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1 CONFINS DA PSICOSE - TEORIA E PRÁTICA 1  Nieves Soria Dafunchio Tradução livre do espanhol: Beatriz Lavieri Cap. I   Introdução 1.O Confi m Começamos pelo título que escolhi para este seminário que é Confins da Psicose. O termo confim é utilizado por J. Lacan, em seu escrito “O Aturdido”, em referência ao campo das psicoses. A particularidade que este termo tem é que situa uma zona, uma zona sem ser exatamente um limite. O limite é um termo que, por exemplo, em um mapa político, é o que demarca os territórios em países, estados, províncias, etc.   isto é, aí há uma convenção que situa um limite muito preciso, que é o limite político   e que seria efeito de uma operação simbólica. Mas também temos os mapas geográficos, nos quais encontramos essas zonas intermediárias, que dividem os distintos t erritórios segundo suas características naturais, essas zonas limítrofes, esses confins nos quais não é tão sensível situar um limite  preciso. E me pareceu interessante este termo, porque Lacan, em seu texto sobre as psicoses, fala do que ocorre nesses confins na estrutura da psicose. Quando nos deparamos com a  psicose na prática, nos encontramos muitas vezes com o problema de onde estão essas zonas nas quais não é tão sensível encontrar o limite. Também é um termo que posteriormente Lacan vai empregar para se referir a certas formas do limite que não obedecem à lógica fálica, edípica, mas que obedecem muito mais ao que ele vai chamar de lógica do feminino, que não é propriamente edípica. E como justamente o que encontramos na psicose é que há ausência de Édipo, poderíamos dizer que a clínica da psicose é uma clínica dos confins, uma clínica do limite quando falta o limite. Isto faz também que seja necessário estudar não somente dentro de cada caso de psicose essas zonas obscuras nas quais não fica claro onde termina uma coisa e onde começa outra, senão também dentro do que seria a estrutura mesma da psicose, quer dizer, onde estão os limites da psicose. 1 Soria Dafunchio, Nieves Confines de la Psicosis Teoría e Práctica, 1ª ed., Buenos Aires: Del Bucle, 2008.

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CONFINS DA PSICOSE - TEORIA E PRÁTICA1 

Nieves Soria Dafunchio

Tradução livre do espanhol: Beatriz Lavieri

Cap. I – Introdução

1.O Confim 

Começamos pelo título que escolhi para este seminário que é Confins da Psicose. Otermo confim é utilizado por J. Lacan, em seu escrito “O Aturdido”, em referência aocampo das psicoses.

A particularidade que este termo tem é que situa uma zona, uma zona sem ser exatamente um limite.

O limite é um termo que, por exemplo, em um mapa político, é o que demarca osterritórios em países, estados, províncias, etc.  –  isto é, aí há uma convenção que situaum limite muito preciso, que é o limite político  – e que seria efeito de uma operaçãosimbólica.

Mas também temos os mapas geográficos, nos quais encontramos essas zonasintermediárias, que dividem os distintos territórios segundo suas características naturais,essas zonas limítrofes, esses confins nos quais não é tão sensível situar um limite

 preciso.

E me pareceu interessante este termo, porque Lacan, em seu texto sobre as psicoses, falado que ocorre nesses confins na estrutura da psicose. Quando nos deparamos com a

 psicose na prática, nos encontramos muitas vezes com o problema de onde estão essaszonas nas quais não é tão sensível encontrar o limite.

Também é um termo que posteriormente Lacan vai empregar para se referir a certasformas do limite que não obedecem à lógica fálica, edípica, mas que obedecem muitomais ao que ele vai chamar de lógica do feminino, que não é propriamente edípica. Ecomo justamente o que encontramos na psicose é que há ausência de Édipo, poderíamosdizer que a clínica da psicose é uma clínica dos confins, uma clínica do limite quandofalta o limite.

Isto faz também que seja necessário estudar não somente dentro de cada caso de psicoseessas zonas obscuras nas quais não fica claro onde termina uma coisa e onde começaoutra, senão também dentro do que seria a estrutura mesma da psicose, quer dizer, ondeestão os limites da psicose.

1Soria Dafunchio, Nieves – Confines de la Psicosis – Teoría e Práctica, 1ª ed., Buenos Aires: Del Bucle,

2008.

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Podemos pensar que existe um limite estrito entre neurose e psicose ou temos que falar de confins, de zonas limítrofes nas quais se pode situar um limite? É um trabalho maiscomplexo do que pode parecer uma primeira aproximação do problema.

Então, nestes encontros tenho vontade de introduzir esta complexidade que implica o

termo mesmo de confim no campo clínico das psicoses. A maneira como pensei esteseminário é dedicar, em primeiro lugar, três aulas a um desenvolvimento teórico das

 psicoses, para oferecer-lhes alguns elementos mínimos com os quais abordar  posteriormente toda uma série de casos que vão ser apresentados e trabalhados aqui.

 Nestas primeiras três aulas o que vamos tratar de trabalhar são os dois grandes paradigmas que podemos encontrar no ensino de Lacan para abordar a clínica das psicoses. O primeiro paradigma é o de Schreber, caso que Lacan trabalha no Seminário3, que é do ano de 1956, e também em 1958, no texto “De uma questão preliminar atodo tratamento possível da psicose”, que se encontra em Escritos 2. 

Posteriormente, em 1975, Lacan vai voltar sobre a questão das psicoses, mas não em umseminário dedicado às psicoses em si mesmas, mas vamos poder encontrar muitas liçõessobre as psicoses no Seminário sobre Joyce, no Seminário do Sinthome. Nesteseminário Lacan vai deduzir uma estrutura psicótica em Joyce e vai se interessar pelamaneira com que ele resolve seu problema de carência do recurso edípico, e comoconsegue manter uma estrutura psicótica sem desencadear. Isto vai permitir abordar toda uma série de casos que ficariam de fora do primeiro paradigma  –  o paradigmaSchreber  – que é o paradigma da psicose francamente desencadeada. Iremos então de

Schreber a Joyce, este vai ser o movimento que tentaremos realizar nestas primeiras trêsaulas.

Por outro lado, também tentaremos seguir de algum modo a lógica do ensino de Lacan eformular algumas consequências de como conceitua a estrutura psicótica à altura do

 paradigma Schreber, para nos introduzir depois na concepção do tratamento possível da psicose. Ao mesmo tempo, tratarei de fazer um contraste, inclusive um contraponto como que podemos deduzir à altura do Seminário 23  – o seminário sobre Joyce  – sobre aconcepção da estrutura psicótica e de sua possível abordagem pela psicanálise a estaaltura.

Vemos que se abrem perspectivas muito distintas, que vão permitir abordar adiversidade de casos com diferentes elementos. Vamos tentar aplicar também a lógicado confim, a lógica feminina, a cada caso que vá sendo apresentado.

Minha proposta é que, depois destas três primeiras aulas, em cada reunião um praticanteda psicanálise apresente um caso de psicose. Esses casos seguirão a seguinte sequência:os primeiros representam muito claramente algum tipo clínico dentro das psicoses, por exemplo: na quarta aula um caso de mania, na quinta um caso de melancolia, etc. Sãocasos nos quais se pode situar de maneira precisa certo tipo clínico dentro da estrutura

da psicose. Mas, ao mesmo tempo que vamos precisar dar conta da particularidade destetipo clínico, tentaremos adentrar na zona dos confins, quer dizer, situar isso que há de

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único em cada caso, isso que no caso é impossível de ser reduzido ao tipo clínico, aouniversal. Então, vamos ao traço singular, ao que faz não somente o único do caso desdeo ponto de vista do que não se pode classificar, mas também de como isto entra em jogono consultório ou no hospital (onde for), na direção da cura psicanalítica, onde não setrata somente do tipo clínico, senão que se trata justamente da singularidade do caso.

Finalmente, nas últimas aulas, tentarei entrar mais de cheio na zona dos confins daestrutura. Para isso, trabalharemos com casos nos quais não é tão sensível o diagnósticodiferencial entre neurose e psicose, e onde vamos tentar, por um lado, trabalhar aquestão do diagnóstico e, por outro lado, ver se podemos chegar a uma conclusão arespeito de como se articulam o singular e o universal na diversidade dos casos.

2. Uma Diacronia Lacaniana  

Começamos então com o tema introdutório deste seminário, que é a diacronia no ensino

de Lacan. E se vamos situar o movimento que se opera desde o paradigma Schreber atéo paradigma Joyce, é fundamental seguir um pouco a lógica que orienta os distintosmomentos.

Situando os distintos momentos do ensino de Lacan, temos um primeiro tempo, que é otempo em que ele se dedica a estudar o registro imaginário, no qual vai trabalhar fundamentalmente o estádio do espelho. Parece-me que não é casual que Lacan comece

 por aí, já que ele – diferentemente de Freud – entra na psicanálise pela psicose.

Enquanto Freud inventa a psicanálise a partir de seu encontro com as histéricas, Lacan

tem uma formação psiquiátrica, e o que o levou à psicanálise foi seu encontro com os psicóticos. O que mais interessou a ele das psicoses foram os profundos transtornos doimaginário que encontramos no desencadeamento: a derrubada imaginária, odesmoronamento que sobrevém no campo da imagem na psicose.

Tampouco é casual que, se entrou na psicanálise pela psicose, comece pelo imaginário.Inclusive, no Seminário 3, Lacan vai do imaginário ao simbólico. Faz um movimentoque vai de todas as perturbações do imaginário na psicose  – do que Freud chamava a

 perda de realidade, da derrubada da realidade no desencadeamento psicótico  – a tratar de esclarecer quais são os estímulos simbólicos desta catástrofe no imaginário.

Em um segundo tempo – claramente a partir do Seminário 4 – Lacan começa a estudar oregistro do simbólico. Inclusive poderíamos dizer que vai estudar a primazia dosimbólico sobre o imaginário.

Porém, assim como no primeiro tempo se ateve a estudar a questão do estádio doespelho, os esquemas óticos e demais, neste momento vai estudar o simbólico: como é osimbólico, a estrutura da linguagem, e que efeitos tem na construção do imaginário.Podemos seguir claramente este movimento desde o Seminário 4 ao Seminário 11.

