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SANDRA MARA PINHEIRO MACIEL
A CENSURA NA MÚSICA NO ESTADO NOVO (1937-1945)
CURITIBA 2007
SANDRA MARA PINHEIRO MACIEL
A CENSURA NA MÚSICA NO ESTADO NOVO (1937-1945)
Monografia apresentada ao Departamento de História, do Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial para obtenção grau de Bacharel em História. Orientadora: Profa. Dra. Roseli Teresinha Boschilia
CURITIBA 2007
A Luiz, meu amor, minha gratidão pela paciência, compreensão e incentivo em muitas horas que tive vontade de desistir. Sem você, este sonho não teria sido possível.
AGRADECIMENTOS
A Deus, pelas oportunidades maravilhosas de engrandecimento pessoal e espiritual proporcionadas, e, principalmente, pelos "anjos" que coloca em nossos caminhos, sem os quais nada seria possível. Dentre esses "anjos", agradeço imensamente: À minha família, principalmente a meu pai, que sempre me incentivou a continuar me aprimorando nos estudos e sempre acreditou nos meus sonhos. A minha filha Vivian, pela paciência e principalmente por todos os momentos que não pude me dedicar mais a ela em virtude dos meus estudos. Aos amigos Luciano, Osvaldo, Luciane e Najara, com quem tive a oportunidade de conviver nestes quatro anos de curso e que foram muitas vezes o apoio e a esperança para continuar. A minha orientadora Professora Doutora Roseli Teresinha Boschilia, pela segurança transmitida e constantes instigações para o desenvolvimento da pesquisa, e também pela confiança, paciência e amizade que sempre me transmitiu. A Professora Doutora Judite Trindade, pelas muitas vezes que bem orientou, compartilhando com todos sua sabedoria e seus livros, com os quais facilitou em muito nosso trabalho de pesquisa. Por fim, a todos que direta ou indiretamente me ajudaram nesta jornada, o meu muito obrigada.
.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES TABELA 1 – MÚSICAS DE ATAULFO ALVES ESCOLHIDAS COMO BASE DE PESQUISA .........46
TABELA 2 – ANÁLISE DE CONTEÚDO DAS MÚSICAS COMPOSTAS POR ATAULFO ALVES
GRAVADAS ANTES DO PERÍODO ESTADO NOVO ........................................47
TABELA 3 – ANÁLISE DE CONTEÚDO DAS MÚSICAS DE ATAULFO ALVES GRAVADAS
DURANTE O PERÍODO DO ESTADO NOVO..................................................48
TABELA 4 – ANÁLISE DE CONTEÚDO DAS MÚSICAS DE ATAULFO ALVES GRAVADAS APÓS
O PERÍODO DO ESTADO NOVO ................................................................52
TABELA 5 – MÚSICAS DE GERALDO PEREIRA ESCOLHIDAS COMO BASE DE PESQUISA .....54
TABELA 6 – ANÁLISE DE CONTEÚDO DAS MÚSICAS DE GERALDO PEREIRA GRAVADAS
DURANTE O PERÍODO DO ESTADO NOVO..................................................54
TABELA 7 – ANÁLISE DE CONTEÚDO DAS MÚSICAS DE GERALDO PEREIRA GRAVADAS
DURANTE O PERÍODO DO ESTADO NOVO..................................................55
RESUMO
MACIEL, S.M.P. CENSURA NA MÚSICA NO ESTADO NOVO (1937-1945). Getúlio Vargas assumiu o poder, em 1930, através de uma conspiração militar, em meio a um clima de instabilidade política e uma crise econômica iniciada com a queda nas bolsas americanas. O Estado Novo surge através de uma segunda conspiração promovida por Vargas e seus colaboradores militares. Desde a consolidação do poder a partir de 1930, Vargas mostra-se preocupado em estruturar seu governo ancorado em mecanismos de propaganda e controle da opinião pública, como meio de difundir os ideais que norteariam sua atuação política, sendo a música um desses mecanismos no Estado Novo. Com a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), em outubro de 1939, o Estado exerceu forte pressão sobre as atividades artísticas, tendo como objetivo principal construir a imagem de Vargas, cultuar a sua personalidade e controlar a opinião pública. Diversos autores, que têm se dedicado ao estudo da música a partir da década de 80, afirmam que a música foi utilizada pelo governo Vargas para difundir seus ideais trabalhistas e ao mesmo tempo incutir na população novos hábitos, principalmente em relação ao trabalho e incentivando o abandono da malandragem. Não há, no entanto, consenso a esse respeito, com opiniões divergentes entre os autores. A partir dessa problemática, este trabalho teve como objetivo analisar a censura na música no Estado Novo (1937-1945), através análise de conteúdo de uma amostra de músicas dos compositores Ataulfo Alves e Geraldo Pereira gravadas antes, durante e depois do Estado Novo. Investigou-se as estratégias utilizadas por eles para fazer frente às imposições da censura e se eles alteraram seu ponto de vista em relação à boemia e à malandragem, combatidas durante o Estado Novo. As letras de músicas de Ataulfo Alves escolhidas para análise, gravadas anteriormente ao Estado Novo, não apresentam apologia à boemia, malandragem ou ao não trabalho, porém a bibliografia pesquisada permite afirmar que este compositor se comportava malandramente em suas canções. Quanto às músicas gravadas sob o Estado Novo (1937-1945), na amostra analisada é possível perceber que os temas das músicas são quase que na totalidade voltados ao amor e à apologia ao trabalho, à regeneração do malandro e ao abandono à boemia, demonstrando a atuação da censura. Nas músicas de Ataulfo Alves após o Estado Novo evidencia-se a alteração da temática das canções, retornando a apologia à malandragem e ao não trabalho. Quanto à análise de conteúdo das músicas de Geraldo Pereira, sob Estado Novo, os temas são quase na totalidade voltados ao amor, com músicas tratando da regeneração do malandro. Nas músicas gravadas por ele após o Estado Novo há mudança da temática, com significativa ênfase na apologia à malandragem. Assim, em relação a ambos os compositores, percebe-se a influência e atuação do DIP sobre suas produções, os quais alteraram temas e letras de canções como forma de driblar a censura, voltando a compor a respeito dos temas proibidos, tão logo foi extinto o Estado Novo. PALAVRAS-CHAVE: Estado Novo, Censura, Música
ÍNDICE
AGRADECIMENTOS
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
RESUMO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................................ 7
1. INSTALAÇÃO DO GOVERNO DE GETÚLIO VARGAS ......................................................... 13
1.1. CONTEXTO POLÍTICO DO ESTADO NOVO......................................................................... 16
1.2. CONTEXTO ECONÔMICO DO ESTADO NOVO................................................................... 19
1.3. SOCIEDADE ......................................................................................................................... 20
1.4. PAPEL DO RÁDIO ................................................................................................................ 22
1.5. CINEMA .............................................................................................................................. 23
1.6. SENTIMENTO DE NACIONALISMO ..................................................................................... 24
1.7. COMPOSITORES QUE FAZIAM SUCESSO NA DECADA DE 30 ......................................... 26
2. INFLUÊNCIA DA CENSURA NA MÚSICA ............................................................................. 29
2.1. MÚSICA E CENSURA NO BRASIL ....................................................................................... 30
2.2. CENSURA COMO INSTRUMENTO DE DISCIPLINA DA SOCIEDADE NO GOVERNO VARGAS .............................................................................................................................. 33
2.3. AS TENTATIVAS DE COOPTAÇÃO DOS SAMBISTAS E AS ESTRATÉGIAS UTILIZADAS PARA DRIBLAR A CENSURA............................................................................................... 34
2.4. AUTORES PESQUISADOS................................................................................................... 39
2.4.1. Ataulfo Alves de Souza .......................................................................................... 40 2.4.2. Geraldo Theodoro Pereira...................................................................................... 41
3. ANÁLISE DE CONTEÚDO DAS MÚSICAS DE ATAULFO ALVES E GERALDO PEREIRA ... 46
3.1. ATAULFO ALVES ................................................................................................................. 46
3.1.1. Análise de conteúdo das músicas de Ataulfo Alves gravadas anteriormente ao Estado Novo .......................................................................................................... 47
3.1.2. Análise de conteúdo das músicas de Ataulfo Alves gravadas durante o período do Estado Novo .......................................................................................................... 48
3.1.3. Análise de conteúdo das músicas de Ataulfo Alves gravadas após o período do Estado Novo .......................................................................................................... 52
3.2. GERALDO PEREIRA ............................................................................................................ 53
3.2.1. Análise de conteúdo das músicas de Geraldo Pereira gravadas durante o período do Estado Novo......................................................................................... 54
3.2.2. Análise de conteúdo das músicas de Geraldo Pereira gravadas após o período do Estado Novo .......................................................................................................... 55
CONCLUSÃO .............................................................................................................................. 60
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................................ 62
INTRODUÇÃO
A história há muito tempo deixou de ser tratada de modo tradicional, cada vez mais
abrindo-se possibilidades para o historiador poder trabalhar com novos objetos que o levem
a descobrir outras temáticas. Hoje, muitos historiadores saem em busca de novos territórios
que possam levá-los a encontrar novas possibilidades para o estudo da História.
É isto que pretendemos mostrar com este trabalho, onde história e música se
entrelaçam. O estudo da música é mais ou menos recente. Os historiadores e cientistas
sociais passaram a partir da década de 80 a dar mais atenção a esta temática, abrindo
novas possibilidades para que se conquistasse espaço na academia.
Este trabalho começou a ser elaborado a partir do interesse pelo tema em uma aula
de História do Brasil, onde estudamos a censura nos meios de comunicação. O tema é
instigante pela relevância do período estudado, visto ser até hoje um dos preferidos dos
historiadores pela importância que teve na história contemporânea do país.
Mostra a influência do governo Vargas nos movimentos de massas e sua
importância no imaginário do povo, que seduziam até as camadas menos favorecidas da
população a um sentimento de nacionalismo, civismo e contemplação à pátria.
Neste trabalho analisou-se especificamente a censura na música, a partir da
produção dos compositores Ataulfo Alves e Geraldo Pereira. O recorte temporal foi de 1937
a 1945, investigando as letras das canções gravadas antes e depois do Estado Novo,
comparando-as com aquelas gravadas sob o Estado Novo, analisando quais foram as
estratégias que os compositores utilizaram para fazer frente às interferências impostas pela
censura da época e poder continuar gravando suas canções e até que ponto esses autores
alteraram seu ponto de vista em relação à boemia e à malandragem, duramente combatidas
no Estado Novo.
A principal marca do governo Vargas no plano institucional, desde os seus primeiros
tempos, foi a centralização do poder. A crença nas virtudes de um executivo forte vinha da
ideologia positivista. Chefe do governo provisório, Getúlio Vargas dissolveu o Congresso e
os legislativos estaduais e municipais.
Logo que assumiu o poder, Vargas fez questão de acentuar o caráter nacionalista
dos novos tempos, defendendo a necessidade de ser nacionalizada a exploração das
riquezas naturais do Brasil. Concretizou-se também a aproximação pragmática entre
governo e Igreja Católica, pois Vargas percebeu a importância da Igreja como garantia
simbólica da ordem e como instituição capaz de atrair setores que não estavam sob sua
influência.
8
Vargas enfrentou de início uma situação difícil, pois a crise provocara o desemprego
nas maiores cidades e insatisfações de conteúdos diversos no âmbito do Exército. No
começo do seu governo, Vargas dera mão forte aos militares, particularmente aos
“tenentes”, nomeando-os para interventorias, que tiveram papel preponderante na
subordinação das oligarquias do Norte e Nordeste.
No contexto político, surgiram movimentos que alcançaram crescimento acentuado
após 1932, como o PCB, Ação Integralista e a Aliança Nacional Libertadora - ANL, como
resultado do descontentamento com os rumos que o governo Vargas vinha tomando.1
Na clandestinidade, os dirigentes do PCB lançaram-se aos preparativos de uma
ação revolucionária, com o apoio da Internacional, culminando em 1935 com a Intentona
comunista. Nenhuma ação teve efeito significativo contra o governo Vargas e, em meio ao
quadro repressivo, surgem candidaturas para as eleições diretas de 1938. Getúlio não
apoiou oficialmente nenhum dos candidatos, pois ele e a cúpula militar tinham planos de um
novo golpe, que foi deflagrado no final de 1937. Surge então o Estado Novo, como a fórmula
que permitiria realizar as tarefas de unificar o país, promover o desenvolvimento econômico,
criar uma nova representação das classes produtoras e dos trabalhadores, introduzir enfim o
governo técnico, acima das políticas partidárias.2 O governo Vargas caracterizou-se,
também, pela “Ideologia do Trabalhismo”.3
A radiocomunicação constituía um serviço público cuja utilização dependia de
concessão do governo. O rádio tornou-se um dos maiores responsáveis pela propagação
dos ideais de Vargas pelo país. Em 1938 foi ao ar, pela primeira vez, o programa Hora do
Brasil, cuja transmissão, ainda hoje, é obrigatória em todas as emissoras do país.4
O sentimento de nacionalismo foi o feito mais elementar da era Vargas, entendendo
que sobre a escola se assentava a identidade nacional.5 Além do ensino de história e da
geografia privilegiarem a expansão da nação, procurou-se impor a imagem de um Brasil de
proporções continentais, unificado pela língua e pelos acidentes geográficos,
fundamentando o patriotismo em dados tomados como objetivos.6
O ensino da música nas escolas primárias e normais, através dos cantos corais,
desde o início do século XX era defendido por muitos músicos como Mario de Andrade,
Villa-Lobos e Fabiano Lozano, mas não encontravam apoio suficiente para que isso fosse
1 FAUSTO, Boris. Getúlio Vargas: O poder e o sorriso. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 73. 2 FAUSTO, p. 90. 3 VICENTE, Eduardo. A música popular sob o Estado Novo (1937-1945), p. 5. Disponível em: <www.multirio.rj.gov.br>. Acesso em: 15/03/2007. 4 SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. História Viva: Grandes Temas, nº 4, p. 45. 5 SOUZA, Maria Cecília Cortez Christiano de. A escola exacerba a identidade nacional. História Viva - Grandes Temas. São Paulo, s/d., p. 39. 6 SOUZA, p. 39.
9
possível até a conspiração de 30, quando o ensino do canto orfeônico foi implantado nas
escolas do Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco e outros estados.7
Desde a consolidação do poder a partir da conspiração de 1930, Getúlio Vargas
mostrava-se bastante preocupado em estruturar seu governo ancorado em mecanismos de
propaganda e controle da opinião pública, como meio de difundir as idéias e os ideais que
norteariam sua atuação política.
Getúlio Vargas logo percebeu a importância que a música poderia assumir como via
de acesso ao imaginário popular. Assim, a par das atitudes paternalistas que Vargas, de um
modo geral assumiu em relação aos músicos, uma forte ação repressora passou a ser
exercida pelo Estado.8
Para tanto, foram criados sucessivos órgãos responsáveis pela censura, finalizando
com a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), em dezembro de 1939,
que passou a exercer forte pressão sobre as diversas atividades artísticas. O órgão tinha
como objetivo principal construir a imagem de Getúlio Vargas, cultuar a sua personalidade e
controlar a opinião pública, apoiando a divulgação da música nacionalista, como forma de
transformá-la num eficaz instrumento de propaganda do governo estadonovista.
Sob o governo Vargas (1930-1945), Villa-Lobos consolidou um amplo projeto em prol
da catequese do povo brasileiro através de atividades artísticas.9 Tais projetos
apresentavam um eixo comum: a organização da música no Brasil deveria ser pensada a
partir de um projeto de natureza hegemônica e fortemente centralizadora. Assim,
implicitamente, as noções de civismo, de centralismo, da intromissão do Estado no campo
artístico e cultural, da necessidade da censura para evitar abusos contra esse projeto, entre
outras questões, foram harmonicamente assimiladas pelo governo Vargas, em especial, a
partir de 1937.10
O estudo da música também tem sido fortemente valorizado em nossa historiografia
recente, podendo-se citar Eduardo Vicente, Arnaldo Daraya Contier, Antonio Pedro Tota,
Roberto M. Moura, João Ernani Furtado Filho, Tânia Regina de Luca, Décio de Almeida
Prado, Adalberto Paranhos, José Ramos Tinhorão, Marcos Napolitano etc, historiadores e
musicólogos que têm se dedicado ao tema.
Diversos desses autores afirmam que a música foi utilizada pelo governo Vargas
para difundir seus ideais trabalhistas e ao mesmo tempo incutir na população novos hábitos,
principalmente em relação à importância do trabalho e incentivando o abandono da
malandragem, tema central de diversas canções da época.
7 CONTIER, Arnaldo Daraya. Passarinhada do Brasil: canto orfeônico, educação e getulismo. São Paulo: Edusc, 1998, p. 16. 8 VICENTE, p. 7. 9 CONTIER, p. 116.
10
Alguns deles defendem a hipótese de que o DIP cerceava a liberdade dos cantores e
compositores. Adalberto Paranhos, por exemplo, aponta que os compositores populares, em
especial os sambistas, passaram a ser estrita e estreitamente vigiados. Paralelamente,
buscava-se atrair os artistas para a área de influência governamental, usando a moeda de
troca dos favores oficiais, tentando-se capturá-los na rede do culto ao trabalho. Através da
atuação do DIP, a ditadura estadonovista procurava assegurar a instauração de um
determinado tipo de sociedade disciplinar, simultaneamente à fabricação de um perfil
identitário do trabalhador brasileiro dócil à dominação capitalista.11
Arnaldo Contier12 menciona que a censura era vista com bons olhos pelos autores
eruditos, pois estes sentiam uma certa repulsa em face da música vulgar. Cita, ainda, que o
Estado, através do DIP, somente censurou letras de músicas populares consideradas
ofensivas à moral e aos bons costumes ou que pudessem incutir, nos jovens, ideais ligados
à malandragem, incompatíveis com a ideologia estadonovista.13
Já Eduardo Vicente cita que uma importante questão imposta ao DIP era identificar
uma forma de eliminar a figura do malandro e o elogio à malandragem da produção musical
da época. Segundo ele, o Departamento utilizou duas linhas de ação: a cooptação, quando
esta fosse possível e uma rigorosa censura às composições que lhe parecessem
inadequadas, abrangendo as letras e a linguagem utilizada, visando eliminar gírias e vícios
de linguagem.14
Mas o trabalho acadêmico sobre esse tema que mais ressoou no circuito
universitário data de 1980, segundo Adalberto Paranhos, e é de autoria de Antonio Pedro
Tota. Seu ponto de partida está na premissa de que o “Estado Autoritário” lançou mão de
alguns gêneros da canção popular (notadamente samba e marcha), como ideologia do
trabalhismo, com vistas a cooptar os trabalhadores e legitimar-se junto a eles.15 Paranhos
discorda de Tota, afirmando que na década de 30, a maioria das canções remetia a jogos
amorosos, nada tendo a ver com a apologia ou a resistência ao ideário trabalhista ou com o
ufanismo estado-novista. Para Paranhos, Tota acata sob vários aspectos a “teoria do
rebaixamento” a que se refere Peter Burke. Os conteúdos manipulados pelo agente
transmissor, no caso o Estado/DIP, teriam sido interiorizados sem mais pelos receptores.
