensão do poder
guerreiro, ficou para os membros de uma civilização desprovida de
território físico a possibilidade de se “reterritorializar” na diáspora
através de um patrimônio simbólico consubstanciado no saber
vinculado ao culto aos muitos deuses, à institucionalização das festas,
das dramatizações dançadas e das formas musicais. É o egbé, a
comunidade litúrgica, o terreiro, que aparece na primeira metade do
século XIX. (SODRÉ, 2002, p.53)
Desse modo, os ritos, os mitos, os ritmos, as técnicas, os valores começaram a participar
da construção da urbe soteropolitana. Da religião às artes plásticas, das expressões linguísticas à
vida afetiva, da dança à culinária, das festas populares à criação poética e musical – não há um só
campo do pensar, do fazer e do viver cultura em Salvador, que não apresentem, as marcas
indeléveis, as cores, os sons, os sabores fortes da negritude. Enfim, não é possível imaginar a
cidade sem reconhecer a decisiva influência da cultura africana.
Salvador foi uma das cidades que recebeu forte influência do legado africano.
O escritor Jorge Amado (2012), no romance intitulado “Bahia de Todos os Santos”, em
verso e prosa, discorre sobre a imagética da religiosidade presente na atmosfera, na
arquitetura, no dia a dia do povo soteropolitano.
Amado (2012) abre as portas da cidade para os leitores e narra a saga e força
dos negros disperso no mundo Atlântico. Fala-nos do ritmo, dos batuques, da culinária,
da criação literária e artística, enfim, dos encantos, mistérios e mazelas seculares das
ruas, ladeiras, terreiros, igrejas, mercados, trapiches, praias e convida-nos a conhecer
essa cidade mágica, bela, festiva, desigual, mas, sobretudo, negra por excelência.
Amado inicia a narrativa com a seguinte frase: “Quem guarda os caminhos da
cidade do Salvador da Bahia é Exu, orixá dos mais importantes na liturgia dos
Candomblés [...].” (AMADO, 2012, p.21)
E prossegue:
Roma já disseram dela. “Mãe das cidades do Brasil”, portuguesa e
africana, cheia de histórias, lendária, maternal e valorosa. Aqui estão
as grandes igrejas católicas e os grandes terreiros de candomblé [...]
Se o arcebispo é o primaz do Brasil, o pai Martiniano do Bonfim era
uma espécie de papa de todas as seitas negras em todo o país e mãe
Menininha é a papisa de todos os candomblés do mundo. (AMADO,
2012, p.28)
Jorge Amado apresenta Salvador como a cidade negra por excelência do Brasil,
onde a mistura de sangue é tamanha que “em sã consciência pouca gente poderá negar o avô
negro mais ou menos remoto. A influência do negro sente-se em toda parte. Não apenas no
aspecto físico da cidade, mas na sua vida”. (AMADO, 2012, p.24)
A imagem da cidade de Salvador, enquanto lugar de religiosidade afro-
brasileira, se consolidou nos idos de 1920 com a frase “Roma Negra” cunhada pela
famosa Babalorixá Mãe Aninha - fundadora do Terreiro Ilê Axé Apó Afonjá3 - ao se
referir a urbe como centro difusor da religião de matriz africana no Brasil.
A frase metafórica de Mãe Aninha foi citada pela primeira vez por Edson
Carneiro, no livro “Negros Bantus” (1937), quando buscou dar visibilidade à
contribuição decisiva dos negros bantos (angolas e congos) na formação sociocultural
do povo brasileiro.
