SAQUET, Marcos Aurélio - Territorialidade e Identidade

TERRITORIALIDADE E IDENTIDADE: UM PATRIMNIO NO DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL

Marcos Aurelio SAQUET1

Michele BRISKIEVICZ2 Resumo: Neste texto, apresentamos alguns resultados obtidos at ento em pesquisas feitas no mbito do Grupo de Estudos Territoriais Unioeste, Campus de Francisco Beltro (PR). Trabalhamos com trs conceitos fundamentais: territrio, territorialidade e identidade, a fim de orientar pesquisas sobre estes temas e a elaborao de projetos de desenvolvimento territorial que visam preservar e valorizar a identidade simblico-cultural de certo lugar. Utilizar o conceito de desenvolvimento territorial requer clareza sobre os significados destes conceitos e sobre os componentes do territrio como processo social, especialmente, neste caso, compreendendo a identidade como um patrimnio da humanidade. Destacamos uma reflexo conceitual identificando empiricamente elementos identitrios e culturais. Palavras-chave: identidade; territrio; territorialidade; desenvolvimento.

TERRITORIALIDAD E IDENTIDAD: UN PATRIMONIO EN EL DESARROLLO TERRITORIAL

Resumen: En este texto, presentamos algunos resultados obtenidos hasta el momento en investigaciones hechas en el mbito del Grupo de Estudos Territoriais Unioeste, Campus de Francisco Beltro (PR). Trabajamos con tres conceptos fundamentales: territorio, territorialidad e identidad, a fin de orientar investigaciones sobre estos temas y elaborar proyectos de desarrollo territorial que busquen preservar y valorar la identidad simblico-cultural de cierto lugar. Utilizar el concepto de desarrollo territorial requiere claridad sobre los significados de estos conceptos y sobre los componentes del territorio como proceso social, especialmente, en este caso, comprendiendo la identidad como un patrimonio de la humanidad. Destacamos una reflexin conceptual, con la identificacin emprica de elementos de la identidad e culturales. Palabras-clave: identidad; territorio; territorialidad; desarrollo. Apresentao

Este texto contm alguns resultados obtidos atravs do projeto de pesquisa intitulado

Sobre os conceitos de territrio e territorialidade: abordagens e concepes, em andamento desde 2006.

Atualmente, contamos com financiamento do Cnpq e da Fundao Araucria (Edital Jovens

Pesquisadores 2006), envolvendo professores e discentes da graduao e da ps-graduao no

mbito do Grupo de Estudos Territoriais (Geterr). Este grupo est vinculado a Unioeste e

cadastrado no Diretrio de Grupos de Pesquisa do Cnpq. Ao mesmo tempo, temos uma frente

de estudos sobre a formao territorial do Sudoeste do Paran, evidenciando aspectos

fundamentais da modernizao da agricultura, da criao de parques industriais, da agricultura

familiar, do crescimento dos equipamentos urbanos em algumas cidades, das migraes e dos

processos identitrios.

1 Colegiado de Geografia UNIOESTE, Campus de Francisco Beltro (PR). Pesquisador do CNPq. E-mail: [email protected] 2 Bolsista do PIBIC-UNIOESTE-CNPq. E-mail: [email protected]

Caderno Prudentino de Geografia, n31, vol.1, 2009.

SAQUET, M. A.; BRISKIEVICZ, M. Territorialidade e identidade (...) p. 3 a 16 4

As atividades da pesquisa so feitas no laboratrio de pesquisas do Geterr Unioeste,

Campus de Francisco Beltro (PR). Para atingir os objetivos de nossas pesquisas, temos feito

pesquisa bibliogrfica, fichamentos, colquios internos ao Geterr, coleta de dados secundrios

(IBGE e IPARDES) e coleta de dados primrios, em prefeituras municipais, na EMATER, em

livros de registros de casamentos de parquias do Sudoeste do Paran e atravs da realizao de

entrevistas. Os dados coletados esto sendo atentamente tabulados e analisados, para posterior

representao cartogrfica no que se refere aos temas especficos do Sudoeste do Paran.

Neste texto, reunimos alguns resultados obtidos at o momento, especialmente sobre os

conceitos de territrio, territorialidade, identidade e acerca de traos simblicos e identitrios que

caracterizam alguns lugares e que podem ser potencializados atravs de estratgias de

desenvolvimento territorial. Adjetivar o conceito de desenvolvimento, to caro para ns

gegrafos e outros pesquisadores de cincias sociais, requer, evidentemente, clareza sobre os

significados do conceito de territrio. Como este conceito ambguo e tem uma amplitude

considervel, sua conjugao ao conceito de desenvolvimento confere maior complexidade

temtica e exige muito cuidado e rigor cientfico por parte do pesquisador e de outros atores

interessados neste debate to em voga atualmente no Brasil e noutros pases.