10 CONTIER, p. 227. 11 PARANHOS, Adalberto. A historiografia e o “samba de uma nota só” do “Estado Novo”. Disponível em: <www2.csh.clio.pro.br> Acesso em: 30/03/2007. 12 CONTIER, p. 325. 13 CONTIER, p. 338. 14 VICENTE, Eduardo. A música popular sob o Estado Novo (1937-1945). Disponível em: <www.multirio.rj.gov.br>. Acesso em: 15/03/2007. 15 PARANHOS, p. 6.
11
Em síntese, o receptor é praticamente reduzido a locutor da fala alheia, ao ser rebaixado à
função de “locutor-papagaio”.16
Fábio Gomes cita que os sambistas se viram forçados a mudar de filosofia no final da
década de 30 e que o DIP, além de censurar, dava orientações aos compositores, que
deviam abandonar a malandragem e incentivar o trabalho, a família e o casamento.17
Contrariando esse entendimento em relação à atuação do DIP, Tânia Costa Garcia
cita que o malandro passava a integrar o mundo do trabalho e a malandragem ficava diluída
no ritmo e na harmonia da canção. Esta cooptação dos cantores e compositores populares,
pelo poder, chegou ao clímax com o samba exaltação. O DIP, ao mesmo tempo em que
proibia a execução de músicas, cuja letra pudesse soar como desacato à ordem
estabelecida pela conspiração de 1937, motivava os compositores à elaboração de canções
que exaltassem o trabalhador e a pátria.18
Os autores mencionados levantam a questão de que os compositores no período do
Estado Novo sofreram controle em sua produção musical. Por outro lado, Adalberto
Paranhos cita que um dos maiores pesquisadores da música popular no Brasil, o jornalista
Sérgio Cabral, afirma não haver maiores dúvidas quanto aos superpoderes ostentados pelo
Estado, especialmente pelo DIP, em relação ao controle da produção musical e ao estímulo
ao enaltecimento do trabalho. Ele garante que, a partir de 10 de novembro de 1937, o
regime tinha “absoluto controle da música popular brasileira e de qualquer tipo de
manifestação a ela relacionada”.19
Para análise da produção musical, a metodologia utilizada para realização do
trabalho constituiu-se na investigação das letras das músicas inseridas nas fontes
bibliográficas, quando existentes, bem como a musicografia e discografia dos autores
selecionados. As músicas foram ouvidas para analisar inserções que pudessem alterar a
conotação original das letras aprovadas pelos censores.
Como suporte teórico para análise do contexto histórico do Estado Novo e a
interferência do governo sobre a produção musical, apoiamo-nos nas reflexões de Pierre
Bourdieu. Esse autor afirma que o poder é uma espécie de “círculo cujo centro está em toda
parte e em parte alguma”, é necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos,
onde ele é mais completamente ignorado, portanto reconhecido: o poder simbólico é, com
efeito, esse poder invisível que só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não
querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.
16 Id. 17 GOMES, Fábio. O Trabalho na Música Popular Brasileira. Disponível em: <www.brasileirinho.mus.br> Acesso em: 24/11/2006. 18 GARCIA, Tânia Costa. A canção popular e as representações do nacional no Brasil dos anos 30: a trajetória artística de Carmem Miranda. História: Questões & Debates. Curitiba, v. 31, p. 67-94, jul-dez 1999.
12
Bourdieu argumenta ainda que a cultura dominante contribui para a integração real
da classe dominante (assegurando uma comunicação imediata entre todos os seus
membros e distinguindo-os das outras classes); para a integração fictícia da sociedade no
seu conjunto, portanto, à desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas, para a
legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias)
e para a legitimação dessas distinções. Para o autor, enquanto instrumentos estruturados e
estruturantes de comunicação e de conhecimento, os “sistemas simbólicos” cumprem a sua
função política de imposição ou de legitimação da dominação de uma classe sobre outra
(violência simbólica) dando o reforço da sua própria força que as fundamentam e
contribuindo, segundo a expressão de Weber, para a “domesticação dos dominados”.
O trabalho foi dividido em três capítulos. O primeiro aborda a instalação do Governo
de Vargas, candidato de oposição na época, favorecido em parte pelo rompimento pelo
estado de São Paulo da denominada política “café com leite” e pelo clima político
conturbado pelo assassinato do candidato à vice-presidência pela Aliança Liberal.
Aproveitando-se da instabilidade política, agravada pela crise econômica mundial, iniciada
em 1929, Getúlio chega ao poder através de um golpe militar.
O segundo capítulo analisa a censura na música e com ela foi utilizada como
instrumento de disciplina no governo Vargas. Getúlio Vargas percebeu a importância que a
música poderia assumir como via de acesso ao imaginário popular. Assim, a par das
atitudes paternalistas que Vargas, de um modo geral assumiu em relação aos músicos, foi
exercida pelo Estado uma forte ação repressora.20
Finalmente o terceiro capítulo abrangeu a análise de conteúdo das músicas de
ambos os compositores, a partir das pesquisas realizadas na bibliografia e nas suas
musicografias, objetivando investigar os temas e as características por eles utilizadas,
principalmente aqueles recorrentes. Procurou-se comparar músicas compostas antes,
durante e após o Estado Novo.
19 PARANHOS, p. 5. 20 VICENTE, p. 7.
13
1. INSTALAÇÃO DO GOVERNO DE GETÚLIO VARGAS
No final da década de 20, a queda da bolsa de valores de Nova Iorque desencadeou
a Grande Depressão nos Estados Unidos, que acabou afetando diversas partes do mundo.
Reduziu-se o consumo, e os primeiros produtos a serem afetados foram os de menor
necessidade para a sobrevivência, como o café, base da economia brasileira na época.
Assim, chegou ao Brasil a crise internacional.21
No início da década de 30, as elites cafeicultoras ainda tentaram salvar o valor do
produto no mercado internacional, transformando o Brasil num símbolo do desperdício do
capitalismo e das dificuldades causadas pela Depressão. Os cafeicultores tentaram impedir
o colapso dos preços queimando café em vez de carvão em suas locomotivas a vapor.22
A crise econômica mundial também ocasionou o enfraquecimento das elites
cafeicultoras de São Paulo. Rompendo com a política do “café com leite”, este estado
indicou para as eleições à presidência da república, em 1930, um paulista. Pelo pacto
político vigente, o paulista Washington Luís, então presidente, deveria ceder seu lugar a um
mineiro. Com a insistência de São Paulo na candidatura de Júlio Prestes, Minas Gerais
passou a apoiar Getúlio Vargas, um candidato de oposição. Apesar da derrota nas urnas, o
assassinato do candidato à vice-presidência da Aliança Liberal, legenda partidária de
Vargas, deu motivo para a grande movimentação social que originou o golpe militar de 30.23
Getúlio chegou à Presidência da República tendo diante de si um quadro
complicado, tanto no aspecto econômico quanto no político. A crise mundial iniciada em
1929 teve impacto relativo no desdobramento dos acontecimentos que levaram à
conspiração de 1930.24
Apesar de o Brasil ter saído da crise iniciada em 1929 com relativa rapidez, o
problema da dívida externa persistiu pelos anos seguintes. Em fevereiro de 1934 um decreto
conhecido como “Esquema Osvaldo Aranha” procurar livrar o país da política negativa dos
fundings, pela qual se pagavam juros vencidos com novos títulos da dívida rendendo juros,
tentando-se, a partir daí, subordinar o serviço da dívida à situação do balanço de
pagamentos. Porém, logo após a implantação do Estado Novo, diante de uma grande
redução do saldo da balança comercial, Getúlio suspendeu o pagamento da dívida,
reiniciado somente em março de 1940.25
21 KERBER, Alessander. O que é que a Bahiana Tem? Representações da Nação Brasileira nas Canções Interpretadas por Carmen Miranda na década de 30. Dissertação de Mestrado. Disponível em: <dominiopublico.gov.br/pesquisa> Acesso em: 10/05/2007, p. 21. 22 Id. 23 KERBER, p. 22. 24 FAUSTO, Boris. Getúlio Vargas: O poder e o sorriso. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 42. 25 FAUSTO, P. 45.
14
A principal marca distintiva do governo Vargas no plano institucional, desde os seus
primeiros tempos, foi a centralização do poder. A crença nas virtudes de um Executivo forte
vinha da ideologia positivista, na versão do PRR, que Getúlio absorvera com convicção.
Chefe do governo provisório, Getúlio dissolveu o Congresso e os legislativos estaduais e
municipais. Todos os antigos presidentes, que mais adiante passariam a ser denominados
governadores, foram substituídos por interventores federais, à exceção do recém-eleito
governador de Minas, Olegário Maciel.26
No aspecto ideológico, já no início de seu governo, Getúlio fez questão de acentuar o
caráter nacionalista dos novos tempos. Num discurso que pronunciou em Belo Horizonte,
em fevereiro de 1931, em banquete que lhe foi oferecido pelo governador do estado. Getúlio
defendeu a necessidade de ser nacionalizada a exploração das riquezas naturais do Brasil,
citando as jazidas de minério de ferro e o aproveitamento das quedas-d’agua como fonte
geradora de energia, assim como a exploração das estradas de ferro.27
O discurso e a prática nacionalistas não se limitariam ao terreno econômico. Uma
das principais medidas nesse sentido teve mais a ver com a área do trabalho, quando, já em
dezembro de 1930, um decreto limitou a entrada de passageiros de terceira classe no
território nacional, exigindo também que as empresas tivessem dois terços de trabalhadores
de nacionalidade brasileira.28
Desde os primeiros tempos do governo provisório, concretizou-se a aproximação
pragmática entre o cético Getúlio e a Igreja católica, pois ele percebeu a importância da
Igreja como garantia simbólica da ordem e como instituição capaz de atrair setores que não
estavam sob a influência; a Igreja, por sua vez, percebeu também que, apoiando o governo,
poderia alcançar, ao menos em parte, os objetivos de sua missão pastoral.29
O entendimento entre Estado e Igreja ocorreu principalmente na área da educação,
na qual a Igreja tratou de obter garantias ao ensino privado e religioso. Os ministros da
Educação de Getúlio, com destaque para Francisco Campos e sobretudo Gustavo
Capanema, decidiram dar espaço à educação religiosa, certos de que, a educação moral é
um subproduto da primeira. O texto da Constituição de 1934, mesmo mantendo a separação
entre Igreja e Estado, consagrou alguns princípios essenciais para a instituição religiosa: os
efeitos civis do casamento religioso; a proibição do divórcio; a possibilidade de educação
religiosa nas escolas públicas; o financiamento de escolas, seminários e hospitais mantidos
pela Igreja.30
26 FAUSTO, p. 46. 27 FAUSTO, p. 46-47. 28 FAUSTO, p. 48. 29 FAUSTO, p. 56. 30 FAUSTO, p. 57.
15
Dois momentos festivos em 1931, respectivamente em maio e outubro, foram
aproveitados pela Igreja para demonstrar seu forte poder moral diante das autoridades civis:
a mobilização em massa dos católicos na capital da República para aclamar Nossa Senhora
Aparecida, consagrada pelo papa no ano anterior como padroeira do Brasil, e a inauguração
do monumento ao Cristo Redentor, no Corcovado.
No comando do país, Getúlio enfrentou de saída uma situação difícil. A crise
provocara o desemprego nas maiores cidades, e havia insatisfações de conteúdos diversos
no âmbito do Exército. O pequeno Partido Comunista (PC) se tornou visível, adotando a
linha radical do chamado Terceiro Período, que afirmava abrir-se em todo o mundo uma
nova etapa, a terceira do século XX, caracterizada pelo amadurecimento das possibilidades
revolucionárias.31
Mas as questões maiores localizavam-se no Exército e nas elites políticas
descontentes. Getúlio lidou bem com o primeiro caso, inspirado por Góis Monteiro, que tinha
uma noção clara do papel estratégico das forças militares; quanto ao segundo,
particularmente em São Paulo, assumiu uma posição de confronto, da qual resultou uma
guerra civil de grandes proporções.32
Os quadros militares eram parte de um problema, mas constituíam também parte da
solução. No início do governo, Getúlio lhes dera mão forte, particularmente aos “tenentes”,
nomeando-os para interventorias e outros cargos públicos. As interventorias militares teriam
papel preponderante na subordinação das oligarquias do Norte e do Nordeste.
A “guerra paulista” produziu efeitos contraditórios. De um lado, demonstrou ao
governo Vargas e a Getúlio em particular que, apesar da vitória, era preciso cooptar pelo
menos uma parte da elite paulista, e não confrontá-la abertamente. De outro, tornou claro
para os derrotados que Getúlio não poderia ser derrubado e que o melhor a fazer era
preparar-se para reduzir sua influência, com uma bancada coesa na Assembléia
Constituinte que seria eleita em maio de 1933.33
A revolução paulista deu também a Getúlio a oportunidade de livrar-se de figuras da
cúpula militar, em especial jovens generais-de-brigada nomeados pelo antigo governo e que
não lhe eram fiéis. O expurgo, o controle das revoltas de inferiores, a perda da autonomia do
movimento tenentista, com muitos de seus integrantes subordinando-se ao governo, foram
fatores que contribuíram para que o Exército superasse um quadro de desorganização e de
quebra da hierarquia. As Forças Armadas, em primeiro lugar o Exército, passaram a ser um
31 FAUSTO, p. 58. 32 FAUSTO, p. 59. 33 FAUSTO, p. 64.
16
dos principais pilares de sustentação do governo, sobretudo quando este tomou feições
abertamente autoritárias.34
1.1. CONTEXTO POLÍTICO DO ESTADO NOVO
Durante o governo de Getúlio surgiram no Brasil o PCB e a Ação Integralista
Brasileira em 1932, movimentos que alcançaram crescimento acentuado nos anos que se
seguiram.
Em 1935, sob a inspiração do PCB, também foi lançada a Aliança Nacional
Libertadora (ANL), como resultado do descontentamento com os rumos que o governo
Vargas vinha tomando e como um programa de frente única das forças progressistas contra
o fascismo e o imperialismo. Em pouco tempo a ANL teve um crescimento vertiginoso e
representou a demonstração ostensiva de que o comunismo iniciara uma ofensiva para
derrubá-lo.
Era preciso cortar-lhe a cabeça de uma vez por todas, valendo-se de instrumentos já
existentes, particularmente a Lei de Segurança Nacional, de abril de 1935, que definia os
crimes contra a ordem política e social. Com base nessa lei o governo dissolveu a ANL.35
A partir daí, na clandestinidade, os dirigentes do PCB lançaram-se aos preparativos
de uma ação revolucionária, com o apoio da Internacional. No sétimo e último congresso da
IC, realizado em Moscou em agosto de 1935, Fernando Lacerda apresentou um relatório
sobre a situação brasileira, indicando as possibilidades de êxito de uma revolução popular.36
Getúlio soube pelo serviço secreto inglês que os comunistas preparavam uma
insurreição. Deixou que a revolta fosse tramada, certo de que teria condições de liquidá-la e
tirar vantagem da situação para ganhar ainda mais poder.37
A revolta de novembro de 1935 não foi, a rigor, uma revolução, e sim uma intentona,
embora a designação seja tradicionalmente considerada aviltante por setores da esquerda,
ao ser adotada pela direita civil e militar. Deixando de lado a disputa semântica, tratou-se de
uma aventura que, se não foi responsável isoladamente pelo golpe de 1937, deu uma ajuda
inconsciente mas considerável à sua articulação.38
Em meio ao quadro repressivo, surgiram as candidaturas às eleições presidenciais
diretas de 1938. Pelo lado do governo, uma frente formada pelo situacionismo de Minas,
Paraíba, Pernambuco e Bahia, com apoio de facções do PRP e do PL gaúcho, lançou a
34 FAUSTO, p. 65. 35 FAUSTO, p. 73. 36 Id. 37 Id. 38 FAUSTO, p. 75.
17
candidatura do paraibano José Américo de Almeida. Pela oposição, a recém formada União
Democrática Brasileira apresentou o nome de Armando de Salles Oliveira, muito próximo do
antigo PD e que fora nomeado por Getúlio interventor de São Paulo após a revolução de
1932, para aplacar os paulistas. Armando de Salles Oliveira contava com o apoio do Partido
Constitucionalista de São Paulo, originário do PD, e de dissidências da Bahia e de
Pernambuco, assim como de Flores da Cunha, governador do Rio Grande. A AIB lançou o
nome do chefe nacional, Plínio Salgado.39
Getúlio não apoiou oficialmente nenhum dos candidatos. Em primeiro lugar, porque
ele e a cúpula militar tinham outros planos. Antes mesmo do lançamento da candidatura de
José Américo, Francisco Campos já redigira a futura Carta de 1937 – a “Polaca”, como ficou
depreciativamente conhecida, seja por suas semelhanças com a Carta autoritária baixada
pelo marechal Pilsudski na Polônia, seja por uma alusão às mulheres da Europa Oriental
que vieram se prostituir no Brasil.40
Seguiu-se a encenação do Plano Cohen, não por acaso um nome judaico, em fins de
setembro de 1937, com a direta colaboração dos integralistas. O “plano comunista” era um
imaginativo desfile de horrores, prevendo como lance final a tomada do poder, com o
incêndio de prédios públicos e a “condução das massas aos saques e às depredações.O
plano foi forjado pelo capitão Olímpio Mourão Filho, lotado no estado-maior do Exército e
chefe do serviço secreto da AIB. Getúlio e a cúpula militar aprovaram a farsa, e logo o Plano
Cohen foi estampado em todos os jornais e martelado na emissão radiofônica da Hora do
Brasil.41
Um mês depois, quando o golpe já tinha data certa – 15 de novembro de 1937-,
autorizado por Getúlio, o governador de Minas, Benedito Valadares, enviou o deputado
Negrão de Lima, secretário do comitê pró-José Américo, ao Norte e ao Nordeste (com
exceção da Bahia e de Pernambuco) para confirmar o apoio dos governadores ao golpe. A
essa altura, Flores da Cunha, um dos últimos bastiões de resistência, renunciou sob
pressão do governo do Rio Grande do Sul e refugiou-se no Uruguai. Em 1º de novembro, de
uma das sacadas do Palácio do Catete, Getúlio assistiu ao desfile de apoio de milhares de
integralistas em sua homenagem, enquanto Plínio Salgado retirava sua candidatura, certo
de que a AIB teria postos de prestígio no regime ditatorial que se anunciava.42
O golpe ocorreu no dia seguinte, os vários setores da classe dominante ansiavam
pela ordem; o aparelho militar e civil formava um bloco homogêneo; a grande maioria da
elite política preferia a ditadura ou se conformara com ela; a frágil organização independente
39 FAUSTO, p. 78. 40 FAUSTO, p. 79. 41 Id.
18
dos trabalhadores desaparecera, enquanto crescia nos meios populares o prestígio de
Getúlio; a esquerda – para qual o Estado Novo começara em 1935 – fora praticamente
arrasada.43
Na manhã de 10 de novembro, soldados da polícia do Distrito Federal cercaram o
Congresso, evitando assim a presença ostensiva do Exército, por opção do General Dutra.
