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Sampa Alvinegra! Uma análise sobre a cidade de São Paulo em três desfiles da Gaviões da Fiel. EMERSON PORTO FERREIRA 1 Resumo. Tal artigo propõe uma reflexão a partir de três desfiles da escola de samba Gaviões da Fiel acerca da cidade da São Paulo: o desfile de 1991, Cidade Aquariana; de 1997, Mundo da Rua; e o desfile de 2004, Ideias e Paixões Combustíveis das Revoluções. Tais desfiles evidenciam como a escola modificou seu olhar sobre a cidade de São Paulo, saindo de uma premissa crítica e contestadora da realidade existente, para uma visão mais oficializada da história paulistana. Assim, a ideia de espaço e lugar, memória e imaginação, entrecruzam-se com as sinopses dos desfiles, nos sambas-enredos, nos desfiles apresentados no sambódromo. O cruzamento dessas fontes, nos fazem pensar sobre como a maior torcida de futebol do país, que se torna escola de samba, uma verdadeira instituição paralela dentro da cidade, conta o passado e o presente de São Paulo com seus personagens, contradições e representações de um cotidiano, isso dentro da linguagem do carnaval. Palavras Chave: Gaviões da Fiel, Carnaval, São Paulo, Cidade. Introdução. A Gaviões da Fiel Torcida é uma instituição paralela dentro da cidade São Paulo. Pode parecer estranho iniciar um trabalho com essa prerrogativa tão assertiva, mas não seria um exagero dizer que a maior torcida do Corinthians e a com mais sócios no país, fez da cidade de São Paulo um anexo de sua existência. Dos 32 desfiles que apresentou como escola de samba 2 quatro tiveram como foco principal a cidade de São Paulo, além de variadas apresentações em que a cidade se apresentou como fundo de sua temática. Os enredos em questão versam sobre uma cidade que se constrói dentro de sua contradição. Um desfile de escola de samba deve ser analisado dentro de todos os aspectos que o compõe seja na ideia dos feitios artísticos ou no que tange aos aspectos que se estabelecem dentro de uma agremiação. Os três desfiles que aqui serão analisados mostram uma visão de cidade que se estabelece dentro de dois eixos: um no que diz respeito a questões de sociabilidade dentro da metrópole, o desfile de 1992 intitulado, Cidade Aquariana e o desfile de 1997, Mundo da Rua. Diferente destes dois enredos, o desfile de 2004, Ideia e Paixões Combustíveis das Revoluções se propõe a analisar, de acordo com a história, fatos que narram a cidade. 1 Mestre em Educação pela PUC-SP e doutorando pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, no Campus de Assis, financiado pela CAPES. 2 A escola foi fundada em 1976, porém, como Bloco Carnavalesco sendo 12 vezes campeã. Se torna escola de samba em 1989, após convite da LIGA organizadora do carnaval.

Sampa Alvinegra! Uma análise sobre a cidade de São Paulo

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Sampa Alvinegra! Uma análise sobre a cidade de São Paulo em três

desfiles da Gaviões da Fiel.

EMERSON PORTO FERREIRA1

Resumo.

Tal artigo propõe uma reflexão a partir de três desfiles da escola de samba Gaviões da Fiel

acerca da cidade da São Paulo: o desfile de 1991, Cidade Aquariana; de 1997, Mundo da Rua;

e o desfile de 2004, Ideias e Paixões – Combustíveis das Revoluções. Tais desfiles evidenciam

como a escola modificou seu olhar sobre a cidade de São Paulo, saindo de uma premissa crítica

e contestadora da realidade existente, para uma visão mais oficializada da história paulistana.

Assim, a ideia de espaço e lugar, memória e imaginação, entrecruzam-se com as sinopses dos

desfiles, nos sambas-enredos, nos desfiles apresentados no sambódromo. O cruzamento dessas

fontes, nos fazem pensar sobre como a maior torcida de futebol do país, que se torna escola de

samba, uma verdadeira instituição paralela dentro da cidade, conta o passado e o presente de

São Paulo com seus personagens, contradições e representações de um cotidiano, isso dentro

da linguagem do carnaval.

Palavras Chave: Gaviões da Fiel, Carnaval, São Paulo, Cidade.

Introdução.

A Gaviões da Fiel Torcida é uma instituição paralela dentro da cidade São Paulo. Pode

parecer estranho iniciar um trabalho com essa prerrogativa tão assertiva, mas não seria um

exagero dizer que a maior torcida do Corinthians e a com mais sócios no país, fez da cidade de

São Paulo um anexo de sua existência. Dos 32 desfiles que apresentou como escola de samba2

quatro tiveram como foco principal a cidade de São Paulo, além de variadas apresentações em

que a cidade se apresentou como fundo de sua temática.

Os enredos em questão versam sobre uma cidade que se constrói dentro de sua

contradição. Um desfile de escola de samba deve ser analisado dentro de todos os aspectos que

o compõe seja na ideia dos feitios artísticos ou no que tange aos aspectos que se estabelecem

dentro de uma agremiação. Os três desfiles que aqui serão analisados mostram uma visão de

cidade que se estabelece dentro de dois eixos: um no que diz respeito a questões de sociabilidade

dentro da metrópole, o desfile de 1992 intitulado, Cidade Aquariana e o desfile de 1997, Mundo

da Rua. Diferente destes dois enredos, o desfile de 2004, Ideia e Paixões – Combustíveis das

Revoluções se propõe a analisar, de acordo com a história, fatos que narram a cidade.

1 Mestre em Educação pela PUC-SP e doutorando pela Universidade Estadual Paulista – “Júlio de Mesquita Filho”,

no Campus de Assis, financiado pela CAPES. 2 A escola foi fundada em 1976, porém, como Bloco Carnavalesco sendo 12 vezes campeã. Se torna escola de

samba em 1989, após convite da LIGA organizadora do carnaval.

