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Setembro 2015 www.sciam.com.br ANO 14 | n o 160 | R$ 13,90 | Portugal € 4,90 9 771676 979006 00160 ISSN 1676-9791 EXOPLANETAS Astrônomos buscam imagens de novos gigantes fora do Sistema Solar EDUCAÇÃO Estudos propõem avaliações que evitam ansiedade e prejuízos ao aprendizado NEUROCIÊNCIA Os ruídos do dia a dia podem gerar danos auditivos irreparáveis Como o CONQUISTAMOS PLANETA Outras espécies humanas habitaram o planeta, mas só a nossa o dominou. Uma nova hipótese explica por quê

Scientific American Brasil - Setembro 2015

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Ótima revista de ciências ,escrita de maneira didática e conceitual .

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Page 1: Scientific American Brasil - Setembro 2015

Setembro 2015 www.sciam.com.br

ANO 14 | no 160 | R$ 13,90 | Portugal € 4,90

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0ISSN 1676-9791

EXOPLANETASAstrônomos buscam

imagens de novos gigantes fora do Sistema Solar

EDUCAÇÃOEstudos propõem avaliações

que evitam ansiedade e prejuízos ao aprendizado

NEUROCIÊNCIAOs ruídos do dia a dia podem gerar danos

auditivos irreparáveis

Comoo

CONQUISTAMOSPLANETA

Outras espécies humanas habitaram o planeta, mas só a nossa o dominou. Uma nova hipótese explica por quê

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Page 3: Scientific American Brasil - Setembro 2015

EVOLUÇÃO

26 A espécie mais invasiva de todasOutras espécies de hominídeos habitaram a Terra.

Mas a nossa é a única que colonizou todo o planeta.

Uma nova hipótese explica por quê.

Curtis W. Marean

CIÊNCIA ESPACIAL

35 Procurando jupiteresDuas equipes rivais de astrônomos competem para

obter imagens inéditas de planetas gigantes ao redor

de outras estrelas. Suas descobertas poderão mudar o

futuro da busca por planetas.

Lee Billings

NEUROCIÊNCIA

43 A perda auditiva ocultaBritadeiras, shows e outras fontes de ruídos

podem provocar danos irreparáveis aos

ouvidos de maneiras inesperadas.

M. Charles Liberman

CLIMA

49 Mudança de estadoSeca pode fazer a Califórnia ficar como o Arizona.

Dan Baum

PARA FORMAR O ESTUDANTE DO SÉCULO 21

57 Uma nova visão para examesMuitas vezes avaliações escolares aumentam a ansie-

dade e atrapalham o aprendizado. Uma nova pesquisa

mostra como reverter essa tendência.

Annie Murphy Paul

26

57

N A C A PA

Há cerca de 70 mil anos, nossos ancestrais Homo sapiens deixaram seu continente natal, a África, e deram início à sua expansão pelo planeta. Outras espécies de hominídeos, como os neandertais, já haviam se estabelecido na Ásia e na Europa, mas a nossa sobrevi-veu e colonizou toda a Terra. Paleoantropólogos têm novas explica-ções para esse processo.Imagem: Pavel Suprun

BRASILSetembro 2015 | No 160

20 iam.com.br

ANO 14 | no 160 | R$ 13,90 | Portugal € 4,90

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EXOPLANETASAstrônomos buscam

imagens de novos gigantesfora do Sistema Solar

EDUCAÇÃOEstudos propõem aval ações

que ev tam ansiedade ep ejuízos ao aprend zado

NEUROCIÊNCIAOs u dos do dia a diapodem gerar danos

audit vos irreparáve s

Comoo

CONQUISTAMOSPLANETA

Outras espécies humanas habitaram o planeta, mas só a nossa o dominou. Uma nova hipótese explica por quê

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sumário

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Page 4: Scientific American Brasil - Setembro 2015

9

22

7

SEÇÕES

5 Carta do editor

6 CartasCIÊNCIA EM PAUTA

07 Médicos, armas e balas perdidasLeis que impedem médicos de discutir a posse e

a segurança de armas de fogo com pacientes são

prejudiciais à saúde pública.

Pelo Conselho de Editores da Scientifi c American

FÓRUM

8 Caubóis do espaçoChauvinismo corrompe nos EUA a retórica sobre

voos espaciais tripulados.

Linda Billings

9 Avanços

15 MemóriaCIÊNCIA DA SAÚDE

18 Balé e vertigemPesquisas com bailarinos podem ajudar a desenvolver

novas tentativas para amenizar problema que atormenta

milhões de pessoas durante anos.

David Noonan

TECNOLOGIA

20 A geração da tela sensível ao toqueOs dispositivos móveis estão prejudicando as crianças?

A ciência avalia.

David Pogue

OBSERVATÓRIO

21 A teoria da relatividade métricaCada corpo tem sua geometria particular na qual ele é

um corpo livre de ações externas.

Mario Novello

DESAFIOS DO COSMOS & CÈU DO MÊS

22 A caçada às ondas gravitacionais23 Eclipse lunar total será visível em todo o Brasil

Salvador Nogueira

CIÊNCIA EM GRÁFICO

66 Bactéria resistente no estômagoUma cepa difícil de combater a Shigella fi ncou

âncora nos Estados Unidos.

Rebecca Harrington

ESPECIAIS

Continuam à venda pela internet os dois volumes de “Dinossauros”,

edição especial da Scientifi c American Brasil. Entre os artigos, há o

que demonstra a relação entre as alterações causadas pelo nascimento

do Oceano Atlântico e a preservação dos fósseis na região equatorial bra-

sileira. Na Bacia do Araripe, em Pernambuco, as condições de mineraliza-

ção especialmente favoráveis de espécimes animais têm permitido obser-

var detalhes da paleofauna. Mas a região convive com o comércio clan-

destino de fósseis que ameaça os esforços de conhecimento. Há também

artigos sobre os desafi os climáticos en-

frentados por dinossauros da Austrália,

as descobertas recentes de sangu

desses animais e ainda o possível conv

vio entre eles e aves. Estudos sobre a

evolução das penas e um relato da história da paleontologia no Brasil

também fazem parte da edição, que pode ser adquirida na Loja Segmen-

to. Basta entrar no site site http://www.lojasegmento.com.br

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produziu cova coletiva,

há 70 milhões de anos

Armadilha em deserto da

China preserva o estilo

de seus antigos ocupantes

Paradoxos questionam

o que veio primeiro — os

pássaros ou suas penas?

Sangue emerge de rocha

e questiona teoria sobre

a fossilização orgânica

Formação do Atlântico abriu espaço para os titãs

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Page 5: Scientific American Brasil - Setembro 2015

CARTA DO EDITORé editor

da SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL.

ALGUNS COLABORADORES

Quem não somos nós?

é colaboradora frequen-te do The New York Times, e das revistas Timee Slate. É autora de The cult of personalitytesting e de Origins, que foi incluído na listados 100 Livros Notáveis de 2010 do The NewYork Times.

é professor da Escola deEvolução Humana e Mudança Social daUniversidade Estadual do Arizona, ondetambém é diretor associado do Instituto deOrigens Humanas.

é escritor; sua obra mais recente éGun guys: A road trip. Ex-redator da equipe darevista The New Yorker, já fez reportagens emcinco continentes.

autor de “Epidemia não tãosilenciosa”, , ed.158, julho de 2015, é escritor freelanceespecializado em ciência e medicina.

é colunista-âncora do Yahoo Teche apresentador das minisséries NOVA na PBS.

é editor associado daAmerican. Ele é autor de Five billion years ofsolitude: The search for life among the stars(Current/Penguin Group, 2013).

tem doutorado e fazpesquisas sobre ciência das comunicaçõesem Washington, D. C. Escreve sobre históriade astrobiologia, voos espaciais tripulados eoperações de relações públicas da Nasa.

é pesquisador emérito doCentro Brasileiro de Pesquisas Físicas.

é professor de otologiae laringologia na Escola de Medicina deHarvard e diretor dos Laboratórios Eaton-Pea-body no Hospital de Olhos e Ouvidos deMassachusetts.

é jornalista de ciênciaespecializado em astronomia e astronáutica.

www.sciam.com.br 5

Apropensão geneticamente deter-

minada para a cooperação é uma

hipótese considerada já há algum

tempo por estudiosos da evolu-

ção humana para explicar como nossa espé-

cie conseguiu se expandir para todo o plane-

ta. O artigo do paleoantropólogo Curtis

Marean, da Universidade Estadual do Arizo-

na, destacado na capa da presente edição de

Scientifi c American Brasil, apresenta um

dos mais recentes desdobramentos dessa

hipótese, que é sua vinculação à consistente

conjectura referente à habilidade desenvol-

vida pelo Homo sapiens para produzir lan-

ças, dardos, fl echas e outras armas de arre-

messo. O autor, que também é diretor

associado do Instituto de Origens Humanas

em sua universidade, atuou durante muitos anos em sítios paleon-

tológicos no litoral da África do Sul, região que cada vez mais tem

sido apontada como palco de uma etapa decisiva do desenvolvi-

mento das habilidades cognitivas de nossa espécie.

Entre as hipóteses apresentadas anteriormente sobre a coo-

peração, vale destacar o trabalho desenvolvido no fi nal do século

20 pelo etólogo britânico Robert Hinde, professor de neurociên-

cia comportamental da Universidade de Cambridge, cuja abor-

dagem é certamente não só compatível, mas também comple-

mentar à tese de Marean, apesar de ter sido formulada em outro

contexto. Em 1999 esse pesquisador consolidou e divulgou seus

estudos sobre o tema em seu livro Why gods persist: a scientifi c

approach to religion (“Por que os deuses persistem: uma aborda-

gem científi ca da religião”, em inglês). Nessa obra, o autor ressal-

ta que as chamadas “características psicológicas panculturais”

são biologicamente adaptativas.

Diferentemente do que o título do livro de Hinde possa suge-

rir, sua abordagem não consiste em legiti-

mar deuses e crenças. A obra, na verdade,

percorre os avanços de áreas do conheci-

mento essenciais para a evolução humana

– entre elas a paleontologia, a genética, as

neurociências e a psicologia evolutiva —

para compreender as condições de origem

da religião e sua função no contexto do

desenvolvimento e da manutenção de

comportamentos de altruísmo e de reci-

procidade essenciais para a preservação do

Homo sapiens. Esse modelo explicativo

não tem como consequência o que poderia

ser chamado de propensão humana para a

religião, que tornaria o ateísmo pratica-

mente impossível. Na verdade, trata-se de

compreender a confi guração evolutiva,

assimilada geneticamente em nossa estrutura psíquica, relacio-

nada a esses comportamentos que são essenciais para a fé.

Uma excelente e sintética apresentação em português dessa

obra de Hinde foi feita pelo físico Eduardo Rodrigues Cruz,

professor de ciências da religião da Pontifícia Universidade Ca-

tólica de São Paulo, em seu livro A persistência dos deuses (Edi-

tora Unesp, 2004).

Enfi m, da mesma forma que para Marean, para Hinde a coope-

ração foi decisiva para nossa espécie ter sobrevivido. Ambos os tra-

balhos são importantes para sabermos quem somos nós. Ao levar

em consideração esses e outros fatores evolutivos que foram essen-

ciais para chegarmos aonde chegamos, torna-se cada vez mais

importante compreender melhor outros hominídeos que desapa-

receram e hoje sabemos não terem sido nossos ancestrais , como

os neandertais. Como bem disse o paleoantropólogo espanhol

Juan Luis Arsuaga em seu livro O colar do neandertal (Editora

Globo, 2005), “quem não somos nós?”.

JON

FOST

ER

Page 6: Scientific American Brasil - Setembro 2015

6 Scientifi c American Brasil | Setembro 2015

DO LOBO AO CÃOAdorei o artigo “Do lobo ao cão” , da edição de

agosto [159]. São impressionantes os aspectos evoluti-

vos apresentados nessa matéria.

Mariana Salles, São Bernardo do Campo (SP), por e-mail

TAMANHO DAS LETRASMuito oportunas, tanto a sugestão do prof. William Daher [carta pu-

blicada na ed. 159], quanto a decisão da Editora em aumentar o corpo da

letra da Scientifi c American. Também sou leitor assíduo da publicação,

e já estava notando cansaço visual. Espero que a mudança permaneça.

Eduardo Higino da Silva Filho, Recife (PE), por e-mail

LUZ DO UNIVERSOSou graduando em física pela Universidade Federal de Itajubá e me

sinto absolutamente encantado pela revista. E sou sincero quando digo

que o artigo “Toda a Luz que Sempre Existiu”, da edição de julho [ed.

158], é maravilhoso, me senti fascinado com a abordagem da medição

da luz extragaláctica de fundo utilizando a radiação gama emitida por

blazares. Parabéns aos pesquisadores e à equipe de edição!

Daniel Ferreira, Itajubá (MG), por e-mail

Sou licenciado em física pela Universidade Estadual Vale do Acaraú

(UVA), professor da rede estadual do Ceará, representante da Olimpía-

da Brasileira de Astronomia e Astronáutica pela EEM Maria Menezes

Cristino, assinante de Sciam Brasil desde 2009 e leitor desde 2005. O

artigo “Toda a Luz que Sempre Existiu” mostra o quanto é grande a

curiosidade do homem que o faz mergulhar através de imensidões es-

paciais e temporais até os confi ns do Cosmos para descobrir seus misté-

rios Parabéns a todos que fazem a revista.

Paulo Souza, Coreaú (CE), por e-mail

CORREÇÕESExcelente o artigo “O Incrível Cérebro Adolescente” publicado na edi-

ção de julho [158]. Apenas um pequeno detalhe: na teoria dos grafos, o

termo “edge” , em inglês, é traduzido como “aresta” e não “borda”, como

aparece no texto. Arestas representam as ligações entre dois vértices.

Renato Tinós, Ribeirão Preto (SP), por e-mail

Caros amigos, na edição de julho acredito haver um erro na Carta ao

Editor na grafi a do hormônio do amor. O correto seria “ocitocina” ou

“oxitocina”, e não “citoxina”. O novo design fi cou muito melhor e mais

agradável de ler. Parabéns pelo excelente trabalho. Vocês são reforma-

dores sociais.

Diego Adão Fanti Silva, São Paulo (SP), por e-mailNota da Redação: Agradecemos pela atenciosa colaboração do pro-

fessor Renato Tinós, da Faculdade de Filosofi a, Ciências e Letras de Ri-

beirão Preto, da USP, e do médico Diego Adão Fanti Silva, da Universi-

dade Federal de São Paulo. O nome do hormônio foi corretamente grafa-

do como “oxitocina” na pág. 33, mas não notamos a alteração do mesmo

termo pelo corretor ortográfico na Carta do Editor.

POR RESTRIÇÃO DE ESPAÇO, A REDAÇÃO TOMA A LIBERDADE DE ABREVIAR CARTAS MAIS EXTENSAS.

CARTAS [email protected]

EDIÇÃO 159

Agosto 2015 www sc am c m br

Novas pistas sobre como o melhor amigo do homemevoluiu a partir de uma espécie feroz e selvagem

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MATEMÁTICAA luta para um teoremagigantesco não se tornar

ncompreensível

ENERGIASubst tuto do s lício

promete cé ulas solares

ASTROFÍSICAMatéria escura pode

ser ma s estranha do queísicos imaginam

ANO 13 | no 159 | R$ 13,90 | Portugal € 4,90

77

67

6

5

DO LOBO AO CÃODO LOBO AO CÃO

PRESIDENTE Edimilson Cardial

DIRETORIA Carolina Martinez,

Marcio Cardial, Rita Martinez e

Rubem Barros

ANO 14 – Nº 160

SETEMBRO DE 2015

ISSN 1676979-1

 

DIRETOR EDITORIAL Rubem Barros

EDITOR Maurício Tuff ani

EDITOR DE ARTE  João Marcelo Simões

ESTAGIÁRIA Jullyanna Salles (redação)

COLABORADORES Luiz Roberto

Malta e Maria Stella Valli (revisão);

Aracy Mendes da Costa, Marcio G.

B. Avellar, Regina Cardeal, Suzana

Schindler (tradução)

PROCESSAMENTO DE IMAGEM 

Paulo Cesar Salgado

PRODUÇÃO GRÁFICA 

Sidney Luiz dos Santos

 

PUBLICIDADE E PROJETOS ESPECIAISGERENTE Almir Lopes

[email protected]

ESCRITÓRIOS REGIONAIS:Brasília – Sonia Brandão

(61) 3225-0944/ 3321-4304/ 9973-4304

[email protected]

Paraná – Marisa Oliveira

(41) 3027-8490/9267-2307

[email protected]

TECNOLOGIAGERENTE Paulo Cordeiro

ANALISTA PROGRAMADOR 

Diego de Andrade

MARKETING/WEBDIRETORA Carolina Martinez

GERENTE Fabiana Gama

EVENTOS Lila Muniz

DESENVOLVEDOR Jonatas Moraes Brito

ANALISTAS WEB Lucas Carlos Lacerda

e Lucas Alberto da Silva

COORDENADOR DE CRIAÇÃO E DESIGNER Gabriel Andrade 

ASSINATURASGERENTE Mariana Monné

VENDAS AVULSAS Cinthya Müller 

EVENTOS ASSINATURAS Ana Lúcia Souza

VENDAS GOVERNO Cláudia Santos 

VENDAS TELEMARKETING ATIVO Cleide Orlandoni

FINANCEIROCOORDENADORA Melissa Ramos

CONTAS A PAGAR Simone Melo 

FATURAMENTO Weslley Patrik

RECURSOS HUMANOS Cláudia Barbosa

PLANEJAMENTO Roseli Santos

CONTAS A RECEBER Viviane Carrapato

SCIENTIFIC AMERICAN BRASIL é

uma publicação mensal da Editora

Segmento, sob licença de Scientifi c

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SCIENTIFIC AMERICAN INTERNATIONAL

EDITOR IN CHIEF: Mariette DiChristina

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Brasil

Page 7: Scientific American Brasil - Setembro 2015

Opinião e análise do Conselho Editorial da

CIÊNCIA EM PAUTA PELOS EDITORES

www.sciam.com.br 7

Nós, nos EUA, nos queixamos de que nossos médicos não

conhecem seus pacientes: consultas médicas no consultório

duram poucos minutos, as conversas são rápidas e exames de alta

tecnologia substituem a interlocução. Agora, perversamente, um

estado aprovou uma lei que proíbe expressamente os médicos de

fazer certas perguntas sobre saúde ou estilo de vida dos pacientes.

As questões se referem a uso de armas e segurança. Este ano o

Tribunal de Apelações da 11ª Jurisdição dos EUA ouviu o argumen-

to do estado da Flórida de que médicos não podem perguntar ao

paciente se ele é dono de algum tipo de arma — inclusive questões

de segurança e acesso a crianças — a menos que acreditem que

essa informação será relevante para o atendimento do paciente. Se

a lei for aprovada, médicos não poderão conversar com pacientes

sobre uma das maiores ameaças à saúde pública nos EUA — armas

de fogo estavam envolvidas em mais de 11 mil homicídios, 21 mil

suicídios e 500 mortes acidentais em 2013, segundo os Centros de

Prevenção e Controle de Doenças dos EUA. Excluir esse tópico das

conversas entre médico e paciente é um passo perigoso.

A posse de arma de fogo nos EUA é um direito protegido por

lei, na Segunda Emenda da Constituição. Em 2011 o governador da

Flórida, Rick Scott, e a Assembleia Legislativa do estado entende-

ram que esse direito estava sendo infringido por médicos. Scott

assinou a lei da Privacidade dos Portadores de Armas, que

autorizava os pacientes a entrar com queixa contra o Esta-

do se entendessem que os médicos estavam sendo muito

enxeridos. Robert Young, do grupo Médicos pela Proprie-

dade Responsável de Armas, que apoiou a lei, afirmou:

“Muitos cidadãos da Flórida já tiveram más experiências

com médicos que os aconselharam a se livrar de suas

armas de fogo, quando muitos pacientes que possuem e

usam armas sabem que isso não está correto”. E acrescen-

tou que “muitos donos de armas também temem pela cria-

ção de bases de dados de proprietários porque isso poderia

ser mais um passo para facilitar o confisco, no futuro”.

Os médicos da Flórida contra-atacam afirmando que a

lei os priva de seu direito constitucional, que a Primeira

Emenda garante, de liberdade de expressão e que essa pri-

vação os impede de ajudar os pacientes. Essa objeção con-

ta com o apoio da Associação Médica Americana e outros grupos

de médicos. A Primeira Emenda tem papel importante nisso: um

juiz que ouviu o caso observou que tribunais têm afirmado reitera-

damente que a comunicação livre e aberta entre médico e paciente

é essencial para a medicina e o bem comum. (O juiz também

comentou que, ao criar a lei, legisladores da Flórida se basearam

em relatos informais e não em dados ou estudos concretos.)

É dever de médicos oferecer aconselhamento não apenas sobre

regimes e exercícios, mas também sobre prevenção de acidentes

relacionados ao uso de embarcações, bicicletas e motocicletas,

observou Stuart Himmelstein, num processo judicial, quando foi

diretor do Conselho Regional de Medicina da Flórida. Aconselhar

um motociclista a usar capacete não é diferente de aconselhar um

dono de arma de fogo a guardá-la em segurança. Comportamento

seguro com armas se refletirá na saúde, não só de seus proprietá-

rios: segundo um estudo publicado no JAMA Pediatrics em 1996,

89% dos ferimentos acidentais associados a armas de fogo com

crianças acontecem em casa, geralmente quando um jovem apanha

uma arma carregada sem a devida atenção de pessoas autorizadas.

Preocupações de que médicos poderiam criar bases de dados

de donos de armas também são descabidas; eles já são explicita-

mente proibidos de manter registros desse tipo por uma lei federal

sobre assistência médica economicamente acessível.

O processo sobre as leis da Flórida, que se chamou “Médicos vs.

Glock”, tem circulado por vários tribunais nos últimos anos, com

alguns juízes cumprindo a lei e outros a contrariando. Enquanto

isso, Indiana e Texas examinaram suas próprias versões no último

trimestre. A 11ª Jurisdição deveria seguir as evidências e derrubar

a lei da Flórida este ano, uma atitude que poderia evitar que outros

legisladores se intrometessem entre pacientes e seus médicos.

Ninguém quer tirar direitos constitucionais dos donos de

armas. Mas a Segunda Emenda não protege nem eles, nem pes-

soas inocentes de balas.

Médicos, armas e balas perdidasLeis que impedem médicos de discutir a posse e a segurança de armas de fogo com pacientes são prejudiciais à saúde pública

Ilustração de Thomas Fuchs

Page 8: Scientific American Brasil - Setembro 2015

FÓRUM LINDA BILLINGS

Fronteiras da ciência comentadas por especialistas

8 Scientifi c American Brasil | Setembro 2015

tem doutorado e faz pesquisas sobre ciência das comunicações em Washington D. C. Ela escreve sobre história de astrobiologia, voos espaciais tripulados e operações de relações públicas da Nasa. Possui um blog em http://doctorlinda.wordpress.com

Na história dos voos espaciais tripulados dos EUA, uma retóri-

ca tipicamente norte-americana, baseada no ideário do destino

expansionista, tem dominado o discurso público e ofi cial. Tome-se

como exemplo a Space Frontier Foundation, grupo sem fi ns lucra-

tivos “dedicado à abertura das fronteiras do espaço à colonização

o mais rapidamente possível... criando uma vida mais livre e prós-

pera para cada geração com o uso dos recursos materiais e energé-

ticos ilimitados do espaço”. Essa retórica revela uma ideologia

sobre os voos espaciais – a crença no direito da nação de expandir

seus limites, colonizar outras terras e explorar seus recursos.

Essa ideologia se baseia em alguns pressupostos sobre o papel

dos EUA na comunidade global e o caráter nacional norte-ameri-

cano. Segundo ela, o país precisa continuar sendo o “número um”

na comunidade mundial, desempenhando o papel de líder políti-

co, econômico, científi co, tecnológico e moral, disseminando o

capitalismo democrático. A metáfora da fronteira, com sua ima-

gem associada ao pioneirismo na demarcação de terreno, cultivo e

domesticação, se agiganta dentro desse sistema de crenças.

A retórica da viagem espacial humana fortalece a concepção

do espaço sideral como um lugar livre e recursos ilimitados – uma

fronteira espacial. De John F. Kennedy a Barack Obama, os presi-

dentes dos EUA abraçaram essa retórica de conquista e expansão.

Da mesma forma o fizeram administradores da Nasa, membros

do Congresso e comissões de especialistas ao longo das décadas.

Caubóis do espaçoChauvinismo corrompe nos EUA a retórica sobre voos espaciais tripulados

Eu ouvi uma autoridade da Casa Branca defender a ideia de

uma industrialização em larga escala da Lua como “uma visão de

longo prazo fenomenalmente inspiradora” para o programa espa-

cial. Aberta só para convidados em fevereiro, em Washington, a

Cúpula Nacional sobre Pioneirismo Espacial rendeu uma declara-

ção de que “o objetivo de longo prazo do programa de voo e explo-

ração espacial tripulado dos EUA é expandir a presença humana

permanente além da órbita baixa da Terra e fazer isso para permi-

tir a colonização humana e uma próspera economia espacial”. Um

dos grupos participantes da reunião, o Tea Party in Space, defende

a “aplicação dos princípios fundamentais de responsabilidade fi s-

cal, governo limitado e mercados livres para a rápida e permanen-

te expansão da civilização americana na fronteira espacial”.

A retórica importa. Mais de 30 anos de observações próprias,

juntamente com resultados de pesquisas de opinião pública em

tantos anos, indicam que a comunidade de defensores da explora-

ção humana dos EUA é predominantemente branca e masculina.

A retórica da conquista e exploração de fronteiras pode atrair essa

faixa demográfi ca, mas duvido que exerça um fascínio mais amplo.

As mulheres constituem metade da população mundial. A

maioria da população da Terra não é norte-americana, europeia ou

“branca”. Em meus muitos anos de críticas à ideologia conhecida

desde o século 19 nos EUA como Destino Manifesto, pessoas de

outros países me disseram reiteradas vezes como a retórica dessa

crença os deixa desconcertados, quando não ofendidos.

Outras nações exploradoras do espaço adotam uma postura

mais pragmática em seus projetos. No prefácio do Catálogo Espa-

cial Europeu 2015, Jean-Jacques Dordain, diretor-geral da Agência

Espacial Europeia, escreveu que o objetivo do órgão é “manter seu

papel como uma das principais instituições espaciais do mundo,

com foco nas relações-chave com seus parceiros e na efi ciência”. O

slogan da Agência de Exploração Aeroespacial do Japão é “explo-

rar para alcançar”, expressando sua “fi losofi a de se tornar uma

agência para alcançar uma sociedade segura e afl uente”.

Em um momento em que os Estados Unidos precisam cons-

truir parcerias sustentáveis com outros países para continuar ex-

plorando o espaço, “EUA, Número Um!” não é uma boa maneira

de iniciar conversações produtivas. Em um estudo de 2012, Jac-

ques Blamont, diretor fundador da agência espacial francesa

CNES, argumentou que as pessoas estão perdendo o interesse na

exploração tripulada do espaço “porque países exploradores e, so-

bretudo, os EUA se apegaram a modelos de pensamento ultrapas-

sados da Guerra Fria. A atitude de o país ‘comandar’ seus parcei-

ros internacionais não vai mais funcionar”. Está na hora de os de-

fensores dos voos espaciais tripulados reexaminarem sua retórica

– para refl etir sobre o que essas palavras signifi cam para a vasta

maioria das pessoas que não são americanas, brancas, do sexo

masculino nem estão interessadas em se mudar para Marte.

Ilu

stra

ção d

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www.sciam.com.br 9

AVANÇOS

GEOLOGIA

Desastre à vista no HimalaiaChina e Índia, os países mais populosos do mundo, constroem centenas de barragens em uma zona geológica violentamente ativa

No início deste ano, terremotos no

Nepal destruíram milhares de edifícios,

mataram mais de 8.500 pessoas e feriram

outras centenas de milhares. Os sismos, de

magnitude de 7,8 e 7,3 na Escala Richter,

também danificaram ou provocaram

rachaduras em diversas hidrelétricas, des-

tacando outro perigo iminente: o rompi-

mento de barragens. Mais de 600 dessas

massivas estruturas foram construídas ou

estão em algum estágio de construção ou

planejamento na cordilheira geologica-

mente ativa do Himalaia, porém muitas

provavelmente não são nem foram proje-

tadas para resistir aos piores terremotos

que poderiam atingir a região, de acordo

com vários sismólogos e engenheiros civis.

Se uma dessas barragens ceder, reservató-

rios enormes, do tamanho de lagos, pode-

riam se esvaziar sobre povoados e cidades

rios abaixo. Um colapso da barragem de

Tehri, na região central do Himalaia, por

exemplo, construída sobre uma falha geo-

lógica, liberaria um paredão de água de

cerca de 200 metros de altura que se aba-

teria violentamente sobre duas pequenas

cidades. Ao todo, a inundação afetaria seis

centros urbanos com uma população com-

binada de dois milhões de pessoas.

De fato, modelos sismológicos mostram

que terremotos mais poderosos possivel-

mente abalarão o Himalaia nas próximas

décadas. O subcontinente indiano está se

empurrando à razão de 1,8 metro por sécu-

lo sob o planalto do Tibete, mas encontra

resistência e fica “preso” regularmente;

quando a obstrução cede, uma parte da

placa tectônica tibetana avança alguns

metros para o sul e libera a energia acu-

mulada em um terremoto. Os abalos sís-

micos no Nepal também desestabilizaram

a região a oeste, observa Laurent Bollinger, LORE

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Terremotos no Himalaia (fotos acima) poderiam romper barragens e levar a cenários catastróficos como os vistos em 2013 no povoado indiano de Kedarnath, quando as chuvas de monções levaram uma represa a transpor suas margens (fotos abaixo).

Conquistas em ciência, tecnologia e medicina

Page 10: Scientific American Brasil - Setembro 2015

10 Scientifi c American Brasil | Setembro 2015

AVANÇOS

sismólogo na Comissão de Energia Atômi-

ca e Energias Alternativas (CEA) da Fran-

ça. Essa instabilidade geológica provavel-

mente acabará produzindo mais cedo que

tarde um grande terremoto, defi nido como

um sismo de magnitude de 8,0 ou mais.

Outros estudos indicam que os terremotos

recentes só liberaram uma pequena fração

do estresse, ou da pressão desta falha geo-

lógica, que deverá se acomodar com abalos

de magnitude igual ou maior. “Não se

pode prever se eles irromperão agora [com

magnitude] 8 ou se esperarão mais 200

anos para então explodir com 8,7”, salienta

Vinod K. Gaur, sismólogo do Instituto

CISR Fourth Paradigm (CSIR-4PI, em

inglês), em Bangalore, na Índia.

Essas regiões sismicamente ativas se

localizam exatamente onde centenas de

barragens de 15 metros ou mais estão em

construção ou planejamento; a maioria

para fornecer energia hidrelétrica à Índia

ou à China. Qualquer estrutura que esteja

sendo erguida nesse boom fi nanciado pelo

governo, assim com as já concluídas, preci-

sa ser capaz de resistir ao forte tremor do

solo no caso de um terremoto extremo,

adverte Martin Wieland da Comissão

Internacional de Grandes Barragens, um

grupo de engenheiros que faz recomenda-

ções para padrões estruturais. A Probe

International, uma organização de pesqui-

sa ambiental canadense, relata que os pro-

jetistas da hidrelétrica chinesa das Três

Gargantas se basearam “na interpretação

mais otimista possível” de abalos sísmicos.

Da mesma forma, a barragem de Tehri, na

Índia, nunca passou por simulações realis-

tas, de acordo com Gaur, que atuou em seu

comitê de supervisão, juntamente com o

engenheiro civil R. N. Iyengar, anterior-

mente do Instituto Indiano de Ciência, em

Bangalore. Cientistas e engenheiros asso-

ciados ao governo alegam que a estrutura

de Tehri pode sobreviver a um terremoto

de magnitude 8,5, mas especialistas inde-

pendentes não são tão otimistas. Qualquer

uma de centenas de barragens poderia

correr o risco de se romper quando ocorrer

o próximo grande abalo.

A corrupção local pode complicar ain-

da mais as coisas ao permitir que emprei-

teiros utilizem, impunemente, materiais

abaixo do padrão ou se desviem dos parâ-

metros obrigatórios. Um estudo de 2011,

publicado na Nature, concluiu que a esma-

gadora maioria das mortes decorrentes do

colapso de construções em terremotos

ocorre em países corruptos. (AScientificAmerican integra a Springer Nature.)

Escândalos envolvendo projetos de

hidrelétricas agitaram tanto a Índia quan-

to a China, ao ponto de que o ex-premiê

chinês, Zhu Rongji, cunhou o sugestivo

termo “construção tofu” para descrever

um dique defeituoso.

Um pequeno grupo de cientistas assu-

miu a liderança dos argumentos em prol

de avaliações realistas e explícitas para

proteger a população da região, embora

somente com sucesso limitado. Em uma

ação judicial movida por ambientalistas

contra a barragem de Tehri, a Suprema

Corte da Índia apoiou cientistas do gover-

no por descartarem preocupações de segu-

rança. E, em 2012, o sismólogo Roger

Bilham da Universidade do Colorado, em

Boulder, foi deportado do aeroporto de

Nova Délhi, em parte, segundo ele, por sua

previsão indesejada de que o Himalaia

pode sofrer um terremoto de magnitude

9,0. Bilham sustenta que, desde então, o

governo indiano tem desencorajado cola-

borações estrangeiras em sismologia.

Por enquanto, tudo o que as partes

interessadas podem fazer é chamar a aten-

ção para o problema. “Luz solar é o melhor

desinfetante”, diz Peter Bosshard da Inter-

national Rivers em Berkeley, na Califórnia.

