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Seminário América Latina: Cultura, História e Política - Uberlândia - MG – 18 a 21 de maio de 2015 DIREITOS HUMANOS NA PERSPECTIVA DA DISPUTA POR TERRAS ENTRE INDÍGENAS E LATIFUNDIÁRIOS NA AMÉRICA LATINA COM ÊNFASE NO SUL DA BAHIA Antônio Gabriel Oliveira Araújo 1 Florisvaldo de Jesus Silva 2 RESUMO O presente artigo visa traçar um paralelo entre a história da colonização europeia nas Américas e a atual luta por terras no Brasil, com foco na tribo Tupinambá Serra do Padeiro, da cidade de Buerarema, sul do Estado da Bahia, região onde graves violações aos Direitos Humanos são registradas constantemente. Diferente dos absurdos no que diz respeito à exploração de recursos, a questão indígena não é exclusiva do Brasil, afinal, imensas cidades com culturas e conhecimentos muito além de muitas regiões europeias foram destruídas. No Brasil, os europeus trataram logo de catequizar os índios, já que os consideravam bárbaros e povos “sem alma”. Com o passar dos anos e a sede 1 Graduando do V Semestre em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. E-mail: [email protected]. 2 Graduando do V Semestre em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. E-mail: [email protected]

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Seminário América Latina: Cultura, História e Política - Uberlândia - MG – 18 a 21 de maio de 2015

DIREITOS HUMANOS NA PERSPECTIVA DA DISPUTA POR TERRAS

ENTRE INDÍGENAS E LATIFUNDIÁRIOS NA AMÉRICA LATINA COM

ÊNFASE NO SUL DA BAHIA

Antônio Gabriel Oliveira Araújo1

Florisvaldo de Jesus Silva2

RESUMO

O presente artigo visa traçar um paralelo entre a história da colonização europeia

nas Américas e a atual luta por terras no Brasil, com foco na tribo Tupinambá Serra do

Padeiro, da cidade de Buerarema, sul do Estado da Bahia, região onde graves violações

aos Direitos Humanos são registradas constantemente. Diferente dos absurdos no que

diz respeito à exploração de recursos, a questão indígena não é exclusiva do Brasil,

afinal, imensas cidades com culturas e conhecimentos muito além de muitas regiões

europeias foram destruídas. No Brasil, os europeus trataram logo de catequizar os

índios, já que os consideravam bárbaros e povos “sem alma”. Com o passar dos anos e a

sede cada vez maior por ouro e outros recursos naturais, os portugueses foram

adentrando as matas, invadindo tribos e dizimando povos, culturas, línguas e

conhecimentos diversos apenas pela ganância por poder. Hoje, a situação da população

indígena no Brasil se resume às lutas por terra, por reconhecimento e pelo simples

desejo de existir enquanto tal.

PALAVRAS CHAVE: Indígena; dignidade humana; conflitos.

1 Graduando do V Semestre em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. E-mail: [email protected].

2 Graduando do V Semestre em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. E-mail: [email protected]

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INTRODUÇÃO

O sistema jurídico tal qual como está estruturado na realidade da sociedade

brasileira, por vezes, demostra pouca preocupação com a razão de ser da sociedade, ou

seja, a pessoa humana. O próprio discurso do processo legal dominado pela técnica

parece não estar tratando da pessoa e sim de volumes de papeis. A letra da lei ainda tem

ocupado com prioridade o dia-a-dia de nossos tribunais e dos nossos legisladores. Uma

questão fundamental que precisa ser arguida neste debate é a condição da pessoa

humana como tal. Longe de desprezar a importância do direito positivo, é preciso

compreendê-lo a luz do princípio da dignidade da pessoa humana.

Um grande equívoco da ordem sócio-jurídica está em, não poucas vezes, reduzir

a personalidade humana à técnica e, na frieza do legislador e do julgador, vidas serem

decididas sem que se levem em conta aqueles direitos inerentes à personalidade que,

indubitavelmente, precisam da máxima proteção do Estado. O presente trabalho

pretende analisar a questão indígena na perspectiva dos direitos humanos. Com isso

fazer entender de que a essência da discussão não é a etnia ou o grupo em que essa ou

aquela pessoa está inserida, e sim, a sua condição como tal: ser humano.

