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Trabalho e Afetividade
Mulheres cuidadoras de pessoas idosas institucionalizadas: razão e sensibilidade no trabalho de cuidado
Analía Soria Batista
1. Introdução
Este trabalho não aborda a situação das pessoas nas Instituições de Longa
Permanência para Idosos – ILPI, tampouco aponta números que indiquem iniqüidades
nesses estabelecimentos responsáveis pelo cuidado dos mais velhos. Ele se debruça sobre
o trabalho das mulheres cuidadoras de pessoas idosas institucionalizadas, que tem como
pano de fundo a precarização atual da vida social, em específico, da família, da amizade,
dos casais, dos afetos1.
A sociologia contemporânea considera ser a “precarização” uma realidade para além
dos muros dos espaços da produção econômica propriamente dita, caracterizando relações
inscritas na vida social em geral. È nesse contexto que a precarização social surge como
experiência combinada de insegurança (das condições de vida, dos meios de subsistência),
incerteza (no que diz respeito à estabilidade presente e futura) e desproteção (do próprio
corpo, das pessoas, entre outros). Autores como BAUMAN (2001, 2004) e BECK (2006)
permitem refletir sobre o desmembramento da família nuclear e de todo o mito moderno em
torno dela: o amor perdurável, a estabilidade emocional, o projeto de vida em longo prazo e
a fidelidade, entre outros processos que ocorrem em paralelo à desarticulação do estado
social e à flexibilização da economia.
Na intimidade familiar, o cuidado das pessoas mais frágeis (crianças e idosos) tem
sido considerado a negação do trabalho. Esse conjunto de atividades, invisíveis e discretas
da perspectiva da coletividade e ao mesmo tempo experimentadas como proteção
naturalizada pelos membros do grupo familiar, só adquire a “dignidade” do trabalho no
momento em que a sua demanda registra aumento significativo, devido ao processo de
envelhecimento da população e à precarizaçã/o dos vínculos familiares que o acompanha,
situação que paulatinamente acena com a realidade da desproteção dos corpos e das
1 Para elaboração deste trabalho foram utilizadas informações produzidas (entrevistas, etnografias) no contexto de uma pesquisa mais abrangente, realizada em Instituições de Longa Permanência do Distrito Federal e de Goiás, junto a cuidadoras e pessoas idosas, durante os anos de 2007 e 2008.
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pessoas. Redes complexas de reciprocidades e solidariedades familiares expressas em
afetos e moralidades que incumbiam os mais jovens e entre eles, especificamente às
mulheres, para realização desses cuidados, propiciaram a invisibilidade histórica do cuidado
enquanto trabalho.
A precarização das afetividades, com destaque para processos como a inserção das
mulheres no trabalho e no emprego, as intimidades a distancia construídas pelos filhos a
procura de realização pessoal e profissional, as novas estruturas familiares no marco dos
sucessivos casamentos, o consumismo2entre outros, contribuiu para o relativo
desmantelamento do bem – estar invisível construído nos lares tradicionais, locais onde as
mulheres cuidavam dos familiares idosos e doentes.
O cuidado dos mais velhos era parte constitutiva do processo diacrônico e sincrônico
de produção das reciprocidades e solidariedades familiares. Sua precarização não significa,
simplesmente, uma ruptura na ordem das reciprocidades e solidariedades familiares, com a
desproteção dos corpos e das pessoas, isto é, que as filhas não cuidarão de seus pais, que
as netas não cuidarão de seus avos ou as mais jovens da família de qualquer outro familiar,
mas, ao mesmo tempo, que essas reciprocidades e solidariedades afetivas e morais
alcançarão a feição da mercadoria, tendo valor econômico, tanto no espaço do íntimo
quanto nas empresas e instituições, entre outros, que cuidam de idosos. Assim é possível
perguntar hoje se os filhos que não cuidam de seus país idosos dependentes devem ter
direito a receber a mesma parcela de herança que os que cuidam? Ou, se os que cuidam de
seus familiares idosos devem ter direito a um pagamento em função do trabalho realizado,
feito pelo grupo familiar ou pelo Estado?.
A preocupação pública com os custos financeiros dos cuidados no marco da
escassez de cuidadoras familiares/informais tem levado em países como Alemanha, a que o
Estado subvencione as contribuições previdenciárias dos familiares incumbidos dos
cuidados (BATISTA, SORIA, et. al. 2008). De fato, preocupado com os custos financeiros
do aumento da necessidade de cuidados, o Estado viabiliza ou promete viabilizar políticas
compensatórias para enfrentar a precarização da afetividade e moralidade familiares, com o
intuito de conseguir que as pessoas idosas com problemas de dependência funcional sejam
cuidadas em seus lares. Ao mesmo tempo, os saberes médicos, psicológicos e psiquiátricos
2 O consumismo, característica marcante da modernidade liquida, constitui a tendência a perceber o mundo como um recipiente dos potenciais objetos de consumo e de moldar todas as relações humanas conforme o padrão de consumo. Nesse sentido, os outros, e entre esses, os familiares, são bons na medida da satisfação que proporcionam e devem ser descartados quando a satisfação acabe ou se mostre não tão boa quanto se esperava ou quanto a que outra pessoa talvez pudesse fornecer em seu lugar (BAUMAN, 2007).
3
apontam para os prejuízos da institucionalização no estado psicofísico das pessoas idosas.
Estes movimentos são importantes, na medida em que contribuem para revelar o “profano”
valor econômico das atividades de cuidado realizadas na intimidade dos lares,
tradicionalmente oculto pelos “sagrados” preceitos do amor, do dever e da culpa.
Propomos analisar o cuidado dos idosos tendo como pano de fundo o suposto sobre
o processo de precarização da afetividade e moralidade familiares, isto é, a desproteção dos
corpos e das pessoas e, ao mesmo tempo a transformação da afetividade e moralidade
relativas ao cuidado, em mercadoria, considerando que o cuidado começa a ser valorizado
enquanto trabalho, no momento em que essa precarização exacerba a necessidade de
organização pública e/ou privada dos cuidados.
