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5a edição memória Se a me falha não Ilustrações Suppa

Se a memoria nao me falha

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Page 1: Se a memoria nao me falha

5a edição

me m ó riaSe a

me fal hanão

Ilustrações

Suppa

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© Herdeiros de Sylvia OrthofIlustrações © 2012 by Suppa

Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela Editora Nova FroNtEira ParticiPa-çõEs s.a. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a permissão do detentor do copirraite.

Editora Nova FroNtEira ParticiPaçõEs s.a.Rua Nova Jerusalém, 345 – Bonsucesso – 21042-235Rio de Janeiro – RJ – BrasilTel.: (21) 3882-8200 – Fax: (21)3882-8212/8313

Nota de Luiz Raul Machado:Fui editor de Sylvia Orthof e ela sempre me pedia para consertar vírgulas e gramatiquices. Tomei a liberdade de, nesta nova edição, mexer numas reticências e maiúscu-las. Ela deixaria.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

Orthof, Sylvia, 1932-1997Se a memória não me falha / Sylvia Orthof

; ilustrações Suppa. - [5.ed.]. - Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2012. 96p. : il. ; 24 cm ISBN 978-85-209-3020-5 1. Literatura infantojuvenil brasileira. I. Suppa (Ilustradora). II. Título.

CDD: 028.5

CDU: 087.5

O88s[5.ed.]

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Sum á rioÀ procura de um nome, 7

O primeiro beijo, 11

Os bailes e os etc., 17

Por quê, hein, mãe?, 23

Villa-Lobos, Getúlio e a Independência em festa, 29

As aulas disso e daquilo, 39

De como foi, vista por mim, a Segunda Guerra Mundial,

credo!, 51

A vida é de morte, 63

Trancada no banheiro, 71

Ao sabor dos lembretes... ou se a memória não me falha..., 79

Cara de palhaço, 85

A alface do Cuca, 91

Alcachofra, ai, alcachofras!, 95

Cacos e mais cacos, 101

Enjoei de escrever, tchau!, 105

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Para dona lídia,

que foi minha amiga

num tempo de adolescente recordação.

Hoje, dona Lídia mora numa casa

feita de lembranças,

ali, na esquina do Cometa Halley.

Sempre-viva.

Para o sempre-vivo

paschoal carlos magno,

a quem devo o meu início de

caminho no teatro, e que foi

um amigo, verdadeiro.

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À p r o c u ra de um n ome

Fiquei um tempão matutando:

— Sylvia, qual vai ser o nome deste livro?

Fiz uma lista de nomes, procurei no Aurélio (vulgo Dicio-

nário) e matutei, pensei, rabisquei. Que raio de livro é este?

Tem algo a ver com memórias, mas são umas coisiquinhas

curtas, com verdades e fantasias, saltos no tempo. Havia um

ponto em comum: as falhas.

Aí surgiu o nome: sE a mEmória Não mE Falha.

Hoje, de repente escritora, arregalo os olhos de espanto.

Minha coroa não tem folhas de louro, é de lata.

Como sou carioca, tenho o carnaval em mim e lembro:

A coroa do rei

não é de ouro

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nem de prata,

eu também já usei

e sei que ela

é de lata!

Se a memória não me falha, a letra é assim. Coloquei a

coroa, conto e bordo com lantejoulas e miçangas. É uma

coisa linda o carnaval, é igual a um livro: vão passando as

imagens, todas verdadeiras, mas fantasiadas. E tem até o tal

negócio do ritmo. Tem crítico que diz que a história “atra-

vessou”. Tem nota no julgamento do júri. Mas o que impor-

ta mesmo é a festa.

Sou filha de austríacos, nascida no Rio. Da Áustria, só her-

dei os cabelos louros... pintados! Sou morena de verdade.

Aí, um dia danei de pintar, fiquei cor de telefone antigo,

porque o cabeleireiro escureceu demais. Aí, mandei clarear,

quase fiquei careca de tanta química, acabei loura... e desis-

ti, continuando a ser loura porque meu filho Gê, um dia,

reclamou:

— Mãe, fica loura, por favor, resolva! Porque você muda

tanto de cor de cabelo que quando um colega meu pergun-

ta se minha mãe é loura, morena ou ruiva fico sem saber o

que dizer!

Isso foi no tempo em que Gê estudava no São Vicente de

Paulo, aqui nas Laranjeiras. Concordei. Pobre do meu filho!

Eu não fui a mãe ideal em matéria de cabelo, fora outras re-

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clamações que devem existir, lógico. Em homenagem a Gê,

fiquei loura... mas sou morena e carioca. Verdade e fantasia...

qual o limite?

P.S.: Já devo estar pra lá de grisalha, mas não sei ao certo:

me fantasiei de loura... por enquanto.

