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Seleção de Pesquisas em Língua Portuguesa 2017-2018 PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS VERNÁCULAS FACULDADE DE LETRAS ORGANIZAÇÃO Maria Eugenia Lammoglia Duarte Silvia Figueiredo Brandão Violeta Virginia Rodrigues

Seleção de Pesquisas em Língua Portuguesa · nada seleção, por exemplo, de modo a garantir uma adesão emocio-nal do seu interlocutor. Júlio Manoel da Silva Neto analisa, àluz

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Seleção dePesquisas em

Língua Portuguesa2017-2018

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS VERNÁCULAS

FACULDADE DE LETRAS

ORGANIZAÇÃO

Maria Eugenia Lammoglia Duarte

Silvia Figueiredo Brandão

Violeta Virginia Rodrigues

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Seleção dePesquisas em

Língua Portuguesa2017-2018

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS VERNÁCULAS

FACULDADE DE LETRAS

ORGANIZAÇÃO

Maria Eugenia Lammoglia Duarte

Silvia Figueiredo Brandão

Violeta Virginia Rodrigues

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S464du

Copyright © 2018, dos autores

Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas (PPGLEV)Faculdade de Letras da UFRJ

Avenida Horácio Macedo, 2.151, Sala F-319 – Cidade UniversitáriaCEP: 21941-917 – Rio de Janeiro – RJ

CATALOGAÇÃO NA FONTEBiblioteca da Faculdade de Letras da UFRJ

PareceristasOs artigos que constituem este volume fo-ram selecionados, em sistema de avaliação duplo-cego, pelos seguintes professores doutores:

Alessandra de Paula Santos (UERJ), Ana Lúcia Tinoco (UNICSUL), Angela Bravin (UFRRJ), Christina Gomes (UFRJ), Diogo Oliveira Pinheiro (UFRJ), Edila Vianna (UFF), Eloisa Pilati (UNB), Gil Negreiros (UFSM), Gilson Costa Freire (UFRRJ), Gustavo Ximenes Cunha (UFMG), Ivo da Costa do Rosário (UFF), Izete Lehmkuhl Coelho (UFSC), José Sueli de Magalhães (UFU), Jus-sara Abraçado (UFF), Lilian Ferrari (UFRJ), Livia Oushiro (UNICAMP), Márcia Rumeu (UFMG), Marco Antonio Martins (UFSC), Maria Maura Cezario (UFRJ), Mariana Luz Pessoa de Barros (UFSCAR), Mariangela Rios (UFF), Ori-ana de Nadai Fulaneti (UFPB), Patrícia Ferreira Neves (UFF), Rosane Cássia Santos e Campos (UFMG), Rosane Ber-linck (UNESP), Rosane Monnerat (UFF) e Silvana Silva de Farias Araújo (UEFS)

Preparadores de originais Bruno Santos Pereira, Felipe Fernandes Ribeiro, Pedro Vieira de Castro, Rodrigo Lopes da Fonte e Thaís Velloso

Equipe de revisãoAnna Beatriz Cavalcante de Melo, Anna Lyssa do Nascimento Donato, Camila de Toledo Machado, Daniel Veneri, Gabriel Guimarães Barbosa, Gabriela Familiar, Gustavo Rocha, Izabella Domingues Machado, Janaina Pedreira Fernandes de Souza, Janaina Varello, Janda Montene-gro, Joyce Coutinho Nobrega de Araujo, Julia Pinheiro Gomes, Juliana Magalhães Catta Preta, Leandro Candido Rocha, Licia Matos, Lyza Brasil, Mariana de Mendonça Braga, Marilza Roco, Monique Lima, Morgana Chagas Ferreira, Paula Spernau, Raphaela Ribeiro Passos, Ravena Beatriz, Thays Freitas e Vitória Benfica

Seleção de Pesquisas em Língua Portuguesa (2017-2018) / Organização: Maria Eugenia Lammoglia Duarte; Silvia Figueiredo Brandão; Violeta Virginia Rodrigues. – Rio de Janeiro: Letras/UFRJ, 2018.

386 p.E-bookInclui bibliografia ISBN 978-85-8101-028-11. Língua Portuguesa. I. Duarte, Maria Eugenia Lammoglia. II. Título

CDD 469 CDU 811.134.3

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES). Código de Financiamento 001.

CapaFrancyne França DiagramaçãoWal Pinto

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SUMÁRIO

Apresentação7

Uma abordagem construcional dos splinters não nativos no Português do Brasil

José Augusto de Oliveira Pires18

As teias da argumentação: um estudo de interface sintático-discursivo da hipotaxe circunstancial

Amanda Heiderich Marchon44

Semiótica e argumentação: análise das obras de literatura infantil de Sylvia Orthof

Marcia Andrade Morais Cabral68

A referenciação nas notícias esportivas da Copa de 2014: uma abordagem à luz da Linguística de Texto

Margareth Andrade Morais90

Estratégias referenciais na construção de artigos de opinião

Júlio Manoel da Silva Neto114

Anáforas encapsuladoras no gênero notícia: uma estratégia argumentativa

Maria Cristina Vieira Bastos140

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O percurso da indeterminação em peças brasileiras e portuguesas: uma análise comparativa

Marianna Maroja Confalonieri Cardoso177

O percurso diacrônico do dativo de 3ª pessoa em peças brasileiras e portuguesas: uma análise contrastiva

Ulli Santos Bispo Fernandes208

Um estudo da ordem dos clíticos em formas complexas como evidência de mudança sintática no português

Diana Silva Thomaz231

Quadro de pronomes pessoais na escola – diagnose e proposta pedagógica: breve apresentação de uma pesquisa de mestrado

Monique Débora Alves de Oliveira Lima259

“Quando a Carla imagina...”: contribuições da prosódia para o estudo

do desgarramento sintático

Aline Ponciano dos Santos Silvestre285

O ditongo /ei/ na variedade urbana do português de São Tomé

Raphaela Ribeiro Passos316

Uma análise dos itens lexicais com pretônica /e/ no português de São Tomé

Fabiane de Mello Vianna da Rocha Teixeira Rodrigues do Nascimento342

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Um estudo das crenças e atitudes no alteamento das vogais pretônicas

Silvia Souza Guerreiro364

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APRESENTAÇÃO

Neste livro, reúnem-se estudos derivados de dissertações e teses desenvolvidas por pós-graduandos que integralizaram seus cursos em 2017 e 2018 no âmbito da Área de Língua Portuguesa do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da UFRJ.

Neles estão representadas algumas das linhas de pesquisa do PPGLEV, bem como diferentes orientações teórico-metodológi-cas que embasam pesquisas realizadas e orientadas pelos docentes e disciplinas por eles ministradas.

O estudo de José Augusto de Oliveira Pires apresenta uma análise dos splinters (“pedaços”, "fragmentos”) não nativos (como ciber-, wiki- e -gate), à luz do arcabouço teórico da Morfolo-gia Construcional (Booij: 2005, 2007 e 2010), descrevendo o que vêm a ser essas partículas, mapeando e inventariando que splinters não nativos são utilizados contemporaneamente nas estruturas morfológicas do português, examinando seu comportamento em termos de grau de nativização, e, finalmente, representando-os por meio de esquemas construcionais propostos por Booij (2005, 2007 e 2010) e adaptados para o português em Gonçalves & Almeida (2012). Os dados que sustentam a análise foram coletados no Goo-gle e em redes sociais, como Facebook e Instagram, que se mostram bastante satisfatórios, particularmente por constituírem constru-ções lexicais recentes. O trabalho conclui que os splinters não nati-vos são incorporados não como empréstimos convencionais, mas como fragmentos morfológicos que passam a formar palavras em série com bases vernaculares.

Amanda Heiderich Marchon investiga em seu artigo a impossibilidade de se empreender uma análise linguística que

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dissocie os níveis sintático, semântico e pragmático. Objetivando uma descrição que amplie a perspectiva da tradição gramatical e que ultrapasse o nível sentencial, a autora propõe um estudo de interface entre os postulados teóricos da Semântica Argumentati-va e do Funcionalismo, especificamente no que se refere à análise das cláusulas hipotáticas, priorizando tanto a semântica quanto a sintaxe. Assim, considera não só o nível microtextual, pautado nas cláusulas e nos conectores que as introduzem, mas também o nível macrotextual, que representa o imaginário social sobre temas po-lêmicos. Assim, são investigados os efeitos de sentido que as estru-turas hipotáticas mantêm com as porções de discurso em que estão inseridas, compreendidas, por ela, como fios da teia argumentativa empreendida pelo enunciador para envolver o interlocutor. Os da-dos levantados, no corpus constituído por 24 pares de textos pu-blicados, ao longo do ano de 2014, pelo jornal Folha de S. Paulo, na coluna intitulada Tendências e Debates, confirmam que quanto mais complexa a defesa de uma tese, mais numerosos serão os recursos linguísticos utilizados para convencer o interlocutor sobre a plausi-bilidade e a veracidade dos argumentos elencados pelo enunciador, o que, no trabalho, foi representado pela alta frequência das cláu-sulas hipotáticas circunstanciais e pela presença de conectores em textos contrários às doxas vigentes.

Marcia Andrade Morais Cabral aborda a argumentação em sete obras de literatura infantil da autora Sylvia Orthof, com base na teoria semiótica de linha francesa. A teoria semiótica grei-masiana permite verificar de que maneira o texto, materialização do discurso, diz o que diz, ou seja, como se constrói o sentido, não somente observando seu conteúdo, mas também a forma de dizer. Assim, essa teoria considera níveis de abstração diferentes

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(Greimas; Courtés: 2008, 232), do mais profundo ao complexo e concreto, nível em que são observadas as estratégias argumenta-tivas utilizadas. Desse modo, é possível observar a argumentação na relação entre enunciador e enunciatário, tendo em vista o con-trato estabelecido entre ambos e a confiança do enunciatário na imagem do enunciador. A análise das obras mostrou como os recur-sos discursivos da intertextualidade e da projeção de vozes ganham destaque, revelando que mesmo os textos inventivos, abertos e surpreen dentes da literatura infantil de Sylvia Orthof apresentam uma orientação argumentativa, reiterada não só no dito, mas tam-bém no modo de dizer. Os valores da originalidade, da curiosidade etc. não só são buscados pelos actantes do enunciado, mas também se fazem ver no caráter inventivo e dinâmico do próprio modo de dizer do enunciador.

Margareth Andrade Morais investiga as estratégias de referenciação no gênero notícia esportiva de futebol em corpus jor-nalístico. Pautando-se nos avanços da Linguística de Texto acerca dos processos de referenciação e sua importância para a textua-lidade, rediscute a delimitação entre anáforas diretas, indiretas, encapsuladoras e a dêixis, mostrando como esses processos estão interligados e colaboram para a construção de sentidos, consoante Mondada e Dubois (2003), Marcuschi (2008), Koch (2002, 2006), Cavalcante (2011), Santos (2015), dentre outros autores. Com base em uma análise qualitativa, foram observados os objetos de discurso centrais das notícias, como as seleções e seus jogadores, analisando as anáforas diretas. Além disso, foram identificados os encapsuladores, os casos de dêixis e, por fim, verificaram-se as aná-foras indiretas. A análise dos dezesseis textos dos jornais Lance e O Globo mostrou que a referenciação apresenta funções específicas na

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construção das notícias. Confirmou-se, pela análise da autora, que o gênero notícia esportiva é bastante atrelado ao contexto socio-cognitivo e as formas de referenciação nele verificadas dependem extremamente de conhecimentos compartilhados para sua inter-pretação. Assim, a notícia esportiva procura destacar ou enfatizar lances, detalhes mais importantes do jogo, valorizar uma determi-nada seleção, por exemplo, de modo a garantir uma adesão emocio-nal do seu interlocutor.

Júlio Manoel da Silva Neto analisa, à luz da Linguística do Texto, principalmente no que se refere aos estudos sobre refe-renciação, e da Teoria da Argumentação, como as estratégias de re-ferenciação são importantes elementos constitutivos da elaboração de textos argumentativos, ou seja, daqueles que almejam conven-cer seu público-alvo de determinada tese. O corpus constitui-se de um artigo de opinião intitulado “A fanática visão única”, publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo (2015), de autoria de Flávio Tavares, em que foram selecionadas as anáforas diretas, encapsuladoras, e observadas as pistas textuais como elementos centrais para aná-lise. Motivado pelo ataque do Estado Islâmico (EI) a Paris em 13 de novembro 2015, o artigo em foco tem como principal objetivo apresentar uma crítica ao fanatismo religioso desse grupo. A análi-se do texto serviu para mostrar que as construções referenciais são meios pelos quais os enunciadores explicitam seus posicionamen-tos discursivos, mesmo diante da temática externa, atribuindo qua-lificações axiológicas a diferentes objetos, tanto para valorizá-los quanto para depreciá-los, instituindo, muitas vezes, um discurso de polarização em que se supervaloriza o Ocidente em detrimento do Oriente Médio. Dessa maneira, avaliando as diferentes escolhas lexicais que se realizam no projeto de dizer, o autor constatou que

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a referenciação serve como um importante meio para revelar mar-cas argumentativas. Segundo Van Dijk (1996; 1999), Koch; Elias (2016) e Koren (2016), a seleção lexical é um importante fator coo-perativo da construção argumentativa, uma vez que o léxico tanto é uma das maneiras observáveis de manifestação ideológica quanto é por meio dele que também avaliamos, julgamos, desqualificamos algo ou alguém.

Maria Cristina Vieira Bastos analisa a maneira pela qual as chamadas “anáforas encapsuladoras” podem contribuir para a construção da argumentatividade em notícias de jornal. Essas aná-foras, que consistem de retomadas de um referente através de dife-rentes recursos, são destinadas a “orientar” o sentido, persuadindo o leitor a se engajar no projeto de dizer do enunciador. O trabalho está embasado na concepção sociocognitiva e interacional da lin-guagem e em trabalhos sobre referenciação. Com tal suporte teóri-co, foi realizada uma análise comparativa de um corpus constituído por notícias publicadas pelas mídias digitais dos jornais O Globo digital e Mídia Ninja. Os resultados mostram que a Mídia Ninja uti-liza a estratégia de encapsulamento anafórico com valor axiológi-co (que se relaciona à teoria crítica dos conceitos de valor) mais frequentemente, estabelecendo maior argumentatividade e posi-cionamento explícito do enunciador acerca dos fatos noticiados. O Globo digital, por outro lado, revela maior frequência da utilização do encapsulamento anafórico sem valor axiológico.

O estudo de Marianna Maroja Confalonieri Cardoso mostra uma análise diacrônica que contempla um contraste entre o português europeu (PE) e o brasileiro (PB), com base em amos-tras constituídas de peças de cunho popular, escritas por autores cariocas e portugueses, ao longo dos séculos XIX e XX. A análise

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levanta as estratégias de indeterminação do agente, apontando a robustez do clítico genérico SE no PE para o tipo de indeterminação que pode ou não incluir o falante e o interlocutor, além do amplo uso do verbo na 3ª pessoa do plural, para o tipo que exclui o falante, e, finalmente, o uso da 1ª pessoa do plural para a indeterminação que necessariamente inclui o falante. Comparados esses resulta-dos com os obtidos para a amostra brasileira por Vargas (2010) e revista por Marianna, fica evidente o comportamento oposto do português brasileiro: o clítico apresenta uma curva descendente, que parte de uma média de 50% de uso no século XIX e chega ao úl-timo quartel do século XX com 4%. Quanto às demais estratégias, o PB revela crescente preferência por formas nominativas expressas, como você, eles e a gente, para os três tipos semânticos de indeter-minação, respectivamente.

A análise de Ulli Santos Bispo Fernandes, que utiliza as mesmas amostras de peças teatrais que serviram ao estudo de Ma-rianna Maroja Confalonieri Cardoso, focaliza o clítico dativo argu-mental de 3ª pessoa – LHE – e suas formas variantes ao longo do tempo. Seus resultados revelam igualmente um sistema muito for-te e estável, no que diz respeito a essa estratégia no PE (entre 50% e 60% ao longo dos períodos contemplados na amostra), enquanto suas variantes, o uso de um SP anafórico e do dativo nulo, giram, respectivamente, em torno de 30% e 10%, também estáveis ao lon-go do tempo. O PB, ao contrário, exibe uma curva descendente para o uso do clítico dativo, que parte de 60% na primeira sincronia (pri-meira metade do século XIX) e chega a 3% na última (fins do século XX). Quanto às suas variantes, vê-se um movimento ascendente e muito semelhante, alcançando ambas as estratégias alternativas índices próximos de 50%.

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Diana Silva Thomaz analisa a ordem dos clíticos em for-mas complexas, utilizando uma amostra de cartas pessoais trocadas entre membros da família Pedreira Ferraz – Abreu Magalhães, todos nascidos ao longo do século XIX e distribuídos em três gerações: o patriarca da família, representando a primeira; suas duas filhas e o marido de uma delas, representando a segunda geração, e seus oito filhos, a terceira geração. Os resultados mostram que a gramática atestada nessa correspondência revela diferentes padrões sintáticos associados à gramática do Português Médio (ou Português Clássico): (i) X cl V1 V2, um padrão conservador, em que o clítico aparece antes do auxiliar tendo um elemento qualquer em primeira posição, possi-bilidade que viria a ser perdida no PE moderno, quando a ocorrência de tal padrão dependeria de um “proclisador” em primeira posição; (ii) V1 V2-cl, um padrão característico do PE Moderno (fixado a par-tir do séc. XIX); e (iii) o padrão V1 cl V2, associado à gramática do PB, em que o clítico aparece proclítico ao segundo verbo. Sua hipó-tese, segundo a qual há diferentes “gramáticas em competição” na escrita do período analisado, é confirmada.

Monique Débora Alves de Oliveira Lima relata a pesqui-sa realizada numa escola pública da cidade do Rio de Janeiro com o objetivo de descrever e analisar, segundo a perspectiva sociolin-guística variacionista, as variantes pronominais na escrita escolar como base para elaborar uma proposta pedagógica que leve os alu-nos a adquirirem “maior consciência linguística” sobre o fenômeno, isto é, a deles se utilizarem segundo a situação de interação em que estiverem inseridos. Foram focalizadas, em um corpus constituído de 201 redações escolares produzidas por alunos de 6º e 9º anos, as funções de nominativo de 1ª pessoa do plural e de 2ª pessoa do singular, e de acusativo, dativo e reflexivo de 1ª pessoa do plural,

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2ª pessoa do singular e 3ª pessoa do singular e do plural. Depois de fazer a análise dos resultados obtidos nas redações, a autora men-ciona como foi elaborada a proposta pedagógica, fundamentada nos eixos linguístico, epilinguístico e metalinguístico e desenvolvida em seis módulos, indicando ainda os gêneros textuais a serem uti-lizados, das modalidades escrita e falada, de registro tanto formal quanto informal, tendo em vista “a necessidade de trabalhar os contínuos de oralidade e letramento e de monitoração estilística”. São também exemplificadas atividades de estudo dirigido relacio-nadas a cada eixo, segundo a proposta de Vieira (2014, 2017). Em suas considerações finais, a autora diz almejar que a proposta peda-gógica por ela desenvolvida “possa ser aplicada em salas de aula de escolas públicas, a fim de tornar o ensino sobre o quadro pronomi-nal mais fiel àquilo que de fato é praticado no PB em suas diversas expressões”.

Aline Ponciano dos Santos Silvestre, numa interface sintaxe e prosódia, aborda o desgarramento, que, na perspectiva funcionalista, se caracteriza pela possibilidade de as cláusulas fun-cionarem como unidades de informação independentes do ponto de vista sintático. Assim, com base em dados do PB e do PE, es-tuda o comportamento prosódico de cláusulas hipotáticas adver-biais não desgarradas e desgarradas, à luz do arcabouço teórico da Fonologia Prosódica (Nespor; Vogel: 1994) e da Fonologia Entoa-cional (Pierrehumbert: 1980; Ladd: 1996). Foram analisados pela autora 1.800 dados (900 de cada variedade do português) e feitas aferições de três pistas prosódicas: contorno melódico, duração das sílabas e gama de variação de frequência fundamental (F0) no fim do sintagma entoacional (IP). Os resultados revelam que o desgar-ramento na língua falada é licenciado, primordialmente, tanto no

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PB quanto no PE, pela maior duração nas sílabas finais do IP. Para o PB, além da variação fonética dada pelo comportamento duracional das sílabas finais dos IPs, o desgarramento é caracterizado por um padrão melódico diferente do observado nas cláusulas anexadas ao núcleo (L+H*L% para cláusulas sintaticamente anexadas a outras e L+H*H% para as desgarradas).

Os dois próximos estudos estão voltados para o português de São Tomé (PST), que, juntamente com o português de Moçambi-que, vem sendo objeto de análises com o objetivo de contribuir para os debates sobre as origens do PB. A hipótese que permeia os tra-balhos é a de que, dado o caráter multilíngue dessas comunidades, seria possível nelas encontrar pistas sobre o que teria ocorrido com o português nos períodos em que, no Brasil, com ele coexistiam, de forma mais efetiva, línguas africanas e indígenas.

Raphaela Ribeiro Passos ocupa-se do ditongo /ei/ no PST em contexto medial de vocábulo, como em beijo, e em contexto fi-nal em formas verbais, como em cheguei. Suas análises demonstram não haver qualquer registro da concretização de /ei/ como [ 1j], a exemplo do que ocorre na norma lisboeta do PE, e estar a monoton-gação em contexto medial sujeita aos mesmos condicionamentos que se observam no PB. Já em contexto final, esse processo está presente sobretudo na fala de indivíduos que utilizam o forro com maior frequência.

Fabiane de Mello Vianna da Rocha Teixeira Rodrigues do Nascimento, cuja tese focalizou as vogais médias /e/ e /o/ pre-tônicas no PST, buscando, em particular, determinar os fatores que concorrem para o alteamento, selecionou, para esta publicação, os resultados obtidos no capítulo em que investiga a influência dos itens lexicais na aplicação da regra de elevação da pretônica, abor-

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dando apenas a média anterior. Ela demonstra que os 6.643 dados de vogal /e/ por ela considerados em sua tese estão distribuídos por 1.598 itens lexicais, que ela observa minuciosamente, inclu-sive apresentando a frequência do ditongo, da média aberta e do cancelamento, variantes pouco produtivas e que não foram levadas em conta na análise variacionista centrada na aplicação de [i] em contraposição a [e]. Depois de proceder a um detalhado levanta-mento dos itens lexicais presentes na amostra, a autora, em suas conclusões, observa que “o pequeno número de registros de varia-ção entre [e] e [i] em um mesmo item lexical e em um mesmo indi-víduo indicou que a maioria dos entrevistados optou por uma das variantes” e que, no PST, é provável que “a flutuação fonética de /e/ pretônica abranja a comunidade de fala como um todo”.

Também sobre as vogais médias em contexto pretônico, neste caso, no âmbito do PB, Silvia Souza Guerreiro desenvol-ve um estudo com o objetivo de analisar as crenças e atitudes dos falantes frente ao alteamento dessas vogais com base em testes para verificar se o processo é avaliado positiva ou negativamente ou, ainda, se é visto com neutralidade. Vinte julgadores, todos com nível superior, responderam a um questionário fechado com nove questões de múltipla escolha para verificar se: (i) identificavam o fenômeno objeto da avaliação; (ii) relacionavam o fenômeno a uma região específica do país; (iii) atribuíam um determinado grau de escolaridade ao falante pelo uso de uma ou outra e (iv) considera-vam um ou outro uso mais ou menos formal. Cada um dos testes foi observado isoladamente, concluindo-se que eles não permitem classificar o alteamento como um estereótipo, nos termos de Labov (2008), embora o processo possa ser associado a menor prestígio. A autora propõe, então, duas possibilidades de classificar o alteamen-

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to: como indicador, “pois o fenômeno se encontra abaixo do nível da consciência social dos usuários da língua” e como marcador, pois, apesar de o fenômeno “estar abaixo do nível da consciência”, os usu-ários da língua “produzirão respostas regulares em testes de reação subjetiva”.

Cabe, por fim, agradecer (a) ao Prof. Dau Bastos, coorde-nador do PPGLEV, pela proposta de organizarmos este e-book, iniciativa imediatamente aprovada pela Comissão Deliberativa; (b) aos colegas de diversas universidades brasileiras, que, de pronto, aceitaram fazer a avaliação cega dos textos aqui publicados; (c) a Cynthia Horn, estagiária do PPGLEV, pelo apoio logístico para a elaboração desta obra; e (d) aos autores destes catorze capítulos, que enfrentaram o desafio, como é praxe na vida acadêmica, de te-rem partes de suas dissertações ou teses mais uma vez avaliadas. Eles estão de parabéns.

Silvia Figueiredo BrandãoVioleta Virginia Rodrigues

Maria Eugenia Lammoglia Duarte

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Uma abordagem construcional dos splinters não nativos no português do Brasil

José Augusto de Oliveira Pires*

No presente artigo, objetivamos estudar um tipo morfoló-gico cada vez mais recorrente nas estruturas morfológicas da língua portuguesa: o splinter. Esse termo foi proposto por Bauer (2004), buscando designar partículas recorrentes oriundas de processos não concatenativos de formação. Sobre esses processos, Gonçalves (2012) afirma que se distinguem dos concatenativos em decorrên-cia de neles não haver encadeamento:

Nas operações aglutinativas, como a composição, a prefi-

xação e a sufixação, um formativo se inicia exatamente no

ponto em que outro termina, como em “bolsa-ditadura”

[“benefício pago pelo governo para reparar danos impostos

a cidadãos brasileiros durante o regime militar”], “pré-sal”

[“porção do subsolo que se encontra sob uma camada de

sal situada abaixo do leito do mar”] e “psdista” [“adepto do

PSD”, novo partido político brasileiro]. Nos processos não

concatenativos, a sucessão linear dos elementos morfoló-

gicos pode ser rompida por reduções, fusões, intercalações

ou repetições, de modo que uma informação morfológica

não necessariamente se inicia no ponto em que outra ter-

mina (p. 182).

* Doutor em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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José Augusto de Oliveira Pires

Segundo Gonçalves, “em inglês, splinter originalmente signi-fica ‘fragmento’, ‘pedaço’, ‘lasca’. Na literatura morfológica, por sua vez, remete a partes de palavras que, retendo o significado da forma original, recorrem numa borda específica de novas formações lexi-cais” (2013, 140). Por se tratar de um termo técnico, optamos por não traduzi-lo e o fizemos por dois motivos, fundamentalmente: “(a) traduções nem sempre são precisas para caracterizar unidades como essas e (b) acreditamos que a literatura da área precisa adotar um vocabulário universal para evitar a proliferação de vários termos téc-nicos usados em referência a uma mesma entidade” (p. 140).

Ainda sobre os splinters, devemos considerar que, embora sejam oriundos de processos não concatenativos de formação, con-seguem se adaptar a padrões de formação tanto da derivação (prefi-xação e sufixação) quanto da composição, tendo em vista o fato de serem fragmentos que se fixam em uma das bordas das construções de que participam, rompendo, portanto, com a não concatenativi-dade de onde se originaram. Além disso, um fato interessante deve ser ponderado: a possibilidade de também serem oriundos do inglês nas construções lexicais em língua portuguesa. Podemos comprovar essas assertivas por intermédio de exemplos (Quadro 1):

Quadro 1: exemplos de splinters nativos e não nativos.

Camaronese Macarronese ovonese

Sextaneja Pagonejo funknejo

Paitrocínio mãetrocínio avôtrocínio

ciber-café ciber-espião ciber-ataque

wiki-aves wiki-novela wiki-flora

banheiro-gate panetone-gate Temer-gate

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Uma abordagem construcional dos splinters não nativos no português do Brasil

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Notamos que os fragmentos -nese, -nejo e -trocínio (a) se en-contram na borda direita da palavra, (b) comportam-se como sufi-xos e (c) são splinters nativos. Por sua vez, ciber-, wiki- e -gate (a) es-tão nas bordas esquerda e direita das formações, (b) compor tam-se como prefixos e sufixo, respectivamente, e (c) são não nativos, já que são oriundos do inglês. Observemos que todas as formações com fragmentos da língua inglesa são adjungidas a unidades lexi-cais do português: palavras, siglas ou mesmo outras partes de for-mas nativas. Devemos ressaltar que, como nosso objetivo é estudar os splinters não nativos, nos ateremos apenas à análise deles.

Outro fator importante diz respeito à adoção da perspec-tiva teórica da Morfologia Construcional. Sobre essa teoria, ao as-sumir uma postura ligada à Linguística Cognitiva, na qual léxico e sintaxe não possuem uma separação estritamente rígida (Croft & Cruse: 2004), adaptando a abordagem construcionista de autores como Goldberg (1995) e Booij (2005, 2010), entende-se ser possí-vel apresentar uma semelhança estrutural entre composição e de-rivação, de forma que ambas possam ser representadas por esque-mas de formação de palavras que expressem generalizações sobre palavras existentes, a fim de serem usados para representar novas formações.

Com isso, demonstra-se que, por mais que haja dificuldades no que diz respeito à demarcação fronteiriça entre composição e derivação, ambas têm capacidade de apresentar estruturas simbó-licas convencionais em que as diferenças não seriam consideráveis. Dessa maneira, a adoção da Morfologia Construcional para a aná-lise dos splinters não nativos busca um tratamento mais adequado na relação entre semântica, sintaxe, morfologia e léxico, em que os esquemas morfológicos poderiam vir a ser interpretados como

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padrões sintáticos gramaticais ou expressões idiomáticas no nível da palavra (Gonçalves & Almeida: 2012).