Ainda, refletimos que o cuidado está sendo alvo de complexos reordenamentos. De
um lado, se vislumbram novas oportunidades para as mulheres tradicionalmente inseridas
como trabalhadoras do serviço doméstico, empregadas ou diaristas. Ou, uma ampliação das
atividades por elas realizadas, compreendendo agora, também o cuidado das pessoas
idosas. No caso dos países mais ricos, as oportunidades para a provisão dos cuidados
correspondem especialmente, às mulheres imigrantes originárias de países mais pobres,
isto é, de países como os nossos, que podem prestar serviços em empresas, famílias ou
instituições que acolhem pessoas idosas. Resta assinalar que a venda do trabalho de
cuidado destas mulheres, pode significar, ao mesmo tempo, desproteção para os membros
mais idosos de suas famílias e/ou a sobrecarga das redes de apoio familiares para a
provisão desses cuidados. È nesse sentido que se fala da emergência de redes globais de
cuidados que atravessam as fronteiras entre os países, as famílias e o trabalho remunerado
e não remunerado (Dias Gorfinkel, 2008).
A partir destas reflexões preliminares, o artigo aborda o trabalho de cuidado
observando a afetividade e moralidade envolvidas nas relações e interações sociais entre
quem cuida e quem é cuidado nas ILPI. Interrogamos sobre como a afetividade e
moralidade implícita no cuidado dos familiares mais velhos e doentes é recriada nessas
instituições pelas mulheres cuidadoras e as cuidadas, sob as novas condições de produção
e mercantilização dessas atividades. E considerando ainda, as especificidades do espaço
social onde esse cuidado é realizado.
Apresenta-se a seguir a proposta analítica do estudo, orientada pelos seguintes
conceitos inter-relacionados: Trabalho de cuidado, afetividade, moralidade, mercadoria e
figurações dinâmicas como as advindas da análise de ELIAS (2000) sobre os estabelecidos
e os outsiders.
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2. Proposta analítica-conceitual Para compreensão da natureza e dinâmica das interações sociais entre cuidadoras e
pessoas idosas, propomos aqui focar analiticamente na tessitura complexa de saberes
técnicos, afetividade e moralidade que objetiviza o trabalho de cuidado. Consideramos ser
os saberes técnicos, a afetividade e a moralidade, feixes de disposições social e
historicamente produzidas, reproduzidas e também recriadas nos ambientes sociais. No
caso do cuidado das pessoas idosas realizado por cuidadoras em ILPI, as disposições
técnicas, afetivas e morais dos que participam da situação são caudatárias da natureza das
relações e interações sociais nas famílias da perspectiva sexuada da proteção das pessoas
e dos corpos, tanto quanto são interpeladas e recriadas no espaço das instituições de longa
permanência, no marco de posições hierárquicas e de poder desiguais, na sócio-dinâmica
dos trabalhos de cuidado.
A analise sobre o trabalho de cuidado que aqui apresentamos é feito considerando
que, disposições que têm sido produzidas e reproduzidas nas famílias, são demandadas às
mulheres cuidadoras de pessoas idosas nas ILPI. Ao mesmo tempo, nessas instituições, o
trabalho de cuidado cria novas disposições técnicas, afetivas e morais. Isso significa que
essas disposições, caracterizadas pelo seu valor social, são transformadas em mercadorias,
portadoras de valor de troca.
As disposições técnicas são relativas a saberes constituídos na intimidade familiar e
passados de uma geração para a outra. Esses, dizem respeito os apoios para realização de
tarefas de autocuidado da pessoa idosa, como arrumar-se, vestir-se, comer, fazer higiene
pessoal e locomover-se. Ao mesmo tempo, outras atividades, denominadas “instrumentais”
favorecem a integração e a participação do indivíduo em seu entorno, e relacionam-se com
tarefas de ordem prática, como fazer compras, pagar contas, manter compromissos sociais,
usar meios de transporte, cozinhar, comunicar-se, cuidar da própria saúde e manter a sua
integridade e segurança (BATISTA, SORIA, 2008:16). Consideramos, pois que há um
“savoir faire” do íntimo que permite o exercício do trabalho de cuidadora, muito embora o
processo de mercantilização dos cuidados esteja levando à constituição de uma oferta,
ainda tímida entre nos, de cursos de treinamento para o cuidado das pessoas idosas. As
disposições morais implicam em aspectos tais como o senso do dever e de
responsabilidade, que induzem ao sacrifício, a entrega e a abnegação e as disposições
afetivas, se expressam na preocupação com o outro, o amor, a devoção ou o ressentimento,
o ódio, a inveja, os conflitos e a violência física e psíquica (cf a ZALAZAR, 2001:117, apud
5
MARTIN PALOMO, M. T. 2008:22). Na análise do social os afetos têm sido contrapostos ao
racional. Mas, sabe-se que a afetividade é socialmente produzida. Os afetos se configuram
e gestionam em determinados contextos sociais e culturais, associados a circunstancias
morais (Ibid, p. 25).
Ainda, o cuidado enquanto relação social implica no estabelecimento de
dependências, poderes e hierarquias. No caso do cuidado dispensado aos parentes idosos,
as reciprocidades e solidariedades familiares contribuem para outorgar significados
diferentes às práticas que instituem os laços de dependência e os poderes e hierarquias
desiguais, muito embora cambiantes, nas interações sociais entre quem cuida e quem é
cuidado. Pelo comum, se cuida de alguém com o qual já se interage como pais ou avos e
esses cuidados estão dentro de uma dinâmica de reciprocidades e solidariedades familiares
de natureza privada, mediados pelo amor, dever moral e/ou culpa. No que diz respeito o
cuidado em instituições, essas atividades com suas complexidades técnicas, afetivas e
morais constituem mercadoria. No lugar da mediação das reciprocidades e solidariedades
familiares, há monetarização dos vínculos, os direitos trabalhistas e as regulamentações
institucionais, destinadas à regulação e racionalização do trabalho realizado pelas
cuidadoras.
Os conceitos relacionais de “estabelecidos” e “outsiders” (ELIAS e SCOTSON, 2000)
foram escolhidos para orientar essas reflexões nas ILPI. Os estabelecidos constituem
grupos sociais coesos portadores de uma auto-imagem inflacionada de honra, prestigio e
poder com relação a outros grupos menos coesos, considerados pelos estabelecidos como
deficitários do ponto de vista da honra do prestígio e do poder.