Depois, em um terceiro momento  – que começa no Seminário 11 – o que ocorre é queLacan de tanto estudar o campo ou registro simbólico, chega à conclusão de que a

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operação simbólica da constituição do sujeito deixa um resto real, que nesse momentovai conceituar como o objeto a. Dedicar-se-á, então, a determinar as consequências – naestrutura e na prática da psicanálise  – do fato de que nesta operação haja um resto real.Poderíamos dizer, a grandes traços, que este movimento chega até o Seminário 20.

Já em um quarto tempo, podemos situar o Seminário 18, no qual Lacan começa aconstruir as fórmulas da sexuação (as quais, por sua vez, o levam ao nó borromeano),que é o que prevalece neste último tempo de seu ensino a partir do Seminário 20, onde

 justamente cai a ideia da primazia do simbólico (ainda que nunca totalmente). Então,neste quarto momento podemos dizer que Lacan se encontra com que há umaequivalência entre os três registros: real, simbólico e imaginário.

Assim é como, no primeiro tempo, se interessou pelo imaginário, no segundo, pelosimbólico, no terceiro tempo, por esse resto real produzido pelo simbólico e, nestequarto tempo – no qual os três registros são equivalentes  – vai se interessar por estudar fundamentalmente o registro do real. Obviamente estes movimentos trazem enormesconsequências a respeito de como levar a cabo a direção da cura.

Como este é um seminário dedicado às psicoses, vamos nos ater ligeiramente em dar alguns elementos para situar quais são as consequências deste movimento que se realizano ensino de Lacan na concepção da estrutura psicótica e sua abordagem pela

 psicanálise.

3. Schreber. O Paradigma de uma Real idade  

Começaremos pelo segundo tempo, no qual vamos situar o paradigma Schreber,momento do texto de 1958 “De uma questão preliminar..., que é um textocontemporâneo ao Seminário 5. Quer dizer, dois anos depois do Seminário 3 das

 psicoses, ele faz este escrito onde, à luz da maneira em que está trabalhando naqueleano a estrutura, extrai o que seria sua doutrina da psicose.

É, então, nesta época que Lacan concebe uma primazia do simbólico sobre oimaginário, na qual vai ater-se especialmente aos recursos simbólicos da estrutura ecomo afetam o imaginário. É aí que Lacan aborda o texto de Freud sobre o casoSchreber, e se dedica  – como geralmente faz com a obra de Freud  – a matematizar as

formulações freudianas. Para isso, vai se servir de um esquema, do esquema R.

O esquema R é um esquema no qual Lacan complexifica o que havia introduzido noSeminário 3 como o esquema Lambda. Vocês se lembram do esquema Lambda:

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 Neste esquema encontramos o eixo imaginário, no qual entra em jogo a reversibilidade própria do espelho, e por detrás encontramos o eixo simbólico entre o sujeito e o Outro.

 No Seminário 3, Lacan reformulava a relação especular, a relação imaginária,concluindo que a relação entre o eu e o semelhante ficava sujeita a fenômenos de

transitivismo, reversibilidade, que levavam ao conflito, à ruína, à destruição, quando amediação do eixo simbólico não operava. Lacan propõe então que a relação imagináriaé uma relação agressiva, incestuosa, que somente encontra certa paz graças ao complexode Édipo, à introdução do eixo simbólico. É por isso que a conclusão do que Lacanformula no Seminário 3 é que essa relação imaginária incestuosa é a relação entre acriança e sua mãe. Situa aqui a mãe e aqui a criança.

Desde esta perspectiva, a relação incestuosa da criança com a mãe somente encontra umcorte, encontra a paz, quando esse terceiro  –  o pai no lugar do Outro  –  opera umaseparação, uma interdição, o que garante que esse eixo não seja irreversível. Esseterceiro estabelece diferenças, dizendo à mãe: “não reintegrarás teu produto” e , àcriança: “não possuirás tua mãe”. Desse modo estabelece diferenças, fazendo que acriança não possa se crer como o falo de sua mãe.

Desta maneira pode-se ver até que ponto o esquema Lambda é o precursor do esquemaR, já que, na realidade, neste eixo imaginário podemos situar a relação da criança comsua mãe, enquanto nesta ponta do eixo simbólico  – formando já o triângulo edípico  –  situamos o pai em posição de Grande Outro, que intercepta a reversibilidade imaginária,introduz um corte e pacifica a relação entre o eu e o outro.

Esta estrutura, complexificada, dará lugar ao esquema R.

De que se trata no esquema R? Da preocupação em como se constrói o campo darealidade, daí seu nome. Freud diz que tanto na neurose como na psicose há perda da

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realidade, no entanto, não se a perde da mesma maneira nem ficam as mesmasconsequências em cada estrutura. Então, o esquema R tenta dar conta de como seconstitui em um sujeito neurótico (que conta com o pai) o campo da realidade.

O esquema R tem dois grandes triângulos: o triângulo simbólico e o triângulo

imaginário. O campo da realidade esta inserido no registro do imaginário, mas justamente dentro do registro imaginário, nessa zona que confina com o registrosimbólico, ali onde ambos se entrecruzam.

E o que vai possibilitar que se constitua o campo da realidade (que é a faixa central doesquema)? Lacan vai dizer que aqui está a mãe, o M, o objeto primordial, e neste outroextremo o falo, o φ, que a criança atribui à mãe no primeiro tempo do Édipo.

 Na formalização que Lacan faz do Édipo freudiano, vai dizer que no primeiro tempo doÉdipo  – que é o que acontece ao pequeno Hans, que inclusive considera que todos os

seres vivos possuem falo – se dá a primazia universal do falo atribuindo, desta maneira,um falo à mãe. É o primeiro momento do Édipo, no qual a criança ainda não se inteirouda castração materna, por sua vez, da castração feminina. Aqui vemos o sujeito, o S,alojado como falo da mãe, o sujeito em posição de falo materno.

Porém, não chega com este eixo a armar o campo da realidade. Para que este seconstitua, Lacan entende que tem de haver uma tensão entre estes dois vértices: aqueleem que a criança se situa como falo da mãe e aquele onde se encontra o Outro materno.Entre ambos deve haver uma tensão possibilitada por um terceiro, o P do pai no lugar do Outro. Novamente essa posição terceira entre a criança e sua mãe abre a dimensão

simbólica que sustenta o imaginário. Isto possibilita certa distância entre o eu e suaimagem, certa distância entre o objeto e a imagem do objeto no outro.

Estes quatro lugares, quatro pontos: i – a –  a’ – m, são os quatro vértices imaginários docampo da realidade. Trata-se da relação entre o eu e sua imagem no espelho em umextremo, e do lugar do outro e a imagem do outro no outro extremo. Isso é o imaginário.

Mas, ao mesmo tempo, esta borda do campo da realidade  –  a borda inferior  –  éimaginária e simbólica. Então, ao mesmo tempo em que vocês encontram ali o outrocom minúscula, o pequeno outro e suas imagens, ao mesmo tempo temos o Outro

 primordial que é a mãe, e o Ideal do eu. Podemos dizer que o campo da realidade estásobredeterminado, imaginária e simbolicamente, pelo que neste eixo encontramos o

 pequeno outro e suas imagens e, ao mesmo tempo, o Ideal do eu, que é um mistoimaginário e simbólico.

Que o pai venha ao lugar do Outro, isso quer dizer que vem garantir a cadeia simbólicacomo lei, que vem garantir que há uma lei e que essa lei vai proibir a relação incestuosaentre a criança e sua mãe, extraindo a criança do corpo-falo da mãe. Aqui intervém o paicomo terceiro, como garantidor, como homem. É o que tornará possível a constituiçãodo campo da realidade.

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Em seu texto “De uma questão preliminar...” Lacan arma este quadrângulo que é oesquema R, que será o ponto de partida para estudar o que ocorre na estrutura psicótica.Dirá que, quando a psicose desencadeia, o que ocorre é que desmonta o campo darealidade, sobrevindo a catástrofe imaginária.

Em Schreber podemos situar isto nesse momento em que entra em um estado de perplexidade, do qual sai dizendo que tinha estado morto  –  inclusive lê a notícia nodiário de que tinha estado morto. Trata-se de todo um tempo em que está em um estadode perplexidade quase catatônico, em que perde a realidade, não podendo se relacionar com o outro. Sai lentamente, e ao longo do tempo vai construindo esse delírio que noslega em suas memórias, das quais Lacan diz que são o testemunho de um trabalho dereconstrução do campo da realidade que tinha sido perdido no desencadeamento

 psicótico.

Lacan concebe desse modo o esquema I, com o qual tentará dar conta de como sereconstrói o campo da realidade através de seu delírio. Mas nesta reconstrução darealidade não se volta ao estado anterior, em todo caso nessa reconstrução o campo danova realidade não ficará circunscrito do mesmo modo que no esquema R  – que é comofica na estrutura neurótica.

 Neste esquema podemos observar até que ponto o que no esquema R é uma faixa[franja], se encontra estendido pelos quatro vértices do quadrilátero no esquema I.

Este esquema se baseia no que falta, por isso em algum sentido podemos dizer que, àaltura do paradigma Schreber, Lacan tem uma concepção deficitária da psicose. Se bemque não se trate do déficit orgânico a que se referia a psiquiatria, se trata de um déficitsimbólico. Já que, à altura do Seminário 3, Lacan pensa que ao psicótico falta o Nomedo Pai, falta um significante fundamental, o significante que ordena o conjunto dossignificantes, os significantes que garantem a cadeia simbólica como lei do Outro que

 por isso, é o significante que garante a saída do inferno imaginário, especular,incestuoso. Essa concepção da estrutura psicótica como uma estrutura deficitária, emdéficit simbólico, será a que anima o esquema I.

Lacan conceberá então que, assim como na neurose, o campo da realidade se armagraças a estes elementos, nas psicoses é necessário se virar com a falta desses

elementos, daí que todo o esquema I gire em torno da foraclusão do Nome do Pai, que éum buraco no registro simbólico, o buraco que é o Nome do Pai, P0.