“Sem escrutínio público, é muito mais fácil

escapar das consequências de optar pelo

caminho mais fácil.” Em vista dos riscos,

será necessário mais que transparência ou

“luz solar”: o próximo terremoto na área

pode resultar em um tsunami “feito pelo

homem”. —Madhusree Mukerjee HAN

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1934: Magnitude 8,0

12 de maio de 2015:Magnitude 7,3

25 de abril de 2015:Magnitude 7,8

1950: Magnitude 8,6

1905: Magnitude 7,9

Barragemde Tehri

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BUTÃON E P A L

Kathmandu

BANGLADESH

(1905, 1934 e 1950)

Sismólogos esperam futuros terremotos de magnitude 8,0 ou mais no Himalaia. O risco de grandes abalos é muito elevado em falhas geológicas não afetadas recentemente por terremo-tos. Um subconjunto de barragens é mostrado acima.

A barragem de Tehri, na Índia, bloqueia o Rio Bhagirathi, um dos principais afl uentes do Ganges.

Mapa de Terra Carta

Page 11: Scientific American Brasil - Setembro 2015

www.sciam.com.br 11

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PALAVRAS DE SOBREVIVENTES

ENERGIA NUCLEAR

Relembrando a explosãoSobreviventes dos bombardeios de Hiroshima e Nagasaki na 2ª Guerra Mundial dão depoimentos por ocasião do 70º aniversário das detonações

Em agosto, há 70 anos, bombas atômicas dos EUA destruíram as cidades de Hiroshima

e Nagasaki, matando cerca de 200 mil japoneses no até agora único uso bélico de armas

nucleares do mundo. Muitos dos que sobreviveram às explosões iniciais morreram pouco

após ferimentos, queimaduras e doenças provocadas pela radiação. A escala da destruição

gerou um debate persistente sobre se o uso dessas armas jamais seria justificável e até que

ponto cientistas são moralmente responsáveis por consequências de suas descobertas.

Hoje há cerca de 22 mil bombas atômicas em pelo menos oito países, segundo a ONU.

Mais de 65 nações apoiam uma proibição mundial de armas nucleares. Muitos dos países

que têm esses armamentos, inclusive os EUA, reduziram seus arsenais, embora conti-

nuem aprimorando sua tecnologia nuclear.

Vários hibakusha (sobreviventes da explosão), e seus familiares visitaram o escritório

da Scientific American em Nova York durante uma viagem para participar da conferên-

cia 2015 de revisão do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, de 1970. Ao lado,

trechos editados da conversa traduzida por intérprete. —Clara Moskowitz

[Após o bombardeio de Hiroshima], decidi-mos deixar a cidade. Nós nos refugiamos em vinhedos. Como não havia alimentos,

febre, diarreia e vômitos. Minha mãe pen-sou que era disenteria. Agora acho que foi por envenenamento radioativo... Muitas

-mia ou câncer muito jovens, na casa dos 40 anos. Eu me preocupo comigo, e tam-

. –Tamiko Nishimoto tinha quatro anos quando a bomba caiu a apenas 2,3 km de sua casa

Em 8 de agosto a bomba foi jogada em Nagasaki. Eu trabalhava para o Estaleiro Nagasaki. Às 11h02 parecia que havia um grande sol ardente sobre o edifício. Cinco ou seis segundos depois uma enorme explosão sacudiu o prédio e lançou esti-lhaços de vidro por toda parte. As pesso-as que estavam perto das janelas foram atingidas por vidro. Elas tinham tantos buracos nelas que pareciam romãs... Mui-tas pessoas se moviam laboriosa e lenta-mente para a frente. Seus rostos estavam tão queimados que pareciam bolas de rúgbi. Suas mãos estavam inchadas, e parecia que elas usavam luvas de beise-

-

dormitório em Urakami, ele estava com-pletamente queimado, e todas as pesso-as lá dentro tinham sido mortas. – Takamitsu Nakayama tinha 16 anos na ocasião do bombardeio

O mundo testemunhou um nível de destruição nunca visto antes com o bom-bardeio nuclear de Hiroshima em 6 de agosto de 1945.

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12 Scientific American Brasil | Setembro 2015

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ENGENHARIA

A câmara com o campomagnético mais fraco da TerraCinco perguntas que ela poderia responder

Recentemente pesquisadores iniciaram experimentos em um recinto (abaixo) quetem o campo magnético mais fraco em nosso Sistema Solar — e estão empolgados.Construída por físicos da Universidade Técnica de Munique, na Alemanha, a câmarareduz a um milionésimo a intensidade de campos magnéticos ambientes, um aprimo-ramento 10 vezes superior a qualquer estrutura feita pelo homem, registrando atémenos atividade desse tipo que no vasto espaço vazio entre planetas. O isolamento, oublindagem, da instalação consiste em camadas de um metal altamente magnetizávelque“prende”, ou captura campos magnéticos para que não consigam passar para ointerior da estrutura. Lá dentro podem ocorrer experimentos ultraprecisos, com interfe-rência mínima dos efeitos da Terra. Portanto, a câmara oferece uma oportunidade únicapara investigar questões importantes em física, biologia e medicina. —Sarah Lewin

1 Por que há maismatéria que antima-téria no Universo?Os físicos observarãose as propriedadesmagnéticas de umnêutron se compor-tam de maneira uni-forme na presença decampos elétricosintensos e aqueles pre-cisamente controla-dos. Discrepânciasacentuadas no equilí-brio de partículas,como diferença decarga, poderiam indi-car como ocorreu aassimetria entre maté-ria e antimatéria.2 Monopolos mag-

néticos existem?Se houver partículascom um único polo láfora, elas poderãoatravessar o escudoprotetor da câmara.Sem interferência,sensores registrariam aatividade magnética

3 Do que é feita amatéria escura?Os pesquisadores pre-tendem monitorar a

câmara em busca departículas de matériaescura“parecidas comaxônios”, que pode-riam afetar os spins dealguns átomos.4 Como animais

usam campos mag-néticos para seorientar?Ao criar organismosem um ambiente compouquíssima atividademagnética, os pesqui-sadores talvez consi-gam discernir se o usodesses campos é umacaracterística aprendi-da ou inata.5 O que o magne-

tismo pode revelarsobre a saúdehumana?Qualquer espaço commuito pouco ruídomagnético abre a pos-sibilidade de diagnós-ticos mais detalhados:por exemplo, distin-guir o campo magné-tico do coração deuma gestante do de

detectarirregularidades.

AVANÇOS

GENÉTICA

Atenção, cervejeiros lager!Cientistas conseguem produzir novas leveduras

Cervejas tipo lager são sem graça. Quando você abre uma lata,

saboreia o produto de cepas estreitamente aparentadas de Sac-

charomyces pastorianus. Sua variedade genética empalidece em

comparação com o grupo pequeno, mas diverso, de leveduras

usadas para produzir cerveja tipo ale e vinho, que resultam em

vários sabores. Lagers têm mantido sua aparência e sabor basica-

mente inalterados há séculos porque o cultivo de cepas com

novas características de fermentação e sabores provou ser difícil;

os híbridos eram estéreis. Mas isso está prestes a mudar.

A boa notícia remonta às origens de cervejas tipo lager no

século 15. O fungo S. pastorianus teria sido cultivado após um

cruzamento acidental de duas outras espécies em uma caverna

fria e escura na Baviera, Alemanha, quando monges começaram a

praticar o “lagering”, ou armazenamento de cervejas. Na década

de 80, cientistas identificaram um dos pais originais: S. cerevisiae,

a mãe de todas as leveduras usadas na panificação e produção de

cerveja. O outro permaneceu desconhecido até 2011, quando Die-

go Libkind, microbiólogo da Argentina, identificou o fungo S.

eubayanus nas florestas da Patagônia como o elo perdido, que em

estado selvagem não era bem adaptado para a fermentação

industrial de cerveja, mas sua descoberta abriu a possibilidade de

desenvolver novos cruzamentos de levedura. “Uma vez que o

eubayanus foi descoberto, as coisas de repente ficaram muito

Page 13: Scientific American Brasil - Setembro 2015

www.sciam.com.br 13

essas atividades”, argumenta Holt, e animais que vivem em ambientes rui-dosos, com alimen-tos limitados, que dependem de sons para se comunicar, caçarou procriar podem não sercapazes de encontrar sustento

-rença. O risco para a saúde é maior ainda para animais jovens e fêmeas lactantes, que já precisam, naturalmente, de recursos ali-mentares adicionais para obter toda a nutrição de que necessitam. Os resultados foram divulgados nesta primavera boreal na publica-

Journal of Experimental Biology.Ruídos subaquáticos criados pelo homem, tanto faz se são pro-

vocados pela rotação das pás de um navio, pelo zumbido de um motor, o tilintar de uma construção ou pelos estrondos de explora-ções sísmicas, fazem mais que forçar os odontocetos (subordem dos cetáceos que têm dentes) a erguer a voz. Outra pesquisa mostra

-mente para dar uma olhada nas redondezas (spy-hop, em inglês) e batem a cauda na superfície com mais frequência quando há embarcações por perto, e todas essas atividades sugam mais ener-gia. Sonares militares também perturbam a audição de cetáceos e alteram seus comportamentos de mergulho, levando muito prova-velmente a doenças e encalhamentos.

Agora, Holt e seus colegas querem investigar ações que podem ser tomadas para mitigar efeitos de ruídos gerados por humanos em

-celerem motores quando entram em um porto ou manter barcos deobservação de baleias a uma distância mínima dos mamíferos mari-nhos que procuram.Além disso, humanos não deveriam ser maiseducados? Interromper uma conversa é rude. – Jason G. Goldman

COMPORTAMENTO ANIMAL

Podem me ouvir agora?

nariz-de-garrafa (Tursiops truncatus) tenta se comunicar com ami-gos próximos, mas eles não conseguem escutar seus chamados. Há navios demais na água fazendo barulho. CLICK! Para serem escuta-

precisam, efetivamente, levantar suas vozes, o que fazem ao alterar a frequência, amplitude ou duração de suas vocalizações, ou simples-mente ao repetirem sem parar seus chamados. Infelizmente, essa alteração acústica também afeta a saúde dos animais.

Para descobrir como, a bióloga Marla M. Holt e seus colegas da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA, em inglês)

Marinho Joseph M. Long da Universidade da Califórnia em Santa Cruz. Os animais foram treinados para produzir uma vocalização discreta, de baixa amplitude, sob comando, assim como um chama-do de alta amplitude, 10 decibéis mais alta. Os pesquisadores moni-

de chamados e descobriram que quanto mais alta a vocalização, mais oxigênio necessitavam.

Em seguida, a equipe combinou suas observações de consumo

calorias a mais os animais precisariam consumir para compensar a energia que queimam ao fazerem chamados mais altos. As estimati-

-rias nutricionais extra de peixes para cada dois minutos que passamassobiando, clicando e guinchando para superar o ruído de barcos.Embora essa sobrecarga metabólica seja pequena, ela se soma (avo-luma) com o tempo.“Para sobreviver e se reproduzir, você precisa

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interessantes”, observa Brian Gibson, que estuda leveduras de cer-

veja no Centro VTT de Pesquisa Técnica da Finlândia, em Espoo.

Amantes de cervejas lager agora podem brindar oficialmente

porque Gibson e seus colegas recentemente registraram o sucesso

de recriar o antigo “caso” entre S. cerevisiae e S. eubayanus. “Ago-

ra é possível produzir leveduras lager que são muito diferentes

umas das outras”, comemora Gibson. Todos os híbridos resultan-

tes superaram seus pais, produzindo álcool mais depressa e em

concentrações mais elevadas, além de resultarem em produtos

mais saborosos, como foi documentado em um artigo no Journal

of Industrial Microbiology & Biotechnology. Em particular, eles

produziram 4-vinil-guaiacol, o que resultou em sabores mais

característicos de cervejas de trigo belgas. “As cervejas têm um

aroma que lembra cravo”, explica Gibson. “Isso é bem agradável,

mas talvez seja algo que nem sempre queremos.

A ideia é ter toda uma gama de cepas, e você só

seleciona e escolhe.” Agora, a busca voltou-se

para encontrar novas uniões de leveduras que

consomem açúcar com mais eficiência, criando

potencialmente cervejas menos calóricas.

Gibson observa que desenvolver uma gran-

de variedade de cepas saborosas de lagers deve

ser relativamente fácil, o que é favorável para as

cervejarias ainda não divulgadas que estão ado-

tando os novos fermentos. De acordo com uma

estimativa de 2012, cervejas tipo lager respon-

dem por mais de 75% do mercado de cerveja dos

EUA. —Peter Andrey Smith

Ilustração de Thomas Fuchs

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14 Scientifi c American Brasil | Setembro 2015

AVANÇOS

FAZENDO NOTÍCIAS

Notas rápidas

ESTADOS UNIDOS

ANTÁRTIDA

NORUEGA

BRASIL

FRANÇA

CAZAQUISTÃO

REINO UNIDO

MICROBIOLOGIA

Olhar descontaminadoLentes de contato determinam o que vive na superfície dos olhos

Pessoas que usam lentes de contato mui-tas vezes adquirem hóspedes microbianos indesejáveis juntamente com a conveniên-cia oferecida por esse auxílio visual. De fato, a superfície dos olhos de usuários de lentes hospeda uma diversidade maior de bacté-rias que a do pessoal dos “olhos nus”, de

tório de microbiólogos do Centro Médico Langone da Universidade de Nova York (N.Y.U.). Essa diferença talvez ajude a expli-car por que os primeiros desenvolvem infec-ções oculares com uma frequência até sete vezes maior do que teriam sem lentes.

Em uma tentativa para mapear o micro-bioma ocular, os pesquisadores sequencia-ram centenas de esfregaços (amostras) colhidos dos olhos e pálpebras de 11 pessoas que não usam lentes e de nove que as usam.

Os usuários tinham cerca de três vezes a proporção típica de bactérias Methylobacte-rium, Lactobacillus, Acinetobacter e Pseudo-monas. Embora os três primeiros microrga-nismos geralmente sejam inofensivos, Pseu-domonas que penetram numa córnea arranhada podem resultar em uma infecção, provocando vermelhidão, dor e visão turva. Quando não tratada, essa condição pode levar à cegueira. Esses mesmos grupos bac-terianos tendem a existir inofensivamente sobre a nossa pele, explica Lisa Park, da

mente pegam uma carona nos dedos de usuários durante o ato de inserir as lentes, sugerindo uma mudança instantânea no microbioma regional.

Resultados adicionais do estudo susten-tam essa conclusão: os pesquisadores cons-tataram que a composição de bactérias que vivem sobre os olhos de pessoas que usam lentes descartáveis era mais semelhante à de suas peles que entre pessoas que não preci-

nitiva”, salienta Park, “mas é muito intrigante.” As características físicas das próprias lentes,

como a pressão que exercem sobre o olho, também poderiam estimular um crescimen-to bacteriano.

caram cerca de 10 mil cepas distintas de bactérias em suas amostras. Conhecer a comunidade microbiana precisa no olho de um paciente poderia ajudar médicos a tratar infecções com antibióticos direcionados, sugere Jack Gilbert, microbiólogo da Uni-versidade de Chicago, que não esteve envol-vido no estudo.

Para evitar infecções por completo, no entanto, usuários de lentes de contato deve-riam seguir assiduamente as melhores práti-cas recomendadas com seus auxílios visuais:lavar bem as mãos antes de manusear as

nizar e armazená-las e substituir os estojos,ou porta-lentes a cada três meses. Desse jei-to, pelo menos, o “tapete de boas-vindas” para minúsculos e ameaçado-res hóspedes orbitais deveria encolher. —Kat Long

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Page 15: Scientific American Brasil - Setembro 2015

50, 100 & 150 ANOS DE MEMÓRIA COMPILADO POR DANIEL C. SCHLENOFF

www.sciam.com.br 15

Inovações e descobertas narradas pela SCIENTIFIC AMERICAN

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Nitroglicerina para explosão

“A glicerina, como

todos nós sabemos, é um

princípio delicado deri-

vado do petróleo, e intensamente usado

como produto de higiene, mas agora pas-

sou a ter uma aplicação de natureza bas-

tante inusitada. Em 1847 Ascânio Sobre-

ro descobriu que a glicerina, quando tra-

tada com ácido nítrico, se convertia

numa substância altamente explosiva,

que ele chamou nitroglicerina. Ela é

oleosa, mais pesada que a água, solúvel

em álcool e éter e age tão poderosamente

no sistema nervoso que uma única gota

depositada na ponta da língua provoca

dores de cabeça violentas que persistem

por várias horas. Esse líquido parece ter

sido praticamente esquecido pelos quí-

micos, e somente agora Mr. Nable (sic —

Alfred Nobel), engenheiro sueco, teve

sucesso ao aplicá-la a um importante

ramo de sua arte, isto é, explosivos.”

Invenção sensacional(ista)“Senhores editores — Tenho a

ousadia de submeter para publica-

ção um projeto, para mim aparen-

temente simples e factível, mas

nunca submeti o experimento a tes-

te. Ele está relacionado ao que o

homem já fez na Terra — usar a for-

ça de animais inferiores que lhes

foram oferecidos para serem seus

servos e atender seus propósitos.

Há muitas aves que se destacam

pela força das asas e resistência de

voo. A águia-marrom e o cisne ame-

ricano, particularmente, por si sós

são sugestivos. Eu proponho conse-

guir algumas dessas aves e prendê-

-las por meio de coletes ajustados

ao corpo e amarrá-las a uma estru-

tura que poderá sustentar uma ces-

ta suficientemente grande para aco-

modar um homem.”

enquanto a cavalaria passava por ali’. Isso

nunca teria acontecido em outras épocas,

pois as aves logo teriam apanhado todos

os grãos que tivessem sobrado no solo.”

Contra o mar“Em seus treze anos de existência, o

grande muro de concreto da zona portuá-

ria de Galveston sofreu dois furiosos ata-

ques do mar varrido por furacões, mas o

quebra-mar resistiu perfeitamente. Na

última tempestade o dano causado à cida-

de foi principalmente na área comercial,

ao norte da Broadway, onde o plano de ele-

vação do nível nunca foi concretizado. O

autor, a pedido do Tribunal de Comissários

de Galveston, inspecionou a estrutura logo

após as duas grandes tempestades de 1909

e 1915, e em nenhum dos casos encontrou

qualquer avaria do quebra-mar, por menor

que fosse, embora pesadas toras e pedaços

de madeira tivessem passado por cima

dele e danificado seriamente a avenida”. —

General-brigadeiro Henry M. Robert.

O autor também escreveu Regras de Ordem de Robert, originalmente publicadas em 1876.

Setembro 1965

Ascensão urbana“Sociedades urbaniza-

das, nas quais a maioria

da população vive concen-

trada em cidades e metró-

poles, representam um novo e fundamen-

tal passo na evolução social do homem.

Embora as primeiras cidades só tenham

surgido há cerca de 5.500 anos, eram

pequenas e rodeadas por uma maioria

esmagadora de habitantes rurais e facil-

mente permaneciam no status de vilarejos

ou pequenas cidades. As sociedades urba-

nas atuais, por outro lado, não só forma-

ram aglomerações de dimensões nunca

antes atingidas, mas também mantinham

uma alta concentração populacional. No

entanto, esse desenvolvimento evolutivo

quer por sua velocidade, quer por ser um

fenômeno recente, nem sempre é muito

apreciado. Antes de 1850, nenhuma socie-

dade poderia ser descrita como predomi-

nantemente urbanizada, e por volta de

1900 somente uma — a Grã-Bretanha —

poderia ser assim considerada. Atualmen-

te, após somente 65 anos, todas as nações

industriais são altamente urbanizadas.”

Setembro 1915

Guerra e aves“A guerra tem causado

grande impacto às aves da

Europa, principalmente

às migratórias. Esses pás-

saros foram observados onde nunca

tinham sido vistos antes e desapareceram

completamente de locais onde estavam

sendo travadas batalhas. Em Luxemburgo,

onde era comum milhões de aves se reuni-

rem nas florestas de árvores copadas, ago-

ra é raro vê-las ou ouvi-las. Um apreciador

da natureza da região escreveu que ‘cam-

pos inteiros de aveia surgiram nas estradas

e praças de mercados de pequenas cidades

e vilarejos onde cavalos foram alimentados

SONHO DO VOO: Projeto “criativo” para escapar dos vínculos da Terra, 1865.

Page 16: Scientific American Brasil - Setembro 2015

BOA EDUCAÇÃOCOMEÇA COMBONS PROFESSORES.O desenvolvimento da educação passa, em primeiro lugar, pela valorização dos professores. Por isso, o Governo do Estado de São Paulo vem investindo na qualificação e ampliação do corpo docente da rede estadual de ensino.

• Desde 2011, mais de 72 mil novos professores foram contratados.

• Nos últimos quatro anos, o piso salarial teve aumento nominal de 45%, sendo 21% de aumento real.

• Nesse mesmo período, mais de 400 mil profissionais receberam treinamento na Escola de Formação e Aperfeiçoamento de Professores, a EFAP.

• 110 mil docentes foram promovidos, desde 2010, pelo Programa de Valorização pelo Mérito.

E isso não é tudo. Muito mais ainda está por vir.

Page 17: Scientific American Brasil - Setembro 2015
Page 18: Scientific American Brasil - Setembro 2015

18 Scientific American Brasil | Setembro 2015

CIÊNCIA DA SAÚDE por DAVID NOONAN

Bailarinos saltam com facilidade e giram sem sair do lugar

como um pião. Seus cérebros parecem ser especiais, capazes de

contornar a tontura que piruetas rápidas normalmente produ-

zem. No entanto, um estudo publicado no início deste ano indi-

cou que partes do cérebro de bailarinos, envolvidas na percep-

ção do giro, seriam menos sensíveis que as de não praticantes.

Para os milhões de pessoas que não são bailarinos, é o mun-

do todo ao redor, e não apenas eles, que de repente começa a

girar. Até a tarefa mais simples, como caminhar por uma sala,

pode ser impossível quando a vertigem ataca, e a doença pode

durar meses ou anos. Entre adultos dos EUA com mais de 39

anos, 35% — 69 milhões de pessoas — sofreram ou sofrem de

vertigem geralmente por mau funcionamento de partes do

ouvido interno ligadas à percepção da posição corporal ou à

transmissão dessa informação para o cérebro. Embora medica-

mentos e fisioterapia ajudem muitos pacientes, dezenas de

milhares não melhoraram com tratamentos. “A resposta que

nossos pacientes com graves perdas de equilíbrio ouvem repe-

tidamente é que não há nada que se possa fazer”, diz Charles

Della Santina, otorrinolaringologista que estuda distúrbios do

ouvido interno e diretor do Laboratório de Neuroengenharia Ves-

tibular da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore.

A vertigem também pode provocar ansiedade e depressão gra-

ve, comprometer a memória de curto prazo, perturbar a vida fami-

liar e prejudicar carreiras.

O pesadelo de Steve Bach começou em novembro de 2013. O

chefe de obras estava em casa em Parsippany, Nova Jersey, quan-

do, de repente, sentiu a sala “girar como um disco de 78 rotações”,

diz ele, hoje com 57 anos. Bach estava enrolado no chão da sala em

posição fetal quando sua filha o encontrou e ligou para 192. Ele

passou cinco dias no hospital. “Sentar-se na cama”, ele lembra,

“era como estar no topo de uma escada de dois metros.” O médico

de Bach explicou que seu ouvido interno estava inflamado devido

a uma infecção viral. Ele se submeteu a seis meses de fisioterapia

para treinar o cérebro e o ouvido saudável a compensar a perda de

função do ouvido direito. Com isso ele melhorou e em maio de

2014 voltou ao trabalho, mas ainda passa por momentos de insta-

autor de “Epidemia não tão silenciosa”,

, ed. 158, julho de 2015, é escritor free-lance especializado em ciência e medicina.

Balé e vertigemPesquisas com bailarinos podem ajudar a desenvolver novas tentativas para amenizar problema que atormenta milhões de pessoas durante anos

bilidade. “Qualquer que seja o mecanismo do cérebro que deter-

mina quando seu pé toca o chão para mantê-lo na posição ereta,

tenho certeza de que esse mecanismo não está funcionando 100%

no meu caso”, comenta Bach.

Problemas de vertigem como esses estão estimulando médicos

a testar novos tratamentos para os casos mais graves, comenta

Della Santina. Ele está começando um teste clínico para implante

de próteses do ouvido interno. Outros médicos estão experimen-

tando terapia genética. E o trabalho com bailarinos está começan-

do a revelar novos aspectos da anatomia do cérebro envolvida no

equilíbrio, que poderão ser alvo de futuros tratamentos.

Os ouvidos são essenciais para manter a estabilidade de nosso

corpo na posição ereta porque neles está o sistema vestibular peri-

férico, formado por minúsculos tubos circulares cheios de líquido,

bulbos e células ciliadas microscópicas. Na ponta dos cílios dessas

células existe uma membrana onde estão incrustados cristais de

carbonato de cálcio ainda menores. Quando nossa cabeça se move,

os cristais distendem os cílios e se combinam com outras peque-

Ilustração de Bernard Lee

Page 19: Scientific American Brasil - Setembro 2015

www.sciam.com.br 19

nas partes do sistema para transmitir ao nervo vestibular informa-

ções sobre movimento, direção e velocidade. O nervo retransmite

essas informações para o cerebelo e outras áreas neurais, ativando

vários músculos e o sistema visual para manter o equilíbrio.

A lista de anomalias que podem ocorrer nesse sistema delicado

é longa. Entre as causas de vertigem atribuídas ao ouvido interno

estão tumores, infecções bacterianas e virais, danos causados por

certos antibióticos e doença de Meniere, uma afecção crônica que

afeta mais de cinco milhões de pessoas, caracterizada por recor-

rentes crises de vertigem, perda da audição e zumbido. O distúrbio

vestibular mais comum é a vertigem posicional paroxística benig-

na (BPPV, na sigla em inglês). Ela ocorre quando cristais rebeldes

se soltam, ficam flutuando nos arcos do vestíbulo e geram falsa

sensação de movimento. Felizmente, esse tipo de problema geral-

mente é tratado com eficácia com fisioterapia envolvendo uma

série repetitiva de movimentos lentos de cabeça que fazem os cris-

tais saírem dos tubos arqueados.

Mas fisioterapia não é a solução para todos,

ou, como no caso de Bach, não oferece cura defi-

nitiva. Alguns pacientes perderam a função ves-

tibular dos dois ouvidos. Para eles, Della Santina

e seus colegas da Johns Hopkins desenvolveram

um implante que substitui componentes mecâ-

nicos danificados da anatomia do ouvido inter-

no. Assim que os pesquisadores obtiverem o

sinal verde da Administração de Alimentos e

Medicamentos dos EUA (FDA, na sigla em

inglês), eles começarão a testar essa invenção,

chamada implante vestibular multicanal, em

humanos. O dispositivo é modelado sobre

implantes cocleares que recuperaram a audição

de milhares de pessoas desde que o primeiro

aparelho foi usado em 1982. Esses implantes

usam um microfone para captar vibrações sono-

ras e transmiti-las para o cérebro via nervo audi-

tivo. Em vez de um microfone, o implante vestibular contém dois

minissensores de movimento que acompanham o movimento da

cabeça. Um deles é um giroscópio que mede o movimento da cabe-

ça quando a pessoa olha para cima ou para baixo e em torno de

uma sala. O outro, um acelerômetro linear, mede o movimento

direcional, como andar para a frente em linha reta ou descer um

lance de escada. Em vez de separar o som em diferentes compo-

nentes de frequência e enviá-los ao nervo auditivo, os sensores de

movimento enviam sinais para o nervo vestibular informando a

posição da cabeça e o movimento.

Resultados de testes com outro tipo de implante vestibular em

quatro pacientes com doença de Meniere realizados pela Universi-

dade de Washington não foram conclusivos. Embora tenha funcio-

nado bem no início, o efeito desapareceu após alguns meses. Mas o

dispositivo da Johns Hopkins tem design diferente e será usado

em pacientes com outros distúrbios, que não a doença de Meniere,

por isso os médicos esperam resultados mais promissores.

Outra estratégia que está sendo testada em humanos envolve

um gene que controla o crescimento de células ciliares no ouvido

interno. Durante o desenvolvimento embrionário, o gene ATOH1

age na criação dessas células, que são fundamentais para a audi-

ção e o equilíbrio. O gene para de funcionar após o nascimento,

deixando as pessoas com um número fixo de cílios — e com proble-

mas, se os cílios forem danificados. Num teste clínico anterior

aprovado pela FDA que visava equilíbrio e audição, Hinrich Stae-

cker, otorrinolaringologista da Universidade de Kansas, e colegas

injetaram o gene no ouvido de 45 pacientes com perda severa de

audição, usando anestesia geral. Em camundongos com dano gra-

ve no ouvido interno, o composto recuperou as células ciliares em

50%, com alguma melhoria na audição. Se o composto experimen-

tal chamado CGF166 tiver efeitos similares em humanos, poderá

surgir uma nova era no tratamento de distúrbios vestibulares.

A terapia genética precisa ser manipulada com extremo cuida-

do. Ela pode provocar graves reações do sistema imunológico. Em

outros experimentos houve óbito de pacientes. Nesse teste, fatores

ligados à segurança do método incluem um gene

que pode ser ativado somente nas células-alvo,

diz Staecker, e são aplicados em doses mínimas

que não chegam a circular pelo corpo. Além dis-

so, diz ele, o revestimento viral em torno do gene,

que o ajuda a penetrar nas células, já havia sido

inoculado antes com genes diferentes em cerca

de 1.500 pessoas “sem problemas adversos”.

Mesmo que essa pesquisa seja bem-sucedida,

ainda restam grandes lacunas no conhecimento

básico sobre deficiências relacionadas à tontura.

Em primeiro lugar, os médicos ainda não sabem

por que cristais do ouvido se soltam. Para preen-

cher essas lacunas alguns cientistas estudam os

bailarinos. A ideia é estudar sistemas vestibula-

res particularmente robustos para entender

melhor os mistérios dos sistemas anormais.

Uma equipe do Imperial London College utili-

zou uma série de testes e análise de imagens de

cérebros para investigar a capacidade de bailarinos profissionais

de resistir à tontura quando realizam sucessivas piruetas. Os cien-

tistas estudaram 29 bailarinas que praticavam balé em média há

16 anos — elas começaram aos seis anos, ou antes — e as compara-

ram com remadoras. As mais experientes e extremamente treina-

das apresentavam menor densidade de neurônios em partes do

cerebelo onde a tontura é percebida, o grupo relatou este ano na

revista Cerebral Cortex. Segundo o estudo, a redução é devida à

luta contínua contra a sensação de tontura nas piruetas, nas quais

os bailarinos focam os olhos num ponto fixo pelo maior tempo

possível, o que limita os sinais sensoriais enviados ao cérebro. Esse

“esforço efetivo para resistir à tontura” também deixou essas baila-

rinas com uma rede de conexões neurais menor e mais lenta numa

parte do lado direito do cérebro que processa esses sinais.

Essa resistência à sensação de tontura poderá, algum dia, miti-

gar o problema em pacientes com vertigem crônica, se forem

encontrados caminhos para desenvolvê-la em não bailarinos,

usando fisioterapia, sugerem os cientistas. Para milhares de

pacientes seria uma guinada para melhor.

Sessenta e nove milhões de pessoas com mais de 39 anos nos EUA sofrem de vertigem e dezenas de milhares não melhoraram fazendo tratamentos

Page 20: Scientific American Brasil - Setembro 2015

é colunista-âncora do Yahoo Tech e apresentador das minisséries NOVA na rede pública de tevê PBS.

TECNOLOGIA DAVID POGUE

A geração da tela sensível ao toqueOs dispositivos móveis estão prejudicando as crianças? A ciência avalia

Você conhece os rabugentos que

reclamam automaticamente de qual-

quer tecnologia nova. “Todas essas

engenhocas ultramodernas estão des-

truindo nosso cérebro”, eles dizem, “e

arruinando nossas crianças.”

Toda geração desaprova a seguinte;

isso é previsível e humano. Os apare-

lhos digitais estão aparentemente mi-

nando nossa juventude, da mesma for-

ma como o rock arruinou nossos pais,

a televisão, nossos avós e os carros,

nossos bisavós. Estamos sendo arrui-

nados há gerações. Mas devo pergun-

tar: o que a ciência diz sobre os efeitos

nocivos da mais recente tecnologia?

Parte da resposta depende da defi-

nição de “arruinar”. As coisas são dife-

rentes agora. A maioria das crianças

dos EUA não “sai para brincar” desa-

companhada por horas (a indústria do

beisebol pode nunca mais se recupe-

rar). Elas não precisam mais decorar nomes de presidentes e a

tabela periódica pois estão a apenas uma tecla de distância do

Google. Estamos perdendo velhas destrezas. Poucos sabem agora

como usar um papel-carbono ou cuidar de cavalos; escrever à mão

e dirigir podem ser as próximas habilidades a desaparecer.

Mas diferente não é o mesmo que pior. E é surpreendentemen-

te difícil encontrar estudos ligando aparelhos modernos à ruína da

juventude. A pesquisa leva tempo e a era das telas sensíveis é mui-

to recente. O iPad, por exemplo, surgiu em 2010.

Mas as pesquisas já começaram – e lançam alguma luz sobre

como esses repentinamente onipresentes dispositivos podem afe-

tar as crianças. Um estudo publicado na edição de fevereiro de

Pediatrics descobriu que crianças que têm aparelhos de tela peque-

na em seus quartos dormem em média 21 minutos a menos que as

que não têm. (Quanto à razão: os pesquisadores supõem que as

crianças ficam acordadas até tarde para usar seus dispositivos ou,

talvez, que a luz das telas produza “atrasos no ritmo circadiano”.)

E quanto às habilidades sociais? No outono (do Hemisfério

Norte) passado, um estudo na Universidade da Califórnia em Los

Angeles examinou 51 alunos de sexto ano que passaram cinco dias

em um acampamento na natureza sem eletrônicos e 54 que não

acamparam. Depois disso, o primeiro

grupo se saiu melhor na leitura de

emoções humanas em fotografias.

Em 2009, um estudo na Universi-

dade Stanford ligou hábitos de adoles-

centes modernos de executarem multi-

tarefas no computador (que parecem

ter se estendido a telefones e tablets) à

perda da capacidade de concentração.

Seu resultado assusta um pouco.

E sobre câncer cerebral e celulares?

Bem, em primeiro lugar, não é preciso

um estudo para dizer que raramente

os jovens estão com o telefone na ore-

lha; eles mais digitam mensagens que

fazem ligações. De qualquer forma, os

estudos não comprovaram nenhuma

relação entre o uso de celular e câncer.