Antes de tudo, necessrio ter clareza das principais concepes de territrio e

territorialidade e de seus elementos constituintes, como orientao terico-conceitual, importante

nos processos de pesquisa e na elaborao de projetos de desenvolvimento territorial. A opo

por esta ou aquela compreenso de territrio e territorialidade vai direcionar esta ou aquela

postura diante do desenvolvimento, dos atores de cada lugar e da gerao dos projetos e

programas.

Conforme demonstramos a seguir, para ns, o territrio compreende quatro

componentes principais: a) as relaes de poder; b) as redes de circulao e comunicao; c) as

identidades; d) a natureza. No h territrio sem a conjugao destes processos sociais e naturais.

Isto significa que, pensar o desenvolvimento por esta perspectiva, requer a considerao destes

elementos em cada territrio. No entanto, em virtude da amplitude da temtica, neste texto,

evidenciamos a identidade como processo histrico, relacional e patrimnio que pode ser

potencializado atravs de projetos alternativos de desenvolvimento.

Territrio, territorialidade e identidade

Alguns autores focalizam o territrio a partir da sua natureza poltica vinculada s

concepes de Estado e fronteira, como fez Friedrich Ratzel na segunda metade do sculo XIX,

entendendo o territrio como um fundamento para o incremento da potncia e da solidez de

cada Estado-nao. uma abordagem conservadora e eminentemente areal de geografia e do



territrio. Uma concepo similar, identificamos na obra recente de Badie (1996/1995),

compreendendo o territrio como espao essencial para cada Estado que busca estabilidade em

nvel internacional. Autor que elabora uma abordagem essencialmente geopoltica, histrica e

areal do territrio.

Numa concepo similar, tambm na Frana, Paul Allis focaliza a definio de territrio

numa perspectiva jurdico-poltica e identifica trs escolas de tratamento terico do territrio como

categoria jurdica: a) a do territrio-objeto; b) a do territrio-sujeito e, c) a do territrio-funo. No

territrio como objeto do Estado, o territrio considerado o objeto de um direito especial de

soberania, assimilvel a um direito real do Estado sobre o solo nacional, distinto do poder deste

sobre as pessoas (Apud HAESBAERT, 1997, p.35). No territrio como sujeito do Estado, o

territrio um dos elementos constitutivos do Estado, o modo de existncia do Estado no

espao (Idem, p.12). J o territrio como funo do Estado corresponde a um espao utilizado

como meio (mediador) de ao do Estado.

Noutra escola, anglo-saxnica, o gegrafo Robert Sack define o territrio como rea de

influncia de uma autoridade ou de um grupo de atores sociais que controlam as coisas e as

pessoas. A territorialidade, nesse sentido, corresponde tentativa de um grupo ou um indivduo

de influenciar ou controlar outras pessoas e fenmenos. O controle ocorre numa determinada

rea delimitada por cada grupo social dominante. Essa territorialidade cumpriria, ao mesmo

tempo, os papis de classificao, comunicao e aprisionamento ou controle. O territrio, desta

maneira, um espao utilizado para conter, restringir ou excluir pessoas, objetos ou

relacionamentos.

Na Sua, Claude Raffestin, desde os anos 1970, constri uma argumentao em favor de

uma concepo multidimensional de territrio e da noo de territorialidade, diferente da de

Robert Sack e da de B. Badie. O territrio e a territorialidade ocorrem atravs da atuao do

Estado, porm, acontecem tambm atravs de outras aes sociais, efetivadas por empresrios,

organizaes polticas e indivduos. uma concepo que consideramos renovada, histrica,

crtica e eminentemente reticular, inspirando compreenses que podem orientar o

redimensionamento de relaes de poder e a elaborao de projetos de desenvolvimento que

valorizem as identidades simblico-culturais. Por isto, central para nossa pesquisa e

retomaremos mais adiante.

No Brasil, segundo Haesbaert (1997), a distino entre territrio como instrumento do

poder poltico e espao de identidade cultural, instrumento de um grupo cultural e/ou religioso,

fundamental e precisa, por isso, ser melhor trabalhada. H, a, uma conjugao entre processos

simblico-culturais e poltico-administrativos, com apropriao e controle.

Rogrio Haesbaert, didaticamente, identifica diferentes abordagens conceituais de

territrio em trs vertentes, que so as seguintes: a) a jurdico-poltica, na qual o territrio visto



como um espao delimitado e controlado sobre o qual se exerce um determinado poder,

especialmente o de carter estatal (1997, p.39); b) a culturalista que prioriza sua dimenso

simblica e mais subjetiva, o territrio visto fundamentalmente como produto da apropriao

feita atravs do imaginrio e/ou da identidade social sobre o espao (Idem, p.39); c) a ltima a

vertente econmica, minoritria que destaca a des-territorializao em sua perspectiva material,

concreta, como produto espacial do encontro entre classes sociais e da relao capital-trabalho

(Ibid, p.40).