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Deste modo, o discurso ganha dentro deste jogo um poder de legitimar ou não ações.

Um jogo de quadros normativos, como instrumentos manipuláveis por usuários, que possuem

uma utilidade do uso do discurso que é realizado. São quadros que são refeitos dentro de uma

historicidade social dentro das representações, o que faz criar artes de fazer do povo, em que se

cria uma lógica e modos de agir sobre um espaço determinado. Portanto, a construção de cidade

que a Gaviões apresenta dentro de seus enredos narram memórias, identidades e visões

construídas, identificadas e (des)conhecidas de um cotidiano.

Dividiremos tal artigo em três momentos. De forma breve apontaremos as questões de

memória e espaço dentro da ideia de cidade, e como isso acarreta impactos na construção da

Gaviões da Fiel. Em seguida, apontaremos o contexto de construção sobre a ideia de São Paulo,

assentando aspectos históricos e imaginados. E por fim, uma análise dos enredos, dos desfiles

e dos sambas escolhidos para compor a análise de uma visão de São Paulo, pelo preto e branco

da Fiel Torcida. Empregaremos como fonte para análise os sambas enredos, as sinopses, o

desfile e periódicos extraídos de O Estado de S. Paulo.

Espaços que constroem identidades: Gaviões da Fiel e a cidade.

Existem dois aspectos que convergem dentro do contexto de formação da Gaviões da

Fiel: um dentro do que é a formação do Corinthians e outro dentro do contexto de sua fundação.

O Sport Club Corinthians Paulista, surge em setembro de 1910, após um grupo de operários o

fundar em torno de um lampião, nas esquinas do bairro do Bom Retiro, isto é, existe todo um

mito fundador e direcionado para a ideia de popular que cerca o clube. Como pontua André

Lucirton Costa (1995) “o futebol se presta maravilhosamente a consolidar vínculos de

identidade planos de cargos afetivos” (COSTA, 1995: p.43), e isso se concretiza na concepção

do clube como uma instituição que surge do povo, e, que se agrega pelo povo dentro da cidade

de São Paulo. Assim, a reunião em torno do lampião, a localização em um bairro periférico e

industrial, estabelecem no Corinthians um espaço dentro da cidade “sem privilégios, sem

preconceitos de cor, e, sobretudo, sem fingir ser o que não era” (COSTA, 1995: p.46).

O segundo aspecto se encontra dentro da identidade da formação da Gaviões como

torcida. O embate político em 1969 – no âmbito mais grave da ditadura militar – é o plano de

fundo, quando o então presidente do clube Wadih Helu, promove diversas manobras de

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interferência política de cunho governista no Corinthians. Em paralelo a isso, os fundadores da

escola como Chico Malfitani, Joca e Flávio La Selva, este último estudante de direito e

organizador de toda a criticidade, vinham de uma luta estudantil forte de oposição ao regime

militar. As visões diferentes sobre os rumos do clube possuem aspectos fortes, uma vez que

Helu era do ARENA, partido político ligado ao regime militar. Como Bernardo Buarque de

Hollanda (2015) comenta “a torcida se auto representa como uma “força independente”,

“fiscalizadora” do clube” (HOLLANDA, 2015: p.26), ou seja, se constrói dentro de uma áurea

democrática não só com o Corinthians, mas, com a situação política do país.

Eric Hobsbawm (1997), em A invenção da Tradição, explica que muitos hábitos de hoje

se tornam extensão do passado, ou que reciclam o que já ocorreu, principalmente, em

sociedades que vivem na necessidade de uma nacionalidade ou de um caractere em corriqueiro

que é forjado e precisa sempre se reinventar no costume. Estamos nos referindo a construção

de identidades de um todo, ou de um grupo, pois, necessitam de uma continuidade histórica,

para exatamente poder retificar e sedimentar sua visão narrativa, o que se torna a gênese dentro

da formação da Gaviões da Fiel: uma torcida/escola de samba, que construiu uma tradição

fundada em mitos e em realidades próprias para constituição de um sentido de identificação

com uma “comunidade” e/ou as instituições que a representam, expressam ou simbolizam tais

como a “nação”.

Michel de Certeau (1997), em A invenção do Cotidiano, aponta que os grupos de uma

cidade, constroem diversas realidades sobre a ideia de espaço, bem como, nas significações que

tais regiões interferem em sua rede de sociabilidade, nas memórias locais e de identidade.

Certeau coloca que os lugares dentro de uma cidade possuem ligações, redes de interação e que

desenvolvem sentidos nos deslocamentos. O lugar seria “uma configuração instantânea de

posições. Implica uma indicação de estabilidade” (CERTEAU, 1997: p.201), inserido em uma

região que tem possui registro próprio, que na Gaviões se ambienta no Bom Retiro, lugar posto

como de resistência ou de afetividade, seja na formação do Corinthians, seja na concepção da

torcida e escola de samba.

Assim, a cidade se tornou um – e me utilizando de Certeau – um espaço praticado, uma

região que escreve uma retórica narrativa escrita pela torcida. Para o autor, o espaço seria a

palavra falada, uma região de ação dentro das ruas da cidade: seria o agir, um “efeito produzido

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pelas operações que o orientam” (CERTEAU, 1997: p.202). Analisar a visão de cidade que a

Gaviões da Fiel possui, deve ser ampla e atenta as diversas visualidades de lugar e espaço que

são construídas. Seria um espaço antropológico, uma percepção que se ampara em questões

subjetivas na relação com o mundo, no onírico e nas percepções diversas, o que diversifica uma

diferença de visões sobre tais espaços, que se desenvolvem dentro de um coletivo.