É hora de começar a reclamar? Não

necessariamente; nem todos os estu-

dos chegaram a conclusões alarman-

tes. Em 2012 o grupo sem fins lucrati-

vos de estudos sobre mídias e tecnologia Common Sense Media

descobriu que mais da metade dos adolescentes dos EUA acham

que as mídias sociais – agora acessíveis em qualquer lugar graças

às telas sensíveis ao toque – ajudaram em suas amizades (apenas

4% acham que prejudicaram). Em 2014 o National Literacy Trust,

do Reino Unido, descobriu que crianças pobres com aparelhos de

tela sensível ao toque têm o dobro de probabilidade de lerem todos

os dias. Um estudo na Computers in Human Behavior também

descobriu que enviar mensagens é benéfico para o bem-estar emo-

cional dos adolescentes – especialmente os introvertidos.

Precisamos claramente de estudos mais amplos e de mais lon-

go prazo antes de começarmos uma nova rodada de reclamações.

E eles estão a caminho; por exemplo, os resultados do Estudo de

Cognição, Adolescentes e Telefones Móveis (Scamp, na sigla em

inglês), do reino Unido, com 2.500 crianças, sairão em 2017.

Enquanto isso, os sinais de alerta das pesquisas iniciais não são

altos o suficiente para tirarmos aparelhos de nossas crianças e

mudarmos para território Amish. Mas eles já são suficientes para

sugerir a prática de uma muito sábia e antiga precaução: a mode-

ração. O excesso de qualquer coisa é ruim para as crianças, sejam

eletrônicos modernos, televisão ou beisebol.

Ilustração de Harry Campbell20 Scientific American Brasil | Setembro 2015

Page 21: Scientific American Brasil - Setembro 2015

Céu do Mês JANEIRO

www.sciam.com.br 21

OBSERVATÓRIO POR MARIO NOVELLO

A teoria da relatividade métrica

Uma das consequências mais notáveis da teoria da relatividade

especial foi a substituição de um único tempo comum a todos os

corpos por uma infi nidade de tempos próprios, um para cada

corpo ou observador. Como consequência, a tradicional geometria

euclidiana da física foi substituída pela geometria de Minkowski.

Cada observador possui assim seu tempo próprio, e a noção de si-

multaneidade passou a depender de seu estado de movimento.

Essa passagem para uma miríade de tempos relativos a cada ob-

servador retirou de cena o tempo absoluto newtoniano.

Anos depois, o aparecimento de uma nova teoria da gravitação,

a relatividade geral, retirou o caráter imutável, rígido, estático da

estrutura minkowskiana, passando a considerar que o espaço-

-tempo possui uma geometria variável. A universalidade da gravi-

tação – isto é, o fato observado de que todos os corpos interagem

gravitacionalmente -- mudou a geometria do mundo ao afi rmar

que toda matéria, tudo que existe, cada observador, está imerso

em uma única e global estrutura geométrica, variável, com uma di-

nâmica controlada pela distribuição de energia e matéria. A carac-

terística importante a reter é precisamente a univocidade, ou seja,

existe somente uma geometria no mundo. O caráter universal da

interação gravitacional fi xa a geometria onde “tudo que existe”

está mergulhado, ou seja, a totalidade espaço-tempo.

A partir do reconhecimento de que a universalidade dos pro-

cessos gravitacionais modifi ca a geometria do mundo, concluiu-se

que a física havia consagrado uma nova descrição absoluta, pois

qualquer outra força de caráter não gravitacional exerce uma ação

sobre o corpo que o desvia da geodésica, a curva que um corpo

livre de qualquer força seguiria. Nesse contexto se poderia afi rmar

que um corpo é livre se sobre ele atuam somente forças gravitacio-

nais (pois elas atuam como se os corpos sob sua ação seguissem ca-

minhos livres, as geodésicas, em um espaço-tempo de geometria

variável). Por outro lado, um corpo sob ação de qualquer outra

força não é livre. Tal descrição permitiria caracterizar de um modo

absoluto o que chamaríamos “liberdade na física”.

Recentemente descobriu-se que esse não é o caso e que a noção

de “corpo livre” depende da estrutura métrica do espaço onde esse

corpo é descrito. Dito de outro modo: um corpo submetido a uma

força em um dado espaço-tempo pode ser descrito como se esti-

vesse livre de qualquer força desde que ele seja descrito, de modo

equivalente, como mergulhado em uma outra geometria. Isso sig-

nifi ca que cada corpo possui uma “sua” geometria na qual o efeito

da força externa que sobre ele atua é substituído pelas proprieda-

des da geometria onde o corpo é descrito. W. Gordon na primeira

metade do século 20, produziu uma descrição efi ciente e elegante

desse processo de aceleração da luz no interior de dielétricos em

movimento e descreveu as propriedades dessa métrica efetiva que

substitui o efeito de aceleração do fóton no meio dielétrico por

uma equivalente alteração da geometria. Dessa forma o fóton,

nessa geometria, segue uma geodésica; sua aceleração se esconde

na expressão variável da geometria que o fóton reconhece como a

do espaço-tempo onde ele se propaga.

Embora à primeira vista se trate do mesmo procedimento reali-

zado na relatividade geral, há uma diferença notável: no caso gra-

vitacional essa mudança da geometria é universal, independe de

qualquer característica do corpo em questão, enquanto no caso do

fóton no interior de um meio dielétrico em movimento, as altera-

ções espaçotemporais só seriam experimentadas pela luz.

Recentemente, esse mecanismo de transformar a descrição de

processos dinâmicos exercidos por forças de qualquer natureza por

alterações na geometria por onde o corpo se movimenta mostrou

ser geral. Isso leva a afi rmar um modo novo de descrever processos

dinâmicos naquilo que eu chamaria de relatividade métrica.

A evolução da estrutura da geometria do espaço-tempo pode

ser sintetizada da forma seguinte. A relatividade especial se funda-

mentou no início do século 20 sobre o princípio de que cada obser-

vador possui um tempo próprio e se movimenta em um espaço-

-tempo único, tendo uma geometria comum. Na década seguinte ,

a relatividade geral alterou essa geometria, tornando-a variável e

universal. A relatividade métrica se baseia no princípio de que

cada observador, sobre o qual atuam diferentes forças, institui sua

própria geometria onde as forças que atuam sobre ele são formal-

mente eliminadas. Como a geometria resultante (aquela onde o

corpo está livre de qualquer ação e se movimenta ao longo de uma

geodésica nessa geometria associada) depende do movimento,

concluímos que cada corpo instaura sua geometria particular na

qual ele é um corpo livre, isento de qualquer ação externa. Essa eli-

minação da força pela caracterização de uma geometria específi ca

para cada corpo é uma simples questão de escolha de representa-

ção. Adquire-se assim uma novidade inesperada: a liberdade dos

corpos na física depende da representação escolhida.

Cada corpo tem sua geometria particular na qual ele é um corpo livre de ações externas

é pesquisador eméritodo Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas.

PAR A CONHECER MAIS

Mario Novello e Eduardo Bittencourt, em General Relativity andGravitation, vol. 45, pág. 1005, 2013.

Page 22: Scientific American Brasil - Setembro 2015

DESAFIOS DO COSMOS de SALVADOR NOGUEIRA

é jornalista de ciência especializado em astronomia e astronáutica. É autor de oito livros, dentre eles Rumo ao

e Extraterrestres: Onde eles estão e como a ciência tenta encontrá-los.

ASTROFOTOGRAF IA

As fotos precisam ser em alta resolução, com no mínimo 300 dpi,para serem publicadas.

É uma das previsões mais incríveis da teoria da relatividade

geral: objetos com massa que se movem pela ação da gravidade, ao

se deslocar, produzem marolinhas no próprio tecido do espaço-

-tempo. É como se o vazio cósmico se encurtasse e se esticasse,

num padrão ondulatório que se propaga em todas as direções, a

partir do objeto que o gerou, na velocidade da luz. São as chama-

das ondas gravitacionais.

Einstein já sabia que elas deviam existir, e há evidências indire-

tas de que seja mesmo esse o caso em astros binários de alta massa.

Em 1974, os astrofísicos Russell Alan Hulse e Joseph Hooton

Taylor, Jr., dos Estados Unidos, descobriram o primeiro exemplar

desse tipo. Conhecido pela sigla PSR B1913+16, ele consiste basica-

mente em duas estrelas de nêutrons orbitando velozmente em

torno de um centro de gravidade comum.

Estrelas de nêutrons são o que resta de astros muito maiores,

depois que eles esgotaram sua capacidade de produzir energia por

fusão nuclear e explodiram violentamente como supernovas.

Quando o material que sobra da explosão é superior a três ou

quatro vezes a massa do Sol, não há lei física conhecida que impeça

seu colapso completo – o objeto se torna um buraco negro. Contu-

do, se a massa é menor que essa e pelo menos 40% maior que a do

Sol, o resultado final é uma estrela de nêutrons.

Em alguns casos, esses objetos em rotação produzem pulsos de

rádio e, por isso, recebem a denominação de pulsares. Em 1974,

foram as emissões de rádio que chamaram a atenção de Hulse e

Taylor, e então eles descobriram que o objeto era binário – um

deles era um pulsar e o outro uma estrela de nêutrons sem os ca-

racterísticos pulsos de rádio. Mas o mais interessante é

que medições do período orbital desses dois objetos suge-

riam que eles estavam espiralando para dentro, gradual-

mente se aproximando um do outro. É exatamente o “sin-

toma” de que o sistema está perdendo energia na forma de

ondas gravitacionais. A descoberta valeu aos cientistas dos

Estados Unidos o Nobel de Física em 1993.

Graças a isso, sabemos que ondas gravitacionais muito

provavelmente existem. Agora, detectá-las diretamente –

medir a sutil vibração no próprio espaço-tempo causada

pelas ondas – é um problema e tanto. Nas últimas décadas, diver-

sos projetos de detectores foram desenvolvidos, mas nada foi de-

tectado. Há inclusive um no Brasil, batizado em homenagem ao

físico Mário Schenberg (1914-1990), e instalado na USP.

Nos EUA, pesquisadores tentam mudar essa sorte a partir de

setembro. É quando voltará a operar o ambicioso LIGO (Laser In-

terferometer Gravitational-wave Observatory). Composto por

duas instalações gêmeas nos estados de Washington e da Louisia-

na, o sistema usa lasers correndo em circuitos perpendiculares de

4 km e interagindo uns com os outros. Qualquer minúscula varia-

ção no comprimento de um dos braços, provocada por uma onda

gravitacional, geraria um padrão de interferência detectável. E,

quando falamos em “minúscula”, é algo como um décimo de milé-

simo do tamanho de um próton.

O LIGO começou a colher dados em 2002 e só parou em 2010 –

sem detecção. Desde então, passou por uma reforma, para expan-

dir sua sensibilidade. Se antes o alcance máximo estava limitado a

fontes – como, por exemplo, um par de estrelas de nêutrons em co-

lisão – a cerca de 70 milhões de anos-luz de distância, ele agora

poderá captar sinais vindos de mais de 210 milhões de anos-luz.

Será que bastará? Só saberemos testando. De toda forma, a

busca por ondas gravitacionais vale a pena. Não só para a compre-

ensão dos objetos supermassivos, mas também para a investiga-

ção da natureza do próprio espaço-tempo. Quem sabe, no futuro,

até mesmo os sinais gravitacionais produzidos pelo Big Bang

possam ser investigados, oferecendo incríveis lampejos sobre a

origem do Universo?

A caçada às ondas gravitacionais

22 Scientifi c American Brasil | Setembro 2015

LIGO

/CAL

TECH

VISÃO AÉREA DO LIGO, detector de ondas gravitacionais, em Livingston, Louisiana (EUA).

Busca vale a pena para compreender corpos supermassivos e até mesmo o espaço-tempo

Page 23: Scientific American Brasil - Setembro 2015

CÉU DO MÊS SETEMBRO

Fenômeno completa a segunda sé-rie tétrade, de um total de oito que teremos no século 21. A próxima só acontece entre 2032 e 2033.

A Lua é o único objeto celeste que revela alguns

detalhes de sua superfície mesmo a olho nu. Poluição atmosféri-

ca e luminosa não são capazes de ofuscar sua beleza e, para quem

tem céus limpos e telescópios, os detalhes de seu solo acidentado

são um show à parte. Para fechar a conta, em setembro teremos

um eclipse lunar total, observável em todo o Brasil.

O fenômeno, que ocorre quando a Terra se interpõe entre o

Sol e a Lua, acontecerá na virada do dia 27 para 28. Às 22h07

(a referência é São Paulo), o astro começa a entrar na sombra

terrestre e estará totalmente encoberto às 23h10. A saída da

sombra começa à 0h23 e à 1h27 já não se vê mais sinal aparen-

te do eclipse, embora a Lua ainda se encontre na penumbra,

recebendo apenas iluminação parcial do Sol.

Durante a fase de totalidade, a Lua ganha um tom avermelha-

do, explicado pelo fato de que a única luz que chega até sua su-

perfície é a que passou de raspão pela atmosfera terrestre. Origi-

nalmente branca, a luz é “filtrada” e só consegue sair do outro

lado a porção avermelhada do espectro (por essa mesma razão, o

poente e o nascente têm aquele tom avermelhado).

O eclipse é o quarto e último de uma série que se iniciou em

2014. Essas tétrades, em que o fenômeno se repete quatro vezes

num espaço de dois anos, são relativamente raras. Durante o

século 21, estamos vivenciando a maior sequência de tétrades

dos últimos mil anos. São oito ao todo. A primeira ocorreu em

2003-2004, a segunda se fecha neste mês, e a próxima será

apenas em 2032-2033.

Mesmo se considerarmos apenas a ocorrência de eclipses lu-

nares totais, sem levar em conta a raridade adicional de séries

sequenciais tétrades, é bom aproveitar esta chance. O próximo

acontecerá somente em 2018.

Além disso, o fugidio Mercúrio volta a se destacar no céu, vi-

sível logo após o poente, na direção oeste, atingindo sua

máxima elongação (maior afestamento relativo do Sol) no dia

4. Mas não perca tempo para vê-lo, pois até o fim do mês ele

voltará a se esconder no brilho cegante do astro-rei.

Por sua vez, Vênus, que nos últimos meses tem dado show após

o poente, atinge seu brilho máximo no dia 20 (-4,5 magnitudes).

Bons céus a todos! (S.N.)

Eclipse lunar total será visível em todo o Brasil

www.sciam.com.br 23

GUST

AVO

AN

DER

SON

GUE

RRA

BATI

STA

GUSTAVO ANDERSON GUERRA BATISTA registra a Lua quase cheia em Campina Grande (PB).

Page 24: Scientific American Brasil - Setembro 2015

Máximo da chuva de meteorosAlfa Aurigíades

Oposição de Netuno com o Sol

Mercúrio em máxima elongação aleste do Sol. Visível ao anoitecer

Máximo da chuva de meteorosépsilon Perseidas

Início da primavera no Hemisfério Sul

Eclipse lunar. Visível no Brasil

Mercúrio em conjunção inferior com o So

DESTAQUES DO MÊS

Visibilidadedos planetasMERCÚRIO Visível ao anoitecer na direção do pôr do sol, em Virgem. Máxima elongação em 4, a 26° ESE do Sol, e em conjunção inferior com o Sol em 30. Próximo da Lua em 15.

VÊNUSPrimeiramente em Câncer e depois em Leão. Visível ao amanhecer, na direção do nascer do Sol. Próximo da Lua em 10.

MARTE Visível ao amanhecer na direção do pôr do sol. Inicialmente em Câncer, depois em Leão. Próximo da Lua em 10 e em conjunção com Regulus (alfa de Leão) em 24.

JÚPITER Visível em Leão, ao amanhecer, na direção do nascer do Sol. Próximo da Lua em 12.

SATURNO Em Libra, visível ao anoitecer, na direção do pôr do sol. Próximo da Lua em 17.

URANO Visível em Peixes. Começa a ser visto a partir das 19-20h no começo do mês e depois durante quase toda a noite. Próximo da Lua em 1o e 28.

NETUNO Em Aquário, visível durante toda a noite. Em oposição ao Sol em 1o, próximo da Lua em 26.

PASSAGEM DO SOL PELAS CONSTELAÇÕES *Leão de 11/08/2015 a 17/09/2015

Virgem de 17/09/2015 a 31/10/2015

* O limite das constelações foi estabelecido pela União Astronômica Internacional em 1930, o que permite estabelecer, com grande precisão, o instante de entrada e saída do Sol de cada uma das 13 constelações que são atravessadas pela trajetória anual aparente do Sol, a eclíptica.

N

O

S

24 Scientifi c American Brasil | Setembro 2015

Page 25: Scientific American Brasil - Setembro 2015

CARTA CELESTE PARA O MÊSMapa mostra céu visível às 22h00 de 1º de setembro, às 21h00

de 15 de setembro e às 20h00 de 30 de setembro a partir dalatitude de 23°27’ Sul (Trópico de Capricórnio).

DIA HORA EVENTO

1o - Máximo da chuva de meteoros Alfa Aurigíades.

1o 08h40 Netuno em oposição ao Sol.

1o 13h25 Urano a 0,7°N da Lua.

4 05h40 Lua passa pelo aglomerado de Plêiades (M 45).

4 07h06Mercúrio em máxima elongação ortiva (a leste do Sol). Visível ao anoitecer a 27°ESE do Sol.

5 00h36 Lua passa a 0,9°N de Aldebarã (alfa de Touro).

5 06h55 Lua em quarto minguante.

9 17h52 Lua a 5,5°S do aglomerado estelar de Praesepe (M 44).

10 - Máximo da chuva de meteoros épsilon Perseidas.

10 01h25 Lua em conjunção com Vênus.

10 03h58 escura da Lua minguante falcada (luz cinérea). O horário refere-se ao nascer da Lua em São Paulo.

10 20h47 Lua em conjunção com Marte.

12 01h57 Lua em conjunção com Júpiter.

13 03h42 Lua nova.

13 03h56 Eclipse parcial do Sol. Não visível no Brasil.

14 08h23Lua no apogeu, maior distância com a Terra, 406.569 km. Diâme-tro aparente = 29,6’.

15 02h35 Mercúrio em conjunção com a Lua.

15 22h42 Lua em conjunção com Spica (alfa de Virgem).

16 20h30 escura da Lua crescente falcada (luz cinérea). O horário refere-se ao ocaso da Lua em São Paulo.

17 00h47 Lua em conjunção com Saturno.

19 16h52 Lua ultrapassa Antares (alfa de Escorpião).

20 17h41 Vênus atinge seu brilho máximo de -4,5 magnitudes.

21 06h00 Lua em quarto crescente.

23 05h21 Equinócio de setembro. Início da primavera no Hemisfério Sul.

24 08h33 Asteroide 4 Vesta a menor distância da Terra, 213,4 milhões de km.

24 13h39 Júpiter em conjunção com Regulus (alfa de Leão).

26 07h52 Netuno em conjunção com a Lua.

27 02h44 Asteroide (4) Vesta atinge seu brilho máximo de 6 magnitudes.

27 23h11Lua no perigeu, menor distância com a Terra, 356.879 km. Diâme-tro aparente = 34,0’.

27 23h47 Eclipse total da Lua. Visível no Brasil.

27 23h51 Lua cheia. (*)

28 20h40 Urano a 0,8°N da Lua.

30 11h31 Mercúrio em conjunção inferior com o Sol. Planeta entre o Sol e a Terra.(*) A lua cheia próxima da data do seu perigeu tem sido chamada, pela mídia, de super lua.

L

www.sciam.com.br 25

27

21h10 Lua entra na penumbra

2800h23 Fim da totalidade

22h07 Lua entra na sombra 01h27 Lua deixa a sombra

23h10 Início da totalidade 02h24 Lua deixa a penumbra

23h47 Máximo do eclipse

DURAÇÃO DO ECLIPSE: 5h 13min | DURAÇÃO DA FASE DE SOMBRA: 3h 21min | DURAÇÃO DA FASE DE TOTALIDADE: 1h 11min

Page 26: Scientific American Brasil - Setembro 2015
Page 27: Scientific American Brasil - Setembro 2015

www.sciam.com.br 27Ilustração de Jon Foster

Curtis W. Marean

ESPÉC EINVASI A

EVOLUÇÃO

AMAIS

DE TODAS

Page 28: Scientific American Brasil - Setembro 2015

28 Scientifi c American Brasil | Setembro 2015

M ALGUM MOMENTO POSTERIOR A 70 MIL ANOS ATRÁS, NOSSA ESPÉCIE, HOMO SAPIENS, SAIU

da África para começar sua inexorável propagação por todo o globo. Outras espé-

cies de hominídeos tinham se estabelecido na Europa e na Ásia, mas apenas nos-

sos ancestrais H. sapiens acabaram conseguindo se dispersar para todos os gran-

des continentes e muitas cadeias insulares. Sua dispersão, porém, não foi nada

comum. Todos os lugares para onde o H. sapiens migrou passaram por massivas

mudanças ecológicas. Os humanos arcaicos que encontraram foram extintos,

assim como uma infi nidade de espécies animais. Esse foi, sem dúvida, o evento

migratório mais signifi cativo na história do nosso planeta.

Paleoantropólogos debateram por muito tempo como e por

que só humanos modernos conseguiram essa surpreendente

façanha de propagação e dominância. Alguns especialistas

argumentam que a evolução de um cérebro maior, mais sofi sti-

cado, permitiu que nossos ancestrais avançassem para novas

terras e enfrentassem os desafi os desconhecidos que encontra-

ram ali. Outros sustentam que uma tecnologia inédita impul-

sionou a expansão de nossa espécie fora da África ao permitir

que humanos modernos caçassem presas, e liquidassem inimi-

gos, com uma efi ciência sem precedentes. Um terceiro cenário

postula que mudanças climáticas enfraqueceram as popula-

ções de neandertais e outras espécies arcaicas de hominídeos

que ocupavam os territórios fora da África, permitindo que os

humanos modernos conquistassem uma posição dominante e

assumissem o controle de seus domínios. Mas nenhuma dessas

hipóteses oferece uma teoria abrangente capaz de explicar ple-

namente a extensão do alcance do H. sapiens. De fato, essas

teorias têm sido apresentadas quase sempre como explicações

para registros de atividade de H. sapiens em determinadas

regiões, como a Europa Ocidental. Essa abordagem fragmentá-

ria para estudar como ele colonizou a Terra tem induzido cien-

tistas a erros. A grande diáspora humana foi um evento multi-

fásico que, portanto, precisa ser investigado como somente

uma questão de pesquisa.

Escavações que conduzi ao longo dos últimos 16 anos em

Pinnacle Point, no litoral austral da África do Sul, somadas a

avanços teóricos em ciências biológicas e sociais, recentemente

me levaram a um cenário alternativo para explicar como o H.

sapiens conquistou o mundo. Acredito que a diáspora ocorreu

quando um novo comportamento social evoluiu em nossa espé-

cie: uma propensão geneticamente codifi cada para cooperar

com indivíduos não aparentados. O acréscimo dessa tendência

única às avançadas habilidades cognitivas de nossos ancestrais

permitiu que eles se adaptassem agilmente a novos ambientes.

Isso também fomentou a inovação, dando origem a uma tecno-

logia revolucionária que mudou tudo: armas avançadas de lon-

é professor da Escola de Evolução Humana e Mudança Social da Universidade Estadual do Arizona, onde também é diretor associado do Instituto de Origens Humanas. É professor honorário da Universidade Metropolitana Nelson Mandela, na África do Sul. Sua

Estados Unidos e pelas Fundações da Família Hyde.

E M S Í N T E S E

de hominídeos queviveram na Terra, apenas o Homo sapiensconseguiu colonizar todo o globo.

comosó a nossa espécie conseguiu se dispersar tãoamplamenteepara lugarestão longínquos.

sustenta que duasinovações exclusivas do H. sapiens o apare-lharam para dominar o mundo.

paracooperar com pessoas não aparentadas. Aoutra são armas avançadas de arremesso.

E

Page 29: Scientific American Brasil - Setembro 2015

www.sciam.com.br 29

go alcance. Equipados assim, eles partiram da África, prontos

para subjugar o mundo inteiro de acordo com sua vontade.

DESEJO DE EXPANSÃO

Para apreciar o quanto a colonização do planeta por H.

sapiens foi extraordinária, precisamos retroceder cerca de 200

mil anos, para o alvorecer de nossa espécie na África. Durante

dezenas de milhares de anos, esses humanos anatomicamente

modernos, pessoas que se pareciam conosco, permaneceram

dentro dos limites do continente-mãe. Há uns 100 mil anos, um

grupo deles fez uma breve incursão no Oriente Médio, mas apa-

rentemente foi incapaz de prosseguir. Esses humanos precisa-

vam de uma vantagem que ainda não tinham. Então, em algum

momento depois de 70 mil anos atrás, uma pequena população

fundadora transpôs os limites da África e iniciou uma campa-

nha mais bem-sucedida rumo a novas terras. Quando se expan-

diu para a Eurásia, esse grupo encontrou outra espécie humana

intimamente aparentada: os neandertais, na Europa Ocidental,

e membros da linhagem denisovana descoberta recentemente

na Ásia. Pouco depois da invasão dos modernos, os arcaicos

foram extintos, embora um pouco de seu DNA persista até hoje

em humanos como resultado de miscigenações ocasionais

entre os diferentes grupos.

Uma vez que chegaram às costas do Sudeste Asiático, eles se

viram diante de um mar aparentemente ilimitado e desprovido

de terras. Ainda assim, continuaram avançando destemidos.

Como nós, essas pessoas eram capazes de vislumbrar e desejar

novas terras para explorar e conquistar; por isso, construíram

embarcações aptas a navegar e se lançaram ao mar, chegando às

costas da Austrália há pelo menos 45 mil anos. Primeira espécie

humana a entrar nessa parte do mundo, o H. sapiens rapidamen-

te se dispersou pelo continente, correndo através dele com lança-

dores de dardos e fogo. Muitos dos maiores entre os estranhos

marsupiais, que há muito haviam dominado a Austrália, conhe-

cida como “a terra lá embaixo” [devido à sua posição geográfi ca],

foram extintos. Então, há aproximadamente 40 mil anos, os des-

bravadores encontraram e cruzaram uma ponte terrestre para a

Tasmânia, embora as inclementes águas dos oceanos mais aus-

trais lhes negassem passagem para a Antártida.

Bem mais ao norte, uma população de H. sapiens que viaja-

va na direção nordeste chegou à Sibéria e se irradiou pelas ter-

ras que circundam o Polo Norte. Durante algum tempo, gelos

terrestres e marinhos frustraram sua entrada nas Américas.

Quando, exatamente, conseguiram enfi m fazer a travessia para

o Novo Mundo é uma questão de acirrado debate científi co,

mas pesquisadores concordam que eles romperam essas bar-

reiras há uns 14 mil anos, invadindo um continente cuja vida

selvagem nunca tinha visto caçadores humanos. Em apenas

alguns milhares de anos, eles chegaram aos confi ns austrais da

América do Sul, deixando em sua esteira um rastro de extinção

em massa das grandes feras da Era do Gelo, como mastodontes

e preguiças-gigantes.

Madagascar e muitas ilhas do Pacífi co permaneceram livres

de humanos por outros 10 mil anos, mas, em um avanço fi nal,

“marinheiros” descobriram e colonizaram quase todos esses

lugares. Como em outras partes do mundo onde o H. sapiens se

estabeleceu, essas ilhas também sofreram a devastação de sua

ocupação, com ecossistemas queimados, espécies extermina-

das e ambientes remodelados para os propósitos de nossos

antecessores. A colonização humana da Antártida, por sua vez,

só aconteceu na era industrial.

JOGADORES DE EQUIPE

Mas como o H. Sapiens fez isso? Como, após dezenas de

milhares de anos de confi namento ao seu continente de ori-

gem, nossos ancestrais fi nalmente saíram de lá e conquistaram

não só as regiões colonizadas por espécies humanas anteriores,

mas o mundo inteiro? Uma teoria útil para essa diáspora preci-

sa fazer duas coisas: Primeiro, explicar por que o processo

começou quando começou, e não antes. Segundo, ela tem de

fornecer um mecanismo para uma rápida dispersão por terra e

mar, que teria exigido a capacidade de se adaptar prontamente

a novos ambientes e desalojar quaisquer humanos arcaicos

encontrados neles. Proponho que o surgimento de característi-

cas que nos tornaram colaboradores inigualáveis, por um lado,

e concorrentes implacáveis, por outro, é o que melhor explica a

súbita ascensão de H. sapiens à dominância do mundo.

Territorialidade compensa

cerá uma defesa agressiva de fontes alimentares (territorialidade)quando os benefícios de acesso exclusivo a elas superam os custos de patrulhá-las. Entre humanos que vivem em pequenas socieda-des, a territorialidade compensa quando os recursos são densos eprevisíveis. Na África, certas áreas costeiras têm fontes alimentares densas e previsíveis em forma de viveiros subaquáticos de molus-cos e crustáceos. Esses ambientes provavelmente despertaram anoção de territorialidade em grupos primitivos de H. sapiens.

T E O R I A

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Gráfi co de Jen Christiansen

Page 30: Scientific American Brasil - Setembro 2015

30 Scientific American Brasil | Setembro 2015

Humanos modernos tinham esse atributo determinado e

infatigável; os neandertais e nossos outros primos extintos não.

Creio que foi essa última grande adição ao conjunto de caracte-

rísticas que constituiu o que o antropólogo Kim Hill, da Univer-

sidade Estadual do Arizona, chamou “singularidade humana”.

Nós, humanos modernos, cooperamos em um grau extraor-

dinário. Nos envolvemos em atividades grupais coordenadas de

forma altamente complexa com pessoas que não são nossos

parentes e que podem até ser completos estranhos. Imagine,

em um cenário sugerido pela antropóloga Sarah Blaffer Hrdy,

da Universidade da Califórnia em Davis, em seu livro Mothers

and Others, de 2009, uns 200 chimpanzés fazendo fila, embar-

cando em um avião, ficando sentados de modo extremamente

passivo durante horas, para depois desembarcarem sob coman-

do, como robôs. Isso seria impensável — eles lutariam entre si

sem parar. Mas nossa natureza cooperativa é uma “faca de dois

gumes”. A mesma espécie que corre em defesa de um estranho

perseguido também se juntará a indivíduos desconhecidos, não

aparentados, para travar uma guerra contra outro grupo, sem

nenhuma consideração ou piedade quanto à competição. Mui-

tos de meus colegas e eu acreditamos que essa tendência para a

colaboração, que chamo de hiperpró-sociabilidade, não é uma

tendência adquirida, mas um traço geneticamente codificado,

encontrado apenas em H. sapiens. Alguns outros animais

podem exibir sinais sutis disso, mas o que humanos modernos

têm é algo diferente.

A pergunta de como adquirimos essa predisposição genética

para nosso tipo extremo de cooperação é complicada. Mas

modelos matemáticos de evolução social produziram algumas

pistas valiosas. Sam Bowles, economista do Instituto Santa Fe,

no Novo México, mostrou que uma condição ideal para a hiper-

pró-sociabilidade geneticamente codificada se propagar é,

paradoxalmente, quando grupos estão em conflito. Grupos que

têm um número maior de pessoas pró-sociais trabalharão com

mais eficiência em conjunto e, portanto, superarão outros,

além de repassarem seus genes para esse comportamento para

a próxima geração, o que resulta na disseminação dessa ten-

dência. Um estudo realizado pelo biólogo Pete Richerson, da

Universidade da Califórnia em Davis, e pelo antropólogo Rob

Boyd, da Universidade Estadual do Arizona (ASU), indica adi-

cionalmente que esse comportamento se propaga melhor quan-

do começa em uma subpopulação e a competição entre grupos

é intensa, e quando os tamanhos populacionais gerais são

pequenos, como a população original de H. sapiens na África,

da qual descendem todas as pessoas da atualidade.

Caçadores-coletores tendem a viver em bandos de aproxi-

madamente 25 indivíduos, casar-se com “gente de fora” e se

agrupar em “tribos” vinculadas por intercâmbio de parceiros,

troca de presentes, e uma língua e tradições em comum. Às

vezes, eles também lutam contra outras tribos, o que os expõe a

grandes riscos. Isso suscita a pergunta: o que provoca essa dis-

posição para se envolver em combates arriscados?

Insights sobre quando vale a pena lutar vieram da clássi-

ca teoria da “defensabilidade econômica”, proposta em 1964

por Jerram Brown, agora na Universidade Estadual de Nova

York em Albany, para explicar a variação de agressividade

entre aves. Brown argumentou que indivíduos agem agressi-

vamente para atingir certos objetivos que maximizarão sua

sobrevivência e reprodução. A seleção natural favorecerá

lutas quando elas facilitarem essas metas. Um dos principais

objetivos de todos os organismos vivos é garantir um esto-

que de alimentos; portanto, se o alimento pode ser defendi-

do, segue-se que um comportamento agressivo em sua defe-

sa deveria ser selecionado. Se ele não pode ser defendido, ou

for muito oneroso para ser patrulhado, então o comporta-

mento agressivo é contraproducente.

Em um artigo clássico publicado em 1978, Rada

Dyson-Hudson e Eric Alden Smith, ambos então na

Universidade Cornell, aplicaram a defensabilidade

econômica a humanos que vivem em sociedades

pequenas. Seu trabalho mostrou que faz sentido a

defesa de recursos quando estes são densos e previsí-

veis. Gostaria de acrescentar que os recursos em ques-

tão têm de ser cruciais para o organismo; nenhum ser

vivo defenderá um bem de que não necessita. Esse

princípio se mantém até hoje: grupos étnicos e Esta-

dos-nações lutam acirradamente por recursos densos, previsí-

veis e valiosos como petróleo, água e terras agrícolas produtivas.

Uma implicação desse “princípio da territorialidade” é que os

ambientes que teriam fomentado conflitos intergrupais, e, por-

tanto, os comportamentos cooperativos que teriam possibilitado

essa luta, não eram universais no mundo de H. sapiens primiti-

vos. Eles estavam restritos aos locais onde recursos de alta quali-

dade eram densos e previsíveis. Na África, as riquezas terrestres

são, em geral, escassas e imprevisíveis, o que explica por que a

maioria dos caçadores-coletores que vivem ali e têm sido estuda-

dos investem pouco tempo e energia na defesa de limites ou

fronteiras territoriais. Mas há exceções a essa regra. Certas áreas

costeiras têm reservas alimentares muito ricas, densas e previsí-

veis em forma de “leitos” subaquáticos de moluscos e crustáceos.