Para Rogrio Haesbaert, o territrio precisa ser compreendido numa perspectiva

integradora, ou seja, como um domnio politicamente estruturado e tambm como apropriao

simblica, identitria inerente a certa classe social. H uma conjugao, nessa concepo, entre os

processos polticos e culturais como principais definidores de cada territrio. O territrio

envolve, ao mesmo tempo, mesmo em diferentes graus de correspondncia e intensidade, uma

dimenso simblica, cultural, atravs de uma identidade atribuda pelos grupos sociais ao espao

onde vivem, e uma dimenso mais concreta, de carter poltico-disciplinar, de controle do espao

como forma de domnio dos indivduos. Rogrio Haesbaert, na sua elaborao intelectual,

prioriza o carter poltico-cultural no estudo do territrio e da prpria identidade.

Conforme Haesbaert (1997), como a identidade territorial intercalada por vrias outras e

seu contedo simblico pode, s vezes, mudar rapidamente no tempo, ela nunca pode ser vista

como unitria. As alteridades sempre adquirem carter defensivo, transformando-se em marginais

ao sistema dominante, adotando definies exclusivistas de suas identidades, separando uns dos

outros dependendo de cada situao histrica. H um processo de relaes de alteridade e

exterioridade, que diferenciam e identificam as pessoas e os lugares.

Os smbolos que compem uma identidade no so construes totalmente eventuais;

mantm sempre determinados vnculos com a realidade concreta. Os vrios conflitos pela defesa

de fronteiras, por exemplo, demonstram que as referncias espaciais permanecem relevantes para

a definio ou fortalecimento de identidades. A prpria memria (coletiva) de um grupo social

precisa de uma referncia territorial.

O poder simblico, desta maneira, pode fazer uso de elementos espaciais, representaes e

smbolos, constituindo uma identidade territorial. Esta definida historicamente. Os territrios e

as fronteiras so fundamentais para a construo das identidades, onde a alteridade fica muitas

vezes condicionada a um determinado limite fsico de reproduo dos grupos sociais. Para

Rogrio Haesbaert, no propriamente o espao que forma uma identidade, mas a fora poltica

e cultural dos grupos sociais que nele se reproduzem e sua capacidade de produzir uma

determinada escala de identidade, territorialmente mediada.

Conforme Haesbaert (1997), possvel admitir que existem identidades somente se

partimos da concepo de espao produzido, de territorializao como um processo de reproduo



social que incorpora uma dimenso concreta e simblica, inventada e manipulada pelos interesses

de grupos econmicos e polticos que conseguem tornar mais eficazes esses smbolos em suas

estratgias de controle e acumulao. O territrio constitudo de redes: vrios territrios tm o

controle e a identidade internos garantidos pelas redes hierrquicas ou complementares.

J Woodward (2000) afirma que as identidades possuem sentido por meio da linguagem

e dos sistemas simblicos pelos quais so representadas. Este autor revela que a identidade

relacional e marcada pela diferena que, por sua vez, envolve a excluso. Tambm h smbolos

entre a identidade das pessoas e as coisas que elas usam, ou seja, a construo da identidade

simblica e social.

As identidades nacionais so especficas e esto localizadas em algum ponto do tempo

atravs de antecedentes histricos. Os povos tentam reafirmar as suas identidades que foram, de

alguma forma, perdidas, podendo estar produzindo outras identidades. Assim, a redescoberta do

passado faz parte do processo de construo da identidade de certo grupo social.

Conforme este mesmo autor, atravs dos smbolos que se d sentido s prticas e s

relaes sociais; por meio da diferenciao social que a classificao das diferenas vivida nas

relaes sociais e o sistema classificatrio mostra como as relaes sociais so organizadas e

divididas. A identidade pode ter um carter mais ou menos duradouro, dependendo das

condies de vida de cada grupo social. Os movimentos tnicos ou religiosos, por exemplo,

freqentemente reivindicam smbolos ou aspectos de sua histria comum para o fundamento de

sua identidade. J nas grandes cidades h, cotidianamente, a incorporao de novos smbolos e

signos culturais, polticos e econmicos.