3. O cuidado nas ILPI
3.1. Quem são as cuidadoras?
Nas ILPI quem cuida é mulher, muito embora em alguns estabelecimentos se registre
a presença de homens contratados para ajudar na movimentação das pessoas idosas com
dificuldades de se locomoverem. Ser cuidadora constitui um modo de se inserir no
emprego, a partir do contrato celetista. O emprego de cuidadora é experimentado como
tendo status diferente, quando comparado com o trabalho doméstico, remunerado ou não
remunerado. Ser cuidadora envolve reconhecimento social. È nesse sentido, mas não
apenas nesse sentido, que os cuidados oscilam, socialmente, entre o trabalho doméstico
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desvalorizado e invisibilizado e um novo status, ainda incipiente, que se perfila na medida
em que os cuidados se tornam mais prementes na sociedade.
Assim, o trabalho de cuidado das pessoas idosas está deixando de ser formalmente
concebido, apenas, como extensão de atividades de trabalho doméstico. Neste quesito
percebem-se tensões, rupturas e continuidades. De fato, uma parte significativa das
cuidadoras tem formação em enfermagem, muito embora também existam cuidadoras sem
essa formação que complementam as atividades das enfermeiras. Mulheres de meia idade,
quase sempre convivem com a experiência do envelhecimento também através de seus pais
ou de outros familiares. São recrutadas nas classes sociais menos favorecidas, tendo nível
de escolaridade baixo, primário ou de segundo grau. Em geral são técnicas ou auxiliares de
enfermagem, mas também há quem tem qualificação na área do envelhecimento e quem
não possui qualificações formais especificas. È comum as mulheres cuidadoras receberem
salário mínimo e trabalharem em jornadas de trabalho organizadas em função de turnos de
12hs por 36hs.
As cuidadoras são caudatárias das disposições técnicas, afetivas e morais para o
cuidado, produzidas no seio das famílias, especificamente nas interações sociais com as
outras mulheres do grupo, como as mães, tias e avos. Ainda, nas ILPI, existe a cultura da
filantropia e da assistência o que contribui para desvalorização maior do trabalho de
cuidado. Reflete-se que o feixe de disposições adquiridas familiarmente pelas cuidadoras e
em menor medida, em cursos especializados e a cultura das ILPI contribuem para
opacidade do valor de mercado dos cuidados.
3.2. Apontamentos sobre o local dos cuidados Pelo comum as ILPI se localizam na periferia das cidades ou nos setores de
chácaras, mas também existem casos de localizações centrais, como no Plano Piloto da
cidade de Brasília. Não se observou um padrão de construção característico das ILPI, mas
parece recorrente a utilização de casarões ou construções feitas para outros fins que foram
adaptadas às novas necessidades. Há diferentes tipos de ILPI e estas recebem nomes
diferentes. Há os abrigos, as vilas, os lares, entre outros. As instituições mencionadas como
vilas pretendem traduzir o convívio comunitário, os lares, o aconchego da família.
Nas ILPI ingressam pessoas idosas com e sem problemas de limitações funcionais o
que determina as especificidades que assume o trabalho de cuidado. Observou-se que nas
instituições que albergam pessoas idosas sem limitações funcionais, o cuidado se concentra
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mais na solução dos conflitos inter-pessoais e familiares dos (as) idosos (as). Nas que
albergam pessoas com limitações funcionais, o cuidado também é medicalizado.
As instituições denominadas Vilas podem se constituir em “lugares de passo”, ante-
salas que mais cedo ou mais tarde terão que ser abandonadas pelas pessoas idosas, pois
as necessidades de cuidado hospitalar irão se incrementar com a passagem do tempo. Isso
indica que podem existir trajetórias interinstitucionais. Nas Vilas ingressam pessoas idosas
sem problemas funcionais, por exemplo, e sob determinadas circunstancias de deterioro
funcional, a pessoa é removida para instituições hospitalares.
As adaptações feitas nos casarões ou edifícios onde funcionam as ILPI e o uso dos
espaços traduzem a idéia de coletivo e influenciam no processo de mortificação do eu (cf.
GOFFMAN, 1999) na medida em que exigem adaptações performáticas para as pessoas
idosas, obrigadas à convivência com quem não escolheram.
De fato, toda instituição possui uma área social destinada à reunião das pessoas
idosas em torno de um televisor, quase sempre antigo. Há indícios de que o programa
televisivo não se escolhe e pelo comum corresponde à TV Globo. Na parede das áreas
sociais existe um mural onde se colocam mensagens diversas. Algumas indicam o mês de
aniversário das pessoas idosas, apontando que os festejos são coletivos. Há também
poesias que enaltecem a velhice e a vida. Em uma instituição observamos mensagens
apontando para a necessidade de lutar contra os estereótipos da velhice afirmando “o idoso
não é feio” ou “o idoso tem desejo sexual”. Há fotografias dos eventos anuais, como
aniversários, dia do (a) idoso (a), festas juninas, entre outros. Esses anúncios são coloridos
e com desenhos infantis que lembram uma sala de creche ou dos primeiros graus de
escolaridade.
Assim, a área social traduz um ideal de convivência comunitária na instituição, na
medida em que há referencias amorosas a seus membros e fotografias que exalam
coloridos e alegria referidas às comemorações típicas, passeios, e outros eventos. Essa
preservação em imagens das cerimônias institucionais3 contrasta com o comportamento
rotineiro das pessoas que usam as áreas sociais. Nesses espaços, por vezes observamos
que as pessoas dormitam, outras ficam despertas e quietas sem praticamente fazerem
comentários. Eventualmente, conversam com pessoas de fora da instituição (se as houver)
ou com as cuidadoras. Algumas das poucas falas ouvidas permitiam perceber algum tipo de 3 As cerimônias institucionais constituem praticas através das quais os internados e a equipe dirigente chegam a ficar suficientemente perto para ter uma imagem um pouco mais favorável do outro, e a identificar-se com a situação do outro. Tais práticas exprimem solidariedade, unidade e compromisso conjunto com relação à instituição, e não diferencias entre os dois níveis (GOFFMAN, 2003).
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conflitividade. Por exemplo, uma senhora idosa ganhou, de uma cuidadora, uma boneca e a
partir desse momento começou a ficar durante o dia inteiro, com ela no colo. Uma outra a
criticava aduzindo que não tinha mais idade para brincar de boneca.
Observamos que o silencio na sala social pode ser relativo ao estado de saúde das
pessoas que permanecem reunidas. Há instituições que albergam um número significativo
de pessoas com limitações mentais e/ou físicas, impossibilitadas de se locomoverem.