Aqui podemos perceber como essa realidade espacial, configura as relações de

importância e relevância para um grupo, sobre o que ele entende ao seu redor, ou seja, que

permeia sua historicidade. Essa percepção propicia que tal espaço possua importância ou não,

que tal individuo seja herói ou não, o que, compõe uma representação que diz respeito as visões

de espaço de um grupo. Valendo-me de Certeau “os relatos efetuam portanto um trabalho que,

incessantemente, transforma lugares em espaços ou espaços em lugares. Organizam também

jogos das relações mutáveis que uns mantêm com os outro” (CERTEAU, 1997: p.203).

Portanto, se inserir em um espaço na cidade, altera a ideia de memória dentro desta

realidade. Em A memória coletiva, Maurice Halbwachs (1990), pontua como a memória de um

grupo ou individual possuem aspectos de convergência e proximidade. Halbwachs nos coloca

que os caminhos da memória são dois: o da individualidade e coletividade. Por mais que o

coletivo possua uma memória conjunta, ela está farta de várias individualidades. Um exemplo,

seria a vitória em um jogo de futebol ou um desfile marcante: ele se engloba em um contexto

de memória coletiva e alvinegra, porém, o que cada indivíduo possui de proximidade com tal

momento da memória é distinto, em que a pessoalidade é um ponto importante nesta

compreensão. Desta forma, o que engloba o individual é o que o constitui nas interações

próximas e, portanto, no seu próprio experenciar e o que é visualizado no campo externo

(isolado e fechado), possibilitando criar maior sedimentação a memória.

Nessa perspectiva, quando traçamos uma visualidade temporal entre a memória coletiva

e individual, percebemos que tal construção pode ser nociva ao nosso próprio entendimento,

sedimentando algumas visões distorcidas sobre determinados assuntos. A memória se

desenvolve no seu entendimento pessoal, na construção de seu quadro, e pouco a pouco é que

tal compreensão se completa ou se conecta com o que existe ao seu redor. Mas, em um processo

lento e gradual de ação, como se aos poucos o escrito fosse formando algum sentido com o

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pessoal e modificando perspectivas de consciência deste passado em questão. Assim sendo a

lembrança se torna algo que é simulado.

Esse simulacro seria algo que é construído, em uma justaposição de acontecimentos que

marcam o passado, principalmente, englobadas dentro de um coletivo. O autor elenca que a

condição se remete a falta de atenção, experiência e maturidade de um período que não

consegue ser fixo, o que se aproxima ao interesse a determinado assunto, e que muda com o

tempo e com os contatos existentes. Assim, “uma cena de nosso passado pode parecer tal que

não teremos nada a suprimir e nem acrescentar” (HALBWAHCS, 1990: p.75), sempre tendo

em mente que o mesmo evento possui visões distintas. E que nos leva a entender, quais as

tensões e narrativas a respeito da cidade de São Paulo.

Criações imaginadas sobre a história de São Paulo.

Os enredos em torno da cidade de São Paulo, em sua grande maioria, trabalham com

uma ideia bastante cristalizada de uma criação imaginada sobre o que é a cidade, principalmente

em sua história. Benedict Anderson, em Comunidade Imaginadas, pontua que “a condição

nacional é o valor de maior legitimidade universal na vida política dos nossos tempos”

(ANDERSON, 2008: p.28), como um condicionamento ao nacionalismo, que se torna um

instrumento de legitimidade de poderes que são construídos por pré-condições históricas.

Essa comunidade política imaginada seria um jogo que inventa um modelo único de

consciência, em que invenção e falsidade são opostos a imaginação e criação, onde, “as

comunidades se distinguem não por sua falsidade/autenticidade, mas pelo estilo que são

imaginadas” (ANDERSON, 2008: p.33), o que explica a sua limitação, já que, tal conceito se

restringe a uma fronteira, que cria um algo necessário para inculcar ações, se tornando

necessária para um grupo e não para um todo coletivo.

Em A epopeia bandeirante, Antônio Celso Ferreira, aponta que coube ao Instituto

Histórico Geográfico de São Paulo (IHGSP) retificar o desafio de promover a história de um

povo rumo ao Progresso, em um processo de reafirmação dos seus privilégios e os confrontos

da história nacional ou de pelo menos colocar São Paulo como um grande protagonista,

O IHGSP assumiu sem disfarces a crítica ao antigo governo monárquico e a defesa

do republicanismo civil, acomodado na ideologia Liberal. Para tanto, intentou

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resolver as origens republicanas desde o período colonial, reservando aos Paulistas

o papel de divulgadores e promotores do regime” (FERREIRA, 2002: p.135).

O civismo, a glória e a identificação com estes passados estabelecem a concepção do

que é ser paulistano, e acima de tudo, do se orgulhar em ser paulistano. São as criações de

variados símbolos, lugares de memórias que tentam promover uma sociedade estruturada em

coisas em comum, mesmo que em uma realidade multicultural que mais exclui do que inclui, e

forjam assim uma memória homogênea da cidade. Esse aspecto multicultural forma uma

identidade com lacunas ou com uma narrativa contraditória, como se a identidade fosse ser

grande em movimento na composição de um mundo de aço, de uma cidade que faz do seu

munícipe uma mera engrenagem da locomotiva do Brasil. Assim, a construção de tal traço

identitário é moldada para atender diversos interesses e prerrogativas de uma cidade promissora

e predestinada a ser grande.