De maneira geral, segundo Woodward (2000), a cultura molda a identidade ao dar

sentido experincia e s escolhas identitrias. Os sistemas simblicos fornecem novas formas

para dar sentido experincia das desigualdades sociais, marcando o encontro de nosso passado

com as relaes sociais, culturais e econmicas nas quais vivemos os dias atuais. A contestao no

presente busca justificar a criao de identidades nacionais evocando origens, mitologias e

fronteiras do passado. Os conflitos geralmente esto concentrados nas fronteiras onde a

identidade nacional questionada.

Woodward tambm indica, a partir da abordagem de Stuart Hall, que existem duas

formas diferentes de identidades culturais. Uma ocorre quando determinada comunidade busca

recuperar o seu passado histrico e uma cultura partilhada que pode ser representada reafirmando

a identidade. A outra concepo aquela baseada no reconhecimento entre os indivduos e nas

suas reivindicaes comuns. Os processos histricos sustentam a fixao de certas identidades e a

gerao de novas identidades.

importante notar, ainda, que a identidade depende da diferena e as diferenas so

estabelecidas por sistemas classificatrios inerentes vida social. Desta maneira, definem-se



certas fronteiras entre os diferentes grupos sociais, que se distinguem por processos histricos e

culturais.

Por fim, cabe ainda destacar que, em Saquet (2003/2001), elaboramos uma abordagem

histrica, relacional e multidimensional do territrio, da territorialidade e da identidade,

eminentemente material mas considerando a correlao de unidade objetividade-subjetividade. A

partir dessa concepo, estamos compreendendo a noo de territorialidade como um processo

de relaes sociais, tanto econmicas, como polticas e culturais de um indivduo ou de um grupo

social. A territorialidade corresponde s relaes sociais e s atividades dirias que os homens tm

com sua natureza exterior. o resultado do processo de produo de cada territrio, sendo

fundamental para a construo da identidade e para a reorganizao da vida quotidiana. Isso

significa dizer que entendemos a identidade de maneira hbrida, isto , como processo relacional e

histrico, efetivado tanto cultural como econmica e politicamente. A identidade construda

pelas mltiplas relaes-territorialidades que estabelecemos todos os dias e isso envolve,

necessariamente, as obras materiais e imateriais que produzimos, como os templos, as canes, as

crenas, os rituais, os valores, as casas, as ruas etc.

Essa concepo pode ser ratificada e mesmo ampliada por recente produo intelectual

de Claude Raffestin (2003). Para este autor, a identidade no somente um estado, mas tambm e,

sobretudo, (...) um processo de tornar-se similar no interior de uma rea territorial, com mesmas

imagens, dolos, normas. (...) Um processo dinmico de identificao que se faa reconhecer ao

outro (p.4). A identidade construda, desconstruda e reconstruda com o passar do tempo, no

mesmo ou em lugares diferentes, como ocorre atravs das migraes.

Os homens, atravs de seus gestos, necessidades e aprendizagens produzem e renovam

suas identidades. H uma sucesso de identidades. Aquelas que se cancelam e se desagregam, deixam

traos materiais e imateriais. Em Pato Branco/PR, por exemplo, identificamos algumas prticas

culturais e identitrias que so reproduzidas por descendentes de poloneses, como alguns pratos

tpicos: czarnina (sopa de sangue de pato), pierogi (pastel de requeijo), chrusciki (cala virada ou

tambm conhecida como ceroula, lngua de sogra), placek (cuca), bigos (repolho com costelinha

defumada), pierniczki drobne (docinhos de natal), zupa grochowa (sopa de ervilha seca),

szarlotka-placekz (bolo de ma), babka makowa (bolo de papoula), serniK (torta de requeijo)

etc.. Algumas famlias tambm mantm a cultura do pisanki, que a pintura de ovos, tradio

marcante na comemorao da pscoa. Os ovos so cozidos e recebem o nome da pessoa que ir

receb-los alm de estrelas, cruzes, sol, galos e outros smbolos que transmitem os desejos de

riqueza, boa sade, amor, caridade, fertilidade e longa vida. So smbolos e crenas, valores

identitrios que se constituem num patrimnio.

Essa apenas uma ilustrao, pois existem muitas outras dos descendentes de alemes,

dos caboclos, dos negros, dos descendentes de japoneses, portugueses... juntamente com a



incorporao quotidiana de novos hbitos e elementos, como o uso da tv, da antena parablica,

de alimentos fast food etc..

Conforme Raffestin (2003), a identidade e as imagens antecedem a formao de cada

territrio, a territorializao. So aes sociais histricas que so reproduzidas por cada gerao.

Porm, as imagens identitrias e as territoriais se relacionam, conforme a linguagem disponvel (para as

diferentes sociedades). Isto significa que presente e passado se condicionam mutuamente, como

afirmamos e demonstramos em Saquet (2003/2001).