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Em “De uma questão preliminar...”, Lacan observará que a psicose desencadeia quandoo sujeito  – por alguma contingência em sua vida  – apela ao Nome do Pai no lugar doOutro. Necessita que o significante do Nome do Pai esteja no lugar do Outro paraenfrentar determinada situação de sua vida. Lacan fala do “chamado vão”, chamado quenão encontra reposta, e então um buraco no simbólico se faz presente.

 No caso Schreber, poderíamos dizer que foi sua nomeação como presidente da corte deDresden, nomeação que o leva a uma posição simbólica de pai, já que ele aí vai ter acargo homens que poderiam ser seus pais, homens de uma geração anterior. Destemodo, para poder enfrentar essa situação terá que contar com certo elemento simbólicoque lhe permita fazer-se de pai para outros que poderiam ser  –  desde o ponto vistageracional – seus próprios pais. Esta é uma leitura possível acerca do quê desencadeia a

 psicose de Schreber à altura do Seminário 3.

Por outro lado, em “De uma questão preliminar...” Lacan não formula odesencadeamento nesses termos, senão muito mais a partir da presença de Flechsigcomo Um-pai no real. Mas poderíamos dizer que são dois momentos lógicos distintos:um primeiro momento lógico que é a nomeação, quando se faz presente no simbólico o

 buraco foraclusivo e começa lentamente a demolição do imaginário, e um segundomomento lógico que se abre quando vai procurar Flechsig, que o havia tratado em sua

 primeira enfermidade hipocondríaca, e se encontra com Um-Pai no real, com um Outrogozador, começando a delirar que Flechsig quer submetê-lo sexualmente. E de Flechsig

 para Deus há um passo, com o que termina armando sua solução delirante graças a seuencontro com Flechsig.

O encontro com este buraco no simbólico, P0, vai abrir ao mesmo tempo um buraco noimaginário. Desta maneira, o triângulo imaginário se desmonta ao ser habitado por um

 buraco, no que se faz presente a foraclusão do falo. É então que o significante fálico sedemonstra inexistente para o psicótico.

 No caso de Schreber, isto se verifica, clinicamente, no momento em que começa a sedesencadear sua psicose, antes de entrar nesse estado de perplexidade catatônica,quando tem uma quantidade inusitada de poluções noturnas. Vocês lembram que elerefere que uma noite tem muitas ejaculações. Nesse momento, o órgão deixa de

funcionar como um condensador de gozo, sendo invadido por um gozo sem limite.

Pergunta: Então, pelo que acaba de dizer , o signi f icante Nome do Pai e o signi f icante 

fálico, os dois, estar iam foracluídos da psicose?  

Exatamente, já que para Lacan a metáfora paterna é uma operação na qual o Nome doPai significa metaforicamente o Desejo da Mãe. Que deseja a mãe? Deseja o falo do pai.Será então a operatória do Nome do Pai que possibilita que se inscreva a significaçãofálica.

Lacan vai dizer que o significante Nome do Pai é o significante do significante. É osignificante ao qual se referem todos os significantes, é o significante que os ordena,

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que é diferente de todos os demais e que possibilita então que todos se relacionem entresi. Daí que também o chame de significante ímpar. E aí sua referência à passagem

 bíblica em que Deus fala e diz: “eu sou o que sou”. É autorreferente, se refere a simesmo, excetuando-se do conjunto dos significantes, mas possibilitando ao mesmotempo o fecho desse conjunto.

Enquanto que o simbólico está conformado pelo binário S1 => S2. O significante sempreé oposicional, então todo significante se define a partir de outro significante, com aexceção deste Deus que diz: “sou o que sou”. Deus é um S1 sem um S2, enquanto todosos demais significantes remetem a outro significante, como demonstra a existência dodicionário.

Seguindo a lógica dos conjuntos, o que permite fechar o conjunto é a extração de umelemento que pode permanecer como exterior ao mesmo.

Pergun ta: Ou seja, a foraclusão do sign if icante fálico éefeito da foraclusão do Nome do Pai?  

Sim. Ainda que Lacan interrogue essa relação no escrito “De uma questão preliminar...”. Sim. A foraclusão do significante fálico é consequência da foraclusão do Nome do Pai, mas o que Lacan se pergunta é se se trata de um efeito direto ou indireto.E isto é interessante, porque permite pensar uma série de casos nos quais se podedemonstrar a foraclusão do Nome do Pai sem que se faça presente o buraco noimaginário. Ao contrário, casos nos quais haja evidência da foraclusão do falo,apresentando-se o buraco no imaginário, com fenômenos elementares no campo da

significação, sem que encontremos aqueles outros fenômenos elementares no campo dosignificante que dão conta da existência do buraco no simbólico. Podemos então fazer desta distância entre ambos os buracos um instrumento fundamental para abordar adiversidade da clínica.

Ao Lacan conceber que esta relação pode não ser direta, pode ocorrer que em uma psicose se faça presente um buraco e não o outro – o que não quer dizer que esse outro buraco não esteja aí, latente. Pode estar na estrutura sem se manifestar na clínica. Isto

ocorre para ambos os buracos (P0 e 0) na psicose prévia ao desencadeamento. Mas

também pode ocorrer que o desencadeamento afete só um dos dois buracos, ficando ooutro latente.

4. Signif icante do Signi ficante. Signif icação Fálica .

Voltemos. O Nome do Pai é o significante do significante e o falo é o significante dasignificação, é o significante que vai dar conta dos efeitos de significação. Na neurose,toda significação vai ser fálica, e como não há uma relação biunívoca entre significante

e significado, senão que o significante se relaciona com outro significante, , istoé que vai produzir efeitos de significação. Mas estes efeitos vão denotar certa

ambiguidade, e isto ocorre justamente porque não há um significante que corresponda aum significado. É por isso que nadamos no mal-entendido, por isso nada do que

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dizemos termina de poder se aprisionar totalmente. Tudo o que falamos ou escrevemosé passível de várias interpretações.

 No entanto, estes efeitos de significação que não podem se fixar em um sentido único,têm algum limite. Quer dizer, habitualmente não falamos absolutamente a esmo. Há

certo limite no efeito de significação, e esse limite é possibilitado justamente pelosignificante fálico, que vai dar uma significação fálica. Assim é que se bem que paranós, os seres falantes, as palavras não estão presas às coisas, existe uma possível relaçãoentre as palavras e as coisas graças à significação fálica. Graças a ela, qualquer coisanão quer dizer qualquer outra para nós, ainda que tampouco possamos dizer que estacoisa quer dizer univocamente esta outra. Há uma margem de certa indeterminação, quesuportamos graças à significação fálica. É como se disséssemos: “tá bem, te entendi,não sei exatamente o que quiseste dizer, mas te entendi”. 

Tanto o significante Nome do Pai como o significante fálico são diferentes dos demaissignificantes. O Nome do Pai porque é o que de algum modo funciona como referentede todo o conjunto significante; e o significante fálico porque é o que funciona comoreferente de todos os efeitos de significação.

Voltemos agora ao esquema I. Na derrubada de sua realidade, Schreber sente que morre,sofre uma série de fenômenos de órgão, diz que lhe comem o cérebro, etc. Claramente,se perde a imagem especular, se desarma a unificação narcísica e, então, tem toda umasérie de vivências de gozo de gozo nos órgãos interiores do corpo. Lacan observa queSchreber, com todo seu trabalho de delírio, logra restabelecer o campo da realidade, e

este esquema I dá conta do estádio terminal do delírio de Schreber.O que lemos em suas memórias é o resultado de todo esse trabalho do delírio queconsegue restabelecer o campo da realidade, o que lhe possibilita sair da internação,voltar a sua posição de jurista e recobrar todos os seus direitos, graças ao que conseguetestemunhar como pode se relacionar com a realidade mais além desse pequeno delíriode ser a mulher de Deus. É então que se restabelece a realidade, mas com outro esquemadiferente do da neurose.

O que Lacan diz é que como lhe falta o Nome do Pai, Schreber vai substitui-lo

esticando este vértice (do esquema R), que é o vértice do Ideal, até obrigá-lo a cumprir afunção faltante do Nome do Pai. No esquema I o Ideal vem ao lugar do Nome do Pai.Quer dizer, para Schreber o Ideal vai cumprir a função que não cumpre o Nome do Pai.Isto é algo que mais adiante veremos nos casos.

Em muitos casos de psicose se vê claramente que o que estabiliza o sujeito é algumIdeal que ordena seu mundo da mesma maneira que o Nome do Pai ordena o mundo

 para o neurótico.

 Na parte superior do esquema acontece o mesmo. Acima encontramos o i, que é aimagem do corpo; Schreber vai esticar a imagem do corpo desde o centro até o vértice

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esquerdo e vai forçá-la a cumprir a função do falo que lhe falta. Encontramos então o i no lugar do falo.

Como se joga isto no delírio de Schreber? O que Lacan diz é que o Ideal vem garantir amanutenção do criado, assim como na neurose o Nome do Pai garante a ordem do

mundo.

E, por outro lado, neste vértice onde teria que estar funcionando o falo, encontramos aimagem do corpo e o gozo transexual. Vocês lembrarão que Schreber arma todo essedelírio no qual ele é a mulher de Deus e vai procriar a nova humanidade. Mas alémdesse delírio, ele precisa ter uma prática transexual, portanto, todos os dias se colocafrente ao espelho, se veste de mulher, e diz da parte superior do seu corpo que qualquer um que o visse chegaria à conclusão de que é um busto feminino. Mas para poder ficar situado no lugar em que vai parar em seu delírio – como mulher de Deus – necessita deuma prática transexual com seu corpo, para poder a cada vez, a cada dia, voltar adesenhar seu corpo de mulher. Precisa todo tempo voltar a realizar essa prática que lhegarantiria que seu corpo é feminino e que ele á a mulher de Deus. É o que Lacan chamagozo transexual.