E os registros etnográficos e arqueológicos de guerras entre caça-

dores-coletores ao redor do mundo mostram que os níveis mais

intensos, ou elevados, de conflito ocorreram entre grupos que

usavam esses recursos litorâneos, como os que existem na região

costeira norte-americana do Pacífico.

Quando os humanos adotaram inicialmente recursos den-

sos e previsíveis como pilar de sua dieta? Durante milhões de

anos, nossos ancestrais forragearam, alimentando-se de plan-

tas e animais terrestres, e, ocasionalmente, também de alguns

alimentos aquáticos interiores. Todos esses comestíveis ocor-

Page 31: Scientific American Brasil - Setembro 2015

www.sciam.com.br 31

rem em baixas densidades, e a maioria é imprevisí-

vel. Por essa razão, nossos antecessores viviam em

grupos altamente dispersos, que se locomoviam

constantemente em busca de sua próxima refeição.

Mas, à medida que a cognição humana se tornou

cada vez mais complexa, uma população descobriu

como sobreviver ao longo da costa alimentando-se de

mariscos. As escavações de minha equipe nos sítios

em Pinnacle Point indicam que essa mudança teve

início há 160 mil anos, nos litorais austrais da África.

Foi ali que, pela primeira vez na história da humani-

dade, as pessoas começaram a visar um recurso den-

so, previsível e altamente valorizado, desenvolvimen-

to que levaria a uma grande mudança social.

Evidências genéticas e arqueológicas sugerem que

o H. sapiens passou por um declínio populacional

pouco depois de ter se originado, devido a uma fase

de resfriamento global, que se estendeu de aproxima-

damente 195 mil a 125 mil anos atrás. Ambientes lito-

râneos lhe proporcionaram um refúgio dietético

durante os inclementes e rigorosos ciclos glaciais que

tornavam plantas e animais comestíveis difíceis de

encontrar em ecossistemas terrestres interiores; por-

tanto eles foram vitais para a sobrevivência de nossa

espécie. Esses recursos marinhos costeiros também

constituíam uma razão para confl itos. Experimentos

recentes na costa austral da África, conduzidos por

Jan De Vynck, da Universidade Metropolitana Nel-

son Mandela, na África do Sul, mostram que concen-

trações de mariscos podem ser extremamente produ-

tivas, com um rendimento de até 4.500 calorias por

hora de forrageio. Minha hipótese, em essência, é

que alimentos litorâneos eram um recurso alimentar

denso, previsível e valioso. E, como tal, provocavam

elevados níveis de territorialidade entre humanos,

que acabavam levando a confl itos intergrupais. Esses

confrontos regulares proporcionaram condições

seletivas de comportamentos pró-sociais em grupos

— trabalhar em conjunto para defender os leitos de

mariscos e, com isso, manter acesso exclusivo a esse

precioso recurso — que posteriormente se propaga-

ram por toda a população.

ARMAS DE GUERRA

Com a capacidade de operar em grupos de indiví-

duos não aparentados, o H. sapiens estava no caminho

certo para se tornar uma força imbatível. Mas supo-

nho que ele precisasse de uma nova tecnologia, em forma de

armas arremessáveis, para alcançar seu pleno potencial de con-

quistador. O desenvolvimento dessa invenção foi um processo

longo. Tecnologias são aditivas: elas se baseiam em experimen-

tos e conhecimentos prévios e assim se tornam cada vez mais

complexas. A criação de armas de arremesso teria seguido a mes-

ma trajetória, evoluindo, provavelmente, de hastes de madeira

pontudas, usadas para perfurar, para dardos manuais, lanças de

arremesso alavancado (chamadas atlatl), a arcos e fl echas, e

fi nalmente, para toda a gama altamente criativa que os humanos

contemporâneos inventaram para lançar objetos mortais.

A cada nova repetição, a tecnologia tornou-se mais letal.

Lanças, ou dardos simples de madeira com pontas afi adas ten-

dem a produzir uma perfuração, mas essa lesão tem impacto

limitado porque não dessangra o animal rapidamente. Equipar

a lança com uma lasca de pedra afi ada aumenta o trauma da

DIMINUTAS LÂMINAS LÍTICAS, ou micrólitos, de Pinnacle Point, na África do Sul (acima), mostram que humanos inventaram armas arremes-sáveis há 71 mil anos. Eles fi xavam os micrólitos em cabos de madeira para formar fl echas ou dardos como os reconstituídos aqui (abaixo).

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Page 32: Scientific American Brasil - Setembro 2015

32 Scientifi c American Brasil | Setembro 2015

ferida. Mas essa elaboração envolve várias tecnologias interli-

gadas: a pessoa tem de ser capaz de “esculpir” uma ferramenta

em forma pontiaguda, que penetre um animal, e moldar uma

base que possa ser fi xada em uma lança. Isso também requer

algum tipo de tecnologia conectiva para prender essa ponta de

pedra lascada à haste de madeira, seja com cola ou um material

para amarrar (atar), às vezes os dois. Jayne Wilkins, atualmente

na Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul, e seus

colegas mostraram que algumas ferramentas de pedra encon-

tradas em um sítio paleoantropológico sul-africano, chamado

Kathu Pan 1, foram usadas como pontas de lanças há cerca de

500 mil anos.

A antiguidade do achado de Kathu Pan 1 implica que ele é

trabalho artesanal do último ancestral comum de neandertais e

humanos modernos, e vestígios mais tardios, datados de uns

200 mil anos atrás, mostram que, como seria de esperar, as

duas espécies descendentes também confeccionavam tais tipos

de ferramentas. Essa tecnologia compartilhada signifi ca que,

NOVO CENÁRIO

Invasor defi nitivoO Homo sapiens não se limitou meramente a seguir as pegadas de seus antecessores. Ele desbravou caminhos para terras inteiramente novas, e transformou ecossis-temas onde quer que fosse.

Após a estreia do nosso gênero Homo, na África (violeta), alguns ancestrais humanos primitivos come-çaram a se dispersar de suas terras natais por volta de dois milhões de anos atrás. Eles avançaram para várias regiões da Eurásia e acabaram evoluindo em Homo erectus, neandertais e denisovanos (verde).

Há 200 mil anos, H. sapiens anatomicamente mo-dernos já haviam evoluído. Quando as condições cli-máticas deterioraram, por volta de 160 mil anos atrás, deixando grande parte do interior da África inabitável, alguns membros dessa espécie procuraram refúgio na costa sul e aprenderam a explorar os ricos viveiros (“lei-tos”) subaquáticos de moluscos e crustáceos da região como fontes de alimentos. O autor propõe que essa mudança de estilo de vida levou à evolução de uma

melhor defender os depósitos de mariscos contra intru-sos. Singularmente colaborativos e socialmente conec-tados, nossos ancestrais se tornaram cada vez maisengenhosos. Seu desenvolvimento de armas arremes-sáveis foi uma inovação revolucionária.

Com o surgimento dessas duas características,cooperação extrema e projéteis avançados, o H. sapiensestava pronto para partir da África e conquistar omundo (setas vermelhas). Ele se espalhou além daEuropa e da Ásia, e chegou a continentes e cadeiasinsulares que nunca antes tinham abrigadohumanos de qualquer espécie (marrom claro).

ConsequênciasImportantes mudanças ecológicas acompanharam a dispersão de nossa espécie. Na Europa e naÁsia, a chegada de humanos modernos condenou os arcaicos residentes humanos aodesaparecimento; quando essas pessoas modernas entraram em regiões que nunca antes haviamabrigado humanos de qualquer espécie, elas rapidamente caçaram à extinção muitos dos animaisde grandes proporções, ou megafauna, que viviam nesses lugares. (A megafauna na Eurásia foi maiscapaz de sobreviver à chegada do Homo sapiens, provavelmente porque a presença de longa datade humanos arcaicos ali havia produzido um equilíbrio entre predador e presa.)

Chegada à Europa ocidental

Seguida da extinção de neandertais

Humanos modernos saem

da África

Dispersão para

o Ártico

Chegada ao Sudeste Asiático

Seguida da extinção dos denisovanos

Chegada àAustrália

Seguida da extinçãoda megafauna

FONTE: “GLOBAL LATE QUATERNARY MEGAFAUNA EXTINCTIONS LINKED TO HUMANS, NOT CLIMATE CHANGE”, CHRISTOPHER SANDOM ET AL., EM PRO-CEEDINGS OF THE ROYAL SOCIETY B, VOL. 281, Nº. 1787; 22 DE JULHO DE 2014 (ÁREA DE EXPANSÃO DE HOMINÍNEOS E MAPA DE EXTINÇÃO DA MEGAFAUNA)

Origem do Homo sapiens e da cognição complexa

na África

H. sapiens aprende como explorar ricos recursos costeiros

Elevada territorialidade

Seleção para comportamentos hiperpró-sociais

Cooperação intra e

intergrupal (tribal)

Armas arremessáveis

Page 33: Scientific American Brasil - Setembro 2015

www.sciam.com.br 33

durante algum tempo, houve um equilíbrio de poder entre

neandertais e H. sapiens primitivos. Mas essa situação estava

prestes a mudar.

Especialistas concordam que o surgimento de ferramentas

miniaturizadas de pedra no registro arqueológico sinaliza o

advento da verdadeira tecnologia de arremesso, para a qual

leveza e balística são cruciais. Essas ferramentas são demasia-

damente pequenas para serem empunhadas à mão. Em vez dis-

so, elas devem ter sido montadas em fendas, ou aberturas enta-

lhadas em osso ou madeira para criar armas que podiam ser

arremessadas a alta velocidade e a longa distância. Os exem-

plos mais antigos conhecidos dessa chamada tecnologia micro-

lítica vêm justamente do sítio de Pinnacle Point. Ali, em um

abrigo rochoso conhecido simplesmente como PP5-6, minha

equipe descobriu um longo histórico de ocupação humana.

Empregando uma técnica chamada datação por luminescência

opticamente estimulada, a geocronóloga Zenobia Jacobs, da

Universidade de Wollongong, na Austrália, determinou que a

sequência arqueológica em PP5-6 abrange o período de 90 mil

a 50 mil anos atrás. As mais antigas ferramentas microlíticas

do sítio datam de cerca de 71 mil anos.

Esse timing sugere que uma mudança climática pode ter pre-

cipitado a invenção dessa nova tecnologia. Antes de 71 mil anos

atrás, os habitantes de PP5-6 confeccionavam grandes pontas e

lâminas de pedra lascada de um tipo de rocha chamada quartzi-

to. Naquela época, a linha costeira fi cava perto de Pinnacle Point,

como mostrou Erich Fisher da Universidade Estadual do Arizo-

na (ASU) e membro da equipe. E reconstruções climáticas e

ambientais feitas por Mira Bar-Matthews, do Serviço Geológico

de Israel, e Kerstin Braun, agora uma pesquisadora de pós-dou-

torado na ASU, indicam que as condições eram semelhantes às

que prevalecem atualmente na área, com fortes chuvas de inver-

no e vegetação arbustiva. Mas há uns 74 mil anos, o clima do

mundo começou a mudar para condições glaciais. O nível do

mar baixou e expôs uma planície costeira; e as chuvas de verão

aumentaram, resultando na propagação de gramíneas altamen-

te nutritivas e fl orestas dominadas por acácias. Acreditamos que

isso levou ao desenvolvimento de um grande ecossistema de

migração, em que animais de pastagem se deslocavam para o les-

te no verão e para o oeste no inverno, acompanhando as chuvas

e, portanto, a relva fresca, no litoral antes submerso.

Por que, exatamente, os habitantes de PP5-6 começaram a

confeccionar armamentos pequenos e leves depois que o cli-

ma mudou não está claro. Talvez para visar animais à medida

que eles migravam pela nova planície. Qualquer que tenha

sido a razão, os habitantes locais desenvolveram um meio

engenhoso para produzir suas minúsculas ferramentas:

explorando uma nova matéria-prima, uma rocha chamada sil-

creto, cujos fragmentos aqueciam com fogo para facilitar o

trabalho de “esculpi-los” em pequenas pontas afi adas. Somen-

te com a mudança climática que ocorreu esses primitivos

humanos modernos poderiam ter tido acesso a um estoque

sufi cientemente estável de lenha das acácias para tornar a

manufatura dessas ferramentas microlíticas, termotratadas,

em uma tradição duradoura.

Ainda não sabemos para que tipo de tecnologia de lança-

mento esses micrólitos eram utilizados. Minha colega Marlize

Lombard, da Universidade de Johanesburgo, na África do Sul,

estudou peças ligeiramente mais tardias de outros sítios e

argumenta que elas representam a origem do arco e fl echa,

dado que os padrões de danos nelas são similares aos observa-

dos em pontas de fl echas conhecidas. Não estou totalmente

convencido, porque seu estudo não testou os danos criados por

atlatls. Seja em Pinnacle Point ou em outro lugar, acredito que

Origem do gênero Homo

Espécies primitivas de Homo arcaicos, inclusive o H. erectus

Espécies tardias de Homo arcaicos, inclusive neandertais e denisovanos

Espécies periféricas de Homo arcaicos

H. sapiens

Expansão de H. sapiens

Humanos modernos não são os primeiros a chegar; extinção hominínea

Humanos modernos são os primeiros a chegar; extinção da megafauna

Mapas de Terra Carta

78%Taxa de extinção de espécies de mamíferos de grandes proporções

Dados não disponíveis0%

Chegada à América do Norte

Seguida da extinção da megafauna

Chegada à América do SulSeguida da extinção

da megafauna

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34 Scientific American Brasil | Setembro 2015

o atlatl mais simples precedeu o arco e flecha mais complexo.

Também suspeito que, como caçadores-coletores recentes

na África, cujas vidas foram documentadas em relatos etnográ-

ficos, H. sapiens primitivos teriam descoberto a eficácia de

venenos e os teriam utilizado para aumentar o poder letal de

projéteis. Os momentos finais de matança em uma caça com

lança são caóticos, com corações disparados, pulmões arfando,

poeira e sangue, e o fedor de suor e urina. Os perigos são mui-

tos. Um animal perseguido até cair, derrubado de joelhos por

exaustão e perda de sangue, tem um último truque: imperioso,

o instinto leva a fera a se levantar mais uma última vez, “zerar”

a distância, e investir, enterrando seus chifres nas entranhas

humanas. As vidas curtas e os corpos quebrados de neandertais

indicam que eles sofreram as consequências de caçar animais

de grande porte a pouca distância com lanças de mão. Agora,

considere as vantagens de um projétil lançado a distância e

embebido em veneno, que paralisa esse animal, permitindo que

o caçador se aproxime e ponha fim à perseguição com pouca

ameaça. Essa arma foi uma inovação revolucionária.

FORÇA DA NATUREZA

Com o acréscimo de armas arremessáveis a um comporta-

mento hiperpró-social, nasceu um espetacular novo tipo de

criatura, cujos membros formavam equipes que operavam,

cada uma, como um único e insuperável predador. Nenhuma

presa, ou inimigo humano, estava seguro. Munidos dessa

potente combinação de características, seis homens, que falam

seis idiomas diferentes, podem remar unidos, com toda força,

enfrentando ondas de 10 metros de altura, para que o arpoador

possa avançar até a proa quando o chefe mandar e arremessar

um ferro letal no arquejante corpo de um leviatã, um animal

que deve ver humanos como nada mais além de diminutos pei-

xinhos. Da mesma forma, uma tribo de 500 pessoas, dispersa-

das em 20 bandos conectados em rede, pode formar um peque-

no exército para desfechar uma ação retaliatória contra uma

tribo vizinha por causa de uma incursão territorial.

O surgimento dessa estranha combinação de matador e

cooperador pode muito bem explicar por que, quando as con-

dições glaciais voltaram a reinar entre 74 mil e 60 mil anos

atrás, deixando grandes faixas da África inóspitas mais uma

vez, as populações humanas modernas não se contraíram

como antes. De fato, elas se expandiram na África do Sul e

prosperaram com uma ampla variedade de ferramentas avan-

çadas. A diferença foi que, dessa vez, os humanos modernos

estavam equipados para responder a qualquer crise ambiental

com conexões sociais flexíveis e tecnologia. Eles se tornaram

os predadores alfa em terra e, por fim, também no mar. Essa

capacidade de dominar qualquer ambiente foi a chave que

finalmente lhes abriu a porta para migrarem da África para o

resto do mundo.

Grupos humanos arcaicos, incapazes de se unir e arremes-

sar armas, não tinham a menor chance contra essa nova espé-

cie. Cientistas vêm debatendo há tempos por que nossos pri-

mos neandertais foram extintos. Acho que a explicação mais

perturbadora também é a mais provável: eles eram percebidos

como concorrentes e como uma ameaça, e os humanos moder-

nos invasores os exterminaram. Foi para isso que evoluíram.

Às vezes penso sobre como esse fatídico encontro entre

humanos modernos e neandertais transcorreu. Imagino as

bravatas que os neandertais devem ter contado ao redor de

suas fogueiras sobre batalhas titânicas contra ursos-das-ca-

vernas e mamutes inacreditavelmente enormes, travadas sob

os céus cinzentos da Europa glacial, descalços sobre o gelo

escorregadio com o sangue de presa e irmão. Então, um belo

dia, a tradição deu uma guinada sombria e os gabolas viraram

medrosos. Contadores de anedotas neandertais

começaram a falar da chegada de uma nova gente

em suas terras; pessoas inteligentes e rápidas, que

arremessavam suas lanças a distâncias impossíveis,

com espantosa e terrível precisão. Esses estranhos

vinham até de noite, em grandes grupos, massacra-

vam homens e crianças, e levavam as mulheres.

A triste história dessas primeiras vítimas da enge-

nhosidade e cooperação de humanos modernos, os

neandertais, ajuda a explicar por que atos hediondos

de genocídio e xenocídio ocorrem de vez em quando no mundo

atual. Quando recursos e terras se tornam escassos, designa-

mos os que não se parecem conosco, ou falam como nós, como

“os outros”, e então usamos essas diferenças para justificar o

extermínio ou a expulsão deles para eliminar qualquer concor-

rência. A ciência revelou os gatilhos que acionam nossas incli-

nações “embutidas” para classificar pessoas como “outros” e

tratá-las de modo temerário. Mas só porque o H. sapiens evo-

luiu para reagir à escassez desse jeito cruel não significa que

estamos irremediavelmente “presos” a essa resposta. A cultura

é capaz de substituir até os mais arraigados instintos biológi-

cos. Espero que o reconhecimento de por que nos voltamos uns

contra os outros em tempos de vacas magras nos permita supe-

rar nossos impulsos malévolos e seguir uma de nossas mais

importantes diretivas culturais: “Nunca mais”.

PAR A CONHECER MAIS

Curtis W. Marean em Journal of Human Evolution, Vol. 77, págs. 17–40; dezembro de 2014.

Kyle S. Brown et al., em Nature, Vol. 491, págs. 590–593; 22 de novembro de 2012.

DE NOSSOS ARQUIVOS

Curtis Marean; edição nº 100, setembro de 2010.

Page 35: Scientific American Brasil - Setembro 2015

www.sciam.com.br 35

PROCURANDO JUPITERESDuas equipes rivais de astrônomos competem para obter imagens inéditas de planetas gigantes ao redor de outras estrelas. Suas descobertas poderão mudar o futuro da busca por planetas

Lee Billings

CIÊNCIA ESPACIAL

LENTE GIGANTE: Montado no telescópio Gemini Sul, no alto dos Andes chilenos, o sensor GPI busca enormes exo-planetas gasosos.

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36 Scientifi c American Brasil | Setembro 2015

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Nos pontos mais altos dos Andes, no Chile central, o céu noturno é tão escuro que é difícil de ver as constelações, engolidas por enxames de estrelas mais fracas. Essa visão familiar, mas ainda alienígena, pode ser desconcertante, mas é algo diferente que perturba Bruce Macintosh quando ele olha para o alto em uma noite de maio de 2014. Mesmo aqui, a 2.700 metros acima do nível do mar, ele ainda está olhando através de um oceano de ar, e o vento está aumentando. As estrelas no céu estão cintilando muito para seus propósitos.

Macintosh está aqui para procurar por outras Terras – ou,

mais precisamente, por outros jupiteres, que alguns cientistas

pensam serem necessários para que planetas rochosos e habi-

táveis como a Terra possam existir. Ele não está interessado em

encontrar planetas do mesmo modo que a maioria dos astrôno-

mos faz, ou seja, observando durante meses, ou mesmo anos,

para que mudanças sutis no movimento ou brilho de uma es-

trela gradualmente revelem a presença de um mundo invisível.

Ele procura gratifi cação instantânea: pretende tirar fotos reais

de planetas distantes, para vê-los como pontos de luz circulan-

do em torno de suas estrelas distantes, olhar em seus rostos ga-

sosos através dos vários anos-luz de distância. Macintosh, um

astrônomo da Universidade Stanford, chama isso de “imagea-

mento direto”.

Além do vento, há outra razão para Macintosh se preocupar:

a 600 quilômetros ao norte, em outro árido pico chileno, o as-

trônomo Jean-Luc Beuzit tenta fazer exatamente a mesma coi-

sa. Beuzit, astrônomo do Instituto de Planetologia e Astrofísica

de Grenoble, na França, é seu amigo e também seu rival. Destino

e fi nanciamento trouxeram esses dois homens para as monta-

nhas ao mesmo tempo para vasculhar os céus por planetas, para

saber se corpos celestes como a Terra são tão comuns como su-

jeira ou cosmicamente raros.

A ferramenta escolhida por Macintosh para esta corrida

astronômica é um complexo aparato óptico e de sensores do

tamanho de um carro, de muitos milhões de dólares, chamado

Imageador de Planetas Gemini (GPI, na sigla em inglês). Esse

aparato está montado no imenso espelho de oito metros do te-

Ele é autor de Five billion years of solitude: The search flife among the stars (Current/Penguin Group, 2013).

E M S Í N T E S E

milhares de plane-tas orbitando outras estrelas, mas fotografa-ram apenas poucos. Eles descobriram e estu-daram todo o resto basicamente por meio demedições indiretas.

permite aprender so-bre a sua composição, clima e condiçõespara vida. Mas é difícil fazê-lo, pois eles sãomenores que suas estrelas-mães e ofuscadospela luz muito mais brilhante delas.

está alémdo alcance dos telescópios atuais. Uma novageração de instrumentos está agora captu-rando imagens de mundos maiores, maisbrilhantes, que se assemelham a Júpiter.

nos ajudarão aaprender como os planetas gigantes se for-mam e moldam seus arredores, preparandoo caminho para que futuras instalações tiremfotos de Terras alienígenas.

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www.sciam.com.br 37

lescópio Gemini Sul, um disco de vidro recoberto com prata

altamente polido cuja área, aproximadamente 52 metros qua-

drados, é comparável a um oitavo da área de uma quadra de

basquete oficial. Macintosh e outros astrônomos pronunciam

o acrônimo do instrumento “gee pie!” como se estivessem cla-

mando por tortas (em inglês, pie é um tipo de torta, e gee é

uma exclamação comum, como o nosso “uau!”). A resposta de

Beuzit ao GPI é ainda maior: uma coleção de aparelhos que,

juntos, são quase do tamanho de uma minivan chamada

SPHERE, para o instrumento Spectro-Polarimetric High-con-

trast Exoplanet Research. O SPHERE está montado em outro

telescópio de oito metros, no ESO-VLT (European Southern

Observatory Very Large Telescope array). Ambos os projetos

estiveram em desenvolvimento por mais de uma década, mas

estrearam com diferença de meses um do outro. De seus re-

motos poleiros nas montanhas, eles examinam basicamente

as mesmas estrelas, cada um procurando ser o primeiro a re-

velar fotos bombásticas de jupiteres além do Sistema Solar.

Dos mais de 5.000 mundos descobertos orbitando outras

estrelas ao longo das últimas duas décadas, quase nenhum foi

realmente imageado diretamente. Tirar fotografias é difícil,

porque até mesmo os maiores (e menos habitáveis) planetas

ainda têm brilho muito fraco e aparecem muito perto de seus

sóis muito mais brilhantes, como os vemos de tão longe. Tire

uma foto de um planeta – mesmo que seja uma pequena man-

cha de pixels – e você aprenderá muito sobre a composição

desse mundo, sobre o clima e as possibilidades para a vida. A

busca do GPI e do SPHERE por mundos semelhantes a Júpi-

ter é o estado da arte da tecnologia; nós ainda não consegui-

mos construir telescópios grandes e sofisticados o suficiente

para destilar a luz tênue de um planeta como a Terra do bri-

lho irresistível de sua estrela parental. Mas quando, e se as

construirmos, as instalações para esses estupendos telescó-

pios quase certamente utilizarão instrumentos desenvolvidos

a partir destes dois projetos.

Em astronomia, como na vida cotidiana, é ver para crer. Em-

bora imageamento direto seja extremamente difícil, pode tam-

bém ser muito mais rápido do que as técnicas de detecção de

planetas dominantes de hoje, potencialmente entregando des-

cobertas por fotos que levam horas ou dias para serem obtidas,

em vez de meses ou anos de meticulosas análises sobre conjun-

tos de dados estelares arcanos. É por isso que, nesta corrida

para tirar as primeiras fotos dos Jupiteres de além do Sistema

Solar, não é exagero dizer que cada minuto conta.

ALTO E SECO: SPHERE, outro imageador planetário, busca jupiteres em outros sistemas estelares com o Very Large Telescope no árido deserto do Atacama, no Chile.

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Ilustração de Ron Miller

O nascimento de um gigante gasoso: dois cenáriosOs planetas se formam a partir dos mesmos discos de gás e poeira que dão à luz sóis. Um processo chamado de acreção nuclearpode fazer planetas gigantes “de baixo para cima”, conforme objetos minúsculos se aglutinam para construir gradualmente ob-jetos maiores, montando grandes núcleos que varrem uma espessa atmosfera. Mas existe um caminho“de cima para baixo”mais rápido chamado instabilidade de disco em que aglomerados de gás colapsam diretamente em planetoides. Em média, gi-gantes jovens formados por acreção nuclear devem ser mais frios do que aqueles feitos pela instabilidade de disco. Ao me-dir as temperaturas de jovens planetas gigantes por meio de imagens no infravermelho, o GPI e o SPHERE pode-riam revelar se a maioria dos gigantes são formados “de baixo para cima”ou“de cima para baixo”.

AGLOMERAÇÃO CENTRAL

INSTABILIDADE DE DISCO

C O N S T R U I N D O J U P I T E R E S

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www.sciam.com.br 39

A TARTARUGA E A LEBRE

O tempo pesa sobre Macintosh enquanto ele trabalha até muito

tarde na sala de controle do Gemini Sul naquela noite em maio de

2014. Ele tem um rosto jovial, com um crescente de cabelo e olhos

castanhos vivos que espiam por trás dos óculos de lentes grossas.

Ele estava funcionando a Diet Coke e adrenalina, e ainda sob o efei-

to do jet-lag causado por uma série de voos em conexão da Califór-

nia ao Chile. Um de seus sapatos está desamarrado, e um leve chei-

ro de fumaça paira no ar, advindo de um jantar esquecido de pizza

congelada, agora carbonizada em uma torradeira nas proximida-

des. Conforme ele olha para as várias telas de computador que mo-

nitoram os sinais vitais do GPI, parece que só o seu corpo está na

sala – sua mente está em outro lugar, na cúpula adjacente do teles-

cópio de oito metros, seguindo feixes de luz que saltam através das

entranhas de seus instrumentos.

Antes que o GPI comece a encontrar novos planetas, ele deve

passar pelo “comissionamento”, uma sequência es-

tendida de testes e calibrações que começaram no

final de 2013 e está nos estágios finais nestes dias

(maio de 2014). O trabalho é tedioso e sem glamour

– ninguém nunca ganhou um prêmio por certificar

que um instrumento funciona corretamente. Em

uma corrida medida em minutos, o GPI tem uns

seis meses de vantagem sobre o SPHERE que, nes-

te momento, apenas começou o processo de comis-

sionamento. Isso é um pequeno conforto para Ma-

cintosh, porque o SPHERE tem instrumentos mais

potentes e mais tempo garantido de telescópio que

o GPI, o que deve permitir ao SPHERE observar

um maior número de estrelas em um maior campo

de visão com maior resolução espectral e em um

maior intervalo de comprimento de onda. Em ou-

tras palavras, mesmo que o GPI saia na frente,

como a lebre na famosa fábula de Esopo, o SPHE-

RE ainda poderia vir por trás, como a tartaruga, e ser o primeiro a

encontrar os planetas procurados.

O cintilar das estrelas vem de turbulência atmosférica, o que

atrasou um pouco a equipe do GPI. Esperando que o vento es-

morecesse, Macintosh me contava histórias de anos atrás, quan-

do ele, Beuzit e outros membros do alto escalão do GPI e do

SPHERE festejavam em conferências de astronomia ao redor do

mundo, quando o conflito entre as equipes ainda estava longe

de suas mentes. Esse tempo agora é um passado distante. “Nós

ficávamos juntos, bebíamos muito e trocávamos muitas histó-

rias”, Macintosh diz. “Mesmo agora, eles não são realmente o

inimigo – as nuvens são o inimigo. E o vento também.”

Depois de meia hora, os ventos diminuíram. “O.k., vamos

olhar para HD 95086”, diz Macintosh, girando em sua cadei-

ra para abordar aquela dúzia de membros da equipe que es-

tavam na sala. Eles logo entraram em ação, digitando co-

mandos nos computadores que controlam o telescópio na

cúpula ao lado. Dentro de instantes o telescópio apontou

para o alvo, uma estrela-anã branco-azulada a 300 anos-luz

da Terra, na constelação de Carina. HD 95086 é uma estrela

jovem em termos astronômicos, com somente cerca de 17 mi-

lhões de anos, e carrega um planeta gigante cinco vezes mais

massivo do que Júpiter, orbitando a aproximadamente duas

vezes a distância que Plutão orbita o Sol. Aparatos de image-

amento direto menos capazes já viram esse planeta antes – a

equipe calibrará o GPI comparando suas novas imagens com

os resultados anteriores.

Como todos os mundos que o GPI procura, esse planeta em

particular mal se resfriou desde sua formação. Ele brilha inten-

samente no infravermelho. Em termos de brilho, a maioria dos

planetas são milhões ou bilhões de vezes mais fracos do que

suas estrelas, flocos de poeira perto de bolas de fogo termonu-

cleares. Jupiteres jovens são diferentes. Eles são mais como

brasas incandescentes se resfriando longe de uma fogueira, e é

precisamente por isso que tanto o GPI quanto o SPHERE têm

esperanças de vê-los e aprender exatamente como eles se for-

maram e evoluíram.

ORIGEM SECRETA DE JÚPITER

Entre os especialistas, é um segredo aberto embaraçoso que

ninguém realmente sabe como o maior objeto orbitando nosso

Sol se formou. Mas é exatamente isso que os especialistas que-

rem desesperadamente descobrir, já que Júpiter, e outros plane-

tas gigantes, são os arquitetos dos sistemas planetários, mol-

dando tudo o que os rodeia.

A maioria dos planetas gigantes conhecidos em torno de

outras estrelas não são, realmente, como Júpiter. Muitos exis-

tem em órbitas escaldantes com meia-semana de duração dife-

rente de qualquer coisa em nosso próprio Sistema Solar. A teo-

ria prevalecente é que esses mundos infernais nasceram muito

mais longe, espiralando em direção ao centro do sistema pla-

netário para abraçar seus sóis, provavelmente por causa de in-

terações gravitacionais com outros planetas ou fluxos de gás.

Essa migração seria uma má notícia para a habitabilidade – ao

longo do caminho, o campo gravitacional de um planeta gigan-

te espiralando para dentro do sistema provavelmente lançaria

quaisquer planetas pequenos e rochosos para fora, na escuri-

dão interestelar, ou para dentro, no fogo de sua estrela. Esses

mundos gigantes estão muito próximos de suas estrelas para

A luz dos planetas é muito mais fraca do que a de suas estrelas.

de bolas de fogo nucleares. Jovens Jupiteres são diferentes. Eles são mais como brasas incandescentes se resfriando longe da fogueira, e é por isso que o GPI e o SPHERE têm expectativa de observá-los.

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40 Scientific American Brasil | Setembro 2015

serem fotografados diretamente com a tecnologia atual.

Assim como seus primos exoplanetários muito mais quentes,

Júpiter provavelmente também migrou no início de sua vida,

mas por razões pouco claras, sua migração foi apenas temporária

e não trouxe o planeta gigante para muito perto do Sol. Em vez

disso, talvez tenha se aventurado até perto da atual órbita de

Marte, antes de migrar de volta para o sistema solar exterior,

onde permanece desde então. E, embora o movimento de um

planeta gigante possa sabotar a habitabilidade de um sistema

planetário, no caso de Júpiter, ele pare-

ce ter feito do Sistema Solar um lugar

mais hospitaleiro. Pelo menos, pensa-se

que as peregrinações de Júpiter tenham

lançado cometas e asteroides ricos em

água de encontro com nosso já formado

planeta, formando os oceanos vivifican-

tes da Terra. No máximo, o mergulho de

Júpiter no interior do Sistema Solar po-

deria até mesmo ter “limpado” outros

planetas preexistentes, permitindo que

a Terra se formasse, em primeiro lugar.

Mesmo assim, o que Júpiter dá, ele

pode tirar. Milhões de anos a partir de

agora, Júpiter pode surrar nosso plane-

ta novamente com mais asteroides gi-

gante ou cometas, gerando impactos

cataclísmicos que ferveriam nossos

oceanos e vaporizariam nossa biosfera.