Nesses casos, as pessoas são colocadas em semicírculo, recostadas ou sentadas em
poltronas em torno do televisor. A maioria delas dormita com os lábios entreabertos e
respirando com calma, outras permanecem acordadas com o olhar ausente. As cuidadoras
as observam desde um canto da sala, por vezes conversando entre elas.
Um outro espaço que aparece socialmente valorizado nas instituições é o jardim,
sempre bem gramado e enfeitado com flores de cores variadas e com palmeiras, frutíferas e
árvores típicos da região. Nas instituições geridas por religiosas católicas pode haver
construções de pedra no formato de grutas que guardam imagens da virgem, com caídas de
água e vasos com flores. Nos jardins as cuidadoras organizam brincadeiras destinadas a
provocar a interação entre as pessoas idosas, tanto quanto sessões de massagens
relaxantes e/ou para ativar a circulação das pernas. Em algumas instituições observamos
um espaço destinado para atividades de artesanato sendo que a produção das pessoas
idosas pode ser comercializada.
É comum as instituições possuírem quartos coletivos, que comportam entre duas e
quatro camas de solteiro. As camas de madeira não maciça têm seus lençóis, almofadas
com fronhas e cobertores. Algumas pessoas idosas permanecem deitadas durante o dia.
Alguns dos quartos possuem janelas, outros são internos. Nas paredes pode haver fotos
dos familiares. Em geral, os armários são da cor marrão e seus espaços internos se
destinam às roupas das pessoas idosas. No interior dos armários há lugares específicos
para colocar a roupa de cada pessoa, identificados com seus nomes. Às vezes existem
cômodas comuns utilizadas para colocar outros pertences, como bonecas ou imagens
religiosas. Não parece comum haver quartos individuais. Nos casos em que estes existem,
resultam mais caros. Os banheiros possuem cadeiras para sentar, chuveiro alto e um vaso
sanitário. Há poucos espelhos.
Sobre recordatórios de aniversários, como os souvenires e fotografias, os quadros
com frases “edificantes” sobre o envelhecimento, as fotos dos familiares nos quartos, os
jardins coloridos, entre outros, paira a ausência de uma afetividade que se torna realmente
visível quando está ausente. A construção material generosa do aconchego exacerba a
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percepção dessa ausência. Ausência e visibilidade constituem a teia complexa sobre a
qual se inscrevem as recriações e criações afetivas. Os objetos, as plantas, as cuidadoras,
de maneira contraditória, afirmam e negam o real ou imaginário aconchego do lar de cada
um.
Reflete-se por fim, que se é certo que a família nuclear do ponto de vista de sua
densidade afetiva e proteção constitui mais um mito, também o é o fato desse mito, prenhe
pelo comum de crenças religiosas que o embasaram moralmente, ter mobilizado as energias
necessárias para o cuidado dos outros, com os sacrifícios e renuncias que isso implica e o
estabelecimento de desigualdades entre os homens e as mulheres que tem produzido
historicamente.
3.3. O trabalho das cuidadoras e a sócio-dinâmica da vida quotidiana nas ILPI 3.3.1. Ingressando na ILPI
Bem antes que as práticas institucionais operem seu efeito deletério sobre a
identidade das pessoas idosas, como GOFFMAN (2003) permite apontar, o fato de serem
privadas de suas condições usuais de vida pela decisão de institucionalização (seja que os
filhos ou familiares decidam pela sua internação, ou se é ela mesma que decide), indica a
precarização de um tipo de afetividade e moralidade familiares. E essa ruptura na ordem
geracional das reciprocidades e solidariedades do grupo, constitui sintoma da decadência do
mito que permitiu durante a modernidade sólida (BAUMAN, 2001) a proteção dos corpos e
das pessoas na intimidade.
Por vezes, acompanham a institucionalização, reclamações dos familiares sobre o
comportamento pretérito da pessoa idosa. Mas, no mito não há lugar para desistir da
proteção em função dos comportamentos individuais dos membros da família. O pai de
caráter duro, a mãe repressora, as preferências dos pais no que diz respeito algum dos
filhos (as) ou dos avos com relação algum dos netos (as) não afetarão os deveres do
cuidado.
Quando esses comportamentos individuais se tornam não apenas alvo do julgamento
pelos membros da família, mas também, em justificações para rompimento das
reciprocidades e solidariedades familiares é porque o mito deixou de funcionar, isto é, de
proporcionar a energia necessária para que os comportamentos individuais sejam
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desconsiderados, e o cuidado dos mais velhos e doentes seja feito por amor e/ou dever e
instigado pelos sentimentos de culpa.
As pessoas idosas ingressam na Instituição sem a perspectiva de sair dela, a
diferencia do que ocorre na prisão. O preso cumpre pena privativa de liberdade por um
tempo determinado e têm a perspectiva real ou imaginária da liberdade e pode sonhar com
ela. As famílias das pessoas idosas, quem dirige o estabelecimento, as cuidadoras e a
pessoa idosa, sabem que daí só se sairá morto. Alem disso, no ingresso, confirma-se a
situação de tutelada da pessoa idosa. A partir desse momento alguém, publicamente, terá
que se responsabilizar por ela, participar das decisões sobre sua vida na instituição ou
finalmente tomar decisões em seu nome.
Nas prisões ingressam transgressores (as) da ordem social que inspiram
desconfiança em seus cuidadores (as) e que podem também gerar medo. Ainda, os internos
(as) do presídio têm sua intimidade regulamentada até certo ponto. Mesmo em unidades
prisionais caracterizadas pela primazia do controle estatal no quotidiano da instituição, há
uma “intimidade do íntimo” que escapa às regulamentações institucionais. Existem
ordenamentos informais produzidos pelos internos (as) e a sexualidade é regulamentada
pela instituição no que diz respeito os encontros íntimos com pessoas de fora da prisão, mas
não com outros internos (as).
Nas ILPI, ingressam pessoas debilitadas física e emocionalmente, que raramente
inspiram nas cuidadoras o tipo de medo do interno (a) do presídio. Ainda, existe a
regulamentação institucional da “ intimidade do íntimo”. A higiene é regulamentada do ponto
de vista dos horários impostos, sempre as pessoas idosas devem tomar banho entre as 6hs
e 7hs da manhã, independentemente do seu desejo, de forma independente ou com o apoio
parcial ou total das cuidadoras. As manifestações de desejo sexual são interditadas nas
instituições e qualquer tipo de encontro íntimo é tenazmente combatido pelas cuidadoras.