Cylaine Maria das Neves, em Vila de São Paulo de Piratininga, propõe que a história

de São Paulo, precisava ser grandiosa, com um fervor patriótico que justificasse nossa vocação

em ser maior, com um ideal de locomotiva ou de centro da formação do Brasil. Na percepção

da autora, a criação de símbolos e momentos, foi um meio de justificar nossa origem ao povo,

o que se conecta a ideia de comemoração, na imaginação manipulada da memória, onde,

“tínhamos que inventar as nossas tradições [e a História] passou a ser encarada enquanto

narrativa dos grandes feitos que assegurava, apesar de todas as adversidades, a posse de terra”

(NEVES, p. 16).

Portanto, a invenção desta tradição é o que edifica a representação e os símbolos que

compõem o imaginário do ser paulistano, mesmo que, seja algo criado e em alguns casos,

falseado. O que interessa é, portanto a construção de uma superioridade oposta a uma possível

veracidade, ou seja, “passaram a ocupar o status de “acontecimento fundador” a partir do que

se iniciava a narração de como a nação foi produzida e começou a existir” (NEVES, 2007: p.

160).

E muito dessa construção passa na ideia do bandeirante, um homem desbravador e

heroico, que desbravou o Brasil. É dele que surge a possibilidade da Independência, que o café

se estabelece, e no comerciante agropecuário, isto é, “estabelecia-se assim uma linha de

continuidade que afirmava a supremacia do Estado de São Paulo, desde os tempos da América

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Portuguesa até os anos vinte” (NEVES, 2007: p.161), como se fossemos um fator essencial para

que o país pudesse crescer, o que é ainda posta na memória coletiva. O próprio lema da cidade

opera nessa configuração non ducor duco, não sou conduzido eu conduzo, que expressa um

centrismo imaginado. Portanto, refletir sobre os aspectos que fundam um quadro imaginativo

sobre São Paulo se faz necessário para entender as representações que a Gaviões da Fiel

apresenta sobre a cidade, o que faremos a seguir.

SAMPA ALVINEGRA.

Os três desfiles que abordaremos tem na cidade de São Paulo seu foco narrativo

principal. Dois deles seguem uma problemática dos espaços e lugares dentro da cidade, e de

como tal problematização, interfere dentro dos grupos sociais: o desfile de 1992, que aborda a

cidade como um todo, e o desfile de 1997, que tece uma análise sobre os lugares em São Paulo,

tendo a rua como foco. O outro desfile, o de 2004, tem como foco abordar as diversas

revoluções que tiveram a cidade de São Paulo como palco de ação.

O desfile de 1992, Cidade Aquariana, pretendia fazer um mapa astral da cidade de São

Paulo, como indicava o diretor de harmonia Carlos Tadeu Gomes. O título do enredo era uma

menção ao fato de a cidade nascer no primeiro decanato do signo de aquários, segundo o

depoimento do mesmo “vamos mostrar uma cidade que consegue conviver com os contrates”

(O ESTADO DE S. PAULO, 1992), e nesse aspecto, mostrar que mesmo estando dentro de

uma realidade de oposições, a construção da cidade de São Paulo permite que todos consigam

conviver de forma tolerável, o que também mostra, que não existe uma unidade pela igualdade.

O desfile em si teve em sua representação em fantasias e alegorias um entendimento de bastante

coesão com o proposto, principalmente com o samba-enredo. Assim destaco alguns momentos:

a representação da criança dentro da cidade, que é vista com certo zelo seja no processo

educacional ou no futuro; outro aspecto é o de deslocamento e o seu consequente perigo; por

último, a ideia de justiça e de uma maniqueísmo quanto a violência, que se apresenta como

antítese ao papel da cidade dentro da formação dos paulistanos.

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O samba3 possui uma narrativa que acompanha o desfile da escola e vice versa. No

primeiro refrão temos uma construção bastante inteligente de simbolismo: dos pontos cardeais

com o sinal da cruz, o que indica uma ideia de orientação que está além do geográfico, o que

se emenda com o padroeiro da escola e do clube de futebol São Jorge, que na letra e no enredo,

era um guia que orienta a escola para um caminho iluminado. Isso também pode ser visto no

momento que a escola estava passando, já que era a reestreia dentro do Grupo Especial.

A cidade de São Paulo de fato aparece dentro da letra no corpo do samba. A melodia da

música consegue passar para quem ouve a sensação de reflexão sobre essa realidade de cidade

que a escola quer passar, por isso mesmo, que a letra em primeira pessoa consegue expressar

um diálogo. A primeira frase musical4 diz respeito ao título do enredo, que se baseia dentro de

uma ideia mística do que seria a cidade de São Paulo, que é o do signo de aquários, em que esse

narrador consulta os astros para entender ou até mesmo, prever o futuro da cidade.

Seguindo dentro de uma mesma linha melódica, a segunda frase elucida as dificuldades

que o paulistano desenvolve dentro de seu cotidiano, assim o tom ainda é mais lento,

contemplativo, e de certa forma indagativo. Assim, há uma construção sobre o deslocamento

“de andar/ Já me cansei, cadê a condução?”, tal trecho pode ser inserido dentro do

deslocamento na cidade, que muitas das vezes reflete uma desigualdade habitacional e

geográfica latente, em que o trabalho é em zonas centrais. O fim dessa frase é com a resposta a

essa pergunta: trabalho ou estudo em lugar afastado (o que indica inclusive a pouca condição

de espaços destinados à educação inclusive) e o desejo é mudar de vida, e de estar nesse mundo

bacana da vida.