Todos esses detalhes, até certo pon-

to, podem ser atribuídos à natureza e ao momento da formação

misteriosa de Júpiter. Uma coisa é certa: pouco mais de quatro

bilhões e meio de anos atrás, uma nuvem fria de gás e poeira co-

lapsou para formar o Sol. Os remanescentes da nuvem que não

caíram em nossa estrela nascente formaram um disco, a partir

do qual os planetas foram formados. Mundos rochosos, sendo re-

lativamente pequenos, são fáceis de montar em um processo “de

baixo para cima” (bottom-up, em inglês) chamado acreção nu-

clear (core accretion, em inglês), onde rochas em colisão gradual-

mente se juntaram ao longo de 100 milhões de anos. A maioria

dos pesquisadores suspeita que Júpiter tenha se formado dessa

maneira. Mas, para isso, ele teria de ter se formado muito mais

rápido, construindo caroços do tamanho da Terra em talvez 10

milhões anos, tempo suficiente para varrer grandes atmosferas

antes que a matéria-prima gasosa fosse varrida para fora pela luz

intensa de nossa estrela jovem.

Existe uma outra possibilidade. Planetas gigantes poderiam

também se formar como as estrelas fazem, em um processo “de

cima para baixo” (top-down, em inglês) chamado instabilidade

de disco. Nesse cenário, algo como Júpiter atingiria a “planetari-

dade” através do colapso direto e rápido de uma nuvem fria e

densa de gás e poeira na região externa de um disco circum-es-

telar. É quase impossível distinguir entre esses dois cenários

olhando para Júpiter hoje, porque essencialmente todas as evi-

dências foram, literalmente, se enterrando abaixo da densa e es-

pessa atmosfera do planeta gigante.

Felizmente, existe outra maneira de testar se planetas gigan-

tes se formam pelo processo bottom-up ou top-down: você pode

tirar suas temperaturas. A formação top-down diretamente do

colapso de uma nuvem de gás aconteceria tão rapidamente que

uma enorme quantidade de calor ficaria presa dentro do planeta.

A formação bottom-up produziria planetas gigantes que, embora

ainda inicialmente quentes, seriam relativamente mais frios. “À

medida que mais e mais gás cai sobre um núcleo rochoso, esse

excesso de gás é obstruído pelo gás que se acumula sobre o nú-

cleo, ou seja, pela atmosfera em forma-

ção em torno do núcleo”, diz Mark Mar-

ley, colaborador do GPI, com quem eu

conversei mais tarde, um teórico de for-

mação planetária no Ames Research

Center, da Nasa, que também ajudou a

modelar o processo. “Um choque se de-

senvolve conforme o gás é desacelerado,

e a maior parte da energia desse gás que

vai se acumulando é irradiada para fora,

que resfria rapidamente o planeta se for-

mando. Então, quando você para de des-

pejar gás, o planeta já é muito mais frio

do que teria sido se tivesse se formado

de um colapso direto.”

Assim, a temperatura de um planeta

gigante é, efetivamente, uma memória

de seu nascimento. Quanto mais velho o

planeta fica, mais ele esfria, e quanto

frio, mais sua memória desaparece. Com

quatro bilhões e meio de anos, Júpiter há muito tempo já se es-

queceu de como se formou. Mas planetas gigantes mais jovens

do que algumas centenas de milhões de anos – exatamente os

planetas que o GPI e o SPHERE estão tentando imagear no infra-

vermelho – devem ter ainda suas memórias térmicas intactas.

Vasculhando centenas de estrelas brilhantes e jovens nas proxi-

midades, ambos os projetos podem sondar as temperaturas e

histórias de dezenas de planetas gigantes, desvendando o segre-

do de sua formação e lançando luz sobre como sistemas habitá-

veis como o nosso próprio se formaram.

IMAGEANDO OUTRO JÚPITER

Conforme a equipe do GPI se prepara para observar HD

95086, um círculo monocromático se materializa em uma das

telas de Macintosh. Parece conter um fluido fortemente pixeli-

zado, como um close-up digitalizado de um rio correndo ou uma

tela de televisão não sintonizada inundada com estática.

“Você está olhando para o vento”, diz Macintosh. “Essa é a luz

das estrelas brilhando através da turbulência atmosférica e

caindo em um detector que realiza nossa óptica adaptativa.” Óp-

tica adaptativa é o conjunto de espelhos deformáveis controla-

dos por computador que mudam suas formas centenas ou mes-

mo milhares de vezes por segundo para combater as distorções

atmosféricas, permitindo que os astrônomos capturem imagens

de objetos celestes que rivalizam com aquelas obtidas com teles-

cópios espaciais. Com algumas combinações de teclas e coman-

OLHO QUE NÃO PISCA: a luz da estrela HR 4796A foi filtrada dessa ima-gem do SPHERE, revelando um fraco anel de poeira que talvez tenha sido esculpido por um planeta invisível.

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www.sciam.com.br 41

dos verbais para a sua equipe, Macintosh aciona a óptica adap-

tativa do GPI. Montados por baixo do telescópio de oito metros,

os dois espelhos deformáveis do GPI – um “alto-falante” para

frequências graves de vidro padrão e um espelho menor que é

um “alto-falante” para frequências agudas customizado embala-

do com mais de 4.000 atuadores – estão agora se ondulando e

deformando em sincronia, combinando cada pacote de man-

chas de luz transitória e fluxos de ar sobrepostos com um corres-

pondente aumento ou diminuição nas suas superfícies, escul-

pindo os raios de luz das estrelas de volta quase à perfeição. O

resultado parece mágico: o círculo turbulento na tela de Macin-

tosh torna-se suave e plácido, como se a atmosfera de repente

desaparecesse. HD 95086 é agora uma figura brilhante na tela.

Não há nenhum sinal de planeta.

Para revelar o planeta conhecido da estrela, Macintosh envol-

ve outro dispositivo, um coronógrafo, que retira a maior parte da

luz das estrelas: a luz encontra uma série de más-

caras que filtram 99% dos fótons. Os que passam

são focalizados em um espelho com um orifício

central, polido em escala atômica. “A luz da estre-

la cai no buraco”, explica Macintosh, enquanto a

luz de um planeta se reflete no espelho e vai mais

fundo no instrumento, atingindo um espectrógra-

fo super-resfriado que divide a luz em seus com-

primentos de onda constituintes (ou cores).

A imagem na tela é, agora, um halo irregular

de luz branca circundando uma profunda sombra

central onde HD 95086 deveria estar. As protube-

râncias – chamadas salpicos – são formadas pela

luz indesejada da estrela que vaza através do coro-

nógrafo. Os salpicos podem obscurecer um plane-

ta nas imagens do GPI ou mesmo se parecer com um. Para distin-

guir entre salpicos e planetas, a equipe leva uma sequência de ex-

posições em vários comprimentos de onda infravermelhos. “A

separação entre uma estrela e um salpico é proporcional ao com-

primento de onda da luz em uma imagem”, diz James Graham,

cientista do projeto do GPI, e professor da Universidade da Cali-

fórnia, Berkeley, conforme olhamos para a tela. Em comprimen-

tos de onda mais curtos, mais azuis, um salpico aparece mais

perto da estrela; em comprimentos de onda mais longos, mais

vermelhos, esse mesmo salpico aparece mais longe, Graham ex-

plica. “Então, quando você vê toda a sequência [de comprimento

de onda], as manchas se moverão. Um planeta não.”

Macintosh rola para trás e para frente através das exposições,

empilhados como quadros de um filme, e o halo parece respirar,

se ampliando e contraindo conforme todas as protuberâncias se

movem em uníssono. Todos os nódulos, exceto um: um ponto so-

litário, fixo, de luz planetária pescado de um mar de manchas es-

telares. Em menos de meia hora, passamos de ver apenas o vento

para um mundo distante em torno de outra estrela. Uma análise

mais aprofundada do espectro do planeta advindo dos dados do

GPI sugere que o planeta é extremamente vermelho, talvez resul-

tado de um excessivo espalhamento da luz pela poeira em sua at-

mosfera superior. É um detalhe pequeno, mas emocionante,

aprender sobre um mundo que está a 300 anos-luz de distância.

Nem todos os alvos são tão difíceis de ver; estrelas mais brilhan-

tes e próximas podem fornecer alguns dos seus segredos muito mais

prontamente. Mais cedo, a equipe do GPI precisou de apenas uma

única exposição de 60 segundos para capturar uma imagem de Beta

Pictoris b, um planeta gigante quente e jovem a 63 anos-luz da Terra

que orbita a sua estrela em quase duas vezes a distância Júpiter-Sol.

A facilidade de ver esse planeta sugere que o imageamento direto, fi-

nalmente, está se tornando rotina: um gerador de imagens diretas

ligeiramente mais velho no Gemini Sul tinha, anteriormente, obtido

uma imagem semelhante de Beta Pictoris b, embora exigisse mais

de uma hora de observação e extenso pós-processamento. As novas

imagens permitiram que a equipe do GPI estimasse a órbita de Beta

Pictoris b com mais precisão do que nunca, revelando que em 2017

ele transitará em frente da face de sua estrela, como vista da Terra –

um raro alinhamento que seria um benefício para os cientistas que

procuram aprender mais sobre o gigante distante.

Antes do nascer do sol, a equipe do GPI imageou estrelas bi-

nárias, fracos discos de detritos, e até mesmo a lua de Saturno,

Titã, penetrando sua espessa e nebulosa atmosfera cheia de hi-

drocarbonetos até a superfície manchada. Perto do amanhecer,

com o brilho do Sol a se aproximar no horizonte, Macintosh se

inclinou para trás na cadeira e suspirou, exausto mas satisfeito.

Na noite final do prazo de seis dias, a equipe do GPI encontrou

seu primeiro planeta, que orbita uma estrela de 20 milhões de

anos, ao dobro da distância Júpiter-Sol. Macintosh não é o primei-

ro a notar. Robert de Rosa, pós-doutorando na Universidade da

Califórnia em Berkeley, espia um ponto cintilante ao olhar sobre o

ombro de outro colega em algumas imagens do GPI que passa-

riam despercebidas. Observações seguintes mostrariam duas a

três vezes a massa de Júpiter, com uma atmosfera com metano

quente o suficiente para derreter chumbo. Está a 100 anos-luz da

Terra, mas é a coisa mais parecida com Júpiter já vista.

“Este é o primeiro planeta que alguém já descobriu que se

parece com uma versão quente de Júpiter, em vez de uma estre-

la muito fria”, diz Macintosh. “Esse planeta pode ser jovem o su-

ficiente para ainda lembrar de seu processo de formação. Com

observações suficientes, poderíamos determinar melhor sua

massa e idade e descobrir se se formou pelo processo bottom-up,

como pensamos que Júpiter se formou, ou pelo processo top-

-down, como uma estrela.”

“Este é o primeiro planeta que alguém já descobriu que se parece com uma versão quente de Júpiter”, diz o astrônomo Bruce Macintosh. “Este planeta pode ser

processo de formação.”

Page 42: Scientific American Brasil - Setembro 2015

42 Scientific American Brasil | Setembro 2015

Enquanto conversamos, Macintosh me pede sigilo até que a

equipe do GPI possa escrever e submeter um artigo. “O SPHERE

poderia ver isso muito facilmente também”, diz ele. “Não sabe-

mos se eles já olharam para essa estrela. Estamos todos nervo-

sos em sermos superados.”

PRIMEIRA LUZ PARA O FUTURO

Pouco depois do amanhecer, deixo o Gemini Sul, pego um

avião para o norte, alugo um carro e viajo mais de 600 quilôme-

tros em uma estrada solitária através do alto e seco Deserto do

Atacama, Chile, para chegar ao SPHERE antes que a noite caia.

Chego ao observatório do SPHERE, o Very Large Telescope, logo

após o pôr do sol.

Em uma sala de controle apertada, Beuzit, o líder do projeto,

está manejando suas tropas conforme o comissionamento come-

ça. Os astrônomos estão debruçados sobre telas de computador,

conversando calmamente em francês, alemão e inglês, tentando

ignorar as câmeras e microfones da equipe de filmagem do docu-

mentário em visitação. Beuzit, com o seu cabelo escuro despen-

teado e barba, parece um pouco com o falecido diretor de cinema

Stanley Kubrick. Ele vai de estação em estação, bebericando café

expresso, parando aqui e ali para ouvir e aconselhar. Uma recen-

temente esvaziada garrafa de champanhe Laurent-Perrier está

em uma estante próxima, “SPHERE 1st Light” está rabiscado

com marcador preto em seu rótulo.

O desempenho do SPHERE foi admirável durante o comis-

sionamento, produzindo belíssimas fotos de diversos alvos ce-

lestes, incluindo um fraco anel de poeira em torno de HR 4796A,

uma estrela de oito milhões de anos a 237 anos-luz da Terra, na

constelação Centaurus (ver ilustração na página 40). Mais tar-

de, quando eu olhei para o anel com a estrela obturada em seu

centro, eu me senti como se estivesse sendo observado – a ima-

gem se parece com um enorme olho, olhando através das pro-

fundezas do espaço. Mas, apesar dessas fotos lindas na noite de

minha visita, o SPHERE não está completamente pronto para

descobrir novos planetas, Beuzit me diz. Não está tudo bem com

a óptica adaptativa do sistema: alguns dos atuadores do espelho

deformável de € 1 milhão e 1.377 elementos estão falhando, e

ninguém na equipe sabe o porquê. A solução definitiva, Beuzit

diz, pode ser substituir todo o espelho por um novo que use uma

tecnologia diferente para os atuadores. Mesmo assim, ele está

otimista que tanto o SPHERE quanto o GPI vão atender e supe-

rar suas metas. Nesse meio tempo, o comissionamento deveria

continuar – o comissionamento foi concluído no início deste

ano, gerando seu próprio primeiro lote de observações científi-

cas iniciais, produzindo imagens de vários sistemas planetários

previamente fotografados.

Quando eu perguntei a ele sobre a rivalidade do SPHERE

com o GPI, a primeira resposta de Beuzit foi apenas um sorriso e

um gole de seu café. Depois de um momento, o astrônomo fran-

cês falou com cuidado.

“Uma vez que ambos começarem a descobrir novos planetas,

ninguém se lembrará de quem foi o primeiro”, diz Beuzit. “Eu

não estou dizendo que não vamos competir e lutar, nós e os

americanos. Mas Bruce Macintosh e eu nos conhecemos há 15

anos, e nós dois sabemos como isso é difícil. Nós celebramos

nossos sucessos e compartilhamos nossas dificuldades para me-

lhorar nossos sistemas, para preparar o caminho para a próxi-

ma geração de observatórios e imageadores.”

“Estamos entrando em uma nova era com todas essas facili-

dades funcionando quase ao mesmo tempo”, diz Dimitri Mawet,

professor do California Institute of Technology e, na época, um

dos cientistas principais da instrumentação do SPHERE. “Nós

vamos descobrir muitas coisas maravilhosas, mas também esta-

mos empurrando significativamente a tecnologia da óptica

adaptativa para a frente. Isso será fundamental para a próxima

geração de telescópios, o que exigirá esse tipo de controle ape-

nas para manter seus enormes espelhos alinhados.”

Um desses novos telescópios está sendo planejado a apenas 20

km a nordeste do SPHERE, no pico de 3.000 metros de Cerro Ar-

mazones. Pouco depois de minha visita, explosões dinamitaram o

topo do pico, abrindo terreno para a construção do European Ex-

tremely Large Telescope, um dos três observatórios gigantescos

previstos para estrear em cerca de uma década. Emparelhado com

o poder de captação de luz sem precedentes do gigantesco espelho

de 30 ou 40 metros desses observatórios gigantes, um sistema se-

melhante ao SPHERE ou ao GPI seria capaz de imagear não só ju-

piteres autoluminosos, mas também planetas potencialmente ha-

bitáveis 1.000 vezes mais tênues que orbitam estrelas vizinhas

mais frias próximas do Sol. Uma missão de imageamento direto

dedicada no espaço poderia então sondá-los ainda mais, buscando

sinais de vida. Desde que mundos estejam ainda lá para serem vis-

tos. A perspectiva de obter essas imagens, vislumbrando Terras

alienígenas, é o que motiva muitas das pessoas por trás de projetos

como o GPI e o SPHERE.

Macintosh disse isso muitas vezes durante as nossas conversas

no Gemini Sul: “Eu vejo tudo o que estamos fazendo agora como

passos ao longo da estrada em direção a uma foto de outra Terra.

Algum dia vamos ter essa foto. Se nós finalmente obtivermos re-

sultados sobre aquela fração dos pequenos planetas rochosos que

possuem coisas realmente relevantes – como os que têm oceanos,

oxigênio atmosférico, e assim por diante – e esse número acabar

por ser muito pequeno, bem, isso é provavelmente muito impor-

tante. Isso pode não fazer nenhuma diferença prática para a pro-

gressão da nossa civilização por um tempo muito longo, mas, filo-

soficamente, ela será capaz de dizer que ‘o nosso [planeta] é o úni-

co lugar como esse dentro de 1.000 anos-luz’, e talvez isso nos leve

a tentar com um pouco mais de afinco não estragar tudo”.

PAR A CONHECER MAIS

Bruno Leibundgut et al. em Messenger, no 159, págs. 2 a 5, março de 2015.

Bruce Macintosh et al. em Proceedings of the National Academy of Sciences USA, vol. 111, no 35, págs. 12.661 a 12.666, 2 de setembro de 2014.

Debra Fischer et al. em Protostars and Planets VI. University of Arizona Press, 2014.

DOS NOSSOS ARQUIVOS

J. Roger P. Angel e Neville J. Woolf, abril de 1996.Michael D. Lemonick, agosto de 2013.

Page 43: Scientific American Brasil - Setembro 2015

www.sciam.com.br 43

A PERDA AUDITIVA

Britadeiras, shows e outras fontes de ruídos podem provocar danos irreparáveis aos seus ouvidos de maneiras inesperadas

M. Charles Liberman

N EU RO C I Ê N C I A

ÃS DE FUTEBOL AMERICANO DO SEATTLE SEAHAWKS

e do Kansas City Chiefs rotineiramente com-

petem em jogos disputados “em casa” para

estabelecer o recorde de estádio mais ruidoso

do mundo no Livro Guinness dos Recordes.

No dia 1o de outubro de 2014, os torcedores

do Chiefs atingiram o mais recente pico: 142,2

decibéis (dB). Esse nível equivale ao insuportável rugido de um

motor a jato acelerado a 30,5 metros de distância, um típico exem-

plo citado por especialistas para um barulho mais que sufi ciente-

mente alto para causar danos auditivos. Após o jogo, os fãs esta-

vam extáticos. Eles “curtiram” a experiência, salientando o

zumbido em seus ouvidos ou a sensação de que seus tímpanos

estavam prestes a explodir. Mas o que acontecia dentro de seus

ouvidos estava longe de ser maravilhoso.

é professor de otologia e laringologia na Escola de Medicina de Harvard e diretor dos Laboratórios Eaton-Peabody no Hospital de Olhos e Ouvidos de Massachusetts. Ele se especializa em estudar os caminhos entre a parte interna do ouvido e o cérebro.

BRIA

N S

TAUF

FER

Page 44: Scientific American Brasil - Setembro 2015

44 Scientific American Brasil | Setembro 2015

Um teste de audição, se aplicado antes e

imediatamente após o jogo, poderia ter

acusado uma acentuada deterioração. O

som mais sutil que um fã poderia ter escu-

tado antes do apito inicial, digamos pala-

vras sussurradas, talvez não fosse mais de-

tectável até o meio tempo. Até o apito final,

os limiares de audição poderiam ter au-

mentado em até 20 a 30 dB. À medida que

o zumbido nos ouvidos dos fãs diminuiu ao

longo de alguns dias, o resultado do teste

de audição, chamado audiograma, pode

muito bem ter voltado à linha de base, ou

basal, enquanto a capacidade de escutar

sons fracos retornava.

Durante muito tempo cientistas julga-

ram que assim que limites auditivos volta-

vam ao normal, o ouvido também deveria

fazer o mesmo. Recentemente, porém,

meus colegas e eu demonstramos que essa

suposição não é verdadeira. Exposições

que levam a um aumento apenas temporá-

rio de limiares podem, sim, causar dano

imediato e irreversível a fibras do nervo au-

ditivo, que transmite informações sonoras

para o cérebro.

Esse dano pode não afetar a detecção de

tons, como mostra o audiograma, mas ele

pode dificultar a capacidade de processar

sinais mais complexos. Essa condição re-

cém-identificada é chamada perda auditi-

va “oculta” porque um audiograma normal

pode esconder o dano neural e a deficiên-

cia auditiva associada a ele.

À medida que uma pessoa continua a

abusar de seus ouvidos, o estresse sobre

as fibras nervosas pode aumentar. De

fato, essa perda de integridade pode con-

tribuir para a deterioração gradual da ca-

pacidade de pessoas de meia-idade e ido-

sos discriminarem as sutilezas da fala.

No entanto, a perda auditiva oculta não

é, de forma alguma, restrita a adultos

mais velhos. A mais recente pesquisa su-

gere que ela está ocorrendo em idades

cada vez mais tenras na sociedade indus-

trial devido à maior exposição a sons al-

tos; alguns evitáveis, outros não.

MARAVILHA SENSORIAL

A vulnerabilidade do ouvido resulta de

sua impressionante sensibilidade, que lhe

permite funcionar em uma vasta gama de

níveis sonoros. A nossa capacidade de dis-

cernir um som baixo, sutil, em frequên-

cias de cerca de mil oscilações por segun-

do, ou 1.000 hertz (Hz) — em outras pala-

vras, o limite em que podemos perceber

esse som — é definido como zero decibel.

Utilizando essa medida logarítmica, cada

aumento de 20 dB no nível de um som

corresponde a um aumento de 10 vezes na

amplitude das ondas sonoras. A zero dB,

os ossos do ouvido médio, cujas vibrações

estimulam o processo auditivo, se movem

menos que o diâmetro de um átomo de hi-

drogênio. No extremo oposto, como nos

níveis recordes de mais de 140 dB do jogo

do Kansas City Chiefs, que simplesmente

induzem dor, o ouvido é forçado a lidar

com ondas sonoras 10 milhões de vezes

superiores em amplitude.

A audição começa quando o ouvido ex-

terno canaliza ondas sonoras através do

canal auditivo até o tímpano, que vibra e

aciona os ossos do ouvido médio. Em se-

guida, as vibrações resultantes prosse-

guem até a cóclea, o tubo cheio de fluido

do ouvido interno, onde se localizam célu-

las ciliadas que ocupam uma faixa espira-

lada de tecido chamada órgão de Corti, ou

órgão espiral. Essas células recebem seu

nome de saliências semelhantes a pelos

conhecidos como estereocílios, que se pro-

jetam em feixes de uma extremidade das

células. As células ciliadas mais sensíveis

a baixas frequências ficam em uma das ex-

tremidades da espiral coclear, e as mais

sensíveis a altas frequências se localizam

na outra ponta. À medida que ondas sono-

ras flexionam esses “pelos”, as células con-

vertem vibrações em sinais químicos, emi-

tindo uma molécula neurotransmissora,

glutamato, na outra extremidade, onde as

células ciliadas formam sinapses com as

fibras do nervo auditivo.

Na sinapse, o glutamato liberado por

uma célula ciliada atravessa uma estreita

fissura para se ligar a receptores na extre-

midade, ou terminal, de uma fibra nervo-

sa auditiva. Cada terminal se encontra em

uma extremidade de uma célula nervosa

que estende uma longa fibra, um axônio,

até a sua outra extremidade, no tronco ce-

rebral. O glutamato ligado a fibras nervo-

sas dispara um sinal elétrico que percorre

todo o comprimento do nervo auditivo até

o tronco cerebral. De lá, os sinais passam

por uma série de circuitos neurais parale-

los que atravessam várias regiões, do tron-

co cerebral ao mesencéfalo e o tálamo, ter-

minando sua jornada no córtex auditivo.

Em conjunto, esse complexo circuito ana-

lisa e organiza nosso ambiente acústico

em uma série de sons reconhecíveis, seja

uma melodia familiar ou o som estridente

de uma sirene.

Células ciliadas são de dois tipos: exter-

nas e internas. As externas amplificam os

movimentos induzidos por som no ouvido

interno, enquanto as internas traduzem es-

ses movimentos nos sinais químicos que

estimulam o nervo auditivo. As células in-

ternas são as mais diretamente atuantes no

processo que consideramos ser “audição”,

porque 95% das fibras nervosas auditivas

só formam sinapses com células ciliadas

internas. Por que tão poucas fibras conec-

tam as células ciliadas externas ao cérebro

continua sendo um mistério, mas já foi teo-

rizado que as fibras ligadas a células cilia-

das externas talvez sejam a fonte da dor

que todos nós sentimos quando a altura de

uma onda sonora se aproxima de 140 dB.

Historicamente, a perda auditiva tem

sido avaliada principalmente por meio de

audiogramas. Os otologistas, médicos es-

pecializados em ouvidos e audição, sabem

há muito tempo que operários que mol-

dam chapas metálicas em caldeiras por

percussão frequentemente apresentavam

perda permanente de audição para tons

na região de frequência média. Audiogra-

mas registram nossa capacidade de detec-

tar tons a intervalos de oitavas de fre-

E M S Í N T E S E

sustenta que ruí-dos altos provocam som abafado ou zumbidonos ouvidos, mas que eles se recuperam logo.

podem produzir-

tivas que conduzem os sons ao cérebro.

que resulta podepermitir que alguém ouça sons sem dis-cernir o que um orador está dizendo. para esse problema amplamente difundido.

Page 45: Scientific American Brasil - Setembro 2015

www.sciam.com.br 45

quência: por exemplo, 250, 500, 1.000,

2.000, 4.000 e 8.000 Hz. Nos estágios ini-

ciais da perda auditiva induzida por ruí-

do, o audiograma exibe o que é chamado

“doença do caldeireiro”, uma incapacida-

de de detectar sons nas frequências mé-

dias da faixa de audição humana.

Nas décadas de 50 e 60, estudos epide-

miológicos de operários em fábricas baru-

lhentas mostraram uma clara relação entre

o tempo no emprego e um declínio da acui-

dade auditiva. O défi cit inicial de aproxi-

madamente 4.000 Hz tendeu a se espalhar

para outras frequências com o tempo. Mui-

tos trabalhadores mais velhos perderam a

audição completamente acima de 1.000 ou

2.000 Hz. Uma perda sonora tão alta causa

uma defi ciência auditiva grave porque

grande parte das informações na fala se si-

tua na faixa de frequência que se tornou

“surda”, ou deixou de responder.

Na década de 70, estudos humanos

como esses inspiraram o governo dos Es-

tados Unidos a estabelecer diretrizes para

níveis de ruídos a fi m de limitar as exposi-

ções no local de trabalho. Hoje, várias

agências federais regulam esses níveis, in-

clusive o Instituto Nacional de Saúde e Se-

gurança Ocupacional e a Administração

de Saúde e Segurança Ocupacional

(OSHA), mas diversas agências sugerem

limites diferentes. A falta de concordância

precisa refl ete os desafi os na avaliação dos

riscos de danos provocados por ruídos. E

o problema é duplo.

Primeiro, existem enormes diferenças

individuais em suscetibilidade a ruídos: há

o que poderia ser descrito como ouvidos

“duros ou resistentes” e ouvidos “delica-

dos”. Isso signifi ca que os reguladores pre-

cisam decidir que porcentagem da popula-

ção querem proteger e que nível de perda

auditiva é aceitável. O segundo problema é

que os efeitos de ruídos na audição resul-

tam de uma complexa combinação de tem-

po de duração, intensidade e frequência de

sons a que uma pessoa é exposta.

Atualmente, a OSHA determina que os

níveis sonoros não devem exceder 90 dB

para uma jornada de trabalho de oito ho-

ras. O risco de danos provocados por ruí-

dos acima de 90 dB é mais ou menos pro-

porcional à energia total aplicada ao ouvi-

do. Para cada 5 dB adicionais acima do

padrão de oito horas, as diretrizes da

OSHA recomendam uma redução de 50%

do tempo de exposição; em outras pala-

vras, um trabalhador não deve ser exposto

a 95 dB por mais de quatro horas ou a 100

dB por mais de duas horas por dia. Por es-

sas medidas, a exposição a 142 dB ou mais

de fãs de futebol americano que disputam

o recorde Guinness de ruído excederia as

orientações da OSHA em cerca de 15 se-

gundos. É claro que a entidade não regula-

menta os níveis de ruídos para fãs em jogos

de futebol, nem para fazendas dos EUA,

onde adolescentes que dirigem tratores e

colheitadeiras durante o dia todo correm

sério risco de perda auditiva.

Nos últimos 60 anos, otologistas pre-

sumiram que leituras ou interpretações

rotineiras de um audiograma revelam

tudo o que é preciso saber sobre danos

induzidos por ruídos na audição. De fato,

o audiograma mostrará se houve danos

às células ciliadas do ouvido interno, e

estudos das décadas de 40 e 50 revelaram

que essas células estavam entre as mais

vulneráveis do ouvido interno a sobre-ex-

posições acústicas.

Experimentos em animais, alguns con-

duzidos em nosso laboratório, mostraram

que as células ciliadas externas são mais

vulneráveis que as internas, que células ci-

liadas na seção da cóclea, que detecta tons

de alta frequência, são mais vulneráveis

Canal auditivo

Tímpano

Ilustração de Bryan Christie

O estrago pelo som em altos volumesQuando ondas sonoras viajam através do canal auditivo, além do tímpano, elaschegam ao ouvido interno. Ali, no chamado órgão de Corti, vibrações induzi-das por som estimulam as células ciliadas externas (detalhe)por essas células externas, essas vibrações são então detectadas por outrasinternas, também ciliadas, que as traduzem em sinais químicos que serão

há tempos que danos às células ciliadas pro-vocam perda de audição. Mas foi constatado

das por ruídos altos, levando a uma perdaauditiva mesmo quando as células cilia-

das permanecem intactas.

T R AU M A AU D I T I VO

nervo auditivo. Como resultado, as conexões com o ouvido interno são perdidas e a audição é prejudicada

Células ciliadas internas (azul)

Células ciliadas externas (vermelho)

Fibra nervosa auditiva (verde)

Nervo auditivo

Órgão de Corti

Caminho parao cérebro

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46 Scientific American Brasil | Setembro 2015

que as da região de baixa frequência, e

que, uma vez perdidas, ou muito danifica-

das, elas jamais se regeneram. Antes mes-

mo de degenerarem, ruídos altos podem

danificar os feixes de estereocílios sobre

as células, e esse dano também é irreversí-

vel. Quando ocorrem danos ou morte de

células ciliadas, os limiares auditivos são

elevados, o volume do rádio precisa ser

aumentado, ou um colega do outro lado

da mesa tem de erguer a voz.

Um estudo mais incisivo de lesão co-

clear em humanos tem sido dificultado

pelo fato de que as diminutas células cilia-

das não podem ser submetidas a biópsias

com segurança, nem imageadas em uma

pessoa viva com qualquer técnica existen-

te. Danos associados à perda auditiva indu-

zida por ruído em humanos só têm sido es-

tudados em pessoas que doaram seus ouvi-

dos para estudos científicos após amorte.

Em parte, devido a essas limitações, a

pergunta se a perda auditiva é inevitável

no processo de envelhecimento, ou se é

uma consequência da reiterada exposição

ao clamor da vida moderna, continua sen-

do um mistério para cientistas auditivos.

Uma sugestão tentadora veio de um estudo

realizado na década de 60, em que os pes-

quisadores selecionaram grupos que vi-

viam em ambientes excepcionalmente si-

lenciosos, como a tribo dos mabaan no de-

serto sudanês. Os testes de audição em

homensmabaan de 70 a 79 anos foram sig-

nificativamente melhores em comparação

com norte-americanos da mesma idade.

Evidentemente, esses estudos não têm

como detectar outras diferenças entre um

norte-americano médio e um típico maba-

an, como as associadas a uma herança ge-

nética ou à dieta.

DANO PROFUNDO

Investigações recentes conduzidas por

meus colegas emim sobre os efeitos de ruí-

dos na audição acresceram uma dimensão

nova e preocupante à nossa compreensão

dos perigos da sobre-exposição acústica.

Cientistas e médicos sabem há muito tem-

po que parte da deficiência auditiva decor-

rente da exposição a ruídos é reversível e

parte não é. Emoutras palavras, às vezes os

limiares de audição voltam ao normal pou-

cas horas ou dias após uma exposição, ou-

tras vezes a recuperação será parcial, ou in-

Gráfico de Amanda Montañez

Como proteger sua audiçãoEm várias espécies animais diferentes, osdanos neurais no ouvido são irreversíveisapós duas horas de exposição contínua a ruí-dos de 100 a 104 decibéis (dB).Tudo leva acrer que isso vale para humanos.A maioriadas exposições diárias em nossas vidas nãoduram tanto tempo.Ainda assim, é prudenteevitar uma exposição desprotegida a quais-quer sons que ultrapassem 100 dB.

Muitos sons na vida cotidiana nos levama uma zona de perigo. Locais de showsmusicais e boates rotineiramente produzempicos que chegam a 115 dB e níveis médiossuperiores a 105 dB. Sopradores de folhasmovidos a gasolina e máquinas de cortargrama atingem os ouvidos dos usuários aníveis de 95 a 105 dB, assim como serras cir-culares.A frequência dos sons é importante.O ruído mais agudo ou estridente de umalixadeira de cinta é mais perigoso ao mesmonível de decibéis que o rugido menos estre-pitoso de uma motocicleta com escapamen-to aberto ou mal regulado. Britadeiras produ-zem níveis de 120 dB até para transeuntes, eo contínuo som de“disparos de metralhado-ras”, ou impulsos rápidos da broca de metalno concreto produzem muitos dos perigosossons agudos e estridentes.

O que podemos fazer? Atualmente qua-se todos nós temos acesso a medidores sur-preendentemente precisos de níveis sonorosem nossos bolsos ou bolsas. Existem inúme-ros aplicativos gratuitos ou de baixo custopara iOS e Android que fornecem leituras

um instrumento musical ou um motor decarro que“explode”e que se situam em umafaixa de precisão de 1 a 2 dB do mais caro

de sons. O app para iOS que melhor funcio-nou para mim, o Sound Level Meter Pro, cus-ta menos de US$ 20 e me forneceu leiturascom uma precisão de menos de 0,1 dB.

Uma vez que você se conscientiza dequais sons em seu ambiente são potencial-mente perigosos, a boa notícia é que prote-

de usar e portáteis. Se bem inseridos, tam-pões ou plugues de espuma podem atenuaro nível de som em 30 dB nas regiões de fre-quência mais perigosas. Pressione um entreos dedos para espremê-lo no cilindro mais

rapidamente o mais fundo que pode em seucanal auditivo. Isso não é mais difícil ou peri-

goso do que colocar fones de ouvido intra--auriculares (também chamados“earbuds”).Deixe-os expandir lentamente e, em umminuto você está pronto para qualquer ação.