Vale notar, ainda, a proposio de Claude Raffestin para identificar os territrios

formados com os processos culturais, identitrios e outros aspectos da vida cotidiana, como

segue:

a) O territrio do cotidiano: o territrio atual, de todos os dias, no qual se garante a

satisfao das necessidades. caracterizado mais pelas descontinuidades e, por isso, pode ser

considerado um arquiplago de lugares isolados uns dos outros. O territrio do cotidiano , ao

mesmo tempo, aquele da tenso e da distenso, aquele de uma territorialidade imediata, banal e

original [...], previsvel e imprevisvel [...], territrio dos fatos de crnica [...]. (RAFFESTIN,

2003, p.6-7).

b) O territrio das trocas: h uma articulao entre o regional, nacional e internacional

atravs da circulao de mercadorias. O territrio aberto e fludo e est em constante

movimento de mudanas.

c) O territrio de referncia: material e imaterial; histrico e imaginrio, subjetivo (memria

individual e/ou coletiva). O territrio de referncia justamente aquele dos antecedentes

(Idem, p.7). No o territrio que se habita, mas aquele que se habitou ou se conhece atravs de

leituras e da memria. So imagens que nutrem a identidade atual.

d) O territrio sagrado: est ligado religio e poltica, como ocorre em Jerusalm e

Roma. Nas festas e cerimnias tambm se efetivam sacralidades, territorialidades, rituais que

caracterizam traos identitrios.

Entre esses territrios, h interfaces e sobreposies em virtude da complexidade de

relaes que efetivamos todos os dias, ou seja, das mltiplas atividades e territorialidades, de

maneira similar ao que demonstramos e propugnamos em Saquet (2003/2001 e 2002). As

territorialidades geram as identidades que, por sua vez, influenciam nas prprias territorialidades e

na formao dos territrios e seus patrimnios.

Podemos lembrar, nesse sentido, de cristalizaes histricas seculares e identitrias

ocorridas, por exemplo, na Itlia: Orvieto (artesanato), Bardolino (vinhos), Florena (artes),

Parma (queijos e presuntos), SantAngelo in Vado (artesanato), Marstica (praa com a parte

central desenhada na forma de um tabuleiro de xadrez), Bassano (castelos, vinhos), entre tantos

outros que poderamos citar, no somente da Itlia, mas tambm da Espanha, Alemanha, Frana,



Brasil, Sua etc.. So todas atividades, processos e aes historicamente institudas formando os

lugares, as identidades, enfim, o que estamos denominando, juntamente com Magnaghi (2000), de

patrimnio territorial. So permanncias significativas que marcam cada lugar.

Sucintamente, territrio, territorialidade e identidade esto em complementaridade.

Independente da concepo predominante, a identidade relacional e histrica. Na abordagem

cultural h centralidade para a coexistncia e para a unidade das relaes sociais; na abordagem

que denominamos de (i)material, alm deste aspecto, o carter histrico tambm assume

centralidade envolvendo elementos e processos culturais, econmicos e polticos.

Desterritorializao, reterritorializao e identidade

A identidade tambm ocorre no processo de migraes e outras transformaes

territoriais, ou seja, ela tambm se efetiva quando acontecem mudanas sociais que podemos

resumir na desterritorializao e na reterritorializao. Nestes dois processos h interligao e

complementaridade, conforme verificamos estudando a migrao italiana no Rio Grande do Sul e

a colonizao gacha no Sudoeste do Paran. H, sucintamente, mesmo com as mudanas sociais

no mesmo ou entre lugares diferentes, elementos que se reproduzem criando novas

territorialidades e identidades atravs da incorporao de novos elementos sociais.

Um autor que nos orienta a pensar dessa forma Claude Raffestin, j citado, que se

dedicou a estudar o conceito de territrio e a correlao territorializao-desterritorializao-

reterritorializao (T-D-R). Para esse autor, em Por uma geografia do poder, o territrio corresponde a

um reordenamento do espao, no qual existe um sistema informacional utilizado pelo homem

enquanto pertencente a uma cultura. No territrio h informao e comunicao que comandam

nos nossos dias e as relaes sociais do processo de T-D-R.