5. O Buraco permanece  

Lacan entende que na estabilização da psicose há um trabalho de reconstrução docampo da realidade em torno do buraco. Nesta estabilização não se trata de que estes

 buracos cheguem a ser recobertos, senão que ficam rodeados, encurralados. E,seguramente, isso é o que faz com que em algum momento se possa voltar a

desencadear, já que o buraco permanece, e qualquer acontecimento da vida pode fazer com que o campo da realidade volte a desmontar. É o que aconteceu com Schreber quando seu pai morreu e começou um litígio pelos Schrebergärten. Os Schrebergärteneram umas instituições que seu pai tinha inventado para recrear a vida natural na cidade.Haviam sido construídas distintas sedes, e o problema ou a disputa estava em quaisficariam finalmente com o nome Schrebergärten e quais não. Então Schreber éconvocado a determinar quais vão ter o nome do pai e quais não. Finalmente, quandovolta a precisar do Nome do Pai para responder a uma situação da vida, todo essetrabalho, que lhe havia custado anos levar adiante, se derruba em um momento.

 Não se cobre o buraco, mas se o bordeja. E Lacan justamente observará que se dá todauma luta em torno do buraco. Trata-se de todo o sofrimento de Schreber acerca de queDeus o quer mulher e inicialmente ele não quer, até que ao final se reconcilia com essaideia. O campo da realidade se restabelece então ao redor destes dois buracos, e por outra parte há duas questões que ficam de fora dessa remontagem do delírio. Háquestões subjetivas, singulares, que ficam fora do delírio, talvez inclusive do tipoclínico, que seguramente respondem à estrutura do sujeito, mas talvez não à estruturaclínica.

O tipo clínico, neurose ou psicose, não é tudo o que é um sujeito. Nesse sentido, poderíamos dizer que a estrutura subjetiva e a estrutura clínica não se recobrem

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conceituara o objeto a. Quer dizer que já chegara à conclusão de que na constituição darealidade, além do imaginário e o simbólico, intervém o real. É, então, que investigaráde que maneira intervém o real, questão que não encontramos à altura dos esquemas R eI, já que neles encontramos o imaginário, o simbólico e a realidade, que não é a mesmacoisa que o real, já que a realidade pode se desarmar, mas o real não. Como disseanteriormente, o objeto a para Lacan é um real segregado pelo simbólico.

O que Lacan vai dizer é que em um primeiro momento de sua constituição em relaçãoao Outro da linguagem, o sujeito aceita a alienação aos significantes do Outro, aceitaestar determinado pelo Outro e, então, em um jogo dialético com o Outro da linguagem,vai se constituindo como sujeito através de distintas operações que vão ser resumidas nadialética alienação-separação.

 No entanto, ao final de toda essa operatória Lacan diz que fica um resto que não ésimbólico. Desta operação de constituição do sujeito fica algo não simbolizável, quenão é nem simbólico nem imaginário, e o chamará objeto a. Este vai ser o objeto da

 psicanálise, o objeto com o qual o sujeito tem que se haver. Trata-se de um objeto paradoxal, que não é nem simbólico nem imaginário, que tem a consistência de umvazio e que está ligado ao que em Freud é o objeto da pulsão.

Deste modo, à altura deste terceiro tempo, Lacan proporá que como resto daconstituição subjetiva, o sujeito é pego em uma relação muito complexa com esteobjeto, uma relação entre simbólico e real. A relação do sujeito com este objetocomplexo que é o objeto a, é a que encontramos na fantasia, que se escreve: $<>a.

 Neste matema, o losango dá conta de que a relação do sujeito com o objeto é moebiana,esse losango é uma banda de Moebius.

Vamos ao acréscimo da página 535. Este acréscimo é interessante porque Lacanlocaliza no esquema R o objeto a para esclarecer o que este traz à constituição do campoda realidade. Lacan sustentará que tal campo se sustenta pela extração do objeto a. Por 

Basta dizer isso, já que, a partir daí, esse campo será apenas o lugar-tenente da fantasia ao qual esse

corte fornece toda estrutura.

Queremos dizer que somente o corte revela a estrutura da superfície inteira, por poder destacar nela osdois elementos heterogêneos que são (marcados em nosso algoritmo ($<>a) da fantasia), o $, S barrado

da banda, a ser esperada aqui onde ela efetivamente surge, isto é, recobrindo o campo R da realidade, e

o a, que corresponde aos campos I e S.

Portanto, é como representante da representação na fantasia, isto é, como sujeito originalmente

recalcado, que o $, S barrado do desejo, suporta aqui o campo da realidade, e este só se sustenta pela

extração do objeto a, que, no entanto, lhe fornece seu enquadre.

Medindo por escalões, todos vetorializados por uma intrusão apenas do campo I no campo R, o que só é

bem articulado em nosso texto como efeito do narcisismo, é inteiramente impossível, portanto, que

queiramos reintroduzir aí, por alguma porta dos fundos, que esses efeitos (leia-se “sistema das

identificações”) possam teoricamente fundar, seja de que maneira for, a realidade.

Quem acompanhou nossas exposições topológicas (que não se justificam pela estrutura da fantasia a ser

articulada) deve saber perfeitamente que, na banda de Moebius, não há nada de mensurável a serretido em sua estrutura, e que ela se reduz, como o real aqui em questão, ao próprio corte.

Esta nota é indicativa do momento atual de nossa elaboração topológica (julho de 1966).”  

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isso, podemos dizer que para que se constitua a realidade, o objeto a deve estar barrado,deve estar fora, não tem que estar presente.

Aqui Lacan conceituará esta banda [faixa] do campo da realidade como uma banda de

Moebius, em função de que para passar do lado ao lado se passa de um lado a

outro do mesmo modo que se passa de um lado a outro em uma banda de Moebius, semcruzar nenhuma borda. Conceberá, então, que o campo da realidade vai estar sustentado

 pela fantasia, e que esse campo somente se sustenta pela extração do objeto a. Isto é, para que se constitua o campo da realidade, o objeto a tem que estar extraído do corpo,o que é muito importante para tratar a lógica da psicose.

Para dizê-lo rapidamente, o que possibilita que o objeto a seja extraído é o fato de que osimbólico afeta o corpo, o significante mata a coisa, extrai o gozo do corpo, esvazia-o.A operação simbólica consiste em esvaziar o corpo de gozo, em extrai-lo como objeto a.

A primeira versão freudiana desta operação é o objeto perdido, é o fato de que a pulsãocontorna um objeto vazio, não um objeto da realidade, que está em relação com umobjeto que é perdido por estrutura, o que vai possibilitar retornos localizados de gozo noque Freud chamava de zonas erógenas. Por isso, depois Lacan vai falar em “mais degozar”, de retornos de gozo que vão dar conta do que é o gozo pulsional, gozo que naneurose está demarcado pelos buracos do corpo  – que Lacan vai chamar de zonas de

 borda  – que estão entre o dentro e o fora do corpo, nessa borda moebiana que une odentro e o fora.

Por outro lado, na psicose quando é desencadeada, o gozo se encontra no interior docorpo. É o que explica a vertente hipocondríaca que costuma acompanhá-la noschamados fenômenos de órgão. No desencadeamento  – ao menos na esquizofrenia  – ogozo volta ao interior do corpo (não às zonas de borda) e isto ocorre porque não seconstituiu essa relação moebiana entre o sujeito e o objeto; portanto, o objeto a não estáextraído. Por isso, Lacan em um texto que se chama “Discurso aos Psiquiatras”, diz queo psicótico leva o objeto a no bolso, isto é, que não está extraído. Em consequência, ocampo da realidade está colado com alfinetes.

Isto me parece que é o fundamental do que ele agrega nesta nota de pé de página.

E isto é o que nos vai levar na próxima aula ao paradigma Joyce, ao quarto momento, jáque este esquema dá conta do que acontece entre os registros imaginário e simbólico,mas não do que acontece com o registro real. Inclusive, a solução que Schreber consegue é imaginário-simbólica, dado que essa metáfora delirante é uma metáfora quevem suprir a metáfora paterna faltante. Mas essa metáfora delirante é sustentada por umIdeal, e este Ideal é simbólico-imaginário (não é puramente simbólico, o que, sim,ocorre com o Nome do Pai, que é uma metáfora puramente simbólica) e, ao mesmotempo, é suportado por uma prática com a qual ele tem que sustentar todo o tempo umaimagem feminina em seu corpo. A solução de Schreber é então uma solução precária e,

 por isso, depois volta a desencadear.

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Este acréscimo posterior que Lacan faz, no qual fala da extração do objeto a, nos leva anos perguntar como pensar a estrutura psicótica se, além do triângulo simbólico-imaginário, acrescentamos o registro real, como este afeta as estruturas da neurose e

 psicose.

É nesse momento que Lacan vai propor a estrutura não como uma estrutura de dois, masde três: real-simbólico-imaginário, RSI.

Seguramente há muitas coisas que ficam sem ser entendidas, mas vamos voltar sobreelas com a prova da clínica. O que me interessa é que se possa seguir o problema lógicoque formula o paradigma Schreber, situar o limite do paradigma Schreber, localizandoaté que ponto toda essa conceituação tem o limite de não dar conta do que acontece noregistro do real.

19 de abril de 2007

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Cap. II – Das Condições Lógicas para a Chegada ao Paradigma Joyce

1.Da Realidade ao I nf in ito 

 Na aula passada introduzi um tipo de diacronia no ensino de Lacan para localizar o quechamei o paradigma Schreber, baseando-me no escrito sobre a psicose “De uma questão

 preliminar a todo tratamento possível da psicose”. 

Aproximemo-nos do termo que dá título a este seminário. Vamos nos aproximar doconfim realizando um tipo de progressão no ensino de Lacan, antes de chegar à próximaaula, que será a última meramente teórica, na qual entraremos no paradigma Joyce, naclínica borromeana.

 Na aula de hoje vamos localizar as condições lógicas que desembocam nesse segundo

 paradigma da psicose que podemos encontrar no ensino de Lacan.

Para começar, remontarei ao que considero central nos esquemas que vimos na aula passada, ao osso dos esquemas R e I. O esquema R, como esquema da realidade naneurose, e o esquema I, como uma possível solução ao problema da perda da realidadena psicose.

Tínhamos visto como o esquema I mostra a maneira com que Schreber consegue  – noestádio terminal de sua psicose – rearmar, reestruturar, reconstruir o campo da realidadesem contar com os significantes do Nome do Pai e do falo.

Então, para poder avançar um pouco na formalização que vai levar Lacan até os nós, àclínica borromeana e, com ela, ao paradigma Joyce, começo por esta fórmula conhecida

 por todos vocês, a fórmula da metáfora paterna, que está na base dos esquemas quedesenvolvemos na aula passada (esquemas R e I).