Constantemente se verifica notícias sobre conflitos entre fazendeiros, agricultores,

quilombolas e povos indígenas, sendo que entre fazendeiros/agricultores e povos

indígenas as tensões têm sido maior. Neste trabalho nos concentraremos na questão

indígena, como dito antes, com o olhar voltado à humanidade de cada pessoa.

Uma vez levada à base da discussão o tema então proposto, - direitos humanos

– tanto o legislador quanto o julgador da realidade concreta, terão um caminho claro e

definido para guiar suas decisões, seja em abstrato ou no caso concreto. Muito se debate

no seio da sociedade sobre a possibilidade dessa ou daquela pessoa ser descendente

indígena ou se se trata de alguém que se aproveita dessa condição para obter

determinados benefícios destinados àqueles povos, são as injustas e constantes

criminalizações das causas indigenistas. O contato de perto com aquele povo permite

perceber a fundo suas lutas e conquistas, a realidade vista e vivida pessoalmente é mais

vantajosa do que o conhecimento adquirido pela mídia, que possui outras prioridades.

Cada cidadão, cada membro dessas comunidades tem o direito de ver do Estado os seus

direitos garantidos e efetivados e a integral proteção contra toda forma de preconceito,

discriminação, violência física ou moral etc., ao passo de ver garantido o direito à terra,

ao trabalho, à alimentação, à saúde, à segurança, à distribuição igualitária de renda, à

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garantia de moradia digna dentre outros direitos fundamentais e essenciais à existência

humana. Urge do Estado uma solução viável a questão das demarcações e concretização

do direito à terra aos povos indígenas, porém toda essa temática não pode se dissociar

da condição de dignidade de que dispõe cada ser humano.

1. OS DIREITOS HUMANOS COMPREENDIDOS PARA ALÉM DA

LINGUÍSTICA

O que são direitos humanos? Este trabalho não tem a pretensão de responder a

pergunta, porém propor uma análise sobre o tema e reconhecer que toda pessoa humana

precisa ser respeitada e vista como tal e que é dever do Estado garantir que todos

tenham acesso à vida, à liberdade, à segurança pessoal, o espaço para o

desenvolvimento próprio e dos seus. Humanos são os seres dotados de razão que vivem

em sociedade, relacionam-se entre si, possuem necessidades física, espiritual,

intelectual, moral, cultural etc. Para tanto as respostas serão sempre inúteis enquanto as

perguntas forem acidentais ao passo que deveria tratar da essência.

As mulheres, as crianças, os idosos, os índios, os homoafetivos, os negros dentre

outros, não devem ser respeitados simplesmente pelo fato se representarem classes

oprimidas, excluídas. Precisam sim é serem respeitadas como pessoas. As leis serão

inúteis se se tratarem dessas classes sem que se considerem a sua vocação humana

dotada de direitos e deveres. Nos termos da Declaração:

Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a

igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra

qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra

qualquer incitamento a tal discriminação.

A condição humana de um ser, que tacitamente o dota de direitos, sem os quais

não se pode reconhecer como tal, precisa pautar os questionamentos a fim de que se

obtenha respostas fortes e capazes de despertar as consciências individual e coletiva

para a promoção e proteção da vida como um todo. Mais que violar direitos, quando se

priva alguém de algo que lhe é essencial e pertencente por natureza, nega-se a sua

condição ontológica de ser humano. Os inúmeros casos de violações de direitos

humanos que se verifica, seja por parte de pessoas e grupos, seja por parte do Estado, é

tão somente fruto do total despreparo para se lidar com o tema. À medida que as

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relações são mercantilizadas o capitalismo selvagem conduz as discussões para a

proteção dos bens e esquecer-se a personalidade dos seus possíveis possuidores.