Se estiver assistindo a um show, essestampões de espuma abafam demais o som.Quando você quiser escutar o som, mas sóem um nível mais seguro, use protetores au-ditivos para músicos. Há várias marcas dis-poníveis on-line por US$ 10 a US$ 15 por par.Eles são projetados para fornecer uma ate-nuação sonora de 10 a 20 dB, com igual aba-famento para sons de baixa e alta frequênciapara não afetar o timbre da música.

Mais importante: preste atenção a o queseus ouvidos estão lhe dizendo. Se você dei-xou um evento ou uma atividade sentindoque os sons parecem abafados, como setivesse algodão nos ouvidos, ou se sente umzumbido neles, pode ser que tenha destruídoalgumas sinapses do nervo auditivo. Não sedesespere, mas tente evitar que isso aconte-ça novamente. —M.C.L.

A L G U M A S M E D I DA S S I M P L E S

Chuva

Conversa normal

Aspirador de pó

Tráfego urbano

Motocicleta

Local de show/boate

Cortador de grama a gasolina

Tiros

Motor a jato

Britadeira

Perda auditiva com 8 horas de exposição

Perda auditiva com 2 horas de exposição

50

60

70

80

90

100

110

120

130

140 decibéis

Page 47: Scientific American Brasil - Setembro 2015

www.sciam.com.br 47

completa, e o limiar mais alto persistirá

para sempre. Cientistas auditivos costuma-

vam acreditar que se a sensibilidade limiar

se recuperava, o ouvido também se recupe-

rava completamente. Agora sabemos que

isso não é verdadeiro.

O estalar alto dos fogos de artifício em

4 de julho ou o rugido da multidão em um

jogo de futebol não só afeta as células ci-

liadas, mas também danifi ca as fi bras ner-

vosas auditivas. Na década de 80, nós e

outros mostramos que ruídos excessiva-

mente altos causam danos aos terminais

das fi bras nervosas, onde elas formam si-

napses com células ciliadas. O inchaço e

por fi m a ruptura dos terminais provavel-

mente ocorre em resposta a uma liberação

excessiva da molécula sinalizadora de glu-

tamato pelas células ciliadas superestimu-

ladas. De fato, uma liberta-

ção excessiva de glutamato

em qualquer parte do sis-

tema nervoso é tóxica. A

sabedoria convencional

sustentava que essas fi bras

danifi cadas por ruído ti-

nham de se recuperar ou

regenerar após uma expo-

sição a sons intensos por-

que limiares auditivos po-

dem voltar ao normal em

ouvidos que apresentavam

um inchaço massivo ime-

diatamente após o evento.

Em meu laboratório es-

távamos céticos de que sinapses tão severa-

mente danifi cadas podiam se regenerar no

ouvido adulto. Também sabíamos que da-

nos induzidos por ruído ao nervo não se-

riam refl etidos necessariamente nos testes

padrão porque estudos com animais que

remontavam à década de 50 mostraram

que a perda de fi bras nervosas auditivas,

sem prejuízo de células ciliadas, não afeta o

audiograma até que a perda se torne catas-

trófi ca, ou superior a 80%. Parece que não é

necessário ter uma densa população de fi -

bras nervosas para detectar a presença de

um tom em uma silenciosa cabine de teste.

Por analogia, pegue uma imagem digital de

um grupo de pessoas e a processe repetida-

mente com uma resolução cada vez mais

baixa. À medida que você reduz a densida-

de de pixels, os detalhes da imagem se tor-

nam menos nítidos. Você ainda sabe que

há pessoas na imagem, mas não consegue

mais identifi cá-las. Similarmente, teoriza-

mos que a perda difusa de neurônios não

precisa afetar necessariamente sua capaci-

dade de detectar um som, mas poderia fa-

cilmente degradar a compreensão da fala

em um restaurante barulhento.

Quando começamos a investigar os da-

nos induzidos por ruídos em nervos, na dé-

cada de 80, a única maneira de contar as si-

napses entre fi bras nervosas auditivas e cé-

lulas ciliadas internas era com uma técnica

chamada microscopia eletrônica de corte

em série, um processo altamente laborioso

que requer cerca de um ano de trabalho

para analisar as sinapses neurais em ape-

nas algumas poucas células ciliadas de

uma cóclea.

Vinte e cinco anos depois, minha colega

Sharon G. Kujawa do Hospital de Olhos e

Ouvidos de Massachusetts e eu estávamos

tentando determinar se um episódio de su-

perestímulo acústico nos ouvidos de jovens

camundongos podia acelerar o início da

perda auditiva associada à idade. O nível

de ruído a que expusemos os animais foi

projetado para produzir apenas uma eleva-

ção temporária dos limiares auditivos e,

portanto, nenhum dano permanente às cé-

lulas ciliadas. Como esperado, as cócleas

dos roedores pareciam normais poucos

dias após a exposição. Mas, à medida que

examinamos os animais ao longo de um

período de seis meses a dois anos depois,

observamos uma perda cumulativa de fi -

bras nervosas auditivas, apesar da presen-

ça de células ciliadas intactas.

Felizmente, muito tinha sido aprendi-

do desde a década de 80 sobre como estu-

dar a estrutura molecular dessas sinapses.

Anticorpos capazes de se ligar a estruturas

de cada lado da sinapse entre a célula ci-

liada interna e a fi bra nervosa auditiva e

“etiquetá-las” com diferentes marcadores

fl uorescentes tinham se tornado disponí-

veis. As etiquetas nos permitiram contar

as sinapses facilmente sob um microscó-

pio de luz. E rapidamente acumulamos

dados que mostravam que alguns dias

após a exposição a ruídos, quando o limiar

auditivo havia retornado ao normal, até

50% das sinapses nervosas auditivas ti-

nham sumido e nunca mais se regenera-

ram. A perda do resto dos neurônios – os

corpos celulares e axônios que se projetam

para o tronco cerebral– tornou-se evidente

em poucos meses. Após dois anos, metade

dos neurônios auditivos havia desapareci-

do totalmente. Assim que

as sinapses foram destruí-

das, as fi bras afetadas per-

deram sua utilidade e não

reagiram mais a sons de

qualquer intensidade.

Nos últimos anos, docu-

mentamos a degeneração

de sinapses induzida por

ruídos em camundongos,

cobaias e chinchilas, e em

tecido humano post mor-

tem. Mostramos, tanto nos

estudos animais como em

ouvidos humanos, que a

perda de conexões entre fi -

bras nervosas auditivas e células ciliadas

ocorre antes das elevações limiares associa-

das à perda dessas células. A ideia de que

danos neurais auditivos causam uma espé-

cie de perda auditiva oculta, um importan-

te componente da defi ciência auditiva in-

duzida por ruídos e associada à idade, ago-

ra é amplamente aceita e muitos cientistas

e médicos auditivos estão trabalhando

para desenvolver testes para determinar se

o problema é generalizado e se os nossos

estilos de vida ruidosos estão levando a da-

nos auditivos epidêmicos em pessoas de to-

das as idades.

CONSERTANDO NERVOS

Colocado em termos simplifi cados, o

audiograma, o teste padrão-ouro de audi-

ção, mede limiares auditivos e é um “ter-

mômetro” sensível de danos em células ci-

AAAAAAAAA PPPPPEEEERRRRDDDDAAA AAAUUUDDDDIITTTTIIVVVVAAA OOOOCCCTTTTAAAAMMMMBBBBÉÉÉMMM PPPPOOOODDDDEEEE AAAJJJUUUUDDDD

AAAA EEEEXXXXPPPLLLICCCCAAAARRRR OOOOUUUTTTRRRRAAAAQQQQUUUUEEEEIIXXXXAAASS AAASSSSSSSOOOOCCCIIAAADDDDAAAAAAAUUUUDDDIIIIÇÇÇÃÃÃOOO,, INNNCCCCLLLLUUSSSIIVVVVZZZZUUUUMMMMMBBBIDDDOOOO NNNOOOO OOOOUUUVVVIII

Page 48: Scientific American Brasil - Setembro 2015

48 Scientific American Brasil | Setembro 2015

liadas cocleares. No entanto, ele é um indi-

cador muito fraco, ou insatisfatório, de

danos causados em fibras nervosas auditi-

vas. Nossa pesquisa mostrou que a lesão

neural da perda auditiva oculta não afeta a

capacidade de detectar a presença de sons,

mas muito provavelmente degrada nosso

potencial para entender a fala e outros

sons complexos. De fato, ela pode ser um

significativo fator contribuinte para a quei-

xa clássica dos idosos: “Posso escutar as

pessoas falando, mas não consigo discernir

o que estão dizendo”.

Audiologistas sabem há tempos que

duas pessoas com audiogramas similares

podem ter um desempenho muito dife-

rente nos chamados testes de fala na pre-

sença de ruído, que medem o número de

palavras identificadas corretamente à

medida que o nível de barulho de fundo

aumenta. Antigamente, eles atribuíam

essas diferenças ao processamento cere-

bral, mas nossa pesquisa sugere que

grande parte delas surgem devido a dife-

renças na população sobrevivente de fi-

bras nervosas auditivas.

A perda auditiva oculta também pode

ajudar a explicar outras queixas comuns

associadas à audição, inclusive o tinido – o

zumbido nos ouvidos – e a hiperacusia ou

acuidade auditiva exacerbada, que é a in-

capacidade de tolerar até mesmo sons de

intensidade moderada. Essas condições

frequentemente persistem mesmo quan-

do um audiograma não acusa um proble-

ma. No passado, cientistas e clínicos apon-

tavam para o audiograma normal de um

portador de tinido ou hiperacusia e con-

cluíam, mais uma vez, que o problema de-

via surgir no cérebro. Nós, em vez disso,

sugerimos que o dano pode ter ocorrido

no nervo auditivo.

Nossa pesquisa levanta questões so-

bre os riscos da exposição rotineira a

música alta em shows e boates e através

de dispositivos pessoais de som. Embora

a perda auditiva induzida por ruído seja

claramente um problema entre músicos

profissionais, inclusive os que tocam

música clássica, estudos epidemiológi-

cos de ouvintes casuais falharam consis-

tentemente em encontrar um impacto

substancial em seus audiogramas. As di-

retrizes federais desenvolvidas para mi-

nimizar os danos provocados por ruídos

na força de trabalho dos EUA estão to-

das baseadas na suposição de que, se os

limiares pós-exposição voltam ao nor-

mal, o ouvido também se recuperou

completamente. Como vimos, essa pre-

missa é equivocada; portanto, segue-se

naturalmente que os atuais regulamen-

tos para ruídos podem ser inadequados

para evitar amplos danos neurais indu-

zidos por barulho e a deficiência auditi-

va que provocam.

Para resolver essa questão, precisa-

mos de testes diagnósticos melhores para

determinar danos neurais auditivos,

principalmente em vista das limitadas

possibilidades de contar sinapses em te-

cidos post mortem.

Uma abordagem promissora se baseia

em uma medida já existente da atividade

elétrica em neurônios auditivos, chamada

potencial evocado auditivo de tronco ence-

fálico (ABR). O ABR pode ser medido em

uma pessoa desperta ou adormecida, po-

rém equipada com eletrodos aplicados ao

couro cabeludo para medir a atividade elé-

trica em resposta à apresentação de estí-

mulos tonais de frequências e níveis de

pressão sonora diferentes. Historicamente,

o teste ABR tem sido interpretado em gran-

de parte numa base de “passa ou falha”: a

presença de uma resposta elétrica clara

evocada por um som é interpretada como

uma audição normal, e a ausência de uma

reação é evidência de deficiência auditiva.

Em trabalhos com animais, mostramos

que a amplitude do ABR em níveis de som

altos é muito informativa: ela aumenta

proporcionalmente em relação ao número

de fibras nervosas auditivas que retêm

uma conexão viável com as células cilia-

das internas.

Da mesma forma, um recente estudo

epidemiológico inspirado por nossa pes-

quisa aplicou uma variante do teste ABR

em um grupo de estudantes universitários

britânicos com audiogramas normais e

constatou amplitudes de respostas meno-

res entre os voluntários que relataram ter

sido expostos repetidamente à barulheira

de boates e shows musicais.

Em busca de potenciais tratamentos

para a perda auditiva oculta, agora esta-

mos considerando se podemos reverter a

degeneração induzida por ruído ao tratar-

mos os neurônios sobreviventes com subs-

tâncias químicas destinadas a regenerar

fibras nervosas, restabelecendo suas cone-

xões com células ciliadas internas. Embo-

ra as próprias sinapses sejam destruídas

imediatamente após a exposição ao ruído,

a lentidão da degeneração do restante do

nervo – seu corpo celular e axônios – nos

deixa otimistas de que a função normal

pode ser restaurada em muitos voluntá-

rios humanos. Obtivemos resultados ani-

madores em estudos com animais ao mi-

nistrarmos diretamente ao ouvido interno

neurotrofinas, que são proteínas que pro-

movem o crescimento de nervos.

A perda auditiva oculta em breve po-

derá ser tratável por injeção, através do

tímpano, de géis que liberam lentamente

neurotrofinas para restaurar sinapses

meses ou anos após uma agressão por ru-

ídos altos e persistentes. As injeções se-

riam aplicadas imediatamente após uma

exposição a ruídos fortes, como as explo-

sões das duas bombas na linha de chega-

da da Maratona de Boston, em 2013, que

danificaram a audição de mais de 100

espectadores.

Algum dia, um otologista talvez seja ca-

paz de ministrar drogas à cóclea, por meio

de um procedimento minimamente invasi-

vo, e de tratar de danos auditivos induzidos

por ruído com a mesma facilidade com que

um oftalmologista corrige um olho míope

por cirurgia a laser do cristalino.

PAR A CONHECER MAIS

Sharon G. Kujawa e M. Charles Liberman em Hearing Research. Publicado on-line em 11 de março de 2015.Sharon G. Kujawa

e M. Charles Liberman em Journal of Neuroscience, vol. 29, nº 45, págs. 14,077–14,085; 11 de novembro de 2009.

DOS NOSSOS ARQUIVOS

Charles C. Della Santina, edição nº 96, maio de 2010.

Page 49: Scientific American Brasil - Setembro 2015

MUDANÇA ESTADODE

C L I M A

Em 1860, um naturalista chamado William

Brewer partiu para fazer o primeiro levantamento geológico do

jovem estado da Califórnia. Ao chegar ao pequeno vilarejo de Los

Angeles, com suas construções de tijolos de adobe, em 2 de

dezembro, ele anotou em seu diário que “tudo o que é desejável

do ponto de vista natural para tornar o lugar um paraíso é água,

mais água”. Três semanas depois uma furiosa torrente de água, a

pior tempestade de chuva em 11 anos, destruiu grande parte dos

edifícios. Assim é o clima na Califórnia.

O registro secular, gravado emanéis de árvores,mostra padrões

similares aos de hoje: longos episódios de secas pontuados por pas-

sageiros anos chuvosos. No ano de 1130, a chuva foi diminuindo

gradualmente e não recomeçou para valer por outros 40 anos.

Secas de várias décadas de duração aparecem regularmente em

anéis de árvores ao longo de toda a história da Califórnia.

Mas a simples falta de chuva registrada nesses anéis já não é

mais uma definição prática de seca. Existe outra melhor, porém

mais subjetiva: a diferença entre a umidade existente e a umida-

de necessária. Por esse padrão, a seca atual não tem precedentes.

Sim, a Califórnia está mais seca do que em qualquer época desde

1895, quando as pessoas começaram a fazer registros meteoroló-

gicos. Mas o estado também está anormalmente quente, 2014 foi

quase 1o C mais quente que o ano mais quente anterior, e 2015

parece estar caminhando para ser mais quente ainda, o que

aumenta cruelmente a sede da terra por água, justamente em um

momento em que há pouca disponível. Além disso, as expectati-

vas humanas em relação às suas terras são diferentes de quais-

quer outras na história. Quase 40 milhões de pessoas agora cha-

mam a Califórnia de “lar”, e o resto do país e grande parte do

mundo dependem dos alimentos cultivados ali.

Californianos podem recitar com precisão as secas que

suportaram: 1977, 1986-1991, 2001-2002, 2006-2007 e esta, que

começou em 2011. É possível que futuros cientistas de anéis de

árvores não interpretem todos eles como uma sequência de

eventos distintos, mas como o início de uma dessas megassecas

ao estilo medieval; porém mesmo aquelas tinham alguns anos

chuvosos intercalados.

Seca pode fazer a Califórnia ficar como o Arizona – Dan Baum

APÓS TRÊS ANOS da pior seca já registrada da Califórnia, o Lago Oroville, fotografado em julho de 2011 (acima) e em agosto de

2014 (abaixo), caiu para 32% de sua capacidade.

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Page 50: Scientific American Brasil - Setembro 2015

50 Scientifi c American Brasil | Setembro 2015

Se a superlotada cultura de hortaliças do vale central da Cali-

fórnia de fato estiver se encaminhando para décadas de baixa

precipitação em uma era de calor sem precedentes, o chamado

Estado Dourado poderá acabar se tornando um lugar muito dife-

rente. No pior caso, ele poderia ser despojado de sua exuberante

agricultura e imponentes fl orestas. No melhor, sua população

poderia recorrer às inovações pelas quais o estado é famoso e

transformá-lo no laboratório do mundo para conservação e reú-

so de água. Seja como for, uma penosa adaptação ao novo “nor-

mal” está em pleno andamento.

Para entender a seca da Califórnia, é preciso seguir o cami-

nho da água. Essa jornada é cheia de surpresas, a começar pelo

fato de que seu ponto de partida fi ca a mais de 9.600 quilômetros

de distância, no meio dos verdejantes arquipélagos do Pacífi co

ocidental de Fiji, Vanuatu e das Ilhas Salomão.

Normalmente, o sol aquece o Oceano Pacífi co ao longo da

linha do equador, e os ventos superfi ciais prevalecentes, de leste

a oeste, empurram as águas cálidas para o mar pontilhado de

ilhas a oeste da Linha Internacional de Data (LID). Ali, a água

literalmente se acumula em um enorme “monte”, ou “colina”, que

não só é alguns graus mais quente que o mar ao largo da costa da

América do Sul, mas também cerca de 1,2 metro mais elevado.

Todo esse calor alimenta trovoadas que lançam umidade a gran-

des altitudes na atmosfera, onde a corrente de jato, os ventos de

alta altitude que sopram para o leste em vez de para o oeste, a

incorpora em sua viagem rumo à América do Norte.

Quando a massa de água quente equatorial permanece mais

ou menos a oeste da LID, ocorre o fenômeno La Niña, que é asso-

ciado a secas no sudoeste dos EUA. Se os ventos equatoriais na

superfície do oceano enfraquecerem ou se inverterem, ela se des-

loca para leste da linha de data e, se o efeito for sufi cientemente

pronunciado, temos o El Niño, que traz mais chuva para o oci-

dente. O que acontece agora realmente não parece ser nem El

Niño, nem La Niña. Durante alguns invernos boreais passados,

aquele ponto a oeste da LID estava meio grau Celsius acima da

média dos últimos 30 anos, o que é muito em termos climáticos.

A área também recebeu cerca de 300 mm de chuvas adicionais

no inverno de 2013-2014, além de um ciclone de categoria 5, que

lançou uma enorme quantidade de calor do oceano incomumen-

te quente na atmosfera superior. No início de 2015, dois outros

ciclones, mais gigantescos ainda na região, fi zeram o mesmo.

Cientistas detestam afi rmar exatamente o que causa o quê em

um clima mutante, mas alguma coisa relacionada àquela massa

de água quente no Pacífi co ocidental, talvez em combinação com

um diferencial decrescente entre as temperaturas no equador e

nos polos, parece estar emperrando as engrenagens meteorológi-

cas. Uma “crista” de alta pressão atmosférica estacionou sobre o

Pacífi co oriental, bem na rota da corrente de jato úmida e, como

um gigantesco bloco de pedra que foi parar em um riacho, está

deslocando o fl uxo e empurrando a corrente de jato para o norte.

O que teria sido água de chuva da Califórnia está se precipitando

em enormes quantidades sobre o Alasca e o noroeste do Canadá,

e isso pode ter contribuído para as históricas nevascas, de Chica-

go a Boston, no inverno boreal passado, e para as inundações no

Reino Unido.

Essas cristas que bloqueiam a corrente de jato de alta pressão

são comuns ao largo da costa californiana, mas normalmente se

dissipam em poucas semanas, quando são “rompidas”, ou desfei-

tas por tempestades. A crista atual, porém, vem persistindo des-

de o inverno de 2013-2014, diminuindo apenas ligeiramente de

tempos em tempos, para então, estranha e incomumente, se rea-

grupar de novo e impedir a passagem da umidade do ar. Daniel

Swain, um aluno de doutorado de 25 anos da Universidade Stan-

ford, deu à anomalia o nome que “pegou”: Crista Ridiculamente

Resiliente (Ridiculously Resilient Ridge), ou Triplo R. Várias

tempestades menores perfuraram a Triplo R no inverno passado,

inclusive uma chuvarada torrencial em fevereiro, mas em vez de

se dispersar, a crista estranhamente coalesceu (se aglutinou de

novo). Ninguém sabe quanto tempo ela durará.

A maior parte da água trazida do Pacífi co ocidental cai pri-

meiro no alto das montanhas da Serra Nevada, uma cordilheira

que se estende por mais de 600 quilômetros ao longo da fron-

teira oriental do estado. Foi ali que comecei a procurar pela

água sumida da Califórnia, mais especifi camente, no Lago

Echo, muito acima do Lago Tahoe, na fronteira com o estado de

Nevada. Em anos chuvosos, a água é trazida pela corrente de

jato e precipita ali em quantidades titânicas. Um homem que

conheço certa vez esquiou até a área para encontrar sua cabana

à margem do lago, cavou buracos na neve por toda a encosta da

montanha para tentar encontrar sua casa e não a achou; ele

teve de voltar de lá esquiando no escuro. Comparativamente,

este ano praticamente não nevou no Lago Echo. A sotavento, o

lado protegido da crista Triplo R, o inverno norte-americano de

é escritor; sua obra mais recenteGun guys: A road trip. Ex-redator da equipe darevista The New Yorker, já fez reportagens emcinco continentes.

E M S Í N T E S E

não tem precedente.Registros em anéis de árvores mostram queepisódios de estiagem, de décadas de dura-ção, já atingiram o estado antes, mas nuncacom tanta pressão populacional.

como resultadodisso. Na Serra Nevada, árvores grandes evelhas estão morrendo, sendo substituídaspor outras menores. Mesmo as icônicas se-quoias podem estar em risco.

está colapsandocom o descontrolado bombeamento deáguas subterrâneas. Lavouras estão se tor-nando ociosas, fruticulturas são consumidaspor fogo e as torneiras estão secando.

como o Arizona.Mas há esperança. O pensamento criativo jácomeçou, e muitos veem a seca como umaoportunidade para resgatar a Califórnia, eganhar dinheiro no processo.

Page 51: Scientific American Brasil - Setembro 2015

www.sciam.com.br 51

2013-2014 viu níveis historicamente baixos de neve acumulada

na Serra Nevada e, neste último inverno, a situação foi ainda

pior, com apenas 5% da média. Em abril, os acúmulos em Lago

Echo normalmente atingem a altura de um humano, mas quan-

do cheguei lá, no chamado “Dia do Imposto” (prazo final para a

entrega da declaração anual do imposto de renda), só havia

alguns pequenos amontoados de branco embaixo das árvores.

Do lago, dirigi uns 320 quilômetros rumo ao sul, passando pelo

Parque Nacional Yosemite, para visitar Nathan Stephenson, ecolo-

gista de plantas do Serviço Geológico dos EUA (USGS), que traba-

lha entre as icônicas árvores gigantes da Califórnia, no Parque

Nacional das Sequoias. A reserva se avulta acima do condado Tula-

re, no Vale Central, o “ponto zero” da seca. O Rio Kaweah flui do

parque para o extremamente depauperado Lago Kaweah e de lá

para o vale mais abaixo. Em seus 35 anos de trabalho no parque,

Stephenson viu secas chegarem e partirem, mas nunca uma como

esta. “Só de olhar, eu estimaria que 30% dos carvalhos nas encos-

tas estão mortos ou morrendo”, avaliou, examinando uma área flo-

restal que, mesmo para o olho destreinado, parecia pálida e “can-

sada”, pontilhada de árvores marrons. Stephenson é alto e magro,

com uma barba grisalha e a disposição bem-humorada de um

homem que é pago para passar seu tempo ao ar livre em um par-

que nacional. Mas ele estava “de cara fechada”, com ar sombrio,

enquanto olhava para a encosta arborizada sob a aba de seu cha-

péu do USGS. “Só estamos em abril”, comentou exasperado.

Entramos novamente em seu Subaru e subimos a montanha

até um bosque de ciprestes, ou cedros-do-incenso-da-califórnia,

permeado de espécimes de cor acentuadamente amarelo-amar-

ronzada. “Eles são centenários e muito resistentes, hospedeiros

de poucos insetos”, observou Stephenson. “De brincadeira,

temos chamado essas árvores de ‘as imortais’ porque elas pare-

cem nunca morrer.” Ele parou e esticou uma mão para apalpar

as agulhas marrons de um cedro. “Agora acho que são mortais.”

Por fim, subimos ao reino das próprias gigantes, as magníficas

sequoias, muitas das quais se erguiam em meio a montes de

suas próprias agulhas mortas; testemunhas de como a seca está

afetando suas extremidades.

Aqui, há 33 anos o USGS monitora 20 mil árvores de várias

espécies em 30 trechos bem espaçados. As árvores, inclusive se-

quoias, estão morrendo e também de modo imprevisível. Em

tempos normais, um fio ininterrupto de água se estende das raí-

zes de uma árvore para cada folha ou agulha, sendo “sugada”

para cima através de diminutos capilares à medida que a árvore

transpira água no ar. Mas agora, exemplares de todas as espécies

estão morrendo de cavitação: quando o fio de água se rompe e

bolhas de ar entram nos capilares, precipitando o fim.

FAZENDEIROS do município de Firebaugh, no Vale Central, inspecionaram suas lavouras (acima, à esquerda); amendoeiras próximas mur-charam (acima, à direita), e placas foram usadas em protesto contra os cortes de água impostos a fazendeiros (abaixo, à direita). Em Portervil-le, centenas de domicílios estão sem abastecimento (abaixo, à esquerda).

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52 Scientifi c American Brasil | Setembro 2015

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1895 1905 1915 1925 1935 1945 1955 1965 1975 1985 1995 2005 2015

–8

–4

0

4

8

Drenagem da costa norteDrenagem do distrito de SacramentoBacias do interior nordesteDrenagem da costa centralDrenagem do distrito de San JoaquinDrenagem da costa sulBacias dos desertos do sudeste

Uma seca sem precedentes

Severidade de Seca de Palmer (PDSI, na sigla em inglês), um algoritmo de umidade do solo concebidopara medir o impacto de longo prazo de uma seca, considerando níveis de reservatórios, dados de águas

E M N Ú M E R O S

Recentes anos de estiagem têm sido intercalados por anos excepcionalmente chuvosos, mas essa umidade não compensou a tendência geral de ressecamento. Padrões similares ocorreram há séculos; as megassecas medievais, de décadas de duração, que aparecem nos registros de anéis de árvores californianas também incluíam ocasionais anos chuvosos.

Uma característica incomum e desagradável da atual estiagem é que tantas regiões diferentes nesse estado grande

estão passando por ela em um nível extremo.

A Califórnia foi poupada, em grande parte, dos efeitos calamitosos da chamada “Dust Bowl” (a seca, com enormes tempestades de poeira, que atingiu 400 mil km2 do país nos anos 30). Por essa razão os fazendeiros desalojados das Grandes Planícies fugiram para lá em busca de trabalho.

As curvas sólidas são linhas de tendência polinomial que

condições nas sete divisões regionais da Califórnia. A crescente densidade de linhas cor de cinza verticais após 1975 indica um aumento na frequência de extremas condições secas e úmidas. Em termos gerais, porém, todas as linhas de tendência se curvam para baixo durante esse período, indicando que todas as regiões no estado estão tendendo à seca.

mensal do Índice de Severidade de Seca de Palmer para cada uma de sete divisões regionais. Os pontos que estão dentro da faixa “normal” (de +4 a -4) aparecem mais apagados ao fundo.

casos de condições extremamente úmidas ou secas (com um desvio de +4 a –4 da média).

Page 53: Scientific American Brasil - Setembro 2015

www.sciam.com.br 53

Outras árvores fecham os poros em suas folhas durante perío-

dos de estiagem para reter água. Mas nesse caso elas não podem

absorver dióxido de carbono (CO2). Em geral a umidade retorna

e os poros se abrem novamente antes que as árvores morram

asfixiadas, mas essa seca está sendo tão longa, persistente e

quente que muitas estão sendo fatalmente pressionadas a

“optar” entre reter sua água ou respirar. E depois há os besouros

atraídos para árvores estressadas pela seca, que estão devastan-

do vastas faixas de pinheiros em toda a região oeste. Uma vez que

uma árvore morre, os besouros voam para a próxima. Às vezes,

durante essa seca, eles voam em “enxames” tão densos que é pos-

sível colhê-los em pleno ar com um boné de beisebol. Na prima-

vera passada, um levantamento aéreo de uma enorme faixa de

florestas da Serra Nevada californiana, inclusive o parque das

sequoias, identificou mais de 10 milhões de árvores mortas, 10%

da área pesquisada, a maioria delas mortas no ano anterior. Se a

estiagem persistir por tempo suficiente, ela poderia secar e matar

as majestosas florestas das terras altas da Califórnia e aniquilar

as sequoias gigantes, que incluem a “general Sherman”, um colos-

so de quase 84 metros de altura e mais de 11 metros de diâmetro

na base, a maior árvore do mundo por volume.

Uma perda florestal massiva seria um enorme prejuízo para o

estado, mas também poderia ser calamitosa para o planeta, e não

só porque isso liberaria incontáveis toneladas adicionais de CO2

em uma atmosfera que já está mesmo esquentando. No ano passa-

do, Stephenson foi autor principal de um amplo estudo, sobre

673.046 árvores de 403 espécies em seis continentes, que chocou a

comunidade botânica ao constatar que, ao contrário da crença

popular, árvores crescem mais rápido quanto maiores e mais

velhas ficam. Se a floresta da Serra Nevada continuar morrendo,

ela será repovoada por árvores muito jovens, que provavelmente

absorverão menos CO2, o gás do aquecimento global, da atmosfera

que a atual floresta de exemplares de muitas idades diferentes.

Em anos chuvosos, a neve que se acumula na Serra Nevada

contém água suficiente para encher os reservatórios do estado. A

cada primavera e verão, ela escorre lentamente por sua encosta

ocidental e, sem interferência humana, encontra seu caminho

para a próxima parada em nossa busca pela água ausente da

Califórnia, um gigantesco atributo desse estado “abarrotado”,

que se esconde em plena vista: o delta dos rios Sacramento e San

Joaquin, de 2.850 quilômetros quadrados.

Esse delta está localizado pouco a leste da Baía de São Fran-

cisco. Antes da chegada dos colonizadores, ele era um pântano

de água doce, cheio de canais, lamaçais e ilhas, mas agora grande

parte é cultivada e até abriga mais de meio milhão de pessoas em

cidades como Antioch e Rio Vista. No entanto, vastas extensões

continuam sendo uma grande planície aluvial natural, não

desenvolvida; uma área um tanto assustadora, coberta por densa

vegetação tropical e perfeitamente plana, que a multidão frenéti-

ca dificilmente chega a ver, entrecortada por mais de 1.125 quilô-

metros de emaranhadas vias navegáveis. Este é o maior estuário

na Costa Oeste americana, ponto de confluência dos rios que dre-

nam os vastos vales de Sacramento e San Joaquin, além de ser a

grande “central de coleta” para o escoamento gerenciado das

águas superficiais da Califórnia. Água liberada por reservatórios

localizados no norte do estado para fazendas e cidades no sul

tem de passar por ali. Levei horas zanzando entre estradas de

terra e vias elevadas pavimentadas para encontrar o pequeno

canto do delta conhecido como Clifton Court Forebay, um reser-

vatório artificial, onde avultam as casas de bombas que transpor-

tam água pelo amplo canal revestido de concreto, chamado

Aqueduto da Califórnia, rumo a Los Angeles, a 547 quilômetros

de distância, e através do aqueduto Delta-Mendota Canal para as

esparramadas fazendas do Vale Central.

A água de superfície da Califórnia é tão intensamente gerencia-

da que parece mais um produto industrial que um recurso natu-

ral. Uma rede de reservatórios estaduais e federais; uma complexa

grade de canais e aquedutos; e um enorme emaranhado de leis de

água, direitos à água, regulamentos ambientais, ordens judiciais e

pareceres jurídicos dividem, ou parcelam, a água de um jeito que

certamente enfurece a todos. Cerca de metade da água de superfí-

cie é deixada nas córregos, rios e no delta para garantir a manuten-

ção de terras úmidas e hábitats de peixes, cumprir os termos da

Lei de Espécies Ameaçadas, e impedir o refluxo de água salina

através do delta para os canais e aquedutos.

A outra metade abastece humanos: 20% para as cidades que,

em abril deste ano receberam ordem do governador Jerry Brown

para reduzir o consumo, em média, em 25%, e 80% para fazen-

deiros. Pelo menos em teoria. Este ano e no ano passado, a água

de superfície está tão escassa que o abastecimento para a maio-

ria dos agricultores foi zero.

Devido à microgestão das águas superficiais da Califórnia, é

chocante que seja quase completamente desregulada a utilização

de lençóis freáticos, de longe a maior parte dos recursos hídricos

do estado. A Califórnia é a unica unidade federativa dos EUA em

que alguém pode bombear tanta água subterrânea quanto qui-

ser, desde que não seja desperdiçada ou vendida. A atual seca

precipitou uma espécie de “corrida aquática” no Vale Central,

com todos os fazendeiros empenhados em cavar mais fundo que

seus vizinhos, “como um bando de crianças de quatro anos com

um milk shake e um monte de canudos”, nas palavras de um

agroeconomista. Ninguém sabe quanta água está sendo bombea-

da para fora, mas os níveis dos lençóis freáticos estão historica-

mente baixos. O fazendeiro com o poço mais profundo em uma

determinada área vai usando a água, e se isso significar que os

poços de seus vizinhos secam, que assim seja.