A ttulo de demonstrao, destacamos alguns aspectos da identidade italiana na Colnia

Silveira Martins, iniciada em 1878 nas proximidades de Santa Maria/RS. Nesta colnia agrcola,

os italianos reproduzem elementos e caractersticas de seu modo de vida imediatamente anterior,

o que apresentamos em Saquet (2003/2001). Aqui, resumimos no que segue:

a) Produtos agrcolas: milho, trigo, arroz, aveia, cevada, uva etc.; artesanais: fabricao

de vinho, serrarias, sapatarias, moinhos, ferrarias, entre outras; atividades comerciais:

alguns italianos que migraram j haviam exercido o papel de negociantes,

intermediando relaes de compra e venda. Assim, criam os primeiros

estabelecimentos mercantis (chamados de vendas) em Silveira Martins, Nova Palma e

Ivor.



b) Elementos da vida cultural: alimentao (polenta, massas, vinhos, salame, queijos...),

objetos da vida diria (como mesas, cristaleiras... especficas), prticas religiosas

ligadas ao catolicismo (igrejas/templos, santos, capitis, canes, festas etc.), os

dialetos (vneto e friulano, principalmente). Criaram, dessa forma, as chamadas

linhas, como Vale Vneto, Val Verons, Novo Treviso, Val Feltrina, Nova dine,

Val de Bia, lembrando e homenageando alguns dos lugares de origem de muitas

famlias.

c) Formaram associaes de ajuda mtua (desde a dcada de 1880) e pequenas

cooperativas para comercializao da produo agrcola, entre outras iniciativas

polticas, culturais e econmicas.

Eles substantivaram territrios culturais, identitrios; polticos, de mando e dominao;

econmicos, de apropriao e controle na ciranda mercantil. Territrios sobrepostos e ligados.

Um territrio articulado a outros territrios, atravs de redes que tambm so polticas,

econmicas e culturais. Ao mesmo tempo, na reterritorializao, reconstruram suas identidades.

As chamadas linhas estiveram na base da apropriao e produo territorial inicial. A

sede da colnia era o centro administrativo e comercial, mas foi na prpria LINHA que os

imigrantes organizaram sua vida religiosa e social, segundo o modelo de seus vilarejos natais. A

mata virgem e a falta de estradas dificultavam o contato com outras LINHAS e com outras

sociedades (MANFROI, 1975, p.116). A formao de grupos ou associaes foi uma reao

diante da pobreza e do abandono, centrada na religio catlica e nas razes italianas.

Em cada ncleo (Ivor, Nova Palma, Novo Treviso, Vale Vneto e Arroio Grande) e

mesmo nas principais linhas da Colnia Silveira Martins, substantivaram-se territrios sobrepostos

sob o comando dos comerciantes, principalmente, e a partir das diferenas culturais, presentes

em decorrncia da diversidade das provncias de origem, em que a produo artesanal assumiu

um papel complementar na economia local e menos dinmico, mas de vital importncia,

principalmente at a dcada de 1920, pois supria parte da demanda local.

A religiosidade, juntamente com o trabalho, teve centralidade na reterritorializao, como

territorialidade e componente da identidade italiana. Nos primeiros anos de apropriao e

colonizao, j edificaram capelas e igrejas; as casas de madeira e/ou pedra grs, a venda, as clareiras na

mata nativa para fazer os cultivos agrcolas, atividades ligadas reproduo biolgica e social dos

migrantes. Organizam o territrio, aos poucos, ao seu modo, com base em seus saberes e

experincias reproduzidos em relao forma de vida que tinham no norte da Itlia at o momento

da emigrao para a Amrica.

Detalhando nosso olhar, verificamos que, conforme dados que divulgamos em Saquet

(2003/2001), do total de 1.412 famlias proprietrias (entre 1878 e 1891) nas vilas e/ou no espao



agrrio da Colnia Silveira Martins, 88,3% eram italianas, 7,7% brasileiras, 3,6% alems, 0,3%

francesas e 0,1% suas. Das famlias italianas, identificamos as respectivas provncias em 1.208

delas e predominam as que vieram das provncias de Treviso com 28,6% (346 famlias), Vicenza

com 19,5% (235), dine com 11% (134), Verona com 8,5% (103), Belluno com 6,8% (82),

Trento com 6,4% (77), Pdova com 5,5% (66) e Mntova com 4% (50). Isso significa um

predomnio, na Colnia Silveira Martins, das famlias oriundas das regies do Vneto (70%), do

Friuli-Venezia Giulia (14,4%), Trentino-Alto Adige (6,5%) e da Lombardia (5%). desses lugares

que os italianos trouxeram, para o Brasil, conhecimentos e experincias, desejos, instrumentos de

trabalho, smbolos e signos culturais, que tentaram reproduzir no Rio Grande do Sul e noutros

lugares, atravs da migrao de seus descendentes.