Nessa conjuntura, valerá quem tem. Aqueles que não têm posse de bens, que

fazem parte da maioria esmagadora de miseráveis, ou aqueles que, não tendo, procuram

adquirir por meios ilícitos, verão, violentamente, retirada a sua dignidade como pessoa.

Repita-se exaustivamente que a condição humana dota o ser de um direito intrínseco

que não pode lhe ser retirado. Essa é a questão fundamental: garantia absoluta da

personalidade humana. Isso não significa proteção deficitária, sob pena de infligir-se a

princípio da proporcionalidade. O fato de que existe um direito intangível e inalienável,

indisponível ao próprio possuidor, não quer significar a ausência de reprovação à

conduta indesejável e injusta que alguém venha a praticar, a reprovação deve limitar-se

ao necessário para prevenir e conter a tal ação sem com isso exceder aos limites do

razoável, despersonificando a humanidade dos seres.

E é nesse cenário que os direitos humanos estão inseridos e, consequentemente,

mal interpretados. Isto significa dizer que se tem dado outro tom, diferente de sua

essência, a tais direitos. Os avanços por que vem passando a humanidade não se têm

mostrado eficazes quando o assunto é reconhecimento e valorização da dignidade das

pessoas humanas. O sistema de leis duras para impedirem a prática de crimes não é a

opção salvadora, como pensam alguns. A lei para ser eficaz precisa partir de baixo para

cima, isto é, estar antes na consciência do povo. O respeito à mulher, v.g., já

oportunamente afirmado, deve passar pelo seu reconhecimento enquanto pessoa

humana. Se assim não for é ineficaz a princípio constitucional da dignidade da pessoa

humana elencado no parágrafo terceiro do Reitor Diploma Legal de 1988.

Ali a norma tem por fundamento o respeito e a garantia do ser humano como tal.

E propõe que, sem essa condição sine qua nom o Estado Democrático de Direito, ora

implantado, perde o seu fundamento. A não garantia da liberdade e igualdade de

condição entre as pessoas humanas nega a existência do Estado, posto que a democracia

e o direito lhe pertencem e, sem que se perceba a humanidade de outrem, não há que se

falar em demo-crascia, tampouco em direito. Direitos humanos é assim a base de um

ordenamento jurídico e da sociedade como um todo. A indisponibilidade de tais direitos

é o liame que permite viver em comunidade. Deste modo, antes mesmo de se discutir o

direito à propriedade, por exemplo, é necessário focar o pensamento na necessidade que

tem o ser humano de possuir o mínimo possível de espaço a fim de sustentar a si e aos

seus. Basta pensar no tema da reforma agrária: o que justifica a concentração de

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milhares de hectares de terra ao passo que do outro lado vê-se pequenos produtores,

trabalhadores rurais, comunidades indígenas (tema que trataremos com maior

pormenorização neste trabalho) mendigarem, expor suas vidas, na luta pela conquista de

uma porção de terra?

Tal objetivo, - reforma agrária, por exemplo - só será eficazmente alcançado

quando o tema da pessoa humana pautar nossos discursos. O tom patrimonialista ainda é

predominante. Quem tem direito a terra, tem por quê? Quem determinou que tivesse?

Haveria um grau de humanidade mais acentuado em um determinado grupo em

detrimento de outro? Óbvio que não. O princípio fundador da democracia, do Estado de

Direito, de uma civilização passa, fundamentalmente pela igualdade de condições, pela

justiça plena e não excludente, aliás, se exclui não se está diante da justiça, como

também da democracia. A proposta de discutir neste trabalho deve, a priori, ser

trabalhada a luz dos direitos humanos. Direitos estes já percebidos aqui como aqueles

inerentes à pessoa e que, independente de posição sociocultural, religiosa, antropológica

precisam ser garantidos e respeitados. A temática não passa, necessariamente, pela

questão de os índios terem precedidos à terra, também, mas sobretudo pela condição de

humanidade que lhes é própria, não diferente de uma comunidade quilombola, de um

grupo LGBT, da mulher sofrida, da criança indefesa, do idoso vulnerável etc.