Alguns já estão perfurando a uma profundidade de quase 460

metros para acessar água que pode ter caído em forma de chuva

há 10 mil anos. Uma água “fossilizada” desse tipo, que ficou em

contato com substratos geológicos por tanto tempo, frequente-

mente está contaminada com arsênio, cromo, sal e outras subs-

tâncias tóxicas. Além disso, perfurar tão fundo é caro. Os fazen-

deiros que conseguem encontrar alguém que faça o trabalho, as

listas de espera chegam a um ano, talvez gaste US$ 500 mil no

projeto, e isso não inclui o elevado custo de bombear a água des-

sas profundezas “abissais” para a superfície.

Certa tarde, a uns 300 quilômetros ao sul do delta, perto da

cidade rural de Visalia, segui uma coluna de fumaça até uma plan-

tação cheia de laranjeiras mortas que tinham sido empilhadas por

Page 54: Scientific American Brasil - Setembro 2015

54 Scientific American Brasil | Setembro 2015

escavadeiras em montes enormes, do tamanho de

casas grandes, e incendiadas. O proprietário, que esta-

va lá de pé olhando com expressão sombria e triste, me

contou que tinha arrendado os pouco mais de 32 hec-

tares e suas 10.600 árvores saudáveis para um agricul-

tor que, na primavera passada, tinha instalado tubula-

ções ilegais e vendido a água do poço da fazenda a um

vizinho, deixando as árvores morrerem.

Não são só os proprietários de terras que estão sen-

do prejudicados. Yolanda Serrato, de East Porterville,

uma cidadezinha pobre, sem governo municipal e

habitada por trabalhadores rurais no condado de

Tulare, estava regando seu pequeno gramado em

dezembro passado, quando a mangueira começou a

“cuspir” e parou de sair água, definitivamente. Os

poços rasos de cerca de 400 de seus vizinhos também

secaram mais ou menos à mesma época, deixando-os

dependentes de um misto de assistência pública e

caridade. Quando conheci Serrato, ela estava encosta-

da à sua cerca de tela de arame, olhando rua abaixo à procura da

picape que talvez lhe trouxesse algumas garrafas de água. Foi difí-

cil não ver East Porterville como uma possível precursora do dia

em que muitos californianos serão forçados a deixar suas casas

por falta de água.

A primeira lei da hidrodinâmica é a água fluindo na direção

de dinheiro. É provável que leve muito tempo antes que a maioria

dos californianos, especialmente nas cidades litorâneas, confronte

torneiras secas. São Francisco, por exemplo, extrai sua água do

antigo Reservatório Hetch Hetchy, a uns 270 quilômetros de dis-

tância, no Parque Nacional Yosemite. Los Angeles, como qualquer

um que tenha visto o filme Chinatown sabe, secou o Vale Owens, a

mais de 300 quilômetros, na década de 20, e agora obtém a maior

parte de sua água de reservatórios localizados ainda mais ao norte.

Enquanto a Califórnia tiver um pingo de água, ela sem dúvida flui-

rá na direção dos ricos moradores de áreas costeiras.

No Vale Central, porém, o problema está apenas começando.

Para entender por que, precisamos seguir o caminho das águas

no subsolo profundo. O Vale Central é essencialmente uma enor-

me depressão de 51,8 mil quilômetros quadrados de camadas de

argila, cascalho, sedimentos e areia, encravada entre cadeias de

montanhas de “rochas duras”. Em camadas de cascalho e areia, a

água corre lateralmente com facilidade. Um fazendeiro que bom-

beia águas subterrâneas consegue surrupiá-la de um vizinho.

Mas a umidade está armazenada principalmente em camadas de

argila, que gotejam sua carga lentamente nas camadas de casca-

lho e areia. É o modo como a argila armazena água que torna o

atual frenesi de bombeamento preocupante.

Desastres têm um jeito peculiar de catapultar cientistas da

obscuridade à fama da noite para o dia. Michelle Sneed, jovem

geóloga do USGS, batalhou durante anos para se especializar em

um campo bem pouco empolgante, subsidência ou afundamento

do solo, que subitamente se tornou crucial para o futuro da Cali-

fórnia. Com olhos azuis surpreendentemente francos e longos

cabelos ondulados, ela parecia estar desfrutando seu momento

de glória como estrela científica. Quando estávamos sentados em

seu escritório, em Sacramento, à margem nordeste do delta, ela

virou suas palmas para cima, entrelaçou os dedos e explicou que

a estrutura microscópica da argila consiste em minúsculas pla-

cas inclinadas ao acaso. “Imagine quanta água caberia na pia de

sua cozinha se você colocasse ali um monte de pratos de jantar e

os deixasse se inclinando uns sobre os outros de qualquer jeito”,

sugeriu. Então ela girou as mãos para pressionar suas palmas.

“Agora imagine empilhar esse pratos ordenadamente e o que isso

faria com o espaço para água entre eles.” Essencialmente é isso o

que acontece quando uma quantidade excessiva de água é bom-

beada muito rapidamente do solo; as placas microscópicas que

constituem a argila deslizam para uma posição sobreposta. Em

outras palavras, a camada de argila colapsa.

Centenas de metros acima, a terra desmorona junto. Desde a

década de 20, vastas áreas do Vale Central sofreram uma subsi-

dência, de aproximadamente nove metros. Em apenas dois anos,

de 2008 a 2010, mais de um décimo do vale afundou cinco centí-

metros. Isso significa trabalho para equipes de manutenção, que

consertam rachaduras em rodovias e pontes, e para trabalhado-

res ferroviários que renivelam trilhos. Esse afundamento tam-

bém dificulta o fornecimento de água em todo o estado. Canais e

aquedutos podem se estender por centenas de quilômetros sem

bombas, porque se inclinam muito sutilmente para baixo. Não é

preciso uma subsidência acentuada para interferir no fluxo, que

foi o que aconteceu no ano passado, entre outros lugares, no pon-

to de junção onde um grande canal encontra o Reservatório San

Luis, na região central da Califórnia. Mas as interrupções no

abastecimento dificilmente são o pior de tudo. Uma vez que uma

camada subterrânea de argila desmorona, ela nunca mais pode

armazenar água. Portanto, os fazendeiros californianos que

bombeiam água freneticamente não estão apenas depauperando

o aquífero de que dependem, mas também o estão destruindo.

A única esperança é recarregar o que resta do aquífero o mais

rápido possível. O problema é que nem todo subsolo é igualmen-

te recarregável. Sob cerca da metade do Vale Central predomina

EM PORTERVILLE, os residentes cujas torneiras haviam secado encheram tambores com água não potável na frente da unidade do corpo de bombeiros de Doyle County.

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a chamada argila Corcoran, resquícios de um leito lacustre mile-

nar, que pode ser perfurada por poços, mas que, ao contrário da

maioria das argilas, permanece em grande parte impermeável à

água. Geólogos conseguem identificar áreas permeáveis, sem a

Corcoran, e, portanto, geologicamente adequadas para serem

inundadas para o reabastecimento dos lençóis freáticos. Mas

algumas são cobertas por subdivisões, shopping centers ou

fazendas; e identificar solo permeável e obter permissão para

inundá-lo é uma tarefa formidável.

Cientistas da Universidade da Califórnia em Davis estão condu-

zindo um experimento com o Conselho da Amêndoa da Califórnia

para verificar se pomares de amendoeiras situados sobre solo geo-

logicamente apropriado podem ser inundados no inverno, quan-

do as árvores estão dormentes, a fim de realimentar o aquífero. No

entanto, isso não suscita apenas questões geológicas, mas também

jurídicas: a lei da Califórnia exige que os fazendeiros utilizem a

água que recebem do estado somente para “usos benéficos”, e o

reabastecimento de lençóis freáticos pode ser proibido como “irri-

gação excessiva”. Depois, há a questão sobre se um agricultor que

armazena água desse jeito tem direito a receber uma quantidade

igual mais tarde. E, para inundar uma lavoura ou um pomar visan-

do reabastecer águas subterrâneas, é necessário mais que permis-

são e direitos legais; é preciso água. Ultimamente, porém, não há

água suficiente nem para alimentar as culturas atuais, quanto

mais “estocá-la” para as futuras. Qualquer esquema massivo de

recarga terá de esperar por um ano chuvoso.

A crise tem sido suficientemente grave para dar ao governador

Brown e ao Legislativo cobertura para mudar as leis de água da

Califórnia, de 150 anos, em um pequeno passo rumo à regulamen-

tação de lençóis freáticos. De acordo com uma lei aprovada em

novembro passado, os departamentos para recursos hídricos locais

em cada uma das 515 bacias de águas subterrâneas distintas do

estado terão cinco anos para apresentar planos para seu uso sus-

tentável e outros 25 para alcançá-los. Isso sacudirá o estado politi-

camente porque departamentos municipais de água, distritos de

irrigação gerenciados por fazendeiros, comissões distritais de

água, e outras agências relacionadas à gestão desse recurso, todas

mergulhadas em seus próprios mundos, com seus próprios dados

proprietários e interesses concorrentes, terão de se reunir em agên-

cias para a sustentabilidade de águas subterrâneas – ou GSAs na

sigla em inglês – para compartilharem seu bem mais valioso.

Em um prédio de escritórios temporários, revestido de pai-

néis baratos de madeira, que serve como escritório do Distrito de

Água do condado de Tulare, mais ou menos no meio do Vale de

San Joaquin, conheci um jovem chamado Benjamin Siegel, que

tinha sido incumbido com a ingrata tarefa de criar uma GSA com

a cidade de Visalia e um distrito local de irrigação. “É como escre-

ver uma nova linguagem”, queixou-se ele.

Vinte e quatro quilômetros mais adiante, Denise Atkins, analis-

ta administrativa de recursos hídricos do condado, admitiu que só

conseguir que todos concordem sobre quem terá voz ativa na GSA

local é um pesadelo; quanto mais fazer com que as pessoas acei-

tem compartilhar dados. “Há cinco anos, se você quisesse pergun-

tar a um produtor ‘Como você se sente em relação a um medidor

em seu poço?’, seria melhor usar Kevlar”, observou ela referindo-se

ao material usado em coletes à prova de bala. “Agora os fazendei-

ros estão ficando entusiasmados em saber quanta água conso-

mem.” Atkins se inclinou sobre sua mesa bagunçada, revirou os

olhos e acrescentou, em voz baixa: “Embora a resposta geralmente

seja ‘Meu vizinho está bombeando demais’”.

Cientistas divergem sobre a explosiva questão de se a seca é

causada por mudanças climáticas antropogênicas. No ano passa-

do, a Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos EUA

(NOOA) disse que não, o Painel Intergovernamen-

tal sobre Mudanças Climáticas (IPCC) opinou que

é possível, e uma equipe de cientistas climáticos

da Universidade Stanford, que incluiu Daniel

Swain – que batizou a anomalia Triplo R –, afir-

mou que sim. O grupo modelou climas atuais e

pré-industriais e determinou que as condições

associadas ao fenômeno Triplo R são três vezes

mais prováveis agora. Independentemente de as

mudanças climáticas estarem ou não provocando

a seca, todo mundo parece concordar que o calor adicional está

exacerbando os efeitos da baixa umidade, das florestas da Serra

Nevada às fazendas do Vale Central.

Após anos de algo um tanto parecido com o fenômeno La Niña,

a NOAA anunciou em março o início de um fraco El Niño, mas

advertiu que ele provavelmente não afetará o clima na Califórnia

significativamente tão cedo. O estado talvez tenha alguns anos

chuvosos em seu futuro próximo, mas o solo do alto da Serra Neva-

da até o fundo do Vale Central está tão ressecado, tão desidratado,

que levará anos para reidratá-lo adequadamente e muito mais

tempo para começar a recarregar o lençol freático. A Califórnia

pode optar por considerar as atuais condições como uma anoma-

lia e “gerenciar isso como um desastre”, mas isso seria um terrível

engano, alertou Noah Diffenbaugh, fellow sênior do Instituto

Woods para o Meio Ambiente da Universidade Stanford. “Está cla-

ro que a Califórnia tem um clima diferente agora.”

Se esse clima envolve, digamos, uma seca de 30 anos seme-

lhante às que ocorreram na Idade Média, as florestas das monta-

nhas morrerão porque sua água não é gerenciada, e as próximas

vítimas serão as fazendas e os pomares do Vale Central que têm

sido tão emblemáticos da Califórnia nos últimos 100 anos.

Uma linha de raciocínio sobre o fim da agricultura california-

na é mais ou menos assim: E daí? A agricultura só representa

cerca de 2% da economia do estado, e a enxurrada de alimentos

baratos, intensivos em água, de que o mundo desfrutou talvez

sempre tenha sido a ilusão irreal de pessoas sem uma perspecti-

A seca está transformando a Califórnia em quase todos os aspectos concebíveis – meteorológico, geológico, biológico, agrícola, social, econômico e político.

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56 Scientific American Brasil | Setembro 2015

va abrangente de milênio. “A Califórnia ficaria bem” sem agricul-

tura, disse para mim Richard Howitt, um agroeconomista britâ-

nico da Universidade da Califórnia em Davis com acentuado

humor seco. “Nós nos transformaríamos em uma economia do

Arizona. Eliminaríamos progressivamente a agricultura irrigada

e passaríamos para filmes [a indústria cinematográfica da Cali-

fórnia responde por 2,1% do produto interno bruto do estado],

tecnologia de informação [8%] e tudo mais.”

Sem dúvida alguma, frutas, nozes e legumes ficariam mais

caros para todos, mas a própria Califórnia poderia facilmente

sobreviver à base de indústrias, saúde, finanças e educação que

fazem de sua economia a sétima maior do mundo, especialmente

se não estivesse desviando quatro quintos de sua água utilizável

para a agricultura irrigada.

Realisticamente, porém, é difícil imaginar um estado tão ino-

vador como a Califórnia simplesmente permitindo que o orgulho

de suas lavouras desapareça. Mais de 30% da agricultura no Vale

Central se destina ao cultivo de uvas e frutos como amêndoas,

nozes, pistache e frutas cítricas, que representam um investi-

mento enorme que, após o plantio, pode levar até sete anos para

se tornar lucrativo. Fazendeiros do Estado Dourado já estão se

voltando para uma vigorosa indústria de alta tecnologia que pro-

duz irrigadores equipados com GPS, irrigação baseada em mete-

orologia, sensores de umidade do solo e outros dispositivos agro-

eletrônicos projetados para reduzir o consumo de água. Em

junho, em uma medida ainda mais radical, o estado deu o impen-

sável passo de impor restrições hídricas à “realeza” agrícola cali-

forniana, àqueles que detêm direitos sobre água ribeirinha nos

vales dos rios Sacramento e San Joaquin, que remontam à época

“corrida ao ouro” e que durante muito tempo eram considerados

invioláveis. Viajando pela Califórnia, é fácil perceber que o sofri-

mento, mas também o pensamento criativo, apenas começaram.

A seca está transformando a Califórnia em quase todos os

aspectos concebíveis – meteorológico, geológico, biológico, agríco-

la, social, econômico e político. A combinação de um baixo índice

de umidade e temperaturas elevadas muito provavelmente será a

condição climática do futuro. Mesmo quando ocorrem esporádi-

cos anos chuvosos, o inexorável aquecimento global garante que a

precipitação não ocorra mais em forma de intensas nevascas, e,

portanto, densas camadas de neve que distribuem água lentamen-

te, mas como furiosas torrentes de chuva. É por isso que em

novembro passado os californianos votaram a favor da Proposi-

ção-1, a destinação de mais de US$ 7 bilhões para a infraestrutura

hídrica, quase 50% dos quais irão para a construção de novas bar-

ragens e reservatórios, um projeto de obras públicas de propor-

ções enormes. E é aí que reside o otimismo velado da seca califor-

niana: o ônus de uma pessoa é a oportunidade de outra.

O Corpo de Engenheiros do Exército quer extrair o concreto

de um trecho de quase 18 quilômetros do Rio Los Angeles, atual-

mente um horroroso sistema de drenagem de águas pluviais que

pouco faz além de canalizar cerca de 783,5 milhões de litros de

água por dia para o oceano. O projeto permitiria que pelo menos

parte dessa água reabastecesse ou recarregasse o aquífero e inje-

tasse mais de US$ 1 bilhão na economia local.

A tecnologia de dessalinização também tem o potencial de

abastecer o litoral com água praticamente ilimitada, mas ela é

incrivelmente cara, tem uma enorme pegada de carbono porque

consome tanta energia e gera quantidades imensuráveis de água

intensamente salina, difícil de ser eliminada com segurança. O

verdadeiro potencial da gestão de secas reside na conservação e

reciclagem de água. O Instituto Pacific, um think tank ambiental

com sede em Oakland, estima que simplesmente conseguir que

as pessoas usem água de forma mais eficiente dentro e fora de

casa poderia economizar à Califórnia 3,7 trilhões de litros por

ano, quase 30% de seu consumo de água urbana.

A Proposição-1 inclui US$ 725 milhões para a reciclagem, sete

vezes mais que o estado já destinou para essa finalidade. Isso cor-

responde a apenas cerca de 20% do que a divisão californiana da

Associação WateReuse, o grupo comercial para a indústria de

reciclagem de água, acredita seria necessário para maximizar o

potencial dessa tecnologia no estado, mas o dinheiro estadual se

destina a atrair fundos municipais, distritais e privados para pro-

jetos de reúso de água. A modernização de parques municipais,

campos de golfe, fábricas, edifícios de escritórios e até domicílios

com as chamadas “tubulações violeta”, que transportam água

reciclada suficientemente limpa para utilização em paisagismo,

vasos sanitários e outros propósitos não potáveis, está prestes a

se tornar um setor multimilionário da economia.

A transição já começou em Orange County que, desde 2008,

vem tratando e recuperando mais de 30% de suas águas residuais

para padrões potáveis, injetando-as no aquífero. O município lim-

pa outros 17% de suas águas residuais o bastante para processos

industriais, paisagismo e usos domésticos como descargas de vasos

sanitários. A infraestrutura foi cara, mas a maior parte da água tra-

tada custa ao distrito um pouco mais da metade do que custaria

importar água do Rio Colorado, que também está sendo rapida-

mente depauperado. Em novembro passado, o conselho municipal

de San Diego aprovou o investimento de US$ 3 bilhões no equipa-

mento que permitirá à cidade reciclar água suficiente para um ter-

ço de seus cidadãos. A WateReuse insiste que a purificação de

águas residuais poderia suprir todas as necessidades municipais de

oito milhões de pessoas, 20% da população da Califórnia, além de

criar um número sem precedentes de empregos no processo.

O novo “normal” é um pouco assustador, mas isso é a Califór-

nia. Problemas, sim, mas há ouro nessas soluções.

PAR A CONHECER MAIS

Michael E. Mann e Peter H. Gleick em Proceedings of the National Academy of Sciences USA, vol. 112, no 13, págs. 3858–3859; 31 de março de 2015.

Benjamin I. Cook, Toby R. Ault e Jason E. Smerdon em Science Advances, vol. 1, nº 1, artigo nº e1400082; 1º de fevereiro de 2015.

Editado por Stephanie C. Herring et al. em Bulletin of the American Meteorological Society, vol. 95, nº 9, págs. S1–S104; setembro de 2014

DE NOSSOS ARQUIVOS

Page 57: Scientific American Brasil - Setembro 2015

PARA FORMAR O ESTUDANTE DO SÉCULO 21

August 2015, Scientifi cAmerican.com 57Ilustrações de Mario Wagner

Muitas vezes avaliações escolares aumentam a ansiedade e atrapalham o aprendizado. Uma nova pesquisa mostra como reverter essa tendência

Annie Murphy Paul

E M S Í N T E S E

da lei Nenhu-ma Criança Deixada para Trás, em

ção de pais e professores a testarcrianças da terceira à oitava séries.

exa-mes provocam ansiedade em alu-nos transformando escolas em fá-bricas de preparação para testes,prejudicando a aprendizagem.

epsicologia mostram que testar,quando feito corretamente, pode

Submeter-se a provas pode produ-

zir uma recordação melhor de fa-tos e uma compreensão mais pro-funda do que uma educação quenão inclui exames.

como avaliações de

aprendizado profundo testes emdesenvolvimento para avaliar comque grau de sucesso alunos aten-dem aos padrões de referênciaadotados em 43 estados.

UMA OVA

VI ÃOPARA EXAME

Page 58: Scientific American Brasil - Setembro 2015

58 Scientifi c American Brasil | Setembro 2015

Quem foi o primeiro americano a orbitar a Terra?A NEIL ARMSTRONG B YURI GAGARIN

C JOHN GLENN D NIKITA KRUSHCHEV

é colaboradora frequente do The New York Times, e das revistas Time e Slate. É autora de The cult of personality testing e de Origins, que foi incluído na lista dos 100 Livros Notáveis de 2010 do The New York Times. Seu próximo livro, a ser lançado pela Crown, é intitulado Brilliant: The science of how we get smarter.

Em escolas dos Estados Unidos, questões de múltipla escolha

como essa, acima, provocam ansiedade e até pavor. Seu surgimen-

to signifi ca que é hora de avaliação, e provas são eventos impor-

tantes, de peso, e excruciantemente desagradáveis.

Mas não na escola de ensino fundamental Columbia Middle

School, em Illinois, na sala de aula da oitava série da professora de

história Patrice Bain. Ela tem olhos azuis vivazes, um sorriso rápi-

do e cabelos platinados espetados que têm simultaneamente uma

aparência meio punk e meio “duendesca”. Depois de apresentar a

pergunta em uma lousa digital, ela espera enquanto seus alunos

teclam suas respostas em dispositivos eletrônicos numerados, co-

nhecidos como clickers.

“O.K., todo mundo já respondeu?”, pergunta ela. “Número 19,

estamos esperando por você!” Apressadamente, 19 digita uma op-

ção e, juntos, Bain e seus alunos repassam as respostas da classe,

agora exibidas na parte inferior da lousa inteligente. “A maioria de

vocês acertou, John Glenn, muito bom.” Ela dá um risinho e balan-

ça a cabeça diante da resposta de três de seus alunos. “Oh, meus

queridos”, diz Bain com uma reprimenda brincalhona. “Khrush-

chev não era um astronauta!”

Bain passa para a próxima pergunta, repetindo rapidamente o

processo de perguntar, responder e explicar, à medida que ela e

seus alunos avançam pela década dos anos 60.

Quando todos respondem corretamente, os alunos levantam as

mãos e mexem os dedos simultaneamente, um gesto exuberante

que chamam “dedos espirituosos”. Este é o caso com a questão so-

bre a Baía dos Porcos: todos acertam.

“Muito bem!”, Bain elogia entusiasmada. “Esse é nosso quinto

‘dedos espirituosos’ hoje!”

Os gracejos na sala de aula de Bain estão a um mundo de dis-

tância da atitude tensa e defensiva em escolas públicas de todo o

país. Desde a aprovação da lei Nenhuma Criança Deixada para

Trás (NCLB, na sigla em inglês), em 2002, a oposição de pais e pro-

fessores à sua determinação de avaliar “toda criança, todos os

anos” da terceira à oitava série, vem se intensifi cando. Um número

crescente de pais está tirando seus fi lhos dos testes estaduais anu-

ais; o epicentro do movimento “opt-out” (“opte não”, em tradução

literal) pode ser o estado de Nova York, onde até 90% dos alunos

em alguns distritos teriam se recusado a fazer o exame de fi m de

ano no semestre passado. Críticos da acentuada ênfase de escolas

americanas em testes reclamam que as avaliações por meio de

exames provocam ansiedade em alunos e professores, transfor-

mando salas de aula em fábricas preparatórias para exames, em

vez de laboratórios de aprendizagem genuína e signifi cativa.

No debate sempre polarizador sobre como estudantes america-

nos deveriam ser educados, a aplicação de testes tornou-se a ques-

tão mais controversa de todas. No entanto, um elemento crucial

tem estado largamente ausente da discussão até agora. Pesquisas

em ciência cognitiva e psicologia mostram que, quando ministra-

dos corretamente, os testes podem ser uma forma excepcional-

mente efi caz de aprender. Submeter-se a provas, e participar de

atividades bem elaboradas antes e após os testes, pode produzir

uma recordação melhor de fatos, assim como um entendimento

mais profundo e complexo que uma educação sem exames. Mas

uma metodologia de avaliação que apoia ativamente a aprendiza-

gem, além de simplesmente avaliar, seria muito diferente do jeito

como escolas americanas aplicam testes atualmente.

O que Bain está fazendo em sua sala de aula é chamado prática

de recuperação. Esse método tem uma bem estabelecida base de

PARA FORMAR O ESTUDANTE DO SÉCULO 21

A fracassada invasão da Baía dos Porcos envolveu os Estados Unidos e qual outro país?A HONDURAS

B HAITI

C CUBA

D GUATEMALA

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suporte empírico na literatura acadêmica, que remonta a quase

100 anos, mas Bain, por desconhecer essas pesquisas, desenvolveu

algo muito similar por si só ao longo de uma carreira de 21 anos

em sala de aula.

“Já me falaram que sou uma professora maravilhosa, o que é

agradável de ouvir, mas ao mesmo tempo sinto a necessidade de di-

zer às pessoas: ‘Não, não sou eu, é o método’”, conta Bain em uma

entrevista após o término de sua aula. “Tateei meu caminho até

essa abordagem e vi que opera tantas maravilhas que tenho vonta-

de de subir no topo de uma montanha e gritar para que todos pos-

sam me escutar: ‘Vocês também deveriam estar fazendo isso!’ Mas

tem sido difícil persuadir outros professores a tentarem”.

Então, há oito anos, ela chegou a Mark McDaniel através

de um conhecido comum. Ele é professor de psicologia na

Universidade Washington, em St. Louis, Missouri, a meia hora

de distância de carro da escola de Bain. McDaniel havia come-

çado a descrever sua pesquisa sobre a prática de recuperação

para Bain quando ela o interrompeu com uma exclamação.

“Patrice disse: ‘Eu faço isso na minha sala de aula! E funcio-

na!’”, relembra McDaniel. Ele prosseguiu para lhe explicar que

o que ele e seus colegas denominam prática de recordação [ou

processo de recuperação de informações] é, essencialmente,

testar. “Costumávamos chamar isso ‘o efeito-teste’ até ficar-

mos espertos e percebermos que nenhum professor ou pai se

envolveria com uma técnica que contivesse a palavra ‘teste’”,

admite McDaniel agora.

A prática de recapitulação, ou recuperação, não emprega testes

como uma ferramenta de avaliação. Pelo contrário, ela os trata

como ocasiões de aprendizagem, o que só faz sentido assim que re-

conhecemos que não entendemos corretamente a natureza de tes-

tar. Consideramos os testes como uma espécie de sonda que

“inserimos na cabeça de um estudante”, um indicador que nos diz

o quanto o nível de conhecimento aumentou ali dentro, quando,

de fato, toda vez que um aluno acessa conhecimento de memória,

essa mesma memória muda. Sua representação mental se torna

mais forte, mais estável e mais acessível.

Por que isso seria assim? Faz sentido, considerando que seria

humanamente impossível lembrarmos de tudo o que encontra-

mos, observa Jeffrey Karpicke, professor de psicologia cognitiva

na Universidade Purdue, em Indiana. Dado que nossa memória é

necessariamente seletiva, a utilidade de um fato ou ideia, como é

demonstrado pela frequência com que fomos levados a recordar

ou recuperá-la, constitui uma base sólida para a seleção. “Nossas

mentes são sensíveis à probabilidade de que precisaremos de co-

nhecimento em algum momento futuro, e se recuperamos uma in-

formação agora, há uma boa chance de que precisaremos dela

novamente”, explica Karpicke. “O processo de resgatar uma me-

mória altera ela mesma em antecipação de demandas que pode-

mos encontrar no futuro.”

Estudos que empregam sistemas de imageamento por resso-

nância magnética funcional do cérebro estão começando a revelar

os mecanismos neurais subjacentes ao efeito-teste. Nas poucas

análises conduzidas até agora, cientistas constataram que acessar

ou recuperar informações da memória, em comparação com sim-

plesmente reestudá-las, produz níveis mais elevados de atividade

em áreas específicas do cérebro. Essas regiões estão associadas à

chamada consolidação, ou estabilização, de memórias e com a ge-

ração de sinais que as tornam prontamente acessíveis mais tarde.

Pesquisadores demonstraram em vários estudos que quanto mais

ativas essas regiões estiverem durante uma sessão inicial de apren-

dizagem, mais bem-sucedida é a recordação dos participantes do

estudo semanas ou meses mais tarde.

De acordo com Karpicke, recordar ou recuperar é a principal

maneira como a aprendizagem acontece. “Recordar informações

que já armazenamos na memória é um evento de aprendizado

mais poderoso do que armazená-las em primeiro lugar”, enfatiza.

“Em última análise, a recuperação é o processo que faz com que

novas memórias se fixem.” A prática da recordação não só ajuda os

alunos a lembrar de informações específicas que resgatam; ela

também melhora a retenção de informações relacionadas que não

foram testadas diretamente. Pesquisadores teorizam que, enquan-

to vasculhamos nossa mente em busca de uma determinada infor-

mação, estamos tentando relembrar; ou seja, acessamos memórias

associadas e, ao fazermos isso, as reforçamos também. A prática

de recuperação também ajuda a evitar que alunos confundam as

matérias que estão aprendendo atualmente com outras que apren-

deram anteriormente, e até parece preparar suas mentes para ab-

sorver o material ainda mais profundamente quando o encontram

novamente depois de serem avaliados (um fenômeno que pesqui-

sadores chamam “aprendizagem potenciada por testes”).

Centenas de estudos demonstraram que a prática da recorda-

ção é melhor para aprimorar a retenção do que praticamente qual-

quer outro método que estudantes poderiam usar. Para citar um

exemplo: em um estudo publicado em 2008 por Jeffrey Karpicke e

seu mentor, Henry Roediger III, da Universidade Washington, os

autores relataram que alunos que se testavam por conta própria

em vocábulos lembravam 80% das palavras mais tarde, ao passo

que os que estudavam os termos lendo-os repetidamente só lem-

bravam de cerca de 30% deles. A prática da recuperação é especial-

mente poderosa em comparação com as estratégias de estudo

favoritas de alunos em geral: destacar textos e reler suas anotações

e livros didáticos; exercícios que uma recente revisão considerou

estarem entre os menos eficientes.

Além disso, testar não se limita apenas a reforçar a memoriza-

ção de fatos isolados. O processo de resgatar informações da me-

mória também promove o que pesquisadores chamam de

aprendizado profundo. Estudantes que praticam a aprendiza-

gem profunda são capazes de fazer inferências e estabelecer co-

nexões entre os fatos que sabem, e são capazes de aplicar seus

conhecimentos em contextos variados (um processo de aprendi-

zagem que cientistas denominam transferência). Em um artigo

publicado em 2011 no periódico Science, Karpicke e sua colega

Janell Blunt, da Universidade Purdue, compararam explicita-

mente a prática de recuperação com uma técnica de estudo co-

nhecida como mapeamento de conceito. Atividade favorecida

por muitos professores como meio de promover o aprendizado

profundo, esse mapeamento pede a alunos que desenhem um

diagrama que ilustra o corpo de conhecimento que estão apren-

dendo com as relações entre conceitos representadas por liga-

ções entre nodos, como estradas que ligam cidades em um mapa.

Page 60: Scientific American Brasil - Setembro 2015

60 Scientifi c American Brasil | Setembro 2015

Em seu estudo, Karpicke e Blunt orientaram grupos de volun-

tários ainda não graduados, 200 ao todo, a ler um trecho extraído

de um livro didático de ciência. Em seguida, um grupo foi solicita-

do a criar um mapa conceitual referindo-se ao texto; o outro tinha

de recuperar, de memória, o máximo de informações que podia do

excerto que haviam acabado de ler. Em um teste dado a todos os

estudantes uma semana mais tarde, o grupo da prática de recupe-

ração foi mais capaz de recordar os conceitos apresentados no tex-

to do que a turma de mapeamento de conceitos. Mais interessante:

o primeiro grupo também se saiu melhor em fazer inferências, ou

tirar conclusões e fazer conexões entre múltiplos conceitos conti-

dos no texto. Karpicke e Blunt concluíram que, em termos gerais, a

prática de recuperação era cerca de 50% mais efi caz para promo-

ver tanto a aprendizagem profunda como factual.

Transferência, a capacidade de aplicar conhecimento aprendi-

do em um contexto a outro, é o objetivo culminante do aprendiza-

do profundo. Em um artigo publicado em 2010, o psicólogo

Andrew Butler , da Universidade do Texas em Austin, demonstrou

que a prática de recuperação promove a transferência melhor do

que a abordagem convencional de estudar por meio de reler. No

experimento de Butler, estudantes se dedicavam à releitura ou à

prática de recordação após lerem um texto que pertencia a um

“domínio de conhecimento”, nesse caso, o uso de ondas sonoras

por morcegos para se orientar. Uma semana depois, os alunos fo-

ram solicitados a transferir o que haviam aprendido sobre morce-

gos para um segundo domínio de conhecimento: a utilização

navegacional de ondas sonoras por submarinos. Os estudantes

que tinham se sabatinado sobre o texto original sobre morcegos

foram mais capazes de transferir seu aprendizado para a situação

dos submarinos.

Por mais robustas que sejam essas descobertas, até recente-

mente elas foram feitas quase exclusivamente em laboratórios,

com estudantes universitários como objetos de estudo. McDa-

niel queria há muito tempo aplicar práticas de recuperação em

escolas no mundo real, mas obter acesso a salas de aula K-12 (a

somatória dos anos de ensino fundamental e médio no sistema

educacional básico dos Estados Unidos e Canadá) foi um desafi o.