Sendo assim, procuraremos fazer uma breve descrição dos splinters, mais especificamente dos não nativos, objetivando (a) um melhor entendimento do que vem a ser esse tipo morfológico e de onde provêm essas partículas, (b) rastrear o que a literatura tradi-cional e a especializada mencionam acerca do assunto e (c) verificar o lugar deles na teoria morfológica. Dentro dessa descrição, procu-raremos demonstrar que (1) os splinters se encaixam nos proces-sos concatenativos de formação de palavras, apesar de emergirem dos não concatenativos, (2) alguns procedimentos são a base para a formação desses formativos, como CVs, ou seja, cruzamentos vo-cabulares (Andrade: 2013; Gonçalves: 2013, 2016a, b; Gonçalves & Alves: 2014) e truncamentos (Andrade: 2013; Belchor: 2014, 2016; Gonçalves: 2013, 2016a, b), sendo estes últimos provenientes do encurtamento de palavras ou de expressões.

Na sequência, faremos uma breve descrição da Morfologia Construcional. Nosso propósito é apresentar o arcabouço teórico, com o intuito de observar as principais motivações para a utilização da teoria de Booij ao fenômeno em questão, de modo a trazer um olhar mais abrangente e pertinente para as construções morfoló-gicas que vêm sendo formadas. Dessa maneira, torna-se possível a criação de padrões construcionais que, por sua vez, colaborariam para a constatação da produtividade dos formativos não nativos.

Por último, buscaremos aplicar a perspectiva teórica da Morfologia Construcional a alguns splinters não nativos – tendo em vista que o número de formativos arrolados é extenso –, de modo a (a) mapear e inventariar as partículas do inglês recentemente utilizadas nas estruturas morfológicas do português; (b) descre-

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ver as características formais e semânticas das formas complexas ditas híbridas (com uma parte vernácula e outra emprestada); (c) refletir de que maneira novas unidades morfológicas se integram na língua; (d) mostrar que tais unidades se conformam aos esque-mas básicos de formação de palavras; e, por fim, (e) representar os esquemas e os subesquemas de que participam.

1. Descrição dos splinters: revisão, conceituações e referen-ciações na literatura morfológica

O conceito de splinter, que apresentamos anteriormente, a partir das palavras de Gonçalves (2013), possui, em português, ou-tras nomenclaturas, como fractoconstituinte (Corbin: 2000) e frag-mento lexical (Andrade: 2013). No entanto, seguindo a orientação de Gonçalves, para quem deve haver uniformização terminológi-ca na área, nos valeremos do termo mais consagrado na literatura morfológica: splinter. Fundamentados na noção de que esse novo tipo morfológico pode ser tanto nativo quanto não nativo, vejamos alguns exemplos: “nikiti-leaks”, “PT-leaks”, “banheirogate”, “pane-tonegate”, “pobregram” e “futigram”.

Para esses exemplos, temos os splinters não nativos, que também são partes de palavras (não necessariamente morfêmicas) que passam a ser interpretadas assumindo o significado de uma construção maior da que se desgarraram. Em -leaks, -gate e -gram, temos, respectivamente, vazamento de informação, escândalo e foto digital (Gonçalves: 2016b, 87). Ainda sobre tais exemplos, po-demos notar que, assim como os afixos, todos ocorrem em uma das bordas da palavra. Todavia, diferem dos prefixos e dos sufixos em geral, em razão de seus significados corresponderem a pala-vras. Em outras palavras, tendo em vista que esses fragmentos são

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provenientes de formas encurtadas e/ou de cruzamentos vocabu-lares, assumem o significado das palavras de origem, passando a designar, na formação complexa, o significado do todo de onde se desprenderam, adjungindo-se a outros elementos e sendo respon-sáveis por uma produção lexical sistemática.

Com base nas considerações feitas acima, destacamos que Gonçalves (2016b, 87) traz dois quadros que elencam os principais splinters até agora levantados, tanto de origem vernacular quanto de outras línguas. Como nosso foco neste estudo são os não verna-culares, traremos somente um deles (Quadro 2):

Quadro 2: splinters não nativos.

ElementoForma de

origemSignificado Exemplos

cyber- cybernetics Digitalciber-ataque, ciber--café, ciber-crime

wiki- Wikipediasite colabora-

tivo dewiki-novela, wiki--aves, wiki-flora

e- electronicpelo compu-

tadore-comunidade, e-vendas, e-professor

i- i-Pod pessoal; meui-Phone, i-Mac, i-Tablet

pit- Pitbull Agressivopit-babá, pit-pai, pit-bicha

-leaks Wikileaksvazamento de

informação

Amazônia-leaks, Nikiti-leaks, planalto-leaks

-gram Instagram foto digital depobre-gram, favela--gram, futi-gram

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-gate Watergate Escândalobanheiro-gate, Piquet-gate, panetone-gate

-cast Podcasttransmissão pelo celular

jornal-cast, série--cast, celular-cast

-tube Youtube pela internetUFF-tube, pornô--tube, IURD-tube

-burguer hamburger Sanduíchefran-burguer, fish-burguer, egg-burguer

Feitas essas considerações iniciais, vejamos alguns proces-sos não concatenativos que são fundamentais para a ocorrência dos splinters não nativos.

1.1. Cruzamentos vocabulares, truncamentos e processos não concatenativos: a formação dos splinters

Fundamentando-nos na assertiva de que splinters começam a ser vistos como um modo efetivo para a formação de novas pala-vras em língua portuguesa, é importante levarmos em consideração quais mecanismos estão por trás dessas unidades. Já mencionamos aqui que elas podem ser formadas a partir do cruzamento vocabu-lar (Andrade: 2013; Gonçalves: 2013, 2016a, b; Gonçalves & Alves: 2014) e do truncamento (Andrade: 2013; Belchor: 2014, 2016; Gon-çalves: 2013, 2016a, b), que advém do encurtamento de palavras – também conhecido como clipping. Trata-se de um processo de re-dução em que uma parte nem sempre morfêmica passa a valer pelo todo, a exemplo de “refri” e “cerva”, para “refrigerante” e “cerveja”.

De acordo com Andrade, cruzamentos vocabulares – tam-bém conhecidos como CV – dizem respeito a

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uma palavra morfológica, resultante da fusão de duas ou-

tras pré-existentes, que, ao mesmo tempo, reproduz e cria

significados a partir das palavras que lhe serviram de fon-

te, como, por exemplo, baianeiro [<baiano + mineiro], bre-

ganejo [<brega + sertanejo], chafé [<chá + café], marginata

[<marginal + magnata], entre tantas outras (2013, 47).

Outra consideração importante acerca do CV, sobre a qual falam Andrade (2013) e Gonçalves (2016b), diz respeito ao fato de ele ser responsável pela cunhagem de palavras por intermédio de três distintos meios de operação, a saber: por interposição (também chamada de entranhamento ou impregnação lexical), por combina-ção truncada e por substituição sublexical (que também é conhecida como reanálise ou analogia).

A impregnação lexical é a interposição de duas palavras que compartilham material fônico em comum, de modo que há uma sobreposição, uma fusão de alguns ou de vários segmentos das palavras-matrizes na forma resultante. Segundo Gonçalves (2016b), a maior ou menor quantidade de material que será compartilhado é resultado direto do grau de semelhança fônica entre as duas entradas lexicais a serem fundidas. Sendo assim, há a possibilidade de uma palavra aparecer em sua totalidade na outra, como é o caso de “burrocracia”, que trata de uma “burocracia que é burra”, na qual o menor termo, ou seja, “burro”, está totalmente inserido no maior – “burocracia”.

O segundo tipo de formação de CV é a combinação truncada. Esse processo, de acordo com Gonçalves, “se assemelha à compo-sição bem mais que o primeiro” e “não necessariamente envolve o compartilhamento de material fonológico” (2016b, 77). Sendo

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assim, trata-se de um tipo de formação em que uma palavra é trun-cada, ou seja, sofre algum tipo de encurtamento, perda de alguma massa fônica, unindo-se a outra unidade, seja ela truncada ou não. Com isso, o significado do produto geralmente é uma combinação dos sentidos das palavras de origem.

Na combinação truncada, há duas possibilidades de forma-ção. Na primeira, se as bases forem praticamente do mesmo tama-nho, tem-se como resultado o encurtamento de ambas, como são os casos de portunhol (português + espanhol) e Comefogo (Comercial + Botafogo). No segundo caso, se houver uma base mais extensa do que a outra, a maior é recortada e a menor, sem perda de massa fônica, adjunge-se a ela em sua totalidade, como se pode ver em macuncrente (macumbeiro + crente) e em showmício (show + comício).

O terceiro e último tipo de CV é a substituição sublexical ou SSL – também conhecida como analogia1 (Basilio: 1997) ou reanálise (Gonçalves: 2003). Esse mecanismo tem como principal característica a reinterpretação de uma sequência não morfêmica como unidade dotada de significado, que passa à condição de um morfema propriamente dito, fato que possibilita sua substituição por outra. Dito de outra forma, a uma parte de uma das palavras, atribui-se a condição de base ou de afixo, em decorrência de se as-semelhar a uma forma de livre curso na língua, de modo que cede seu lugar a uma “palavra invasora”, responsável por substituí-la. Enumeremos algumas ilustrações: bebemorar [beber + comemorar], enxadachim [enxada+espadachim]. Com base no exemplo bebemo-rar (comemoração regada a bebida), podemos observar que uma

1 Alguns estudiosos, dentre eles Gonçalves (2003) e Basilio (1997), estabelecem uma distinção entre analogia e cruzamento vocabular.

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sequência não morfêmica passa a ser reinterpretada como uma parte dotada de significado e, por isso, alçada à condição de base.

1.2. Truncamentos vocabularesAcerca dos truncamentos vocabulares, segundo Andrade

(2013), trata-se de um subprocesso de um mecanismo que se mos-tra mais amplo; no caso, seria o encurtamento de palavras, ou seja, o clipping. Para Belchor, em termos gerais, trata-se do

encurtamento de uma base, de modo que a palavra encur-

tada passe a configurar uma unidade lexical autônoma.

Nesse processo, merece destaque o fato de a parte encur-

tada, que pode ser considerada presa [porção não morfê-

mica, radical, prefixo], adquirir status de forma livre, uma

vez que passa a ser empregada no discurso, em lugar de

forma plena (2016, 17).

Com base nessa assertiva, vejamos alguns exemplos. É im-portante destacar que, de acordo com Belchor (2016), os trunca-mentos elencados possuem acentos gráficos utilizados como estra-tégia que indica tonicidade, bem como, em alguns casos, a abertura da vogal média. Sendo assim, os exemplos não possuem, necessa-riamente, compromisso estrito para com as regras acentuais em português, como se pode verificar em: “japonês > jápa” e “analfa-beto > análfa”.

Em tais exemplos, devemos destacar que (a) são formas truncadas resultantes da perda de material fônico da base, ou seja, o produto necessariamente é proveniente da supressão de segmen-tos da palavra-matriz, (b) não são formas presas na língua, isto é,

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são partes que possuem a capacidade de ser utilizadas pelos falan-tes no discurso de forma livre.

Feitas essas considerações iniciais sobre o truncamento, notamos que consiste em um processo não concatenativo bastante produtivo no que concerne a novas construções lexicais. Além disso, faz parte de um mecanismo mais amplo: o encurtamento de pala-vras. É justamente a partir dos encurtamentos lexicais que notamos como os splinters são abastecidos, uma vez que, por proverem formas presas, estas passam a ser reanalisadas como elementos morfêmicos, recorrem em uma das bordas de cada palavra e formam palavras em série. Com base na figura a seguir, retirada de Andrade (2013), veja-mos como esse mecanismo abrange os splinters:

Figura 1: distribuição das formas encurtadas entre os processos de formação lexical.

A partir da figura acima, podemos perceber que, especifica-mente para a formação dos splinters, o encurtamento lexical acaba

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sendo responsável por prover os CVs, principalmente por intermé-dio da substituição sublexical. Isso decorre justamente devido ao fato de formas encurtadas, vistas como não morfêmicas, passarem à condição de morfemas propriamente ditos, permitindo que (a) essas sequências representem o significado como um todo da pa-lavra-matriz e (b) haja a adjunção a outros elementos. Por conse-guinte, há uma produção sistemática de palavras, fato que propor-ciona o aumento do léxico, como é o caso de caipifruta, cujo splinter recorre na borda esquerda e forma palavras em série com base em diversas frutas utilizadas como ingrediente-base para a formação dessa bebida: caipiabacaxi, caipimelão e caipimorango.

Portanto, o mecanismo de encurtamento lexical se mostra bastante relevante para os CVs, tendo em vista que “parte da úni-ca palavra-base é reanalisada e promovida a radical, e, por analo-gia, substituída por uma unidade significativa, que, na etapa sub-sequente da operação, passa a funcionar como base” (Andrade & Rondinini: 2016, 870). Além disso, por se tratar de um fragmento de palavra usado repetidamente na formação de novas palavras (Bauer: 2005), é possível entender que o splinter possui um estatu-to próprio; é um splinter de base vernacular. A seguir, nos dedicare-mos à descrição da teoria da Morfologia Construcional.

2. Teoria da Morfologia ConstrucionalA expressão Morfologia Construcional não é recente. Em

1987, Corbin propõe um modelo de análise morfológica que de-nomina de construcional. Essa abordagem, no entanto, diferente-mente da de Booij (2005, 2007, 2010), está inserida em um quadro linguístico gerativista de inflexão lexicalista. Diferentemente da proposta de Corbin, o modelo do autor holandês se inscreve no pa-

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radigma da Linguística Cognitiva e se adapta à abordagem constru-cionista de autores como Goldberg (1995), voltados para a sintaxe, para a descrição de fatos morfológicos.

No que diz respeito à motivação inicial, a MC é oriunda de questionamentos das fronteiras internas da morfologia, pois se en-tende que “o propósito inicial de uma boa classificação é permitir ao linguista estabelecer as melhores generalizações possíveis sobre o fenômeno linguístico” (Booij: 2005, 109). A partir dessa proposi-ção inicial, o linguista holandês enumera três casos de demarcações que estão sendo investigados na literatura morfológica atual: (a) os limites entre compostos e construções sintáticas, (b) a distinção entre flexão e derivação e (c) a diferenciação entre composição e derivação. Sobre os três casos, Booij ressalta que os dois primeiros seriam mais destacados dentro dos estudos morfológicos, enquan-to o terceiro, apesar de menos proeminente, já vem sendo objeto de discussão, por exemplo, em Bauer (1983) e em Ten Hacken (2000), sendo o foco de sua análise.

Sobre os processos de construção lexical, tendo como base um critério mais tradicional sobre as definições de composição e derivação, Booij menciona que “o primeiro consiste na combina-ção de duas ou mais bases; enquanto a derivação é caracterizada pela adição de um afixo, isto é, um morfema preso a uma base” (2005, 109). Ao apresentar essas considerações, o autor ressal-ta que esse tipo de análise destaca as similaridades entre ambos sem, no entanto, serem suficientes para que a demarcação seja resolvida por meio da unificação desses dois tipos de formação de palavras. Além disso, Booij destaca que se devem estabelecer critérios para determinar se um formativo em particular pode ser considerado preso ou livre, assim como saber se essa diferença

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está relacionada a outros critérios, semânticos e fonológicos, e como essas distinções são analisadas.

Nesse sentido, seu objetivo é demonstrar que, por mais que haja dificuldades no que diz respeito à demarcação fronteiriça entre composição e derivação, ambas possuem a capacidade de apresentar es-truturas simbólicas convencionais cujas diferenças não seriam conside-ráveis. Em outras palavras, “essas unidades, que são complexas, podem, igualmente, ser analisadas, em suas estruturas de formação, por meio de esquemas construcionais” (Gonçalves & Almeida: 2012, 110).

Tendo em vista a análise que se faz dessas novas formações com base na MC, é importante ressaltar que se trabalha com a noção de esquemas, não de regras. Dito de outra maneira, segundo Basilio,

a diferença fundamental é que esquemas são generaliza-

ções a partir de construções, enquanto regras produziriam

essas expressões complexas. Mais especificamente, a dife-

rença se situa não no campo das representações, mas no

campo das proposições teóricas (2010, 207).

Indo ao encontro dessa assertiva, Booij (2005, 2007) res-salta que formas morfologicamente complexas são esquemas que possibilitam variadas instanciações, já que (a) itens também são responsáveis por evocar conceitos e (b) a evocação é situada tanto em termos linguísticos quantos em termos socioculturais.

2.1 Esquemas gerais de formação Ao fazerem a adaptação dos esquemas básicos de forma-

ção de palavras para o português, Gonçalves e Almeida (2012) demonstram que as três operações envolvidas – composição, su-

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fixação e prefixação – seriam representadas genericamente da se-guinte maneira:

(a) composição: [ [X] x [Y] y ] s

(b) sufixação: [ [X] x Y ] y (c) prefixação: [ X [Y] y ] y

No esquema apresentado, as variáveis X e Y seriam repre-

sentativas de sequências fonológicas; já x e y, minúsculas, seriam representativas de categorias lexicais, como adjetivo, advérbio, ver-bo, entre outras. Neste artigo, buscaremos mostrar como os splin-ters não nativos se adequam ora ao esquema da sufixação (piadatu-be e ortopédia), ora ao da prefixação (cibercafé e e-professor), tendo em vista que, por se tornarem elementos presos, são recorrentes em uma das bordas das construções de que fazem parte.

A respeito dos referidos esquemas, Booij afirma que “a diferen-ça entre composição e derivação está no fato de, na derivação, um dos constituintes não ter etiqueta lexical, uma vez que não corresponde a um lexema” (2005, 13). Ao fazer tal afirmação, o autor ressalta que a palavra é marcada com um índice subscrito – no caso (i, j) – que promove sua identificação no léxico. Por sua vez, os afixos, em decorrência de serem formas presas, não são indexados, já que se manifestam apenas quando vinculados a uma construção – no caso, a palavra.

Ainda sobre os esquemas genéricos, eles representam o pare-amento do polo significante com o polo significado. Tendo em vista que essas estruturas modelam conceitos genéricos que permanecem na memória, elas representam informações. Em outras palavras, isso significa dizer que, em função de acessarem moldes que estão arma-zenados nos conhecimentos linguístico e enciclopédico, tais estrutu-

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ras seriam abstrações de experiências do mundo que possibilitam de-preender generalizações. Assim, passam a representar o pareamento de uma estrutura formal com uma estrutura semântica.

Fundamentando-nos na ideia de que, por intermédio da abordagem construcional, haveria um tratamento mais adequado na relação entre semântica, sintaxe, morfologia e léxico, podería-mos interpretar os esquemas morfológicos como padrões sintáticos gramaticais ou expressões idiomáticas no nível da palavra (Gonçal-ves e Almeida: 2013). Com isso, pondera-se que as diversas repre-sentações com uma posição fixa e outra aberta não teriam diferen-ças significativas entre padrões regulares, expressões idiomáticas e palavras morfologicamente complexas – derivadas ou compostas. Quanto às representações da prefixação e da sufixação, podemos perceber que em ambas há um elemento fixo, constante – seriam, respectivamente, a primeira e a segunda partes – sem etiqueta lexi-cal, já que não correspondem a uma forma livre na língua.

Para a representação final da sufixação, por exemplo, to-memos as formações X-mente, assim representada, em (Figura 2):

Figura 2: formações X-mente.

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Tendo em vista que os nós mais baixos herdam proprie-dades dos nós dominantes, na segunda linha dessa árvore há a generalização e o significado dos adjetivos que se transformam em advérbios com o acréscimo do sufixo mente. Nesse sentido, essas novas formações podem ser realizadas com o que Booij (2010) denomina “unificação”, já Gonçalves e Almeida (2013) entendem como “compatibilização”. No que diz respeito à “com-patibilização”, a ideia seria que “o item combine suas proprie-dades lexicais com as propriedades semântico-gramaticais da construção” (Gonçalves & Almeida: 2013, 12). É justamente isso que acontece na segunda linha da árvore mostrada, pois nela há a combinação de propriedades lexicais do adjetivo em questão – forte – com as propriedades semântico-gramaticais da construção em si. Com base nessa relação, outras formações podem ser realizadas, de modo a se proporcionar uma renova-ção lexical. Passemos, agora, à análise de alguns splinters não nativos.

3. Análise construcional dos splinters não nativosEsta seção busca aplicar a perspectiva teórica da Mor-

fologia Construcional a alguns splinters não nativos, de modo a mapear, inventariar e descrever as partículas do inglês recente-mente utilizadas nas estruturas morfológicas do português, bem como apresentar as características formais e semânticas das for-mas complexas ditas híbridas (com uma parte vernácula e outra emprestada). Juntamente a esses objetivos, representaremos os esquemas e os subesquemas de que participam alguns formativos tomados para análise e buscaremos explicitar o significado geral e as possíveis extensões de sentido de cada um.

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3.1 Análise esquemática das formações com -pédiaSobre as formações X-pédia, sabemos que são oriundas de

empréstimo do grego enciclopédia (encyclopedia). No entanto, a pro-dução sistemática com o formativo em questão passou a ocorrer mais especificamente no século XXI, com as formas Wikipedia/Wi-kipédia (respectivamente, em inglês e em português), que, segundo definição do próprio site (2018), significa “projeto de enciclopédia colaborativa, universal e multilíngue estabelecido na internet sob o princípio wiki”. Além disso, “tem como propósito fornecer um conte-údo livre, objetivo e verificável, que todos possam editar e melhorar”.

Acerca das possibilidades de combinação, notamos que são várias as formas: (a) palavras, (b) siglas, (c) splinters, (d) prefixos, (e) truncamentos, (f) elementos neoclássicos e (g) antropônimos. Vejamos exemplos para cada um deles (Quadro 3):

Quadro 3: formações X-pédia.

Palavras Bibliapédia

Siglas MPBpédia

Splinters Wikipédia

Prefixos Micropédia

Truncamentos Flupédia

Elementos neoclássicos Zoopédia

Antropônimos Rihannapédia

Em termos de representação de acordo com a Morfologia Construcional, podemos notar que -pédia se adequa ao esquema da sufixação – [[X]x Y]s –, que soma um total de 42 formações, repre-sentadas da seguinte forma (Figura 3):

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Figura 3: formações X-pédia.

Nas formações em (Figura 3), podemos ratificar o quanto o formativo -pédia se adapta a diversas possibilidades de combina-ção. No caso de sonicpédia e sexopédia, com palavras; para SBTpédia, uma sigla; para cinepédia e animepédia, dois elementos truncados.

Ainda sobre esse splinter, notamos a existência de um maior grau de nativização nas novas construções. Ou seja, em ter-mos de pronúncia, as formações em língua portuguesa, em espe-cial na variedade brasileira, afastam-se da língua de origem: em vez de -pedia ([‘pi:.ɾiɐ]), passam a ser -pédia ([‘pƐ.dƷia]), isto é, em vez de vogal alta, temos a ocorrência de uma média-baixa, além de serem acentuadas graficamente. Essa modificação evidencia que, frente a cyber- e a -gate, o referido splinter é mais nativizado, demonstrando uma maior adaptação à morfologia do português, certamente em função da existência da palavra nativa enciclopédia, muito antiga na língua e de uso bastante geral. A analogia com a forma já existente faz com que o formativo importado seja senti-do como nativo, pois é tanto “nosso” quanto o correspondente do inglês, ambos oriundos do mesmo étimo. Agora, passemos a outro splinter não nativo: -tube.

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3.2. Análise esquemática das formações com -tubeAnalisando a origem da expressão Youtube, entendemos que

ela é proveniente do inglês you, que significa você, ligado ao termo tube, que é tubo, sendo, no caso, utilizada para designar a ideia de “você no tubo”, “você na tela”. A partir dessa noção inicial, Gonçalves destaca que, “usada metonimicamente em referência à televisão nessa língua, é hoje empregada para se referir ao monitor [tela do computador], dis-positivo pelo qual são veiculadas as imagens fornecidas pela Internet” (2016a, 117). Sendo uma plataforma que permite a distribuição e o car-regamento de vídeos em formato digital, permite a seus usuários “uma grande variedade de filmes, clipes e materiais caseiros, geralmente pe-quenas gravações envolvendo eventos variados: desde os de grande re-levância aos mais banais” (Gonçalves & Almeida: 2013, 402).

A partir dessas considerações iniciais, podemos destacar que a expressão Youtube possibilitou uma produção sistemática de palavras tanto na língua inglesa quanto na portuguesa. Vejamos algumas ilustrações a partir das 73 formações levantadas.

Figura 4: formações X-tube.

Com base no esquema acima, podemos notar que os exem-plos evidenciam tratar-se de vídeos compartilhados, carregados na internet, apresentando informações, reportagens e novidades so-

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bre um assunto específico. Os termos Jesustube e IURDtube – sigla da Igreja Universal do Reino de Deus – correspondem a religião, enquanto funktube e MPBtube dizem respeito a estilos de música.

Por último, para construções efetivamente criadas em língua portuguesa, notamos que a pronúncia confirma um maior grau de na-tivização desse splinter. Em inglês, é [‘tʃu:b]; por sua vez, em português, é [‘tu.bI]. Dessa forma, assim como cyber- e -pédia, -tube apresenta for-mações mais nativizadas.

Considerações finais Ao longo do presente artigo, procuramos fazer uma análise de

um tipo morfológico cada vez mais recorrente nas estruturas morfo-lógicas da língua portuguesa: os splinters, mais especificamente os não nativos. Sobre esse tipo morfológico, ponderamos que, mesmo sendo proveniente de processos não concatenativos de formação de palavras, possui a capacidade de se adaptar a padrões de formação tanto da deri-vação (prefixação e sufixação) quanto da composição, pois ora se fixam em uma das bordas das construções de que participam, ora equivalem a unidades lexicais autônomas.

Ademais, no caso dos não nativos, consideramos que eles são capazes de se adjungir a unidades lexicais do português, como pala-vras, siglas ou mesmo outras partes de formas nativas sem, no entanto, serem vistos como empréstimos de um modo convencional. Significa dizer, então, que não são incorporados itens linguísticos propriamen-te ditos (sobretudo substantivos, verbos e adjetivos), mas fragmentos morfológicos que, perfeitamente adaptados ou não ao português, pas-sam a formar palavras em série com bases vernaculares, como são os casos de cibercafé, wikinovela e e-vendas. Ressalta-se que essa produção em série permitiu o levantamento de mais de 800 novas formações.

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Para que fosse possível essa análise, procuramos fazer uma des-crição dos splinters, objetivando um melhor entendimento do que vem a ser esse tipo morfológico e de onde provêm essas partículas, rastreando o que a literatura tradicional e a especializada mencio-nam acerca do assunto e verificando o lugar dessas unidades na teoria morfológica.

Além disso, adotamos como arcabouço teórico a Morfolo-gia Construcional, desenvolvida por Booij, que suaviza as diferen-ças entre os processos de composição e derivação. Entendemos, portanto, que a adoção dessa linha para a análise dos splinters não nativos busca um tratamento mais adequado na relação entre se-mântica, sintaxe, morfologia e léxico, permitindo aos esquemas morfológicos ser interpretados como padrões sintáticos gramati-cais ou expressões idiomáticas no nível da palavra, conforme Gon-çalves & Almeida (2012).

A partir dessas ponderações, buscamos aplicar a Morfolo-gia Construcional a alguns splinters não nativos, visando descrever as características formais e semânticas das formas complexas híbri-das (com uma parte vernácula e outra emprestada) e mostrar que tais unidades se conformam aos esquemas básicos de formação de palavras do português. Juntamente a esses fatores, intencionamos representá-los em esquemas e subesquemas, explicitando o signi-ficado geral de cada splinter e suas possíveis extensões de sentido.

Por fim, esperamos ter contribuído para os estudos mor-fológicos do português, ao descrever um tipo morfológico pouco estudado na língua, sobretudo na perspectiva teórica adotada. Ade-mais, o tema abordado é apenas parte de um trabalho ainda a ser bastante discutido, analisado e debatido, afinal, novos estudos são – e serão – gerados sobre os splinters não nativos.

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Resumo

O presente artigo tem por objetivo fazer uma análise dos splinters, especificamente dos não nativos, à luz do arcabouço teórico da Morfologia Construcional. Para tal, procuraremos (a) descrever o que vêm a ser essas partículas, (b) mapear e inventariar alguns splinters não nativos utilizados contemporaneamente nas estruturas morfológicas do português e cole-tados de redes sociais, (c) examinar seu comportamento em termos de grau de nativização, ou seja, quais estariam mais adaptados à fonologia e à morfologia da língua portuguesa e (d) representá-los por intermédio de esquemas construcionais propostos por Booij (2005, 2007, 2010) e adap-tados para o português (Gonçalves & Almeida: 2012).Palavras-chave: Morfologia Construcional; splinters; formação de palavras.

Abstract

This paper aims to analyze splinters, specifically non native ones, in the light of the theoretical framework of Constructional Morphology. To do so, we will try to (a) describe what these particles are, (b) map and inventory some non native splinters that are used contemporaneously in Portuguese morphological structures and collected on social networks, (c) examine their behavior in terms of degree of nativization, that is, which would be more adapted to the phonology and morphology of the Portuguese language, and (d) to represent them through constructional schemes proposed by Booij (2005, 2007, 2010) and adapted to Portuguese (Gonçalves & Almeida: 2012).Keywords: Constructional Morphology; splinters; word formation.

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As teias da argumentação: um estudo de interface sintático-discursivo da hipotaxe circunstancial

Amanda Heiderich Marchon*

Vivemos em um momento histórico em que diversas vozes clamam para serem ouvidas, a fim de veicularem pontos de vista di-versos sobre a realidade que construímos dia após dia. Em meio a essa sociedade da qual somos membros, a todo instante explicitamos nossas opiniões que, por vezes, desencadeiam posicionamentos divergentes que podem ser debatidos e confrontados por meio de uma interação so-cial – fato que confere dinamicidade às relações humanas. Para Patrick Charaudeau (2009), a argumentação é um setor da atividade humana que sempre exerceu fascínio, desde a retórica dos antigos, que dela fez o próprio fundamento das relações sociais (a arte de persuadir), até hoje, quando se tornou tema de diversas investigações acadêmicas.