Como dissemos no início, o tema dos direitos humanos, infelizmente, ainda é

mal interpretado e com isso posto de lado, as grades curriculares dos cursos de

especialização precisam explorá-los mais, assim como os livros didáticos da educação

básica precisam tratar a realidade como tal e não sob a alegoria do folclore. Aliás, a

Comunidade Tupinambá – Serra do Padeiro, município de Buerarema, sul da Bahia -,

altamente organizada tem um projeto de um livro que trata as questões indígenas na

suas realidade, porém tal proposta fora censurada pelo poder público ao se levar à

impressão. É um tema que precisa ser encarado na sociedade por todos, não só por um

grupo de ativista, ditos, por alguns, como ‘loucos’ e outras coisas mais. É à medida que

ganha espaço que o tema pode ser melhor compreendido e levado a sério. Por certo se

assim o for, muitas questões, levadas a efeito pela força impositiva do direito, serão

resolvidas pelo bom senso e pelo ideal de justiça de que dispõe cada um em sua

individualidade e chegando a atingir o coletivo. Merece análise detida a questão

indígena com um ideal de humanidade formada e que cada um, cada uma, possa

persuadir-se da condição dos direitos próprios e dos de outrem que não precisam estar

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escritos para serem valorizados e efetivados na ordem sócio-jurídica a qual estão

(estamos) inseridos.

2. A QUESTÃO ANTROPOLÓGICA DOS POVOS E CULTURAS INDÍGENAS

Tendo em vista a grandiosa obra arquitetônica, estudos e legado deixados, que

milhares de anos antes de Portugal e Espanha iniciarem as navegações às Américas,

grupos como os Incas (resultado de uma sucessão de civilizações andinas e que se

tornou o maior império da América pré-colombiana) na região onde hoje é o Peru, os

Maias (cultura mesoamericana pré-colombiana, notável por sua língua escrita e

conhecimentos em áreas diversas) na América Central e os Astecas (grupo que se

destaca pela rica organização política dos territórios) no México, já avançavam em

diversos sentidos, tais como as grandes civilizações europeias. Tudo o que dizia respeito

ao conhecimento e à cultura de tais povos foi destruído, restando poucos escritos e

algumas ruínas de suas fantásticas organizações urbanas que hoje servem apenas como

pontos turísticos. Estes povos não se resumiam ao que os europeus classificaram como

bárbaros, primitivos e desprovidos de alma. Além das cidades gigantescas, já citadas, e

mais ricas que muitas regiões europeias, os americanos possuíam uma organização

social sem igual. Tudo isto, tendo em vista o Direito, que mesmo primitivo, já

estabelecia regras de convivência e de conduta.

2.1. A SITUAÇÃO ATUAL DOS GRUPOS INDÍGENAS NO BRASIL

Muito depois do início da degradação dos povos indígenas no Brasil, já na

segunda metade do século XX, mais especificamente no ano de 1967, no governo

militar do presidente Costa e Silva, foi criada, através da lei nº 5.371, a Fundação

Nacional do Índio (Funai), que visa

[...] promover a educação básica aos índios, demarcar, assegurar e

proteger as terras por eles tradicionalmente ocupadas, estimular o

desenvolvimento de estudos e levantamentos sobre os grupos

indígenas.3.

Segundo dados desta instituição, em parceria com o Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística (IBGE), a atual população indígena no Brasil é de 817.963 mil

pessoas, representando 305 diferentes etnias com 274 línguas distintas. De acordo com a

3 FUNAI – Fundação Nacional do Índio.

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Constituição Federal vigente, os povos indígenas detêm o direito originário  e o usufruto

exclusivo sobre as terras que tradicionalmente ocupam.

[...] A União poderá estabelecer, em qualquer parte do território

nacional, áreas destinadas a posse e ocupação pelos povos indígenas,

onde possam viver e obter meios de subsistência, com direito ao

usufruto e utilização das riquezas naturais, garantindo-se as condições

de sua reprodução física e cultural4.