Na terceira e última frase, temos uma mudança da melodia que passa a ser mais em tom

maior, e que segue com a vida que esse trabalhador deseja: poder se divertir sem preocupações,

sambar e depois do carnaval não se preocupar ou lavar tudo na cachoeira. Porém, aqui podemos

perceber um duplo sentido crítico com possível alusão a lavagem de dinheiro política. O ano de

3 Norte, sul, leste, oeste (ai amor)/ Faço o meu sinal da cruz (e na avenida)/ A imagem de São Jorge me

ilumina/ E enche os gaviões de luz/ Da paixão/ Pela magia me fiz aprendiz/ Consulto os astros para ser feliz/

Nesta São Paulo aquariana/ De andar/ Já me cansei, cadê a condução?/ Trabalho, estudo, num lugar fora de mão/

Um dia quero ser bacana/ Pra poder sambar/ Cair na zoeira/ E depois do carnaval/ Lavar tudo que é mal na

cachoeira/ Defender o meu arroz/ Educar uma criança/ Para não prender depois/ Li a mão/ Com a cigana/

Simpatia/ Salve a baiana/ E o meu gol/ Carregado de emoção/ Dedico a nação corintiana

4 Frases musicais seriam os intervalos melódicos que existem em música.

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1992 foi quando explodem os escândalos de lavagem de dinheiro dentro do governo de

Fernando Collor de Melo, em especial, de Paulo Cesar Farias. Assim, podemos perceber que

dentro da sociedade, na visão da escola, essa elite política poderia lavar tudo que fosse ruim

dentro da cachoeira, independentemente de suas ações contra o erário público. A sequência de

refrões, mostram que esse mesmo narrador assume um papel de ativismo dentro de uma cidade,

mas, excludente na visão que a ação perante o cidadão em que se busca condições de igualdade.

O desfile de 1997, Mundo da Rua, versa de certa maneira com o desfile de 1992. A ideia

do desfile é mostrar uma São Paulo que convive com suas contradições, construções e

desenvolvimentos, porém, o palco dessa narrativa seria a rua. Portanto, é um desfile que aborda

o lado externo da cidade, que para muitos é apenas um espaço de locomoção, mas para vários

é um lugar de trabalho, de sociabilidade e moradia.

A sinopse feita em terceira pessoa, nos passa a ideia de que há um observador, que em

um dia na cidade passa por diversas paisagens urbanas possíveis. Assim não é uma sinopse que

possui o caráter de ser descritivo de uma região ou de um grande espaço dentro da cidade, o

que indica que a ideia do carnavalesco é pautar uma cidade que seja reconhecida por qualquer

pessoa que veja o desfile e que ouça o samba enredo. Dentro de ônibus ou táxis, bicicletas ou

aviões. Em bares ou livrarias, bancos e escritórios, prostíbulos e igrejas, onde, “o coração da

velha metrópole paulista se concentra na magia das ruas e avenidas” (DINIZ, 1996: S/P).

Analisando o tempo dentro destas atividades, a cidade seja de manhã ou a noite, possui uma

“troca de atores” em seu tecido social, que exemplifica uma cidade que nasce e morre todo dia.

O carnavalesco Raul Diniz5, foi o idealizador do desfile de 1992, o que explica certa

similaridade nos temas como educação, justiça, violência e trânsito. Porém, nesse desfile de

1997, a cidade possui personagens que estão melhores construídos dentro do desfile, como o

próprio comenta, “quero mostrar um mundo carnavalesco, mas claro que não deixa de ser uma

crítica à dura realidade”. Portanto é um desfile que converge para o lado de criticidade que

marcou a fundação da escola, bem como, expressa boa parte de própria identidade enquanto

torcida.

5 Carnavalesco nascido em São Paulo, com passagens pela Unidos do Peruche, Mocidade Alegre, Rosas de Ouro

e entre outras agremiações. Campeão no Grupo Especial pela Camisa Verde e Branco, em 1989. Em 1991 estreia

na Gaviões da Fiel, onde fica até 1997, conquistando um título, em 1995.

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O desfile foi dividido em blocos: o primeiro deles ambienta-se na figura de São Jorge,

padroeiro da escola e do Corinthians, e que representava os combates cotidianos enfrentados

pela população. O segundo setor da escola foi intitulado de Morando nas Ruas e mostra como

ao mesmo tempo em que coisas belas existem na cidade, outra face aparece em relação as

condições de moradia, desde moradores de rua até moradores de favelas, que muitas das vezes

não possuem o mínimo de saneamento básico. No desfile, o setor possuía fantasias

representando tal condição e uma alegoria com uma favela embaixo de um viaduto, e no fundo

prédios habitacionais, evidenciando os contrastes. O terceiro setor seria As Vitrines das Ruas,

que giravam em torno do comércio, desde camelôs até as vitrines das lojas, que muitas das

vezes despertam o desejo de compra e escancaram também, as desigualdades de quem não

possui o capital de consumo.

Do quarto setor em diante seriam as ruas que estão no lado humano dos indivíduos, e

que o carnavalesco denomina como uma cidade que nasce e morre todos os dias. Assim, a rua

seria palco de guerra dentro de uma cidade com violência e imprudência de seus munícipes,

terminando o setor com uma alegoria chamada Guerra no Asfalto. Em seguida vem o quinto

setor Tentações das Ruas, com os bares, as casas de shows e a prostituição na cidade. No fim

um alerta de paz, onde, a última alegoria seria uma mão inspirada na obra de Niemayer no

Memorial da América Latina, em que na mão estaria uma arma com um nó, representando o

fim da violência na cidade. Portanto, na explanação do enredo proposta pelo carnavalesco Raul

Diniz, as ruas de São Paulo são as veias e artérias que interligam uma cidade monumental,

sendo os seus habitantes o sangue que promove seu sustento.