Foi em grande parte por causa desses negros que a Cidade da Bahia
ganhou a fama de leader entre as cidades pitorescas do Brasil, centro
obrigatório de todos os estudos sobre o problema do negro brasileiro,
tornando-a “Roma africana”de que sempre me fala a mãe de santo
nagô Eugênia Ana Santos, “Aninha” do Centro Cruz Santa do Axé do
Opô Afonjá, de São Gonçalo do Retiro. (CARNEIRO, apud Lima,
2010, p.308)
3“ Mãe Aninha contou com a ajuda do Babalaô Martiniano que nasceu livre na Bahia em 1859. Filho de
iorubás libertos que lhe deram o nome de Ojeladê (LIMA, 1987) sua mãe, Manjebassá, cujo nome
católico foi Felicidade, era mãe de santo da etnia ijexá; seu pai, Eliseu do Bonfim (Oya Togum) da etnia
egbá, era comerciante e importava produtos africanos. Em 1875, adolescente ainda, Martiniano foi levado
pelo pai a Lagos, onde passou 11 anos. Estudou numa escola de missionários prebisterianos, passando
assim a dominar o inglês e o ioruba, falado e escrito. Martiniano coltou a morar no Brasil em 1886, na
véspera da Abolição, mais viajou duas vezes para a Costa.”(CASTILHO, 2010, p.108-109)
O termo aparece no II Congresso Afro-brasileiro em 1937, em Salvador,
realizado por Edson Carneiro com participação de inúmeros religiosos do candomblé.
“Um dos aspectos mais originais do Congresso da Bahia foi, sem dúvida, a contribuição
direta das mães-de-santo e de outros aficionados, como pesquisadores das suas próprias
seitas. Bernardino do Bate-Folha, Falefá da Formiga, Vavá Pau Brasil, Aninha [...]
Maria Bada”. (CARNEIRO, 1940, p.9)
A expressão, posteriormente, foi utilizada pela antropóloga Ruth Landes em dois
momentos: 1947, na obra “Cidade das Mulheres” e 1967, ao publicar os dois artigos: “O
culto fetichista no Brasil” e “Escravidão negra e status feminino”.
No artigo “O culto fetichista no Brasil”, Landes afirma textualmente: “A Bahia
foi chamada a ‘Roma Negra’ porque o seu vigor cultural domina a vida popular no leste
densamente povoado”. (LANDES apud Lima, 2010, p.311)
Em “Escravidão negra e status feminino”, a autora revela que: “Foi nas regiões
latino-americanas que as mulheres negras encontraram maior reconhecimento de seu
próprio povo e dos senhores. Uma distinta sacerdotisa da Bahia chamou a sua cidade de
‘Roma Negra’ devido à sua atividade cultural.” (LANDES, apud LIMA, 2010, p.311)
Outros autores (brasileiros e estrangeiros) contribuíram para consolidar,
naturalizar no imaginário popular e acadêmico a metáfora “Salvador : Roma Negra”.
Dentre eles: Blaise Cendras, escritor francês que transitou na cidade, nos anos 50, e
publicou o livro “Brésil, les Hommes Sont Venus” em que fez referência à Bahia
enquanto une ville Noir; e Michel Agier, antropólogo francês, que por aqui residiu e
escreveu um artigo intitulado “Rome Noir, um Rêve de GhettoPaien”, citando reiterada
vezes, como epígrafe e ilustração, o texto de Cendras. (LIMA, 2010, p.311)
O título “Salvador: Roma Negra” faz parte do cotidiano e é aceita e repetida por
muitos. Luna, no artigo “Alguns comentários acerca da mitologia afro-brasileira em três
letras de canções de Gilberto Gil”, ao discorrer sobre uma estrofe da música “Buda
nagô”, onde Gil poeticamente fala que “Dorival é um monge chinês, nascido na Roma
Negra, Salvador”, dá uma explicação plausível sobre a associação da cidade à imagem
de Roma Negra. Vejamos:
[...] Roma, aqui, como capital de um império. O Império Romano
fortaleceu com o mercado de escravos (os gladiadores eram todos
escravos), figuras como Espártaco (escravo rebelde) tornaram-se
mártires célebres pelo desafio que fizeram ao poder romano. Salvador,
nesse contexto, não é apenas a capital da Bahia, mas é o centro para
onde convergiram grande leva de escravos aprisionados na África.