Após a criação da Funai e a promulgação da Constituição em vigor, o Estado

brasileiro vem demarcando diversas terras indígenas, o que cria diversos conflitos com

latifundiários e empresários do agronegócio. No sul da Bahia, a situação tem tomado

proporções internacionais, de forma que diversos estudiosos e antropólogos europeus e

americanos tem visitado a região de Buerarema, na Serra do Padeiro, para conhecer e

estudar a situação. De um lado, a tribo indígena vem ganhando espaço e se

consolidando de forma mais eficaz na terra, com toda uma estrutura para o cultivo e

extração do cacau, meio principal de subsistência daquele povo, além de investimentos

em educação e na própria cultura através de subsídios do Governo Federal.

Porém, a situação real é outra, conforme o relatório “Violência contra os povos

indígenas no Brasil”, feito pelo Conselho Indigenista Missionário,

[...] fica evidenciada a falácia existente na tese propagandeada pelo

governo brasileiro, junto à sociedade nacional e internacional,

segundo a qual o “desenvolvimento” econômico do Brasil estaria

beneficiando indistintamente toda a população do país. Ao contrário

disso, o que efetivamente vem ocorrendo é que o “desenvolvimento

brasileiro” resulta da violação de Direitos Humanos, econômicos,

políticos, sociais, culturais e ambientais de populações amplas e

diversas no Brasil, especialmente das comunidades tradicionais e dos

povos indígenas5.

Para a maioria dos brasileiros que não conhecem a realidade dos povos

indígenas no Brasil, os números que são divulgados que dizem respeito ao crescimento

da população indígena e ao crescente número de terras demarcadas são suficientes para

acreditar que está tudo bem, de forma que eles reproduzem os discursos introduzidos

desde o século XVI: de que os índios são preguiçosos e aproveitadores. Porém, não é de

4 Índios no Brasil: Reservas Indígenas. 5 Conselho Indigenista Missionário. Violência contra os povos indígenas no Brasil. Brasília: 2013.

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interesse da mídia ruralista e das Fundações que tem como objetivo preservar estes

povos, divulgar os números que dizem respeito ao massacre histórico dessas sociedades.

2.4. A DISPUTA POR TERRAS ENTRE INDÍGENAS E LATIFUNDIÁRIOS

Difícil, mas sim, parte das populações indígenas resistiram à história de

massacres e de violações a direitos. Porém, como se já não bastasse, mais um problema

surgiu desde o início das demarcações das terras indígenas: as disputas por territórios

entre índios e grandes latifundiários. Segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai),

em seu site oficial,

[...] Atualmente existem 462 terras indígenas regularizada que

representam cerca de 12,2% do território nacional, localizadas em

todos os biomas, com concentração na Amazônia Legal.6.

É fácil dizer que existem essas 462 terras indígenas demarcadas, mas em que

parte que este órgão oficial cita os conflitos e o quase “estado de sítio” em que essas

populações vivem? Em lugar nenhum. Assim como a escravidão no Brasil não se

encerrou com a assinatura da Lei Áurea, os problemas dos povos indígenas não

acabaram com a promulgação da Constituição ou com a lei que instituiu a Funai. O

absurdo das violações aos Direitos Indígenas e principalmente aos Direitos

Fundamentais destes povos enquanto seres humanos apenas mudaram de figura. Nos

séculos passados, com a máxima da expansão econômica interior adentro, os massacres

eram visíveis e realizados com a conivência estatal, o que não mudou nos dias atuais, já

que a grande maioria dos parlamentares e dos integrantes do judiciário e do executivo

são ruralistas, além dos absurdos cometidos pelas próprias forças armadas deste país. A

situação atual é tão drástica que a aldeia Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay

enviou uma carta ao governo brasileiro solicitando a morte coletiva de seu povo e de

sua cultura, pelo fato de estarem cansados de serem tratados como “resíduos humanos”:

“Solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós

todos aqui. (...) Pedimos, de uma vez por todas, para decretar a nossa

dizimação e extinção total, além de enviar vários tratores para cavar

um grande buraco para jogar e enterrar os nossos corpos. Decretem a

nossa morte coletiva Guarani e Kaiowá de Pyelito Kue/Mbarakay e

enterrem-nos aqui”7. (CIMI, 2013).