A obra de Aristóteles, filósofo que sistematizou uma exten-sa teoria acerca da lógica e do raciocínio, é indissociável das pes-quisas sobre argumentação. Embora muitos de seus postulados tenham sido lidos e reformulados com o desenvolvimento das ciên-cias, heranças de suas ideias ainda perpassam muitos dos estudos que hoje cercam o tema, como o conceito de doxa.

Doxa é uma palavra emprestada do grego e designa a opi-

nião, a reputação, o que dizemos das coisas ou das pes-

* Doutora em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é pro-fessora do Programa de Mestrado em Letras da Universidade Vale do Rio Verde.

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soas. A doxa corresponde ao sentido comum, isto é, a um

conjunto de representações socialmente predominantes,

cuja verdade é incerta (Charaudeau; Maingueneau: 2008,

176-7).

Além da ideia de crença comum e de opinião  ou reunião de pontos de vista, destacamos que a doxa pode variar de acordo com a época e com algumas circunstâncias históricas. Este artigo visa à investigação e à compreensão das estratégias linguístico-discursivas que discutem a aceitação ou a refutação das doxas adotadas pela so-ciedade contemporânea. Centralizaremos nossas análises, mais es-pecificamente, sobre os efeitos de sentido construído pelo emprego de orações adverbiais, doravante denominadas, pela teoria funciona-lista, “cláusulas hipotáticas circunstanciais”. A fim de empreender-mos essa investigação, analisaremos vinte e quatro pares de textos publicados ao longo do ano de 2014 pelo jornal Folha de S. Paulo, na coluna intitulada “Tendências e Debates”. Essa coluna veicula artigos de opinião assinados que, segundo informação editorial, não tradu-zem o posicionamento da instância midiática, uma vez que os arti-culistas não mantêm vínculo profissional com o jornal – são pessoas com conhecimento notório sobre os assuntos propostos para discus-são. Esses articulistas, ao responderem sim ou não ao questionamen-to feito pelos editores, defendem visões opostas em relação ao tema discutido, aproximando-se ou afastando-se da doxa vigente.

Pode-se questionar, porém, como identificar a doxa vigen-te, uma vez que o entendido como verdadeiro para um grupo pode ser considerado inválido para outro. Propomos, então, investigar a doxa que emerge dos pares de textos em análise, por meio do estudo dos implícitos textuais e do reconhecimento de múltiplas vozes nos

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discursos, postulados estruturados por Oswald Ducrot em Provar e dizer: linguagem e lógica (1981) e O dizer e o dito (1987), como escla-receremos na próxima seção.

Esta pesquisa, portanto, fundamenta-se na hipótese de que os níveis social, textual e sentencial são indissociáveis, sendo, pois, um reflexo do outro na estruturação do discurso, conforme ilustra a figura a seguir:

Figura elaborada pela autora

Buscaremos responder se a maior complexidade de com-provação de uma proposição, como em artigos de opinião opostos à doxa vigente, exigiriam do enunciador o emprego de um maior número de cláusulas hipotáticas circunstanciais para a construção da teia argumentativa. Certos de que toda teoria tem seus limites, independentemente da área do conhecimento a que se relacione, propomos utilizar ainda tanto estudos vinculados à Semântica

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Argumentativa quanto ao Funcionalismo. Para uma apresentação mais clara da investigação que empreenderemos, não apresentare-mos uma seção exclusivamente destinada ao tratamento dos dados, mas, simultaneamente, os conceitos teóricos e sua aplicabilidade para a discussão dos resultados.

Teoria de Argumentação na Língua As ações de linguagem que realizamos diariamente são

sempre permeadas por intenções e argumentatividade. A argumen-tação está tão presente na interação humana que, de acordo com Ducrot, já está inscrita na própria língua – Teoria de Argumentação na Língua, doravante denominada TAL.

A TAL concebe a significação em termos de valor, isto é, a significação de uma cláusula está constituída pelas relações que estabelece com as outras cláusulas no contexto em que estão in-seridas – proposta de análise que adotamos neste trabalho. Dessa forma, os conectores, sob o ponto de vista de Ducrot, ligam pro-posições umas às outras, mas também enunciações a proposições, servindo ainda para encadear enunciados a elementos da situação extralinguística ou às reações não ditas que o locutor atribui a si mesmo ou ao destinatário.

Neste trabalho, interessa-nos, portanto, destacar impor-tantes postulados que norteiam a teoria do linguista francês, quais sejam: o refinamento do que se convencionou chamar de implícitos textuais e o reconhecimento da polifonia no discurso.

Implícitos textuaisOs textos, em geral, apresentam um conteúdo implícito que

pode ser definido como o conjunto das informações que ficam à

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margem da discussão, porque não aparecem explicitadas no texto. Acreditamos que as entrelinhas muito contribuem para a constru-ção da teia argumentativa, à medida que os sentidos depreendidos do que não foi dito explicitamente também fazem parte da tessi-tura textual. Em geral, os implícitos são representados pelos pres-supostos e pelos subentendidos, conceitos explorados por Ducrot.

O fenômeno da pressuposição parece estar em estreita re-lação com as construções sintáticas gerais, estando, pois, inscrito na língua. Em outras palavras, o locutor veicula uma mensagem adicional a partir de alguma expressão que permite ao interlocutor depreender e inferir a informação implícita.

Ilustramos esse conceito com o artigo de opinião publica-do no dia 1 de fevereiro de 2014, que apresenta posicionamento favorável à descriminalização da maconha. Já no título do texto – “Sim: O novo status da maconha” – é possível depreender que o enunciador pressupõe que a substância não deve ser vista como uma droga, mas que outros usos da erva devem ser considerados. A expressão “novo status”, nesse caso, é a marca linguística que auto-riza tal interpretação, além do “sim” da resposta.

O fenômeno do subentendido, por seu turno, não apre-senta marcas linguísticas, seus sentidos são depreendidos pelo interlocutor por meio do próprio contexto comunicacional, sendo, portanto, uma interpretação ou afirmação que pode ser vista como verdadeira ou não.

Parece, com efeito razoável, fazer do pressuposto, ligado

ao próprio enunciado, bem como os fenômenos sintáticos

gerais, um produto do componente linguístico. O suben-

tendido, ao contrário, resulta de uma reflexão do destina-

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tário sobre as circunstâncias de enunciação da mensagem

e deve ser captado, através da descrição linguística, ao fi-

nal de um processo totalmente diferente, que leve em con-

ta, ao mesmo tempo, o sentido do enunciado e suas condi-

ções de ocorrência e lhes aplique leis lógicas e psicológicas

gerais (Ducrot: 1987, 23-4).

A partir da análise conjunta da pergunta empreendida pelo

jornal no dia 08 de março de 2014 – “Os direitos avançam para to-das as mulheres?” – e do título do artigo – “Não: Nós, moradoras da periferia” –, o leitor pode subentender que, de fato, nem todas as mulheres da sociedade são contempladas com as políticas governa-mentais que garantem seu bem-estar, já que algumas cidadãs, por morarem na periferia, enfrentam dificuldades próprias desse espa-ço urbano, como acesso a transporte público, saneamento básico etc. Ressaltamos, porém, que essa interpretação é de responsabi-lidade do interlocutor, que parte do pressuposto de que, no Brasil, o poder público não atende devidamente os bairros da periferia. Nesse caso, o interlocutor se vale de seu conhecimento de mundo, implícitos situacionais, além de implícitos pressupostos derivados do uso da expressão “nós da periferia”.

Além do estudo dos implícitos textuais, utilizamos, neste trabalho, a noção de polifonia, um importante postulado da Teoria de Argumentação na Língua.

Fenômeno da PolifoniaO questionamento da unicidade do sujeito, instaurado pela

noção de polifonia, conforme estudos de Mikhail Bakhtin (2003), inovou a investigação discursiva, visto que esta passou a incorporar

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a figura do outro como constitutivo da significação. Ducrot trouxe o termo para o interior da pragmática para designar, numa visão enunciativa do sentido, as diversas perspectivas, pontos de vista ou posições que se representam nos enunciados. Para ele, o sentido de um enunciado consiste em uma representação – no sentido teatral – de sua enunciação.

O estudioso aponta, na concepção enunciativa, uma dife-rença entre locutor e enunciador. Segundo ele, locutor é o ser que, no próprio sentido do enunciado, é apresentado como seu respon-sável; é a ele que se refere o pronome “eu” e as outras marcas da primeira pessoa.1 Já os enunciadores são seres que se expressam por meio da enunciação; expressam-se não por meio de palavras precisas, mas por intermédio de seu ponto de vista – vozes que nem sempre são a do locutor. Como afirma Ducrot, “se eles falam é so-mente no sentido em que a enunciação é vista como expressando seu ponto de vista, sua posição, sua atitude, mas não, no sentido material do termo, suas palavras” (1987, 192).

A teoria polifônica se manifesta nas unidades da língua, no enunciado e no discurso, revelando as figuras discursivas do locu-tor e do enunciador. Argumentar é mencionar, ao mesmo tempo, um ponto de vista e o ponto de vista contrário ao que se defende. Utilizando-se dessa estratégia, o locutor, enquanto responsável pelo enunciado, pode colocar em cena enunciadores cujos pontos de vis-ta ele organiza em relação ao seu projeto argumentativo. Nesse sen-tido, o locutor manifesta sua própria posição em relação aos enun-

1 Na obra O dizer e o dito, o estudioso refere-se à distinção que deve ser feita entre o locutor e o autor empírico, o produtor do enunciado, e, para isso, apresenta como exemplo um abaixo--assinado em que a pessoa que assina é bem diferente do autor do texto do referido documento, mas, uma vez que tenha assinado, é considerada como um de seus locutores.

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ciadores que mobiliza, quer se assimilando a um ou a outro, quer simplesmente os fazendo aparecer no enunciado para contestá-los.

Quando locutor e enunciador não são idênticos, há, então, a polifonia. Ao desenvolver esse conceito, Ducrot concebe que há uma “pluralidade de responsáveis” (1981, 161) e representa um modelo polifônico em enunciados do tipo X mas Y ou do tipo X em-bora Y, a partir do ponto de vista das vozes que os constituem.2 Para ilustrar esse modelo de polifonia, tomemos como exemplo o fragmento do artigo de opinião publicado no dia 28 de junho de 2014 – “NÃO: Crianças, cores e imaginação” – sobre a proibição ou não da publicidade dirigida ao público infantil:

Locutor (L): Embora a discussão sobre a necessidade de

regulamentar a publicidade infantil no país seja pertinen-

te, uma resolução do Conselho Nacional da Criança e do

Adolescente (Conanda), ao tentar evitar excessos, atingiu,

por tabela, um sem-número de atividades econômicas e

culturais destinadas única e exclusivamente à criança.

Enunciador 1 (E1): A discussão sobre a necessidade de

regulamentar a publicidade infantil no país é pertinente.

(Logo a publicidade destinada a crianças deve ser proibida (r)).

(Lugar de onde se apresenta o argumento mais fraco, in-

troduzido pelo conector embora).

2 Modelo polifônico: X e Y são os argumentos linguísticos sucessivos ligados pelo mas ou pelo embora; p e q são os elementos semânticos sobre os quais o mas (introdutor do argumento mais forte) e o embora (introdutor do argumento mais fraco) operam, r e não-r (~r) são as conclusões para as quais p e q apontam, L é o locutor, e E1 e E2 são os enunciadores.

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Enunciador 2 (E2): Uma resolução do Conselho Nacional

da Criança e do Adolescente (Conanda), ao tentar evitar

excessos, atingiu, por tabela, um sem-número de ativida-

des econômicas e culturais destinadas única e exclusiva-

mente à criança. (Logo, a propaganda destinada a crianças

não deve ser proibida (~r)).

(Lugar de onde se apresenta o argumento mais forte).

Ao incorporar o argumento de E1 em seu enunciado, sobre a real emergência de se regulamentar, no Brasil, a publicidade diri-gida às crianças, o locutor concede razão às teses do oponente. Ao introduzir, porém, o argumento de E2, sobre o sério prejuízo que a proibição das propagandas causaria às atividades econômicas e culturais vinculadas ao público infantil, não só defende sua própria tese como também refuta a argumentação do adversário. O jogo argumentativo leva à conclusão de que a resposta para a pergunta “Publicidade dirigida à criança deve ser proibida?”, proposta pela instância midiática é, sem dúvida, “não”.

Destacamos que o uso das cláusulas hipotáticas concessivas, ao lado do que a tradição gramatical denomina orações coordenadas adversativas,3 constitui um importante índice polifônico que apon-ta para o esclarecimento sobre qual doxa a sociedade atual adota. Esclarecemos que somente com base na Teoria Polifônica foi possí-vel determinar quais artigos de opinião se mostraram favoráveis ou contrários ao senso comum. Essa questão se torna basilar e justifica

3 Sob o rótulo de “orações de contraste”, José Carlos de Azeredo (2012) uniu as duas estruturas em tela.

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a opção pela adoção da interface teórica por nós adotada, uma vez que, em nosso corpus, acreditamos que os artigos de opinião que de-fendem posicionamentos em direção oposta ao que a sociedade con-sagra como politicamente correto apresentam maior produtividade de cláusulas hipotáticas circunstanciais numa posição discursiva-mente estratégica no enunciado. Ao considerarmos que o emprego da hipotaxe circunstancial exerce papel relevante no projeto argu-mentativo empreendido pelo enunciador, é mister que considere-mos o princípio da iconicidade, descrito pelo Funcionalismo.

FuncionalismoAo conceber a linguagem como instrumento de interação

social entre seres humanos, o Funcionalismo constitui-se como um conjunto de teorias que se preocupa em pôr em exame os vín-culos entre as estruturas linguísticas e os contextos em que elas se realizam. Nichols afirma que, embora analise a estrutura gra-matical, a gramática funcional “inclui na análise toda a situação comunicativa: o propósito do evento de fala, seus participantes e seu contexto discursivo” (apud Neves: 2001, 3). O tratamento não apenas dos constituintes que se limitam à sentença, mas que chegam à análise da instância discursiva, permitiu, portanto, que propuséssemos um estudo de interface entre a Análise do Discur-so e o Funcionalismo.

Sobre o Funcionalismo, interessa-nos discutir o princípio da iconicidade, principal postulado teórico empregado para o de-senvolvimento desta investigação.

Princípio da iconicidadeOs estudos de base funcionalista definem a iconicidade

como a correlação natural e motivada entre forma e função, ou seja,

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entre o código linguístico e o conteúdo (Neves: 2001, 103). Desse modo, questiona-se o dogma da arbitrariedade, proposto pela lin-guística estrutural, que dissocia, no signo linguístico, o significante daquilo que ele evoca conceitualmente, o significado.

O princípio da iconicidade desdobra-se em três subprin-cípios, que se relacionam à quantidade de informação, ao grau de integração entre os constituintes da expressão e do conteúdo e à ordenação linear dos segmentos. Em virtude do que se intenta nes-te artigo, destacaremos, porém, somente o primeiro e o terceiro subprincípios.

O subprincípio da quantidade revela que, quanto maior a quantidade de informação, maior a quantidade de forma, de tal modo que a estrutura de uma construção gramatical indica a estru-tura do conceito que ela expressa. Isso significa que a complexidade de pensamento tende a refletir-se na complexidade de expressão.

O subprincípio da quantidade: cláusulas hipotáticasAo analisarmos as ocorrências de cláusulas hipotáticas nos

textos do nosso corpus que discutem se a sociedade tolera ou não agressão contra a mulher, por exemplo, contabilizamos oito cláu-sulas no artigo de opinião que defendem que esse ato de violência é socialmente tolerável, mostrando-se, pois, discordante da doxa vigente. Por outro lado, apenas quatro cláusulas de posicionamen-to contrário foram encontradas no artigo, comprovando nossa hi-pótese de que quanto maior a complexidade para se sustentar um ponto de vista, mais produtivos serão os recursos linguísticos mo-bilizados para o cumprimento desta tarefa.

A análise análoga à citada anteriormente em relação à to-lerância ou não da agressão contra a mulher foi empreendida nos

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demais artigos de opinião que compõem o corpus desta pesquisa. Verificamos que, dos doze temas analisados, foi encontrado maior número de cláusulas hipotáticas circunstanciais em quatro dos textos cujas teses coincidem com a doxa, perfazendo um total de 33,33% dos dados; enquanto oito artigos que defendem teses con-trárias à doxa vigente apresentam maior produtividade das estrutu-ras sintáticas objeto de estudo desta pesquisa, totalizando 66,66%, ou seja, o dobro de ocorrências.

No que tange ao número total de cláusulas hipotáticas cir-cunstanciais que constituem nosso corpus de análise, destacamos que cento e sete figuram nos artigos de opinião em que o enuncia-dor busca desconstruir o senso comum e, para tanto, mais com-plexa se torna a composição dos dispositivos argumentativos para defender o posicionamento assumido. Nos textos que se mostram coincidentes com a vox populi, encontramos setenta e oito cláusu-las, conforme ilustra o gráfico 1:

Gráfico 1: Número de cláusulas hipotáticas em relação à doxa

Entendemos, portanto, que esse resultado é um indício

da iconicidade no que tange ao subprincípio da quantidade, assim

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como o é a presença de conectores para a introdução das cláusulas

hipotáticas.

O subprincípio da quantidade: conectoresA tradição gramatical, ao abordar a articulação de cláusu-

las, limita-se ao nível sentencial e à possibilidade de essa conexão

ser prioritariamente estabelecida pelas conjunções, no âmbito dos

períodos complexos. Celso Cunha e Lindley Cintra, por exemplo,

definem as conjunções como “vocábulos gramaticais que servem

para relacionar duas orações ou dois termos semelhantes da mes-

ma oração” (2001, 579). Manuel Said Ali vai além e define con-

junção como uma “palavra invariável ou locução que se costuma

pôr no princípio de uma oração relacionada com outra, a fim de

mostrar a natureza da relação” (1969, 103). Atentemos para o fato

de o autor considerar que a conjunção não funciona como simples

elo entre as orações, mas aponta para a relação de significado que

emerge disso:

Não tem a conjunção valor de simples elo mecânico pos-

to entre orações, mas serve à linguagem para evitar que

duas proposições se apresentem ambas como iniciais. A

partícula dá a uma delas o caráter de sequente [...]. Mas

a conjunção faz mais: assinala a relação lógica em que a

sequente está para com a inicial. É pois uma partícula que

exerce sua influência, não como o advérbio e a preposição

sobre um vocábulo, mas sobre uma oração em conjunto

(Said Ali: 1971, 219).

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Há que se notar, ainda, que o estudioso não desconsidera a possibilidade de preposições servirem como conjunção. Inspirados pe-los apontamentos do gramático e de estudos recentes sobre a articula-ção de cláusulas, esclarecemos que, neste trabalho, reconhecemos que a conexão entre cláusulas pode ser materializada por palavras diversas das conjunções, quais sejam: preposições, advérbios e as locuções equi-valentes a essas classes, tais como, locuções conjuntivas, prepositivas e adverbiais. Dessa forma, essas palavras ou expressões, denominadas conectores, conectam cláusulas, perío dos inteiros e, até, fragmentos de texto maiores que uma sentença, estabelecendo uma relação se-mântica ou pragmática entre os elementos ligados.

Para a análise dos conectores, limitaremos a discussão ao ve-rificarmos a forma como as cláusulas hipotáticas circunstancias são introduzidas no discurso, ou seja, observaremos se, em sua estrutu-ra, os conectores estão presentes ou ausentes.4 A análise quantitativa dos dados apontou que, entre as cento e oitenta e cinco cláusulas investigadas, em cento e quarenta e três, o conector está presente; ao passo que, em quarenta e duas estruturas circunstanciais, o conector está ausente, resultado representado pelo gráfico 2:

Gráfico 2: Emprego do conector nas cláusulas hipotáticas circunstanciais

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Os resultados reforçam a ideia de que cada vez mais os usu-ários da língua sentem necessidade de explicitarem, por meio do uso de um item lexical, a relação semântica que desejam, indepen-dentemente de sua categoria. Ducrot cunhou o termo de “operado-res argumentativos” para se referir às expressões que encadeiam a conexão entre as cláusulas, entre os enunciados. A primeira análise quantitativa referente aos conectores corrobora a postura do lin-guista, que considera que esses itens indicam a intenção argumen-tativa do enunciado, como explica Gouvêa:

Os operadores argumentativos pertencem à língua, já que

são marcas linguísticas; por outro lado, ao revelarem a in-

tenção argumentativa do enunciado, constituem-se em

marcas da enunciação. Sendo marcas da enunciação, per-

tencem ao discurso, uma vez que o discurso é a ação verbal

dotada de intencionalidade (componente da enunciação).

Assim, na condição de marcas linguísticas e marcas discur-

sivas, esses articuladores constituem uma ponte entre a

língua e o discurso (2006, 111).

Destacamos, ainda, que dos cento e quarenta e três conec-tores encontrados, oitenta e um figuram cláusulas hipotáticas pre-sentes em artigos de opinião contrários à doxa, ou seja, 56.6%. Tais

4 Na tese de doutorado As teias da argumentação: um estudo de interface sintático-discursivo da hipotaxe circunstancial (Marchon: 2017), analisamos também a prototipia dos conectores. Consideramos prototípicos os itens gramaticais que introduzem cláusulas cuja relação de signi-ficado já é antecipada pela própria nuance semântica dos conectores, de acordo com indicações da tradição gramatical; consideramos não prototípicos os conectores que não revelam a noção circunstancial instanciada a eles pela GT, bem como palavras de outra categoria gramatical que exercem a função de conectar cláusulas.

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dados, mais uma vez, apontam para a comprovação de que a maior complexidade argumentativa demandaria também uma maior co-dificação. Como os nexos causais são construções bastante comple-xas do ponto de vista formal e cognitivo, elas demandariam uma espécie de reforço para que a percepção do interlocutor fosse facili-tada no processamento da informação, estando, pois, os conectores a serviço de uma melhor expressividade linguística e argumentati-va, como ilustra o exemplo a seguir, retirado da Folha de S. Paulo de 28 de junho de 2014 (grifos nossos):

Curioso notar que a nova norma abre uma exceção ao per-

mitir o uso dos personagens, cores e trilhas sonoras in-

fantis em campanhas de utilidade pública – como se essas

mesmas criações brotassem de fonte natural e não fossem pro-

duzidas por músicos, artistas, cartunistas e escritores para

serem comercializadas, direta ou indiretamente, por meio do

licenciamento. Esses, sim, serão diretamente afetados caso a

resolução se mantenha.

Dessa forma, entendemos que também os conectores são itens importantes na trama, especialmente quando a tese defendi-da contraria à doxa social, como o destacado exemplo anterior que advoga a favor da permanência das propagandas infantis.

Quanto ao subprincípio da ordenação linear, ele se re-laciona à ordem dos segmentos no encadeamento sintático – a informação mais importante tende a ocupar o primeiro lugar da cadeia sintática, de maneira que a ordenação dos elementos no enunciado indica a sua ordem de importância para o falante. O trecho a seguir representa a opinião do enunciador que defende

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que os inibidores de apetite não devem ter a venda proibida no Brasil, posicionamento contrário à doxa que emerge do par de tex-tos sobre o tema. Ao topicalizar a informação de que a aprovação da comercialização dos medicamentos já vendidos nos Estados Unidos depende da aprovação da Anvisa – fato que pode demorar ou mesmo nem acontecer –, o enunciador fortalece seu posiciona-mento de que as pessoas obesas não terão acesso ao medicamento que pode ajudá-las a emagrecer. Na Folha de S. Paulo de 17 de maio de 2014 (grifos nossos):

A questão do acesso é um ponto crucial. Logo devem che-

gar novas opções de remédios ao mercado brasileiro. Os

americanos já têm à sua disposição dois novos e promis-

sores agentes antiobesidade. Ambos chegam respaldados

por pesquisas clínicas que envolveram milhares de pacien-

tes e centenas de milhões de dólares em investimentos.

Mas quando a Anvisa aprová-los – se aprová-los –, deve-

rão custar pelo menos R$ 200 a R$ 300 por mês. E aí

como fica o acesso?

Considerando os propósitos comunicativos, pode-se afir-mar que o princípio da iconicidade permite uma investigação deta-lhada das condições que governam o uso dos recursos de codifica-ção morfossintática da língua. Nas palavras de Mariangela Rios de Oliveira e Maria Maura Cezario, “não queremos dizer que não haja arbitrariedade linguística, mas sim que, ao produzir uma situação discursiva, fazemos escolhas lexicais e estruturais de acordo com os nossos objetivos para tentarmos conseguir sucesso na comuni-cação” (2007, 97).

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Como este trabalho busca explicar as estratégias discursivas por meio da análise de estruturas sintáticas, a posição da cláusula hipotática está diretamente relacionada ao princípio da iconicida-de, conforme detalha o gráfico 3:

Gráfico 3: Posição das cláusulas hipotáticas em relação à clausula núcleo

A análise atenta do gráfico 3 leva à importante observação de que, somados os percentuais referentes às cláusulas antepos-tas e intercaladas, 44,32% do total de cláusulas não aparecem na posição em geral indicada pela tradição gramatical, qual seja, a de posposição à cláusula núcleo, já que as estruturas investigadas po-dem ser comparadas a um adjunto adverbial. Em outras palavras, das cento e oitenta e cinco cláusulas analisadas, oitenta e duas não aparecem depois da cláusula nuclear. Apesar de entendermos que o estudo da posição das cláusulas tem estrita relação com a circuns-tância expressa pelas estruturas na sentença, destacamos que a an-teposição ou a intercalação de um argumento o coloca em destaque, o que contribui para a tessitura da teia argumentativa.

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Destacamos ainda que das cinquenta e seis cláusulas verifi-cadas em posição anterior à cláusula núcleo, trinta e quatro delas, ou seja, 60,70%, aparecem em textos cuja tese é contrária à doxa. Nesses casos, o enunciador faz uso do subprincípio da ordenação linear da iconicidade, apresentando a informação mais importante em termos argumentativos em primeiro lugar da cadeia sintática, estratégia argumentativa que visa à adesão do interlocutor à tese defendida.

Tecendo conclusõesOs estudos recentes sobre o texto concebem-no como um

evento comunicativo que demanda a mobilização de conhecimen-tos da língua e de como pode se dar esse uso, considerando a situ-ação em que se encontram os sujeitos envolvidos na interação e as expectativas em jogo. Acatando essa perspectiva, endossada pelas palavras de Jean-Michel Adam, para quem o texto é “uma realidade heterogênea demais para que seja possível circunscrevê-la aos limi-tes de uma definição estrita” (2009, 117), dentre diversos recursos linguístico-discursivos que permitem detectar que os níveis discur-sivo, textual e sentencial se apresentam intrinsecamente relaciona-dos, hipótese norteadora deste trabalho, escolhemos investigar as cláusulas hipotáticas circunstanciais e sua configuração gramatical.

Como nossa perspectiva de análise privilegia a “materia-lidade textual”, foi possível focalizar que o êxito do projeto argu-mentativo empreendido pelo enunciador não está restrito apenas à seleção dos argumentos para a defesa de seus pontos de vista, mas também à materialização em termos linguísticos desses argu-mentos. Em outras palavras, os dados levantados, no nosso corpus, confirmam que quanto mais complexa a defesa de uma tese, mais

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numerosos serão os recursos linguísticos utilizados para convencer o interlocutor sobre a plausibilidade e a veracidade dos argumen-tos elencados pelo enunciador, o que, neste artigo, foi representado pela alta frequência das cláusulas hipotáticas circunstanciais e pela presença de conectores em textos contrários às doxas vigentes.

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Resumo

Este trabalho investiga a impossibilidade de se empreender uma análise linguística que dissocie os níveis sintático, semântico e pragmáti-co. Objetivando uma análise que amplie a visão da tradição gramatical e que ultrapasse o nível sentencial, propomos um estudo de interface entre os postulados teóricos da Semântica Argumentativa e do Funcionalismo, especificamente no que se refere à análise das cláusulas hipotáticas, prio-rizando tanto a semântica quanto a sintaxe. Nesse sentido, considerare-mos não só o nível microtextual, pautado nas cláusulas e nos conectores que as introduzem, mas também o nível macrotextual, que representa o imaginário coletivo a respeito de temas polêmicos, bem como os posicio-namentos escolhidos pelo enunciador frente a esse questionamento so-bre o mundo. Debruçar-nos-emos, portanto, sobre os efeitos de sentido que as estruturas hipotáticas mantêm com as porções de discurso em que estão inseridas, compreendidas, neste trabalho, como fios da teia argu-mentativa empreendida pelo enunciador para envolver o interlocutor. A análise dos dados mostrará que quanto mais complexa se mostra a defesa de um ponto de vista, mais numerosos são os recursos linguísticos empre-gados para a constituição do discurso. Palavras-chave: hipotaxe circunstancial; discurso; argumentação.

Abstract

This thesis investigates the impossibility of undertaking a linguistic analysis which dissociates the syntactic, semantic and pragmatic levels. Aiming for an analysis which broadens the view of the grammatical tradition and that surpasses the sentential level, we propose an interface study between the theoretical postulates of Discourse Analysis and Functionalism, specifically with regard to the analysis of hypotactical clauses, prioritizing both semantics and syntax. In this sense, we consider not only the microtextual level, based on the clauses and connectors that introduce them, but also the macrotextual level, which represents the

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social imaginary on controversial themes, as well as the positions chosen by the enunciator in relation to this questioning about the world. We will therefore look at the effects of meaning that hypotactical structures maintain with the portions of discourse in which they are inserted, being understood in this work as threads of the argumentative web undertaken by the enunciator to involve the interlocutor. The analysis of the data will show that the more complex the defense of a point of view, the more numerous are the language resources used for the constitution of the discourse.Keywords: circumstantial hypotaxis; discourse; argumentation.