Não é por acaso que poetas abolicionistas como Castro Alves e Luiz
Gama (este, negro) eram baianos e destacaram-se no século XIX pela
denúncia da escravidão. Um dos poemas mais esquecidos, mas ao
mesmo tempo mais pungentes acerca da resistência à escravidão,
notadamente no episódio de Palmares é o poema “Tróia Negra” da
autoria de Oliveira Lima. Se para o historiador, crítico e poeta, o
Quilombo dos Palmares podia ser metaforizado na imagem de uma
“Tróia Negra”, para Gil, a cidade de Salvador se transforma na “Roma
Negra”. Nesse contexto, a calma e a ponderação características da
figura de Caymmi se contrapõem ao meio social, marcado pela tensão
social advindas de um meio em que resquícios da época da escravidão
permanecem disfarçados na marginalidade, no desemprego, na falta de
oportunidades que ainda são marcas de parcela considerável da
população de Salvador, a capital, ao que me parece, com maior
parcela de população de característica negra no Brasil. (LUNA, 2006)
Mãe Aninha, além de ter sido um ícone do candomblé no Brasil, era possuidora
de um vasto conhecimento da cultura africana e professava o credo católico. Foi Priora
das Irmandades do Senhor Bom Jesus dos Martírios e de Nossa Senhora do Rosário,
Provedora Perpétua de Nossa Senhora da Boa Morte, da Barroquinha e Irmã Remida da
Irmandade de São Benedito, nas Quintas.
Para Vivaldo da Costa Lima (2010, p.310), a frase célebre da sacerdotisa era
uma analogia de Salvador à cidade de Roma e tenta explicar o seu sentido:
Dessa maneira é que Aninha, ao falar em “Roma Africana” aludindo à
cidade da Bahia – como Salvador era então mais conhecida -, estava
claramente usando uma metáfora, tomando Roma, a cidade matriz do
Catolicismo, com o Vaticano, o Papa e as suas igrejas, como o símile
imagístico da Bahia pela predominância da sua religiosidade, do
candomblé, a religião de origem africana de que ela tanto se orgulhava
e a atmosférica católica das suas igrejas, de cujas irmandades, a várias
delas, Aninha pertencia; do catolicismo processional enfim, que não
sei até que ponto deva aqui chamar de catolicismo popular.
A famosa frase “Salvador: Roma Negra” resistiu ao tempo incólume, “o mistério
da mudança parcial da metáfora permanece, se há mistério”. (LIMA, 2010, p.312)
Intelectuais, militantes dos movimentos negros fizeram uma ressignificação do
conceito, transformando-o em uma mensagem política-ideológica de resistência.
1.2 Segunda Diáspora - Roma Negra enquanto lugar da resistência da
negritude (1970).
As independências de Gana (1957), Angola, Moçambique (1975) e as lutas e
guerras de independência de outros países africanos inauguram esse novo período que
vai se intensificar com o aumento vertiginoso das migrações de povos das ex-colônias
para as grandes metrópoles, como França, Inglaterra e Portugal.(GUERREIRO, 2010a)
O Pan-africanismo, o movimento das Panteras Negras; as lutas dos direitos
civis nos Estados Unidos das Américas, do Apartheid na África do Sul, do
rastafaranismo, reggae, hip hop, funk, também, caracterizaram o segundo processo
diaspórico, marcado, particularmente, pela luta contra a discriminação racial e
condições políticas-econômicas desiguais.
No cenário nacional, o Estado brasileiro continuava a negar a existência do
racismo, todavia a discriminação racial com a proibição de acessos dos negros aos
bares, clubes, associações carnavalescas, hotéis e a violência policial eram práticas
constantes no país.