Esses esquemas, como vocês lembram, têm como referente  – justamente para que seja possível sustentar essa banda intermediária entre imaginário e simbólico, que é o campoda realidade – o significante Nome do Pai e a significação fálica, que encontramos tantona metáfora paterna como no esquema R.

Quer dizer que se se quer depurar totalmente a metáfora paterna e reduzi-la à suamínima expressão, poderíamos assinalar que consiste finalmente nessa operação na qualse trata, por um lado, do significante Nome do Pai, enquanto significante do significantee, por outro, do falo, enquanto significante da significação.

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Enfim, esta seria a estrutura mínima da metáfora paterna que, desdobrada, dá osesquemas R e I. É o primeiro Lacan, aquele que havia desenvolvido o registroimaginário, regido pelo estádio do espelho. A chave nesse segundo momento de seuensino, à altura do paradigma Schreber, é a fórmula da metáfora paterna. Vamosretomar hoje algumas questões já colocadas, mas em princípio poderia dizer que o

 paradigma Schreber tem certos limites.

O esquema R, que dá conta de como se constitui a realidade nas neuroses a partir do Nome do Pai e do falo, possui algumas limitações. Por um lado, e como vocês lembram,o esquema R é um esquema que somente conta com os registros imaginário e simbólico,regidos, um deles, pelo significante Nome do Pai e, o outro, pela significação fálica.

É um esquema que não dá conta de como entra em jogo o registro do real.Posteriormente, com o acréscimo da nota de pé de página  – que mencionei a vocês naaula anterior  – Lacan complexifica a banda da realidade como uma banda moebiana, aqual estaria sustentada, instalada, a partir da instalação do objeto a. Aí, poderia dizer que há certa operação que deve se produzir no campo do real para que se arme o campoda realidade neurótica. Isto é algo que Lacan introduz bem posteriormente ao momentodo escrito, sobrevindo no ano de 1966, quando está conceituando o objeto a comoreferente do registro real.

Porém, à altura do escrito “De uma questão...”, à altura do esquema R e do esquema I,só contamos com os registros imaginário e simbólico  –  entre eles a primazia é dosimbólico sobre o imaginário. Daí a ideia de Lacan de que Schreber, depois do debacle

imaginário produzido pelo desencadeamento de sua psicose, consegue rearmar o campoda realidade (esquema I), esticando os vértices do esquema R para suprir de algummodo a falta do significante do Nome do Pai e do significante fálico.

Desta maneira, o que Lacan faz é mostrar todo o trabalho de Schreber em torno destesdois buracos, um trabalho com o qual reconstrói, através do delírio  –  e de suacondensação final na metáfora delirante  – o campo da realidade, mas de modo distintodo esquema R. Claro que esta reconstrução do campo da realidade é imperfeita, nosentido de que há um fecho que não se consegue.

 No esquema I que desenhei aqui, Schreber remonta o campo da realidade com umametáfora delirante. Mas me interessa deter hoje nisto que fica aberto aqui, nestesespaços que ficam abertos e que marco com o símbolo do infinito.

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É essa realização assintótica à qual Lacan faz referência neste texto. Schreber vai setransformar em mulher de Deus e vai procriar gerações de filhos de Deus em uma“temporalidade assintótica”, segundo Lacan. Quer dizer , isto vai se realizar em umtempo que não se sabe qual é, mas é justamente a perspectiva dessa realizaçãoassintótica o que o estabiliza, o fato que não tem por que ser agora, que não se sabequando vai ocorrer.

Podemos localizar o infinito em cada um destes vértices que ficam abertos. São linhasque não terminam de se fechar, de se juntar, ou que se juntam assintoticamente. Por isso, no esquema há algo que não fecha, que fica aberto, diferentemente do que ocorreno esquema R, onde temos esse quadrado no qual os triângulos do imaginário e dosimbólico estão perfeitamente fechados e o campo da realidade é uma banda que estátambém perfeitamente fechada.

A estabilização da psicose de Schreber tem como sintoma esta abertura dos quatrovértices ao infinito, implicados pela realização assintótica de seu delírio, e se pode dizer que nesta abertura, que nesta solução temporal que Schreber encontra, aí se encontra

 justamente o núcleo do que vai ser seu terceiro desencadeamento. Porque isso não éalgo que fica verdadeiramente fechado, senão que está pronto para voltar a se abrir.

Por isso, me interessa situar os limites da solução de Schreber e com eles também oslimites deste paradigma, na medida em que, no escrito “De uma questão preliminar...”,Lacan tenta pensar o tratamento psicanalítico dos psicóticos. Neste texto terminadizendo que sua finalidade era dar uma ideia de qual é a possível manobra da

transferência com os psicóticos, de modo que finalmente se trata de um texto clínico.Então, o que se deduz deste paradigma? Ou, melhor dito, o que se deduziu durantemuito tempo em Buenos Aires? Permanecia a ideia de que na direção da cura do

 psicótico se tratava de que o sujeito se estabilizasse pela via de alguma metáforadelirante. E, então, havia problemas com os pacientes psicóticos cujos delírios nãochegavam nunca a uma formulação metafórica, já que esta se apresentava como a única

 possibilidade de que se rearmasse o campo da realidade na psicose. E nem falar dagrande quantidade de psicóticos que nunca deliram. Este é o limite do paradigmaSchreber: a redução à solução pela via da estabilização através da metáfora delirante,

que na realidade é uma solução que fica bastante aberta.

 No caso de Schreber, fica clinicamente confirmada sua abertura no fato de que teve umterceiro desencadeamento, do qual Lacan não parece ter chegado a inteirar-se.

Quando faz o esquema I e situa esta solução, é a mesma que podemos encontrar lendoas memórias de Schreber. As memórias foram escritas justamente no momento em quealcança a máxima estabilidade de seu delírio. A escritura de seu delírio e o testemunhoante um júri é o que vai permitir recobrar seus direitos civis, inclusive sua posição

 profissional. Deste modo, o esquema I dá conta desse momento da vida de Schreber, da

estabilidade que, para ele, durou vários anos.

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2. Nomeação Paterna. Basta a Mãe. 

Antes de chegar ao paradigma Joyce e poder situar toda a perspectiva que se abre aí,temos que dar passos intermediários. Vamos dedicar a aula de hoje a esses passos.

O ponto de partida dos esquemas R e I é a metáfora paterna. O significante Nome doPai, que vem suprir o significante Desejo da Mãe, instala o significante fálico como osignificante que daria conta dos efeitos de sentido, dos efeitos de significação. Ametáfora paterna é uma operação absolutamente simbólica para Lacan ou, em todo caso,simbólico-imaginária, já que o Nome do Pai é um significante do simbólico e osignificante fálico é um significante do imaginário.

Como situamos ao final da aula passada, Lacan começa a se perguntar pelo resto realdesta operação metafórica, predominantemente simbólica. Seguramente sua prática oleva a se encontrar com isso que vai chamar objeto a, que é algo que não consegue em

nenhum momento entrar na lógica simbólica, e que é de algum modo o osso duro deroer da análise.

Assim, entramos em um terceiro tempo no ensino de Lacan, no qual a partir destaoperação pela qual o simbólico constitui um imaginário, se produz um resto real, que éo objeto a. Como dissemos na aula passada, neste esquema o real é segregado pelosimbólico, é um efeito do simbólico, e é o objeto a. Poderíamos escrevê-lo assim:

S > I / R(a)

A esta altura tem que reformular o Édipo freudiano, já que necessita de uma operatóriaque vai mais além dos limites puramente simbólicos da metáfora paterna. A novaformulação que Laca vai fazer do Édipo freudiano é o Discurso do Mestre. Nele Lacanvai tratar de dar conta da operação edípica tendo em conta esse resto real.

Este é o Discurso do Mestre:

 No Discurso do Mestre encontramos novamente uma operação eminentementesimbólica. É uma operação de articulação entre os significantes, S1 e S2, que produz umefeito que é o efeito sujeito, sujeito dividido, sujeito do inconsciente, o sujeito que ficadividido entre dois significantes, por exemplo, em um lapso. Encontramos este efeitosujeito quando alguém está falando e quer dizer uma coisa, mas diz outra, ficandodividido entre o que queria dizer e o que diz, produzindo-se a emergência do sujeito doinconsciente, já que nesse lapso ele é a própria divisão entre dois significantes.

O que acrescenta agora Lacan é que esta operação simbólica tem um resto, resto esteque vai dar lugar em sua formalização, que é o objeto a. Mas este resto é distinto,

heterogêneo em relação aos outros três elementos do discurso. Por isso, entre os outroselementos há flechas, mas aqui em baixo não, aqui encontramos a dupla barra do

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impossível que diz que não há nenhuma flecha neste lugar, porque este resto não podevoltar a ser assimilado pelo simbólico, já que é um dejeto do simbólico, é um dejeto

 porque não pode voltar a se meter na maquinaria significante, que resiste a ser absorvido. Nesse sentido, o objeto a cumpre, na divisão do sujeito, exatamente a mesmafunção que cumpre o resto na operação matemática da divisão: é um número que nãoentra nas operações matemáticas seguintes.

Ao mesmo tempo, este Discurso do Mestre situa como agente um S1. O S1 é osignificante mestre, é o significante primordial, é também o Nome do Pai. O Nome doPai é um significante único, um significante ímpar, é o único significante que sesignifica a si mesmo e, enquanto tal, é garantia da cadeia, que permite o estabelecimentodo conjunto dos significantes.

Outra maneira de escrever a formulação S1 => S2 é: porque se extrai um significantedo conjunto dos significantes, pode-se fechar o conjunto. Este que extraio, que é afunção do -1 em matemática, é o Nome do Pai, e é o que permite que todos os outrossignificantes se ordenem, que se possa contar e que então se constitua um saber. A todoesse conjunto podemos chamar S2, é o saber, são os significantes que estão ordenados a

 partir da extração de um desses significantes, distinto, ímpar.

Essa é a função que cumpre o Nome do Pai como estrada principal, aquela que ordenatodos os significantes ao seu redor. Por isso, instala o Discurso do Mestre, já que

 permite que as coisas andem, permite uma ordenação da linguagem. Também podemosdizer que o Discurso do Mestre é, como diz Lacan, o discurso do inconsciente.