No centro da gestão do íntimo há um corpo considerado sem beleza, saúde, vigor, viço e
autonomia. Os corpos envelhecidos tornam-se alvo de interdições que se põem de
manifesto na cadencia das rotinas quotidianas que a instituição constrói. Nas ILPI está em
jogo a gestão da intimidade das pessoas idosas. Essa gestão se expressa em diferentes
níveis, relativos à natureza do vínculo de dependência funcional de quem é cuidado. Em
geral, a gestão da intimidade acontece em um continum caracterizado por graus que vão de
proporcionar uma ajuda pontual, alcançar os alimentos, supervisionar o banho, acompanhar
para realização de determinadas atividades externas, como ir ao banco ou a supermercado,
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até alimentar, dar banho, trocar fraldas, e aí por diante. Ao mesmo tempo, há a gestão das
relações familiares das pessoas idosas.
Tanto em uma como em outra instituição (presídios e ILPs) existem determinadas
rotinas, mas, observa-se que nas que acolhem pessoas idosas, há rotinização maior da
jornada. De fato, há horário para acordar e tomar banho, para fazer lanche e para almoço. O
almoço é servido e a pessoa tem que comer no momento preciso, com fome ou sem fome.
À tarde tem lugar o banho de sol, mais ou menos como nos presídios, só que o banho de sol
das pessoas idosas, pelo comum é silencioso, quase todas dormem ou conversam com
alguma cuidadora, interagindo pouco entre elas.
Entretanto os internos (as) se agrupam ou tentam se agrupar, tem suas lideranças,
estabelecem e disputam poderes e hierarquias ao interior dos grupos e entre grupos
diferentes, regulamentam informalmente seu quotidiano segundo normas que coexistem ou
conflitam com o regulamento prisional. As pessoas idosas parecem se submeter sem a
produção de formas coletivas de resistência às regulamentações institucionais. Solitárias,
produtos do declínio do mito da família moderna, protetora dos corpos e das pessoas, quase
sem vínculos familiares e com vínculos afetivos pobres ou inexistentes nesse espaço social
tornado de convivência obrigatória.
Observaram-se pessoas idosas que ingressaram por motivação própria nas ILPI.
Pessoas sem filhos ou pelo comum, devido às transgressões morais de seus filhos ou netos,
experimentadas como desrespeito. Mas, a maior parte das vezes, a pessoa idosa ou foi
levada contra sua vontade ou depois de um período de intensas negociações com os
familiares. Nestes casos, a adaptação à instituição passa a exigir o esforço conjunto dos
dirigentes e da família. Observamos casos de pessoas idosas que tinham sido levadas
contra sua vontade, sendo submetidas a um período de adaptação com a presença mais
permanente dos familiares na instituição, tentando convencer-las da necessidade de ficar.
Quase sempre as pessoas idosas estavam em atitude suplicante, chorando e pedindo para
voltar para casa. Em geral, a retirada dos filhos lhes gerava agitação, e se locomoviam
intensamente, indo de um lugar a outro das dependências da instituição. Nesses casos,
eram alvo de repreensões carinhosas por parte das cuidadoras, mediadas por discursos
relativos à necessidade de compreender as necessidades das famílias e os benefícios de
ficar na instituição com outras pessoas da mesma idade.
Dirigentes e familiares coincidem no que diz respeito à necessidade de
institucionalização, apontando para os problemas do cuidado nas residências, a falta de
espaço nas casas e apartamentos, as rotinas familiares de trabalho, os conflitos entre as
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pessoas idosas o os netos, entre outros. Sempre o discurso institucional é dirigido no
sentido de amenização do sentimento de culpa dos familiares. A instituição está ai
filantropicamente, para acolher o conjunto dos desprotegidos: os filhos e os pais; os netos e
os avos, os sobrinhos e as tias. De um outro lado, quem cuida tem uma atitude mais crítica
com relação aos familiares, apontando, pelo comum, para suas atitudes de indiferença,
desamor, desconsideração, entre outras.
3.3.2. Natureza do trabalho de cuidado nas ILPI
O trabalho de cuidado constitui um feixe de disposições técnicas, afetivas e morais
que se traduzem em práticas quotidianas visíveis e invisíveis. A dimensão visível do cuidado
é alimentar, trocar as fraldas, ajudar a vestir-se e a tomar banho, acompanhar ao
supermercado, entre outros. A dimensão invisível ou imaterial é relativa aos afetos e
moralidades produzidas nessas práticas quotidianas. Ao mesmo tempo, nas instituições há
uma ordem do trabalho de cuidado, visível nas rotinas dos horários impostos, as exigências
de polivalência para os (as) funcionários (as), o número reduzido de trabalhadores (as)
alocados, entre outros. Essa ordem do trabalho impõe etapas, atividades e fluxos dentro de
uma lógica de racionalização, penetra a imaterialidade afetiva e moral dos cuidados
impondo-lhe limitações que, paradoxalmente, ameaçam a realização dos cuidados.
Assim, o trabalho de cuidado nas ILPI é produto do conflito entre instrumentalidade e
a afetividade e moralidade. Conflito que não se resolve na medida em que o peso
esmagador da ordem imposta ao trabalho, limita a afetividade e a moralidade dos cuidados.
No quotidiano, esse conflito se expressa na falta de tempo da cuidadora para dialogar mais
com os idosos durante a realização dos cuidados, prestando atenção a suas necessidades e
desejos. De modo que rotinas como dar banho, alimentar, trocar fraldas, vestir, entre outras,
acontecem como fluxos taylorizados, exigindo da cuidadora, maior economia de tempo e
movimentos, muito embora os aspectos afetivos e morais do cuidado possam resistir
tenazmente à ordem do trabalho.