Em 1978 houve uma grande manifestação negra nas escadarias do Teatro
Municipal de São Paulo em protesto a morte do trabalhador negro – Robson Silveira da
Luz – devido à tortura sofrida nas dependências de uma delegacia em Guainazes; a
expulsão de quatro atletas negros do time juvenil do Clube Regata Tietê e o assassinato
do operário negro Nilton Lourenço por um policial no bairro da Lapa. Nasce, neste ato,
o Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial - MNUCDR , hoje,
Movimento Negro Unificado – MNU – considerada segunda entidade negra de caráter
nacional – depois da Frente Negra Brasileira fundada em 1930.
Aconteciam em Salvador, por sua vez, a criação do primeiro bloco afro fundado
no Brasil, o Ilê Aiyê (1974), a retomada dos afoxés nos bairros periféricos, a
organização da classe operária negra na cidade, reorganização do movimento negro, e o
segundo processo de reafricanização dos terreiros de candomblé da Bahia com a ida de
diversos membros de lideres religiosos a África Ocidental, bem como a consolidação
de centros de pesquisa de colaboração Brasil-África.
No bojo dessa efervescência político-cultural, o termo Roma Negra sai da
imagética metafórica de artistas, acadêmicos e da religiosidade afro-brasileira e se
reveste em um instrumento de luta e resistência do povo negro contra o racismo e
segregação étnico-racial na cidade de Salvador.
Ao se organizar em associação cultural, o bloco afro o Ilê Ayê, movido por
autoestima e um processo de afirmação de identidade étnica propiciou o surgimento em
Salvador de diversos grupos denominados blocos afro e afoxés, a saber: Olodum,
Araketu, Malê Debalê, Muzenza, Filhos de Congo.
A Liberdade é o bairro de origem do Ilê Aiyê, o bloco afro pioneiro,
organizado em 1974. Andando na Liberdade, pode-se ver o traçado da
periferia urbana, que desenha o maior bairro negro-mestiço da
América Latina, uma espécie de Harlem soteropolitano. Os pretos
deste bairro foram os primeiros a manifestar sinais da consciência da
negritude, procurando demonstrá-la através das roupas coloridas, dos
cabelos trançados, das gírias africanizadas e sobretudo pela sua
musicalidade percussiva. (GUERREIRO, 2010, p.29)
Nesse período, a metáfora Salvador: Roma Negra foi incorporada às letras das
músicas dos blocos afros e afoxés que desfilavam nos dias de carnaval com
indumentárias e alegorias de temática negra, no passo e compasso da música dos
tambores, revivendo a sua história e, ao mesmo tempo, constituindo-se em bandeira de
luta contra a discriminação racial e o mito da democracia racial.
E aí chegaram os negros com toda a sua beleza, sua cultura, sua
tradição, com toda sua religião, tentada, motivada a ser mutilada pelos
heróis brancos da história, e estamos aqui eles sobreviveram no bum
bumbum, no seu tambor e o negão vai cantando assim: pega a Rua
Chile, desce a ladeira, tá na Praça Castro Alves, fazendo o seu
deboche, transando o corpo, e o negão assume o microfone e na
beirada da multidão em cima do caminhão ele fala: ‘Alô rapaziada do
bloco, esse é o nosso bloco afro, vamos curtir agora o nosso som, a
nossa levada que é nossa cultura e segura comigo. Eu sou negão, eu
sou negão meu coração é a liberdade, sou do Curuzu, Ilê, igualmente
nagô, essa é a minha verdade”. (GERÔNIMO, 1987)
Já não interessava aos excluídos a glamourização de um passado onde eram
escravizados, nem a preservação de instituições e valores daquele tempo que ainda
orientava o pensamento e a prática da classe dominante. Não cabia mais a folclorização
das manifestações culturais afro-baianas (NASCIMENTO Albertino; LIRA, Altair;
BENTO, Cida; et al,2004). Buscava-se afirmar a negritude como algo positivo; “o mais
belo dos belos”, “beleza negra”; contestar o mito da democracia racial; denunciar as
inúmeras práticas de racismo e, sobretudo, a ausência de politicas públicas de reparação.