6 FUNAI. Terras Indígenas: O que é?.7 Conselho Indigenista Missionário. Violência contra os povos indígenas no Brasil. Brasília: 2013.

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E não é por mero “achismo” que nos propomos a discutir a conivência, ou pior, a

participação marcante do Estado nos massacres aos povos indígenas. Em 7 de novembro

de 2012, o povo da aldeia Munduruku, no estado do Pará, sofreu um ataque sem

precedentes. Segundo relatos do jornalista Ruy Sposati8, homens da Polícia Federal, na

oportunidade, invadiram a aldeia e, sem qualquer possibilidade de defesa por parte das

vítimas, iniciaram uma operação de guerra, ceifando a vida de diversas lideranças

indígenas, ferindo crianças, mulheres e outros integrantes da comunidade, além de

roubar objetos de valor e de destruir toda a estrutura da aldeia, como barcos e canoas de

pesca, carros, construções e outros. Somente quase dois anos após o acontecido, o

Ministério Público Federal resolveu oferecer denúncia contra o delegado Antônio

Carlos Moriel Sanches, chefe da operação e suspeito de participar do assassinato do

índio Adenilson Kirixi.

Em resumo, utilizando-se da máquina pública, a Polícia Federal agiu de forma

violenta e extremamente arbitrária, descumprindo com quaisquer preceitos de Direitos

Humanos expressos na Constituição ou nos tratados em que o Brasil é signatário. As

forças coercitivas do Estado vêm se mostrando verdadeiras milícias, e não instituições

garantidoras dos bens jurídicos fundamentais dos cidadãos. Dizer que é preciso

reflexões já se tornou um discurso defasado: são necessárias ações urgentes para parar

essa barbárie absurdamente legitimada.

3. A QUESTÃO INDÍGENA NA TRIBO TUBINAMBÁ SERRA DO PADEIRO

3.1. O COTIDIANO NA TRIBO TUPINAMBÁ

Com costumes e crenças que se mantém ao longo dos séculos e a cultura

arraigada em seus corações, os, aproximadamente, 900 moradores da tribo Tupinambá

Serra do Padeiro consideram aquele lugar abençoado, conforme relatos do pajé da tribo.

E não são só os índios que acreditam nas “bênçãos” que foram derramadas sobre aquele

local, afinal, só para citar um exemplo, em uma visita coletiva à localidade, com nossa

participação, não houve uma só pessoa entre estudantes de Direito, de História,

antropólogos brasileiros e estrangeiros, advogados e magistrados, que não se

maravilhou com a riqueza cultural dos índios e natural da Serra.

Os índios sobrevivem, além dos subsídios repassados pelos Governos Federal e

Estadual, da agricultura familiar e principalmente do extrativismo do cacau,

8 SPOSATI, R. Operação Eldorado: Selvageria estatal contra o povo Munduruku. In.: Conselho Indigenista Missionário. Violência contra os povos indígenas no Brasil. Brasília: 2013.

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monocultura sobre a qual construíram toda uma estrutura que vai desde o plantio da

muda do cacaueiro, até a fermentação e secagem das sementes, que são repassadas à

cooperativa local e vendidas para o sul do Brasil e para o exterior. A extensão do

território que ocupam hoje é de cerca de 17 mil hectares, onde se incluem a área de

plantio do cacau (quase totalidade), a sede da tribo e as áreas para outras culturas. Além

do cacau, outro meio de sobrevivência dos índios é a produção da farinha de mandioca,

e mesmo com uma estrutura industrial feita com recursos governamentais, as mulheres

ainda mantém a tradição de se reunir em uma roda para descascar a mandioca e jogar

conversa fora, processo que é seguido da moeção, desidratação e torrefação do que irá

se transformar em uma farinha de gosto característico do processo artesanal.