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Semiótica e argumentação: análise das obras de literatura infantil de Sylvia Orthof

Marcia Andrade Morais Cabral*

Os recursos utilizados pelo enunciador para conquistar a adesão do enunciatário são essenciais para compreender como se estabelece o teor argumentativo nos textos. É possível notar que a própria escolha desses recursos determina a forma como o enun-ciado deve ser lido e como deve ser a interpretação do enunciatário. Ou seja, a opção por determinados recursos constrói, por um lado, a imagem desse enunciador e, por outro, indica como o enunciado deve ser interpretado para ser tomado como verdadeiro, construin-do, assim, uma cumplicidade entre enunciador e enunciatário.

Tais recursos argumentativos podem ser encontrados em qualquer gênero textual, tendo em vista que a função de qualquer texto é, em sentido amplo, convencer o outro a aceitar como verda-deiros os valores postos em jogo pelo enunciador. Assim, não seria diferente no texto literário, ainda que guardadas as devidas carac-terísticas desse gênero, em que o sensível se faz predominante e o elemento estético tem fundamental importância na construção do sentido.

Para tanto, parte-se da premissa – proposta pela teoria se-miótica – de que a produção de sentido se faz por meio de um per-

* Doutora em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é pro-fessora de Língua Portuguesa e Literaturas do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET/RJ).

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curso gerativo do sentido, que parte de um nível mais abstrato para um mais concreto, haja vista as etapas percorridas até a produção de significação dos textos – nível das oposições fundamentais, ní-vel narrativo e nível discursivo. Para esta análise, o foco será no último nível – o discursivo –, uma vez que é nele que se podem observar as projeções enunciativas e a ironia, consideradas como recursos da manifestação textual.

No presente artigo, fruto de tese defendida em 2017, bus-ca-se sistematizar os estudos de argumentação, identificando os principais recursos argumentativos selecionados pelo enunciador e, com isso, observar as interações enunciativas estabelecidas e como se constitui o contrato fiduciário que serve de base para a argumentação. Para tanto, foram observadas as seguintes obras de Sylvia Orthof: Maria vai com as outras (1982); Uxa, ora fada, ora bru-xa (1985), Manual de boas maneiras das fadas (1995), A fada Lá de Pasárgada e Cabidelin, o doce monstrinho (2004), Ervilina e o Princês ou Deu a louca em Ervilina (2009a), Felipe do Abagunçado (2009b), No fundo do fundo-fundo lá vai o tatu Raimundo (2012).

Assim, procura-se, por meio da configuração deste traba-lho, apontar os recursos argumentativos de maior destaque obser-vados no corpus e a forma como foram utilizados para fortalecer a imagem de um enunciador, legitimando-o, reforçando a interação entre enunciador e enunciatário.

Breve panorama da literatura infantojuvenilNo Brasil, a literatura infantojuvenil teve seu início no sé-

culo XIX, mas somente se desenvolveu no meio literário no século XX. Antes disso, há alguns escritos de cunho familiar que, em cer-tos casos, foram posteriormente incluídos em livros. De início, as

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crianças só puderam ter acesso a exemplares portugueses, o que distanciava muito a realidade linguística dos padrões europeus em comparação à língua nacional. É somente no século XX que a litera-tura, de maneira geral, se expande, acompanhando o crescimento da população urbana e de uma elite ávida por leitura. De acordo com Alice Áurea Penteado Martha (2008), a produção em literatura infantil passa de 8% da tiragem dos lançamentos editoriais na dé-cada de 1970 para 25% no final do século XX.

É a partir do momento em que a criança passa a ser conside-rada de maneira diferente do adulto que a produção infantil alcança algum espaço no cenário nacional, pois a nova classe burguesa e a firmação do capitalismo possibilitam uma estrutura familiar cen-trada no núcleo composto de pai, mãe e filhos, considerando, a par-tir de então, os interesses e necessidades da criança, que passa a ser reconhecida como merecedora de uma atenção especial, de acordo com Regina Zilberman (1994). Nesse contexto, a infância ganha espaço e permite uma união familiar, o que não significa, contudo, um legítimo reconhecimento das especificidades da criança. Nesse sentido, no entender de Leonardo Arroyo (2011) a literatura infan-til e a escola cumprem um papel de controlar o desenvolvimento intelectual da criança e manipular suas emoções.

Para Philippe Ariès (1981), a literatura na escola surge com a função de incutir nas crianças um determinado tipo de comporta-mento caro àquele tipo de sociedade, de modo que as crianças fos-sem moldadas para se tornarem adultos exemplares e adaptados ao sistema, reproduzindo a ideologia burguesa e propagando os bons exemplos no meio em que vivem.

Esse modelo social fundado pela República preconizava a instrução e o saber advindos da prática de leitura para a formação

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do cidadão. É possível, pois, afirmar que a literatura infantojuvenil surge, de fato, através de um cunho didático, com a finalidade de ensinar o bom uso da língua portuguesa aos alunos. A escola, então, cumpre o papel de inserir a literatura infantojuvenil na sociedade da época, revelando um cunho pedagógico, de ensinamento por meio dos textos. De acordo com Marisa Lajolo e Regina Zilberman:

Além do modelo econômico deste Brasil republicano favo-

recer o aparecimento de um contingente urbano virtual-

mente consumidor de bens culturais, é preciso não esque-

cer a grande importância – para a literatura infantil – que

o saber possa deter no novo modelo social que começa a se

impor. Assim, também as campanhas pela instrução, pela

alfabetização e pela escola davam retaguarda e prestígio

aos esforços de dotar o Brasil de uma literatura infantil

nacional (1984, 28).

Destaca ainda Zilberman (2007, 54) que somente com Mon-teiro Lobato se dá uma introdução na literatura do elemento local e contemporâneo, que conta, também, com personagens infantis. A inovação da obra de Lobato passa pelas questões da oralidade, uma vez que ele dá voz aos múltiplos narradores. Portanto, seus regis-tros linguísticos, bem como o aspecto lúdico e existencial, passeiam pelo lúdico e o real, pela fantasia e a imaginação, permitindo uma maior liberdade de criação e reflexão. Mais ainda: Lobato retira a criança da postura passiva, convocando-a para a participação na construção narrativa.

É nesse contexto de fantasia, imaginação e crítica que se encontra a obra de Sylvia Orthof. Ainda enfrentando temas mais

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duros – como a exclusão, as injustiças sociais e a importância da liberdade –, Orthof mexe com o imaginário das crianças, conse-guindo, como poucos, uma aproximação com o público leitor, defi-nindo, de maneira singular, o seu estilo. A empatia criada por meio da exploração do lúdico e do riso, bem como o modo de dizer, seja pela exploração de marcas da oralidade ou pelos recursos utilizados em seus textos, fazem com que sua obra seja reverberada até os dias de hoje.

A argumentação e a semiótica de linha francesaA semiótica se constitui de uma teoria que busca compre-

ender a significação do texto a partir do sistema estruturado de relações que contribuem para a construção de sentido. A partir de uma perspectiva imanentista da linguagem, compreende as leis que regem o discurso, sem negar as condições sócio-históricas que inci-dem nos textos.

Como metodologia para a apreensão dos sentidos, a semi-ótica de linha francesa considera um percurso gerativo do sentido, composto por uma sintaxe – que rege as operações e articulações em uma relação de sentido – e uma semântica – responsável pelas categorias, taxionomias e valores.

Compreendendo o plano do conteúdo, o percurso do sen-tido parte de um nível mais simples de análise até um mais com-plexo, considerando um nível maior de abstração até uma etapa de concretização das estruturas narrativas. Para tanto, a teoria busca remontar as categorias do texto em três níveis: fundamental, nar-rativo e discursivo.

Para o objeto da pesquisa empreendida no doutorado, foi considerado o nível discursivo – mais concreto e também

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complexo –, em que se estabelecem as relações entre enunciador e enunciatário e entre enunciação e enunciado. As categorias mais abstratas do nível narrativo tomam forma e concretude nesse ní-vel, produzindo variações de conteúdos que, no nível intermediá-rio, eram invariantes. As estruturas são assumidas por um sujeito da enunciação que tanto se projeta no enunciado como enuncia-dor e enunciatário, quanto converte os actantes do nível narrati-vo em temas e figuras.

A análise dos elementos do nível discursivo explica a argu-mentação, já que as relações entre enunciador e enunciatário ins-tauram uma intencionalidade discursiva, tanto quanto os processos de tematização e figurativização sustentam os valores ideológicos veiculados pela interação enunciativa. Do mesmo modo, as proje-ções da enunciação no enunciado podem, por exemplo, produzir o efeito de aproximação/afastamento que instauram a confiança no dizer ou no dito, além dos recursos concernentes à superfície discursiva do texto, configurados pelas escolhas lexicais, o uso de implícitos, a inscrição do humor e da ironia, a intertextualidade e interdisciplinaridade, entre outros recursos. Para este artigo, sele-cionamos apenas a intertextualidade e os procedimentos de proje-ção da voz do outro como estratégias do fazer crer.

Alguns recursos argumentativosNas linhas abaixo buscaremos apontar alguns recursos argu-

mentativos de maior destaque e que se mostraram eficazes no que diz respeito à manipulação recorrente nas obras analisadas, ou seja, algumas das estratégias utilizadas pelo enunciador para fazer crer e como a escolha dessas estratégias inscreve uma imagem de um enun-ciador e de um enunciatário no discurso. Para tanto, a análise consi-

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derará a intertextualidade como atuante na subversão de valores e as projeções enunciativas e sua complexidade nas obras, compreenden-do, também, os modos de dizer como escolhas argumentativas.

1. A intertextualidadeTodo discurso é, por sua constituição, dialógico. E, para

tratar de dialogismo, é fundamental reportar às ideias de Mi-khail Bakhtin (1992), que investigou as relações que se estabe-lecem por intermédio do discurso e como a linguagem se ins-taura de maneira a atualizar a ideologia, as crenças e a cultura de uma sociedade. Assim, se toda linguagem pressupõe um diá-logo, é possível afirmar que em todo enunciado há pelo menos duas vozes – demarcadas explicitamente ou não –, e essa é uma discussão que interessa sobremaneira à investigação da inter-textualidade nos textos.

Bakhtin, em Estética da criação verbal (2003), trata das questões de linguagem, chegando ao enunciado – instância de sen-tido na linguagem, unidade real de comunicação. Esses conceitos se mostram relevantes, pois deixa de conceber o texto somente como um conglomerado de informações, adotando também os enuncia-dos que se combinam a fim de constituir o todo de sentido. Para o filósofo russo, o enunciado se diferencia das demais estruturas linguísticas pelo fato de pressupor uma resposta, e afirma que

desde o início, porém, o enunciado se constrói levando em

conta as atitudes responsivas, em prol das quais ele, por

essência, é criado. Desde o início o falante [...] espera uma

ativa compreensão responsiva. É como se todo o enuncia-

do se construísse ao encontro dessa resposta (2003, 301).

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A análise que se faz, então, é a de que a linguagem se baseia na percepção de um diálogo, ainda que não explícito, pois a produ-ção de sentidos dos enunciados é a configuração de uma concep-ção dialógica, já que a língua tem uma propriedade inerente de ser dialógica. Isso não significa dizer que o enunciador não tem uma produção original; entender a linguagem como dialógica é diferente de afirmar que não há espaço para a criatividade do falante. Cer-tamente a criatividade é uma possibilidade de nossas produções, mas essa inovação não pode ser total e completa, até porque isso poderia comprometer a comunicação – a interação entre os sujeitos –, uma vez que o ineditismo total seria o caos, produzindo uma situação incompreensível para o destinatário.

Os postulados de Bakhtin auxiliam na compreensão de que todo discurso é, por constituição, dialógico, e são fundamen-tais para compreender a diferença entre a constituição polifônica inerente a cada texto e a intertextualidade. Para compreender a intertextualidade é necessário observar que se instauram dois ní-veis de leitura no texto – um do texto de base e o outro com o qual ele conversa –, podendo ser esta relação polêmica ou consensual a partir da utilização de variados recursos de inserção do outro no texto, como a alusão, a citação ou a estilização, conforme Fiorin (2003).

Nos textos de Orthof é constante a presença de figuras e temas que parecem reproduzir o tema do texto de origem – no caso, Cinderela, de Charles Perrault, publicado em 1697 –, mas que, na verdade, atuam parodisticamente na ridicularização dos contos de fadas, em que impera o ideal de “final feliz”. A paródia diz respeito aos casos de releitura de todo o texto original, pressupondo-se o outro pelo caráter subvertido, consolidando um novo ethos:

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A paródia, para subverter o mostrado, viabiliza meios de

reconhecimento dos temas e figuras encadeadas e trata-

das de maneira própria no discurso de referência. Imita a

cena narrada, mas a subverte. Como a todo enunciado está

pressuposto o sujeito da enunciação, a enunciação paro-

dística subverte também a ética que sustenta o discurso de

referência (Campos: 1995, 166).

Nota-se, portanto, que o valor da felicidade relacionado à

conjunção amorosa é relativizado, uma vez que a sanção positiva é

assegurada não pela conquista do objeto de valor do texto original,

mas sim da subversão e da criação de um outro que, nesse texto,

é a realização de uma atividade profissional, cumprindo o actante

feminino o papel temático de pastora. Outros valores são postos

em cena e se afirmam exatamente pela negação daqueles construí-

dos nos textos de base a que se faz referência, confirmando o ethos

que se coaduna com a subversão dos valores postos tradicional-

mente nas narrativas de contos tradicionais. Verifica-se isto nos

trechos abaixo:

Mas a moça respondeu:

– Eu não quero ser casada,

se eu casar, vai ser com o moço de quem sou

namorada.

E saiu feliz da vida.

Foi cuidar do seu rebalnho.

A moça era pastora

(Orthof: 2009a, s.p.)

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Aí, aparece o príncipe, assim,

descendo a escada.

[...]

e Uxa corre, com medo de virar princesa

e ter que ser feliz para sempre, credo,

e vira bruxa, num de repente

(Orthof: 1985, s.p.)

Nos exemplos acima o sujeito rompe com o contrato inicial e recusa o casamento com o príncipe e a sanção positiva do “ser feliz para sempre”, instaurando outra performance: a do exercício de uma função como pastora, no primeiro caso. O objeto de valor/felicidade no texto original, buscado pelo sujeito e concretizado pelas princesas, já é, em Orthof, um objeto com o qual o sujeito está em conjunção, mas cuja realização se dá a partir de outra per-formance: enquanto no conto europeu as princesas são felizes por se casarem, em Orthof a felicidade é a realização de uma função profissional – ser pastora. No texto original, os valores tomados como eufóricos e concretizados no texto giravam em torno da ma-nutenção de um prestígio social por meio do casamento, a contra-ção do matrimônio como acesso a bens e riquezas e o casamen-to como próprio objeto de valor em si, representado comumente como o “final feliz”.

Em Orthof, embora as sequências narrativas pareçam acompanhar o texto de origem, reiterando as performances dos sujeitos, estes buscam objetos de valor distintos, como a individua-lidade, a independência e a autonomia. É importante notar que o ofício da moça como pastora no texto analisado também inscreve os valores de humildade, simplicidade em contraposição à riqueza

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e ao luxo, manifestados no texto original através de figuras como “palácio”, “rei”, “rainha”, “princesa”.

No segundo trecho tal aspecto também fica claro, pois o su-jeito recusa a sanção e inicia outra performance, que diz respeito às suas ações de “fazer maldades”. Mais uma vez a ideia do matrimô-nio como sinônimo de felicidade e até mesmo a noção idealizada de felicidade são relativizadas. O sujeito abandona esses valores que parecia querer buscar e reafirma outros que já se anunciavam por sua performance, como a independência e a autonomia. O texto de Orthof recupera o conto europeu sobre a jovem Cinderela por meio da subversão dos programas narrativos, bem como da negação dos valores e pela paródia, viés pelo qual atualiza os valores em circu-lação no conto original para ridicularizá-lo, marcando, portanto, o ethos, que se distancia do enunciador do conto tradicional, uma vez que manipula o enunciatário por meio da crença em outros valores, como se mostrou anteriormente.

2. As projeções enunciativasA presença do narrador é importante, pois é através das pis-

tas deixadas por ele na organização da narrativa que se consegue identificar as marcas que conduzem ao enunciador. Nesse sentido, a habilidade e a competência que levam à credibilidade e à veridic-ção são construídas em Orthof especialmente no modo de fazer do narrador, que quebra com a linearidade das narrativas convencio-nais infantis. Inscreve-se, assim, um enunciador por meio de um caráter inventivo, original e inovador – o que reforça a crença no discurso e a criação de uma verdade, como veremos ao tratarmos dos modos de presença do narrador e da projeção do narratário no enunciado.

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O narrador é responsável pelo saber pragmático e ocupa

alguns papéis no texto, como o de falar, relatar, organizar a narrati-

va, atestar a veracidade dos fatos relatados etc. Ele pode tanto estar

inscrito de maneira explícita quanto implícita no texto. No entan-

to, algo que ganha destaque nos textos de Orthof é a presença do

“narrador intruso”, termo utilizado para identificar esses casos em

que o narrador é projetado, mesmo sem dizer “eu”, para comentar

alguns acontecimentos, sublinhar a sua importância. Para ilustrar

esses casos, José Luiz Fiorin (1996) aponta, como exemplo, o clás-

sico papel do narrador em Machado de Assis, que, muitas vezes,

embora não participe da ação, se inscreve no enunciado para soli-

citar a paciência do narratário ou julgá-lo como ledor de romances

comuns, como em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Quin-

cas Borba (1892).

Argumentativamente, este “narrador intruso” desestabiliza

o ponto de vista, uma vez que o estatuto de observação é alterado,

criando determinados efeitos de aproximação ou de afastamento.

Nas narrativas em terceira pessoa ou nas de primeira, em que esse

“eu” não participa dos fatos narrados, a inscrição de um narrador

que diz “eu” instaura uma subjetividade que pode estar relacionada

a um comentário do narrador sobre a obra ou mostrar uma compai-

xão ou desprezo em relação a algum actante.

Para identificar esse tipo de narrador que pode, por vezes,

estar em sincretismo com um actante do enunciado, é necessário

diferenciar o narrador dito “neutro” de um narrador “intruso”, a

partir da distinção desses dois “eus”: narrante e narrado. Para tan-

to, observemos outro trecho de Orthof da obra No fundo do fundo-

-fundo lá vai o tatu Raimundo:

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E quanta gente diferente que vem ver o Tatu Raimundo!

Vem gente de todo mundo... Vem um padre e um

Sacristão, brigando por um sermão.

Vem tudo o que você desenhar, e que esqueci de

contar.

O papel aqui está branco, comece a rabiscar.

(2012, 29)

A obra é narrada, majoritariamente, por meio da projeção actancial enunciativa, em que se apagam as marcas da enunciação, criando o efeito de que os fatos narram a si mesmos. Na histó-ria, há um tatu que busca sempre cavar buracos mais fundos, e, a despeito do que muitos pensam, ele não busca riqueza ou poder, mas sim apenas cavar buracos cada vez mais fundos. No trecho, o narratário é convidado a completar a história e, a esse convi-te, segue, de fato, o papel em branco, observando-se, assim, um narrador que se inscreve no texto para comentar a própria nar-ração. Fiorin nomeia esse fenômeno da inscrição de um narrador intruso de debreagem enunciativa da enunciação, casos em que os actantes da enunciação estão projetados no enunciado, seja por meio do narrador considerado de terceira pessoa – mas que diz “eu”, diferenciando-se a enunciação do enunciado –, seja nos casos em que o narrador se instala por meio da primeira pessoa. Nota-se que, até então, esse narrador não participa da ação, não está em sincretismo com nenhum personagem, porém neste momento se instala no enunciado, ou seja, o narrador não faz parte do narrado, mas se enuncia no enunciado e, a partir do momento que o faz, instala também um narratário, como vemos em “comece a rabis-car” (Orthof: 2012, 29).

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Ao declarar que “esqueceu de contar” (2012, 29), o narra-dor, responsável exatamente pelo falar e por organizar a narrativa, inscreve-se no enunciado, simulando a enunciação e, com isso, con-voca a participação do narratário. O sentido se estabelece por meio do embate do ser e do parecer, já que, ao simular um esquecimento, esse narrador revela, na verdade, um enunciador astuto, que con-voca essas complexas estratégias no texto.

Apesar de parecer dar ao leitor a possibilidade de criar e de ser coadjuvante na produção do enunciado, as intervenções para as quais o narratário é solicitado pragmaticamente no texto são contro-ladas, pois devem ser coerentes ao que já foi narrado. Esse também é o caso da obra A fada de Lá Pasárgada. Neste caso, a narração é em pri-meira pessoa, mas distingue-se o enunciador do narrador, uma vez que o narrador não participa da ação, mas sua inscrição permite con-vocar a participação do leitor, a fim de que este interfira na história:

(Este espaço é para você colocar sobrenomes de

poetas que você conhece, se lembrar e quiser, é

claro!)

(Orthof: 2004, 18)

Na passagem acima, a inscrição desse narrador intruso con-voca a participação do narratário em um espaço destinado para que outras ideias sejam acrescidas ao texto. Ao sugerir a inclusão dos nomes de vários poetas que poderiam constituir o sobrenome da fada, suspende-se o narrado para que, por meio dos parênteses, o narrador convoque a participação do narratário, a partir das instru-ções dadas pelo narrador intruso. No entanto, não é só para convo-car o narratário que o narrador intruso se inscreve. Ele se coloca no

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texto também para comentar o narrado, julgando os acontecimen-

tos, o que acontece ainda em A fada de Lá Pasárgada:

Pois é, eu estava contando a história de Pio Olho e

da fada Poesia, daí surgiu uma brisa.

(2004, 27)

Pois eu estava explicando direitinho o significado

das palavras pra você, quando surgiu o tio vento.

(2004, 46)

O narrador intruso comenta sobre os eventos narrados por

meio de um tempo anterior à enunciação, tratando sobre a própria

organização da narrativa, partilhando com o narratário a ordena-

ção dos fatos. Inscreve explicitamente no texto um diálogo com o

narratário por meio do uso do pronome “você”, criando uma cum-

plicidade ao fazer o narratário sabedor das etapas de organização

dos episódios.

Em Felipe do Abagunçado, a suspensão do narrado se dá, in-

clusive, por meio de outro gênero – um bilhete –, que é inserido

no meio da história, a fim de que o narrador se “desculpe” com o

revisor pelos erros cometidos:

Resolvi, pois, inserir nesta história um recadinho para o

revisor:

Senhor revisor, sei que sua tarefa é muito árdua. O senhor

é responsável pelo belo português deste livro, coisa dificí-

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lima, pois teimo em errar demais. O senhor conserta o que

achar justo, mas deixe, por favor, a repetição [da palavra]

sementes.

(Orthof: 2009b, 50)

A opção aqui é pela projeção majoritária da terceira pessoa, mas o narrador se coloca no enunciado por meio de um “eu” exa-tamente para falar sobre as escolhas lexicais na obra. Certamente, o efeito criado, longe de realmente ser um recado sobre os “erros” do autor, simula uma aproximação com o enunciatário, ao mesmo tempo que partilha com ele o processo de produção e revisão. As-sim, insere o ponto de vista dos diferentes atores envolvidos na produção e cria a diversidade de saberes que não se limita à história narrada.

Muitas inscrições do narrador intruso em Orthof, como se pôde ver, relacionam-se ou com uma convocação de participação do narratário – suspendendo o narrado e interagindo de maneira que ele preencha espaços, recrie a história –, ou são inserções que vi-sam ampliar o saber, à medida que tratam não só dos acontecimen-tos da narrativa, como também são exteriores à narração, tecendo considerações sobre a produção material das obras.

A imagem do narratário inscrita por meio desses recursos é, pois, a de um sujeito que busca o saber que não se restringe aos episódios da obra, a quem interessa saber quais são os papéis dos responsáveis pela produção e circulação das obras, bem como se in-teressa em como se dá essa relação. É a inscrição de um narratário curioso, que busca um querer saber. Além disso, ao provocar o narratário à participação, criam-se, no texto, pistas de uma inven-tividade, de uma criatividade com as quais o narratário se identifi-

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que, a fim de que a estratégia do enunciador seja eficaz e a manipu-lação bem-sucedida.

Considerações finaisDurante a pesquisa de doutorado procuramos destacar a

importância do estudo da argumentação no discurso, pensando a partir da abrangência do que se diz e do modo como se diz; dos recursos inteligíveis escolhidos pelo enunciador para fazer crer e a própria interação afetiva entre enunciador e enunciatário, estabe-lecendo a confiança e o envolvimento emotivo. Neste artigo, bus-camos apontar como os recursos discursivos da intertextualidade e da projeção de vozes, eleitos dentre outros recursos encontrados na análise das obras, ganham destaque, mostrando que mesmo os textos inventivos, abertos e surpreendentes da literatura infantil de Sylvia Orthof também apresentam uma orientação argumenta-tiva, reiterada não só no dito, mas também no modo de dizer. Os valores da originalidade, da curiosidade etc. não só são buscados pelos actantes do enunciado, mas também se fazem ver no caráter inventivo e dinâmico do próprio modo de dizer do enunciador.

Assim, este artigo, que reúne algumas discussões funda-mentais travadas na tese, longe de esgotar os estudos sobre argu-mentação nos textos busca ser mais um instrumento na análise de textos considerados argumentativos, bem como de outros tipos de texto, uma vez que se comprova que a argumentatividade é parte da própria linguagem, independentemente de seu gênero e sua ti-pologia. A linguagem, entendida como a própria atividade humana, longe de ser um lugar pacífico e consensual é, por si, o espaço da polêmica, do confronto e, por esse motivo, a argumentação sempre permeará o homem e sua relação com o mundo.

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Resumo

Este trabalho tem por objetivo investigar a argumentação nas obras de literatura infantil de Sylvia Orthof, utilizando como fundamen-tação a teoria semiótica de linha francesa. Para tanto, são analisadas, neste artigo, sete obras da autora em que se examinarão dois recursos que se mostraram extremamente relevantes na construção da argumentação. Como escopo teórico, a teoria semiótica greimasiana permitirá verificar de que maneira o texto, materialização do discurso, diz o que diz, ou seja, como se constrói o sentido não somente observando seu conteúdo, mas também a forma de dizer. Dessa maneira, a teoria considera níveis de abstração diferentes, do mais profundo ao complexo e concreto, nível no qual são observadas as estratégias argumentativas utilizadas. Essa base teórica nos auxiliará, então, a observar a argumentação na relação entre enunciador e enunciatário, tendo em vista o contrato estabelecido entre ambos e a confiança do enunciatário na imagem do enunciador – o que leva à adesão dos valores. Serão também observados os recursos argu-mentativos escolhidos por esse enunciador, que reforçam tal imagem e instauram a crença no discurso. Assim, busca-se comprovar a hipótese de que o uso de estratégias argumentativas diversas cria a imagem de um autor irreverente e lúdico em Orthof, e, dessa forma, contribui para uma aproximação entre enunciador e enunciatário, e confirma a manipulação e a crença nos valores no discurso.Palavras-chave: semiótica; argumentação; literatura infantojuvenil.

Abstract

This work analyzes the argumentation in children’s literature by Sylvia Orthof, using the theorical substantiation of French semiotic. Therefore, seven books by the author are analyzed in this article, in which two resources that are extremely relevant in the construction of the argument will be examined. As a theoretical scope, the French semiotic will allow us to verify how the text and the materialization of

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the discourse tells what it says, that is, how to construct meaning, not only observing its content, but also the way of the saying. In this way, the theory considers different levels of abstraction, ranging from an analysis of the deepest structures – called the fundamental level –, passing through an intermediate level – the narrative –, to the more complex and concrete – the discursive level –, all composed of syntax and semantics. This theoretical basis will then help us to observe the argumentation in the relation between enunciator and enunciate, in view of the contract established between both and the reliance of the enunciate in the image of the enunciator, which leads to the adhesion of the values, at the same time as it will be observed the argumentative resources chosen by this enunciator, that reinforce this image and establish the belief in the discourse. Thus, we tried to prove the hypothesis that the use of diverse argumentative strategies creates the image of an author irreverent and playful in Orthof.Keywords: semiotic; argumentation; children’s literature.

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A referenciação nas notícias esportivas da Copa de 2014: uma abordagem à luz da

Linguística de Texto

Margareth Andrade Morais*

Os processos de referenciação são cruciais para a constru-ção de sentidos dentro do texto, pois sua interpretação requer a articulação entre conhecimentos culturais, contextuais e linguísti-cos, bem como o conhecimento da estrutura formal dos gêneros textuais em que ocorrem.

Neste artigo, resultado da pesquisa desenvolvida em Morais (2017), demonstram-se as transformações e mudanças pelas quais passam os referentes e sua contribuição para os propósitos comuni-cativos das notícias esportivas. Esses mecanismos são importantes para a progressão temática, a recuperação e a construção dos senti-dos, uma vez que colaboram para a compreensão e mostram como os enunciadores trabalham juntos para obter sucesso no processo de comunicação, além de apresentarem uma série de funções discursi-vas de grande relevância para a construção do texto.

Para este trabalho, fez-se um recorte da tese a fim de divul-gar a discussão sobre os processos de referenciação, já que, com o avanço das pesquisas, se percebe que a diferença entre esses pro-cessos é bastante sutil, sendo, muitas vezes, de difícil delimitação. Desse modo, neste artigo, procura-se responder como as estraté-

* Doutora em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ).

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gias de referenciação presentes em dois jornais podem evidenciar a maior/menor necessidade de conhecimentos compartilhados.