A operação edípica arma isso que chamamos inconsciente, onde temos um nível, o nívelsuperior do discurso no qual se produz a operação significante, e no qual ossignificantes copulam entre si, e vão armando uma cadeia que vai ser lida, decifrada nocampo analítico. E, no piso inferior do Discurso do Mestre, temos a fórmula da fantasia,com essa dupla barra da impossibilidade.

É nesse espaço de impossível relação entre o sujeito e o objeto que vai se estabelecer olosango que dá lugar à fórmula da fantasia: $<>a, na qual se trata de combinar doiselementos heterogêneos, um deles real (a) e o outro, simbólico ($). É que aqui não há

cópula – a que, sim, encontramos no piso de cima entre os significantes  – senão que setrata da impossível relação que tem o ser falante com o objeto. Os seres falantes estãorelacionados paradoxalmente com o objeto. Não somos sujeitos que nos acomodemosdiretamente com o objeto como fazem os animais, senão que temos essa relaçãoromboide, paradoxal, complexa, com o mesmo. Uma relação onde se trata de combinar dois registros que não tem nada em comum um com o outro.

A fantasia é uma espécie de forçamento que trata, mediante uma operação topológica,de combinar essas duas coisas que, na realidade, não combinam em nada. Esta é acomplexidade da metáfora paterna pela qual Lacan começa a dar lugar a este resto real.

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Há uma questão na qual não vamos poder nos deter muito, mas que queria deixar assinalada e que talvez algum dos casos que vejamos até o final do seminário ofereçaoportunidade para desdobrar mais, que é a questão da época, a que também vai fazer a

 passagem do paradigma Schreber ao paradigma Joyce.

O que Lacan vai dizer é que o que ocorre nesta época é que o Discurso do Mestreclássico, que é o discurso da função paterna clássica, foi modificado pelo que ele chamade mutação capitalista.

Quer dizer, o Discurso do Mestre atual é o resultado de uma mudança na escritura dodiscurso pelo qual se inverteram dois termos:

 Nesta escritura não só se inverteram os termos, mas todo o funcionamento discursivomuda. Lacan diz que com o surgimento do capitalismo se opera uma mutação radical doDiscurso do Mestre. A mutação é um termo da genética que indica que há umamudança na escritura que se transmite à geração superior.

O que Lacan está dando a entender quando fala da mutação do Discurso do Mestre éque a partir de determinado momento da história dos seres falantes do ocidente surge ocapitalismo, se produz uma transformação que vai afetar todas as gerações subsequentese, a partir de então, algo do estatuto do sujeito vai mudar. Este sujeito barrado doDiscurso do Capitalismo já não será o mesmo que o sujeito dividido do Discurso doMestre clássico, que é o sujeito do inconsciente.

Antes de avançar com o Discurso do Capitalismo, queria esclarecer que para Lacan osdiscursos, o da Histérica, o da Universidade, o do Analista, são discursos que surgem a

 partir do Discurso do Mestre clássico, a partir de distintas rotações do Discurso doMestre clássico. É por isso que Lacan dirá que o Discurso do Analista é o avesso doDiscurso do Mestre. Nestas mudanças de discursos se trata só de rotações, mudam asletras de lugar, mas a estrutura permanece sempre igual, a estrutura de base é igual paraos quatro discursos, que são discursos habitados por um impossível, por essa dupla

 barra do impossível, nos quais algum elemento vai vir ao lugar do produto (inferior direito), que vai ser o real de cada discurso, o que vai tornar impossível a permanentereabsorção da operação. É a partir do ponto de impossível que habita cada discurso quesurge a possibilidade de passar de um discurso a outro. Para Lacan, é a própriaimpossibilidade que habita cada discurso que leva à necessidade de passagem a outrodiscurso.

Vocês se darão conta de que o Discurso do Capitalismo não obedece a este esquema. NoDiscurso do Capitalismo, o que encontramos? Há quatro flechas, um movimentocircular e não encontramos por nenhum lado a dupla barra do impossível. É um discurso

que na realidade não é um discurso, porque infringe as regras do discurso, começa afuncionar loucamente de outra maneira, já que desarma a dupla barra da impossibilidade

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e entra em um funcionamento autônomo, no qual está todo o tempo retroalimentando-se. É o caráter entrópico que Marx atribuía ao capitalismo. É nesse ponto que costumase dizer que o capitalismo é um pseudo-discurso.

Vejamos agora o que implica esta inversão das letras no discurso do capitalismo. Para

começar, o que implica é que no discurso do capitalismo o agente passa a ser o sujeitodividido. O Discurso do Capitalismo é para Lacan o Discurso do Mestre atual. O outroseria o Discurso do Mestre clássico, o discurso que possibilitou o surgimento doinconsciente, do sujeito da psicanálise.

 Neste Discurso do Mestre atual, em lugar de ter como agente um significante mestre,um significante fundamental como é o Nome do Pai, tem um sujeito que a princípio

 parece um sujeito dividido. Mas na verdade esta barra não é uma divisão efeito de umaarticulação entre dois significantes, quer dizer, não é o sujeito do lapso, não é o sujeitoque emerge na equivocação entre significantes, mas muito mais um sujeito que está em

 posição de agente, em posição de domínio. Deste modo, no Discurso do Mestre atual oMestre é um sujeito, não é o Nome do Pai, não é um S1, não é um significante quecomanda, senão o próprio sujeito.

 No entanto, esta barra que afeta este sujeito não é a mesma barra que afeta o sujeito doDiscurso do Mestre clássico, que é a barra do ele não sabia, a barra desse não saber quena realidade é um saber que está em outro lugar, no inconsciente. A barra que afeta osujeito do Discurso do Capitalismo é a barra do que Lacan vai chamar, em“Radiofonia”, a falta-de-gozar. É um sujeito que está carente do gozo absoluto, que não

conseguiu ser um sujeito completo. Os sujeitos do Discurso do Capitalismo são mestres,estão em posição de mestres, mas estão movidos por uma falta de gozo, lhes falta algumgozo que os complete, algum gozo que os preencha, que os sature. A este sujeito docapitalismo chamamos consumidor .

O consumidor é alguém que quer consumir, que está em posição de mestre e que justamente exige um objeto que venha lhe fazer crer, ainda que seja por um tempinho,que não está divido, que realmente é um mestre; reclama que o objeto venha preencher sua falta.

Obviamente, estes dois sujeitos não são iguais, e não é a mesma coisa que chegue aoanalista um ou outro.

Há outra questão. No Discurso do Mestre clássico o sujeito do inconsciente édeterminante para o lugar de agente do Nome do Pai em posição de S1. Há um efeitodesde este lugar que é o lugar da verdade, habitado pelo sujeito dividido, sobre o agenteem posição de mestre. Por outro lado, no Discurso Capitalista encontramos umainversão da flecha, pela qual o sujeito consumidor na realidade faz um uso destessignificantes mestres, desses significantes fundamentais que o determinam. Por exemplo, podemos situar neste lugar o toxicomaníaco, que é o consumidor ideal, que

está buscando esse objeto químico que o faça esquecer de sua falta de gozar, que lhe permita entrar no sonho de uma completude eterna.

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Também se vê que a relação entre o sujeito e o objeto é uma relação que perde toda essariqueza topológica paradoxal que tinha a relação entre o sujeito e o objeto no campo dafantasia neurótica, na qual se tateia o impossível do encontro entre o sujeito e o objeto.Esse sujeito do inconsciente em algum lugar sabe que é impossível apropriar-se doobjeto e, por isso, requisita a fantasia.

Enquanto o consumidor exige que o objeto se acomode a ele, caso contrário, fará asreclamações que correspondem a seus direitos de consumidor. Então, é a ideia de que háum objeto que teria de se acomodar a ele e preencher sua falta de gozo, com o que se

 perde essa relação impossível, se perde de vista a impossibilidade. Por isso, Lacan dizque o Discurso do Capitalismo foraclui a castração, foraclui a impossibilidade, deixa defora a impossibilidade de acomodação [adequação] entre o sujeito e o objeto, ao crer que o objeto pode apagar a barra do sujeito.

Enfim, há muito mais para dizer sobre isto, mas não podemos nos deter aqui. Sim, éimportante levar em conta que o surgimento deste discurso e deste tipo de sujeito mudaa clínica, muda os quadros clínicos, tanto no campo da neurose como nas psicoses.

Inclusive, chega a colocar em questão a divisão neurose-psicose, já que esta divisão sesustenta no Nome do Pai, já que só podemos falar de neurose e psicose se dizemos queo Nome do Pai está admitido ou está foracluído, isto é, se o que impera é o reino do Pai.Entretanto, se já não é mais o reino do pai, se o que impera não é o Nome do Pai, entãohá que ver se se pode continuar sustentando a divisão neurose-psicose, já que entãonosso referente deixa de ser a presença ou ausência do Nome do Pai. Já se trata de outro

tipo de estrutura que é nomeada, designada de outra maneira. Não tenho muito tempo para desdobrar isso. Deixo-o indicado: Lacan fala de outro tipode nomeação no Seminário 21: os “nomes do pai” ou “os não-tolos erram”. Diz quenesta época cada vez mais se prefere outro tipo de nomeação que a nomeação paterna, ea este outro tipo de nomeação vai chamar  nomear-para. Vai dizer que neste tipo denomeação basta a mãe, não é necessário o pai, e que, além disso, nessa nomeação o laçosocial tem prevalência de nó, isto é, que o que enoda a estrutura, o que entrança aestrutura do sujeito é o tecido social.

 Neste tipo de nomeação não entra o Nome do Pai, pode ser emitida pela mãe ouinclusive pelo pai do sujeito, mas Lacan diz que basta só a mãe e é preferida em relaçãoao Nome do Pai. É uma nomeação mais rígida, porque vai implicar a perda da dimensãoamorosa.

O que a psicanálise nos ensina é que sempre que estamos no campo do amor está em jogo o Nome do Pai, que o amor é em primeiro lugar amor ao pai, e que quando se perde esse tipo de nomeação se entra em outra zona.