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O p ri me i r o be ij o

Nasci em setembro de 1932 e se alguém quiser mandar

um presente, aceito. Pode mandar no dia 3. Porque essa tal

de bestagem de não dizer a idade, graças à vida, não tenho.

Ultimamente, dei pra pensar na vida e em como a gente

programa o computador da existência, mas a vida não tem

nada de máquina e muda o esquema.

Foi assim que, por causa de um esquema fora do com-

passo, de repente, virei escritora. E cá estou eu, na frente

da minha velha máquina, batendo com um dedo só, com

o indicador da mão direita. Se eu soubesse, teria estudado

datilografia, em vez de mímica ou escola de teatro. Se eu

soubesse, pois é!

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Vou começar minha carreira de contadora de mim com

a história do primeiro beijo. Tem a ver com todo o resto,

talvez até com essa minha louca e frenética doidice de es-

crever, como quem se entrega à pesca da palavra exata.

A palavra, a música da palavra, essa paixão pelo muito

que se pode dizer e calar, escrevendo. Estou a sós comigo e

acompanhada de futuros fantasmas, que ora imagino como

possíveis leitores. Vejo você, folheando o livro, sem saber

se vai gostar ou não. Eu também não sei. Aliás, é espantosa

essa mínima diferença que existe, muitas vezes, entre uma

opinião favorável ou desfavorável. Já saí muitas vezes de um

teatro sem saber se havia gostado do espetáculo ou detesta-

do. E é pelo espetáculo que chego ao, ou parto do, primeiro

beijo.

Eu fui com minha mãe assistir a Hamlet e era muito

mocinha, tinha 15 anos. Naquele tempo, as mocinhas de

15 anos eram mocinhas e iam ao teatro com as mães. Foi

em 1948, por aí. Se as contas estiverem erradas, tanto faz.

A memória se confunde com o pensamento. Penso em

Shakespeare, em Hamlet. Vejo na minha frente Sérgio Car-

doso dizendo para Maria Fernanda:

— Vai para um convento, Ofélia!

É difícil escrever, porque eu quero contar tudo: os meios

e os fins, e me embolo. Só sei que saí do Hamlet dizendo

que queria ser atriz... e que eu era tão inocentemente abo-

balhada que, graças à minha total falta de desconfiômetro,

fui, no dia seguinte, bater à porta da entrada dos artistas

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do antigo teatro Phoenix, que hoje seria Fênix, se não o

tivessem derrubado. Há uma lei que protege os teatros no

Brasil. Mesmo assim, aqui, há algo fora de propósito: certas

leis existem, mas não são cumpridas.

Fui ao teatro, de uniforme de saia pregueada, e disse para

Áureo Nonato, o rapaz que foi atender:

— Eu quero fazer teatro.

E fui apresentada a Paschoal Carlos Magno, Sérgio Cardo-

so e Sérgio Britto. Acharam gozado aquela garota imbecili-

zada ir assim, sem mais, nem menos.

Paschoal era um doido iluminado e disse:

— Eu sou um doido iluminado e vejo para você um futuro

de glória.

Eu concordei imediatamente. Sérgio Cardoso ainda falou:

— Que belo timbre de voz!

Sérgio Britto perguntou:

— Que idade você tem?

— Tenho 15 anos.

Por causa da idade, fui escolhida para ser Julieta Capuleto.

Ninguém entendeu nada, na minha família, mas foi assim:

— Eu quero ser atriz!

Houve um curso, chamado Seminário de Arte Dramática.

Houve ensaios. Narto Lanza seria o Romeu.

Escrever tem disto: eu estava no passado e o telefone to-

cou e cortou o fio do que eu estava contando. Quem era?

Não importa. O que importa é que eu era ensaiada por Es-

ther Leão e não acertava a cena do beijo. Eu nunca havia

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sido beijada e, na hora do maior romance, eu parecia um

aspargo: dura e verde, insossa e gelada.

Foi aí que um rapaz bonitão, estudante de direito, come-

çou a me acompanhar para casa, depois dos ensaios. Ma-

mãe nem sempre me buscava, pois ensaiávamos cedo. Um

dia, ali, na praça dos Jacarandás, em frente ao número 15,

ele me beijou.

Levei um susto. Não sabia que beijo era assim. Reclamei,

briguei, chorei. Aí, ele respondeu, para se desculpar:

— Sylvia, me perdoa: foi dona Esther quem mandou.

Inútil contar que o namoro acabou. Chorei horas a fio o

meu primeiro beijo.

O estranho é que as coisas tristes, quando o tempo passa,

tornam-se gozadas. As coisas boas, quando passam, fazem

chorar. Deve ser para equilibrar o universo, tal como as

estrelas.