Com a ajuda de Bain, McDaniel e dois de seus colegas da Univer-

sidade Washington, Roediger e Kathleen McDermott, criaram

um ensaio randômico controlado na Columbia Middle School

que, em última análise, envolveu nove professores e mais de

1.400 alunos. No decorrer do experimento, alunos das sexta, séti-

ma e oitava séries estudaram ciências e estudos sociais de uma

de duas maneiras: 1) o material era apresentado uma vez e de-

AVALIAÇÃO DO MEMBRO DE EQUIPEO teste mais observado do mundo, o PISA, se aventura em um novo domínio: mensagens instantâneas – Peg Tyre

Quando dezenas de milhares de adolescen-tes de 15 anos de todo o mundo se sentarem diante de seus computadores para fazer o exa-me Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA, na sigla em inglês) neste ano, eles serão testados em leitura, matemática e ciên cias. Os estudantes também terão de resolver uma nova e controversa série de questões desen-volvidas para medir “habilidades colaborativas para solucionar problemas”. Em vez de respostas curtas ou explicações mais longas, o examinando registrará resultados de jogos, resolverá quebra--cabeças e realizará experimentos com a ajuda de um parceiro virtual com o qual poderá se comu-nicar ao digitar texto em uma caixa de bate-papo (chat). Embora o novo domínio de teste ainda seja experimental, autoridades do PISA acreditam que os resultados desses problemas inéditos levarão governos a equipar melhor suas populações jo-vens para que prosperem na economia global.

Os críticos da nova modalidade alegam que o PISA deu um passo atrás em um debate antigo e cáustico sobre se habilidades como raciocínio crí-tico e colaboração podem ser ensinadas e se o podem independentemente do conteúdo.

Em vista do ritmo da inovação tecnológica, as

escolas precisam se adaptar, e o novo domínio fornece a essas instituições um roteiro para fazer isso, explica Jenny Bradshaw, gerente de projeto sênior do PISA, que supervisiona o teste: “Traba-lhar com parceiros invisíveis, especialmente on-li-ne, se tornará uma habilidade-pilar para o suces-so de carreira. Cada vez mais, essa será a forma como o local de trabalho e o mundo funcionarão”.

Trata-se de um importante desvio do exame de 15 anos de existência, dirigido pela Organiza-ção para a Cooperação e Desenvolvimento Eco-nômico (OCDE). Desde sua estreia em 2000, o PISA mediu a capacidade de alunos de aplicar lei-tura, matemática e ciência a situações da vida real. Os rankings do PISA e as manchetes que eles geram tornaram-se rapidamente um ponto crítico, ou de referência para formuladores de po-líticas preocupados com a competitividade inter-nacional. O ranking do PISA estimulou, pelo me-nos em parte, uma grande variedade de esforços de reformas escolares nos Estados Unidos e na Europa. O desempenho medíocre dos EUA no

em 2009, que os estudantes do país precisam “avançar do meio para a parte superior do ‘bando’ em ciências e matemática” em uma década.

Em 2008, os gigantes da indústria de tecnolo-gia Cisco, Intel e Microsoft, preocupados com o fato de receberem candidatos a empregos mal

nanciar suas próprias pesquisas através de um grupo chamado Avaliação e Ensino de Habilida-des do Século 21 (ATC21S, na sigla em inglês) para

do século 21”; ou seja, basicamente a capacidade de raciocinar crítica e criativamente, trabalhar em cooperação com outros e se adaptar à crescente incorporação da tecnologia em negócios e na so-ciedade. Durante anos, o grupo persuadiu o PISA a começar a testar estudantes de todo o mundo em algumas dessas habilidades, e encontrou aca-dêmicos para fornecer uma estrutura conceitual de pesquisa para como isso poderia ser feito.

Há três anos, o exame PISA incluiu questões destinadas a avaliar as habilidades de alunos de 15 anos de todo o mundo para resolver proble-mas. (De acordo com autoridades do PISA os es-tudantes chineses são bons solucionadores de problemas. Israelenses, nem tanto. E os america-nos se situam em algum lugar na faixa mediana.) No entanto, os formuladores do teste decidiram que uma economia global conectada requer um

solução de problemas em grupo mediada pela in-ternet. Por essa razão, o PISA deste ano escrutina-rá a habilidade de estudantes de 51 países de re-solverem problemas em colaboração.

As próprias questões do teste são alternada-mente divertidas e frustrantes. Embora pesquisa-

PARA FORMAR O ESTUDANTE DO SÉCULO 21

Page 61: Scientific American Brasil - Setembro 2015

www.sciam.com.br 61

pois os professores o revisavam três vezes com os alunos; 2) o

material era apresentado uma vez, e os estudantes eram sabati-

nados sobre o assunto três vezes (usando clickers como os da

atual sala de aula de Bain).

Quando os resultados dos testes regulares de matérias indivi-

duais foram calculados, a diferença entre as duas abordagens fi-

cou clara: os alunos obtiveram a nota média C+ (de 5,85 a 6,68 no

Brasil) no material que haviam revisado e A- (de 8,34 a 9,17) no

que tinha sido sabatinado (testado em aula). Em um teste de

acompanhamento aplicado oito meses depois, os alunos ainda se

lembravam muito melhor de informações para as quais tinham

sido testados do que das que só tinham revisado.

“Eu sempre havia considerado testes como uma forma de ava-

liar, não como uma forma de aprender, então estava cética de iní-

cio”, admite Andria Matzenbacher, ex-professora da escola

Columbia, que agora trabalha como designer instrucional. “Mas fi-

quei impressionada com a diferença que a prática de recuperação

teve no desempenho dos alunos.” Mas Bain, por exemplo, não fi-

cou surpresa. “Eu sabia que esse método funciona, mas foi bom vê-

-lo ser comprovado cientificamente”, observa ela. McDaniel,

Roediger e Mc Dermott acabaram estendendo o estudo à Colum-

bia High School (de ensino médio, antigo colegial), onde a prática

dores do ATC21S acreditem que seja melhor tes-tar problemas colaborativos através de uma coo-peração real, os examinandos do PISA trabalharão com uma parceira virtual apelidada “Abby”. Juntos, o aluno e Abby deverão, por exemplo, determinar as melhores condições para peixes que vivem em um aquário, em uma situa-ção em que o testador controla a água, o cenário e a iluminação, e Abby regula alimentos, popula-ção de peixes e temperatura. Para resolver a tare-fa, o aluno precisa construir um consenso sobre como resolver o problema, responder a preocu-pações, esclarecer mal-entendidos, compartilhar

informações de ensaios e sintetizar os resultados para chegar à resposta correta.

Muitos críticos argumentam que novos domí-nios são um equívoco. “Existe um conjunto inde-pendente de habilidades – a colaboração para re-solver problemas –, que é transferível entre domí-nios de conhecimento?”, pergunta Tom Loveless, pesquisador do Instituto Brookings. “A solução deproblemas entre dois biólogos é igual à solução entre dois historiadores? Ou ela é diferente? Edu-

igual, mas nós simplesmente não sabemos isso.”

Sistemas escolares que querem preparar estu-dantes para o futuro deveriam ajudá-los a alcan-çar pleno domínio de matemática complexa,ciência e alfabetização em vez de investir recursos na promoção de conceitos nebulosos.

Jenny Bradshaw, do PISA, reconhece que per-sistem questões sobre os domínios inovadores, mas argumenta que ela e sua equipe acreditam tratar-se de um experimento que vale a pena ten-tar. Enquanto pesquisadores do PISA conduzem estudos de validação e concentram grupos na so-lução de problemas em colaboração, outros já es-tão trabalhando na próxima meta do PISA. Em 2018, informa ela, sua equipe já terá divisado um jeito válido para medir a “competência global”.

Como em educação é verdade que o que é testado é ensinado, o ATC21S está se preparando para a ansiedade internacional dos países mal co-locados no ranking ao oferecer vídeos de salas de aula onde, segundo os pesquisadores, professores e alunos estão fazendo tudo certo. O grupo tam-bém ofereceu um Massivo Curso Aberto On-line (MOOC, em inglês) para treinar professores em como levar às suas salas de aula a solução cola-borativa de problemas; 30 mil professores se ins-creveram no programa, e 25% deles o concluíram.

Peg Tyre é jornalista especializada em assuntos de educação e autora do livros The good school e The trouble with boys. Ela também é diretora de estratégia da Fundação Edwin Gould, que investe em entidades de apoio à educação.

Quanto tempo você gastou em revisões com cada um dos seguintes itens:

• Lendo anotações de aula? _____ MINUTOS

• Refazendo antigos problemas de lição de casa? _____ MINUTOS

• Trabalhando em problemas adicionais? _____ MINUTOS

• Lendo o livro? _____ MINUTOS

Agora que revisou seu exame, estime a porcentagem de pontos que perdeu devido a cada um dos seguintes fatores:• ___ % POR NÃO ENTENDER UM CONCEITO

• ___ % POR NÃO SER CUIDADOSO (I.E., ERROS DE DISTRAÇÃO)

• ___ % POR SER INCAPAZ DE FORMULAR UMA ABORDAGEM PARA UM PROBLEMA

• ___ % POR OUTRAS RAZÕES (POR FAVOR, ESPECIFIQUE)

Page 62: Scientific American Brasil - Setembro 2015

62 Scientifi c American Brasil | Setembro 2015

de sabatinas em aula produziu resultados igualmente impressio-

nantes. Em um esforço para tornar a prática de recuperação uma

estratégia comum nas salas de aula em todo o país, a equipe da

Universidade Washington (com a ajuda da pesquisadora associa-

da Pooja K. Agarwal, agora na Universidade Harvard) desenvolveu

um manual para professores intitulado Como Usar a Prática de

Recuperação para Melhorar a Aprendizagem (How to Use Retrie-

val Practice to Improve Learning).

Mesmo sendo apoiados pelo peso das evidências, no entan-

to, os defensores da prática de recuperação ainda lutam contra

uma reação refl exivamente negativa à aplicação de testes entre

muitos professores e pais. Eles também enfrentam uma obje-

ção mais ponderada, que argumenta mais ou menos o seguinte:

os estudantes americanos já são testados excessivamente, com

frequência muito maior que alunos de outros países, como a

Finlândia e Cingapura, que se classifi cam regularmente bem

mais à frente dos americanos em avaliações internacionais. Se

testar é um jeito tão ótimo de aprender, por que nossos alunos

não estão se saindo melhor?

Marsha Lovett tem uma resposta na ponta da língua para essa

pergunta. A diretora do Centro Eberly para Excelência no Ensino e

Inovação Educativa, da Universidade Carnegie Mellon, é especia-

lista em “metacognição”, a capacidade de pensar sobre a nossa

própria aprendizagem, de estar ciente do que sabemos e não sabe-

mos, e de usar essa consciência para gerenciar com efi ciência o

processo de aprendizagem.

Sim, diz Lovett, estudantes americanos fazem muitos tes-

tes. É o que acontece depois, ou, mais precisamente, o que não

acontece, que faz com que esses testes deixem de funcionar

como oportunidades de aprendizagem. Os alunos frequente-

mente recebem poucas informações sobre o que acertaram e

erraram. “Esse tipo de retroalimentação item por item é es-

sencial para o aprendizado, e nós estamos jogando essa opor-

tunidade fora”, critica. Além disso, os alunos raramente são

instados a refl etir de forma ampla e abrangente sobre sua pre-

paração para os exames e seu desempenho neles. “Muitas ve-

zes eles só olham de relance para a nota e depois enfi am a

prova em algum lugar e nunca mais olham para ela”, observa

Lovett. “Mais uma vez, essa é uma oportunidade de aprendi-

zagem realmente importante que estamos perdendo.”

Há alguns anos, Lovett descobriu um jeito para fazer alunos re-

fl etirem após uma prova. Ela chama seu método “exam wrapper”,

ou “invólucro de exame”. Quando o professor devolve um teste

avaliado com nota a um aluno, junto com ele vem, literalmente,

um pedaço de papel enrolado em volta da prova em si. Nesse papel

há uma lista de questões: um exercício curto que os estudantes de-

vem completar e devolver. O invólucro que Lovett desenvolveu

para um exame de matemática incluiu questões como:

Com base nas estimativas acima, o que você fará de modo dife-

rente quando se preparar para o próximo teste? Por exemplo: você

mudará seus hábitos de estudo ou tentará aprimorar habilidades

específi cas? Por favor, seja específi co. Além disso, o que podemos fa-

zer para ajudar?

A ideia, explica ela, é fazer com que os alunos refl itam sobre o

que não sabiam ou não entenderam, por que não conseguiram

captar essa informação e como poderiam se preparar de modo

mais efi ciente antes do próximo teste. Ela vem promovendo a

utilização de invólucros de exames junto aos membros do corpo

docente da Universidade Carnegie Mellon há alguns anos, e vá-

rios professores, especialmente os de ciências, incorporaram a

técnica em seus cursos. Eles entregam “invólucros” junto com

exames graduados, os recolhem assim que foram preenchidos e,

mais esperto que tudo, devolvem os papéis na época em que os

alunos estão se preparando para a próxima prova.

Essa prática faz uma diferença? Em 2013, Lovett publicou

um estudo de invólucros de exames em forma de um capítulo

no volume editado Using refl ection and metacognition to im-

prove student learning [Usando refl exão e metacognição para

melhorar a aprendizagem de alunos]. De acordo com sua análi-

se, as habilidades metacognitivas de alunos em classes que uti-

lizavam os invólucros se desenvolveram melhor ao longo do

semestre do que as de seus colegas em cursos que não se valiam

deles. Além disso, uma pesquisa de fi m de semestre constatou

que entre os estudantes que receberam invólucros de exames,

mais da metade citou mudanças específi cas que haviam feito

em suas abordagens de aprender e estudar como resultado do

preenchimento do papel.

A prática de usar invólucros de exames está começando a

se espalhar para outras universidades e escolas K-12. Lorie Xi-

kes leciona na escola de ensino médio Riverdale High School,

em Fort Myers, na Flórida, e tem usado os papéis em sua aula

de biologia avançada (AP Biology é um curso para alunos que

querem seguir carreira nesse campo). Quando ela devolve

provas, o papel do invólucro inclui questões como:

Com base em suas respostas às perguntas acima, cite pelo me-

nos três coisas que você fará de maneira diferente ao se preparar

para o próximo exame. SEJA ESPECÍFICO.

Existe mais um aspecto nos testes estaduais padronizados que os impede de serem empregados de forma mais

perguntas que formulam são predominantemente de natureza

inevitavelmente, a um aprendizado

PARA FORMAR O ESTUDANTE DO SÉCULO 21

Page 63: Scientific American Brasil - Setembro 2015

www.sciam.com.br 63Gráfico de Jen Christiansen

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“Alunos geralmente só querem saber sua nota, e nada mais”, diz

Xikes. “Fazer com que preencham o papel do invólucro do exame

faz com que parem e reflitam sobre como se preparam para um

teste e se a sua abordagem está funcionando ou não para eles.”

Além de distribuir invólucros de exames, Xikes também dedica

tempo de aula para revisar a prova, questão por questão, uma re-

troalimentação que ajuda os estudantes a desenvolver a capacida-

de crucial de “monitoramento metacognitivo”; isto é, controlar o

que sabem e o que ainda precisam aprender. Pesquisas sobre a

prática de recuperação mostram que testar pode identificar lacu-

nas específicas nos conhecimentos dos alunos, além de “esvaziar”

a excessiva e generalizada confiança a que são suscetíveis, mas só

se um feedback imediato é fornecido como um corretivo.

Com o tempo, a reiterada exposição a esse ciclo de testes-retro-

alimentação pode motivar alunos a desenvolver a capacidade de

monitorar seus próprios processos mentais. Estudantes de origem

abastada, que recebem uma educação privilegiada, de primeira li-

nha, podem adquirir essa habilidade naturalmente por uma ques-

tão de educação, mas essa mesma capacidade muitas vezes é

inexistente entre estudantes de baixos níveis de renda, que fre-

quentam escolas fracas, que lutam por sua sobrevivência, acenan-

do com a promissora possibilidade de que a prática de recuperar

poderia, de fato, começar a fechar as lacunas de desempenho entre

os mais e menos favorecidos.

É exatamente isso o que James Pennebaker e Samuel Gosling,

professores da Universidade do Texas em Austin, constataram

quando instituíram sabatinas diárias no amplo curso de psicolo-

gia que lecionam juntos. Os testes eram postados on-line, com um

software que informava os alunos se tinham respondido a pergun-

ta corretamente assim que davam uma resposta. As notas obtidas

pelos 901 estudantes do curso, que incluía quizzes, ou questioná-

rios diários foram, em média, cerca de meia nota mais altas que as

obtidas por um grupo de comparação de 935 ex-alunos de Penne-

baker e Gosling, que haviam feito um curso de concepção mais tra-

dicional sobre o mesmo assunto, ou material.

Surpreendentemente, os estudantes que faziam os testes diá-

rios em sua aula de psicologia também tiveram desempenho me-

lhor em seus outros cursos durante o semestre em que estavam

matriculados na aula de Pennebaker e Gosling, assim como nos se-

mestres subsequentes, o que sugere que as frequentes sabatinas

acompanhadas de uma retroalimentação tiveram o efeito de me-

lhorar suas habilidades gerais de autorregulação.

O aspecto que foi mais empolgante para os professores é que os

questionários diários levaram a uma redução de 50% na lacuna de

conhecimentos, medidos por meio de notas, entre alunos de dife-

rentes classes sociais. “A repetida aplicação de testes é uma pode-

rosa prática que reforça, ou melhora diretamente as habilidades

de aprendizagem e raciocínio, e pode ser especialmente útil para

estudantes que começam com uma formação acadêmica mais fra-

ca”, observa Gosling.

Ele e Pennebaker, que publicaram com o estudante de gradua-

ção Jason Ferrell, da Universidade do Texas, suas constatações so-

bre os efeitos de sabatinas diárias em 2013 no periódico científico

PLOS ONE, atribuíram ao “feedback rápido, direcionado e estrutu-

rado” que os estudantes receberam a melhoria da eficácia de testes

repetidos. E é nisso que reside um dilema para alunos de escolas

públicas americanas, que fazem em média 10 testes padronizados

Frases em língua estrangeira memorizadas corretamente(porcentagem, uma semana após a conclusão do período integral de estudos e testes)

0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100

Participantes estudaram e foram testados sobre toda a listaem cada intervalo de estudo e exame

Participantes foram testados sobre toda a listaem cada exame, mas frases corretamente memorizadas foramsubtraídas de estudos posteriores

Participantes estudaram toda a lista, em cada intervalode estudo, mas frases corretamente memorizadas foramsubtraídas de testes posteriores

Frases lembradas corretamente foram tiradas deestudos e testes posteriores

RECAPITULAÇÃO

Aproximadamente quanto tempo você passou se preparando para o teste? (SEJA HONESTO)

TV/rádio/computador estavam ligados? Você esteve em qualquer site de mídia social enquanto estudava? Você estava jogando videogames? (SEJA HONESTO)

Agora que revisou o teste, marque as

• APLICAR DEFINIÇÕES ________

• FALTA DE COMPREENSÃO DE CONCEITOS ______

• ERROS DESCUIDADOS ________

• LER/INTERPRETAR UMA TABELA OU GRÁFICO ________

Testes que ensinam Sabatinas, ou quizzes, podem fazer mais que avaliar a aprendiza-

gem, elas podem reforçá-la. Em um estudo elaborado para comparar a diferença de desempenho entre estudar e testar, publicado em 2008 no periódico Science, psicólogos pediram a quatro grupos de estudan-tes universitários que aprendessem 40 palavras do vocabulário suaíli. O primeiro grupo estudou os vocábulos e foi testado repetidamente. Os outros grupos falaram as palavras que tinham memorizado por meio de estudos posteriores ou testes, ou ambos. Uma semana depois, os estudantes que foram repetidamente sabatinados sobre todas as palavras lembraram 80% delas, ao passo que os voluntários que ape-nas estudaram as palavras só recordaram cerca de 30% dos vocábulos.

Benefícios claros de testes repetidos

Page 64: Scientific American Brasil - Setembro 2015

64 Scientifi c American Brasil | Setembro 2015

por ano da terceira à oitava séries, de acordo com um recente estu-

do realizado pelo Centro para o Progresso Americano.

Ao contrário dos exames elaborados e aplicados pelos professo-

res e docentes perfi lados aqui, as provas padronizadas geralmente

são vendidas às escolas por editoras comerciais. As notas desses

testes frequentemente chegam semanas ou até meses depois de te-

rem sido feitos pelos alunos. E para manter o sigilo e a segurança

das questões desses testes, e poder usá-las novamente em provas

futuras, as empresas especializadas nesses exames não fornecem

uma retroalimentação para todas as questões, mas apenas uma

nota numérica sem grandes explicações.

Existe mais um aspecto nos testes estaduais padronizados

que os impede de serem empregados de forma mais efi caz como

oca siões de aprendizagem. As questões que formulam são predo-

minantemente de natureza superfi cial, o que leva, quase inevita-

velmente, a um aprendizado igualmente superfi cial.

Se os próprios testes estaduais atualmente em uso nos Esta-

dos Unidos fossem avaliados de acordo com a mesma difi culdade

e a mesma profundidade das questões que apresentam, quase to-

dos seriam reprovados. Essa é a conclusão a que chegaram Kun

Yuan e Vi-Nhuan Le, ambas então cientistas comportamentais

na RAND Corporation, um think tank sem fi ns lucrativos.

Em um relatório publicado em 2012, Yuan e Le avaliaram os

testes de matemática e língua inglesa oferecidos por 17 estados,

classifi cando cada questão de acordo com seu desafi o cognitivo

para os alunos testados. Para isso, as duas pesquisadoras da

RAND usaram uma ferramenta chamada Webb’s Depth of Know-

ledge (Profundidade de Conhecimento de Webb), abreviado

DOK, criada por Norman Webb, cientista sênior do Centro para

Pesquisa Educacional de Wisconsin, que identifi ca quatro níveis

de rigor mental, de DOK1 (recordação simples), a DOK2 (aplica-

ção de habilidades e conceitos), até DOK3 (raciocínio e inferên-

cia), e DOK4 (planejamento e investigação estendida).

A maioria das perguntas das provas estaduais examinadas por

Yuan e Le estava nos níveis DOK1 ou DOK2. As autoras utiliza-

ram o nível DOK4 como ponto de referência para as questões que

medem o aprendizado mais profundo e, por este padrão, os testes

estão falhando completamente. Apenas de 1% a 6% dos alunos

eram avaliados quanto ao seu aprendizado mais profundo em lei-

tura através de testes estaduais, relatam as pesquisadoras; 2% a

3% eram avaliados em aprendizado mais profundo em redação;

e zero % em aprendizado mais profundo em matemática.

“O que testes medem é importante porque o que consta neles

tende a impulsionar a instrução”, salienta Linda Darling-Ham-

mond, professora emérita na Escola de Educação Graduada da

Universidade Stanford e autoridade nacional em aprendizagem e

avaliação. Ela frisa que isso é especialmente verdadeiro quando há

recompensas e punições associadas aos resultados dos testes,

como é o caso sob a lei Nenhuma Criança Deixada para Trás e as

medidas de “responsabilidade” dos próprios estados.

De acordo com Darling-Hammond, as disposições da lei NCLB

efetivamente forçaram os estados a empregar testes de múltipla

escolha de baixo custo, que podem ser assinalados por máquina, e

é praticamente impossível que eles meçam o aprendizado profun-

do, argumenta ela. Mas outros tipos de testes poderiam fazer isso.

Em colaboração com seu colega de Stanford Frank Adamson, Dar-

ling-Hammond escreveu o livro Beyond the bubble test (Além do

teste de bolinhas, em tradução livre), de 2014, que descreve uma vi-

são muito diferente de avaliação: testes que apresentam perguntas

“abertas”, cujas respostas são avaliadas por professores e não má-

quinas; que estimulam os alunos a desenvolver e defender um ar-

gumento; e que pedem aos examinandos que realizem um

experimento científi co ou elaborem um relatório de pesquisa.

Darling-Hammond salienta que, na década de 90, alguns esta-

dos americanos haviam começado a ministrar testes desse tipo,

mas que esse esforço acabou com a aprovação da lei Nenhuma

Criança Deixada para Trás. Ela reconhece que o interesse por tes-

tes mais sofi sticados também acabou devido a preocupações de lo-

gística e custo.

Ainda assim, avaliar os alunos dessa forma não é um sonho

fantástico: outros países, como a Inglaterra e a Austrália, já estão

fazendo isso. “Seus alunos estão realizando o trabalho de cientis-

tas e historiadores reais, enquanto os nossos estão preenchendo

bolinhas”, queixa-se Darling-Hammond. “É lamentável.”

Mas ela vê alguns motivos para otimismo: uma nova geração

de testes está sendo desenvolvida nos EUA para avaliar com que

taxa de sucesso os estudantes atendem aos critérios dos Common

Core State Standards, padrão baseado em um conjunto de pontos

de referência acadêmicos em alfabetização e matemática que fo-

ram adotados por 43 estados.

Dois desses testes, o Consórcio Smarter Balanced Assessment

(Smarter Balanced) e o Parceria para Avaliação de Prontidão para

a Faculdade e Carreiras (PARCC, na sigla em inglês) parecem pro-

missores como provas de aprendizado profundo, opina Darling-

-Hammond, apontando para uma recente avaliação conduzida

por Joan Herman e Robert Linn, pesquisadores no Centro Nacio-

nal de Pesquisa em Avaliação, Padrões, e Avaliação de Estudantes

(CRESST), da Universidade da Califórnia em Los Angeles.

Herman salienta que os dois testes pretendem enfatizar ques-

tões de nível DOK2 e acima de profundidade de conhecimentos de

Webb, com pelo menos um terço da pontuação total possível de

um estudante vindo de questões de nível DOK3 e DOK4. “O PARCC

e o Smarter Balanced podem não ir tão longe quanto gostaríamos”,

admitiu Herman em uma postagem em seu blog no ano passado,

mas “eles provavelmente produzirão um grande passo à frente”.

Se os próprios testes estaduais atualmente em curso nos Estados Unidos fossem avaliados de acordo com a mesma

profundidade das questões que apresentam, quase todos seriam reprovados.

PARA FORMAR O ESTUDANTE DO SÉCULO 21

Page 65: Scientific American Brasil - Setembro 2015

www.sciam.com.br 65

“Esta obra produzirá certamente, com

o tempo, uma revolução nos espíritos, e

espero que os tiranos, os opressores, os

fanáticos e os intolerantes não ganhem

nada com isto.” Com essas palavras em

uma carta à sua amiga e confidente

Sophie Volland, em setembro de 1762, às

vésperas da publicação do oitavo volume

de sua Enciclopédia, o escritor e filósofo

francês Denis Diderot (1715-1797) sinteti-

zou o espírito desse seu trabalho que, em

coautoria com o físico e matemático Jean

d’Alembert (1717-1783), se tornou um dos

principais ícones do Iluminismo.

A ideia de compilar conhecimentos em

obras preparadas especificamente para

esse fim já havia sido posta em prática

desde a Antiguidade greco-romana, inclu-

sive por Aristóteles (c. 384-322 a.C.). O pri-

meiro projeto efetivamente proposto em

moldes enciclopédicos só veio a ser for-

mulado no início do século 17 pelo filósofo

inglês Francis Bacon (1561-1626) em seu

livro Sobre a profi ciência e o avanço do

conhecimento divino e humano (1605).

O projeto de Bacon inspirou a produ-

ção de obras como o Dicionário histórico

e crítico (1697), do francês Pierre Bayle

(1647-1706), e a Ciclopédia ou dicionário

universal de artes e ciências (1728), do

inglês Ephraim Chambers (1680-1740).

A iniciativa de elaborar a Enciclopé-

dia surgiu da ideia de publicar em fran-

cês a Ciclopédia – que chegou a ser edita-

da até o fi nal do século 19. O convite para

traduzir a obra de Chambers foi feito a

Diderot pelo editor parisiense André-

-François Le Breton. Depois de muitas

manifestações do pensador ao editor, o

projeto editorial foi totalmente reformu-

lado, passando de uma tradução à elabo-

ração de uma obra original.

Entre as primeiras exigências de Dide-

rot a Breton, destacou-se “a escolha dos

colaboradores segundo seus conhecimen-

tos, liberdade completa para os autores e

independência diante dos poderes consti-

tuídos”, conforme destacou Maria das

Graças de Souza, professora de filosofia da

USP, na introdução à edição brasileira, da

qual é também uma das tradutoras.

A publicação da Enciclopédia começou

em 1751. A elaboração da obra contou com

o trabalho de colaboradores, entre eles

intelectuais então já consagrados, como

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Voltai-

re (1694-1778), Montesquieu (1689-1755) e

o médico e fi lósofo Louis de Jacourt (1704-

1779), autor de cerca de um quarto dos

verbetes de toda a coleção.

A obra também se caracterizou por

seu projeto, fundado nos ideais ilumi-

nistas de valorização da razão e de

reforma da organização da sociedade,

baseada no poder da religião e do abso-

lutismo e do conhecimento herdado da

tradição medieval.

Até 1772 foram publicados 35 volumes,

cerca de metade deles com ilustrações.

Publicada em cinco volumes – Dis-

curso preliminar, O sistema dos conhe-

cimentos, As ciências da natureza, Polí-

tica e Sociedade e artes –, a edição

brasileira também traz 170 do total de

cerca de 600 imagens da obra original.

Na nova versão as gravuras estão nos

mesmos tomos em que estão os verbetes

aos quais se referem.

Além do importante trabalho de intro-

dução e contextualização da obra – por

meio de textos dos professores da USP

Maria das Graças de Souza, Pedro Paulo

Pimenta e Franklin de Matos –, outro pon-

to forte da edição brasileira é a versão

bilíngue (francês-português) do “Discurso

preliminar dos editores”, redigido por

d’Alembert, que está no primeiro volume.

Mais que uma obra de difusão do

conhecimento à disposição de cada cida-

dão, e que um baluarte de combate ao

absolutismo e ao pensamento medieval, a

Enciclopédia é também o ponto de encon-

tro desse espírito de libertação com um

dos melhores estilos literários de crítica e

do exercício vigoroso, inteligente e criati-

vo da razão. – Maurício Tuff ani

Enciclopédia, ou dicionário razoado das ciências, das artes e dos ofíciosDenis Diderot e Jean d’Alembert (organização de Pedro Paulo Pimenta e Maria das Graças de Souza). Editora Unesp. 5 volumes. 2015. Preço: R$ 78,00 cada volume.

LIVROS

A enciclopédia que mudou o curso da históriaObra dirigida por Diderot e d’Alembert sob a opressão absolutista e religiosa ganha tradução brasileira

“... POIS A ENCICLOPÉDIA DEVE TUDO AOS TALENTOS, NADA AOS TÍTULOS, ELA É A

HISTÓRIA DO ESPÍRITO HUMANO, E NÃO DA

VAIDADE DOS HOMENS.” (JEAN D’ALEMBERT)

Page 66: Scientific American Brasil - Setembro 2015

Gráfi co de Nigel Hawtin

Bactéria resistente no estômago Uma cepa difícil de combater de Shigella

Tipos de bactérias que podem causar diarreia, como nas intoxi-

cações alimentares, nos espreitam de todos os lados. Microrganis-

mos como Escherichia coli e Shigella podem ser facilmente trans-

mitidos em viagens internacionais e lugares como creches, onde é

difícil manter a limpeza o tempo todo. Em abril os Centros para

Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC, na

sigla em inglês) registraram um surto de Shigella sonnei que se

tornou resistente à ciprofl oxacina – um dos últimos antibióticos

na forma de comprimido capaz de matar esse patógeno. Pesquisa

da Scientifi c American mostra que a preocupante cepa continua

circulando no país um ano após seu aparecimento.

Os CDC confi rmaram 275 casos de Shigella resistente à cipro-

fl oxacina entre maio de 2014 e maio de 2015 e liberaram dados um

pouco mais detalhados sobre ocorrências confi rmadas em cada

estado à Scientifi c American (gráfi cos abaixo). Embora pare-

çam baixos, os números quase certamente representam apenas

uma pequena fração dos casos de bactérias resistentes a esse

medicamento. Todas as infecções por Shigella devem ser notifi ca-

das aos CDC, mas muitas pessoas contaminadas não vão ao médi-

co. E aquelas que vão nem sempre são submetidas a exames para

verifi car a presença de Shigella e muito menos a resistência ao

medicamento. – Rebecca Harrington

66 Scientifi c American Brasil | Setembro 2015

CIÊNCIA EM GRÁFICO

1406

11

0 12 1

DAKOTADO NORTE

36417 0†

DAKOTA DO SUL

6790 0†

CIDADE DENOVA YORK

3459 0†

CAROLINADO NORTE

ALABAMA0†

4010

ARIZONA

0†

60425

ARKANSAS131

1,042

12

CALIFÓRNIA

267

COLORADO

686 1

DELAWARE

391

WASHINGTON D.C.

2,045

73

0†

FLÓRIDA

83927

1

GEÓRGIA

291

HAVA͇

110 1

IDAHO

1,277

371

INDIANA

1530

IOWA‡

610 0†

KANSAS

0383

0†

KENTUCKY

116 2

LOUISIANA

0 25 0†

MAINE

62726

MARYLAND

451622

MASSACHUSETTS

2393

7

MICHIGAN

40 0

MINNESOTA

1546 0†

MISSISSIPPI

1,405

200†

MISSOURI

4450

MONTANA

0220

0†

NEBRASKA

360 2

NEVADA

10 7

NEW HAMPSHIRE

30289

NOVA JERSEY

0 59 0†

NOVO MÉXICO

3591 1

NOVA YORK

57419

0†

OHIO

1964 0†

OKLAHOMA

432 3

OREGON

182034

PENSILVÂNIA

7210

RHODE ISLAND

1809 1

CAROLINA DO SUL

0†

62523

TENNESSEE2,652

33

2

TEXAS

311 1

UTAH

40 0†

VERMONT

2042 6

VIRGÍNIA

11671

CONNECTICUT

778

02

ILLINOIS

150 3

PORTO RICO

1222 5

WASHINGTON

120 2

VIRGÍNIAOCIDENTAL

3367 2

WISCONSIN

30 20

WYOMING

Shigella(total cumulativo por semana*)

(24 de maio de 2014 –1º de maio de 2015)

24 de maiode 2014

3 de maiode 2015

0†40

ALASCA

Casos de Shigella em alta

FON

TE: C

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OS

PARA

CO

NTR

OLE

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