Parece-me que a ordem do trabalho nas ILPI contribui para o que as cuidadoras
denominam “estado de carência” da pessoa idosa e que elas atribuem à ausência das
famílias. O déficit afetivo é lido pelas cuidadoras nos comportamentos dos idosos, nas
“birras”, na negativa frente à necessidade de tomar banho, alimentar-se ou levantar-se, por
exemplo. Nem sempre a pessoa idosa manifesta de forma direta o que está sentindo. Mas, o
“estado de carência” é a manifestação do cuidado que se encolhe do ponto de vista afetivo e
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moral. Se de um lado as cuidadoras são interpeladas afetiva e moralmente nas instituições,
de um outro, o cuidado propriamente como afetividade e moralidade, corre sempre o risco
de se transformar em um impossível, em parte devido à ordem do trabalho.
Observou-se que as disposições afetivas e morais das cuidadoras, que são
produzidas e reproduzidas no seio das famílias, são recriadas no ambiente institucional e
que ao mesmo tempo, as interações quotidianas com as pessoas idosas podem criar novas
disposições. Em função disso, somos alertados sobre a necessidade de observar a
complexidade dos processos de precarização e mercantilização dos saberes, afetividades
e moralidades familiares relativas aos cuidados. A mercantilização dos cuidados cria para
as cuidadoras, a possibilidade de apropriação de outros saberes, como os formais,
presentes nos cursos sobre cuidados, e de outras afetividades e moralidades,
estabelecendo-se um transito fluido entre a intimidade e o mercado.
3.3.3.. Poderes e hierarquias entre cuidadoras e pessoas idosas: afetividades e moralidades
3.3.3.1. Superioridade afetiva da cuidador: Paciência e fingimento
Paciência Nos últimos tempos, tem sido bastante comum, virem a luz violências cometidas
contra as pessoas idosas dependentes em instituições e na intimidade das famílias,
causando espanto e indignação na população, apontando, mais uma vez, que os cuidados
caracterizados pela sua discrição, ficam evidentes quando algo de errado acontece. No
entanto, nosso interesse aqui não é apontar essas violências cometidas contra as pessoas
idosas, mas, observar as afetividades e moralidades que, sendo recriadas e criadas nas
interações sociais entre quem cuida e quem é cuidado , impedem que essas violências de
fato se manifestem, constituindo mecanismos que operam de maneira bastante eficiente,
garantindo a realização do trabalho de cuidado.
Para isso, é necessário lembrar que o trabalho de cuidado estabelece interações
entre estabelecidos e outsiders , caracterizadas pela construção de um vínculo de
dependência. As cuidadoras partilham de uma auto-imagem de superioridade moral com
relação às pessoas idosas, a que se torna visível nos falas sobre as demandas afetivas do
trabalho. Apontam que o cuidado demanda, principalmente, paciência. Paciência e também
amor, constituem afetos frequentemente invocados nos seus relacionamentos com as
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pessoas idosas. Observamos que essa afetividade é relativa à consideração da pessoa
idosa como criança e vítima, ao mesmo tempo. Para as cuidadoras os idosos são como
crianças na medida em que manifestam seus sentimentos com rebeldias e agressões:
rejeição da comida e do banho, as reclamações em geral, a masturbação publica, as brigas
interpessoais, as agressores físicas e verbais às cuidadoras, como tratar as cuidadoras
“como criadas”, humilhá-las, entre outros comportamentos apontados.
Ao mesmo tempo, as pessoas idosas são consideradas vítimas, em função de seu
sofrimento físico e afetivo. Para as cuidadoras, a pessoa idosa sofre e se desespera numa
situação de encurralamento que terá como desenlace a morte. O sofrimento físico diz
respeito à decrepitude. O afetivo se afigura sempre como carência de afetos, abandonos
familiares, solidão, indiferenças. Assim, estas representações, que são ao mesmo tempo,
auto-imagens das pessoas idosas: desprotegidas e vitimizadas, fortalecem a auto-imagem
das cuidadoras como pacientes, tolerantes, amorosas. A moral do estabelecido restabelece
o desequilíbrio dos poderes: “é uma pessoa daquela idade, que vive trancada....”
Reflete-se que a afetividade e moralidade presentes nas relações de poder entre
quem cuida e quem é cuidado, acaba limitando a violência contra quem não se pode
defender. Apesar das agressões verbais e físicas às cuidadoras, estas, na medida em que
consideram os idosos inferiores, e nesse sentido, não estaria certo revidar, apelam à
paciência para controlar esse desejo. O idoso que não reage, não tem força, não governa
mais o corpo dele, por conta de sua fragilidade pode inspirar a agressão das cuidadoras.
Aquele que reage, agride, ofende pode motivar o revide das cuidadoras. Mas, ao mesmo
tempo, a moral de senhor da cuidadora, a paciência e o que denominam amor, permitem a
maior parte das vezes, que os cuidados sejam realizados.
Fingimento
No trabalho de cuidado se desenvolve e aperfeiçoa o que denominamos “arte do
fingimento”. A depender das experiências prévias, não raro, as cuidadoras ficam chocadas
quando ingressam a trabalhar nas ILPI. Mas, desde o primeiro momento, sabem que devem
fingir que acham comum se defrontarem com grupos de pessoas idosas confinadas em
instituições. Ainda, que não sentem rejeição pelas deformidades físicas a que, por vezes, o
processo de envelhecimento submete, dos maus cheiros, típicos desses estabelecimentos,
e que derivam não apenas de problemas de higiene, mas também, dos odores relativos a
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algumas doenças, ou em face das recorrentes, curtas e repetitivas historias dos que
padecem de Alzheimer, por exemplo.
O fingimento também é demandado na luta contra o aumento da situação de
dependência da pessoa idosa. As cuidadoras aprendem a partir da experiência de trabalho
e/ou em cursos e treinamentos específicos, as estratégias e tácticas afetivas que lhes
permitem travar uma luta, que de antemão sabem que é impossível de ser vencida. Assim
sendo, a estratégia afetiva implica a crença das cuidadoras na possibilidade de conquistar e
manter, até onde seja possível, uma pequena vantagem sobre o processo de deterioro físico
e/ou mental do idoso, controlando, com base em tácticas afetivas pontuais, o tempo relativo
ao processo de aprofundamento inevitável da situação de dependência. A luta contra a
dependência se ressume na seguinte frase: “o idoso não pode se entregar”.