O presidente do Congresso e alguns deputados protestaram em vão. Às dez horas, Getúlio
e seus ministros assinaram a Carta de 1937, com exceção de Odilon Braga, ministro da
agricultura que renunciou. À noite na Hora do Brasil, Getúlio falou ao povo brasileiro,
justificando o golpe. Começou dizendo que “quando as competições políticas ameaçam
degenerar em guerra civil, é sinal de que o regime constitucional perdeu o seu valor prático,
subsistindo apenas como abstração”.44
Assumindo sem muitos disfarces os supostos méritos de uma ditadura, o discurso
getulista tratou de apresentar o Estado Novo como a fórmula que permitiria, finalmente,
realizar as tarefas de unificar o país, promover o desenvolvimento econômico, criar uma
nova representação das classes produtoras e dos trabalhadores, introduzir enfim o governo
técnico, acima da politicalha dos partidos”.45
Sem a estrutura de um partido político organizado a servir-lhe de apoio, Vargas criou
um poderoso órgão de comunicação social, o DIP, Departamento de Imprensa e
Propaganda (DL n. 1915 de 27/12/39), que se encarregou de “centralizar, coordenar e
superintender a propaganda nacional”.46
O governo Vargas caracterizou-se, também, pela “Ideologia do Trabalhismo”. Nela,
Getúlio aparece como “o doador de toda a legislação trabalhista, que retirou o trabalhador
brasileiro de sua situação total de esquecimento e abandono” O trabalho institui-se na
medida de valor do indivíduo: ele é proclamado como única e real possibilidade de ascensão
social. Não trabalhar, por outro lado, é trair a pátria. 47.
A música popular terá importância destacada no processo de fortalecimento da
imagem do governo e de seu líder máximo junto às camadas populares, sendo significativa
a quantidade de músicas compostas no período exaltando aquele que era o “Pai dos
Pobres”, o “Homem do Sorriso”, o “Amigo das Crianças”, etc”.48
42 FAUSTO, p. 80. 43 Id. 44 FAUSTO, p. 80-81. 45 FAUSTO, p. 90. 46 VICENTE, Eduardo. A música popular sob o Estado Novo (1937-1945). Disponível em: <www.multirio.rj.gov.br>. Acesso em: 15/03/2007, p.4. 47 VICENTE, p. 5. 48 VICENTE, p. 5.
19
1.2. CONTEXTO ECONÔMICO DO ESTADO NOVO
No curso do Estado Novo, o governo deu um impulso decisivo ao projeto de
desenvolvimento, no qual a industrialização era o foco privilegiado. Nele estabeleciam-se
como pontos fundamentais a implantação de uma indústria de base, em particular a grande
siderurgia, considerada indispensável para a industrialização do país; a nacionalização de
jazidas minerais, quedas-d’agua e outras fontes de energia; a nacionalização de bancos e
companhias de seguros estrangeiros; a expansão da rede de transportes; o incremento da
produção de carvão nacional; e a elaboração de políticas para diversificar as exportações;
fazia-se ainda alusão à implantação do salário mínimo e à complementação da legislação
trabalhista.49
O êxito do projeto de desenvolvimento econômico, no Estado Novo, refere-se
especialmente aos investimentos de infra-estrutura e à indústria básica. Algumas áreas do
setor privado ressentiram-se do problema da crescente obsolescência de seu maquinário,
resultante das restrições impostas à importação. Em dados gerais, a indústria teve uma
extraordinária taxa anual média de crescimento de 11,2% no período de 1933-39 e de 5,4%,
no período de 1939-45.50
Uma série de outras medidas também contribuiu para a retomada da economia: a
criação de órgãos de regulação e fomento de setores específicos, como, por exemplo, o
Instituto do Açúcar e do Álcool, o Conselho Federal de Comércio exterior, o Departamento
de Produção Mineral; o chamado reajustamento econômico, que perdoou 50% das dívidas
dos proprietários rurais contraídas até junho de 1933; a reforma tarifária de 1934, de cunho
protecionista; a proibição de importação de máquinas e equipamentos para os setores da
indústria considerados em “superprodução” e a isenção de tarifas sobre importações de
equipamentos para alguns setores industriais considerados importantes; a reforma
educacional, em particular o incentivo ao desenvolvimento de cursos técnicos. 51
No campo externo, a partir de 1937, aprofundou-se a política exterior mais
independente, que Vargas vinha tentando implementar desde meados da década. Nesse
ano, o governo decretou moratória da dívida externa e instituiu novamente o controle rígido
do câmbio. Essas medidas significaram um confronto direto com os credores externos.52
Internamente, uma série de medidas buscava incrementar o desenvolvimento
calcado no mercado interno e na indústria. A implantação da grande siderurgia tornou-se
49 FAUSTO, p. 107. 50 FAUSTO, p. 108. 51 CORSI, Francisco Luiz. Revista História Viva: Grandes Temas, nº 4, p. 24. 52 CORSI, p. 26.
20
prioridade máxima do governo. Diversos organismos de regulação e fomento foram
instituídos ou remodelados, como, por exemplo, o Conselho Nacional de Petróleo (CNP).53
Esse conjunto de medidas, embora insuficiente, mostra que o governo Vargas não
descartava a possibilidade de um desenvolvimento mais calcado no capital nacional naquele
período. Contudo não apostou todas as suas fichas nesse caminho. Ele nunca abandonou a
idéia segundo a qual o capital estrangeiro era importante para o desenvolvimento do Brasil e
sempre procurou atraí-lo.54
Em 1935, o governo brasileiro assinou um acordo com os americanos que mantinha
ou rebaixava as tarifas alfandegárias para mercadorias de ambas as partes. No ano
seguinte, assinou um ajuste com a Alemanha tendo em vista principalmente a exportação de
algodão, café, cítricos, couros, tabaco e carnes. As relações com os Estados Unidos eram
pautadas pelo livre comércio, enquanto a Alemanha nazista só firmava acordos de
compensação, segundo os quais os marcos gerados pelas exportações, vinculavam-se a
compras no mercado alemão, nessa moeda.55
Também no caso da modernização das Forças Armadas, que o conflito mundial
tornava mais premente, o governo brasileiro oscilou entre as potências em confronto: O
Exército fez grandes encomendas à Krupp, fabricante de armamentos alemã, enquanto a
Marinha encomendou material bélico aos Estados Unidos e à Inglaterra.56
1.3. SOCIEDADE
A sociedade brasileira com o advento da República vinha sofrendo grandes
transformações. As maiores cidades do país, como Rio de Janeiro, São Paulo, Recife,
Salvador com a libertação dos escravos receberam elevado número de pessoas que saíram
do campo e vieram para a cidade. Estas pessoas chegavam sem trabalho, a maioria sem
profissão e começou a gerar grandes problemas nestas capitais; não tinham onde morar e
começaram viver em condições precárias. Começaram a se instalar na periferia das cidades
e com a modernização das capitais passaram a se instalar em cortiços e favelas.
Mas esta transformação e a modernidade trazida pela chegada do progresso só
aconteceu nas grandes cidades. No interior do país pouco mudou com a mudança do
regime Imperial para o Republicano. O modo de vida continuava praticamente o mesmo,
havia grande predominância do trabalho escravo, e as pessoas tinham pouco contato com o
progresso que havia chegado às grandes cidades.
53 Id. 54 CORSI, p. 27. 55 FAUSTO, p. 98.
21
O Rio de Janeiro capital da República passou a ser o modelo de modernidade para
todo o país, começou a ditar a moda tanto na forma de se vestir, como na maneira de agir
das pessoas. Incentivou-se o consumo, a moda francesa teve grande repercussão, o
consumismo se acentuou devido a novos produtos que chegavam ao mercado. As grandes
transformações que a cidade sofreu, a modernidade alcançada com a chegada da
eletricidade, dos bondes, dos cafés, das máquinas, provocou uma grande transformação na
vida das pessoas. A cidade se agitou e o Rio de Janeiro passou a se modernizar tanto nos
modos de vida como na arquitetura e no urbanismo da cidade, trazendo progresso para a
capital do País.
A cidade de São Paulo também se modernizou com a chegada da luz elétrica, dos
bondes. O cotidiano passa por uma grande mudança. Na década de 30 e 40 com a
urbanização acelerada e a intensificação da indústria a cidade passa por uma
transformação. Passa a fazer parte do dia a dia dos paulistanos, demolições e novas
construções. Novos territórios passavam a ser definidos como novas áreas comerciais e
financeiras, além da reterritorialização da zona do meretrício e da boêmia.57
Com a intensificação industrial e comercial, quarteirões e bairros diferenciavam-se
segundo a predominância das atividades ali estabelecidas; ruas, vilas e cortiços povoados
principalmente por migrantes mostravam a latência de um espaço entre a casa e a rua em
que ocorriam trocas permanentes, estabelecendo relações dinâmicas e criando laços de
solidariedade e estratégias de sobrevivência.58
O ritmo da modernidade contaminava São Paulo, transformando-a em um novo
território cheio de automóveis, ônibus, caminhões, buzinas sons e odores, o ritmo acelerado
dos transeuntes, o café no balcão, a pressa, a falta de tempo, os novos magazines, os
modernos edifícios do centro novo cada vez mais altos. São Paulo assumia o emblema da
modernidade que não podia parar, mas mantinha a sua garoa como símbolo.59
O Brasil por muito tempo teve uma população predominantemente rural. Os
fazendeiros foram os mais beneficiados pelos governos da Primeira República,
principalmente aqueles que tinham grandes plantações de café. O governo garantia o preço
do café, se este baixava no mercado internacional, o governo brasileiro comprava todo o
café produzido aqui, e pagava o preço estabelecido com os fazendeiros. Esse café era
armazenado, à espera de que o preço no exterior subisse.60
56 FAUSTO, p. 98-99. 57 MATOS, Maria Izilda Santos de. História: Questões & Debates, Curitiba, 1999, Editora da UFPR, n. 31, p. 35. 58 MATOS, p. 35. 59 MATOS, p. 36. 60 MATOS, p. 64.
22
O governo para conseguir dinheiro para comprar e estocar este café se utilizava da
cobrança de impostos, que eram pagos por toda a população. Portanto o governo transferia
recursos da maioria da população para os fazendeiros de café. E ainda, não havia nenhuma
preocupação em fazer com que os preços dos alimentos básicos, arroz, feijão, leite, pão,
carne etc, parassem de subir e fossem acessíveis a população.61
1.4. PAPEL DO RÁDIO
Desde 1932, o governo Vargas estabelecera que a radiocomunicação constituía um
serviço público cuja utilização dependia de concessão do governo. O sistema firmou-se nos
anos 30, adquirindo grande prestígio entre os ouvintes graças ao programas humorísticos,
aos musicais, às transmissões esportivas, ao radiojornalismo e às primeiras radionovelas.
Em 1937 havia 63 estações e, em 1945, o número se elevara para 111.62
Dessa forma, “o rádio foi um dos maiores responsáveis pela propagação dos ideais
de Vargas pelos quatro cantos do país. Um dos veículos mais populares entre as camadas
médias das grandes cidades, o rádio tornou-se o principal canal de comunicação entre
governante e governados. Em 1938 vai ao ar pela primeira vez o programa Hora do Brasil,
cuja transmissão tornou-se obrigatória em todas as emissoras do país. Produzido pelo DIP a
partir de 1939, a Hora do Brasil tinha a finalidade de divulgar as realizações do governo,
além de programas em que a cultura nacional e o civismo eram exaltados. Com quadros
musicais compostos quase que exclusivamente por compositores brasileiros, o programa
abria espaço também para a divulgação de comunicados oficiais e campanhas
governamentais.63
O potencial político do rádio, no entanto, era imensamente maior: além de difundir o
projeto político do executivo, ele poderia ser mobilizado para incentivar comportamentos,
atitudes, hábitos e valores tidos como desejáveis.64
Em 1940 o governo encampou a Rádio Nacional, transformando-a em um dos
maiores porta-vozes do Estado Novo. Contando com verbas exorbitantes, pôde formar um
elenco que tinha a maioria dos melhores músicos, humoristas e radiatores do Brasil, além
de uma equipe técnica sem igual.65
61 Id. 62 CAPELATO, Maria Helena Rolim. Estado Novo: Novas Histórias p. 204. 63 SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. Revista História Viva: Grandes Temas nº 4 p. 45. 64 DE LUCA, Tânia Regina. As revistas da cultura durante o Estado Novo: problemas e perspectivas. s/d., p. 4. Disponível em: <www.jornalismo.ufsc.br> Acesso em: 24/03/2007. 65 SANTOS, Marco Antonio Cabral dos. História Viva: Grandes Temas nº 4 p 46.
23
O rádio procurava estimular no povo o gosto pelas artes populares e exaltava o
patriotismo, rememorando os feitos gloriosos do passado. Nas praças das cidades do
interior, era reproduzido por alto-falantes.66
A programação radiofônica tinha como finalidade além de divulgar as mensagens e
atos oficiais do governo, com seus diferentes programas deveriam decantar as belezas
naturais do país, descrever as características pitorescas das regiões e cidades, irradiar
cultura, divulgar as conquistas do homem em todas as atividades, incentivar relações
comerciais. Muito se insistia no fato de que o rádio deveria estar voltado para o homem do
interior, com o objetivo de colaborar para o seu desenvolvimento e integração na
coletividade nacional.67
1.5. CINEMA
No Brasil os anos 30 foram a era do cinema, e cinema nesta época significava
estritamente Hollywood. O mercado de distribuição cresceu rapidamente e as salas de
cinema se multiplicaram por toda a parte, tornando-se imponentes, suntuosas. Ir ao cinema
pelo menos uma vez por semana, vestido com a melhor roupa, tornou-se uma obrigação
para garantir a condição de moderno e manter o reconhecimento social.68
O cinema passa a interferir diretamente na vida das pessoas, passando a ditar
moda. As pessoas imitam os artistas no jeito de se vestir, de sentar, de dirigir o carro, de
acender o cigarro, de comer fast-food, de se dirigir ao garçom, enfim tudo vem da tela do
cinema. O cinema hollywoodiano é uma arte complexa, um somatório de técnicas
revolucionárias de comunicação visual.69
Nunca um único sistema cultural teve tanto impacto e exerceu efeito tão profundo na
mudança do comportamento e dos padrões de gosto e consumo de populações por todo o
mundo, como o cinema de Hollywood no seu apogeu.70
Neste apogeu do cinema, o mercado será invadido de xampus, condicionadores,
bases, ruge, rímel, lápis, sombras, batons, um enorme repertório de cortes, penteados e
permanentes, tinturas, cílios, unhas postiças, e naturalmente o “sabonete das estrelas” de
cinema.71
66 CAPELATO, Maria Helena Rolim. Estado Novo: Novas Histórias, p. 204. 67 CAPELATO, p. 204. 68 SEVCENKO, Nicolau. A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio. História da vida privada no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, v. 3, p. 598-599. 69 SEVCENKO, p. 600. 70 SEVCENKO, p. 602. 71 Id.
24
Os cenários mostrados pelo cinema também passam a ditar os estilos, objetos e
arranjos obrigatórios para os interiores das casas. Nos períodos de prosperidade e grande
diversificação de consumo, como após a Segunda Guerra, o cinema tornou-se a vitrine por
excelência da exibição e glamourização dos novos materiais, objetos utilitários e
equipamentos de conforto e decoração doméstica. É a época que surgem os plásticos,
polímetros, náilon, raiom, banlon, bouclê, blue jeans, acrílico, acetatos, multirresinas,
baquelita, fórmicas, courvin, linóleos, napas etc. Matérias, todos esses que tinham a imensa
vantagem de ser produzidos em massa, ser baratos, resistentes, multicoloridos e
democratizar o acesso a um enorme acervo de bens, utilitários, eletrodomésticos, móveis,
estofados, tapetes e carpetes para grupos sociais que não teriam condições de adquirir,
madeiras nobres, cristais, porcelanas, veludos sedas, tapeçarias e tecidos finos. As casas
passam a ser basicamente iguais, as pessoas executam basicamente os mesmos
movimentos, durante as mesmas rotinas e se parecem elas mesmas muito umas com as
outras.72
A publicidade também passou a ser beneficiada pelo cinema, através da erotização
dos objetos. Os objetos passaram a ser alvo do mesmo culto fetichista que a imagem dos
astros e estrelas, e era muito comum os estúdios reforçarem essa associação, para além
das roupas, jóias e adereços, distribuindo fotos de seus contratados ao lado de telefones,
motocicletas, discos e aparelhos sonoros, televisores, carros, móveis e ambientes com
design moderno, além de paisagens, hotéis e locações turísticas.73
O cinema também consagrou os grandes musicais. No Brasil Carmen Miranda foi a
grande representante e ficou consagrada por sua atuação em diversos filmes nos Estados
Unidos. Em 1939 partiu para os Estados Unidos para fazer shows na Brodway, contratada
por um grande empresário.74
1.6. SENTIMENTO DE NACIONALISMO
O feito mais elementar da era Vargas foi imaginar que sobre a escola se assentava a
identidade nacional. Esse nacionalismo adquiriu algumas conotações fascistas. Mas
também derivava do sentimento de encanto com que modernistas como Mário de Andrade
haviam redescoberto, na década de 20, a identidade cultural brasileira. Data de então a
instituição da Semana da Pátria, do uniforme escolar, da forma militarizada da educação
72 SEVCENKO, p. 602-603. 73 SEVCENKO, p. 603. 74 KERBER, Alessander. O que é que a Bahiana Tem? Representações da Nação Brasileira nas Canções Interpretadas por Carmen Miranda na década de 30, 2002, p. 11. Dissertação de Mestrado. Disponível em: <dominiopublico.gov.br/pesquisa> Acesso em: 10/05/2007.
25
física. Inventou-se também uma arquitetura escolar singular, uma educação musical e
literária brasileira. 75
Por meio do ensino da história e da geografia, privilegiou-se a origem e expansão da
nação, procurou-se impor a imagem de um Brasil de proporções continentais, unificado pela
língua e pelos acidentes geográficos, fundamentando o patriotismo em dados tomados
como objetivos. Os compromissos entre a Igreja e o estado, a manutenção do ensino
religioso como disciplina facultativa nas escolas públicas, pelas Constituições de 1934 e
1937, não impediram que o Estado se aproximasse de símbolos e rituais religiosos,
construindo na escola discursos e representações que apontavam para uma espécie de
“religião do Estado”, na qual Vargas era o grande pai e as professoras, as novas
missionárias.76
No Brasil desde o início do século XX, o ensino da música nas escolas primárias e
normais através dos cantos corais era defendido por muitos músicos como Mario de
Andrade, Villa-Lobos e Fabiano Lozano, mas não encontravam apoio suficiente para que
isso se tornasse possível.