Foram recolhidas todas as notícias esportivas referentes à Copa do Mundo de 2014, dos jornais Lance! e O Globo, e o re-corte analítico compreendeu dezesseis textos, selecionados de for-ma alea tória. A análise, de cunho qualitativo, seguiu discutindo os exemplos selecionados, divididos pela tipologia dos processos de referenciação. Destacamos os objetos de discurso centrais das notícias, como as seleções e seus jogadores, analisando, em um primeiro momento, as anáforas diretas, já que tais expressões de referenciação costumam estar diretamente associadas à constru-ção/exposição de uma dada orientação argumentativa nos textos. Logo após, foram observados os casos de encapsulamento, a dêixis e, por fim, as anáforas indiretas.

Texto e referenciação sob a perspectiva cognitivistaComo a proposta deste trabalho integra aspectos cogniti-

vos, sociais e linguísticos na construção de sentidos do texto, não podemos analisar a materialidade linguística como simples resulta-do de escolhas lexicais ou sintáticas, mas como marcas enunciati-vas, ações dos sujeitos na sua relação com e sobre o mundo.

De acordo com Koch & Elias (2008), a Linguística de Texto (LT) tem se apoiado em uma perspectiva sociocognitiva e interacional da linguagem, partindo do pressuposto de que a leitura e a compreensão textuais dependem do acionamento de conhecimentos prévios, estando, portanto, atreladas a aspectos sociocognitivos. Desse modo, o texto é entendido como um fe-nômeno comunicativo associado ao contexto sociocultural dos interlocutores (Cavalcante: 2011). Por essa razão, não se fala em

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um sentido para o texto, uma vez que valores culturais atuam na interpretação deste.

Podemos dizer, então, que o processamento textual, seja para a produção de um texto ou para a sua leitura, depende da inte-ração entre os interlocutores que atuam em conjunto, mobilizando uma série de conhecimentos – de ordem cognitiva, interacional, cultural e textual – para produzirem sentido. Esse processamento envolve um movimento por parte do leitor para estabelecer pon-tes entre informações novas e outras já fornecidas dentro do texto. Cabe ressaltar que essa relação não é simples nem explícita: exige inferências, interpretação de expressões referenciais e de outros mecanismos linguísticos.

Portanto, para a LT, o texto é o lugar da interação, no qual circulam as intencionalidades, pistas e informações compartilha-das, imbricados em uma relação estreita. Por isso, é difícil falar em conhecimentos linguísticos e extralinguísticos, já que não se pode distinguir quais conhecimentos estariam dentro e quais estariam fora do texto, visto que todos eles atuam em igual medida na construção de sentidos. Dessa forma, o texto não pode ser entendido como uma materialidade que leva ao discurso. Pelo contrário, se é resultado de uma situação discursiva, o texto é indissociável do discurso. Segundo Marcuschi (2008, 58), a distinção entre texto e discurso, além de complexa, não se mostra interessante, já que hoje as duas noções podem ser vistas como intercambiáveis.

Os processos de referenciação auxiliam na percepção dos percursos de sentido dentro dos textos, colaborando, diretamente, para representação das intencionalidades e objetivos que compõem o ato da leitura. A referenciação se constitui como uma atividade discursiva, uma vez que o texto é o próprio lugar da interação entre

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sujeitos sociais, que compartilham todos os seus conhecimentos com a finalidade de atingir as suas propostas comunicativas. São atribuídas à referenciação as funções de introduzir novos referen-tes no texto, além de contribuir para a sua progressão temática – atividades importantes para a construção de sentidos nos textos.

A nomeação de referentes envolve uma reflexão sobre o próprio ato de nomear seres ou entidades, sendo uma atividade ancorada em função do receptor, dos propósitos comunicativos do texto e do gênero textual em questão. Portanto, é natural que a ação de nomear aconteça de maneira instável, ou seja, os refe-rentes não são nomeados e/ou representados por palavras isoladas, pois não há uma ligação direta entre as palavras e as coisas. Dentro dessa perspectiva, não cabe mais usar o termo referência, mas sim referenciação, uma vez que

passam a ser objetos de análise as atividades de linguagem

realizadas por sujeitos históricos e sociais em interação,

sujeitos que constroem mundos textuais cujos objetos

não espelham o mundo real, mas são, isto sim, interativa-

mente e discursivamente constituídos em meio a práticas

sociais, ou seja, são objetos de discurso (Koch, Morato,

Bentes: 2005, 8).

A noção de referenciação engloba as formas de introdução e retomada de referentes, o que garante a progressão temática. São constituídos objetos de discurso que vão se mantendo e/ou modi-ficando ao longo dele, por isso a instabilidade desses referentes é uma característica intrínseca a esse processo, visto que esses obje-tos vão se construindo no texto e não fora dele.

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As estratégias de referenciação consistem na introdução dos referentes no texto, que são passíveis de serem retomados por uma estratégia anafórica, a qual pode ser retrospectiva ou prospec-tiva. Quando há a correferencialidade, diz-se que se trata de uma anáfora direta (AD) e, quando não é possível identificar essa relação correferencial, há uma anáfora indireta. Há ainda um outro tipo de anáfora, que estaria entre esse continuum correferencialidade – não correferencialidade: as chamadas anáforas encapsuladoras. Segun-do Conte (2003), essas anáforas possuem um papel de sumarizar/resumir porções do cotexto ao mesmo tempo em que podem atri-buir um rótulo a essas porções, estabelecendo uma avaliação. Por essa razão, pressupõem inferências na sua interpretação, não sen-do uma estratégia de correferencialidade como a anáfora direta.

Não permitindo uma divisão estanque entre eles, os pro-cessos de referenciação devem ser vistos, portanto, como proces-sos que apresentam características muitas vezes híbridas. Pode ser mais produtivo pensar em um continuum entre os processos de referenciação, assumindo, assim, que não estamos diante de fenô-menos isolados, mas de fenômenos que se cruzam e se misturam, tendo em vista uma perspectiva sociocognitiva e interacional.

Resumindo as principais características dos processos de referenciação, podemos concluir que:

. Enunciação e introdução dos referentes são mecanismos diferentes (Cf. Colamarco: 2014). A enunciação ocorrerá somente quando houver a primeira manifestação concreta do referente, já a introdução referencial consiste na cons-trução da imagem desse referente e não depende da no-meação desse objeto para ocorrer;

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. As anáforas, mecanismos de continuidade referencial, es-tão atreladas a uma âncora/gatilho no cotexto. AD pode retomar ou antecipar a enunciação de um referente (quan-do antecipa, colabora com a introdução referencial) e es-tabelece uma relação de correferencialidade; AE tem por característica principal sintetizar/sumarizar partes do texto, introduzindo novos referentes do discurso. Os en-capsuladores, em relação à correferencialidade, situam-se em uma zona intermediária. Por fim, as anáforas indiretas sempre vão introduzir novos referentes no discurso, que estarão ancorados em alguma pista do cotexto e não são correferenciais;. A dêixis (pessoal, espacial e temporal) depende do ponto de origem do enunciador e da sua localização no espaço e no tempo. No entanto, temos que considerar a possibi-lidade de esse processo referencial apresentar usos ana-fóricos, como os casos de dêixis textual, que se mesclam com as anáforas e considerar também que as relações ana-fóricas também podem apresentar componentes dêiticos. A dêixis está atrelada às pistas de enunciação e promove diferentes efeitos de sentido nos textos.

Reiteramos, por fim, a complexidade do fenômeno e a difi-

culdade de sistematização que decorre das muitas nuances do dina-mismo verificado nos processos de referenciação, principalmente quando o exame dessas formas é feito em gêneros textuais diversos.

O gênero notícia esportiva Cada atividade, cada forma de utilização da língua elabora

tipos relativamente estáveis de enunciados, os gêneros textuais,

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que são construídos por três elementos: conteúdo temático, estilo verbal e a construção composicional. Para Marcuschi,

os gêneros textuais são os textos que encontramos em nos-

sa vida diária e que apresentam padrões sociocomunicati-

vos característicos definidos por composições funcionais,

objetivos enunciativos e estilos concretamente realizados

na integração de forças históricas, sociais, institucionais e

técnicas (2008, 55).

Com base na definição acima, buscou-se caracterizar a notícia tendo em vista seus aspectos sociocomunicativos. Desse modo, a no-tícia, segundo Charaudeau (2010), pode ser entendida como um con-junto de informações que integra um mesmo espaço temático, isto é, o acontecimento é um fato que se insere em um determinado domínio público, apresentando caráter de novidade, proveniente de uma deter-minada fonte. A notícia é um gênero textual que costuma ser repre-sentado como se não possuísse subjetividade ou como se expressasse o relato objetivo dos fatos.

O objetivo das notícias esportivas, nesse sentido, é sintetizar jogos de futebol, cujo resultado geralmente já é conhecido pelo leitor, que busca mais informações sobre o jogo em questão. Em relação à linguagem, Barbeiro e Rangel (2006) destacam que o texto esporti-vo, de modo geral, detém maior liberdade no tratamento da matéria. Segundo os autores, na editoria de esportes, o humor e a leveza são perceptíveis e o vocabulário, muitas vezes, consagra expressões po-pulares, sendo mais criativo.

Além disso, os autores chamam atenção para o fato de que

os esportes apresentam uma linguagem muito particular, com gírias

e metáforas para lances do futebol, como “totozinho” e “tesoura”,

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que o editor esportivo não pode desconsiderar. Essas expressões e metáforas são características discursivas escolhidas para justificar a adesão do interlocutor, servindo também para emocionar os leitores, contribuindo ainda para a argumentação verificada nas notícias.

A notícia esportiva caracteriza-se como um gênero bem marcado quanto ao tempo, pois deve ser publicado no jornal, no máximo, um dia após a partida. O universo dos esportes é bastante dinâmico, pois ocorrem jogos de diferentes campeonatos simulta-neamente, por isso há rapidez na divulgação. Cabe ressaltar tam-bém que o gênero em questão é bastante marcado em relação ao contexto em que é produzido: os referentes, como nome de jogado-res e técnicos, vão se modificando durante cada temporada de cam-peonato, pois há uma grande rotatividade de jogadores e técnicos no futebol, o que pode contribuir para a criatividade dos jornalistas e dos recursos empregados nesse gênero.

Nesse aspecto, a notícia esportiva se aproxima bastante de uma notícia ou reportagem de assuntos gerais por sua estreita liga-ção com a temporalidade, mas, ao contrário desta, não tem preocupa-ção em “informar um fato novo”. Os leitores das notícias esportivas, provavelmente, já sabem o resultado das partidas (a maior parte dos jogos é televisionada, os resultados são anunciados em telejornais, fora a possibilidade de acesso a esses resultados pela internet).

A notícia esportiva em foco: os mecanismos de referenciação na construção dos textos

A seguir, destacaremos alguns dos exemplos mais relevantes nas notícias esportivas referentes aos jogos da Copa do Mundo de 2014 (Cf. Morais: 2017) para análise. Faremos uma exposição dos processos de referenciação, a saber: as anáforas diretas, os casos de encapsula-mento, a dêixis e, por fim, as anáforas indiretas.

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Anáforas diretasNo primeiro exemplo analisado, retirado do jornal Lance!,

predominam as anáforas diretas formadas pela estratégia de re-petição lexical e as formadas por novas expressões referenciais na manutenção dos principais objetos de discurso do texto. A seguir, há um exemplo de uma anáfora direta que recategoriza o objeto de discurso “Alemanha”:

(1) A Argentina vai fazer a final do mundial em nossa casa

com a responsável pela maior humilhação de nossa história:

a Alemanha (PORTO, Marcio. “Corrida para o tri”. Lance!

Rio de Janeiro, 10 de julho, p. 10).

A expressão “a responsável pela maior humilhação de nos-sa história” apresenta um grande teor avaliativo, uma vez que faz referência ao episódio da derrota sofrida pelo Brasil por 7 x 1 para Alemanha.

A seleção argentina é retomada abaixo pela AD “Hermanos”, uma forma, de certo modo, irônica, comum nos textos esportivos, que também aponta para rivalidade entre Brasil e Argentina. Nesse trecho, há a comparação entre Argentina e Brasil, recategorizado como “o time de Luis Felippe Scolari”, enfatizando que a Argentina está ocupando o lugar que deveria ser do Brasil, na final realizada em território brasileiro:

(2) A Argentina venceu a Holanda porque foi muito mais

competente nos pênaltis, após 0 a 0 no tempo normal e

na prorrogação, mas não foi só isso. Os Hermanos fizeram

muito do que o time de Luiz Felipe Scolari, que deveria jo-

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gar no Maracanã domingo, não o fez na terça no Mineirão (PORTO, Marcio. “Corrida para o tri”. Lance! Rio de Janei-

ro, 10 de julho, p. 10).

O texto segue tratando mais detidamente dos lances e informações da partida. Argentina e Holanda aparecem recate-gorizadas, respectivamente, por “time de Alejandro Sabella” e “Holanda do ótimo Louis Van Gaal”. Essas anáforas diretas, que têm em comum o nome dos técnicos das duas seleções, contri-buem para revelar a intencionalidade do texto ao enfatizarem os técnicos, já que o próprio jogo foi rotulado como uma partida de xadrez.

Em seguida, as duas seleções são recategorizadas pela ex-pressão “duas gigantes”, mais uma vez, reforçando a expressão dessas duas seleções no cenário mundial. Ao descrever os últimos lances que poderiam ter modificado o placar da partida e a sorte de cada time na competição, foi empregada uma AD que apela bastan-te para o conhecimento compartilhado dos interlocutores:

(3) Robben, lembrando a final de 2010 diante da Espanha,

teve essa bola aos 45 minutos do segundo tempo. Foi tra-

vado por Mascherano, um monstro.

O astro holandês jogou pro alto a chance de fazer história. E

permitiu aos argentinos escrevê-la (PORTO, Marcio. "Cor-

rida para o tri". Lance! Rio de Janeiro, 10 de julho, p. 10).

A AD “o astro holandês” refere-se ao importante jogador Robben. Caso o leitor não o conhecesse, poderia chegar a essa con-clusão por meio da arquitetura textual, já que o texto informa que

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ele teve “essa bola”, uma bola que poderia decidir o jogo. Logo, foi ele quem jogou para o alto a “chance de fazer história”.

Os encapsulamentosO encapsulador, além de apresentar um importante papel

coesivo e organizar os tópicos dentro do discurso, pode, a partir de informações já mencionadas no texto, implementar um objeto qua-se novo para discurso, remetendo a informações não explicitadas no cotexto, como pressupostos, subentendidos e outros conteúdos presentes na memória discursiva dos participantes da interação. Esse referente deve ser reconstruído pelo interlocutor, ou seja, a anáfora encapsuladora não retoma, pontualmente, nenhum objeto de discurso, e sim se vincula a informações contidas em porções de texto presentes no cotexto, como podemos ver no exemplo abaixo:

(4) Nenhum dos dois times foi melhor na Arena Corin-

thians e qualquer bola poderia decidir o futuro dessas duas

gigantes. Robben, lembrando a final de 2010 diante da Es-

panha, teve essa bola aos 45 minutos do segundo tempo.

Foi travado por Mascherano, um monstro.

O astro holandês jogou pro alto a chance de fazer história. E

permitiu aos argentinos escrevê-la (PORTO, Marcio. “Cor-

rida para o tri”. Lance! Rio de Janeiro, 10 de julho, p. 10).

O encapsulamento (“a chance de fazer história”) ajuda a construir uma expectativa no leitor sobre as jogadas e contribui para conferir emoção ao texto esportivo, como é característica des-se gênero. Esse encapsulamento, além de remeter ao conteúdo an-terior, retomando que o gol no final do jogo garantiria a vaga na

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semifinal, faz referência também a conhecimentos cognitivos sobre a seleção holandesa que, embora seja considerada uma grande se-leção, nunca ganhou uma Copa do Mundo. Esse tipo de elaboração referencial pode atribuir uma hierarquia nos argumentos listados em um texto e até mesmo funcionar como um elemento de ava-liação por parte do autor, pois, ao sumarizar uma parte do texto, ele pode destacar ou enfatizar alguma parte desse conteúdo, como atesta Koch (2006). No caso acima, a expressão “a chance de fazer história” ressalta a relevância desse lance dentro do jogo, pois po-deria significar a vitória e, mais ainda, a importância dessa possível vitória para a história da seleção holandesa.

Dentro dos exemplos que contribuem para a organização textual, destacamos o encapsulamento prospectivo grifado abaixo, verificado na notícia do jornal O Globo, inicia um novo tópico no discurso e reitera a orientação argumentativa do texto que trata da superação do time holandês:

(5) São necessários 45 minutos para a troca de lados em

uma partida. Mas o intervalo esperado pela Holanda para

virar o jogo durou quatro anos. No ciclo entre as Copas,

os holandeses não suportaram o papel de coadjuvantes,

enquanto a protagonista Espanha brilhava como a estre-

la campeã em sua camisa roja. Até ontem. Assim como a

maioria dos credos, crenças e culinárias vieram da África,

as equipes trouxeram daquele continente para a Bahia a

rivalidade e o latente desejo de vingança da Holanda, que

impôs à Espanha uma furiosa goleada de 5 a 1. Jamais

um campeão havia estreado na Copa seguinte levando

cinco gols.

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A inversão de papéis começou antes de a bola rolar. Ao con-

trário da final de 2010, era a Holanda a usar azul. Ao cair

na área aos 25 minutos, o brasileiro naturalizado espanhol

Diego Costa já percebera a dificuldade para se livrar dos

zagueiros e das vaias. Xabi Alonso bateu o pênalti e fez

o único gol da Espanha, um suspiro antes do afogamento

total (AMATO, Gian. “Laranja amarga”. O Globo. Rio de Ja-

neiro, 14 de junho de 2014, p. 8).

Tendo em vista o parágrafo anterior da notícia, esse pará-grafo, com o encapsulador “a inversão de papéis”, retoma o conteú-do anterior e a relação estabelecida pelas anáforas diretas “papel de coadjuvante” e “protagonista Espanha”, além de marcações dêiti-cas de tempo presentes no parágrafo anterior, que estabelecem um “antes e depois” no discurso, coincidindo com o tópico instaurado pelo encapsulador “a inversão de papéis”.

Os casos de dêixis Ainda em relação à notícia esportiva referente ao jogo entre Ar-

gentina e Holanda, analisamos, conjuntamente, um caso de dêixis pes-soal e também casos de dêixis temporal encontrados no mesmo texto:

(6) A Argentina vai fazer a final do mundial em nossa casa

com a responsável pela maior humilhação de nossa histó-

ria: a Alemanha. (...)

Certo é que, assim como o 8 de julho para os brasileiros,

esse 9 de julho nunca será esquecido pelos argentinos. No

dia da independência do país, eles ficaram a um jogo de

conquistar o Brasil, a eternidade. Brasil, decime que se

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siente... (PORTO, Marcio. “Corrida para o tri”. Lance! Rio

de Janeiro, 10 de julho, p. 10).

O emprego do pronome possessivo de 1ª pessoa do plural,

em “nossa casa” e “nossa história”, inclui interlocutor/leitor, pre-sentes no segundo parágrafo do texto, em uma mesma situação de sofrimento e decepção pela derrota brasileira.

Há, no texto, uma oposição entre “nós” e “eles” revelada em alguns momentos da notícia, como na introdução, em que o jornalista começa dizendo que quem “veio ao Brasil e fizeram do país vizinho sua casa foram eles”, os argentinos. A partir desse mo-mento, os argentinos são caracterizados como “eles” em oposição à expressão dêitica de pessoa, “nós”, os brasileiros. Desse modo, são criados dois grupos antagônicos no texto.

Já no final da notícia, a derrota brasileira e a vitória argen-tina são enfatizadas, nesse parágrafo final, pelas referências tem-porais dêiticas: “o 8 de julho” e “esse 9 de julho”. É interessante notar o emprego do artigo definido e do pronome demonstrativo nesses sintagmas. O artigo definido marca a data da derrota brasi-leira como conhecida do interlocutor, como um acontecimento his-tórico, já o pronome demonstrativo sugere que essa data específica a cujo jogo o texto remete tornou-se especial para os argentinos, que, no dia da independência do país, conquistaram a vaga para final do mundial. Além disso, o uso demonstrativo parece apontar para fora do texto, para o momento do acontecimento, tornando-o também histórico.

Cabe destacar a estratégia de abertura/encerramento da notícia, que se iniciou com os dêiticos pessoais marcando a riva-lidade entre as duas seleções, e se encerrou com os dêiticos tem-

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porais, marcando a importância das datas para as duas seleções e

também reforçando a rivalidade entre as duas equipes. Enquanto

para os brasileiros a data era triste, para a Argentina era motivo

de comemoração. Ou seja, a oposição nós/eles, criada no decorrer

do texto, é reiterada pela oposição de resultados entre o 8 de julho

da derrota do Brasil e o 9 de julho da vitória da Argentina.

Ao agrupar os brasileiros com o uso do dêitico de pessoa

“nós”, o jornalista reforça o tom dramático da derrota, afinal, sofre-

mos a “maior humilhação da nossa história na nossa casa”. A humi-

lhação, portanto, não é da seleção brasileira, mas de todos os bra-

sileiros, o que confere uma abordagem pessoal que visa ao apelo às

emoções do interlocutor, como as análises demonstraram ser uma

das características principais desse gênero. Além disso, a oposição

entre Brasil e Argentina criada no texto conversa com a rivalidade

entre essas duas equipes, demonstrando, assim, uma das intencio-

nalidades do interlocutor, que se apropria do conhecimento dessa

rivalidade na construção do texto.

De acordo com Maalej (2013), a dêixis de pessoa deve ser

analisada conforme suas dimensões discursivas e ideológicas, como

acontece com “nosso/nossa” no texto acima, pois, ao mesmo tempo

em que inclui os brasileiros, exclui um outro agente, os argentinos.

Trata-se de um indício da dimensão discursiva e ideológica de que

fala Maalej, pois reforça estereótipos culturais e a ideologia da riva-

lidade entre Brasil e Argentina em relação ao futebol.

No excerto seguinte, a expressão dêitica, além de criar uma

delimitação temporal, promove uma demarcação no próprio texto,

como se fosse um antes e depois na história da Holanda na Copa do

Mundo de 2014:

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(7) São necessários 45 minutos para a troca de lados em

uma partida. Mas o intervalo esperado pela Holanda para

virar o jogo durou quatro anos. No ciclo entre as Copas,

os holandeses não suportaram o papel de coadjuvantes,

enquanto a protagonista Espanha brilhava como a estre-

la campeã em sua camisa roja. Até ontem (AMATO, Gian.

“Laranja amarga”. O Globo. Rio de Janeiro, 14 de junho

de 2014, p. 8).

A locução adverbial “até ontem”, que encerra o parágrafo,

toma como ponto de partida o momento da enunciação do texto

em diante, delimitando um marco temporal. A partir desse jogo,

a Holanda deixava a derrota sofrida na final da Copa de 2010 para

vencer o seu rival, a Espanha, com uma ótima atuação, vencendo

por um placar amplo de quatro gols de diferença.

É interessante notar que esse parágrafo inicia o texto fa-

lando ainda da superioridade espanhola. No entanto, a partir da

coordenada dêitica, há um novo momento discursivo, já que a con-

tinuidade da notícia passa a relatar a virada e superioridade ho-

landesa sobre a Espanha. A expressão dêitica, nesse caso, funciona

como uma demarcação de momentos diferentes no texto: o antes e

o depois da seleção holandesa, que passou de equipe derrotada pela

Espanha na final do mundial de 2010 para a equipe que impôs uma

goleada na campeã mundial Espanha quatro anos depois. Esses advérbios temporais, dentro das notícias, atuam

como dêiticos cuja intepretação é feita a partir da data de publica-ção da matéria, que, provavelmente, deve ser uma data diferente da recepção desses textos por parte dos leitores.

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As anáforas indiretasSchwarz (2007) afirma que as anáforas indiretas apresen-

tam como características básicas, dentre outras, a construção de um novo referente e que, para sua compreensão, é necessário muito mais do que um procedimento de busca e compatibilidade. As aná-foras indiretas requerem, para sua interpretação, um processo cog-nitivo envolvendo a ativação de estruturas de conhecimento que combinam ativação e reativação de referentes.

O primeiro exemplo a ser discutido apresenta um caso de anáfora indireta que está dentro de um sintagma com função en-capsuladora. Trata-se da notícia que narra a partida entre Espanha e Holanda pela fase de grupos da Copa do Mundo:

(8) Um dia sem fúria

Sem dó, nem piedade, campeã mundial Espanha é humi-

lhada pela Holanda na reprise da final da Copa da África do

Sul de 2010 (ASSAF, Roberto. “Um dia sem fúria”. Lance!

Rio de janeiro, 14 de julho de 2014, p. 14).

A expressão grifada, ao relacionar o jogo narrado à final da Copa da África do Sul de 2010, retoma, por meio de uma anáfora in-direta, o jogo da edição de 2010 da Copa do Mundo, apresentando, portanto, um “novo” referente no discurso. É preciso ter o conhe-cimento de que a final de 2010 ocorreu entre Espanha e Holanda, ocasião em que a Espanha saiu vitoriosa, para homologar a referên-cia proposta pelo jornalista ao lançar mão desse recurso ao associar à final de 2014 à de 2010.

O próximo exemplo, retirado da mesma notícia, apresenta um caso de anáfora indireta relacionado ao epíteto do time holandês:

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(9) Outro jogo, outra Holanda no segundo tempo. De pé

em pé, a bola chegou a Robben depois de outro lançamen-

to de Blind, o lateral-esquerdo legítimo descendente da La-

ranja Mecânica, porque é filho do ex-zagueiro Danny Blind

(AMATO, Gian. “Laranja amarga”. O Globo. Rio de Janeiro,

14 de junho de 2014, p. 8).

Nesse trecho, a expressão grifada “Laranja Mecânica” faz re-

ferência ao time da Holanda de 1974, que não foi mencionado, for-malmente, no cotexto. É um caso que, a princípio, poderia ser con-fundido com uma anáfora direta, já que o nome “laranja” foi utilizado no texto, outras vezes, para se referir à seleção holandesa atual. No entanto, como vimos, a partir das informações presentes no cotexto e de conhecimentos prévios, descartamos essa possibilidade.

Não se trata, portanto, de uma referência à seleção holan-desa que está sendo descrita na notícia. Trata-se de uma menção à famosa seleção holandesa de 1974 que deu origem ao apelido de Laranja Mecânica. Só chegamos a essa conclusão pelas pistas no cotexto, como a informação de que o jogador Blind é filho de Danny Blind, jogador daquela seleção. A fim de garantir essa interpreta-ção, no entanto, é necessário relacionar essas informações ao co-nhecimento sobre futebol e sobre a importância da seleção holan-desa que jogou na década de 1970.

No trecho abaixo, há um caso de anáfora indireta consti-tuído por uma expressão numérica, que chama atenção por sua peculiaridade:

(10) Faltou à Argélia a qualidade dos craques adversários. Mas

parece exagero atribuir o seu esforço a uma tentativa de vingar

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1982, pois nenhum dos 28 jogadores que estiveram na partida

havia nascido em junho daquele ano (ASSAF, Roberto. “Não

foi fácil”. Lance! Rio de Janeiro, 1 de julho de 2014, p. 20).

A expressão grifada “1982” retoma uma sequência de ações que culminaram na eliminação da seleção argelina naquele ano. Na sua estreia em mundiais, a equipe argelina havia ganhado da Ale-manha Ocidental e dependia do resultado do último jogo da fase de grupos, entre Alemanha Ocidental e Áustria, para garantir a vaga na próxima fase da Copa. Entretanto, as seleções europeias firmaram um pacto de não agressão a fim de manter um placar que garantisse a vaga das duas seleções na próxima fase e excluísse a Argélia pelo saldo de gols. Assim, a Alemanha fez um gol logo no primeiro tempo contra a Áustria e, a partir disso, as seleções não produziram mais nada dentro de campo. O escândalo foi tão gran-de na época que levou a Federação internacional de Futebol (FIFA) a mudar algumas regras para a Copa de 1986.

A interpretação dessa anáfora indireta está bastante atrela-da ao conhecimento compartilhado sobre futebol, sendo difícil sua interpretação somente pelas pistas textuais. Embora a presença do verbo “vingar” sugira uma revanche e permita imaginar alguma si-tuação em que a Argélia tenha ficado em desvantagem perante a seleção alemã, recuperar a referência do que representou o ano de 1982 para os argelinos depende muito mais do acionamento de in-formações históricas sobre futebol.

Considerações finais Como afirma Koch (2002), todo texto apresenta uma “tri-

lha de sentidos” e desvendar esses caminhos bem como os recursos

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Margareth Andrade Morais

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que os constroem são motivações incessantes para os estudiosos do texto/discurso. Esse trabalho, portanto, realizado sob o escopo teórico da Linguística de Texto, é mais um exemplo de como tal li-nha teórica constitui um meio muito profícuo para análises que se propõem a trabalhar o texto em sua totalidade e em sua dimensão discursiva. Dessa forma, foi utilizado, como método de trabalho, um modelo de análise em que foi possível perceber como expressões re-ferenciais e pistas textuais constroem os sentidos no texto e como a imagem do referente que o coenunciador elabora em sua memória vai sendo alterada, à medida que se desenvolve o discurso.

Confirmou-se que o gênero notícia esportiva é bastante atrelado ao contexto sociocognitivo, por isso as formas de referen-ciação nele verificadas dependem extremamente de conhecimen-tos compartilhados para sua interpretação. Construir a coerência desse enunciado, portanto, depende sempre de os interlocutores partilharem conhecimentos. Por meio de pistas contextuais e co-textuais, os participantes da enunciação vão ativando os sentidos e interpretando os referentes como velhos ou novos. Soma-se a isso a intencionalidade e os propósitos comunicativos do gênero textual em questão, pois, como foi possível perceber, a notícia esportiva procura destacar ou enfatizar lances, detalhes mais importantes do jogo, valorizar uma determinada seleção, por exemplo, de modo a garantir uma adesão emocional do seu interlocutor.