A cuidadora luta contra a ausência de vontade da pessoa idosa, seja que essa
carência se relacione com tristeza ou doença. Em face de uma vontade pelo comum, cada
vez mais claudicante, a do idoso, se levanta a vontade de um outro, a cuidadora, que lhe
negará “criteriosamente” isto é, em graus variáveis, segundo a circunstância, ajuda, que
supõe, o conduzirá à inércia. Isso se faz pelo bem do idoso, que não sabe o que é bom para
ele. Moral arrogante da cuidadora, moral de estabelecido que age pelo bem do outro. A
vontade claudicante, isto é, a perda da autonomia dos idosos, é substituída pela ordem
heterônoma da cuidadora, que obriga ao esforço de autocuidado, sob seu olhar vigilante.
Observamos que neste contexto, o fingimento tem um sentido táctico, na medida em
que para controlar o aumento do grau de dependência, a cuidadora finge que apóia à
pessoa idosa na hora de levantar-se da cama ou da cadeira; na hora de pegar a roupa e se
vestir, e aí por diante. Assim, finge que lhe puxa a roupa, lhe segura os braços, lhe abre a
porta do armário, lhe alcança o sabonete, lhe levanta as pernas, entre outros.
A arte de fingir também se faz presente no que diz respeito às relações entre os
idosos e seus familiares. Nas instituições as cuidadoras são incumbidas de tratar com os
familiares das pessoas idosas. Esse relacionamento pode resultar bastante difícil e
desgastante, na medida em que, não raro, com a passagem do tempo os parentes do (a)
idoso (a), deixam de se responsabilizar pela pessoa internada. Isso se traduz em visitas
cada vez mais esporádicas, não responder quando são chamados para levar à pessoa ao
médico, ou devido ao estado emocional do (a) idoso (a).
Observamos que na relação com as famílias, as cuidadoras se instituem em
encarregadas de evitar a ruptura completa das reciprocidades e afetividades familiares,
exigindo que, a pesar de tudo, estas se mantenham, através da gestão do afeto e da moral
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dos parentes. Evidentemente, essa incumbência constitui aspecto importante de seu
trabalho, caracterizado pelos chamados à responsabilidade dos familiares, o que se
expressa em reprimendas moralizantes dirigidas a filhos (as), netos (as), sobrinhos (as). Ao
mesmo tempo, no que diz respeito à pessoa idosa, no raro, se esforçam por construir para
elas, reciprocidades e solidariedades familiares fictícias, na medida em que inventam
desculpas aceitáveis para o que qualificam como ausência de amor e responsabilidade dos
parentes: seu filho está chegando..., não vem porque teve que viajar a trabalho....
De modo que as cuidadoras tentam manter um mundo de reciprocidades e
solidariedades familiares fictício, para tranqüilizar as pessoas idosas, ou fazê-las esquecer
do assunto no momento em que reclamam pelas ausências, ou como uma forma de
ingressar no delírio afetivo delas. Se de um lado, consideram que os familiares devem
prestar atenção aos idosos; ao mesmo tempo, a construção de ficção sobre as
reciprocidades e solidariedades familiares, opera como mecanismo afetivo para controle
físico e emocional do idoso, ao mesmo tempo em que produz uma afetividade e moralidade
de “estabelecido”.
De fato, quando a pessoa idosa está triste devido à ausência dos familiares, a
cuidadora promete que virão à brevidade, se está nervosa demais, ameaça contar para os
parentes, se reclama do abandono, inventa desculpas honrosas para seus familiares, e aí
por diante. Ainda, a cuidadora sabe que, quando quiser, pode destruir esse mundo de
ficções familiares, abandonando o esforço para manter o mito familiar. Evidentemente, a
pessoa idosa está “em suas mãos” não apenas porque depende dela para comer, vestir-
se, entre outros, mas, porque dela depende também para manutenção de sua crença no
mito da família protetora, suas lealdades, reciprocidades e solidariedades. Desse modo, a
auto-imagem de superioridade da cuidadora com relação aos idosos, se confirma.
Revela-se assim, a natureza do trabalho de cuidado, seja este realizado na família ou
em instituições. O cuidado constitui mecanismo por excelência de produção e reprodução do
mito da família, com seu poder de proteção dos corpos e pessoas. As disposições técnicas,
afetivas e morais do cuidado, esses “habitus”, são mitológicos, mas, não apenas no sentido
de ocultamento do real, isto é, dos poderes e hierarquias domésticas que oprimem e
dominam as mulheres transformando-lhas em cuidadoras, mas, no sentido de criação de
uma força suprema para auto-realização e manutenção dos cuidados, de seus aspectos
técnicos, afetivos e morais. As cuidadoras são responsáveis pela manutenção do conteúdo
mítico do cuidado. Eis ai o poder da cuidadora, não mais apenas mulher historicamente
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condenada pela família ao cuidado dos mais fracos e doentes, mas, ao mesmo tempo,
portadora e cuidadora do mito da família moderna protetora.
Observamos, pois, que a “arte de fingir” revelou-se importante nas interações sociais
do trabalho de cuidado. É necessário fingir que não se ajuda à pessoa idosa porque ela
pode realizar as atividades de autocuidado e que as reciprocidades e solidariedades
familiares ausentes, continuam a existir. Isso significa que uma parte significativa do trabalho
de cuidado repousa sobre o fingimento e que este produz e confirma o lugar de estabelecida
da cuidadora nas interações com as pessoas idosas.
3.3.3.2. Equilíbrio da balança dos poderes: Medo e Infantilização Medo
Sob determinadas circunstâncias, a cuidadora, pode se metamorfosear em outsider.
No geral, a possibilidade das “armas mudarem de mãos” nas interações sociais, acontece
quando se geram conflitos entre as cuidadoras e os idosos que alteram o estado emocional
destes últimos, podendo colocar em risco a sua saúde. Esses conflitos que, pelo comum,
giram em torno dos apoios para realização das atividades básicas de tomar banho,
alimentar-se, trocar fraldas, entre outros, se manifestam nas investidas das cuidadoras para
realização dessas atividades junto aos idosos e nas resistências, manifestas de forma física
e verbal, que são opostas por eles.
Na interação entre quem cuida e quem é cuidado (a) há situações que questionam os
poderes e hierarquias estabelecidas. O medo da cuidadora no que diz respeito os
desdobramentos dos conflitos no estado de saúde da pessoa idosa, como por exemplo,
aumento da pressão arterial, infarto, entre outros, constitui mecanismo afetivo produzido
nas interações sociais em face das situações conflitivas.