Com a Revolução de 30, isso se tornou possível, e o ensino do canto orfeônico foi
implantado nas escolas do Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco e outros estados. Os
temas dessas músicas, de um lado, apoiavam-se no folclore nacional e, de outro, na
exaltação da pátria, do trabalho e do civismo.77
Em 03 de maio de 1931, Villa-Lobos realizou grande concentração cívico-artística no
parque Antártica, em São Paulo, sob o apoio e patrocínio do interventor João Alberto. O
programa musical resumiu-se, basicamente, na apresentação de quatro hinos – Nacional,
Meu País, Brasil Novo e P’ra Frente, Ó Brasil! – e trechos de O Guarani, de Carlos Gomes
entre outras peças. Villa-Lobos conseguiu canalizar o pessimismo dos paulistas em face da
situação política do País, lançando as bases de um discurso otimista, mais idealista,
preconizando o nascimento de um novo país. Nesse espetáculo cívico-artístico, ele
conseguiu reunir 60.000 pessoas aproximadamente.78
O sucesso de público e de crítica alcançado por Villa-Lobos em seu espetáculo
programado para o Parque Antártica, animou-o de tal maneira que, em fins de maio de
1931, ele repetiu esse tipo de evento no campo da Associação Atlética de São Bento, um
dos mais amplos recintos fechados existentes na cidade de São Paulo. Conforme notícia
publicada no Jornal O Estado de São Paulo, a 26 de maio de 1931, o público presente a
75 SOUZA, Maria Cecília Cortez Christiano de. A escola exacerba a identidade nacional. História Viva: Grandes Temas. São Paulo. s/d., p. 39. 76 SOUZA Id. 77 CONTIER, Arnaldo Daraya. Passarinhada do Brasil: canto orfeônico, educação e getulismo. São Paulo: Edusc, 1998, p. 16. 78 CONTIER, p. 19-20.
26
essa exortação cívica congregava segmentos representativos de todas as camadas
sociais.79
O sentido disciplinador, implícito no projeto para a oficialização do ensino do canto
orfeônico nas escolas, interessava aos educadores e agentes políticos, uma vez que a
música poderia trazer as massas à cena política onde os políticos assumiriam o papel de
sepultar a República Velha, instaurando, no lugar desta, a República Nova (1930) e o
Estado Novo (1937). Além disso, os próprios músicos acreditavam na força disciplinadora do
canto orfeônico como veículo capaz de unir todos os brasileiros em torno de um único ideal
de nação.80
Getúlio Vargas, atendendo aos apelos de Villa-Lobos e fortemente interessado no
ideal de desenvolvimento do senso de civismo e de brasilidade nas crianças, aprovou a
criação da Superintendência da Educação Musical e Artística (SEMA), para a implantação
do Canto Orfeônico nas escolas do município Rio de Janeiro. Conforme o decreto nº 18.890,
de 18 de abril de 1932, tornava-se obrigatório o ensino do canto orfeônico nessas escolas.81
O Ministério da Educação e Saúde deu um apoio incondicional a essa obra de Villa-
Lobos em defesa da arte nacional. Foram utilizados os mais diversos materiais de
propaganda para sensibilizar as massas, a fim de atraí-las para as grandes concentrações
cívico-artísticas.82
Em geral, esses espetáculos eram constituídos de um repertório básico: Hino
Nacional, hinos patrióticos diversos e cantos inspirados no folclore brasileiro. Era preciso,
conforme Villa Lobos, aproveitar. “...o sortilégio da música como um fator de cultura e de
civismo e integrá-la na própria vida e na consciência nacional – eis o milagre realizado em
dez anos pelo Governo do Presidente Getúlio Vargas:”83
A partir de 1939, as grandes concentrações cívico-artísticas organizadas por Villa-
Lobos foram se tornando cada vez mais gigantescas, mais disciplinadas e em rigorosa
obediência a cronogramas e planos, bastante minuciosos, elaborados pelo assessores do
compositor.84
1.7. COMPOSITORES QUE FAZIAM SUCESSO NA DECADA DE 30
Na década de 30 as músicas se identificavam como “samba-choro”, “marcha-
rancho”, “frevo canção”. Com a atuação do DIP nos meios musical e radiofônico, as
79 CONTIER, p. 21. 80 CONTIER, p. 22-23. 81 CONTIER, p. 29-30. 82 CONTIER, p. 35. 83 CONTIER, p. 36.
27
etiquetas dos discos passaram a registrar outras designações para as músicas, como
“marcha cívica”, “marcha patriótica” e “samba exaltação”.85
As décadas de 1930 e 1940 foram definidas como a “época de ouro” da música
popular brasileira. Mas na década de 40 no campo específico da música popular,
inaugurava-se uma nova etapa, marcada pela penetração de novos gêneros estrangeiros,
principalmente o bolero, a rumba, o cha-cha-cha e o cool jazz. O baião e outros gêneros
“regionais” (embolada, coco, moda-de-viola) também foram ganhando espaço no rádio,
tornando-se referência para além de suas regiões de origem. Na virada dos anos 40, a cena
musical era dominada por sambas-canções abolerados, de andamento lento, e músicas
carnavalescas voltadas para os segmentos mais populares. Havia também um considerável
espaço para a corrente mais tradicional dos samba, o “samba-de-morro”, sobretudo através
dos trabalhos de Wilson Batista e Geraldo Pereira.86
Mas nesta década, teve grande importância a política de aproximação com os
demais países do continente desenvolvida pelo presidente norte-americano Franklin D.
Roosevelt, a chamada “Política da Boa Vizinhança”. Através dela, tivemos as bem
sucedidas temporadas de Ary Barroso, Carmen Miranda e do Bando da Lua nos EUA, bem
como a vinda de diversos artistas e personalidades norte-americanos ao Brasil (Orson
Welles, Walt Disney e Bing Crosby, entre outros).87
Nas décadas de 30 e 40, o formato dos sambas de exaltação já estaria consolidado
como motivo para compositores, maestros e intérpretes e como filão comercial para as
emissoras de rádio e fábricas de discos. Mesmo que numericamente não tenha sido tão
explorado quanto outras vertentes deste repertório (como o discurso lírico-amoroso, ou o
duplo trabalho/malandragem...), percebe-se o interesse, entre os ambientes da música
popular, por esta variante e pelas suas possibilidades de êxito.88
Alguns “profissionais da música” tornaram-se presença constante nos eventos
promovidos pelo regime. Em 04 de janeiro de 1939, dentro da Feira de Amostras do Rio de
Janeiro, foi organizado um “Dia da Música Popular Brasileira”. O evento abriu a Exposição
Nacional do Estado Novo, e contou com a participação de muitos dos mais destacados
artistas do período. Francisco Alves, Carmen e Aurora Miranda, Ary Barroso, Almirante,
Orlando Silva e Carlos Galhardo, entre outros. Estes artistas se apresentaram para um
público estimado em 200.000 pessoas. A organização do evento foi do compositor Heitor
84 CONTIER, p. 65. 85 FURTADO FILHO, João Ernani. O Canto Alegre de Três Raças Tristes? Do samba educado ao samba educativo. Fortaleza: Expressão, 2006. p. 22 86 NAPOLITANO, Marcos. História & Música: Belo Horizonte: Autêntica, 2002, p 57. 87 VICENTE, Eduardo. A música popular sob o Estado Novo (1937-1945), p. 16. Disponível em: <www.multirio.rj.gov.br> Acesso em: 15/03/2007. 88 FURTADO FILHO, p. 58.
28
Villa-Lobos que, desde 1932, colaborava com a Prefeitura do Distrito Federal e com o
Governo Federal, sendo o elemento de contato entre estes e os músicos populares.89
Alguns compositores e cantores que estavam em destaque nesta época eram:
Carmen Miranda, Ary Barroso, Donga, Francisco Alves, Dalva de Oliveira, Wilson Batista,
Ataulfo Alves, Geraldo Pereira, Lamartine Babo, Herivelto Martins, Nássara, João de Barro
etc.
Apesar do destaque desses cantores, o governo Vargas instituiu uma rígida censura,
obrigando os cantores e compositores a se adequarem às regras impostas, para continuar
gravando suas músicas.
Neste trabalho serão aprofundados à influência da censura na música,
especificamente no que se refere às obras de Ataulfo Alves e Geraldo Pereira.
89 VICENTE, p. 22.
29
2. INFLUÊNCIA DA CENSURA NA MÚSICA
Neste capítulo procuraremos aprofundar a influência da censura na música, e como
isso aconteceu, desde fins do século XVIII até o período denominado “Estado Novo”.
Até fins do século XVIII, a música era escrita visando uma determinada manifestação
social. O músico compunha por encomenda de um determinado príncipe, conde ou conselho
da cidade, para fins de entretenimento da sociedade cortesã. Assim, o compositor, em
muitos casos, exercia uma função doméstica, como os demais empregados de um palácio,
permanecendo preso a um contrato de trabalho. Raramente, o compositor escrevia músicas
por conta própria. 90
Na cultura ocidental, até inícios do século XX, as músicas escritas pelos
compositores ligados às mais diversas tendências estéticas podiam ser executadas e
criticadas independentemente de qualquer censura. A música era vista num sentido
eminentemente simbólico, não apresentando, em sua essência, nenhum “perigo” para a
ordem de um Estado.91
Os regimes totalitários, percebendo a importância da arte como uma arma de
propaganda de ideais políticos, criaram órgãos específicos para controlar e censurar as
mais diversas atividades artísticas. O Estado Totalitário, diante do caráter polissêmico e
coletivista da música, considerava que ela poderia transformar a multidão numa massa
“perturbadora da ordem”.92
Com o desenvolvimento urbano, o acirramento dos conflitos de classes nos fins do
século XIX e inícios do XX, na Itália e na Alemanha, em especial, o compositor começou a
sentir a necessidade de se apoiar no Estado, como uma estratégia para divulgar suas peças
de conotações românticas e nacionalistas. Muitos compositores, como Richard Strauss
(Alemanha), Otorino Respighi (Itália) e Villa-Lobos (Brasil), passaram a preocupar-se com a
música fundamentada na cultura popular, como símbolo de uma determinada cultura, de
uma “raça”. Começava a haver na História da Música uma nova preocupação dos
compositores no sentido de conciliar o estético com o ideológico, procurando atingir a
“nação” como um todo.93
Durante os anos 20 e 30, o sentido coletivista da música acabou sendo absorvido
pelos movimentos nacionalistas surgidos durante a Primeira Guerra. Num momento em que
se criticava o liberalismo, os nacionalistas tentaram elaborar uma arte intimamente ligada
90 CONTIER, p. 109. 91 CONTIER, Arnaldo Daraya. Arte e Estado: Música e Poder na Alemanha dos Anos 30.Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 8 nº 15, p. 107. set.87/fev.88. 92 CONTIER, p. 108. 93 CONTIER, p. 111.
30
aos interesses do Estado Forte. Por esse motivo, nos Estados onde essas questões
afloraram com maior nitidez – União Soviética e Alemanha – a música baseada na cultura
popular passou a simbolizar a disciplina, o trabalho, a sociedade organizada.94
Com a instauração dos regimes autoritários nos anos 20 e 30, alguns governos
procuraram estabelecer projetos oficiais no campo da cultura, num momento em que se
ampliava significativamente a música popular, através do rádio e dos discos. Nesse
momento, a música alcançava todas as camadas sociais, tornando-se um “meio perigoso”
no sentido de favorecer a penetração de culturas alienígenas, capazes de colocar em xeque
os princípios nacional-populistas, matizes ideológicos sustentadores desses Estados.95
Na Alemanha, sob Goebbels, procurou-se estabelecer uma série de normas a fim de
regulamentar um tipo de música como sendo a mais verdadeira, ou seja, a mais
rigorosamente germânica. A esse regime interessavam obras de conotações nacional-
populares, baseadas nos textos medievais ou nas canções românticas do século XIX. A
harmonia passou a simbolizar o Poder.96
Na Grécia Antiga, Sócrates censurava a execução de algumas músicas baseadas
em determinados modos, alegando possíveis críticas ao organismo político, representado
pelo Estado. Assim, era preciso escrever músicas dentro de regras harmônicas e rítmicas
bem definidas, objetivando não comprometer o equilíbrio social.97
2.1. MÚSICA E CENSURA NO BRASIL
No Brasil, durante a segunda metade do século XIX, graças à importação de pianos
da Europa pelas elites agrárias e urbanas, intensificou-se o consumo de partituras de
músicas clássicas, ligeiras ou populares (polcas, mazurcas, valsas, modinhas).
Paralelamente, muitos professores italianos, franceses, alemães imigraram para o Rio de
Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, onde lecionaram piano, canto, flauta, violino para as filhas
de fazendeiros.98
Durante esta época as famílias tradicionais preferiam aprender música na segurança
de suas casas. Foi com o reforma feita por Pereira Passos na cidade do Rio de Janeiro, que
as famílias passaram a utilizar mais intensamente o espaço urbano, e durante as
temporadas líricas as famílias passaram a freqüentar mais a noite.99
94 Id. 95 CONTIER, p. 113. 96 Id. 97 Id. 98 CONTIER, Arnaldo Daraya. Villa-Lobos: O Selvagem da Modernidade. Revista de História, n. 135, 2º sem./1996, FFLCH-USP, p. 103. 99 CONTIER, p. 104.
31
Mesmo as elites brasileiras sendo grandes apreciadoras do mercado musical, não
eram capazes de consumir obras de compositores eruditos brasileiros, até mesmo de Carlos
Gomes que era sintonizado com o imaginário romântico europeu. Por isso Villa-Lobos travou
uma verdadeira cruzada em prol da nacionalização do gosto musical.100
O esboço de projeto de Villa-Lobos, inspirado nos modelos alemães e franceses da
época, graças à ampla receptividade do público e da imprensa paulista e paulistana, aflorou
como algo viável, tornando-se o embrião de uma metodologia, posteriormente desenvolvida
e aprofundada na cidade do Rio de Janeiro, sobre o ensino de canto orfeônico nas escolas
primária e secundária.101
Villa-Lobos passou a defender, a oficialização do ensino do canto orfeônico nas
escolas, como a única arma capaz de combater e extinguir todos os males ou entraves que
pudessem ameaçar o projeto modernista em prol da nacionalização da música.102
Em 18 de abril de 1931, através do Decreto nº 19.980, foi instituído no país o ensino
obrigatório do Canto Orfeônico nas escolas do Rio de Janeiro. Em 1932, Villa-Lobos foi
nomeado para exercer o cargo de Diretor da Superintendência de Educação Musical e
Artística das Escolas Públicas do Rio de Janeiro (SEMA).103
Sob o governo getulista (1930-1945), Villa-Lobos consolidou um amplo projeto em
prol da catequese do povo brasileiro através de atividades artísticas, para ele, a música era
um instrumento de poder, capaz de transformar a mentalidade dos homens. Esse projeto
educacional representava, através dos conjuntos corais, uma Nação coesa, sem conflitos
sociais.104
A partir de novembro e dezembro de 1930, o governo resolveu nomear uma
Comissão Central da Música Brasileira, para elaborar um projeto único sobre a temática em
questão.105
Essa Comissão exigia que se instituísse um serviço de censura do Estado, a fim de
se evitar a divulgação de produções nocivas à educação nacional, devendo atuar no âmbito
da linguagem musical (nível técnico-estético) e da linguagem verbal, desde que se tratasse
de músicas vocais.106
Tais projetos apresentavam um eixo comum: a organização da música no Brasil
deveria ser pensada a partir de um projeto de natureza hegemônica e fortemente
centralizadora. Assim, implicitamente, as noções de civismo, de centralismo, da intromissão
100 Id. 101 CONTIER, p. 112. 102 CONTIER, p. 114. 103 Id. 104 CONTIER, p. 116. 105 CONTIER, Arnaldo Daraya. Brasil Novo: música, nação e modernidade: os anos 20 e 30. Tese de livre docência em História. USP, 1988.
32
do Estado no campo artístico e cultural, da necessidade da censura para evitar abusos
contra esse projeto, entre outras questões, foram harmonicamente assimiladas pelo governo
Vargas, em especial, a partir de 1937.107
Finalmente, a Constituição de 1937 acabou instituindo a censura prévia para o
cinema, imprensa, teatro, música e rádio, atendendo a uma antiga reivindicação dos
músicos nacionalista, conforme projetos e sugestões apresentados ao governo, logo após
outubro de 1930. O objetivo da censura era o de manter a moral, os bons costumes e a
ordem, defendendo a juventude da veiculação de possíveis maus exemplos contidos,
explícita ou implicitamente, nas músicas populares, nas peças de teatro, nas novelas
radiofônicas, ou, ainda, nos filmes.108
A regulamentação da Constituição de 1937 a respeito da imprensa e da propaganda
deu-se através do Decreto Lei nº. 1.949, de 30 de dezembro de 1939, alguns anos após a
criação do DIP - Departamento de Imprensa e Propaganda. Este passou a exercer a função
de órgão de fiscalização do comprimento da lei, estabelecendo algumas normas sobre
controle, cobrança de taxas, concessão de prêmios, direitos autorais, cadastro de
funcionários, entre outras. Criou-se, por outro lado, um sistema de censura e de fiscalização
para controlar todas as atividades artísticas: cinema, teatro, rádio, execuções de discos,
apresentações de grupos musicais ou teatrais, cordões, ranchos e estandartes
carnavalescos. Eram proibidas as improvisações em qualquer tipo de espetáculo público.109
O DIP apoiou a divulgação da música nacionalista, visando transformá-la num eficaz
instrumento de propaganda do governo estadonovista. Em 1937 a música nacionalista
reinava com exclusividade, transformando-se, assim, no som oficial desse novo Brasil. Por
outro lado, a música popular sofreu, fortemente, a ação da censura, porque veiculava uma
série de temas que ameaçavam, por exemplo, o ideal de disciplina e de trabalho, pilares de
ideologia do Estado Novo.110
O governo, atendendo às antigas reivindicações dos nacionalistas que exigiam a
instauração de uma censura para controlar a chamada arte vulgar ou popularesca, procurou
implantar um sistema de controle no campo da música popular.111
Arnaldo Contier112 menciona que a censura era vista com bons olhos pelos autores
eruditos, pois estes sentiam uma certa repulsa em face da música vulgar.