A expressão “Roma Negra” passa a então a ter uma conotação política, ou seja, significa
espaço de negritude, espaço de resistência.
Essa nova metáfora possibilitou o despertar da cultura negra em Salvador, nos
anos 1970. Desse modo, sua literatura, estética música, indumentária, dança, luta
(capoeira), pintura, gravura, sua rica, saborosa e colorida culinária (tabuleiros das
conhecidas baianas de acarajé), artesanato, arquitetura, paisagem urbana, praças,
esquinas, adros de igrejas, terreiros de candomblé constituíram-se em verdadeiros
lugares de resistências, de retomada das tradições, de reconstrução do saber viver, fazer
e expressar os símbolos afro-brasileiros.
Ainda nessa década, mais precisamente em 17 de março de 1974, após uma
reunião ocorrida no Terreiro da Casa Branca, com a presença de babalorixás, Iyalorixás
e demais membros da religião, nascia a Confederação Baiana dos Cultos Afro-
Brasileiros. Na época, o idealizador do encontro, Antônio Monteiro, então presidente
do Centro Etnográfico da Bahia, dissera que o candomblé não poderia “ser transposto
para os tablados das festas de carnaval, transformado em folclore ou industrializado
indiscriminadamente, em nome do progresso”.(MONTEIRO apud SANTOS, 2005,
p.131)
Santos (2005, p.132) retrata fielmente esse momento histórico ao afirmar que o
Estado constituiu uma política de incentivo turístico onde o candomblé passou a ser a
“imagem-força”, sintetizando “todo o ser baiano, as raízes profundas da cultura e do
povo da Bahia”.
No final dos anos 1990 com o desenvolvimento da globalização, o surgimento
das cidades-atrações, do entretenimento, da indústria cultural e do turismo, o termo
Roma Negra passou por mais uma apropriação e teve seu sentido ressignificado.
1.3 Terceira Diáspora- Roma Negra enquanto lugar do turismo étnico
(2000).
A terceira diáspora se caracteriza por ser uma atualização dos longos processos
migratórios, via a globalização onde ao mesmo tempo a unicidade e diversidade de uma
infinidade de microcosmos podem ser rastreados nas periferias, nos centros e nas
encruzilhadas do Ocidente. (GUERREIRO, 2010a)
A terceira diáspora abandona o campo de forças presentes nos navios negreiros,
nos processos migratórios voluntários e opta por tecer e fortalecer a rede através dos
meios de comunicação de massa: cinema, rádio, televisão, web. (GUERREIRO, 2010 a)
Nessa perspectiva, a cidade de Salvador da Bahia é considerada a maior cidade
da diáspora - o porto, o ponto de partida rumos a vários países do Atlântico Negro:
EUA, Cuba, Moçambique, Senegal, África do Sul, França, Inglaterra e outros. Com
base nessa posição estratégica, é que o governo do Estado da Bahia, durante os anos 90
pautou-se em consolidar a cidade de Salvador, como a Roma Negra, criando novos
produtos e destinos, notadamente, àqueles que congregassem cultura, turismo e lazer.
(SANT’ANNA, 2017)
A intenção governamental era criar uma política “capaz de assegurar a
preservação do patrimônio, o desenvolvimento do potencial turístico e a expansão dos
serviços e equipamentos turísticos.” (SANTOS, 2005, p.87)
Assim a política cultural da época incorporou a ideia de negritude e africanidade
dos movimentos culturais à imagem cotidiana da Bahia, pois tais apropriações eram
de suma importância para o desenvolvimento interno e externo do turismo no Estado,
notadamente, na cidade de Salvador.
A religião do Candomblé passou, então, a ser o cartão postal do Estado. Cartazes
com a imagem de filhas de santo incorporadas pelos orixás eram veiculadas pelos
órgãos de turismo.
Além do candomblé, outros signos definiriam a baianidade: não era só
a paisagem. Não era só a arquitetura. Não era só o mar nem as terras.