No Oeste de Santa Catarina e no Sudoeste do Paran, por exemplo, conseguimos

identificar traos importantes da reproduo cultural e identitria dos migrantes gachos

descendentes de alemes e italianos, juntamente com caractersticas dos descendentes de

poloneses mencionados anteriormente, como segue: a) muitas famlias falam alguns dialetos,

principalmente os descendentes de alemes; b) alimentao: o que mais se destaca, acima de

tudo, entre os descendentes de italianos: polenta, salames, vinhos...; c) msicas; d) danas (atravs

de grupos com professores especficos para tal); e) religio catlica e protestante; f) leitura de

livros e revistas; g) experincias associativas/cooperativas; h) algumas prticas agrcolas (videiras);

i) ideologia do trabalho; j) produo artesanal: queijos, salames, massas, serrarias, vinhos,

moinhos, ferrarias etc.. So componentes e processos identitrios reproduzidos como um

patrimnio centrado na religiosidade e no trabalho, sem considerar, geralmente, o carter

exploratrio e de submisso envolvido na atuao das igrejas e concretizado nas relaes de

trabalho.

Contraditoriamente, identificamos mudanas profundas na vida desses migrantes,

principalmente em razo de trs processos correlatos ocorridos a partir dos anos 1970-80: a) o

processo de industrializao em alguns municpios do Oeste de Santa Catarina, como Chapec, e

do Sudoeste do Paran, como Francisco Beltro e Pato Branco; b) urbanizao; c) modernizao

da agricultura. H uma complexidade social sempre mais intensa, que transforma e subordina

elementos e relaes ditas tradicionais vida mais individualizada, veloz e heterognea do mundo

moderno.

No entanto, as atividades reproduzidas so vrias. Recentemente tambm estudamos a

produo artesanal de alimentos em alguns municpios do Sudoeste do Paran (que

denominamos de agroindstrias familiares), tais como Coronel Vivida, Francisco Beltro e

Planalto. Em Francisco Beltro, por exemplo, h uma produo considervel de leite

pasteurizado, acar mascavo, melado de cana, queijos, salames, pes, cucas, doces, bolachas,



mel, frangos e aguardente. Em trabalho de campo realizado em 10 unidades produtivas,

constatamos alguns aspectos centrais desse tipo de produo: a) so, no geral, pequenos pedaos

de terras (no caso dos estabelecimentos rurais estudados o tamanho mdio de 16 hectares); b)

algumas unidades so recentes, porm, muitas remontam ao perodo de maior intensidade da

colonizao efetiva realizada entre 1943 e 1970; c) dos 10 entrevistados, 8 so oriundos do Rio

Grande do Sul, Santa Catarina e da Alemanha, todos descendentes de alemes, italianos ou

poloneses.

E esse um trao fundamental, como mencionamos anteriormente, pois os migrantes e

colonizadores do Sudoeste do Paran, a partir dos anos 1940, eram provenientes, na maioria, do

Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, descendentes dos imigrantes europeus que ocuparam

efetivamente aqueles estados a partir de 1824, marco do incio da imigrao alem no Sul do

Brasil. Esses migrantes reproduziram traos fundamentais de suas vidas cotidianas, tanto na

produo agropecuria como na cultura e na organizao poltica, determinando formas e

contedos bem especficos na formao do Sudoeste do Paran.

Em Francisco Beltro (PR), a unidade produtiva familiar denominada Salames Reolon, de

propriedade (15 ha) de Adair Reolon, descendente de italianos cuja famlia migrou de Passo

Fundo/RS no incio da dcada de 1960 (EDUARDO, 2004), serve para ilustrar o que estamos

argumentando. Adair possui uma agroindstria familiar cuja atividade consiste em abater bovinos,

sunos e produzir salames. Eles aproveitam as potencialidades da propriedade efetuando a prtica

da piscicultura, criando sunos, cultivando soja e cana-de-acar, alm de outros produtos de

subsistncia, como mandioca e verduras.

Essa atividade produzia, em 2004, por ms, cerca de 1.000 kg de salames, 150 kg de

lingias, 200 kg de banha e 200 kg de costelinha de porco. A carne era adquirida no prprio

municpio e em Bom Sucesso do Sul (PR) e a produo era vendida em supermercados locais e

na feira livre de Francisco Beltro. Os instrumentos de trabalho eram de propriedade da famlia:

freezer, guincho eltrico, serra eltrica, cmara fria, tubo de embutir, moedor, alm de outros

utenslios domsticos utilizados no processo produtivo. Apesar de configurar uma produo

bastante simples e artesanal, Adair Reolon, ao ser entrevistado, comentou o alto custo e a

concorrncia de produtos industrializados, como elementos que dificultam a reproduo da

famlia com base nessa atividade.