Por fim, vale ressaltar a importância da interface teórica entre referenciação e gêneros textuais, especificamente por de-monstrar, por meio de exemplos, a produtividade dos processos de referenciação presentes no gênero notícia esportiva, sempre tendo como foco a perspectiva sociocognitiva.

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A referenciação nas notícias esportivas da Copa de 2014: uma abordagem à luz da Linguística de Texto

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Margareth Andrade Morais

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A referenciação nas notícias esportivas da Copa de 2014: uma abordagem à luz da Linguística de Texto

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Resumo

O propósito deste trabalho consiste em investigar as estratégias de referenciação no gênero notícia esportiva de futebol em dois jornais. Esse estudo se justifica não só pela originalidade do corpus mas também por associar os processos de referenciação a um determinado gênero tex-tual. Seguindo os avanços da Linguística de Texto acerca dos processos de referenciação e sua importância para a textualidade, rediscutimos a delimitação entre anáforas diretas, indiretas, encapsuladoras e a dêixis, mostrando como esses processos estão interligados e constituem um pro-cesso colaborativo de construção de sentidos, que emerge da negociação dos sujeitos. Para tanto, este artigo ancora-se nos estudos que conside-ram a referenciação como um processo colaborativo de construção de sen-tidos (cf.  Mondada e Dubois: 2003), posição corroborada no Brasil por Marcuschi (2008), Koch (2002, 2006), Cavalcante (2011), Santos (2015), dentre outros autores. Além disso, o trabalho também se fundamenta em autores que partilham de visões teóricas distintas e outros que não se filiam à Linguística do Texto, como Cornish (2011). Com base em uma análise qualitativa, foram observados os objetos de discurso centrais das notícias, como as seleções e seus jogadores, analisando, as anáforas dire-tas. Logo após o foco recair sobre os encapsuladores, os casos de dêixis e, por fim, as anáforas indiretas. A análise dos dezesseis textos mostrou que a referenciação apresenta funções específicas na construção das notícias. Ademais, foram verificados exemplos que fogem aos prototípicos descri-tos pelos principais teóricos da área, ampliando, assim, a descrição das formas de referenciação e suas funções discursivas. Por fim, implemen-tou-se uma parte importante da nossa pesquisa, que é atrelar o estudo da referenciação ao estudo dos gêneros textuais.Palavras-chave: referenciação; gênero textual; notícias esporti-vas; conhecimento compartilhado.

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Abstract

The purpose of this work is to investigate the strategies of reference in the sports news genre in two newspapers. This study is justified not only by the originality of the corpus but also by associating the processes of reference to a given textual genre. Following the advances of Text Linguistics about the processes of reference and their importance for textuality, we rediscuss the delimitation between direct, indirect, encapsulating and dexis anaphora, showing how these processes are interconnected and constitute a collaborative process of sense construction, which emerges from the negotiation of the subjects. For this, this article is anchored in studies that consider referencing as a collaborative process of sense-building (see Mondo and Dubois, 2003), a position corroborated in Brazil by Marcuschi (2008), Koch (2002, 2006), Cavalcante (2011), Santos (2015), among other authors. In addition, the work is also based on authors who share distinct theoretical views and others who are not affiliated with Text Linguistics, such as Cornish (2011). Based on a qualitative analysis, the central discourse objects of the news, such as the selections and their players, were analyzed, analyzing the direct anaphora. Soon after, the focus was on the encapsulators, the indirect anaphora and, finally, cases of dexis verified in the corpus. The analysis of the sixteen texts showed that the reference presents specific functions in the construction of the news. In addition, examples have been verified that escape the prototypical ones described by the main theoreticians of the area, amplifying, thus, the description of the forms of reference and its discursive functions. Finally, an important part of our research was implemented, which is to link the study of reference to the study of textual genres.Keywords: referential process; textual genre; sports news; shared knowledge.

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Estratégias referenciais na construção de artigos de opinião

Júlio Manoel da Silva Neto*

O presente artigo tem como objetivo apresentar, de manei-ra reduzida, a discussão empreendida na dissertação defendida em fevereiro de 2018, cujo título era Argumentação e referenciação em artigos de opinião.

No trabalho original, à luz da Linguística do Texto (LT) e da Teoria da Argumentação, investigamos a referenciação e a argu-mentação em oito artigos de opinião de sites de três revistas – Veja, Época e Carta Capital – e um jornal – O Estado de S. Paulo –, ao longo do triênio 2015-2017, publicados por autores nacionais sobre a te-mática que denominamos como “eixo Síria”: a guerra de interesses entre Rússia e Estados Unidos, a crise dos refugiados, os ataques terroristas, o Estado Islâmico e a situação síria.

Buscando um arcabouço teórico-metodológico que nos desse embasamento suficiente para a análise desse material, apoiamo-nos em pressupostos da Linguística de Texto (LT), principalmente nos estudos sobre referenciação e da Teoria da Argumentação.

Podemos considerar que referenciação funciona como a (re)construção dos objetos de discurso de acordo com os efeitos pre-tendidos pelo enunciador. Como apontam Santos e Leal, “a distri-buição de objetos de mundo em categorias discursivas depende da

* Mestre em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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capacidade do homem de perceber o mundo e tal percepção, de for-ma alguma, é unânime” (2013, 165). Logo, tais escolhas são sempre promovidas a partir de um querer-dizer.

No que tange à argumentação, autores como Ducrot (1987) afirmam que argumentar é um ato inerente à língua. Dessa forma, em qualquer situação comunicativa, estaríamos buscando a adesão do nosso interlocutor. Focando-nos na argumentação em um senti-do stricto – como, por exemplo, a redação escolar, o editorial, a pro-paganda, o artigo de opinião –, podemos defini-la como o resultado de variados recursos linguísticos utilizados em conjunto, levando o sujeito a construir uma tese, baseando-se em argumentos variados que encaminham a uma determinada conclusão. Tais argumentos precisam ser sólidos o suficiente e adequados ao seu auditório, a fim de persuadi-lo.

Observamos, assim, como estes dois elementos – referen-ciação e argumentação – estão imbricados: a escolha de como fazer referências a um objeto de discurso sempre apaga outra, tal esco-lha não é aleatória, nem neutra, sempre carrega consigo um viés argumentativo.

Este artigo está dividido da seguinte maneira: nas etapas a seguir apresentamos uma exposição do nosso arcabouço teórico sobre referenciação, relacionando-a à argumentação; a seguir apre-sentamos uma análise ilustrativa de como a referenciação é um im-portante fator na construção dos textos argumentativos; por fim, indicamos nossas conclusões sobre o experimento realizado.

Referenciação, processos referenciais e pistas textuaisBaseada na perspectiva da LT contemporânea, Koch afirma

ser a referenciação

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Estratégias referenciais na construção de artigos de opinião

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uma atividade discursiva. O sujeito, na interação, opera o

material linguístico que tem à sua disposição, operando

escolhas significativas para representar estados de coisas,

com vistas à concretização do seu projeto de dizer (Koch,

1999, 2002). Isto é, os processos de referenciação são as

escolhas do sujeito em função de um querer dizer [...] a rea-

lidade é construída, mantida e alterada não somente pela

forma como nomeamos o mundo, mas acima de tudo pela

forma como, sociocogntivamente, interagimos com ele:

interpretamos e construímos nossos mundos por meio

da interação com o entorno físico, social e cultural (2014

[2008], 48).

Assim, é possível compreendermos a referenciação como uma atividade discursiva na qual os objetos de discurso, uma vez inseridos no texto, (re)constroem-se e transformam-se de acordo com a maneira como interagimos com o mundo.

No que tange aos objetos de discurso, esses são elementos aos quais fazemos retomadas nos textos, são estruturas, alimentadas pela atividade linguística, que se reformulam constantemente por meio de variados mecanismos conhecidos como processos referenciais.

Para Cavalcante et al., são três os processos referenciais:

a) o de introdução referencial, porque há um momento em

que os objetos de discurso são apresentados no texto pela

primeira vez;

b) o de anáfora (ou retomada de referentes), porque, de-

pois que os referentes são introduzidos, eles continuam no

texto, girando em torno de temas e subtemas, fazendo-os

progredir;

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Júlio Manoel da Silva Neto

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c) o de dêixis (tipos de introdução ou de anáforas que só

podem ser entendidas se as relacionarmos ao locutor e ao

espaço ou tempo em que ele se encontra) (2017, 96-7).

Como nosso foco são as anáforas, restringiremos nosso olhar ao item (b).

Podemos definir anáfora como um processo referencial que coopera na construção e progressão textuais, podendo retomar correfencialmente elementos textuais ou introduzi-los no discur-so, havendo ou não âncoras cotextuais. As anáforas dividem-se em três subgrupos: diretas, indiretas e encapsuladoras.

As anáforas diretas (ADs) são expressões que retomam re-ferentes presentes no texto, podendo ser pronominal ou nominal. O critério que estrutura o conceito de AD é o de correferencialida-de. Para Milner, “há correferencialidade entre duas unidades refe-renciais A e B quando elas têm a mesma referência – o que pode acontecer sem que a interpretação de uma seja afetada pela inter-pretação da outra” (2003, 112-3).

As anáforas indiretas (AIs) não apresentam no cotexto um elemento explícito que as anteceda, mas uma âncora que autoriza a sua presença. Dessa forma, podemos inferir sua manifestação devi-do ao processamento sociocognitivo do texto. Ainda em relação às anáforas indiretas, Cavalcante revela que elas “evidenciam essen-cialmente três aspectos: a não vinculação da anáfora com correfe-rencialidade; a introdução de referente novo e o status de referente novo expresso no contexto como conhecido” (2012, 125-6).

Assim, a diferença entre a anáfora direta e a indireta é a obrigatoriedade de uma correferencialidade explícita na primeira (AD), estabelecendo remissões a objetos de discurso no texto, que não existe na segunda (AI), pois a sua reconstrução é dada a partir de âncoras cotextuais.

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Por fim, as anáforas encapsuladoras (AEs), geralmente, por meio de substantivos abstratos ou pronomes demonstrativos, re-sumem porções não claramente delimitadas do texto, estabelecen-do um novo referente. As AEs, segundo Santos e Cavalcante (2014), seriam um meio termo entre a AD – pois apresenta um certo grau de correferencialidade ao resumir uma porção do texto – e a AI – pelo fato de introduzir um novo referente que pode sintetizar uma parte tanto anterior quanto posterior do texto.

Evidenciamos que pesquisas como as de Ciulla e Silva (2008) e Santos e Cavalcante (2014) têm salientado, cada vez mais, a necessidade de rever os processos referenciais que compõem os subgrupos de anáforas em uma perspectiva de um continuum, sem que haja critérios tão estanques para suas avaliações.

Revendo os casos de ADs e AIs, Ciulla e Silva (2008) e Mo-rais (2012, 2017) já ratificaram que, a respeito desses processos, em ambos os casos, há necessidade da realização de variadas in-ferências para compreensão, pois todos os processos referenciais exigem essa capacidade, além de também conhecimentos compar-tilhados entre o produtor e o receptor.

Ciulla e Silva postula que “as anáforas diretas também podem ser configuradas como amálgamas cognitivos, pois propiciam, assim como as anáforas indiretas, que os referentes sejam modulados e no-vas referências sejam feitas” (2008, 51). Segundo a autora, até mes-mo a repetição de um item lexical, na maior parte das vezes, não é igual, pois, a cada vez que se repete, esse referente é recategorizado, modificado, fazendo com que o texto obtenha progressão. Assim, es-sas estruturas também servem como estratégias recategorizadoras, exigindo o acionamento de inferências para sua construção.

Ainda no que tange à elaboração dos processos referenciais, Cortez (2009) afirma que a análise das expressões nominais refe-renciais é essencial para avaliar a construção do referente. Além

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delas, a autora salienta ainda que as expressões nominais predi-cativas são formas subsidiárias na construção e interpretação dos objetos do discurso. Por meio de análise estatística, em um artigo analisado, a autora revela que as expressões nominais referenciais compõem 86% das retomadas, tendo seu desenvolvimento apoiado por expressões predicativas em 14%. Fica claro, assim, como estes elementos são importantes na construção textual, como constata Cortez, ao afirmar que “as predicações são um tipo de argumento que ajudam a esclarecer a elaboração conceptual das expressões, quer dizer, sua significação”1 (2009, 104; tradução nossa).

Essas expressões predicativas, englobando também ver-bos, sintagmas nominais, adjetivos etc. são o que consideramos como pistas textuais – elementos que contribuem para o processo de referenciação, podendo auxiliar na construção do discurso e na alimentação dos referentes. Segundo Colomarco, “muito pouco se fala hoje sobre as pistas textuais, e defendemos que elas merecem maior destaque nas pesquisas da área, uma vez que também são responsáveis pela recategorização dos objetos de discurso” (2014, 159).

Referenciação e argumentaçãoArgumentar é uma atividade humana, exercemos essa prá-

tica desde a infância em diferentes instâncias de nossas vidas, com variados propósitos. Como apontam Koch e Elias (2016), durante a infância, argumentamos quando não queremos dormir, quando justificamos escolhas para determinado comportamento; mais ve-lhos, argumentos em entrevistas para empregos, em reuniões de

1 No original: “les prédications sont un type d’argument qui aide à éclaircir l’élaboration conceptuelle des expressions, c’est-à-dire, sa signification”.

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trabalho, em conversas informais com amigos etc. Para as autoras, a argumentação é vista como

o resultado textual de uma combinação entre diferentes

componentes, que exige do sujeito que argumenta cons-

truir, de um ponto de vista racional, uma explicação, recor-

rendo a experiências individuais e sociais num quadro

espacial e temporal de uma situação com finalidade persu-

asiva (Koch; Elias: 2016, 24; grifo das autoras).

Vemos, dessa forma, que a argumentação é uma associação de elementos que se unem para construir um ponto de vista, objeti-vando persuadir o outro. Dentre esses elementos que podem auxi-liar na construção argumentativa, segundo Van Dijk (1996; 1999), Koch e Elias (2016) e Koren (2016), temos as escolhas lexicais.

Koch e Elias (2016) afirmam que a seleção lexical é um importante fator persuasivo na construção de textos, pois o uso de um termo equivocado pode fazer um enunciado perder sua força argumentativa. Van Dijk (1996; 1999), avaliando as rela-ções entre linguagem e ideologia, afirma que todas as crenças podem ser formuladas e expressas em linguagem natural, sendo o léxico uma das formas observáveis de materialização da ideo-logia. Koren (2016), por sua vez, aponta que nomear funciona também como uma forma de avaliar, julgar, legitimar ou des-qualificar. Dessa maneira, é possível ratificar que a construção argumentativa é perpassada pela composição lexical: uma vez que determinadas escolhas anulam outras no projeto de dizer, não é possível afirmar que exista isenção nessas escolhas. Ou seja, a neutralidade é um mito, pois todo texto traz consigo de-

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terminada ideologia, considerada na perspectiva de Van Dijk (1999), à qual nos filiamos, como um sistema de crenças com-partilhadas por determinados grupos e passível de percepção por meio de elementos linguísticos.

Ao abordamos a questão das escolhas lexicais, é preciso evi-denciar que esses elementos apresentados ao longo do discurso po-dem também ser retomados por diferentes estratégias referenciais, formando cadeias que auxiliam na progressão referencial – com-posta pela introdução, a identificação, a preservação, a continuida-de e a retomada dos referentes –, colaborando no desenvolvimento do tópico discursivo e na construção da coerência e coesão textuais (Cortez: 2009).

Cumpre salientar que tais escolhas são motivadas segundo uma posição enunciativo-argumentativa, visto que “as categorias e os objetos de discurso pelos quais os sujeitos compreendem o mun-do não são preexistentes, nem dados, mas se elaboram no curso de suas atividades, transformando-se a partir dos contextos” (Mon-dada; Dubois: 2003, 16). Por isso, ao longo do processo de discur-sivização, com base em objetivos pré-determinados, os produtores adequam seu discurso, moldando-o a determinado auditório.

Como vimos, objetos do discurso são (re)construídos com base numa relação dialógica, de troca. A respeito desse tópico, Koch e Cortez afirmam que

a construção dos objetos de discurso homologa traços de

um diálogo interior do sujeito enunciador consigo mesmo

e com os outros, desempenhando papel importante na

orientação argumentativa do texto. Com base nisso, par-

timos do pressuposto de que os objetos de discurso são

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reveladores de ponto de vista, e seu modo de apresenta-

ção é um meio pelo qual se pode apreender a subjetividade

(2013, 9-10).

No campo da argumentação, tal fato é ainda mais saliente, pois o enunciador faz escolhas linguísticas com objetivos persu-asivos. Assim, as retomadas anafóricas variadas visam construir uma cadeia discursiva que faça com que o leitor aceite determi-nado posicionamento enunciativo; o foco é na persuasão. Esse aspecto imbrica-se ao público ao qual o discurso é dirigido, ade-quando-se a esse devido à faixa-etária, nível de escolaridade ou posicionamento ideológico, por exemplo. Logo, é perceptível a es-treita relação presente nos elementos referenciais como recursos que conduzem à argumentação, como defendem Palumbo (2007), Silva (2008), Carmelino e Tomazi (2010), Morais (2016) dentre outros autores.

Palumbo, estudando uma associação entre argumentação e referenciação tendo como corpus um debate político televiso, ob-serva que

por ser a referenciação efetivada pelo uso da língua, a ar-

gumentatividade, inerente a esta, permanece presente nas

seleções linguísticas utilizadas com o propósito de desig-

nar e, possivelmente, avaliar, julgar e construir realidades

textuais (2007, 156).

Carmelino e Tomazi (2010), avaliando a relação entre refe-renciação, argumentação e humor, indicam que a referenciação, na esquete “Senadora Biônica” analisada por elas, funciona como um

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elemento responsável pela comicidade, uma vez que deflagra “algo” em uma situação comunicativa, licenciando-a como cômica. Ainda segundo as autoras, as construções referenciais indicam um ponto de vista da comediante, assinalando direções argumentativas para que o interlocutor possa construir uma rede de referentes textuais, acionando seus conhecimentos de mundo ou enciclopédicos.

Por fim, Morais (2016), examinando as estratégias referen-ciais encapsuladoras no gênero editorial, afirma que, por compor o gênero, são nítidos os posicionamentos argumentativos sobre determinados objetos do discurso expressos por meio de anáforas encapsuladoras que apresentam como função condensar algo já (ou que ainda será) apresentado.

Sintetizando o apresentado por essas pesquisas, podemos citar Silva, que, tratando da referenciação em textos argumentati-vos, indica que

a referenciação nesse tipo de texto é empregada em função

do discurso de transformação que busca a adesão do leitor

[...]. Logo, partindo do pressuposto de que o interlocutor

discorda da posição do enunciador, este deve buscar meios

para atingir seus objetivos, acionando estratégias textuais

que colaboram para sua argumentação. Daí o papel das

anáforas, cuja contribuição é inegável (2008, 139).

A construção referencial na prática: análiseComo apontado na introdução deste artigo, nossa disser-

tação contou com a análise de oito artigos, publicados ao longo do triênio 2015-2017, pretendendo observar como os enunciadores tratavam da temática síria. Por conta do breve espaço destinado

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aqui, salientamos para análise apenas um dos artigos analisados, objetivando avaliar como os elementos construídos na teia refe-rencial auxiliam como recursos argumentativos na construção do artigo de opinião, revelando, no texto, o posicionamento do enun-ciador sobre o assunto abordado.

O artigo selecionado para análise é do jornal O Estado de S. Paulo, publicado em 2015, cujos autor e título são, respectivamen-te, Flávio Tavares e “A fanática visão única”.

Motivado pelo ataque do Estado Islâmico (EI) a Paris em 13 de novembro 2015, o artigo tem como objetivo abordar uma crítica ao fanatismo religioso desse grupo. O texto destaca que, baseado na sua crença islâmica, o EI ataca diferentes áreas e mata diversas pessoas que vão contra o que acredita. A fim de buscar as origens dessa religião, o artigo traça um perfil do líder do islã, Maomé, apontando que a criação dessa religião já partiu de um movimento violento. Contudo, não é a religião que deve ser culpada, mas o fa-natismo dos seus seguidores, que creem ser essa superior às outras, sendo isso um dos problemas que dificultam, até mesmo, a relação dos imigrantes refugiados nos países onde buscam asilo.

Em relação às anáforas diretas, no texto, analisaremos a construção referencial para o EI e também para o ataque da Fran-ça ao EI, opondo-o ao ataque do EI a Paris, revelando suas marcas axiológicas e argumentativas. No que tange às anáforas encapsula-doras, avaliaremos a construção apresentada para as diferentes in-vestidas do EI e a conturbada relação que os imigrantes refugiados vivem na França.

Em (01), há a apresentação formal do grupo Estado Islâmi-co no texto e suas retomadas:

(01) A indignação e o pranto não bastam como resposta ao

terror do chamado Estado Islâmico. [...]

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Júlio Manoel da Silva Neto

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O “Estado Islâmico” nem Estado é, mas apenas um aglome-

rado imenso de fanáticos religiosos que, em 2004, ocupa-

ram territórios no Iraque e na Síria e se autoproclamaram

como califado. Expandiram-se no caos do totalitarismo

árabe. Complacentes, as grandes potências ocidentais os

viram como alternativa para derrubar as ditaduras da Lí-

bia e da Síria e, até, lhes deram armas. Hoje a vasta seita

impermeável e rude invoca preceitos do Islã e, em nome de

Alá, mata, escraviza, destrói populações inteiras e dinami-

ta monumentos da História.

Se nada disso basta, o que fazer? Não há fórmulas mági-

cas, menos ainda agora. Mas a violência jamais se resol-

verá se não atentarmos para o que é o Islã e como, dentro

dele, se comportam até mesmo os que repudiam o terror.

O fanatismo dos terroristas do Islã crê ter raízes no seu

próprio Profeta.

A fim de deixar nítido esse referente, apresentamos o Quadro 1:

Objeto do discurso

analisado

Introdução e anáforas empregadas Pistas textuais

Estado Islâmico

“Estado Islâmico”“o Estado Islâmico”“a vasta seita impermeável e rude”“(d)os terroristas do Islã”

“nem Estado 锓um aglomerado imenso de fanáticos religiosos”“autoproclamaram-se como califado”“alternativa para derrubar as ditaduras”

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Estado Islâmico(cont.)

“Estado Islâmico”“o Estado Islâmico”“a vasta seita impermeável e rude”“(d)os terroristas do Islã”

“em nome de Alá, mata, escraviza, destrói populações inteiras e dinamita monumentos da História”

Quadro 1: Construção referencial para o objeto de discurso “Estado Islâmico”

Examinando as construções para o objeto do discurso ana-lisado, inicialmente, temos no subtítulo – “A indignação e o pranto não bastam como resposta ao terror do chamado Estado Islâmico. [...]” – sua presença nominal e geral, “Estado Islâmico”, a fim de acionar os conhecimentos de mundo do leitor para saber de quem se trata.

Após, esse objeto, no primeiro parágrafo, é repetido como “o ‘Estado Islâmico’” e depois retomado como “a vasta seita imper-meável e rude” e “os terroristas do islã”.

Segundo o dicionário Houaiss, seita pode indicar “1. con-junto de pessoas que professam a mesma doutrina ou religião. 2. doutrina ou sistema que se afasta da crença ou opinião geral” (2008, 678). Contextualizando a palavra no artigo, observamos que a se-gunda acepção foi a apresentada para o grupo. Assim, na visão do enunciador, o EI é considerado como um grupo grande – “vasto” – que segue uma doutrina particular e compartilha ideologias que não são da maioria da população. Além disso, outros predicativos se adjungem a “vasta seita”: os adjetivos “impermeável” e “rude”, ou seja, os integrantes não se relacionam com outros grupos, são fechados em si, além de agirem de forma grosseira, brutal, com

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seus oponentes ou com os que não seguem a sua fé. Vemos, nessa retomada, um longo sintagma que atribui várias predicações a esse objeto com valores axiológicos.

Relativo à AD “os terroristas do Islã”, observamos a atribuição da religião predicando “terroristas”, indicando que eles agem dessa forma motivados por sua religião, o islã. Essa retomada fica mais ní-tida pelas próprias pistas textuais que cercam esse objeto, tais como: “um aglomerado imenso de fanáticos religiosos” e “em nome de Alá, mata, escraviza, destrói populações inteiras e dinamita monumen-tos da História”. Essas pistas corroboram na construção do referente como “terroristas”, uma vez que matam, roubam e destroem, pois estão cegos pela sua religião, crendo ser essa a melhor. As outras pis-tas salientadas para esse grupo têm como objetivo invalidá-lo. Con-forme o enunciador, ele não pode ser considerado um Estado, não há respaldo para isso, é, na verdade, um grupo de extremistas que age como prega sua religião, por isso são fanáticos. Cumpre também salientar a pista “alternativa para derrubar as ditaduras”, que indica que o grupo foi usado pelo Ocidente para acabar com o regime políti-co que vigorava na Síria e na Líbia. Assim, sem o apoio ocidental, ele nem existiria, não teria forças para ser quem é hoje.

A seguir, apresentamos os outros dois referentes que anali-saremos presentes no fragmento (02): o ataque realizado pelo EI a Paris e a reação francesa.

(02) A indignação e o pranto não bastam como resposta ao

terror do chamado Estado Islâmico. Tampouco os bombar-

deios da aviação francesa aos núcleos terroristas, em retalia-

ção aos atentados em Paris na sexta-feira 13. As medidas de

segurança e autodefesa tomadas pela França são necessá-

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rias e imprescindíveis, mas apenas mitigam a insânia do

terror como paliativo – diminuem a febre sem extirpar o

tumor nem curar a enfermidade. [...]

Nos longos debates que o canal internacional francês, TV

5 Monde, realizou em Paris nas 48 horas após a chacina,

o grande especialista do terror islâmico Gilles Kepel lem-

brou um paradoxo [...]

[...] os terroristas do Estado Islâmico festejaram – com pa-

lavras – a chacina de Paris: “A glória e o mérito pertencem

a Alá”.

Com base no excerto, notamos as seguintes construções referenciais:

Objetos do discurso

analisados

Introduções e anáforas empregadas

Pistas textuais

Ataque do EI a Paris

“atentados em Paris na sexta-feira 13”“a chacina”“a chacina de Paris”

Ataque da França ao EI

“os bombardeios da aviação francesa aos núcleos terroristas”“as medidas de segurança e autodefesa”

“necessárias”“imprescindíveis”

Quadro 2: Construção referencial para os objetos de discurso “ataque do EI a Paris” x “ataque da França ao EI”

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Avaliando as retomadas iniciais do ataque feito pelo EI,

observamos a expressão introdutora “atentados em Paris na

sexta-feira 13”. Essa introdução já apresenta um valor axiológico,

pois “atentado” indica que tal fato foi orquestrado, pensado. Os

adjuntos de lugar e tempo reforçam na mente do leitor tais infor-

mações. A data em si também pode suscitar outras lembranças que

temos arquivadas em nossa memória cultural, como a crença de

toda sexta-feira 13 ser um dia de terror. Assim, podemos crer que

essa estrutura, inferencialmente, pode ter sido criada com objeti-

vos argumentativos de relacionar a coincidência da data do evento

com o que culturalmente conhecemos como sexta-feira 13. As ou-

tras retomadas também continuam avaliando o evento. A palavra

“chacina” traz um valor negativo, indicando que o acidente foi am-

plo e deixou vários mortos. Além disso, essa palavra indica também

que as mortes têm um requinte de crueldade e brutalidade, o que

reforça o caráter sanguinário do EI.

Relativo ao ataque francês, temos sua introdução pela ex-

pressão “os bombardeios da aviação francesa aos núcleos terroris-

tas”, que não explicita que a ação foi orquestrada, como a ocorri-

da em Paris (ou seja, nesse caso não temos um “atentado”). Além

disso, há ainda uma generalização ao classificar os locais atacados

como “núcleos terroristas”. Por mais que possamos pensar que o

enunciador esteja tratando como “núcleo terrorista” apenas a área

encoberta pelo EI, não fica claro, no texto, que nesse espaço vivem

tanto o EI quanto habitantes que não têm condições financeiras de

sair da localidade. Dessa maneira, ao negligenciar essa informação

o leitor é, possivelmente, induzido ao erro de crer que nesse local há

apenas células do EI, e que, portanto, o ataque francês se justifica.

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A construção argumentativa leva a crer que os ataques foram cer-teiros ao grupo extremista, o que não é possível garantir.

Esse objeto – “os bombardeios da aviação francesa aos nú-cleos terroristas” – é retomado por “as medidas de segurança e au-todefesa”, que demonstra que tal reação francesa é legítima, o que se reforça pelas pistas textuais “necessárias” e “imprescindíveis”, ratificando a necessidade e a urgência desses ataques, por mais que se possam assemelhar ao feito pelo próprio EI e não surtam verda-deiros efeitos – “diminuem a febre sem extirpar o tumor nem curar a enfermidade”.

Comparando a construção desses objetos, notamos que as ações do EI são rechaçadas, violentas e brutais; por sua vez, as da França são cabíveis, precisas e urgentes. Tais construções podem passar sem um questionamento dos leitores, afinal é silenciado que os moradores que não fazem parte do núcleo do EI também vivem nessas regiões e sofrem com esses ataques da mesma maneira que os jovens franceses sofreram. Observamos como esse silenciamen-to (Orlandi, 2013 [2007]) é significativo e argumentativo, pois cria uma teia textual em que o leitor deve acreditar e valorizar as inves-tidas francesas no território dominado pelo EI.

Observemos, a seguir, a anáfora encapsuladora presente no excerto (03):

(03) O fanatismo dos terroristas do Islã crê ter raízes no

seu próprio Profeta.

Como chefe religioso, Maomé foi um guerreiro. Não se

limitou a pregar pela palavra e pelo exemplo, como Cris-

to, seis séculos antes. Nem guiou o povo pelo deserto, em

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meio à fome, como Moisés. Nem teve na piedade o precei-

to fundamental, como o budismo.