Era a gente e o viver da Bahia”. O singular “viver baiano” pode ser
percebido nas distinções das origens africanas com a cultura
ocidental. A docilidade, o ritmo, a sensualidade, a malandragem, a
capoeira e a culinária seriam tanto os elementos básicos desse
contraste quanto o que imprimiria as características próprias do “jeito
baiano”. (SANTOS, 2005, p.88)
Salvador transforma-se na “capital da cultura e alegria” e a capoeira da Bahia
abandonava as “academias e centro esportivos para ganhar os palcos, as praças [...]
como espetáculo de manifestação folclórica [...] produzidos de qualquer forma [...] com
o intuito de entreter, enganar e ganhar o dinheiro dos turistas.” (FREITAS; BARRETO,
2009, p.151)
O discurso da negritude foi incorporado definitivamente às políticas culturais e
artísticas desenvolvidas pelos os órgãos oficiais BAHIATURSA e EMTURSA e
privados (imprensa escrita do Correio da Bahia e A Tarde) (ALTINO, 2006).
Nesse processo a imagem Roma Negra desligou-se diretamente como
o candomblé e passou a ser conectada aos fluxos festivos da negritude
soteropolitana vendida nos cartões postais e folhetos turísticos: o
caminhar pelas ruas do Pelô, as delícias vendidas pelas baianas de
acarajé, as festas de largo, as lavagens de escadarias, ao carnaval do
Ilê Ayê e dos outros blocos afro [...] numa apropriação estética dessa
imagem própria para o consumo fácil. (PORTELA, 2008)
A cultura negra tornou-se fetiche, objeto de consumo nos museus, parques,
praças, ao expor as diversas representações dos orixás, a exemplo do Dique do Tororó e
Parque de Pituaçu. (VELAME, 2007)
As lojas com temáticas afro-brasileiras, vendendo os mais diversos
produtos de roupas, colares, cartões postais, a miniaturas de Orixás,
suvinis da cultura nagô, espalhadas não só no Pelourinho, mas, em
todos os cantos da cidade [...] Oferece ao turista com fome de
consumo de cultura, ao observador distraído, ao baiano em busca de
diversão um produto valorizado e legitimado pelo reconhecimento e
proteção do Estado.(VELAME, 2007)
Assim, os signos, textos, sons imagens deslocam-se, comunicam-se, em tempo
real, no mundo globalizado, num circuito transatlântico negro onde as trocas de
informações retroalimentam e potencializam a concepção de Salvador como a capital da
negritude, a ponto de transformá-la em um produto cultural agenciada pelo turismo
étnico no capitalismo de acumulação flexível.
Considerações Finais
As lutas e os movimentos diaspóricos empreendidos por brasileiros e africanos,
sacerdotes e sacerdotisas dos terreiros de candomblé, representantes dos blocos afros e
afoxés, grupos de capoeira, grupos de samba, dentre outra instituições desempenharam
um papel decisivo na consolidação imagética da cidade de Salvador como a matriarca
Roma Negra.
Em um primeiro momento, a imagem de Salvador, como a Roma Africana,
esteve atrelada decisivamente a questão da religiosidade. Desse modo, o candomblé se
estabeleceu enquanto território político-mítico-religioso para a transmissão e preservação das
práticas ritualísticas afro-brasileiras.
Sob a égide das lutas contra a discriminação racial no Brasil e no mundo e o
apoio às guerras pela independência dos países africanos, a metáfora “Salvador - Roma
Negra” se consolidou, a partir de meados de 1970, como espaço de negritude, espaço de
resistência.
Finalmente, através dos meios de comunicação de massa (cinema, rádio,
televisão, web dentre outros recursos) repertórios culturais afro-brasileiros começaram a
navegar pela diáspora atlântica retroalimentando os fluxos e refluxos, as teias e redes
potencializando, por conseguinte, nessa nova era, a cidade de Salvador como território
africano, a cidade mais negra fora de África, um dos principais centros da negritude no
mundo.
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