106 CONTIER, p. 225. 107 CONTIER, p. 227. 108 CONTIER, p. 273. 109 Id. 110 CONTIER, p. 274. 111 CONTIER, p. 325. 112 Id.
33
Menciona, ainda, que o Estado, através do DIP, somente censurou letras de músicas
populares consideradas ofensivas à moral e aos bons costumes ou que pudessem incutir,
nos jovens, ideais ligados à malandragem, incompatíveis com a ideologia estadonovista. 113
Dentro do âmbito musical, o DIP passou a controlar toda a organização dos bailes e
desfiles de carnaval do Rio de Janeiro, atrelando as escolas ao aparelho estatal. Assumiu,
também, a produção e o controle dos contratos de trabalho dos artistas, bem como a
arrecadação dos direitos autorais.114
2.2. CENSURA COMO INSTRUMENTO DE DISCIPLINA DA SOCIEDADE NO GOVERNO VARGAS
O interesse de Getúlio Vargas pela música popular, mas precisamente com o samba
já vinha acontecendo desde 1926, quando ainda era deputado, fizera aprovar o decreto
5.492, de sua autoria, determinando o pagamento de direitos autorais por todas as
empresas que lidassem com músicas.115
Getúlio Vargas, em seu governo, jamais deixou de perceber a importância que a
música poderia assumir como via de acesso ao imaginário popular. Assim, a par das
atitudes paternalistas que Vargas, de um modo geral assumiu em relação aos músicos, foi
exercida pelo Estado uma forte ação repressora. E o samba foi particularmente visado
dentro dessa ação, tanto em relação ao samba - malandro, com sua persistente menção aos
malefícios do trabalho, como em relação ao carnaval, com seu imenso potencial de
transgressão aos costumes e à ordem.116
O carnaval foi firmemente atrelado à estrutura governamental e disciplinarizado até
os limites da militarização. Seus sambas-enredo passaram, por decreto oficial, a exaltar os
temas nacionais e os personagens históricos caros ao Estado.117
A participação efetiva do estado na organização do carnaval começa em 1930, com
a determinação, pelas autoridades, dos locais onde devem ocorrer os bailes e desfiles. A
influência do Estado Novo sobre o carnaval foi extremamente duradoura. As intenções
didáticas e ufanistas dos enredos mantiveram-se presentes nos sambas até pelo menos o
final da ditadura de 1964.118
O samba, que em 1930 foi chamado de “gaiato” por Eduardo Sá, e preterido como
canção nacional, era agora eleito, juntamente com a marchinha, como símbolos do “povo
113 CONTIER, p. 338. 114 VICENTE, Eduardo. A música popular sob o Estado Novo (1937-1945), p. 6. 115 GARCIA, Tânia Costa. A canção popular e as representações do nacional no Brasil dos anos 30: a trajetória artística de Carmem Miranda. História: Questões & Debates. Curitiba, v. 31, p. 89. 116 VICENTE, p. 7. 117 Id.
34
novo”, isto é, do povo mestiço, da gente brasileira. A canção popular urbana (samba), vista
como um gênero menor ia conquistando cada vez mais, a preferência do público. 119
O samba-malandro foi duramente perseguido durante a ditadura estadonovista, pois
estes compositores faziam apologia à boemia e ao não trabalho, temas que eram muitos
caros à plataforma de governo de Getúlio Vargas.
Assim, ao DIP impunha-se uma questão: como eliminar a figura do malandro, bem
como o elogio à malandragem de nossa produção musical? O Departamento utilizou duas
linhas de ação: a cooptação, quando fosse possível, e uma rigorosa censura às
composições que lhe parecessem inadequadas. Quanto a esse segundo aspecto, só em
1940 o DIP vetou 370 músicas (além de aproximadamente 100 programas de rádio). A
censura abrangia não só os temas das letras, mas também a linguagem utilizada, visando
eliminar gírias e vícios de linguagem.120
2.3. AS TENTATIVAS DE COOPTAÇÃO DOS SAMBISTAS E AS ESTRATÉGIAS UTILIZADAS PARA DRIBLAR A CENSURA
O aspecto da cooptação dos sambistas foi o período em que notórios “boas-vidas”
dos morros cariocas passaram a exaltar os benefícios do trabalho e da vida regrada. Um
exemplo emblemático foi a composição “Bonde de São Januário” (Ataulfo Alves e Wilson
Batista, 1940). A letra original de seu refrão seria, segundo algumas versões, “O Bonde São
Januário/leva mais um otário/que vai indo trabalhar”. Após uma suposta interferência do
DIP, a música teria adquirido a versão com que se tornou conhecida: “O Bonde São
Januário/leva mais um operário/ sou eu que vou trabalhar”. Seja a versão do ocorrido
verdadeira ou não, o certo é que a “regeneração” dos malandros, acompanhada da
exaltação do trabalho e dos valores familiares, passou a ser tema corrente de sambas do
período.121
Porém, a sua maneira dúbia, os sambistas também articularam respostas às
pressões do governo e da polícia. Um exemplo notável é a composição “Senhor Delegado”
de Antoninho Lopes e Jaú. Nela, o malandro autuado defende-se da acusação de vadiagem
apresentando-se como trabalhador ajustado e até religioso o que, no entanto, se evidencia
como não sendo verdadeiro: “acontece que eu já fui malandro doto/ hoje estou
regenerado/piso macio/ é por que tenho um calo...”.122
118 VICENTE, p. 17. 119 GARCIA, Tânia, p. 74. 120 VICENTE, p. 27. 121 Id. 122 Id..
35
O historiador Eduardo Vicente123, um dos estudiosos da MPB ressalta que a
importância da contribuição dos malandros ao Estado Novo, na divulgação de seus projetos
ideológicos, deve ser relativizada. Alguns deles, de fato, assumiram esse papel. Afinal, o
trânsito entre a adulação e a contravenção era inerente à sua condição. Mas nada indica
que eles tenham desempenhado essa função com eficácia: o caráter ambíguo do discurso
malandro não lhe permitia esse papel. E a representação musical dessa ambigüidade do
samba pode ser situada no seu aspecto rítmico característico, a síncopa. A relação da
sincopa com o conteúdo das letras das canções foi demonstrada por José Miguel Wisnik em
palestra realizada, no segundo semestre de 1992, na UNICAMP. 124
Vicente125 explica ainda que as síncopas ocorrem quando os tempos fortes de uma
melodia são eliminados (por meio de pausas ou ligaduras), ocasionando uma sensação de
“deslocamento” da mesma em relação à pulsação rítmica que a acompanha. O samba é
essencialmente sincopado. Na verdade, é a síncopa que lhe dá a sua “ginga” característica.
Cita a comparação feita por Wisnik em sua palestra fazendo uma comparação entre o
primeiro verso do Hino Nacional (“OuVIram do IpiRANga às margens PLÁciDAS”), a
mensagem adquire um caráter bem mais afirmativo. O mesmo ocorre com o verso de Noel,
quando cantado nesse ritmo (“aGOra vou muDAR minha conDU-UTA”). Sincopam-se a
melodia do hino, essa afirmação enfática parece desaparecer ante a fluidez com que a
melodia parece “escorregar” dos tempos fortes. Assim, Wisnik entende que a rítmica do
samba não confere “seriedade” à mensagem da letra. Ou seja, o ouvinte acaba por
relativizar seu conteúdo, em função do caráter não afirmativo da melodia sincopada. Nesse
sentido, declarações do tipo “Quem trabalha é quem tem razão” e “a boemia não dá camisa
a ninguém”, por exemplo, encontráveis em “O Bonde de São Januário”, adquirem caráter
ambíguo tornando-se, na verdade, bem mais irônicos do que propriamente edificantes.
Vicente126 também cita que outra demonstração de que a ideologia trabalhista não
conseguiu uma penetração mais do que superficial e cosmética na obra dos sambistas é a
de que, logo após o fim do regime estado-novista (ou seja, já no carnaval de 1946), os
“regenerados” demonstravam claramente a fragilidade de sua conversão. Nesse ano, fez
sucesso um samba intitulado “Trabalhar Eu Não”, de Almeidinha: “trabalho não tenho nada/
de fome não morro não/ trabalhar eu não, eu não/ agora/ eu mudei de opinião/ trabalhar eu
não, eu não”.
O samba propriamente malandro regenerou-se para não acabar mal e poder usufruir
da política paternalista do período. Eliminou-se a apologia ao ócio da letra da canção,
123 VICENTE, p. 28. 124 Id. 125 Id.
36
entretanto, a malandragem não significava somente a negação do trabalho, estando inserida
num contexto mais amplo, representava o próprio modo de estar destes setores na
sociedade. Buscando burlar a pretensa adequação do popular aos interesses de integração
nacional planejado pelo Estado, o discurso do malandro regenerado tornava-se ainda mais
ambíguo e sofisticado não abandonando a sua linhagem.127
Entretanto, apesar dos esforços do poder em plasmar a cultura popular às suas
pretensões políticas e do relativo sucesso alcançado nesta direção, o samba, mesmo
representando o nacional, continuou, de forma mais dissimulada, a fazer críticas à
sociedade. 128
Salvadori129 menciona que 1937 marca o aparecimento do suposto samba da
regeneração do malandro, pois os compositores passam a fazer músicas falando de sua
regeneração, exaltando o trabalho e as virtudes de ser honesto. Para ela, isso acontecia
para que estes músicos pudessem fugir à pressão da censura e se manter no mercado de
trabalho. Também mostra o “jeitinho” malandro de brincar com as regras impostas pela
sociedade da época.
O exemplo da música é esclarecedor. Os compositores passaram a ser incentivados
a abandonar temas como a malandragem e a boemia em prol do trabalho, sob pena de
terem suas letras censuradas.130
Muitos compositores que antes do Estado Novo compunham músicas com o tema da
malandragem, passaram a fazer músicas onde exaltavam o trabalho, a família e o
casamento; pois viam na exaltação forçada ao trabalho a oportunidade de agradarem aos
poderosos de plantão, e com isso conseguiam chegar ao sucesso.
Muitas músicas foram compostas neste período para sintetizar as idéias do governo
e do DIP, mas certamente “Eu trabalhei” samba de Roberto Roberti e Jorge Faraj gravado
por Orlando Silva, o cantor de maior sucesso na época, para o carnaval de 1941 foi a que
fez um dos maiores sucessos. “Eu hoje tenho tudo, tudo que um homem quer/Tenho
dinheiro, automóvel e uma mulher/Mas pra chegar até o ponto em que cheguei/Eu trabalhei,
trabalhei/trabalhei.// Eu hoje sou feliz/ E posso aconselhar:/ Quem faz o que eu já fiz/ Só
pode melhorar.../ E quem diz que o trabalho não dá camisa a ninguém/Não tem razão, não
tem, não tem.”131
Os motivos que justificavam seus cortes e vetos pela censura eram os mais variados.
Pode-se supor que, em muitos casos, provavelmente a maioria das razões alegadas eram
126 Id.. 127 GARCIA, p. 90. 128 GARCIA, p. 93. 129 SALVADORI, p. 124. 130 DE LUCA, p. 4.
37
de ordem moral. Seria o caso de palavras tidas e havidas como chulas, de duplo sentido e
assim por diante. Por muito menos, Geraldo Pereira esteve às voltas com o moralismo que
imperava na época, porque os censores não engoliam a referência à nudez feminina nos
versos.
Na subida do moro me contaram Que você bateu na minha nega Isso não é direito Bater numa mulher que não é sua Deixou a nega quase nua No meio da rua (...)132
Escorada na atuação do DIP, a ditadura estado-novista buscou a instauração de um
certo tipo de sociedade disciplinar, simultaneamente à fabricação de um determinado perfil
identitário do trabalhador brasileiro dócil à dominação capitalista. A procura do consenso, via
ideologia do trabalhismo, esteve longe, porém, de alcançar a unanimidade pretendida.133
Sem pretender negar a adesão espontânea, forçada ou interessada de muitos
compositores populares à cantilena estadonovista o que se percebe em dezenas de
registros fonográficos, é que, apesar dos pesares estadonovistas, o coro dos diferentes
jamais deixou de se expressar, de modo mais ou menos sutil, conforme as circunstâncias.134
Para Sérgio Cabral um dos mais importantes pesquisadores da história da música
popular no Brasil, não há maiores dúvidas quanto aos superpoderes ostentados pelo
Estado, especialmente pelo DIP, em relação ao controle da produção musical e ao estímulo
ao enaltecimento do trabalho. Ele garante que, a partir de 10 de novembro de 1937, o
regime “tinha absoluto controle da música popular brasileira e de qualquer tipo de
manifestação a ela relacionada”, para, em seguida, acrescentar que jogava a seu favor a
política deliberada de cultivar bom relacionamento com artistas de peso da área da canção
popular.135
Mas o trabalho acadêmico sobre esse tema que mais ressoou no circuito
universitário data de 1980, e é de autoria de Antonio Pedro Tota. Seu ponto de partida está
na premissa de que o “Estado Autoritário” lançou mão de alguns gêneros da canção popular
(notadamente samba e marcha), como ideologia do trabalhismo, com vistas a cooptar os
trabalhadores e legitimar-se junto a eles. Em seguida, destaca a penetração, nas classes
subalternas, de “ideologias estranhas” e a manipulação das massas pela propaganda oficial,
“sem (que estas oferecessem) resistência apreciável”.
131 GOMES, p. 4. 132 PARANHOS, p. 136. 133 PARANHOS, p. 140. 134 PARANHOS, p. 144. 135 PARANHOS, p. 5.
38
Paranhos discorda de Tota, afirmando que na década de 30, a maioria das canções
remetia a jogos amorosos, nada tendo a ver com a apologia ou a resistência ao ideário
trabalhista ou com o ufanismo estado-novista. Para Paranhos, Tota acata sob vários
aspectos a “teoria do rebaixamento” a que se refere Peter Burke. Os conteúdos
manipulados pelo agente transmissor, no caso o Estado/DIP, teriam sido interiorizados sem
mais pelos receptores. Em síntese, o receptor é praticamente reduzido a locutor da fala
alheia, ao ser rebaixado à função de “locutor-papagaio”.136
Se, de um lado, houve um elevado número de composições e compositores
populares afinados com o regime e com a valorização do trabalho, de outra despontaram,
como uma espécie de discurso alternativo, canções (sambas em sua maioria) que traçaram
linhas de fuga em relação à “palavra estatal”. Neste caso, pelo menos até 1943/1944, não
nos deparamos, é óbvio, coma contestação aberta aos princípios ideológicos oficiais. Nem
por isso deixaram de circular socialmente imagens e concepções que puseram em
movimento outros valores. Essa constatação vale como um atestado de que, ao intervir
discursivamente nas questões ligadas ao mundo do trabalho, a área da música popular não
se resumiu a mera caixa de repetição do discurso hegemônico.137
Depois de ter ouvido centenas e centenas de fonogramas originais discos 78 rpm
gravados e/ou lançados entre 1940/1945 – período que corresponde à existência efetiva do
DIP, Paranhos chega à conclusão que, certas afirmações taxativas sobre o monopólio do
poder estatal precisam ser revistas. Trata-se de dar ouvido ao “lado B” da história do
“Estado Novo”.138
O autor argumenta que, no trabalho com registros musicais é necessário não nos
tornarmos prisioneiros da literalidade da canção. Que não basta nos atermos às letras das
músicas. Antes, é fundamental nos darmos conta de que elas não têm existência autônoma
na criação musical. Para ele, trabalhar com música requer que se ouçam as canções
analisadas. Cita como exemplo a gravação de “O amor regenera o malandro” (de Sebastião
Figueiredo) com Joel e Gaúcho.
Neste samba, como em muitos outros dessa época, se afirma: “dizem que o amor/
regenera o malandro/ Sou de opinião/ de que todo malandro/ tem que se regenerar/ se
compenetrar (breque: e ainda mais) / que todo mundo deve ter/ o seu trabalho para o amor
merecer”. A primeira impressão, entretanto, se desfaz ao acompanharmos a performance
dos intérpretes, Joel e Gaúcho, no final da segunda estrofe: “Regenerado/ ele pensa no
amor/ mas pra merecer carinho/ tem que ser trabalhador (breque: que horror!). O uso do
136 PARANHOS, p. 6. 137 PARANHOS, p. 7. 138 PARANHOS, p. 8.
39
breque a duas vozes – breque que, geralmente, é anunciador do distanciamento crítico –
coloca por terra todo o blábláblá estado-novista que parecia haver contagiado a gravação.
Convém ficar alerta para o fato de que uma composição não existe tão-somente no
plano abstrato. Importa é o seu fazer-se, a formatação que recebe ao ser
interpretada/reinterpretada. Nessa perspectiva, interpretar é também compor, pois quem
interpreta decompõe e recompõe uma composição, podendo investi-la de sentidos não
imaginados ou mesmo deliberadamente não pretendidos pelo seu autor.139
É o que se verifica em “O amor regenera o malandro”. Quem tomá-la ao pé da letra,
ou melhor, quem se der apenas ao trabalho de pesquisar as revistas de modinhas, nas
quais se publicavam as letras das canções populares, se fixará no acessório e não
aprenderá o principal. Restringir a análise aos seus versos implica reduzir a canção por
definição, uma obra musical revestida de letra – a mero documento escrito, amesquinhando
seu campo de significações, o que pode nos levar a passar ao largo de suas apropriações e
reapropriações. Não basta inclusive o acesso à partitura. Neste caso específico, ela nada
mais faz do que reproduzir a letra da composição, sem os breques que lhe foram
posteriormente incorporados. Obviamente, o último verso (aí incluído o breque) não
constava da letra submetida ao crivo dos censores.
Em sua interpretação, sincopada de cabo a rabo, Joel e Gaúcho se comportam
malandramente. Eles quebram a aparente harmonia incorporada na letra e subvertem seu
conteúdo original. A desconstrução é processada com o auxílio de duas singelas palavras.
Comportamento, aliás, tipicamente malandro, como já foi observado: há a aparente
aceitação das regras estabelecidas como simples e estratégia de sobrevivência. Dentro dos
códigos da malandragem, a arte da dissimulação é ponto de honra.140
2.4. AUTORES PESQUISADOS
Neste trabalho pesquisou-se mais profundamente o impacto da censura na música
de dois compositores Ataulfo Alves e Geraldo Pereira. A partir da investigação nas letras
das canções, procuramos analisar quais foram às estratégias por eles utilizadas para fazer
frente às interferências impostas pela censura do Estado-Novo e poder continuar gravando
suas composições.
139 PARANHOS, p. 9 140 PARANHOS, p. 10
40
2.4.1. Ataulfo Alves de Souza
Ataulfo Alves de Souza nasceu em 02 de maio de 1909, no município de Mirai, zona
da Mata, em Minas Gerais, na Fazenda Cachoeira. Menino da roça, aprenderia com o pai,
Severino de Souza, chamado “Capitão” Severino, repentista, violeiro e sanfoneiro, as
primeiras lições da arte de versejar e cantar. Desde pequeno “dialogava” com o pai nas
cantorias. Aos 10 anos perde o pai, e sua mãe, Maria Rita de Jesus, com uma porção de
filhos, sai da fazenda e vai morar no centro da cidade de Mirai, que ficava próximo. Passa
Ataulfo a freqüentar o grupo escolar e a desempenhar os serviços que apareciam. Uma
existência pobre, mas tranqüila e feliz, que registraria com emoção no seu samba Meus
tempos de Criança, também conhecido como Meu Pequeno Mirai e Saudades da
Professorinha.