O nomear-para designa um projeto rígido para o filho, é o Outro que designa o filho para algo, marca um caminho na vida para ele. À diferença da nomeação paterna quenomeia o filho dizendo: “tu és meu filho, faça teu caminho”; ou “te dou a possibilidade

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de ser em uma cadeia de gerações, te dou a possibilidade da filiação, mas vais ter que

encontrar-te com teu desejo”. É aí que se abre a possibilidade da psicanálise.

Enquanto que com a outra nomeação, o designar para algo é geralmente a mãe que diz“te designo para tal coisa”. Então, o sujeito passa a vida cumprindo esse mandato, há

uma rigidez na relação com o objeto, diferentemente do que é essa cadeia flexível que éa cadeia da fantasia possibilitada pela nomeação paterna.

Outra questão para pensar os casos atuais é que justamente esta nomeação rígida armauma estrutura muito encadeada, isto é, que o sujeito que é nomeado-para, que não énomeado pelo pai, não está desencadeado. É um sujeito que tem um encadeamentomuito rígido, muito mais rígido que a neurose, então as formas clínicas mudam.

Certamente não vai ser o mesmo uma psicose que se desencadeia – na qual encontramostodos esses fenômenos que conhecemos no caso Schreber, por exemplo, da derrubada

da realidade, que sente que seu corpo se desarma, que lê em um jornal que morreu, etc. –  que este outro tipo de nomeação, na qual não está em jogo o Nome do Pai mas osujeito anda em linha reta, como uma espécie de packman, ou como um robô,cumprindo como um bonequinho um mandato. Claro que há uma rigidez desse tipo defuncionamento; e aqui fica a pergunta de como diagnosticamos estes casos. Porque

 podemos dizer que nesta época ainda continuam existindo sujeitos do inconsciente, paraos quais funciona a nomeação paterna, mas também existem estes outros sujeitos.Deixamos aberta esta questão.

3. As Fórmulas da Sexuação  

Vou dedicar a última parte desta aula a dar um passinho mais em direção ao paradigmaJoyce em Lacan.

A questão é que a metáfora paterna e o Discurso do Mestre são formulações do Édipoque em algum sentido poderíamos dizer que são pré-freudianas. Em que sentido? Nosentido de que não dão conta da dissimetria dos sexos, isto é, de como se articulam ocomplexo de Édipo e o complexo de castração no menino e na menina. Freud dizia quea menina entra no Édipo pelo complexo de castração enquanto o menino sai do Édipo

 pelo complexo de castração.

Mas a metáfora paterna e o Discurso do Mestre não dão conta destas distinções, destasdiferenças. Poderíamos dizer que são formulações assexuadas do Édipo, que não dizemnada da maneira que intervêm tanto o Nome do Pai como o Significante Fálico no casode um homem ou uma mulher, ou que papel joga a fantasia nos homens e nas mulheres.

Assim como, no segundo tempo de seu ensino, para Lacan não foram suficientes osregistros simbólico e imaginário e teve de conceituar o objeto a, neste quarto tempo  –  tempo posterior ao que estamos situando aqui no nível da formalização dos discursos  –  não lhe foi suficiente pensar a estrutura desde o Édipo masculino e necessitou ir à

dissimetria do Édipo nos sexos, isto é, necessitou formalizar o que acontece do lado dasmulheres. Assim é como entramos no quarto tempo de seu ensino.

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É um tempo no qual Lacan introduz as fórmulas da sexuação e, com elas, certaequivalência entre simbólico e real.

 Neste tempo, Lacan esquece-se um pouco do imaginário e, por isso, mais adiante irá buscar em um nó, além do simbólico e o real, para o imaginário. Mas então já se trata

do momento quinto, que desenvolveremos na próxima aula com o paradigma Joyce.

A reintrodução da dissimetria dos sexos no Édipo implica, neste quarto momento, dar conta de duas lógicas distintas. Por um lado, a lógica do macho, que daria conta decomo o menino entra e sai do Édipo e, por outro, a lógica do lado fêmea, que dariaconta de como entra e sai a mulher. Poderíamos dizer que a lógica do lado macho é umalógica do simbólico e que a lógica do lado fêmea é uma lógica do real. Tratarei defundamentá-lo.

O referente que Lacan utiliza para as fórmulas da sexuação não é o mito de Édipo, maso mito de Totem e Tabu. Este mito seria, segundo Freud, a versão filogenética do Édipo,na qual do que se trata, do mesmo modo que no mito de Édipo, é do que fazem oshomens com o poder sexual do pai. No caso do mito edípico, matam-no e se deitamcom a mãe, mas sem sabê-lo – daí a genialidade de Freud ao ir buscar exatamente estaentre tantas tragédias antigas para inventar um mito, este sim já moderno, que fala dosurgimento do sujeito do inconsciente: ele não sabia que matara seu pai, tampouco sabia

que se deitara com sua mãe.

 No mito de Totem e Tabu os filhos também terminam matando o pai, mas à diferençado mito edípico, não se deitam com a mãe. Aí encontramos a versão freudiana da

 passagem da vida selvagem, da natureza, à cultura; e a instalação da proibição doincesto como uma lei e já não como o resultado de um comportamento déspota de umchefe de horda que tem todas as mulheres para ele.

Lacan toma o mito de Totem e Tabu e, a partir dele, formaliza uma lógica. Começa pelolado esquerdo, que é o lado masculino, escrevendo:

existe um x para o qual não se cumpre a função fálica 

Existe um x, que será encarnado pelo pai da horda. Trata-se de um elemento para o qualnão se cumpre a função da castração, já que o pai da horda está por fora da lei, devido aque para ele não se cumpre a lei da castração, porque tem acesso a gozar de todas asmulheres. Todas as mulheres da tribo lhe pertencem e ele pode gozar delas ao seucapricho, não há nenhuma proibição que o afete. A consequência da existência destafunção de exceção é que todos os filhos estão afetados pela função da castração:

∀x Φx   para todo x se cumpre a função fálica 

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Todos os filhos ficam castrados, nenhum pode gozar das mulheres da tribo, já que o paigoza de todas elas.

Do lado do macho temos, então, dois quantificadores: o primeiro, que é a função daexceção, é encarnada pelo pai da horda  –    –  e o segundo quantificador, que

chamamos universal –  ∀x Φx  – é uma consequência direta, um resultado da função deexceção.

É porque há um que goza das mulheres, que todos os demais ficam afetados pela funçãoda castração e que é impedido o acesso ao gozo das mulheres da tribo aos filhos deste

 pai tirano.

Vocês sabem que no mito da horda há dois tempos: o primeiro tempo no qualencontramos o pai despótico que goza de todas as mulheres e não deixa que ninguém seaproxime; os filhos confabulam, matam-no, comem-no e a culpa retroativa leva então a

que decidam que nenhum vai ocupar esse lugar. No primeiro tempo (que é o que logicao primeiro quantificador), há um que encarna a função da exceção, enquanto que, nosegundo tempo, (logicado por um segundo quantificador), ninguém vai ocupar o lugar do pai, deixará de haver exceção. Mataram-no e depois já ninguém vai voltar a ocupar esse lugar, instala-se a proibição do incesto, põem-se de acordo de que nenhum vaigozar das mulheres da tribo e vão buscar mulheres de outra tribo. A partir deste segundotempo se estabelece o intercâmbio desses objetos de gozo, que são as mulheres, nestalógica mítica que regula as estruturas de parentesco.

Voltemos à questão da dissimetria entre os sexos. Os sujeitos do mito  – tanto do mito

edípico como do mito da horda – são os homens, são os varões. Édipo é um varão, e setrata de que faz o varão com seu amor por sua mãe. No mito da horda os sujeitos são osfilhos, e se trata do que fazem esses filhos com esse pai despótico, tirano, cruel.Enquanto as mulheres, que são? São objetos de gozo. No mito edípico é Jocasta, nomito da horda são as mulheres da tribo. Elas entram no mito como objetos de gozo, nãosão sujeitos do mito.

Podemos concluir, então, que as mulheres não são feitas com esta lógica, já que estalógica dá conta de como se constitui a posição do varão, enquanto a mulher entra só

como objeto. Porém, como ela se constitui em sua posição, além de ser o objeto de gozoeventual de um homem? Essa é a pergunta.

É guiado por essa pergunta que Lacan, em seu escrito de 1958, em “Ideias Diretivas para um Congresso sobre a Sexualidade Feminina”, propunha um programa deinvestigação sobre o feminino, no qual figurava a pergunta acerca de por que não existena psicanálise um mito que dê conta da relação incestuosa entre a filha e o pai. Por queacontece isso? Tem que haver uma razão de estrutura, não se trata de inventar esse mito,mas muito mais de dar conta de sua existência. De fato, clinicamente também se verificaque há mais casos de incesto pai-filha do que mãe-filho – é um tipo e limite, de barreira

diferente o que se atravessa em um e outro.

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Qual é o mito do lado das mulheres? É um mito que Lacan vai introduzir, que não estáem Freud. O mito que vai introduzir no Seminário 20, no qual conclui a construção dasfórmulas da sexuação, é o mito de Dom Juan. Lacan propõe este mito para dar conta dogozo feminino, da posição feminina, já que se trata de um mito inventado pelasmulheres.

 No mito de Dom Juan, Lacan vai tomar como referência a versão que vamos encontrar na ópera de Mozart: “Dom Giovanni”. Detém-se em uma parte desta ópera, na qual ocriado de Dom Juan, chamado Leporello, mostra a Dona Elvira  – que está apaixonada

 por ele e anda perseguindo-o por todos os lados  – a lista de todas as mulheres de queDom Juan gozou, daí a famosa passagem da ópera em que ele lhe diz que ela é uma dasmil e três (mille e tre) da lista.

Lacan se detém nessa lista. Poderíamos pensá-la deste lado: o macho que, à maneira doscaçadores, vai fazendo os entalhes que marcam a quantidade de presas que conseguiramcapturar. Mas o que dirá Lacan é que a lista de Dom Juan é uma lista inventada pelasmulheres, não por homens; e então é outro tipo de lista, porque é uma lista na qual cadauma tem um valor único. Assim, Lacan diz que Dom Juan as conta uma por uma. DomJuan faz amor com elas uma por uma.