O samba6 de 1997 tem uma visão parecida com o de 1992, com uma direção sobre o

olhar de sociedade que compõe São Paulo, o que pode ser explicado por ser o mesmo

compositor7. O primeiro refrão começa com um pedido de prece ou como uma ideia de reflexão

6 Meu Deus do céu/ Se essa rua fosse minha/ Ai, eu pintava, enfeitava sem parar/ Milhões de flores,/ O

cenário se ilumina/ De confete e serpentina/ Sou "Fiel" vou desfilar/ Mundo de amores/ Diferenças sociais/

Palco de atores/ Vamos só correndo atrás/ Olha meu bem, não estressa “manera” na pressa, te amo demais/

Luz da vida criança/ Vivendo em família, sem ter que fugir/ Largando a calçada,/ É tudo ou nada, voltando a sorrir/

Eu quero ver essa cidade acontecer/ Eu quero muita alegria e prazer/ Quero a saudade, muita paz, felicidade/ Ai

meu amor, abraçadinho com você/ Oi bota asfalto nessa terra/ Quando chove brota a lama/ Minha Terra da Garoa,/

Universo de emoção/ Paquera, Sampa, alô paixão/ Em cada esquina sempre tem um "Gavião"

7 O autor dos dois sambas analisados é Grego, nascido na Grécia e criado no Brasil, que além de tais obras, foi

compositor de mais sete sambas na escola, sendo campeão em duas oportunidades 1995 e 2003.

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de euforia, como se fosse um sonho a ser realizado. Portanto, temos uma visão idílica ou

carnavalesca, pois, se a rua fosse “minha” eu pintava e enfeitava sem parar e aqui uma alusão

a uma cantiga de outrora, que possui similaridade: se essa rua, se essa rua fosse minha, o que

demonstra uma intencionalidade de similitude entre esse refrão e a cantiga. Depois de um refrão

longo, somos direcionados para uma frase musical curta, com doze letras rimadas

“amores/atores” e “sociais/atrás”. Além disso, esse momento mostra a rua que a Gaviões

pretende levar para o seu desfile: um espaço de amores, de trocas afetivas e de caminhos; um

lugar que ao mesmo tempo que mostra oportunidades, promove desigualdades.

O segundo refrão é um dos refrões de efeito, com o objetivo de realizar uma transição

melódica e facilitar o canto, mas, também temos uma espécie de convite: largue a pressa das

ruas para analisar o que a cidade têm a dizer, ou até mesmo, uma alusão ao trânsito paulistano.

Em seguida, somos levados a uma frase musical de quatro versos, que ao mesmo tempo altera

a melodia dentro do samba com uma alusão a uma cidade, em que o abandono de crianças não

existe, em que possa ter um futuro iluminado largando a calçada.

No segundo trecho musical, temos uma mudança novamente na melodia, em um tom

ainda mais de esperança que se apresenta também nas palavras acontecer, alegria, prazer, paz,

felicidade. Essa construção, indica uma cidade que acontece em direção a uma perspectiva de

esperança, onde as ruas sejam espaços de um mundo utópico, ou de uma São Paulo inclusiva.

E aqui retornamos a ideia de pessoalidade, como se o samba fosse alguém contando uma São

Paulo a qual ele desejava naquele pedido.

A frase musical que encerra a parte de estrofes longas do samba tem uma das partes

mais reflexivas Oi bota asfalto nessa terra/ Quando chove brota a lama/ Minha Terra da

Garoa/ Universo de emoção. O mais interessante neste trecho é que temos pela primeira vez a

menção da cidade de São Paulo, ou em um de seus pseudônimos, onde a mesma chuva que

pode castigar, também constitui uma emoção, e mais do que isso, é uma crítica poetificada

sobre a cidade. Assim, a ideia da escola é mostrar São Paulo por algo aparentemente óbvio que

são suas ruas, verdadeiras passarelas e palcos onde seus atores encenam cotidianamente

situações de alegrias, de perigos, de lazer e de tristezas, em uma agitação que é a identidade de

uma cidade, segundo a escola. A ideia é então dá um tempo na pressa e analisar a cidade de São

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Paulo como um observador “onde se processam os negócios políticos e comerciais, onde se

trabalha o cérebro e bate o coração de uma cidade”.

Nestes desfiles, podemos perceber que existe toda uma tensão nesse espaço praticado,

tal qual Michel de Certeau demonstra. Como se a rua se tornasse região de conflitos entre o

lugar e o espaço. São enredos que elaboram um embate entre o que é imaginado e o que se

apresenta como real, dentro do cotidiano, principalmente no desfile de 1997. Este espaço,

portanto, não se constitui apenas no oficializado, pelo contrário demonstra como estes

ambientes da cidade são conflitivos em sua constituição. Em ambos os desfiles pode-se

identificar como a própria escola se enxerga na sociedade, sendo uma das instituições que

arranjam esse quadro de memórias, como se essa visualidade de cidade fosse constituída dentro

de aspectos que constituem a Gaviões da Fiel em coletivo. O que se dissocia do que ocorre em

2004

Os enredos do carnaval de 2004, deveriam abordar a cidade de São Paulo, em aspectos

culturais, geográficos ou históricos, sendo um tema único a todas as escolas de samba da cidade,

em comemoração aos 450 Anos. Assim a Gaviões, então bicampeã, escolhe explicar a cidade

por uma via histórica, e de certa forma original, de enxergar a cidade por meio de suas

revoluções, no enredo Ideias e Paixões – Combustíveis das Revoluções. Seria uma composição

visual da cidade na ideia de luta, porém, tal concepção que a escola pretende mostrar é aquela

idílica de uma cidade bandeirante, jesuítica, dos barões do café e da Revolta de 1932, portanto,

na construção de uma paisagem em “comum” a todos.