Em 1927. Afrânio Moreira de Resende, médico recém-formado de Mirai, convida-o a
acompanhá-lo ao Rio de Janeiro, onde montaria consultório, a fim de que trabalhasse com
ele. Ataulfo aceita, mas logo sente que as perspectivas não são boas. Pois à noite ainda
tinha de fazer limpeza na residência do médico. Meses depois se emprega numa funilaria de
automóveis, a qual deixa para tornar-se lavador de vidros na Farmácia e Drogaria do Povo.
Com 19 anos de idade, em 1928, casa-se com Judite, tendo o casal cinco filhos, dois dos
quais, Adeilton e Ataulfo Júnior, revelariam dotes artísticos.
Na farmácia, inteligente e interessado, passa de lavador de vidros a prático de
manipulação de receitas e responsável pelo laboratório. Já podendo dispor de tempo para
freqüentar as rodas de samba, passa a compor para o Bloco Fala Quem Quiser, do Rio
Comprido, no qual tem o cargo de diretor de harmonia. Alcebíades Barcelos, o Bide, autor
conhecido, numa dessas ocasiões, nota suas qualidades de compositor e o leva à presença
de Mr. Evans, engenheiro de gravações da R.C.A. Victor. Mr. Evans, entusiasta e bom
conhecedor de música brasileira, gosta do que ouve e seleciona, para gravação imediata,
três dos seus sambas: Sexta Feira, o primeiro a ser gravado e lançado por Almirante,
Tempo perdido, o segundo, por Carmen Miranda, e Sonho, por Carlos Galhardo, que
apenas se iniciava como cantor.
Embora bem lançado, no ano de 1934 nada gravaria. Em 1935, aparecem três
gravações com sucesso nacional, o samba Saudades do Meu Barracão, na voz de Floriano
Belham. Sua ascensão, daí por diante, faz-se segura com os sucessos que vão pontilhando
e multiplicando-se a cada ano. Em 1941, para o carnaval, mais para deixar registrada sua
voz para os amigos, grava Leva Meu Samba.
41
Pegaria verdadeiro gosto pela interpretação com Ai! Que Saudade da Amélia!, um
clássico, em parceria com Mário Lago, depois de nenhum cantor querer gravá-lo.
Consciente do seu modesto potencial como cantor, lança mão do recurso de se fazer
acompanhar por coros que ensaiava e que ora denominava Sua Academia de Samba, ora
Sua Gente e Seu Estado Maior, até reunir três cabrochas, Suas Pastoras, que também
passou a levar em suas apresentações pessoais. O nome de pastoras foi sugestão, a seu
pedido, do compositor Pedro Caetano. De provisório passaria a definitivo.
Sua musicografia, gravada e editada, ultrapassa 320 músicas. É uma das maiores da
música popular brasileira em número e também em sucessos. Até falecer continuava em
evidência, fator raro entre os compositores de sua geração.
Em 1967, chefiou a 4ª Caravana de Divulgação da música Brasileira no exterior,
organizada pelo MEC-UBC, apresentando-se em diversos países da Europa. Em 1966,
representou o Brasil no I Festival de Arte Negra do Senegal, em Dacar. Em 01 de maio de
1962, sua cidade de Mirai, que sempre visitava, recebe-o oficialmente com todas as honras
e dá seu nome à rua onde morava.
Ataulfo faleceu no Rio de Janeiro, em 20.04.1969, poucos dias antes de completar
60 anos de idade, de complicações decorrentes de uma cirurgia de úlcera duodenal,
realizada duas semanas antes, e que, por temor, sempre protelava.
2.4.2. Geraldo Theodoro Pereira
Geraldo Theodoro Pereira, nasceu em 23 de abril de 1918 em Juiz de Fora-Minas
Gerais e morreu no Rio de Janeiro em 08 de maio de 1955. Compositor, cantor, filho de
Sebastião Maria e de Clementina Maria Theodoro. Tinha três irmãos. Em 1930, mudou-se
para o Rio de Janeiro para morar com o irmão mais velho, Manoel Araújo, conhecido como
Mané-Mané e que morava no Santo Antônio, Morro de Mangueira. Passou a trabalhar como
ajudante do irmão no balcão de uma tendinha mantida por ele no Buraco Quente, localidade
do Morro da Mangueira.
Em 1931, passou a estudar na Escola Pará, em Vila Isabel, posteriormente Escola
Olímpia do Couto, onde fez o curso primário. Nessa época conheceu Buci Moreira,
Padeirinho e Fernando Pimenta, que tinham idade semelhante a sua e que se tornariam
futuros sambistas.
Pouco tempo depois, deixou de trabalhar na tendinha do irmão e empregou-se como
soprador de vidro na fábrica de vidro José Scaroni, na Rua Gonzaga Bastos, lá
42
permanecendo por pouco tempo. Já nessa época participava de rodas de samba no Morro
da Mangueira na casa de Alfredo Português.
Aos 18 anos de idade, tirou sua carteira de motorista, empregando-se na Prefeitura
do Rio de Janeiro, no volante do caminhão de limpeza urbana, emprego que manteve por
toda a vida. Aprendeu a tocar violão com Aluísio Dias e Cartola.
Em 1938, aos 20 anos de idade, compôs o samba “Farei tudo” em parceira com
Fernando Pimenta, proibido pela censura, porque seus versos foram considerados
excessivamente ousados para a época. A partir de então começou a fazer seus primeiros
trabalhos musicais inspirado no movimento denominado “samba telecoteco”, do qual Ciro de
Souza era um dos principais articuladores. Em 1939, teve sua primeira música gravada, o
samba “Se você sair chorando”, com Nelson Teixeira, registrado por Roberto Paiva, na
Odeon. Esse samba foi finalista ano Concurso de Músicas Carnavalescas do Departamento
de Imprensa e Propaganda (DIP), do Governo Getúlio Vargas, tendo sido tocado nas rádios
e cantado nas ruas do Rio de Janeiro, projetando seus autores no meio artístico carioca. Ao
fazer o arranjo para o samba, Pixinguinha pediu ao cantor Roberto Paiva que o
apresentasse ao autor, pois a originalidade da melodia o havia impressionado imensamente.
Por volta de 1940, conheceu Isabel, grande amor de sua vida, musa inspiradora de
sambas como “Acabou a sopa”, gravado em 1940 por Ciro Monteiro e “Liberta meu
coração”, gravada em 1947 por Abílio Lessa.
De 1940, é o samba de breque “Acertei na milhar” que, segundo pesquisadores, tem
letra e melodia de Wilson Batista, constando o nome de Geraldo Pereira na parceira a
pedido de Moreira da Silva, que gravou o samba nesse ano pela Odeon. Também nesse
ano, Cyro Monteiro gravou na RCA Victor o samba “Acabou a sopa”, com Augusto Garcez.
No ano seguinte teve nova parceria com Augusto Garcez gravada por Cyro Monteiro, o
samba “Ela não teve paciência”. Também nesse ano, Aracy de Almeida gravou na RCA
Victor o samba “Falta de sorte”, com Marino Pinto; Roberto Paiva, também na RCA Victor, o
samba “Lembras-te daquela zinha?”, com Augusto Garcez, e Isaura Garcia na Columbia o
samba “Pode ser?”, com Marino Pinto, cuja letra fez inspirado em sua musa Isabel.
Em 1942, Patrício Teixeira gravou o samba “Adeus”, com Augusto Garcez; Cyro
Monteiro, “Quando ela samba”, com J. Portela e “Até quarta-feira”, com Jorge de Castro e,
Roberto Paiva o samba “Tenha santa paciência” com Augusto Garcez, os três na RCA
Victor. Nesse ano, o grupo Quatro Ases e um Coringa gravou na Odeon o samba “Ai que
saudade dela” com Ari Monteiro; Moreira da Silva o samba “Voz do morro” parceira dos dois
e Dircinha Batista na Odeon o choro “Sinhá Rosinha”, com Célio Ferreira.
43
Teve gravado por Moreira da Silva na Odeon, em 1943 o “Samba pro concurso”, com
Moreira da Silva e por Odete Amaral, na mesma gravadora, o samba “Jamais Acontecerá”,
com Djalma Mafra. Nesse ano fez grande sucesso com o samba “Você está sumindo”, com
Jorge de Castro, gravado por Ciro Monteiro, seu grande intérprete, amigo e protetor. Neste
mesmo ano, apresentou-se no programa “Vesperal das moças” na Rádio Tamoio do Rio de
Janeiro. Fez algumas apresentações esporádicas na Rádio Nacional.
Em 1944, seu samba “Sem compromisso”, com Nelson Trigueiro foi gravado na
Continental pelos Anjos do Inferno. Os sambas “Voltei mas era tarde” com Príncipe Pretinho
foi lançado na RCA Victor por Cyro Monteiro e “Carta fatal”, com Ari Monteiro foi gravado por
Odete Amaral na Odeon. Nesse ano, obteve novo grande sucesso na voz de Cyro Monteiro
com “Falsa baiana”, um dos grandes sambas da música brasileira, inspirado na esposa do
compositor Roberto Martins, incapaz de sambar no carnaval, com sua fantasia de baiana.
“Falsa baiana” chama a atenção por sua originalidade melódica e estruturação rítmica.
Segundo Nelson Sargento “depois dessa música, a coisa mais difícil era encontrar Geraldo
no morro de Mangueira”. Ainda em 1944, participou do filme “Berlim na batucada” de Luiz de
Barros, interpretando o papel de cabo Laurindo.
Em 1945, teve o samba “Bolinha de papel”, que apresentava sutis inovações rítmicas
lançado pelo grupo Anjos do Inferno, mas que nessa versão não obteve grande sucesso.
Nesse ano, teve três sambas gravados por Déo na Continental, “Chegou o dia”, com Elpídio
Viana, “Conversa fiada” e “Mais cedo ou mais tarde”. Também no mesmo ano lançou seu
primeiro disco, pela Continental, interpretando os sambas “Mais um milagre”, de sua autoria
e “Bonde Piedade” com Ari Monteiro, com acompanhamento de Benedito Lacerda e seu
conjunto regional. Em 1946, teve gravados os sambas “Abaixo de Deus”, com Elpídio Viana,
por Alcides Gerardi na Odeon e “Ai mãezinha”, com Ari Monteiro, “Até hoje não voltou”, com
J. Portela e “Golpe errado”, com Cristóvão de Alencar e David Nasser, por Cyro Monteiro e
“Vai que depois eu vou”, pelo grupo Anjos do Inferno, todas na RCA Victor. Teve ainda mais
dois sambas lançados na Déo na Continental: “Só quis meu nome” e “Ainda sou seu amigo”.
Em 1947, Cyro Monteiro gravou o sucesso na RCA Victor o samba “Pisei num
despacho”, com Elpídio Viana, samba de admirável ritmo, com uma letra rica e bem
humorada. Também nesse ano, Abílio Lessa gravou na RCA Victor o samba “liberta meu
coração”, com José Batista, confissão apaixonada para a mulata Isabel, que trabalhava
como pastora em diferentes programas radiofônicos, com versos como: “Meu coração é um
escravo perfeito/ que vive acorrentado em meu peito/ solta este pobre sofredor/ que padece
demais por teu amor”.
44
No ano seguinte, teve os sambas “Brigaram pra valer”, gravado por Roberto Paiva e
“Chegou a bonitona”, por Jorge Vieira, ambos na Continental, parcerias com José Batista.
Nesse ano, pela gravadora Star lançou os sambas “Roubaram o lírio de ouro”, com Arnaldo
Passos e “Vou dar o serviço”, com José Batista, aparecendo no selo do disco como
“Geraldo Pereira e Suas Pastoras”. Em 1949, Roberto Silva gravou na Star o samba “Minha
companheira” e Roberto Paiva na Continental o samba “Brigaram pra valer”, com José
Batista. Nesse ano, teve “Que samba bom”, gravado por Blecaute na Continental, que se
tornou um dos maiores sucessos de vendagem da década, levando-o inclusive pela primeira
vez a reclamar com a gravadora seus direitos autorais pelas vendas dos discos. Ainda
nesse ano, Blecaute gravou o samba “Chegou a bonitona” com José Batista.
Em 1950, voltou a gravar, pela Star, sendo um dos primeiros contratados da nova
gravadora, lançando os sambas “Pedro do Pedregulho”, de sua autoria e “Ela”, de Arnaldo
Passos e Osvaldo Lobo, com acompanhamento de Lírio Panicalli e sua orquestra, passando
a partir de então a gravar regularmente. Deixou um total de 30 gravações. No mesmo ano,
gravou os sambas “Se o meu amor voltar”, de Klécius Caldas e Armando Cavalcanti e “É
hora cabrocha”, de Elpídio Viana e Jorge e Castro. No ano seguinte, gravou de sua autoria e
Arnaldo Passos o samba “Ministério da economia”, sua primeira incursão no terreno da
política elogiando ironicamente a criação do Ministério da Economia pelo presidente Getúlio
Vargas. A letra descreve as agruras de um habitante do morro que, não agüentando a
inflação, havia mandado sua “Nega bacana meter os peitos na cozinha da madame em
Copacabana”.
Geraldo Pereira com este samba demonstra claramente o conflito de classes que
estava ocorrendo no Brasil da época. Mesmo o presidente Getúlio Vargas dizendo que a
vida do povo estava melhor com todos os benefícios oferecidos pelo seu governo, para o
povo humilde as coisas continuavam difíceis, pois para levar uma vida melhor, até a mulher
precisava trabalhar fora para ajudar nas despesas.
Em 1952, gravou a marcha “Tribo do Caramuru”, de Hélio Ribeiro e Álvaro Xavier e o
samba “Polícia no morro”, que já naquela época atestava a chaga social da violência na
cidade. Nesse ano, gravou os sambas “Escurinha”, de sua autoria e Arnaldo Passos e “Ser
Flamengo”, de Ferreira Gomes, Bruno Gomes e Airton Amorim, através do qual definia sua
preferência pelo clube de futebol carioca, assim como Wilson Batista e Cyro Monteiro faziam
na mesma época. Nesse ano, seus sambas “Aquele amor”, com Wilson Batista, foi gravado
por Déo, ambos na Continental com acompanhamento de Severino Araújo e sua orquestra
Tabajara. Na Odeon, Dircinha Batista registrou o samba “Fugindo de mim”, com Arnaldo
Passos, Valdir Machado e Cristóvão de Alencar e na gravadora RCA Victor, Heleninha
45
Costa lançou o samba “Não consigo esquecer”, com Arnaldo Passos. Também em 1952,
transferiu-se para a gravadora RCA Victor e em seu primeiro disco lançou os sambas
“Coitadinha fracassou”, de Hélio Nascimento e Arnaldo Passos e “Dama ideal” de
Alcebíades Nogueira e Arnaldo Passos. Participou ainda do filme “O rei do samba”, de Luís
de Barros.
Gravou na RCA Victor os sambas “Falso patriota”, de David Raw e Victor Simon e
“Cabritada malsucedida”, de sua autoria e W. Wanderley e, na Sinter, os sambas
“Chorei...chorei”, de Carlos Alfredo, Valtrudes Silva e Ramalho Nelo e “Reminiscência da
Lapa”, de João Correia da Silva, Isaulino Silva e Eduardo Guedes, em 1953. No ano
seguinte, foi contratado pela gravadora Columbia e lançou os sambas “Olha o peroba” de
Buci Moreira e Albertina Rocha e “Maior desacerto”, de sua autoria, Ari Garcia e Silva Jr.
Nesse ano, participou do espetáculo “Clarins em fá”, na Boate Esplanada, em São Paulo,
fazendo grande sucesso com o samba “Olha o peroba”, de Buci Moreira e Albertina Rocha.
Também no mesmo ano, gravou seus dois últimos discos com o sambas-choro “Professor
de natação”, de Avarese e Maurílio Santos e “Juraci”, de sua autoria, a marcha “Conduta do
Taioba”, de Aldacir Louro, Rubens Fausto e Antônio Neto e o profético samba, já que
morreria sete meses depois do lançamento do disco, “Eu vou partir”, de sua autoria.
Em 1955, três meses antes de falecer subitamente viu seu último sucesso gravado
em disco, o samba “Escurinho”, que conta a trajetória de um escurinho pacato, que de uma
hora pra outra muda de comportamento e sai pelos morros comprando brigas, lançado em
fevereiro daquele ano por Cyro Monteiro. Morreu de hemorragia intestinal, aos 37 anos, em
conseqüência de uma briga num bar da Lapa com o lendário malandro “Madame Satã”.`
Depois de sua morte seus sambas continuaram a ser regravados por inúmeros
cantores e cantoras.
46
3. ANÁLISE DE CONTEÚDO DAS MÚSICAS DE ATAULFO ALVES E GERALDO PEREIRA
A partir das pesquisas realizadas na bibliografia e na musicografia envolvendo os
compositores Ataulfo Alves e Geraldo Pereira, analisou-se os aspectos das canções para se
determinar os temas e as características por eles utilizadas. Investigou-se os temas
recorrentes que esses compositores usaram antes, durante e depois do Estado Novo,
conforme será detalhado na seqüência.
3.1. ATAULFO ALVES
Ataulfo Alves compôs suas músicas em parceria com diversos compositores, dentre
eles Felisberto Martins, José Gonçalves, Mario Lago, Claudionor Cruz, Wilson Baptista,
Marino Pinto, Armando Reis, José Batista, Jorge de Castro, David Nasser, Jorge Faraj,
André Filho, Antonio Almeida, e começou a interpretar suas músicas por volta de 1940.
A bibliografia pesquisada não resultou muito rica quanto às letras das músicas de
Ataulfo Alves gravadas no período anterior ao abrangido por este trabalho (1937-1945), que
pudessem proporcionar uma análise aprofundada dessas produções. Dessa forma, foram
realizadas pesquisas em lojas especializadas e gravadoras, obtendo-se dois CDs (compact
disc) em uma gravadora de Curitiba, com os títulos “Talento não tem idade” e “Vida de
minha vida, vol. 1”, cada um contendo 21 músicas escritas por Ataulfo Alves, gravadas entre
1933 e 1960.
Essas 42 músicas foram utilizadas como base da pesquisa, sendo o período de
gravação apresentado na Tabela 1:
TABELA 1 – Músicas de Ataulfo Alves escolhidas como base de pesquisa
ÉPOCA PERÍODO DE GRAVAÇÃO Nº DE MÚSICAS
Anterior ao Estado Novo 1933 a 1936 06
Durante o Estado Novo 1937 a 1945 21
Após o Estado Novo 1946 a 1960 15
A seguir, serão apresentados os resultados da análise de conteúdo das músicas
gravadas antes, durante e após o Estado Novo.
47
3.1.1. Análise de conteúdo das músicas de Ataulfo Alves gravadas anteriormente ao Estado Novo
A análise do conteúdo das letras das 6 músicas de Ataulfo Alves relativas ao período
anterior ao Estado Novo não apresentam relacionamento com a boemia, malandragem ou
apologia ao não trabalho.