E também vai fazer uma diferença entre o que deste lado (lado macho) vai ficar situado,na versão espanhola, como  joder  [foder], e que nós dizemos coger  [transar, pegar], edeste lado (fêmea) se chamará muito mais fazer amor .

Desde a perspectiva macho poder-se-ia dizer que o pai da horda transa [coge] com todas

as mulheres da tribo, agarra-as pelos cabelos, toma-as como objeto. Esta versão damulher como objeto de gozo é a que dá o varão.

Do outro lado, trata-se de qual lógica está em jogo para elas, as mulheres, no que dizrespeito a seu gozo sexuado. Elas não se sentem fazendo parte de um todo, senão quecada uma se sente única, diferente de todas as outras. A lógica da lista de Dom Juan éque ele as ama uma por uma, as conta uma por uma, faz amor com elas uma por uma e,

 por isso, todas desejam Dom Juan, e algumas se apaixonam. De fato, se vocêsassistirem essa ópera de Mozart, é muito claro todo o trabalho que tem Dom Juan de

apaixonar cada uma dessas mulheres. Dom Juan as conquista uma a uma.Para dar conta da lógica feminina, Lacan vai escrever uma lógica do real na qual o

 ponto de partida é a inexistência da exceção:

 Não existe nenhum x para o qual não se cumpra a função fálica

Trata-se da inexistência da exceção, isto é, que cada uma é uma, cada uma é uma em simesma, é uma que não refere a um todo. De algum modo isso já está no mito da horda,

 porque entre as mulheres da horda não há nenhuma que esteja em posição de exceção,

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que voltamos a Cantor e a Russel, dado que se não contamos com a função da exceçãonão podemos armar o todo, não podemos construir o universal A mulher:

Entretanto, o que diz o segundo quantificador é: não todo x está sujeito à função dacastração, e esta seria para Lacan a posição propriamente feminina. Que quer dizer isto?Que ela não está tão só sujeita à função da castração, mas que nela há algo a mais, háoutro tipo de gozo que vai se manifestar em relação a uma ausência, e não em relação àfunção falo-castração. Então, ela é não-toda porque está em relação com o falo, com olado fálico, que é o lado masculino. Está em relação com o Édipo, se constitui comosujeito edipicamente e, claro, por ser mulher, está ao mesmo tempo em relação com umvazio que não tem nada a ver com a castração, com um vazio que não deve nada à

lógica edípica ou fálica.

 Nesse ponto Lacan corrige Freud  –  já que para Freud todo feminino é falta de falo  –   porque Freud aborda as mulheres desde o lado fálico, então, desde sua perspectiva a elasfalta, estão castradas. Por outro lado, para Lacan a mulher está castrada, a ela faltaenquanto é sexuada edipicamente, enquanto ela é um sujeito da linguagem, mas, por outra parte, ao ser mulher, está em relação com um vazio que não é uma falta nem umacastração. Ao contrário, Lacan situa o gozo feminino como um excesso, é algo que estáa mais, que sobra, e que não obedece à lógica fálica.

4. Empuxo para A Mulher . Que éque Funciona como Limite do Lado Femin ino?  Dedicarei os últimos minutos de hoje à questão do Empuxo à Mulher na psicose, paradepois ir ao paradigma Joyce, já que Lacan vai introduzir esta expressão “Empuxo àMulher” na psicose, quando formaliza as fórmulas da sexuação em seu escrito “OAturdido”. 

 Nestas passagens, Lacan revisa a versão do desencadeamento da psicose que tinha proposto em “De uma questão preliminar...”, isto é, à altura do paradigma Schreber. Em“O Artudido” faz esta revisão do seguinte modo: “Poderia aqui , desenvolvendo a

inscrição, que fiz mediante uma função hiperbólica da psicose de Schreber, demonstrar nela o que tem de sardônico o efeito de empuxo-à-mulher...”.

Em primeiro lugar, a função hiperbólica da psicose de Schreber tem a ver com arealização assintótica da solução schreberiana que já havíamos situado nos pontos queficam abertos ao infinito no Esquema I.

Se vocês forem ao texto “De uma questão preliminar...” não vão encontrar em nenhummomento que Lacan fale do Empuxo à Mulher, em todo caso a essa altura  –  comoLacan pensava a psicose desde a perspectiva fálica ou edípica com seus efeitos  – vãoencontrar que diz que como Schreber não pode ser o falo da mãe, então, vai ser AMulher que falta aos homens. Neste momento, Lacan conceitua a solução de Schreber 

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de ser uma mulher em termos da impossibilidade de ser o falo, quer dizer, a feminizaçãode Schreber seria, desde esta perspectiva, uma consequência do empuxo a ser o falo(posição própria da mulher, que se contrapõe a ter o falo próprio da posição masculina).

Mas o Empuxo à Mulher enquanto tal é formulado por Lacan em “O Aturdido”, que é

do ano de 1972 e, então, o liga com um efeito sardônico, o riso sardônico, é um risoaparentemente imotivado que muitas vezes se descreve nas psicoses. O termo provémde sardônia, planta cuja ingestão provoca justamente uma careta semelhante a um riso.Lacan se refere justamente ao efeito sardônico do Empuxo à Mulher quando fazreferência ao seu sem razão.

Aqui Lacan retoma seu escrito do ano 1958 sobre as psicoses, referindo-se à seguintefrase: “... que é pela irrupção de Um-pai como sem razão que precipita aqui o efeito

experimentado como forçamento, no campo de um Outro que há de ser pensado como o

mais alheio a todo sentido...”.

Vocês se lembram que em “De uma questão pr eliminar... ”Lacan propõe a tese dodesencadeamento da psicose pela irrupção de Um-pai no real. Situa uma conjuntura navida do sujeito que apela à função simbólica do Nome do Pai e, ante sua ausência  –  Lacan dirá “o chamado vão”  – o que irrompe é Um-pai no real.

Isto é, desde esta perspectiva, esta função da exceção é necessária por estrutura. Se nãoentra em jogo no simbólico, entrará em jogo no real: ou é o significante do Nome do Pai

 –  que é um significante excepcional que permite que o simbólico se organize dedeterminada maneira – ou não se conta com esse significante e, então, aparece Um-pai

no real  – que no caso de Schreber é Flechsig, como um Outro gozador que vai querer feminizá-lo, que vai querer gozar dele como se fosse uma mulher. Em Flechsig se faz

 presente, para Schreber, a iniciativa do Outro. Finalmente será Deus mesmo que tomaráa posição desta função de Um-pai no real.

Então, retomando esta formulação de “De uma questão preliminar...”, uma maneira deentender o Empuxo à Mulher é pensá-lo desde este primeiro quantificador (do ladomacho): , onde nesta irrupção de Um-pai no real, o sujeito fica como um objetode gozo desse pai gozador, vivo, real, porque não conta com o Nome do Pai. Tratar-se-

á, então, de um sujeito que vai ser gozado pelo pai real, que virá em lugar do pai vivo dahorda, posição que o feminiza e o leva a ter que se transformar em mulher. Isto é, sequer responder logicamente a essa experiência de gozo, vai ter que inventar que é umamulher, vai ter que delirar que é uma mulher. Esta seria uma explicação do Empuxo-à-Mulher desde o lado edípico masculino, que é um pouco como Lacan faz em “De umaquestão preliminar...” quando tenta dar conta da feminização de Schreber com estalógica.

Por outro lado, em “O Aturdido” vai dizer: “Mas, elevando a função a sua potência de

lógica extrema, isso seria desnorteante. Já pude avaliar a dificuldade que teve a boa

vontade para aplicar isso a Hoelderlin: sem êxito”. Aqui faz referência a um texto deLaplanche que se chama “Hoelderlin e a Questão do Pai”, onde Lacan toma o escrito de

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Lacan “De uma questão preliminar...” e trata, com essa lógica, de dar conta da psicosede Hoelderlin. É um forçamento total, já que Um-Pai no real não aparece em nenhumlado e, então, Lacan de algum modo está dizendo: “Se para dar conta do Empuxo àMulher ou da feminização na psicose vamos recorrer a esta lógica, se levamos a lógicade Um-pai ao extremo, nos desviamos, nos perdemos, como ocorre a Laplanche comHoelderlin”. 

E Lacan continua: “Acaso não é muito mais fácil, ou mesmo um deleite promissor,

imputar ao outro quantificador o singular de um „confim‟, porque obriga à potência

lógica do nãotodo a ser habitada com o recesso de gozo que a feminilidade subtrai...?”.

Depois segue com todo um desdobramento que poderia levar muito tempo paradecifrarmos. O que me interessa assinalar é que Lacan está retificando de algum modosua formulação de “De uma questão preliminar...” e está dizendo que para entender oEmpuxo-à-Mulher na psicose se requer da potência lógica do não-todo. E é então queintroduz o singular de um confim, com o qual voltamos ao título de nosso seminário.

Lacan vai insistir em toda esta época com esta questão. Também em seu texto“Televisão” se pergunta: que é que funciona como limite do lado feminino? Esse grande

 problema que às vezes torna loucos os homens, já que a castração não é um verdadeirolimite para a mulher, que não tem o quê perder. É por isso que, às vezes, quando asmulheres querem algo são mais decididas que os homens  –  porque eles têm o quê

 perder, mas a mulher não. Sempre está em jogo o fato de que a ameaça de castração nãoé real para a mulher e, então, quê vai detê-la? Isto aproxima a loucura da feminilidade, e

vai fazer com que Lacan diga em “Televisão” que são todas loucas, ainda que nãoloucas de todo.

Introduz o termo de confim para dar conta de como funciona, ou qual é o limite do ladofeminino, que não tem a precisão lógico-simbólica do limite político de um mapa.Porém, há algo que finalmente funciona como separação, algo muito difícil de precisar,de determinar. É por isso que Lacan propõe, em “O Aturdido”, que para dar conta dissoque fica aberto na psicose, teria que se pensar justamente desde a lógica feminina, e queo que dá conta do Empuxo-à-Mulher na psicose é o fato de que o psicótico não contacom o limite da castração por não ter-se subjetivado edipicamente. O Empuxo-à’-

Mulher é, então, uma maneira de buscar o confim, de buscar algo que lhe funcionecomo limite onde não conta com o limite da castração.

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