Maomé lutou de armas na mão contra os idólatras, teve exér-

citos. Com eles, o islamismo triunfou e se implantou pela força

(não só pelo convencimento) em batalhas, em luta à espada,

decepando cabeças e tendo cabeças decepadas. Agora, 15 sé-

culos depois, o Estado Islâmico copia tudo ipsis litteris. E com a

tecnologia do século 21 filma cenas do século 7º: a espada de-

golando os “infiéis” em nome de Alá. A degola modernizada,

em fila, como linha de montagem industrial.

Essa “teologia do terror” que festeja a morte faz esquecer

até o que as antigas civilizações árabes transmitiram ao

mundo, antes e após Maomé. Os árabes nos legaram, por

exemplo, o “fator zero”, que a Europa desconhecia. A arit-

mética e a matemática deram o maior salto da História:

substituíram-se os números romanos, que eram letras, por

algarismos de 1 a 9, acrescidos do “fator zero”. Só então a

química e a física se desenvolveram como ciência.

A anáfora encapsuladora grifada, “essa ‘teologia do terror’”, realiza-se por meio de uma síntese de uma porção dos dois pará-grafos anteriores, em que se resume a biografia de Maomé, criador do Islã, e cujos preceitos são “copiados” pelo EI, instaurando um rastro de temor mundial. Assim, o enunciador resume o apresenta-do anteriormente e atribui valor axiológico a essas ações. Cumpre evidenciar a expressão “teologia” que marca um estudo sistemático, constante, revelando, assim, que as ações executadas pelo EI não

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são aleatórias, nem eles são lunáticos, pelo contrário. A expressão “teologia do terror” revela que esse grupo estuda, arquiteta seus pla-nos e tem como objetivo a propagação do terror, do medo, aspecto advindo desde as lutas de Maomé para implantar o islamismo.

Apresentamos uma outra anáfora encapsuladora no exem-plo (04):

(04) Nos longos debates que o canal internacional francês,

TV 5 Monde, realizou em Paris nas 48 horas após a cha-

cina, o grande especialista do terror islâmico Gilles Kepel

lembrou um paradoxo: tudo se agigantou a partir de 1980,

quando a CIA treinou e armou Bin Laden e seus grupos na

luta contra a invasão e ocupação soviética no Afeganistão.

Finda a “guerra fria”, no século atual, outro paradoxo: a

complacência e o apoio inicial de países da Otan ao “ca-

lifado” do Estado Islâmico para debilitar as ditaduras de

Kadafi, na Líbia, e Bashar al-Assad, na Síria.

A tragédia maior, porém, talvez seja o choque cultural das

migrações islâmicas, que continuam sem buscar adaptar-se

à França, onde trabalham e vivem, acolhidos como iguais, e

onde nasceram os filhos e netos. Há preconceitos de parte

dos franceses? Claro que sim! A França os recebeu, mas eles

não receberam a França e rejeitam seus valores.

A construção grifada aborda o problema da relação cultu-ral entre os imigrantes e os franceses. Contudo, é válido ressaltar como o objeto foi elaborado. A expressão “a tragédia” poderia ser uma síntese avaliativa do que foi apresentado anteriormente, re-

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lativo ao apoio dado pela Otan ao EI, crendo que esse ajudaria no declínio do regime político na Líbia e na Síria, porém a expressão “a tragédia maior” não encapsula essa estrutura anterior, mas a posterior. Ou seja, o enunciador indica que o apoio da Otan é uma tragédia, mas a tragédia maior é o choque cultural entre imigran-tes e franceses.

Segundo o artigo, os franceses, mesmo tendo um certo preconceito, receberam os refugiados de braços abertos, mas estes, por sua vez, rejeitam seus valores, o que se comprova pelo fato de, por exemplo, as mulheres continuarem usando burca. Novamen-te, é perceptível um caráter etnocêntrico instaurado na construção textual, revelando o quanto a cultura ocidental ainda aparece valo-rizada e considerada superior às outras.

ConclusõesNeste artigo, ao apresentarmos um breve panorama do

que foi defendido na Dissertação submetida ao programa de pós--graduação em Letras Vernáculas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em fevereiro de 2018, tivemos como objetivo avaliar a referenciação e argumentação, observando como tais elementos podem se associar.

Segundo Van Dijk (1996; 1999), Koch e Elias (2016) e Ko-ren (2016), a seleção lexical é um importante fator cooperativo da construção argumentativa, uma vez que o léxico tanto é uma das maneiras observáveis de manifestação ideológica quanto é por meio dele que também avaliamos, julgamos, desqualificamos algo ou alguém. Esses elementos lexicais são instaurados no discurso e podem ser retomados de distintas maneiras, compondo cadeias referenciais. Dessa forma, podemos afirmar que a referenciação é

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uma das estratégias pela qual a argumentação se faz, expondo vi-sões de mundo do enunciador.

Observando o texto analisado, notamos um nítido posicio-namento ostensivo contra as ações do EI, sendo necessário dimi-nuir o seu poder, visto que tem se tornado um inconveniente para as nações ocidentais.

A fim de diminuir a força do grupo, o artigo de opinião va-loriza os ataques às regiões onde o EI atua na Síria, silenciando que esses ataques também matam, ferem ou destroem as casas de diversos habitantes que estão nessas regiões, pois não podem ir para outro lugar. Desse modo, notamos uma polarização frequente nos discursos entre “nós” x “eles”, em que devemos defender os nossos e rechaçar os outros, invalidando e tirando a credibilidade deles. Tal tipo de discurso bloqueia qualquer possibilidade de solu-ção do conflito, pois as ideias defendidas são baseadas em posições inconciliáveis.

Por fim, almejamos, com este breve trabalho, ter trazido à tona como a referenciação é um importante recurso na constru-ção argumentativa, revelando pontos de vista dos enunciadores na construção do seu querer-dizer.

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Estratégias referenciais na construção de artigos de opinião

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Resumo

O presente trabalho, recorte da dissertação de mestrado Referenciação e argumentação em artigos de opinião, baseando-se no concei-to de referenciação (Koch, 2014 [2008]), objetivou analisar como as estra-tégias referenciais (Ciulla e Silva: 2008; Cortez: 2009; Santos: Cavalcante: 2014; Cavalcante et al.: 2017) são importantes elementos constitutivos na elaboração de textos argumentativos, ou seja, aqueles que almejam convencer seu público-alvo de determinada tese. Para a análise, seleciona-mos, como exemplo, um artigo de opinião publicado pelo jornal O Estado de S. Paulo (2015). Avaliamos o artigo, selecionando as anáforas diretas, encapsuladoras e as pistas textuais como elementos centrais para obser-vação, a partir de uma análise qualitativa. Em nossa análise, notamos que as construções referenciais são meios pelos quais os enunciadores explici-tam seus posicionamentos discursivos, mesmo diante da temática exter-na, atribuindo qualificações axiológicas a diferentes objetos, tanto para valorizá-los quanto para depreciá-los, instituindo, muitas vezes, um dis-curso de polarização em que se supervaloriza o Ocidente em detrimento do Oriente Médio. Dessa maneira, avaliando as diferentes escolhas lexi-cais que se realizam no projeto de dizer, constatamos que a referenciação serve como um importante meio para revelar marcas argumentativas.

Palavras-chave: referenciação; argumentação; artigo de opinião.

Abstract

Based on the concept of referencing (Koch, 2014 [2008]), the present work, a cut of the dissertation Referencicação e argumentação em artigos de opinião aims to analyze how the referential strategies (Ciulla e Silva: 2008; Cortez: 2009; Santos; Cavalcante: 2014; Cavalcante et al.: 2017) are constitutive elements important in the elaboration of argumentative texts, that is, those that aim to convince their target audience of a certain thesis. For the analysis, we selected, as an example, an opinion piece published by the newspaper O Estado de S. Paulo (2015). We assessed the

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piece, selecting the direct and encapsulated anaphoras and the textual clues as central elements to be observed, from a qualitative analysis. In our analysis, we noticed that the referring constructions are the means through which the enunciators make explicit their discursive positioning, even facing an external theme, ascribing axiological qualifications to different objects, both for appreciate and depreciate them, often establishing a polarized discourse where the West is overvalued to the detriment of the Middle East. Therefore, assessing the different lexical choices that are made in the project of saying, we proved that referencing is an important way to reveal argumentative features.

Keywords: referencing; argumentation; opinion piece.

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Anáforas encapsuladoras no gênero notícia: uma estratégia argumentativa

Maria Cristina Vieira Bastos*

Neste artigo, apresentamos, sob a perspectiva da referen-

ciação, um estudo acerca do uso de anáforas encapsuladoras (AEs)

ou encapsulamento anafórico, na construção do sentido em notí-

cias que tratam do impeachment da presidente Dilma Roussef. Fa-

remos um recorte da pesquisa realizada no curso de Mestrado em

Língua Portuguesa, que tratou da argumentatividade presente em

notícias.

Com base na concepção sociocognitiva e interacional da lin-

guagem e de acordo com as pesquisas em referenciação de Koch e

Marcuschi (1998), Mondada e Dubois (2003), Koch (2002, 2005),

Cavalcante (2011, 2014) e Santos e Cavalcante (2014), nosso obje-

tivo é analisar como o encapsulamento anafórico pode contribuir

para a argumentatividade no texto com vistas a “orientar” o seu

sentido, e, desse modo, persuadir o leitor a se engajar no projeto de

dizer do enunciador.

A notícia é um dos gêneros textuais de maior circulação na

sociedade, exercendo grande influência sobre a formação da opi-

nião pública, e a mídia eletrônica, atualmente, é uma das maio-

res divulgadoras desses textos. Embora os manuais de jornalismo

classifiquem a notícia como um texto informativo e assegurem

* Mestre em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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Anáforas encapsuladoras no gênero notícia: uma estratégia argumentativa

que o ponto de vista do jornal e de seus colaboradores somente seja apresentado nas seções opinativas, concordamos com Teun Adrianus Van Dijk (1988) que há funções implícitas na notícia, maquiadas pela mídia para promover crenças e valores de grupos dominantes. Assim, pode haver em alguns textos jornalísticos crí-ticas implícitas que induzam a determinados comportamentos ou mesmo propaganda política. A própria seleção de palavras para nomear seres e denominar acontecimentos já explicita um ponto de vista acerca dos fatos, pois o acesso à realidade é mediado pela linguagem, que não é neutra.

Nesse sentido, assumimos com José Luiz Fiorin que comu-nicar é agir sobre o outro, não somente para fazê-lo receber e com-preender mensagens, mas, sobretudo,

fazê-lo aceitar o que é transmitido, crer naquilo que se

diz, fazer aquilo que se propõe, ou seja, comunicar não é

apenas fazer saber, mas principalmente fazer crer e fazer

fazer [...] significa obter adesão, por isso persuadir é con-

seguir levar o outro à adesão do que se diz (2015, 76).

A notícia pode apresentar estratégias persuasivas, tentan-do obter a adesão do leitor à base ideológica do jornal. Torna-se, portanto, fundamental [re]conhecer os processos referenciais, den-tre os quais destacamos o encapsulamento anafórico, para que se faça uma leitura crítica acerca da realidade que nos é apresentada pronta para consumo.

A escolha do gênero textual notícia justifica-se pelo fato de que os textos jornalísticos possibilitam a investigação e a análise do funcionamento dos processos referenciais em situações comu-

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Maria Cristina Vieira Bastos

nicativas, socialmente situadas e públicas. Além disso, os textos

jornalísticos tratam de questões do dia a dia que influenciam dire-

tamente as relações sociais e apresentam aos leitores uma realidade

filtrada, em geral, sob a ideologia da mídia hegemônica.

Para realização desta pesquisa, traçamos uma análise

comparativa entre notícias publicadas pelas mídias digitais dos

jornais O Globo digital e Mídia Ninja, que apresentam posiciona-

mento ideo lógico e público-alvo distintos. Verificamos, então,

como cada enunciador conduziu a argumentatividade em seu tex-

to, por meio da utilização das AEs, ao transmitir as notícias acerca

do impeachment da primeira mulher ex-presidente da República

Federativa do Brasil, Dilma Vana Rousseff.

Na primeira seção deste artigo apresentamos a fundamen-

tação teórica deste trabalho em duas subseções: da referência à

referenciação, em que são enfatizados os aspectos que levaram

o conceito de referência ser substituído por referenciação, e os

objetos do mundo serem considerados objetos de discurso; e as

anáforas encapsuladoras (AEs) e a construção de sentido, apre-

sentando as diferentes denominações e concepções desse proces-

so referencial e seu papel no texto. Na seção seguinte, tecemos

breves considerações sobre o gênero textual notícia. Em seguida,

expomos a metodologia e a análise do corpus. Por fim, apontamos

nossas considerações finais com algumas conclusões e reflexões

acerca da importância de [re]conhecer o encapsulamento anafó-

rico, recurso referencial frequentemente instaurador de avaliação

na notícia, que permite ao leitor desenvolver sua capacidade de

reflexão crítica acerca da realidade que lhe é apresentada e pronta

para consumo.

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Anáforas encapsuladoras no gênero notícia: uma estratégia argumentativa

1. Referenciação e a construção dos sentidos1.1. Da referência à referenciação

A noção de como a língua refere o mundo − a referência − atravessou séculos de discussões nos estudos de filosofia da lingua-gem, na lógica e, ainda hoje, tem ocupado espaço, particularmente, na linguística. Na ciência da linguagem, a busca por explicações en-tre os objetos do mundo e sua relação com a linguagem culminou na existência de duas tendências distintas para o estudo da referência.

Na primeira, acredita-se que haja uma correspondência direta entre as palavras e as coisas no mundo, o qual poderia ser traduzido de forma objetiva. Nessa visão, os referentes são consi-derados objetos do mundo, e a atividade de referi-los é um processo de designação extensional, ou seja, a referência é tratada de forma extramental. Assim, o texto é visto como um produto pronto e aca-bado, cujos conteúdos deverão ser captados, objetivamente, pelos sujeitos. Já na segunda, tem-se uma noção de língua “heterogênea, opaca, histórica, variável e socialmente constituída, não servindo como mero instrumento de espelhamento da realidade” (Koch; Marcuschi: 1998, 172).

Na segunda perspectiva, Mondada e Dubois concebem a lín-gua construída pelos sujeitos “através de práticas discursivas e cog-nitivas social e culturalmente situadas” (2003, 17). Sendo assim, os referentes são depreendidos como objetos de discurso, entidades construídas no interior do discurso, alimentadas e reproduzidas pela atividade discursiva, que atuam no processo de construção e reconstrução de sentido no texto.

Segundo essa tendência, de natureza sociocognitiva e inte-racional, o conceito de referência é substituído por referenciação, por este último homologar o caráter processual, dinâmico da ativi-

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dade discursiva de [re]construção de objetos de discurso no texto – que é visto, agora, essencialmente como o lugar da interação –, onde o sentido é construído de forma negociada entre os sujeitos, que participam ativamente desse processo.

Conforme Mondada e Dubois, a [re]construção de objetos de discurso no texto evidencia o pressuposto de que a linguagem não se restringe a um mero sistema de etiquetagem para se referir às coisas do mundo, mas se constitui uma atividade intersubjetiva em que os sujeitos constroem, em suas práticas discursivas, socio-cognitivas e culturalmente situadas, versões públicas de mundo. Sendo assim, para as autoras,

as categorias e os objetos de discurso pelos quais os sujei-

tos compreendem o mundo não são nem preexistentes,

nem dados, mas se elaboram no curso de suas atividades,

transformando-se a partir de contextos. Neste caso, as

categorias e objetos de discurso são marcadas por uma

instabilidade constitutiva, observável através das ope-

rações cognitivas ancoradas nas práticas, nas atividades

verbais e não verbais, nas negociações dentro da intera-

ção (2003, 17).

Corroborando essa perspectiva, Koch e Marcuschi também assumem uma visão cognitivo-discursiva em relação à referência, considerando que a discursivização do mundo por meio da lingua-gem consiste em um processo de [re]construção do próprio real. Assim, os autores postulam que a referenciação é uma atividade discursiva, que implica uma visão não referencial da língua e da lin-guagem e na instabilidade dos referentes, que são [re]construídos

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Anáforas encapsuladoras no gênero notícia: uma estratégia argumentativa

de forma negociada entre os sujeitos no momento da interação. No entanto, advertem que

isto não significa negar a existência da realidade extra-

-mente, nem estabelecer a subjetividade como parâmetro

do real. Nosso cérebro não opera como um sistema foto-

gráfico do mundo, nem como um sistema de espelhamen-

to, ou seja, nossa maneira de ver e dizer o real não coincide

com o real. Ele reelabora os dados sensoriais para fins de

apreensão e compreensão. E essa reelaboração se dá es-

sencialmente no discurso. Também não se postula uma

reelaboração subjetiva, individual: a reelaboração deve

obedecer a restrições impostas pelas condições culturais,

sociais, históricas e, finalmente, pelas condições de pro-

cessamento decorrentes do uso da língua (1998, 5; grifo

dos autores).

Ou seja, a realidade empírica, para além de uma experiência sensorial especularmente refletida pela linguagem, é uma constru-ção da relação do indivíduo com essa realidade. Neste sentido, a discretização do mundo pela linguagem é um fenômeno discursivo, pois “a realidade é construída, mantida e alterada não somente pela forma como nomeamos o mundo, mas, acima de tudo, pela forma como sociocognitivamente interagimos com ele” (Koch: 2002, 79).

Sob essa perspectiva, a referenciação pode explicar porque a linguagem não espelha a realidade objetivamente, mas a reflete por meio da percepção cultural do falante. Isso quer dizer que a realidade percebida por nós é fabricada por toda uma rede de es-tereótipos culturais, que condicionam a própria percepção e, por

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sua vez, são garantidos e reforçados pela linguagem, de modo que o processo de conhecimento é regulado por interação contínua entre nossas práticas culturais, percepção e linguagem.

Em síntese, a referenciação é concebida como uma ativida-de sociocognitivo-discursiva e interacional, realizada por sujeitos sociais, e os objetos de discurso são construídos e reconstruídos no desenvolvimento dessa atividade. A dinamicidade de constru-ção e reconstrução de referentes pressupõe uma interação entre os sujeitos ativos, que são responsáveis por escolhas significativas para representarem esses referentes de acordo com uma proposta de sentido. Portanto, assumimos com Koch que o processamento do discurso é estratégico, porque os sujeitos sociais, com base no material linguístico disponível, realizam escolhas significativas vi-sando à concretização de um projeto de dizer.

1.2. Anáforas encapsuladoras (AEs) e a construção de sentido

O estudo acerca do fenômeno do encapsulamento anafórico teve início com Gill Francis (2003), que analisou a “atribuição de títulos resumidos a segmentos textuais” e intitulou de “labelling”. Contudo, esse tipo de anáfora apresenta, na literatura específica da área, diferentes denominações, tais como: encapsulamento ana-fórico (Conte: 2003), anáforas conceptuais (Llamas Saíz: 2010), rótulos (Francis: 2003). Neste trabalho, no entanto, seguiremos a classificação de Maria Elizabeth Conte e chamaremos este fenôme-no de encapsulamento anafórico ou AEs.

Em seu trabalho, Francis identificou o uso de expressões nominais, selecionadas pelo enunciador para conectar e organizar o discurso, ou seja, um grupo de expressões envolvidas em proces-

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sos anafóricos encapsuladores, que se manifestam por sintagmas nominais plenos, e as batizou de rótulos. Conforme a autora, uma das contribuições desse tipo de processo referencial é encapsular informações no texto, muitas vezes dispersas, e organizá-lo, po-dendo acrescentar uma avaliação. A autora observou, ainda, que, quando o encapsulador opera de maneira prospectiva, ajuda na pre-visão de informações. Partindo dessas observações, Francis desta-ca as funções de organização, predição e avaliação, além da função metalinguística, que seria a propriedade de alguns encapsuladores se referirem à própria linguagem. A abordagem da autora, entre-tanto, restringiu-se aos sintagmas nominais, e, assim, ficaram de fora de sua classificação de rótulos os pronomes demonstrativos “isso” e “aquilo”. Segundo Cavalcante, a classificação de Francis é revestida por um viés mais lexical que discursivo e, portanto, perde a relevância dentro de uma abordagem que não considera escolhas lexicais apriorísticas, ou seja, não condiz com uma análise discursi-va da referência.

Conte, por seu turno, ao tecer sua análise acerca do fenôme-no, descreve funções semelhantes, mas destaca aspectos diferen-tes, uma vez que enfatiza os aspectos mais discursivos do fenôme-no. Conforme a autora, o encapsulamento anafórico é considerado

um recurso coesivo pelo qual um sintagma nominal fun-

ciona como uma paráfrase resumitiva de uma porção pre-

cedente do texto [...]. Pelo encapsulamento anafórico, um

novo referente discursivo é criado sob a base de uma in-

formação velha; ele se torna o argumento de predicações

posteriores. Como um recurso de integração semântica, os

sintagmas nominais encapsuladores rotulam porções tex-

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tuais precedentes; aparecem como pontos nodais no texto.

Quando o núcleo do sintagma nominal anafórico é axioló-

gico, o encapsulamento anafórico pode ser um poderoso

meio de manipulação do leitor. Finalmente, o encapsula-

mento anafórico pode também resultar na categorização

e na hipostasiação (“hypostasis”) de atos de fala e de fun-

ções argumentativas no discurso (2011, 177).

Conte explica que, para além de o encapsulamento anafóri-co ser uma paráfrase resumitiva de uma porção do texto, pode ser considerado um elemento novo por dois motivos: primeiro, por-que o item lexical (núcleo do encapsulamento) é geralmente novo à medida que não ocorreu no cotexto precedente, e depois porque não se está lidando apenas com a categorização de informação co-textual dada, mas também com hipóstase, ou seja, “o que já está presente no modelo discursivo é ‘objetificado’, ou, em outras pala-vras, torna-se um referente. Na base da informação velha, um novo referente discursivo é criado, e se torna argumento de predicações futuras” (2003, 183).

Assim, o sintagma nominal (SN) ou pronome anafórico permite ao falante/escritor instaurar um novo referente textual no universo discursivo por meio de uma estratégia não correferencial, baseada numa porção cotextual precedente. Esse anafórico intro-duzido no texto torna-se um novo referente discursivo e argumen-to para as próximas predicações. Desse modo, o encapsulamento anafórico é um procedimento de introdução de novos referentes no texto, que contribui para progressão textual.

Conte enfatiza, ainda, que o encapsulamento anafórico tem clara preferência pelo determinante demonstrativo em vez

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do artigo definido. Explica que o pronome demonstrativo, por seu caráter dêitico, apresenta ao leitor um objeto textual novo, ou o põe em foco; funciona também como instrução para o leitor para que descubra o antecedente da expressão anafórica e, conforme a autora, quando o nome é axiológico, o demonstrativo é quase ine-vitável, tendo em vista que há “um tipo de afinidade eletiva” entre eles. Sendo assim, as AEs ou encapsulamento anafórico funcionam como organizadores textuais, como um princípio de integração se-mântica, uma vez que, ao mesmo tempo em que interpretam uma porção textual de forma retrospectiva ou prospectiva, funcionam como ponto de partida para sequência textual seguinte. De acordo com a autora, o encapsulamento anafórico ocorre frequentemente em posição inicial de frase e parágrafo e pode atuar como um prin-cípio argumentativo, que organiza o discurso, e realiza operações avaliativas que direcionam o leitor em função de uma determinada orientação argumentativa.

Em seus estudos acerca desse fenômeno, Koch explica que o encapsulamento anafórico apresenta dois pontos principais: reca-tegoriza segmentos precedentes ou subsequentes do cotexto (ana-fórica ou cataforicamente), sumarizando-os e encapsulando-os sob um determinado rótulo e, ao mesmo tempo, cria um novo referente textual, quando ocorre por meio da nominalização. Este novo re-ferente, por sua vez, poderá constituir um tema específico para os enunciados subsequentes, e é esta a razão por que, frequentemente, aparecem em inícios de parágrafos, embora não seja uma regra. Pode funcionar, quando constituído por um sintagma nominal, também como um rótulo avaliativo, pelo qual o enunciador expõe opiniões, mesmo que de outrem; além disso, por meio dos rótulos avaliativos, pode-se conduzir o olhar do leitor para determinado foco. E esses

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nomes-núcleo exigem uma realização lexical no cotexto, demandan-do do coenunciador uma interpretação não só da expressão em si, como também da informação cotextual. Corroborando o posiciona-mento de Conte, a autora afirma que essas expressões nominais são geralmente introduzidas por um pronome demonstrativo.

Ainda de acordo com Koch, como as AEs fazem remissão a algo apresentado no texto ou sugerido pelo cotexto, possibilitam sua ativação na memória do interlocutor, ou seja, a alocação na me-mória operacional deste; por outro lado, uma vez que operam uma refocalização da informação cotextual, elas têm, ao mesmo tempo, função predicativa. Desse modo, são concebidas como formas hí-bridas, pois são simultaneamente referenciais e predicativas, ou seja, veiculam tanto informação dada ou inferível quanto informa-ção nova.

Cavalcante reserva-lhes o status de tipo peculiar de anáfora indireta, dentro da perspectiva dos processos referenciais atrelados à menção no cotexto, tendo em vista postular que as AEs não são correferenciais, além de fazerem menção a um objeto de discurso novo, ainda não citado no cotexto. Conforme a autora,

toda anáfora encapsuladora é uma espécie de anáfora indi-

reta, por também introduzir e mencionar no cotexto uma

expressão referencial nova, apresentada como se fosse

dada, por resumir conteúdos explicitados (mas também

implicitados) em porções cotextuais anteriores e/ou pos-

teriores (2011, 74).

Entretanto, posteriormente, refletindo sobre uma defini-ção que se aproximasse mais de um continuum referencial do pro-

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cesso de encapsulamento, haja vista as fronteiras cada vez mais tê-nues dos processos referenciais, Santos e Cavalcante consideraram que as AEs deveriam ser concebidas como um meio termo entre a anáfora direta e a indireta e não como um subtipo das anáforas indiretas, conforme proposto inicialmente:

como as AI [anáforas indiretas], as encapsuladoras são in-

ferenciais e, ainda que ancoradas em informações dadas,

introduzem um novo referente, que sintetiza porções de

texto; como as AD [anáforas diretas], porém, parece haver

certo grau de correferencialidade entre a porção de texto

sintetizada e o encapsulador (2014, 227).

Cavalcante, Custódio Filho e Brito, revendo abordagens an-teriores sobre os encapsuladores, argumentam que, mesmo sem ser citado antes da expressão referencial, o referente fica representado na mente dos interlocutores, e isso é um indício de que esse processo pode ser tratado como um subtipo de anáfora correferencial, ainda que seja um pouco fora do padrão de uma anáfora direta. Os autores defendem que, se o referente é entendido como uma entidade repre-sentada sociocognitivamente e abstraída do contexto de enunciação, é viável admitir que, ao ser nomeado, o referente já existia no texto. Para eles, a questão da retomada a um referente já introduzido no discurso e presente na mente dos interlocutores leva à correferen-cialidade, que se sobrepõe às demais características do encapsulador, sendo o fator preponderante para a classificação desse processo.

Por fim, Cavalcante, Custódio Filho e Brito postulam que o fato de as AEs, ao retomarem um referente esparsamente difundi-do no contexto e nomeá- lo em seguida, exercem funções argumen-

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tativas primordiais para o projeto de dizer do enunciador, tendo em vista que “buscam o melhor modo de designar, de sintetizar para-fraseando um ponto de vista (e, consequentemente, rebatendo ou-tros, ditos ou não)” (2014, 80). Sendo assim, ao designar/ nomear um referente por meio de uma AE o ponto de vista do enunciador torna-se explícito no texto.

2. O gênero notíciaA notícia é um dos gêneros textuais aos quais a sociedade

se encontra mais frequentemente exposta, pois é difundida pelos mais variados suportes, como rádio, televisão, portais de internet, revista, celulares, jornal impresso etc. Hernandes a define como uma hierarquização de fatos, também fruto de uma visão de mun-do, dentro de um objetivo de despertar curiosidade, crenças, sensa-ções e ações de consumo do próprio meio de comunicação.

A rigor, na relação entre autor e leitor, ouvinte, telespecta-dor ou internauta, há muito mais do que apenas uma singela tro-ca de informações na transmissão de notícias, pois comunicar, em todas as suas formas, é na verdade uma ação do homem sobre ou-tros homens, criando relações intersubjetivas que geram e mantêm crenças, que se revertem ou não em atos. Desse modo, podemos observar que, em geral, a transmissão de notícias no jornalismo, sobretudo as veiculadas pelas grandes empresas corporativas de comunicação, deixa entrever marcas da manipulação exercida por certos grupos sociais dominantes. Corroboramos, neste trabalho, o posicionamento de Hernandes para quem

no jornalismo, a divulgação de notícias está intimamente

relacionada a mudança ou reforço de crenças que redun-

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dem em atitudes que podem ou não se converter em ações

de diversas amplitudes, desde comprar um jornal a apoiar

determinado candidato a presidente, de ver a peça de tea-

tro comentada ou até mesmo de não fazer nada diante de

alguma forma de injustiça. Para a manipulação dos jornais

funcionar, é necessário, entre outros aspectos, que o pú-

blico partilhe do mesmo sistema de valores do jornal. Na

comunicação, os participantes se constroem e constroem,

juntos, o objeto jornal. O público é, portanto, coautor. Um

autor leva em consideração as expectativas e as prováveis

reações de quem vai receber o texto para construir um dis-

curso com eficiência desejada. Nesse sentido, o “receptor”

também participa da comunicação (2017, 18).