A síntese de análise de conteúdo dessas músicas está apresentada na Tabela 2.
TABELA 2 – Análise de conteúdo das músicas compostas por Ataulfo Alves gravadas antes do período Estado Novo
MÚSICA ANO INTÉRPRETE RITMO DISCO Nº. MÚSICA SÍNTESE DO CONTEÚDO
Tempo perdido 1933 Carmem Miranda Samba 1 1 Amor
Sexta Feira 1933 Almirante Samba 2 1 Feitiço que uma mulher faz para homem se apaixonar
Saudades do meu barracão
1935 Floriano Belham
Samba canção
2 2 Amor
Sinhá Maria Rosa 1935 J. B. de
Carvalho Toada-Catererê 1 4 Amor
Não posso resistir 1935 Carlos
Galhardo Samba 1 2 Amor
Pelo amor que eu tenho a ela 1936 Francisco
Alves Samba 2 20 Amor não correspondido
Fonte: 1-Disco talento não tem idade 2-Vida de minha vida. Gravadora Revivendo.
Considerando que as músicas analisadas representam sucessos da época em que
foram gravadas, período anterior ao Estado Novo, não se confirma, nessa amostra, a
hipótese de que este compositor fazia apologia à malandragem, à boemia e ao não trabalho
em suas composições.
Apesar dessa amostra não apresentar relacionamentos com apologia à
malandragem e ao não trabalho, Maria Ângela Salvadori, em Malandras canções brasileiras,
afirma que o samba malandro é aquele das estratégias, é aquele que quer se preservar e
por isto ora resiste à política do estado, atacando de maneira irônica o trabalho, o operário e
a pátria, e ora participa dela ao cantar as virtudes do malandro regenerado.141
O samba malandro, para Salvadori, é o samba da fronteira, bem como da fronteira
é o malandro que o produz e que se fortalece ao cantá-lo, “passando uma rasteira”, em
todas as leis.
Salvadori ainda cita que, em 1940, dois notórios boas vidas dos morros cariocas
Ataulfo Alves e Wilson Batista compuseram o samba “O bonde de São Januário”, cuja letra
da música na versão original dizia:
141 SALVADORI, Maria Ângela Borges. Malandras canções brasileiras. Revista Brasileira de História, v.7, São Paulo, 1986-87. p. 120.
48
O bonde São Januário Leva mais um otário Sou eu que vou trabalhar
Mas por pressão da censura acabaram mudando estes versos transformando a
música num “hino do bom cidadão”
O Bonde São Januário Leva mais um operário Sou eu que vou trabalhar142
Outro autor, Eduardo Vicente, cita que os sambistas Ataulfo Alves e Wilson Batista
se comportaram malandramente até quando alteraram os versos originais da música “O
Bonde São Januário”, pois a rítmica do samba não confere “seriedade” à mensagem da
letra. Ou seja, o ouvinte acaba por relativizar seu conteúdo, em função do caráter afirmativo
da melodia sincopada.
Neste sentido, declarações do tipo “Quem trabalha é quem tem razão” e “a boêmia
não dá camisa a ninguém”, encontráveis em “O Bonde de São Januário”, adquirem caráter
ambíguo tornando-se, na verdade, bem mais irônicas do que propriamente edificantes. 143
Diante da afirmativa dos dois historiadores e dos exemplos comuns citados por
ambos, pode-se concluir que Ataulfo Alves, antes das obrigações impostas pela censura,
comportava-se em suas músicas como autêntico malandro, tendo alterado a temática de
suas canções, como será apresentado no item seguinte.
3.1.2. Análise de conteúdo das músicas de Ataulfo Alves gravadas durante o período do Estado Novo
Ataulfo Alves começou a interpretar suas composições apenas a partir de 1941, já
dentro do período do Estado Novo (1937-1945). Nesses oito anos, a amostra selecionada
representou 21 músicas, com temas diversificados, conforme síntese da análise do
conteúdo apresentada na Tabela 3.
TABELA 3 – Análise de conteúdo das músicas de Ataulfo Alves gravadas durante o período do Estado Novo
MÚSICA ANO INTÉRPRETE RITMO DIS-CO
Nº MÚSICA
SÍNTESE DO CONTEÚDO
Quanta Tristeza 1937 Carlos Galhardo
Samba-canção
2 17 Amor não correspondido
Rainha da Beleza 1937 Orlando Silva Samba 2 13 Mulher vaidosa que não pensa no futuro
Até Breve 1937 Sylvio Caldas Samba 1 9 Abandonado pelo seu amor
Perdi a confiança 1937 Luiz Barbosa Samba 2 5 Traição da mulher
Mil Corações 1938 Nuno Roland Valsa 1 16 Sofrer por amor
142 SALVADORI, p. 123. 143 VICENTE, p. 28.
49
MÚSICA ANO INTÉRPRETE RITMO DIS-CO
Nº MÚSICA SÍNTESE DO CONTEÚDO
Meu pranto Ninguém Vê
1938 Orlando Silva Samba 2 8 Amor não correspondido
Covardia 1938 Nuno Roland Samba 2 11 Amor não correspondido
Mulher toma juízo 1938 Gilberto Alves Samba 1 5 Mulher sem juízo
Não sei dizer adeus 1939 Déo Samba 2 16 Amor Canção do Nosso Amor
1939 Déo Valsa-Romance
1 6 Amor
Já sei sorrir 1939 Sylvio Caldas Samba 2 12 Amor
Eu Conheço Você... 1939 Aurora Miranda
Marcha 2 7 Amor não correspondido
Teus Olhos 1939 Aurora Miranda
Samba-chôro
1 4 Amor não correspondido
Fale Mau... Mas Fale de Mim
1939 Aracy de Almeida
Samba 1 8 Aconselha a um amigo a ser como ele é trabalhador
Continua 1940 Aracy de Almeida
Samba 2 14 Apologia ao trabalho
Ó Seu Oscar 1940 Cyro Monteiro Samba 1 15 Morena que deixou o marido e foi pra orgia
Você é meu xodó 1941 Cyro Monteiro Samba 2 13 Amor
É negócio casar 1941 Ataulfo Alves Samba 2 3 Malandro regenerado
Eu Não Sabia 1943 Anjos do Inferno
Samba 1 12 Desentendimento com amigo por causa de mulher
Não Irei lhe buscar 1944 Ataulfo Alves e suas Pastoras
Samba 1 7 Traição de uma mulher
Boêmio 1945 Ataulfo Alves e suas Pastoras
Samba 2 6 A boemia não traz felicidade
Fonte: 1-Disco talento não tem idade 2-Vida de minha vida. Gravadora Revivendo.
Na investigação das letras das músicas de Ataulfo Alves apresentadas na Tabela 3,
gravadas no período abrangido pelo Estado Novo, é possível perceber duas situações
distintas: a primeira, antes da criação do DIP, em dezembro de 1939, os temas das músicas
são quase que em sua totalidade voltados ao amor; a segunda situação, bastante clara, é a
apologia ao trabalho, à regeneração do malandro e o abandono à boemia, presentes em
três das 7 músicas gravadas de 1940 a 1945.
Essa situação foi confirmada por Sérgio Cabral, citando a letra da música “Ó seu
Oscar”, composta em 1940 por Ataulfo Alves e Wilson Batista e que foi a vencedora de um
concurso musical realizado no campo do América Futebol Clube, em 27 de janeiro,
promovido pelo DIP. A renda deste espetáculo foi destinada à Cidade das Meninas e ao
Abrigo Cristo Redentor, duas obras sociais comandadas por Dna Darci Vargas, esposa do
presidente Getúlio Vargas.144
Cabral, cita ainda, que Ataulfo Alves e Wilson Batista, os vencedores da competição,
vinham marcando a sua obra com sambas em que a malandragem e a vadiagem eram
sempre homenageadas, sendo que Wilson começou a sua polêmica com Noel Rosa
144 CABRAL, Sérgio. A MPB na era do Rádio. São Paulo: Moderna, 1996, p. 75.
50
exatamente porque se apresentava como um malandro de lenço no pescoço, navalha no
bolso etc. e proclamava que tinha “orgulho de ser vadio”. Na letra de Ó seu Oscar, no
entanto, eles se apresentavam como um sujeito que chegou “cansado do trabalho”, para
enfrentar o abandono da mulher, que, ela sim, só queria viver na orgia.145
A análise de conteúdo das letras mencionadas na Tabela 3, e as investigações feitas
por Sérgio Cabral, demonstram a influência que o DIP teve na alteração dos temas das
músicas, através da censura, incentivando os compositores a render-se aos interesses do
Governo Vargas, nesse período.
Através de quatro letras de músicas citadas a seguir, gravadas antes e após a
criação do DIP, percebe-se claramente essa situação:
Música: Quanta Tristeza Ataulfo Alves e André Filho, Interpretada por Carlos Galhardo, 1937. Quanta tristeza Eu trago dentro do meu coração! A vida é sempre assim Eu amo alguém que não gosta de mim Minha dor já não tem mais fim E ninguém tem pena de mim Canto pra esquecer este amor infeliz Que faz sofrer (ai, meu Deus!) Coração, deixa de bater É demais tanto padecer Não tenho ninguém nesta vida infeliz Que me queira bem (ai, meu Deus!) Fonte: Gravadora Revivendo – Curitiba-Pr Música: Mil Corações Ataulfo Alves e Jorge Faraj, interpretada por Nuno Roland, 1938 À procura de mim mesmo sem tristeza e sem prazer eu vinha rolando a esmo pela vida sem viver Mas por obra do acaso um dia ao telefonar tu te enganaste ao discar e eu vim a te conhecer Um grande amor floresceu no meu coração, mas o teu é pedra onde o amor fenece O amor é como as roseiras no duro chão das pedreiras Nenhuma roseira cresce
Música: É Negócio Casar Ataulfo Alves e Felisberto Martins, Interpretada por Ataulfo Alves, 1941. Veja só a minha vida como está mudada! Não sou mais aquele que entrava em casa alta-madrugada Faça o que eu fiz Porque a vida é do trabalhador Tenho um doce lar e sou feliz com meu amor O Estado Novo veio para nos orientar No Brasil não falta nada mas precisa trabalhar Tem café, petróleo e ouro e ninguém pode duvidar E quem for pai de quatro filhos o presidente manda premiar É negócio casar! Fonte: Gravadora Revivendo – Curitiba-Pr Música: Ó Seu Oscar Ataulfo Alves e Wilson Batista, interpretada por Cyro Monteiro, 1940 Cheguei cansado em casa do trabalho Logo a vizinha me chamou Oh! Seu Oscar Ta fazendo meia hora Que a sua mulher foi embora E um bilhete deixou Meu Deus, que horror O bilhete dizia: Não posso mais, eu quero é viver na orgia! Fiz tudo para ver seu bem-estar Até no cais do porto eu fui parar
145 CABRAL, Sérgio, p. 77.
51
Mas não maldigo a ironia do destino Eu não maldigo aquele engano pequenino que me ofertou, ó meu amor, tão grande dor Eu só lamento a desventura de não ter mil corações pra sofrer por amor do teu amor Fonte: Gravadora Revivendo – Curitiba - Pr
Martirizando o meu corpo noite e dia Mas tudo em vão: ela é da orgia Fonte: Gravadora Revivendo – Curitiba - Pr
Ataulfo Alves era um homem de seu tempo, viveu em uma época onde era certo o
homem ser o único responsável pela família, ser o provedor. A mulher deveria ser aquela
que educa os filhos, cuida da organização da casa e é responsável pelo bem estar de todos.
Nunca poderia se admitir uma mulher dedicada e fiel sair de casa para ir se divertir sozinha
sem o marido, isso só acontecia com mulheres que eram de “moral duvidosa”.
Por isso, podemos perceber no conteúdo das letras de suas canções que falam de
amor, de abandono pela mulher amada, de traição, de mulher sem juízo um típico
comportamento daquele homem que vê a mulher como a rainha do lar, aquela que só tem
que viver para o marido e para os filhos.
Segundo Maria Izilda de Matos, enquanto categoria relacional, a masculinidade se
constrói em referência à feminilidade; o homem é fundamentalmente sincero e generoso
mas, em sua essência, a mulher é falsa, ingrata e volúvel e não sabe amar. A mulher
comprova sua essência infiel e traiçoeira abandonando o lar construído pelo homem como
testemunho da solidez do seu amor.146
Nas músicas onde faz apologia ao trabalho e ao abandono da boemia e a
malandragem, pode-se dizer que Ataulfo Alves seguia o padrão de pensamento masculino
de seu tempo, onde o homem deve ser o provedor, nunca vagabundo ou ébrio. Ele deve ser
trabalhador, ordeiro e bom pai de família. O desvio na conduta masculina geralmente é
atribuído ao mau proceder feminino. Se o homem tem a obrigação de trabalhar para
sustentar sua mulher, esta lhe deve carinho e fidelidade pois tal deve ser o seu papel de
esposa.147 Ao que tudo indica, no entanto, é que este pensamento nas temáticas musicais
de Ataulfo Alves somente ocorreram em função da censura imposta na época, que não
retratam a realidade vivida por ele, pois, cessando tais exigências houve uma imediata
alteração dos temas de suas canções.
146 MATOS, Maria Izilda S., FARIA, Fernando A. O imaginário em debate. São Paulo: Olho d’Água, 1998, p. 40-41. 147 MATOS, p. 42-43.
52
3.1.3. Análise de conteúdo das músicas de Ataulfo Alves gravadas após o período do Estado Novo
Foram selecionadas para análise de conteúdo, 14 músicas (uma delas presente em
ambos os discos) gravadas após o período do Estado Novo, cuja síntese do conteúdo está
apresentada na Tabela 4.
TABELA 4 – Análise de conteúdo das músicas de Ataulfo Alves gravadas após o período do Estado Novo
MÚSICA ANO INTÉRPRETE RITMO DIS-CO
Nº MÚSICA
SÍNTESE DO CONTEÚDO
Mártir no Amor 1946 Ataulfo Alves e suas Pastoras
Samba 2 14 Amor
Vida da Minha Vida 1949 Ataulfo Alves Samba 1 10 Amor Vida de Minha Vida 1949 Ataulfo Alves Samba 2 10 Amor
Lírios do Campo 1950 Jorge Goulart Samba 1 19 Fala da natureza
O Coração não envelhece 1950
Ataulfo Alves e seu Estado Maior
Samba 2 3 Amor
Mensageiro da Saudade 1950 Elizete
Cardoso Samba 2 11 Abandonado pelo seu amor
Quem é que não sente 1950 Afonso
Teixeira Samba 1 9 Abandonado pela mulher
Errei Sim 1950 Dalva de Oliveira Samba 2 19 Malandro deixa a mulher em
casa e vai para a orgia Saudades da mulata 1952 Vagalumes do
Luar Samba 1 17 Amor
Dilema 1952 Walter Levita Samba 1 18 Amor
Pai Joaquim d’Angola 1955 Ataulfo Alves e
suas Pastoras Batuque 2 21 Terreiro (macumba)
Quem me deve me paga 1956 Ataulfo Alves e
suas Pastoras Samba 2 18 Amor não correspondido
A carta 1958 Ataulfo Alves e suas Pastoras
Samba 1 15 Apoio ao governo de J.K.
Talento não Tem Idade 1958 Ataulfo Alves e
suas Pastoras Samba 1 21 Mudança que o samba estava sofrendo
Mulata Assanhada 1960 Elizete Cardoso
Samba 1 20 Beleza da mulata
Fonte: 1-Disco talento não tem idade 2-Vida de minha vida. Gravadora Revivendo.
Através da análise das músicas mencionadas na Tabela 4, verifica-se que Ataulfo
Alves interpretou a maioria delas. Outra situação evidente na análise de conteúdo é a
alteração da temática das canções, retornando à situação verificada anteriormente à criação
do DIP, exceção feita a música “A Carta”, de 1958, onde Ataulfo Alves apóia o governo, mas
desta vez de Juscelino Kubitschek de Oliveira.
Essa constatação é enfatizada por Sérgio Cabral, citando que antes mesmo da
queda de Getúlio, quando todas as correntes políticas estavam de acordo com a
convocação de eleições, a fim de ser eleita uma Assembléia Constituinte, políticos ligados
ao regime tentaram empolgar o povo com uma campanha, cujo slogan, inicialmente, era
“Nós queremos Constituinte com Getúlio”. Os muros de todo o país foram pichados com
53
essa frase. Com o tempo, os queremistas, como eram chamados aqueles políticos,
simplificaram o slogan para apenas “Nós queremos”. Não precisava escrever mais nada
todo mundo entendia.148
Coube a Ataulfo Alves, o mesmo compositor que exaltara o Estado Novo, protestar
também num samba contra a campanha, agora fazendo uma espécie de campanha
subliminar para Luís Carlos Prestes, cujas iniciais eram as mesmas das palavras “leite”,
“carne” e pão”, utilizadas em seu samba:
Nós queremos gozar a liberdade Liberdade de cantar e falar. Nós queremos escolas pros filhos E mais casas pro povo morar Nós queremos Leite, carne e pão, Nós queremos Açúcar sem cartão.
Depois do fim do Estado Novo, alguns compositores se aproveitaram da liberdade de
expressão para compor exatamente o que era proibido pelo DIP, como a exaltação à
malandragem.149
3.2. GERALDO PEREIRA
Geraldo Pereira também compôs suas músicas em parceria com diversos
compositores, dentre eles Jorge de Castro, Arnaldo Passos, Jorge Gebara, Wilson Baptista,
José Batista, Ary Monteiro, Moreira da Silva, Augusto Garcez, Marino Pinto, J. Portela, Arnô
Provenzano, Odemar Magalhães, Ary Garcia, Raul Longras.
Segundo a bibliografia pesquisada, Geraldo Pereira compôs 77 músicas entre 1939
e 1954, tendo interpretado 32 delas. Dessa forma, ficou prejudicada a análise de conteúdo
de músicas que poderiam indicar a exaltação à malandragem e ao não trabalho nas suas
canções anteriormente ao Estado Novo, que vigorou no período 1937-1945.
Na investigação realizada em lojas especializadas, sebos e gravadoras, sites da
internet, obteve-se através de site da internet apenas um CD (compact disc), com o título
“Meu Amigo Geraldo Pereira”, interpretado por Nadinho da Ilha, com 18 músicas, e um Long
Play (disco de vinil), com 8 músicas, denominado História da Música Popular Brasileira –
Geraldo Pereira, encontrado em um sebo de Curitiba. Ambos os discos totalizam uma
amostra de 20 músicas de Geraldo Pereira (seis repetidas), abrangendo o período de 1940
a 1954.