Esse tom mais ufanista, em contraste aos desfiles de 1992 e 1997, pode ser explicado

por dois motivos: o primeiro deles é o evento simbólico dos 450 Anos da cidade, em que

nenhuma agremiação apostou em analisar a cidade em suas contradições. Como destaca Silvio

Luís Lofego, em IV Centenário da Cidade de São Paulo, tal ato de comemorar na cidade

consolida um imaginário comemorativo, que postula não só uma memória manipulada, como

provoca um estado de identificação com quem ver e ouve. Como Lofego (2004) aponta “a

cidade é antes de qualquer coisa, o povoamento de imagens e fontes do imaginário” (LOFEGO,

2004: p. 22), o que demonstra que monumentos e outros signos de representação de um coletivo,

se encontram permeados de valores e símbolos que os tornam lugares de memória.

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O primeiro ponto a ser evidenciado dentro da sinopse proposta pela Gaviões em 2004,

desenvolvida por Roberto Szaniecki8, se ambienta em uma ideia de grandeza que é construída

ao longo do tempo sobre a importância da cidade. No caso, não estamos apontando que São

Paulo não possua protagonismos, porém, a colocar como centro de uma importância de

mudanças gerais, evidencia os resquícios de uma comunidade imaginada sobre a constituição

de paulistanidade.

O segundo ponto converge com a ideia de grandeza e de revolução. Isso se torna mais

explicativo, quando não se escolhe uma pessoa, mas, diversos momentos no coletivo que

expressam um ato revolucionário que estaria na “raiz” do paulistano, e que moldaram suas

ideias, opiniões e costumes. Como o carnavalesco bem expressa “veremos os atos

revolucionários como uma alavanca, uma força motriz que fez com que São Paulo se tornasse

um “país” dentro do nosso Brasil, este gigante de proporções continentais” (SZANIECKI, 2003,

S/P).

A escola desenvolveu o enredo dentro de momentos visto como revolucionários. A

primeira revolução que a escola aborda é a Revolução Agrícola, que ocorre no período do café,

onde, na interpretação da escola revoluciona a economia do Brasil, quando o eixo econômico

vem para o Estado, e leva o país para uma leva nova de imigrantes. Veja que a visão de escola

é a predominante no IHGSP, onde, toda a glória paulistana tem um início no século XIX, e

como se o passado anterior não existisse. Isso levou a outra Revolução Industrial, que edifica

um novo Parque Nacional de São Paulo, que muda a economia do campo para o setor industrial.

A Revolução Política, que se ambienta na vinda dos imigrantes, na greve de 1917, na

criação do Partido Comunista e Democrático, sendo este último que desenvolve a Revolução

de 30, que teve como aliança de diversos estados contra a oligarquia paulista. A Aliança Liberal

acarreta um sentimento de traição que desagua na revolução que é vista como um espelho da

união de São Paulo, quando a união do estado assombra o país. A escola indica que a Revolução

de 1932 colocou no povo paulista “uma consciência política que se propagou além das

fronteiras do Estado e alcançou todo o território nacional, estabelecendo uma política mais

democrática e solidária” (SZANIECKI, 2003: S/P).

8 Carnavalesco nascido na Polônia, mas, que cresceu e se formou no Brasil. Têm passagens pelo Salgueiro, Grande

Rio, Mangueira e Portela, ambas do Rio de Janeiro. Foi carnavalesco em São Paulo na Gaviões da Fiel, em 1998

e 1999, sendo campeão nesse último ano, e ainda desenvolveu o desfile de 2004.

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No campo artístico, a Revolução das Artes é posta no manifesto modernista, que se

ratifica com a Semana de Arte Moderna de 22. O interessante é que a justificativa se insere na

ideia de que a cidade foi berço de um novo pensamento, que derruba uma ideia arcaica e antiga

de se ver as artes, e que na visão do carnavalesco acaba com “as velhas formas acadêmicas”

(SZANIECKI, 2003: s/p). Desta forma, o movimento antropofágico sai de São Paulo e

revoluciona o país. Outras revoluções são colocadas: a Revolução Operária do ABC, a

Revolução Científica, e, por fim, a Revolução Corintiana que se ambienta na própria fundação

da escola, que carrega desde sua fundação o sentimento de combate, em um sentimento:

“que toca o coração Corintiano: a revolução que fez com que um pequeno grupo de

torcedores descontente se unisse em prol de um único ideal, ver seu time recolocado

em seu honroso lugar de time batalhador e Campeão, depois de anos de derrotas e

administrações equivocadas” (SZANIECKI, 2003, s/p).

Assim, a abertura da escola tinha na comissão de frente gigantes que de um lado eram

indígenas e do outro robôs, expressando uma narrativa de passado, presente e futuro, que se

associa com o abre-alas que aborda o mito de fundação da cidade, com os jesuítas e a

catequização, até a consolidação do café dentro da cidade. Nas palavras do carnavalesco

Roberto Szaniecki, “a intenção do primeiro setor é fazer uma varredura histórica com os

principais momentos, que seriam revoluções” (O ESTADO DE S. PAULO, 2004), ou seja, é

uma visão de que tais ações seriam vistas como processos revolucionários.

O segundo setor da escola aborda os aspectos políticos que sempre permearam a cidade

desde sua fundação, dando um foco ao imigrante italiano (fundadores do Palestra Itália, atual

Palmeiras, rival do clube), em que trazem todo uma ideia de anarquia. Além dos italianos,

ganham destaque o Partido Comunista, que tem na cidade um polo ativo dentro do cenário

regional. Outros movimentos que ganham destaque é a Coluna Prestes, mas, o foco fica com a

primeira greve da cidade em 1917, que ocorre exatamente no Bom Retiro, sede da escola.