A educação na tribo também é algo muito característico. A comunidade dispõe

de creche, escolas primárias e ensino técnico, todas guiadas conforme a cultura

tupinambá. Com publicações literárias próprias, as crianças aprendem a ler e a escrever,

em português, além da matemática comum, mas quando chegam nas matérias naturais, a

resistência em não ceder às pressões da organização política externa é notável. Quando

se estuda ciências, geografia e história, as crianças e os adolescentes aprendem

conforme o costume e as crenças da própria tribo e não do que foi imposto por uma

matriz curricular que desvaloriza a própria história de seu país e da diversidade dos

povos nele existentes. Os Encantados, os seres místicos como a caipora e outros e a

história da composição da tribo, desde a chegada dos primeiros ancestrais àquela

localidade, são elementos que se aprende na escola tupinambá.

O cacique, mesmo sem ter cursado o ginásio, dispõe de atitudes e de um

conhecimento político que se assemelha aos grandes líderes deste país. Babau, numa

fala que se transformou em palestra para quem o ouvia, na visita citada, impressionou

até os mais reconhecidos magistrados presentes. Utilizando-se da máxima “o povo

segue o exemplo de seu líder”, o homem simples, mas de um conhecimento grandioso,

explicou o porquê de suas atitudes, demonstrando o ataque aos direitos humanos que os

povos indígenas sofrem desde a colonização, e explicando o motivo de certas condutas

como o consumo de álcool, tabaco e drogas serem abominadas na comunidade, já que,

segundo ele, retiram o foco do que realmente importa para aquele povo. Babau não é

apenas um líder de uma comunidade, é um cientista político que ainda tem muito a

acrescentar a este país.

3.2. A DISPUTA POR TERRAS E AS VIOLAÇÕES AOS DIREITOS

HUMANOS NO SUL DA BAHIA

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Desde pouco tempo após o descobrimento do Brasil, a região sul da Bahia se

destacou pelas condições propícias ao cultivo do cacau. O clima semelhante ao

amazônico fez com que grandes investimentos para tal chegassem à região e o número

de latifúndios aumentasse. E como em toda a história da “civilização” humana, alguém

cai para que o outro ascenda, foi isso que aconteceu na região: os índios tupis

(tupinambás e tupiniquins) foram expulsos da terra para que o cultivo do fruto fosse

introduzido.

Séculos depois, mais precisamente no ano de 2004, os tupinambás “invadiram”

290 hectares da Fazenda Futurama, de propriedade de Gildro Lisboa, situada na região

da Serra do Padeiro, que impulsionou inúmeras outras invasões, cuja motivação era

pressionar a Fundação Nacional do Índio a concluir o processo de demarcação, processo

que só veio a ser concretizado em 2009, após diversas articulações da tribo Tupinambá,

juntamente com o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e com outros setores, algo

que gera, até hoje, conflitos diversos junto aos grandes latifundiários da região, já que

diversas fazendas se encontram dentro da área demarcada.

Tendo em vista essa situação, os índios da tribo Tupinambá, lideradas pelo

cacique Rosivaldo Ferreira dos Santos Tupinambá, o Babau, tem realizado diversos

movimentos por eles denominados como “retomadas”, o que, conforme relatos do

CIMI, já fez com que Policiais Federais e agentes das Forças Armadas entrassem em

conflito com representantes dessa tribo e devolvessem a posse das terras consideradas

“invadidas” pelos índios: uma ironia sem tamanho. É por conta dessa resistência que se

destaca internacionalmente, que o cacique Babau e seus familiares têm sido alvo de

diversos ataques, tanto do Governo Federal que esconde sua arbitrariedade atrás das

instituições coercitivas, quanto dos fazendeiros, que, covardemente, querem, através da

força, burlar um direito adquirido pelos índios.