148 CABRAL, p. 90. 149 CABRAL, p. 91.
54
As 20 músicas compostas utilizadas como base da pesquisa, com a respectivas
datas de gravação, estão apresentadas na Tabela 5:
TABELA 5 – Músicas de Geraldo Pereira escolhidas como base de pesquisa
ÉPOCA PERÍODO DE GRAVAÇÃO Nº DE MÚSICAS
Durante o Estado Novo 1940 a 1945 08
Após o Estado Novo 1946 a 1954 12
A seguir, serão apresentados os resultados da análise do conteúdo das músicas
escolhidas para análise, gravadas durante e após o Estado Novo.
3.2.1. Análise de conteúdo das músicas de Geraldo Pereira gravadas durante o período do Estado Novo
A síntese do conteúdo das letras das 8 músicas compostas por Geraldo Pereira
durante a vigência do Estado Novo, selecionadas para análise está apresentado na Tabela
6.
TABELA 6 – Análise de conteúdo das músicas de Geraldo Pereira gravadas durante o período do Estado Novo
MÚSICA ANO INTÉRPRETE ORIGINAL
RITMO DIS-CO
Nº FAIXA SÍNTESE DO CONTEÚDO
Acertei no Milhar
1940 Moreira da Silva
samba de breque
2 7 Trabalhador que acerta na loteria
Até quarta-feira
1942 Cyro Monteiro samba 2 1 Tristeza da mulher do sambista malandro que vai para o carnaval
Você está sumindo
1943 Cyro Monteiro samba 2 4 Tristeza por causa de uma mulher
Falsa baiana 1944 Cyro Monteiro samba 2 2 Mulher que não sabe sambar Mais cedo ou mais tarde
1944 Déo samba 2 5 Tristeza por um amor acabado
Bolinha de Papel
1945 Anjos do Inferno
samba 1 03 lado 1
Amor
Vai, que depois eu vou
1945 Anjos do Inferno
samba 2 1 Mulher quer levar o marido carnavalesco para casa
Bonde da Piedade
1945 Geraldo Pereira
samba 2 10 Malandro regenerado
Fonte: 1-Música Popular Brasileira: LP RCA S.A. 2-Meu Amigo Geraldo Pereira: Robdigital. Os interpretes originais foram obtidos de Campos, Alice Duarte Silva et al, 1983.
Na investigação das letras das 8 músicas de Geraldo Pereira, apresentadas na
Tabela 6, gravadas no período abrangido pelo Estado Novo, é possível perceber que os
temas de quase todas as músicas são voltados ao amor, com duas delas tratando da
regeneração do malandro, como no caso das músicas “Vai, que depois eu vou” e “Bonde da
Piedade”, justamente na época em que o DIP manteve-se muito atuante quanto à censura
das músicas.
55
3.2.2. Análise de conteúdo das músicas de Geraldo Pereira gravadas após o período do Estado Novo
Foram selecionadas para análise de conteúdo, 12 músicas gravadas após o período
do Estado Novo, cuja síntese do conteúdo está apresentada na Tabela 7.
TABELA 7 – Análise de conteúdo das músicas de Geraldo Pereira gravadas durante o período do Estado Novo
MÚSICA ANO INTÉRPRETE ORIGINAL
RITMO DIS-CO
Nº FAIXA SINTESE DO CONTEÚDO
Ai, mãezinha 1946 Cyro Monteiro samba 2 13 Marido, malandro, chega em casa mais tarde e a mulher quer brigar
Abaixo de Deus
1946 Alcides Gerardi samba 2 14 Marido desempregado ajudado pela mulher
Liberta meu coração
1947 Abílio Lessa samba 2 12 Amor
Que samba bom
1948 Blecaute samba 1 04 Malandro na roda de samba
Chegou a bonitona
1948 Blecaute samba 2 9 Mulher bonita que chega para animar o samba
Minha companheira
1949 Roberto Silva samba 2 11 Companheira fiel
Pedro do Pedregulho
1950 Geraldo Pereira Samba canção
2 10 Malandro regenerado
Ministério da Economia
1951 Geraldo Pereira samba 2 03 Crítica a criação do Ministério da Economia
Polícia no Morro
1951 Geraldo Pereira samba 2 06 Polícia atrás do cabrito roubado
Escurinha 1952 Cyro Monteiro samba 2 08 Escurinho que vira briguento Cabritada mal sucedida
1953 Geraldo Pereira samba 2 06 Polícia apreende cabrito roubado
Escurinho 1954 Cyro Monteiro samba 2 08 Escurinho que vira briguento Fonte: 1-Música Popular Brasileira: LP RCA S.A. 2-Meu Amigo Geraldo Pereira: Robdigital. Os interpretes originais foram obtidos de Campos, Alice Duarte Silva et al, 1983.
É perceptível a mudança da temática das músicas compostas após o período do
Estado Novo, na amostra analisada, tendo significativa ênfase na apologia à malandragem.
Apesar disso, duas músicas chamam atenção dentre a amostra, “Pedro do Pedregulho”, que
trata de um malandro regenerado. Destaca-se ainda, nessa amostra, a música “Ministério da
Economia”, cujo tema é uma crítica a criação do Ministério da Economia, no segundo
Governo Vargas.
As letras inseridas na seqüência demonstram a alteração da temática apresentada
durante o Estado Novo e após.
Música: Acertei no milhar Geraldo Pereira - Wilson Batista, 1940. Interpretada por Moreira da Silva Etelvina Acertei no milhar Ganhei 500 contos, não vou mais trabalhar Você dê toda a roupa velha aos pobres E a mobília, podemos quebrar
Música: Pedro do Pedregulho Geraldo Pereira, em 1950 Interpretada por Geraldo Pereira Pedro dos Santos Vivia no morro do Pedregulho Quebrando boteco, fazendo barulho Até com a própria polícia brigou Vivia do jogo e quando perdia Só mesmo muamba
56
(Isto é pra já, vamos quebrar...) Etelvina você vai ter outra lua-de-mel Você vai ser madame Vai morar num grande hotel Eu vou comprar um nome não sei onde De Marquês, da ilha de Visconde Um professor de francês, mon amour Eu vou trocar seu nome pra “Madame Pompadour” Até que enfim agora sou feliz Vou percorrer a Europa toda até Paris E nossos filhos, oh, que inferno! Me telefone pro Mane do armazém Porque eu não quero ficar devendo Nada a ninguém E vou comprar um avião azul Pra percorrer a América do Sul Mas de repente, mas de repente Etelvina me acordou ‘está na hora do batente’ Mas de repente, mas de repente Etelvina me chamou... Foi um sonho minha gente Fonte: CD Robdigital Música: Ai, Mãezinha Geraldo Pereira – Ari Monteiro, 1946 Interpretada por Cyro Monteiro Ai, mãezinha Deixa paizinho Dormir sossegado Ai, mãezinha Tenha paciência, Papai está cansado Eu preciso dormir Pra logo poder trabalhar Deixa a briga mãezinha Pra quando papai acordar. O sol está quase de fora Papai hoje chega a essa hora Mamãe não gostou Mãezinha você tem razão Mas logo vou tudo explicar E você tem bastante compreensão Pra me perdoar. Fonte: CD RoBdigital
Rasgava pandeiro, acabava com o samba Parece mentira, Pedro indireitou. Estelinha, o orgulho do morro Mulher disputada Que quando ia ao samba saía pancada A Pedro dos Santos deu seu grande amor E ele trocou O revólver que usava fingindo embrulho Por uma marmita e sobe o Pedregulho De noite, cansado do seu batedor. Fonte: CD Robdigital Música: Bonde Piedade Geraldo Pereira – Ari Monteiro, 1945 Interpretada por Geraldo Pereira De manhã eu deixo o barracão Vou pro ponto de secção Cheio de alegria Pego o bonde piedade Desembarco na cidade Em busca do pão de cada dia. A princípio meu ordenado era pouco E muito trabalho Agüentei o galho e o tempo passou Agora fui aumentado Passei a encarregado A minha situação melhorou Fonte: CD Robdigital
Geraldo Pereira foi o típico representante da boemia carioca. Viveu mais a noite que
o dia, nos meios musicais do Café Nice e da Praça Tiradentes. Casou-se muito jovem com
uma moça menor de idade, foi obrigado pelo seu irmão e pelo pai da moça, mas não viveu
com ela. Seu grande amor foi Isabel, sua paixão e maior problema amoroso, com quem se
juntava e largava. Sua vida era nos cabarés e bares da cidade e nos subúrbios do Rio de
Janeiro.150
150 CAMPOS, Alice Duarte Silva de et alii. Um certo Geraldo Pereira. Rio de Janeiro: FUNARTE/INM/Divisão de Música Popular, 1983, p. 20.
57
Era um assíduo freqüentador da Lapa, reduto de boêmios e malandros; bebia muito,
freqüentava todos os lupanares e dancings da zona boêmia, tinha várias mulheres, e era
conhecido no meio em que vivia como sendo muito valente e por isso era muito provocado e
desafiado para brigas. Suas histórias de valentia encheram a noite carioca, numa época em
que ser malandro era ter “confirmação” a cada desafio.
Analisando os fatos que remetem a vida de Geraldo Pereira, é fácil entender os
temas de suas canções que tratam de amor, traição, tristeza pela perda de um amor, e
também pelas músicas que falam de um malandro regenerado, e da apologia ao trabalho,
durante a “Era Vargas”.
Geraldo Pereira, como letrista retratava a vida da malandragem (ele próprio um
autêntico representante dela) e das classes menos favorecidas do Rio de Janeiro, aquela
dos morros e dos subúrbios. Seus sambas não enfocam a classe média, como de alguns
outros compositores. Falavam de gente humilde, como em “Acertei na milhar”, um dos
maiores sucessos de Moreira da Silva, em que o personagem sonha que ganhou na loteria
e compra “um avião azul/para conhecer a América do Sul”.151
Também ao cantar que deseja uma mulher, ele não faz rodeios: “Escurinha/tu tens
que ser minha/de qualquer maneira/te dou meu boteco/que tenho no morro de Mangueira”.
Durante toda a sua vida foi mulherengo, e na verdade nunca teve um lar de verdade, e nem
filhos. Em 77 composições, 69 delas são voltadas, dedicadas, orientadas para uma
mulher.152
Geraldo Pereira colocava nas letras de suas canções muito de sua vida, seus
amores, desventuras, frustrações, alegrias, enfim seu dia a dia. A música “Ai, mãezinha”,
retrata uma típica briga dele com seu grande amor Isabel, pois ele chegou em casa depois
das três horas da manhã após ter desaparecido desde cedinho. Com esta música o
compositor demonstra o seu típico comportamento malandro, e também a nítida
compreensão que na sociedade da época o homem podia se comportar malandramente
enquanto a mulher ficava em casa esperando o marido chegar bem a hora que ele achasse
conveniente, aceitando tudo submissa.153
No segundo governo Vargas no ano de 1951, uma música de Geraldo Pereira e
Arnaldo Passos que se destacou foi Ministério da Economia, interpretada por ele mesmo.
Esta música para muitos é tida como uma canção de esperança, pois exatamente naquele
momento, Getúlio Vargas estava voltando ao poder, depois de vencer a eleição do ano
anterior batendo as forças conservadoras agrupadas em torno da UDN; com uma proposta
151 Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. Disponível em: <www.dicionariompb.com.br> Acesso em: 17/10/2007. 152 CAMPOS, p.146 153 CAMPOS, p. 160
58
de industrialização, na afirmação da soberania nacional e na incorporação dos
trabalhadores ao cenário político, Getúlio tinha o apoio da quase totalidade dos cantores e
compositores, aí, obviamente, incluídos Geraldo Pereira e Arnaldo Passos.154
Outros, entretanto, a vêem como uma música de caráter irônico, de crítica social,
dizendo uma coisa, mas com outro significado. Segundo essa versão, Geraldo saberia que
não seria a criação de um Ministério da Economia que resolveria o problema do Brasil, que
não seria por causa disso que “agora tudo vai ficar barato” e que “graças a Deus não vou
comer mais gato”, daí a ironia. Seja qual foi a intenção do compositor, o fato é que a música
é um dos melhores sambas de Geraldo Pereira e continua atualíssima no nosso contexto
político.155
“Seu presidente Sua excelência mostrou que é de fato Agora tudo vai ficar barato Agora o pobre já pode comer Seu presidente Pois era isso que o povo queria O ministério da Economia Parece que vai resolver Seu presidente Graças a Deus não vou comer mais gato Carne de vaca no açougue é mato Com meu amor eu já posso viver Eu vou buscar A minha nega pra morar comigo Porque já vi que não há mais perigo Ela de fome já não vai morrer. A vida estava tão difícil Que eu mandei a minha nega bacana Meter ‘os peitos’ na cozinha da madame Em Copacabana Agora vou buscar a nega Porque gosto dela pra cachorro Os gatos é que vão dar Gargalhada de alegria lá no morro”.
Com esta composição de Geraldo Pereira é possível perceber o conflito de classes
existente no Brasil naquela década. As condições de vida da classe trabalhadora haviam se
agravado e o povo com a eleição de Getúlio Vargas depositava grande esperança que tudo
viesse a melhorar.
154 Década de 50: quando a felicidade parecia bater às portas do Brasil. p.4. Disponível em: http://decadade50.blogspot.com/2006/08/geraldo-pereira-x-madame-sat-encontro.html. Acesso em: 18/11/2007. 155 Década de 50: quando a felicidade parecia bater às portas do Brasil. p.4. Disponível em: http://decadade50.blogspot.com/2006/08/geraldo-pereira-x-madame-sat-encontro.html. Acesso em: 18/11/2007.
59
Também podemos observar com esta música de Geraldo Pereira que os sambistas
para conseguir gravar suas composições escreviam em suas letras palavras que diziam
uma coisa, mas que na verdade continham outro significado, conseguindo com isso driblar a
censura da época.
Também segundo Matos, os compositores da época demonstram com suas músicas
a contraposição em que viviam homens e mulheres. Entre as representações do público e
do privado, valorizam-se os pontos de encontro para beber, trocar prosa, se enamorar e
compor. São territórios de solidariedade boêmia, em particular masculina.156
Nos espaços, e com eles, delineiam-se as funções e estabelecem-se relações entre
os gêneros. A casa, além de ambiente do “repouso do guerreiro” que passa a noite na
boêmia, é onde o homem deve ser companheiro dedicado e constante, arrimo da família,
trabalhador esforçado, provedor do sustento para a mulher.157
A noite é território do prazer e também da perdição. Por trás de certa positividade,
percebem-se aí conotações negativas de perigo, indiferença, circulação, enquanto o privado
representa o refúgio seguro, o domínio da natureza embora seja considerado local da
mulher e, portanto, da falsidade.158
156 MATOS, p. 46. 157 MATOS, p. 50. 158 MATOS, p. 51.
60
CONCLUSÃO
No Brasil, no período abrangido por este trabalho, as artes, incluindo a música, foram
muito visadas, pois o governo sempre se utilizou das atividades artísticas para influenciar a
população. Os músicos nacionalistas liderados por Villa-Lobos consolidaram um projeto em
prol da catequese do povo brasileiro, pois para ele a música era capaz de transformar a
mentalidade dos homens.
A Constituição de 1937 acabou por instituir a censura prévia para o cinema,
imprensa, teatro, música e rádio, atendendo a uma antiga reivindicação dos músicos
nacionalista, conforme projetos e sugestões apresentados ao governo, logo após outubro de
1930. O objetivo da censura era o de manter a moral, os bons costumes e a ordem,
defendendo a juventude da veiculação de possíveis maus exemplos contidos, explícita ou
implicitamente, nas músicas populares, nas peças de teatro, nas novelas radiofônicas, ou,
ainda, nos filmes.
Com relação à influência da censura, Arnaldo Contier159 menciona que o Estado, por
meio do DIP, somente censurou letras de músicas populares consideradas ofensivas à
moral e aos bons costumes ou que pudessem incutir, nos jovens, ideais ligados à
malandragem, incompatíveis com a ideologia estadonovista.160 Além disso, como
instrumento de disciplina da sociedade, Contier161 cita que Getúlio Vargas, em seu governo,
jamais deixou de perceber a importância que a música poderia assumir como via de acesso
ao imaginário popular.
Neste trabalho, que teve por objetivo específico investigar a influência da censura na
música, a partir da produção dos compositores Ataulfo Alves e Geraldo Pereira, podemos
afirmar, inicialmente, que as letras das músicas compostas por Ataulfo e interpretadas por
diversos cantores antes do Estado Novo (1937-1945) não apresentam relacionamento com
a boemia, malandragem ou apologia ao não trabalho. É importante ressaltar que Geraldo
Pereira só começou a compor em 1940, período já contemplado pelo Estado Novo.
Identificamos, no entanto, transformações nas representações presentes nas
músicas compostas e interpretadas pelos dois compositores no período abrangido pelo
Estado Novo, sendo perceptível duas situações distintas: a primeira, antes da criação do
DIP, em dezembro de 1939, os temas das músicas são quase que em sua totalidade
voltados ao sentimento amoroso; a segunda situação, bastante clara, é a apologia ao
trabalho, à regeneração do malandro e o abandono à boemia. Isto demonstra que os
159 CONTIER, p. 325. 160 CONTIER, p. 338. 161 VICENTE, p. 7.
61
compositores deixavam-se seduzir pelos argumentos da censura, para continuar gravando
suas canções.
Outra mudança observada nas letras das músicas antes, durante e depois do Estado
Novo, é que antes as letras remetiam a dor por um amor perdido, a traição de uma mulher, a
solidão do homem ao ser abandonado, a mulher que recorre a poderes sobrenaturais para
que o homem ficasse com ela, demonstrando com isso a diferença evidente entre o homem
e a mulher dentro daquela sociedade. O homem era o provedor, o único responsável pela
família, enquanto a mulher deveria somente ficar em casa cumprindo os deveres de dona de
casa, mãe, esposa, enfim, sendo uma mulher submissa, demonstrando o poder que o
homem tinha na sociedade da época.
Já durante o Estado Novo, permaneceu nas letras das músicas dos dois
compositores temas que remetiam a jogos amorosos, mas também se destacam as letras
que exaltavam o trabalho, a regeneração do malandro e ao abandono à boemia,
demonstrando com isso que os compositores precisavam se enquadrar ao que o governo
Vargas lhes “sugeria”.
Após o Estado Novo é perceptível a mudança nas letras das canções de Ataulfo
Alves e Geraldo Pereira, pois os dois compositores alteraram visivelmente seus pontos de
vista. Antes exaltavam o governo, agora faziam músicas onde voltavam a exaltar a boemia,
a malandragem e o não trabalho, demonstrando com isso que nunca alteraram seus pontos
de vista à respeito desse assunto, somente se deixaram levar pelas imposições da censura
para continuar gravando suas músicas.
Como homens de seu tempo, os compositores analisados encontraram um
mecanismo para driblar a censura e continuar gravando suas canções. Precisavam manter-
se no mercado de trabalho, por isso faziam-se de regenerados, compondo sambas
exaltando o trabalho, a família e o casamento e assim continuavam trabalhando e fazendo
sucesso, apesar da rigorosa censura da época.
62
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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