De maneira mais geral, em Damo, Eduardo e Saquet (2005), identificamos as principais

dificuldades encontradas por pequenos produtores artesanais e familiares, nos municpios de

Planalto e Francisco Beltro, ambos do Sudoeste do Paran: a) a falta de incentivos financeiros e

fiscais para as atividades rurais de pequeno porte; b) o estado precrio de conservao das

estradas de acesso ao interior dos municpios; c) o alto ndice de clandestinidade existente, em

detrimento de quem fiscalizado pelos tcnicos das prefeituras municipais; d) ausncia ou



precariedade da assistncia tcnica prestada; e) a falta de orientao tcnica e cursos de formao

especficos para a produo familiar; f) as inmeras exigncias da vigilncia sanitria e a

demasiada burocracia existente; g) falta de conhecimento tcnico quanto manipulao das

matrias-primas e padronizao dos produtos. A maioria, de acordo com as entrevistas realizadas,

est com dificuldades para se reproduzir como produtores agrcolas e artesanais familiares. Muitas

so, no geral, pequenas unidades com tcnicas rudimentares, mercado limitado, debilidade na

gesto etc..

Esses so alguns limites efetivos encontrados pelos agricultores e artesos que

estudamos, impostos pela dinmica de reproduo do capital, juntamente com a falta de uma

poltica pblica mais clara e consistente para os agricultores familiares e com o desconhecimento

mais preciso da lgica de mercado, o que os remete a um processo de subordinao quando

comercializam a produo atravs dos intermedirios. Porm, como a abordagem territorial que

estamos apresentando e construindo exige uma postura poltica clara, necessrio, a partir do

exposto, um processo de pesquisa mais completo e o envolvimento direto dos pesquisadores em

projetos de desenvolvimento que valorizem as identidades e os demais componentes de cada

territrio num processo contnuo de conquistas sociais.

Alm disso, essa problemtica revela limites e contradies que fazem parte dos

processos identitrios. H um patrimnio construdo que precisa ser valorizado e pode ser

potencializado para o desenvolvimento territorial considerando a multidimensionalidade, ou seja,

os elementos culturais, econmicos, polticos e ambientais, como afirmamos anteriormente. E

isso fundamental como estratgia de desenvolvimento, mostrando e explicando os processos

degradantes e exploratrios e, ao mesmo tempo, subsidiando a definio participativa de projetos

e programas de desenvolvimento com mais justia social.

Consideraes finais

As identidades so produtos dos processos histricos e relacionais, ou seja, da formao

de cada territrio num contexto de relaes sociais com o ambiente externo vida em sociedade.

A identidade, desta maneira, configura-se num patrimnio territorial a ser preservado e

valorizado pelos atores envolvidos diretamente na sua constituio histrica e por outras pessoas

que podem viver esse patrimnio. O territrio, ento, envolve esse patrimnio identitrio: o

saber-fazer, as edificaes, os monumentos, os museus, os dialetos, as crenas, os arquivos

histricos, as relaes sociais das famlias, as empresas, as organizaes polticas... que pode ser

potencializado em projetos e programas desenvolvimento que visem sua preservao e

valorizao.



Territrio, territorialidade e identidade acontecem simultaneamente e, nesta concepo,

h um condicionamento mtuo tambm entre territrio-identidade-desenvolvimento.

Dependendo do carter do projeto de desenvolvimento, haver preservao ou no dos traos

identitrios e simblicos de cada territrio. Poder acontecer, tambm, uma conjugao entre

permanncias e mudanas, isto , entre identidades reproduzidas e novas identidades

incorporadas aos hbitos e comportamentos cotidianos de certo grupo social.

Compreender a identidade, desse jeito, significa, necessariamente, apreend-la num

contexto de formao histrica e como um componente do territrio, juntamente com outros

elementos fundamentais que evidenciamos anteriormente e que, juntos, constituem o patrimnio

de cada territrio e da humanidade no seu conjunto. Desenvolvimento territorial significa

considerar, tanto no nvel terico como no real, os componentes do territrio e da territorialidade

numa concepo renovada histrico-crtica e o desenvolvimento como processo histrico de luta

pela conquista de melhores condies de vida, seja no campo seja na cidade.

Concordamos, nesse aspecto, com a argumentao de Dematteis (2008), quando afirma

que organizao poltica dos atores em certo territrio considerada um recurso endgeno que as

polticas gerais de desenvolvimento devem conhecer, orientar e governar. Esse recurso precisa ser

analisado numa abordagem territorial comprometida com a transformao social, identificando-se

as territorialidades que podem ser potencializadas para a governana local interagida s instncias

regionais, nacionais e internacionais. necessrio, por esse raciocnio, ativar e orientar processos

de desenvolvimento silenciados historicamente.

A identidade, entre outros processos, corresponde a uma pr-condio subjetiva e

objetiva que, com estmulos oportunos e com aes de governana, pode contribuir para um

processo de desenvolvimento com certa autonomia para os atores de diferentes nveis sociais,

especialmente para os mais necessitados e desamparados pela ao do Estado em pases como o

Brasil.

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SAQUET, Marcos Aurélio - Territorialidade e Identidade