O terceiro setor, abordou as artes e as ciências, em que o foco fica na Semana de Artes

de 1922, ainda com homenagens ao Teatro Brasileiro de Comédia, a Companhia Vera Cruz, o

fundador da TV Tupi, Assis Chateaubriand, isto é, a escola evidencia que dentro deste campo

político e social, as artes na cidade contribui para abastecer a ideia de revolução. No campo da

ciência, o destaque fica na Universidade de São Paulo (USP), que no período desenvolvia o

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Projeto Genoma e na área de transgênicos (em alta no período), em que o autor conclui, que

nos campos das artes e da ciência, “São Paulo sempre está na vanguarda nesses dois itens”.

O samba-enredo9 possui em sua melodia um tom nostálgico e alto, o que passa a

sensação de comemoração. O ano de 2004 foi o retorno da Gaviões em enredos históricos, e

fazendo uma análise breve os outros dois enredos nessa temática, o de 1999, sobre o rei D.

Sebastião e o de 2000, sobre revoltas coloniais, possuem em sua estrutura de narrativa e

melódica pontos semelhantes, e inclusive, de um olhar mais ufanista de perceber a história.

Nesse samba de 2004, temos o tipo de visão histórica de São Paulo que o enredo aponta,

no direcionamento, de uma cristalização de um passado glorioso, de locomotiva do Brasil que

a cidade possui e algumas palavras são chave nisso, cobiça e nosso tesouro. No fim tem talvez

a frase mais impactante e o índio agradece, obrigado José, ou seja, que seria Anchieta um

salvador que protege a pureza ou mudaria a selvageria dos indígenas.

No segundo refrão temos mais um personagem posto como figura de herói, dentro da

narrativa histórica de São Paulo que são os bandeirantes. Nesse refrão construído de uma forma

bem fluída para o canto, temos exatamente essa visão de desbravadores que foi atribuída a este

grupo, e que graças a essa exploração do interior, partindo de São Paulo, o café conseguiu

prosperar gerando o ouro negro. Portanto, é uma visão imaginada de um sucesso atrelado entre

os dois grupos, e que sucedeu um estado forte, e que se apresenta em algumas palavras que

remetem a essa ideia como cresceu, o mundo então conheceu, grande centro. Portanto, se

expressa aquela visão de que o país só se movimenta por causa dessas revoluções paulistanas.

Veja que essa primeira parte se apresenta de uma maneira bastante dúbia, pois,

aparentemente, a ideia de revolução que a escola nos passa no samba parece um revisionismo

ou até mesmo, uma concepção histórica revolucionária com viés “nacionalista” de analisar São

Paulo. Porém, na segunda parte, temos uma visão de revolução que se aproxima mais do que

9 Viajei e voei/ E encontrei nessa cidade/ Ideias e paixões, revoluções por liberdade/ O eldorado sonhado desperta

a cobiça por nosso tesouro/ A proteção vem da fé/ E o índio agradece, obrigado José/ O bandeirante explorou e

o barão plantou o ouro negro/ E o estado cresceu, o mundo então conheceu/ O grande centro de um país em

movimento/ E no decorrer dessa viagem/ Pensamento segue em outras direções/ Greve, democracia/ Quem sabe

um dia comandar essa nação /Eu quero é comer da arte nacional/ Desfrutar dessa cultura/ E esquecer a influência

internacional/ Surgiu o futebol, nasceram as paixões/ Sou Gaviões, eu sou Corinthians/ O verdadeiro campeão dos

campeões/ Ninguém vai me calar/ Nem conseguir mudar/ Esse orgulho de ser Gavião/ Nesse Carnaval e

emoção/ É ser Fiel de coração.

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historicamente conhecemos, de uma mudança da ordem vigente e na construção de outra

realidade. Na primeira frase musical, a escola pontua que aqueles pensamentos de revolução

mudam e assumem o direito de democracia e de greve operária. Aqui temos menção a primeira

greve em larga escala do país, em 1917 e menção a Revolta Constitucionalista de 1932, já que

o trecho quem sabe um dia comandar essa nação passa essa impressão. Porém, o mesmo trecho

pode indicar a ideia que esse movimento grevista desejaria comandar a nação, já que o

movimento operário durante a ditadura militar, é citado dentro da sinopse, mas, tudo indica que

a primeira visão seja a mais próxima do que a escola tem apresentado ao longo da letra.

Na segunda frase musical dentro desta parte final do samba-enredo, temos uma alusão

direta e clara ao movimento modernista de 1922, quando diz esquecer a influência

internacional. A última parte diz respeito as revoluções no esporte e que tem o Corinthians

como plano de fundo, e aqui retomamos aquela dupla relação que cria a mitologia da Gaviões

da Fiel: a de criação do clube, feita por operários do Bom Retiro, em um momento de elitização

do futebol; e o segundo ponto da criação da Gaviões, que derrubou o então presidente aliado da

Ditadura Militar, e construiu uma torcida que tem nesse posicionamento mais à esquerda, sua

formação. Além disso, coloca no Corinthians um símbolo forte de revolução, seja em campo

ou na arquibancada.

Analisando os desenvolvimentos dentro dos três enredos na Gaviões da Fiel, podemos

perceber que existem duas visões de São Paulo: uma que se insere na lógica de sociedade, na

criticidade de sua realidade, ou que reflete a construção histórica seja enquanto escola de samba

ou torcida, absorvendo toda a sua ambientação dos espaços e lugares da cidade. Por outro lado,

se referindo ao aspecto histórico, podemos perceber que esse lado contestador não é

proeminente, persistindo certas cristalizações e concepções imaginadas, com mitos, heróis e um

ideal de paulistanidade. A Gaviões da Fiel, como qualquer instituição possui contradições e

reconstruções que se constroem dentro das redes sociabilidade a qual se insere. Uma São Paulo

com um filtro alvinegro, que mescla futebol e samba.

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Site.

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