O deterioro mental das pessoas idosas causa maior perturbação nas cuidadoras, seja
ocasionado por alguma doença ou como corolário da institucionalização. Com suas
alterações mentais reais ou imaginarias, da perspectiva das cuidadoras, o idoso quebra a
temporalidade, a qualquer momento volta a ser criança. Há uma mente que se deteriora e é
libertada das amarras do tempo e as lembranças se transformam em um aqui e agora. No
raro, a cuidadora para evitar conflitos, ingressa no delírio da pessoa.
Essa afetividade medrosa age como mecanismo de regulação dos poderes da
cuidadora sobre a pessoa idosa, sobretudo nos casos em que, mesmo confusa, alguma
comunicação entre elas acontece. O medo das cuidadoras contribui para o equilíbrio
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instável dos poderes nos trabalhos de cuidado. E a rendição momentânea e pelo comum
fingida da cuidadora, em face da alteração emocional do (a) idoso (a), contribui para tornar
menos desiguais os poderes entre ela e as pessoas cuidadas.
Infantilização
Outro mecanismo afetivo que contribui para o equilíbrio do poder entre as cuidadoras
e as pessoas idosas é a infantilização da pessoa idosa. No trabalho de cuidado se coloca a
circunstância moral implícita na construção de uma “intimidade do íntimo”. Essa diz respeito
à necessidade da cuidadora ter que tocar no corpo da pessoa idosa, para sua higiene, trocar
as fraldas, as roupas, entre outros. Observamos que durante estas atividades, não raro, as
cuidadoras acionam a memória dos idosos, lembrando-lhes que já foram crianças e que
nesses casos eram cuidados pelas suas mães como as cuidadoras cuidam agora deles, ou
reiteram que eles (as) são os (as) filhinhos (as) delas, entre outros.
A infantilização da pessoa idosa parece constituir mecanismo afetivo eficaz para
evitar o sentimento de embaraço (cf. GOFFMAN, 1956) no momento da troca de fraldas, ou
do banho, ou da repreensão em face de uma manifestação publica de desejo sexual:
“Porque eles se tornam filhos da gente, ta velhinho... você vai colocar fralda nele de novo,
tem uns que fala assim “nunca coloquei fralda minha filha, agora to colocando” “ah, você
virou criança de novo” falo assim pra elas, e elas “é mesmo minha filha, a gente vira criança
mesmo”, aí pronto vai numa boa”.
O cuidado produz uma intimidade além do espaço do intimo, com seus toques
corporais, higienizações, ajudas que penetram nos corpos, práticas que construirão um
savoir faire dos cuidados e afetividades e moralidades da “intimidade do íntimo”. Vemos,
pois, de que forma a afetividade familiar é recriada nas novas circunstâncias pelas
cuidadoras. Ao mesmo tempo, é essa afetividade que permite, não sem conflitos, a
construção de uma intimidade do íntimo nas instituições. Nas interações entre cuidadoras e
idosos, a recriação do universo familiar infantil constitui mecanismo afetivo produzido na
circunstância moral do embaraço que provoca tocar no corpo do outro e ser tocado por
outro.
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4. Considerações finais Em este estudo, de caráter ainda preliminar, abordamos as relações complexas entre
intimidade, filantropia e mercado a partir da análise do trabalho de cuidado, considerado
trama de saberes técnicos, afetividades e moralidades tradicionalmente produzidos nas
famílias. Consideramos que o mito da família moderna, do ponto de vista da proteção dos
corpos e das pessoas, produziu indivíduos, especialmente mulheres, capazes de se
sacrificar pelos membros do grupo familiar, por uma mistura de amor, dever moral e culpa.
Mas, na modernidade líquida e devido a mudanças em fatores de natureza econômica,
social, política e cultural combinados, se torna visível certa precarização das reciprocidades
e solidariedades familiares, situação que acena com a necessidade de mercantilização dos
cuidados das pessoas idosas.
As disposições relativas aos cuidados, que são recriadas pelas mulheres cuidadoras
de pessoas idosas em ILPI, constituem mercadoria cujo valor permanece opaco. Muito
embora seja comum atribuir o baixo valor monetário destas atividades ao fato de serem
consideradas uma continuidade do trabalho doméstico, realizado historicamente pelas
mulheres e em Instituições cuja natureza filantrópica as resguardaria das leis do mercado,
refletimos que a opacidade do valor do trabalho de cuidado é também relativa à opacidade
do próprio cuidado, em sua complexidade técnica, afetiva e moral.
O modelo analítico empregado neste estudo permitiu dar conta da produção de
afetividades em circunstâncias morais, caracterizadas pela desigualdade de poderes entre
quem cuida e quem é cuidado, indicando que os afetos produzidos nas interações sociais,
se bem afirmam o poder das cuidadoras, também limitam as possibilidades de violência
tanto quanto permitem lutar contra a precarização das reciprocidades e solidariedades
familiares em um contexto em que o que está em jogo é justamente essa precarização.
A análise sócio-dinâmica dos trabalhos de cuidado nos informa que nas interações
entre estabelecidos/cuidadoras e outsiders/ pessoas idosas, há produção de afetividades
tais como a paciência, o fingimento, o medo e a infantilização da pessoa idosa. Essas
afetividades se constituem em mecanismos elucidativos das relações de poder entre os
grupos. De fato, o poder da cuidadora em face de um corpo fragilizado não determina seu
comportamento violento. Ao contrário, esse poder desigual permite que na interação social
seja produzida uma afetividade como a paciência, que revela a moral de estabelecido da
cuidadora e ao mesmo tempo, contribui para limitar as expressões de violência com relação
às pessoas idosas. Do mesmo modo, o medo da cuidadora durante as interações conflitivas
com os (as) idosos (as) é um afeto que contribui para equilibrar os poderes entre quem
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cuida e quem é cuidado, podendo levar ao recuo estratégico da cuidadora. No que diz
respeito o fingimento, este revela a moral de estabelecido da cuidadora, sendo um afeto que
colabora para manutenção do mito das reciprocidades e solidariedades familiares e para
administrar/controlar o processo de deterioro físico e mental da pessoa, com o
aprofundamento da situação de dependência funcional. Por fim, a infantilização da pessoa
idosa, constitui um mecanismo importante para construção da “intimidade do íntimo” que o
cuidado demanda, possibilitando lidar com o sentimento de embaraço nas interações
sociais, em face da manipulação e toque dos corpos.
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