Desde então a tribo tupinambá tem mantido sua luta em busca do

reconhecimento, tanto por parte do Estado quanto dos empresários do agronegócio, de

que a terra os pertence. E não é só para proteger a que já tem e retomar as terras que

lhes são de direito que os Tupinambás da Serra do Padeiro têm se mobilizado: é,

também, para que uma condição, no que diz respeito à infraestrutura de saúde, educação

e saneamento, direitos fundamentais do ser humano, seja oferecida.

O ataque aos direitos humanos é evidente em cada relato que se houve dos

indígenas e dos adeptos da causa. Prisões arbitrárias, depredações de patrimônio e

desassistência dos órgãos governamentais são exemplos desta situação. Qualquer

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brasileiro que se desprende, o mínimo que for, das amarras egoístas impostas pelo

modelo capitalista ocidental e que se sensibilize pela causa indígena, tem vergonha de

se considerar integrante dessa maioria que esmaga, com atitudes diretas ou indiretas, as

minorias a exemplo destes povos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A história brasileira dá conta da brutalidade de como os povos indígenas foram

tratados no passado e são, ainda hoje, criminalizados, seja pela sociedade, seja pelo

próprio poder judiciário. Esse ultimo, nas suas decisões descompassadas e que estão

longe de perceber a importância de cada palmo de chão para os povos originários. Mais

que o direito à terra, é a vida de um povo que se põe em questão e que precisam ser

valoradas pelo poder judiciário bem como protegidas pelo Ministério Público, guarda

constitucional dos povos indígenas.

Como dito no início, a proposta é chamar ao discurso a pessoa humana,

demostrado ao longo do trabalho, provado pela história, acima descrita, pelo relato dos

casos de violações, as invasões de terras, os genocídios que são temas que se faz

questionar qual o conceito de humanidade que se dispõe. Quem é o outro? Qual a

essência dos conflitos de terra que assolam o Brasil e que dizimam comunidades

indígenas, as poucas delas que ainda restam? A atitude egoísta do “homem branco” o

“colonizador” ainda impera na sociedade atual não obstante todo avanço do Estado

Democrático de Direito com consequente fortalecimento dos poderes públicos como

mecanismo de conter a própria ação arbitrária do Estado.

É inegável a insensibilidade com que a causa em questão é tratada, sob a falácia

de que “não existem mais índios” e que são aproveitadores que buscam lucro às custas

alheias, falácias. Como se bastasse retirar o direito à terra, pretende-se também retirar a

etnia, a origem de um povo que há séculos vem sofrendo a opressão e, em flagrante

desrespeito à ordem constitucional eliminando o que restou de um povo. Não se pode

olvidar da invasão in terris brasillis como um dos maiores horrores de que estiveram

expostas as comunidades indigenistas e se lutar em repúdio de práticas semelhantes na

atualidade. Esse trabalho é também uma ação denunciadora dos casos bárbaros de

violações dos Direitos Humanos cometidos, principalmente, pelos Poderes da

República.

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REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição Federal da República Federativa do Brasil. Brasília:

Senado Federal, 1988.;

CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO. Polícia Federal invade aldeia

Tupinambá da Serra do Padeiro e leva criança de dois anos. Disponível em: <

http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=read&id=7356>. Acesso em:

14 jul. 2014.;

Conselho Indigenista Missionário. Violência contra os povos indígenas no

Brasil. Brasília: 2013.;

FUNAI – Fundação Nacional do Índio. Disponível em:

<http://ambientes.ambientebrasil.com.br/indios/funai/funai_-

_fundacao_nacional_do_indio.html>. Acesso em: 10 jul. 2014.;

ONU. A Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris, 1948.;

Os povos indígenas no Brasil. Disponível em: <

http://www.mundoeducacao.com/historiadobrasil/os-povos-indigenas-no-brasil.htm>.

Acesso em: 29 jun. 2014.;

RUI BARBOSA, 1952, p. 167 apud TORRES, 2009, p. 243.;