Segundo o autor, o objetivo da notícia não é apenas narrar os fatos, tendo em vista que não segue, necessariamente, uma se-quência cronológica, mas de importância dos acontecimentos. Nil-son Lage (2005), por sua vez, assevera que aproximadamente 80% das notícias que chegam à América Latina passam por um crivo em Nova York. Desta forma, o discurso jornalístico apresenta relativo domínio e seleciona aquilo que será veiculado e ao qual a popula-ção terá acesso. Este cerceamento de informações silencia aconte-cimentos no Brasil e no mundo, que acabam sendo ignorados pela grande massa da população.

Conforme Patrick Charaudeau (2015), a mídia, de modo ge-ral, transforma um acontecimento em notícia interpretada por um jornalista que organiza seu discurso de acordo com o público-alvo do jornal para o qual trabalha. E o discurso corresponde à possibili-dade de se propagar uma crença, legitimando grupos dominantes. Portanto, as notícias para além da informação têm um propósito

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que, consciente ou inconsciente, transmite valores e é investido por uma ideologia.

Para Hernandes, a verdade é construída como um efeito de sentido do discurso jornalístico, sendo a encenação um dos recursos que o jornal utiliza para persuadir seu leitor: uma representação da realidade para seu público que compartilha de uma mesma visão de mundo, ou seja, uma mesma ideologia, que os torna de certa forma cúmplices na maneira de dar sentido à realidade. O autor assevera que, sob o ponto de vista ideológico, é impossível ter acesso à rea-lidade sem determinar valor para alguns aspectos em detrimentos de outros, e os textos jornalísticos criam efeitos de sentido para fazer crer que os seus relatos são a própria expressão da realidade. Sendo assim, ao cumprir as regras de construção de um material jornalístico “objetivo”, como evitar o relato de opiniões, utilizar de-poimentos entre aspas, utilizar a terceira pessoa, fazer crer que as regras de imparcialidade são respeitadas, ouvindo todos os lados, fazer descrições minuciosas dos fatos etc., a mídia cria efeitos de sentido, cuja objetividade

é um dos recursos jornalísticos para se tentar “apagar” o

modo pelo qual a realidade foi filtrada a partir do sistema

de valores do jornal que, como empresa ou parte de um

conglomerado de informação, não quer se revelar como

um ator social atuante interessado nos aspectos sociopolí-

ticos e nas consequências do que noticia (2017, 30).

No que tange à estrutura composicional da notícia, os ele-mentos relativamente estáveis são determinados em parte pela empresa jornalística com a qual se vincula, haja vista que nos am-

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bientes empresariais existe um conjunto de regras para orientar o modo de escrevê-la. Teoricamente, as notícias veiculadas na mídia tendem a ser escritas de um modo impessoal, não podendo o reda-tor deixar marcas de seu estilo pessoal, pois o que deve prevalecer é o estilo da notícia, conforme a concepção do manual de redação da empresa. De acordo com Van Dijk, o gênero notícia apresenta, como estrutura composicional, manchete, lead, episódio (eventos e consequências/reações) e comentários. A função da manchete e do lead (não obrigatório) é resumir o evento para captar a atenção dos leitores para os fatos relevantes que possam ser de seu inte-resse. O resumo do acontecimento principal da notícia, colocado em primeiro plano, permite ao leitor decidir se dá prosseguimento ou não à leitura, e possibilita-o a entender o fato até onde deseja entendê-lo; o episódio relata em mais detalhes o fato noticioso, indicando os eventos ocorridos e quais consequências e reações eles provocaram; os comentários objetivam julgar como os atores sociais envolvidos direta ou indiretamente na situação avaliam o que ocorreu.

Por fim, acreditamos que a notícia pode ser um gênero usa-do como um instrumento de controle social quando, por exemplo, a mídia responsável por transmitir a informação tem credibilidade de seu público-alvo, e dessa forma, sua posição dentro da relação intera-tiva firmada com seus interlocutores pode representar um papel de poder de persuasão e, consequentemente, ser formadora de opinião.

3. Metodologia e análise do corpus3.1. Metodologia

Estabelecemos neste artigo uma análise qualitativa baseada em uma amostra compostas por notícias transmitidas pelas mídias

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digitais dos jornais O Globo digital e Mídia Ninja, que apresentam posicionamento ideológico e público-alvo distintos. Na disserta-ção, selecionamos um total de seis textos para análise, sendo três da Mídia Ninja e três de O Globo digital, em que se abordaram as manifestações contra o impeachment pelo qual passou a primeira mulher presidente da República Federativa do Brasil, Dilma Vana Rousseff, e seus principais desdobramentos. Aqui, no entanto, por questão de espaço, analisaremos apenas duas notícias, que tratam de um mesmo fato por ambas as mídias.

O foco da análise é verificar de que modo cada uma das mídias conduziu a argumentatividade na construção das no-tícias por meio da utilização da estratégia de encapsulamento anafórico. Para isso, identificamos as AEs nos textos, ressaltan-do-as em negrito; fizemos um levantamento das pistas textuais que de alguma forma contribuíram para argumentatividade no texto, colocando-as em itálico; em seguida, analisamos o nome--núcleo e/ou modificadores avaliativos dos encapsulamentos anafóricos, componentes das cadeias referenciais, e os classifi-camos de acordo com as seguintes estratégias de utilização: 1) AEs com nome-núcleo e/ou modificador axiológico (avaliação positiva ou negativa do referente); 2) AEs com nome-núcleo sem valor axiológico ou pronome neutro; 3) AEs com função metafórica. Por fim, tecemos uma análise comparativa da uti-lização do encapsulamento anafórico na construção do sentido em ambas as mídias, examinando como cada enunciador con-duziu o viés argumentativo em seu texto, com a utilização das estratégias supracitadas.

Apesar de analisarmos apenas um par de notícias que tra-tam de um mesmo fato, apresentaremos, no final, o resultado de

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nossa pesquisa, contendo a análise das seis notícias que com-põem nosso corpus. As duas notícias analisadas aqui foram nume-

radas e recebem a letra que identifica o jornal do qual foram extra-

ídas: GO-01 O Globo digital e MN-02 Mídia Ninja.

Ressaltamos que nosso trabalho não tem a pretensão de

apresentar conclusões definitivas quanto à presença de argumen-

tatividade (persuasão) na notícia, para isso deveríamos estabelecer

um corpus mais amplo e com suportes distintos. Pretendemos, ape-

nas, mostrar um panorama do uso estratégico das AEs em notícias,

evidenciando a argumentatividade presente neste gênero, confor-

me o corpus analisado.

3.2. Análise do corpusDe acordo com a metodologia proposta, identificamos as

AEs nos textos, ressaltando-as em negrito; colocamos em itálico as

pistas textuais e analisamos as AEs de acordo com as estratégias

de utilização a seguir: 1) AEs com nome-núcleo e/ou modificador

axiológico (avaliação positiva ou negativa do referente); 2) AEs com

nome-núcleo sem valor axiológico ou pronome neutro; 3) AEs com

função metafórica. Vejamos em (1):

Protestos contra o impeachment

Na capital paulista, houve violência no final; protestos ainda

no PR e na BA. Manifestantes do “Fora, Temer” tomaram

ontem parte da Avenida Paulista, e o fim do protesto voltou

a ter vandalismo de pequenos grupos. Também houve

atos no Rio, em Curitiba e em Salvador.

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SÃO PAULO, RIO E BRASÍLIA – Um dia após o presidente

Michel Temer ter minimizado os atos contra ele, o domin-

go registrou protestos em quatro capitais: São Paulo, Rio,

Curitiba e Salvador. Em São Paulo, a manifestação ocorreu

em clima pacífico, na Avenida Paulista, que teve oito qua-

dras tomadas, mas terminou em violência (GO-01).

Nesta notícia, verificamos, por meio da análise da cadeia referencial formada pelas AEs, que, para além de informar sobre a realização dos protestos ocorridos nas quatro cidades brasilei-ras, o enunciador tece uma avaliação negativa acerca deles. As AEs destacadas, que contribuíram para orientação argumentativa no texto, assim como as pistas textuais, nos ajudam a guiar nossa análise.

Identificamos em (1) que o título da notícia, que, geralmen-te, constitui a informação principal no texto, carrega a primeira designação aos referentes, com a introdução da AE prospectiva “Protestos”. Essa AE introduz um novo objeto de discurso no tex-to, e, simultaneamente encapsula o relato de tudo o que surge na porção de texto subsequente. Observamos, no entanto, que a pri-meira designação aos referentes por meio da AE prospectiva “Pro-testos” não acontece de forma avaliativa, pois o nome-núcleo não é axiológico, classificamo-la, portanto, de acordo com a estratégia de utilização como estratégia 2, embora o subtítulo sinalize uma avaliação negativa que será feita pelo enunciador entre “Protestos e “violência”, no decorrer da notícia. A partir do lead, com a utilização da AE prospectiva “vandalismo de pequenos grupos”, o enuncia-dor insere uma avaliação negativa ao referente, isto é, faz uma pri-meira construção de sentido negativa acerca dos protestos contra

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o impeachment ao utilizar uma AE, com nome-núcleo axiológico (estratégia 1), e imprimir sua “orientação” argumentativa no tex-to. De acordo com Franklin Oliveira Silva (2004), ao escolher uma

estratégia avaliativa para designar o referente, o enunciador mani-

pula a informação, e essa manipulação é preservada com a cadeia

de expressões referenciais, escolhidas com o propósito de manter a

avaliação do fato noticiado.

Durante a progressão textual, o enunciador narra conflitos

entre a tropa de choque da PM e manifestantes dentro da estação

de metrô, descreve minuciosamente os instrumentos bélicos (pis-

tas textuais) usados pelas forças policiais, como granada de mão,

bombas, gás de pimenta etc. Vejamos em (2):

Após o encerramento oficial do ato, no Largo da Batata, a

tropa de choque da PM lançou uma granada de mão contra

um grupo na estação de metrô Faria Lima. Houve pânico e

correria e mais bombas lançadas, inclusive dentro de bares.

Seguranças da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e

do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que

organizaram o ato, contiveram black blocs, que tentaram se

infiltrar. A PM informou que a repressão começou após

um funcionário do metrô denunciar atos de depredação

nas estações, o que foi desmentido pelo metrô (GO-01).

Essa cena é retomada no texto pela utilização da AE “a

repressão”, que introduz um novo objeto de discurso no texto,

encapsulando todo o enunciado precedente. A AE “a repressão”

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Maria Cristina Vieira Bastos

atua como um princípio organizador do discurso, uma vez que

interpreta uma porção textual precedente e funciona como ponto

de partida para sequência textual seguinte, constituindo-se, ain-

da, em um tema específico para os enunciados subsequentes. A

AE “a repressão” é argumentativamente orientada e veicula o po-

sicionamento negativo do enunciador e, portanto, é uma expres-

são referencial marcada axiologicamente (estratégia 1). Durante

a progressão textual, o enunciador informa que a PM justifica “a

repressão”, tendo em vista a denúncia de um funcionário do me-

trô de “atos de depredação” (estratégia 1), ou seja, esta última AE

é utilizada para justificar a primeira e faz remissão à AE “vanda-

lismo de pequenos grupos”, recategorizando-a. No entanto, a in-

formação da PM não é confirmada pelo metrô. Nesse momento da

narrativa, verificamos uma crítica implícita do enunciador quan-

to à ação da PM e a desqualificação do argumento usado por ela

para reprimir os manifestantes com instrumentos bélicos. Como

podemos verificar, por meio da utilização do encapsulamento

anafórico, o enunciador manifesta sua avaliação negativa quanto

à cena narrada.

Verificamos ainda na notícia que, embora o enunciador te-

nha informado no lead que “a manifestação ocorreu em clima pací-

fico, [...] mas terminou em violência”, somente ressaltou os aspec-

tos negativos da manifestação, criando um cenário de guerra entre

manifestantes e a tropa de choque da PM, além de narrar os atos

de “vandalismo” em três das quatro cidades citadas, atribuindo aos

manifestantes a autoria.

Na notícia, por meio da cadeia referencial formada a par-

tir dos encapsulamentos anafóricos e o auxílio das pistas textuais,

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Anáforas encapsuladoras no gênero notícia: uma estratégia argumentativa

verificamos, portanto, o posicionamento negativo do enunciador

quanto aos protestos. Identificamos, também, que a argumen-

tatividade inscrita no processo de encapsulamento anafórico

constitui-se uma estratégia persuasiva que pode conduzir o lei-tor/coenunciador a dadas conclusões de sentido, e, sendo assim, tornar-se um poderoso instrumento de manipulação e formação da opinião pública.

Em (3), de igual modo, destacamos a cadeia referencial for-mada pelas AEs e colocamos em itálico as pistas textuais que contri-buíram para a construção da argumentatividade no texto e guiam a nossa análise. Podemos observar que a “orientação” argumentativa da notícia tem início desde o título, revelando o posicionamento positivo do enunciador, que se manifesta, explicitamente, sobre as manifestações acerca do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. A expressão referencial “Diretas Já”, no título, faz um res-gate na história, associando a manifestação contra o impeachment às manifestações a favor das eleições diretas, ocorridas em 1983 no Brasil, na cidade de São Paulo.

Cem mil em um único coro: Diretas Já!

No diário da história recente do Brasil, o dia 4 de setem-

bro de 2016 fica assinalado por protagonizar o primei-

ro grande ato após o impeachment da presidenta eleita,

Dilma Rousseff, pedindo, entre suas principais pautas, o

Fora Temer, as Diretas Já e nenhum direito a menos. [...] O

ataque à CLT trouxe muitas pessoas que vêm sofrendo

com seus efeitos para as ruas, procurando através disso

melhores condições. Clóvis, 53, está desempregado e diz:

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Maria Cristina Vieira Bastos

“Eu nunca fui contra governo algum, mas o que vem acon-

tecendo não é bom. O governo está priorizando quem é

rico e eu não sou [...]”.

[...] “Nem recatada e nem do lar, a mulherada tá na rua pra

lutar”, o grito que já é presença marcada nos atos contra

o governo golpista e machista carrega consigo a disposi-

ção das mulheres para lutar contra todos os retrocessos

e opressões trazidos pelo golpe, dentre eles a reforma pre-

videnciária e a flexibilização da legislação trabalhista para

atender os interesses da elite cúmplice (MN-02).

A AE “o primeiro grande ato”, que nomeia a manifestação no início do texto, introduz um novo objeto de discurso que resume porções contextuais, isto é, o contexto somado a dados de conheci-mento compartilhado, referindo-se à manifestação como um todo. Ao ser designada no texto como “o primeiro grande ato” contra o impeachment, essa AE, com modificador axiológico (estratégia 1), introduz uma avaliação positiva da manifestação, decisiva para conduzir o viés argumentativo no texto, delineando o projeto de dizer do enunciador.

Adiante, o objeto de discurso “o ataque à CLT” é uma AE que não retoma um referente específico no texto, mas faz remis-são a informações dispersas no contexto discursivo, que podem ser inferíveis, por exemplo, a partir das pistas cotextuais precedentes e subsequentes, colocadas em itálico em (3), tais como: “nenhum direito a menos”, “a reforma previdenciária”, “a flexibilização da legislação”, que são pistas textuais que possibilitam a ativação da memória discursiva do coenunciador, acionando seus conheci-mentos prévios e auxiliando na construção do sentido. Como aler-

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Anáforas encapsuladoras no gênero notícia: uma estratégia argumentativa

tam Santos e Leal (2013), todo o entorno linguístico em um texto também é responsável pela identificação do objeto categorizado,

além de saberes, crenças etc. dos indivíduos envolvidos no ato de

comunicação. Isso nos mostra que a referenciação não se restringe

à utilização de expressões referenciais no cotexto, mas perpassa

pelo processo sociocognitivo de construção de sentido em cada si-

tuação comunicativa.

Essas expressões colocadas em itálico em (3), portanto,

ativam todo um conjunto de conhecimentos linguísticos e es-

tratégias sociocognitivas de que o coenunciador dispõe para ser

capaz de interpretar no texto o sentido da AE “o ataque à CLT”,

como por exemplo: saber que as relações de trabalho da inicia-

tiva privada são regidas pela CLT, conhecer o significado dessa

sigla (Consolidação das Leis do Trabalho), e ativar o conheci-

mento compartilhado para interpretar que uma das propostas

do governo Temer, que assumiu após o afastamento da presi-

dente Dilma Roussef, era implementar a reforma trabalhista

(flexibilização da CLT).

A AE “o ataque à CLT”, além de recategorizar os segmentos

precedentes e subsequentes, sumarizando-os e encapsulando-os,

introduz um novo referente no texto, que, por sua vez, passa a ser

tema específico para enunciados subsequentes. Trata-se de uma AE

com força axiológica, tendo em vista que o nome-núcleo do sintag-

ma nominal contribui para reforçar a argumentatividade no texto

e explicitar o posicionamento do enunciador (estratégia 1) acerca

dos fatos noticiados.

Durante a progressão da narrativa, o enunciador toma de-

poimentos de discurso reportado (direto e indireto) e faz citações

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de trabalhadores aposentados, estudantes secundaristas, desem-

pregados, além de dar voz e visibilidade ao protagonismo feminino

nas manifestações. Assim, apresenta um público sem diferenças

de idade, cor, gênero ou classe social, unidos pelo “desejo incansá-

vel por democracia”. Em (4), observamos as AEs construídas pelo

enunciador por meio do discurso reportado:

O estudante secundarista Ary Terremoto, 18, analisa a

luta secundarista como um motor para as demais mani-

festações que vem se consolidando na resistência:

“Isso aqui é histórico, enxergo muitos partidos que estão

contra o golpe e isso dá esperança, no entanto acho que po-

demos evoluir nas pautas sobre educação”. Assim também

pensa Maíra Pinheiro, 26, que acompanhava o ato: “a resis-

tência dos secundaristas diante da repressão policial tam-

bém foi importante para chegarmos com fôlego para este

sexto ato seguido pelas Diretas Já e o Fora Temer” (MN-02).

A AE “luta secundarista” (estratégia 1) resume porções contex-

tuais, tendo em vista que não há um referente pontual no texto para

que seja retomado, mas informações difusas no texto, recuperáveis por

meio de conhecimento compartilhado, além das pistas textuais colo-

cadas em itálico. Por meio de conhecimento compartilhado, identifica-

mos que essa AE também se refere às ocupações nas escolas feitas pelos

estudantes secundaristas, embora não tenha sido formalmente men-

cionada no cotexto. No que diz respeito à AE pronominal “isso” (estra-

tégia 2), utilizada duas vezes pelo estudante secundarista Ary Terremo-

to em seu depoimento, ela aparece com sentidos diversos. Na primeira

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Anáforas encapsuladoras no gênero notícia: uma estratégia argumentativa

utilização, a AE “isso” faz remissão ao momento histórico, pela pauta e

número expressivo de participantes na manifestação; já na segunda, o

estudante alude ao fato de haver muitos partidos “contra o golpe”, o que

dá esperança às lutas. Ainda dentro do discurso reportado, em (4), a

estudante Maíra constrói a AE “repressão policial” (estratégia 1) que re-

mete ao contexto sociodiscursivo, tendo em vista que se trata, também,

de resgatar a participação dos estudantes secundaristas nas ocupações

das escolas, além de fazer remissão à sexta participação estudantil em

atos pela democracia, conforme observamos nas pistas textuais. Como

podemos notar, durante a tessitura textual, o enunciador vai deixando

as marcas de sua participação explícita no texto.

Por fim, o enunciador, engajado ao conteúdo proposicional

de sua informação, faz uma síntese do movimento contra o im-

peachment em (5), como um observador in loco, por meio das AEs

“o lamentável e também inaceitável desfecho proporcionado pela

Polícia Militar de São Paulo” (estratégia 1) e “o recado dado hoje”

(estratégia 1). Vejamos (5):

Apesar do lamentável e também inaceitável desfe-

cho proporcionado pela Polícia Militar de São Paulo

contra uma manifestação pacífica que reuniu mais de 100

mil pessoas, a luta pelo Fora Temer! Diretas já está só

começando.

O recado dado hoje é de que existe muita disposição

para ocupar as ruas e seguir enfrentando todo e qual-

quer tipo de retrocesso, conservadorismo e fascismo

imposto por esse governo ilegítimo. Golpistas, não pas-

sarão! (MN-02).

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Maria Cristina Vieira Bastos

A primeira AE se refere à repressão sofrida pelos manifes-

tantes e jornalistas em serviço, e a segunda faz remissão à resistên-

cia, retoma porções de texto precedentes e subsequentes fazendo

uma avaliação do movimento e reafirma a continuidade da resis-

tência dos manifestantes, que, conforme o enunciador, estão dis-

postos a lutar contra o conservadorismo e fascismo imposto pelo

“governo ilegítimo” de Michel Temer.

Como podemos observar, o enunciador ao selecionar a ca-

deia referencial formada pelas AEs na construção da argumenta-

tividade do texto, não tem a preocupação de deixar claro seu dis-

curso “parcial e marcado pela paixão” (Amossy: 2017, 7), pois o

próprio jornal reporta a polêmica acerca da manifestação contra o

im peachment e dela toma partido, apresentando-se de forma enga-

jada, como um ator social preocupado com as consequências socio-

políticas do que noticia.

3.3. Análise contrastiva da utilização das AEs na Mídia Ninja (MN) e em O Globo digital (GO)

Seguindo nossa proposta de análise, nessa segunda etapa,

tecemos uma comparação acerca da forma de utilização das AEs

na construção de sentido em ambas as mídias, examinando como

cada enunciador conduziu o viés argumentativo em seu texto. A

análise do Quadro 1 permite-nos identificar as três estratégias de

utilização das AEs no texto. Como alertamos na metodologia, no

Quadro 1 apresentamos o resultado dos seis textos que compuse-

ram o corpus de nossa pesquisa de Mestrado, embora neste artigo

tenhamos analisado apenas dois deles. Vejamos:

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Anáforas encapsuladoras no gênero notícia: uma estratégia argumentativa

Estratégias Exemplos na Mídia NinjaExemplos em

O Globo Digital

1

“o ataque à CLT”

“a repressão policial”

“o golpe de Estado”

“o primeiro grande ato”

“as ações do golpista”

“lamentável e inaceitável

desfecho”

“alegada falta de

fundamentação jurídica”

“proposições importantes”

“uma grande caminhada”

“o grande encontro”

“o avanço do impeachment”

“o avanço do choque”

“os grandes discursos

esperados”

“capacidade de transformação

e força de resistência”

“as novidades do projeto”

“essa conquista”

“o recado dado hoje”

“a luta secundarista”

“a união das duas vozes

femininas”

“Protestos”

“os excessos do

passado”

“vandalismo de

pequenos grupos”

“a repressão”

“a recessão”

“atos de depredação”

“governo de salvação”

“protestos pontuais”

“a maior preocupação”

Número de

ocorrências19 9

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2

“a concentração do ato”

“o trabalho de seu pai”

“isso”

“isso”

“algo”

“esse desfecho”

“essa fase”

“negociações de lado a lado”

“a estratégia”

“agendas políticas dessa

natureza”

“o cenário do palácio do

Planalto”

“um aceno para o

Congresso”

“isso”

“essa movimentação”

“isso”

“isso”

“esse cenário”

“essas instituições”

“isso”

“nesse caminho”

“esse movimento”

“isso”

“isso”

“isso”

“o cenário do palácio

do Planalto”

“um aceno para o

Congresso”

“socorro do governo às

estatais”

“resgate de estatais

pelo governo”

Número de

ocorrências10 18

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Anáforas encapsuladoras no gênero notícia: uma estratégia argumentativa

3

“uma prova de fogo de fogo

definitiva no Congresso”

“o teste fatal”

“a artilharia pesada da

oposição”

“o acalorado debate sobre o

impeachment”

“uma onda de mulheres”

“pente-fino nas

estatais”

Número de

ocorrências5 1

Quadro 1: Estratégias de utilização de AEs analisadas na MN e GO

A partir do Quadro 1, observamos que, embora as três es-tratégias de encapsulamento anafórico tenham sido utilizadas por ambas as mídias, há diferenças significativas nos textos que mere-cem destaque:

I – A frequência de utilização das AEs com valor axioló-gico (estratégia 1) é maior por parte da Mídia Ninja (19 ocorrências no total), em comparação a O Globo digital (9 ocorrências);II – Na análise da cadeia referencial formada pelas AEs em ambas as mídias, verificamos maior utilização de AEs sem valor axiológico (estratégia 2) por parte da mídia O Globo digital (18 ocorrências), em comparação à Mídia Ninja (10 ocorrências). No entanto, embora haja maior utilização de

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AEs sem valor axiológico por parte de O Globo digital, am-bas as mídias contribuem de forma decisiva para constru-ção da argumentatividade no gênero textual notícia, visto que, conforme Lage, até mesmo a suposta neutralidade é produto de uma manipulação.III – Observamos que o encapsulamento anafórico ocorre nas três unidades do texto noticioso: título, lead e episódio. Porém, em ambas as mídias, notamos uma maior frequên-cia de AEs, com valor axiológico, no episódio das notícias; localizamos AEs avaliativas no título das três notícias de O Globo digital, mas não as localizamos nos títulos da Mídia Ninja.IV – A cadeia referencial formada pelas AEs em ambas as mídias difere no que diz respeito à avaliação dos fatos nar-rados. Na Mídia Ninja, observamos que o enunciador tece avaliações positivas referentes à manifestação contra o im-peachment da ex-presidente Dilma Rousseff, por meio das AEs: “o primeiro grande ato”, o “ataque à CLT”, “o lamentá-vel e também inaceitável desfecho proporcionado pela Po-lícia Militar de São Paulo” etc. Já o enunciador em O Globo digital se posiciona contrariamente às manifestações e aos manifestantes por meio das AEs: “vandalismo de pequenos grupos”, “atos de depredação”, “os excessos do passado” etc.V – A frequência na utilização de AEs sem valor axiológi-co por parte da mídia O Globo digital contribui para criar o simulacro de neutralidade no texto, e o enunciador tenta conduzir a orientação argumentativa de forma que a notí-cia pareça “apagar” o seu ponto de vista. Já a Mídia Ninja, ao selecionar as AEs em seu texto, não tem a preocupação

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em criar tal efeito. Pelo contrário, escolhe AEs avaliativas que não tendem a amenizar as marcas de subjetividade na narrativa dos fatos, como em “o ataque à CLT”, “golpe de Es-tado” e “as ações do golpista”, fazendo avaliações negativas contra o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.VI – Observamos também que a Mídia Ninja utiliza mais frequentemente AEs com função metafórica, ocasionando uma concentração semântica, em que uma série de traços que diferenciam os nomes é desprezada e se levam em con-ta apenas alguns traços comuns aos dois significados, o que aumenta a intensidade do sentido (Fiorin: 2015), contri-buindo para avaliação do referente, como em “o teste fatal” e “a artilharia pesada da oposição”.

Considerações finaisNeste artigo, mostramos que as AEs, além de funciona-

rem como pontos nodais no texto, participando de sua organi-zação e progressão, evidenciam a avaliação e persuasão na no-tícia e podem ser um poderoso meio de manipulação, pois, ao serem designadas no texto indicam ao leitor como a extensão do discurso encapsulado deve ser interpretada. Ou seja, lon-ge de serem neutras, as AEs visam a imprimir nos enunciados orientações argumentativas de acordo com o propósito comu-nicativo do enunciador, podendo “orientar” o leitor a determi-nadas conclusões de sentido.

Verificamos que a seleção dos nomes-núcleo, bem como os modificadores dos encapsulamentos anafóricos, determinam o modo como o objeto de discurso é [re]categorizado, e esse procedi-mento é impregnado por impressões e avaliações subjetivas, o que

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explica a imbricação entre referir e argumentar. Constatamos que as AEs axiológicas podem ocorrer em todas as unidades que com-põem a notícia, inclusive no título e subtítulo, apresentando uma orientação argumentativa. Observamos que as cadeias referenciais formadas pelas AEs com valor axiológico, assim como as pistas tex-tuais, analisadas em conjunto, foram cruciais para orientar nossa análise com vistas à construção de sentido na notícia.

Por fim, acreditamos que nossa pesquisa possa contribuir para os estudos em referenciação atrelados aos gêneros textuais da mídia, no que diz respeito ao fortalecimento das práticas de leitu-ra, interpretação e produção textual, sobretudo por apresentarem a língua de maneira situada historicamente, além de tratarem sobre questões que influenciam diretamente nas relações sociais. Afinal, reconhecer a utilização dos processos referenciais na notícia, so-bretudo o encapsulamento anafórico, recurso referencial muito fre-quentemente instaurador de avaliação, é de suma importância para que o coenunciador faça uma leitura que lhe permita observar as intencionalidades, e desenvolver sua capacidade de reflexão crítica acerca da realidade que lhe é apresentada, pronta para consumo.

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Anáforas encapsuladoras no gênero notícia: uma estratégia argumentativa

Resumo

O objetivo deste artigo é analisar como as anáforas encapsulado-ras (AEs) ou encapsulamento anafórico podem contribuir para construção da argumentatividade em notícias, com vistas a “orientar” o seu sentido, persuadindo o leitor a se engajar no projeto de dizer do enunciador. Com base na concepção sociocognitiva e interacional da linguagem e de acordo com as pesquisas em referenciação de Mondada e Dubois (2003), Koch e Marcuschi (1998), Koch (2002, 2004, 2005), Cavalcante (2003, 2011) e Santos e Cavalcante (2014), traçamos uma análise comparativa compos-ta por notícias publicadas pelas mídias digitais dos jornais O Globo digi-tal e Mídia Ninja para investigarmos de que modo cada uma das mídias conduziu seu viés argumentativo na construção das notícias por meio da utilização das AEs. Nossos resultados mostram que a Mídia Ninja utiliza a estratégia de encapsulamento anafórico com valor axiológico mais fre-quentemente, estabelecendo maior argumentatividade e posicionamento explícito do enunciador acerca dos fatos noticiados. Já em O Globo digital, verificamos maior utilização de AEs sem valor axiológico, embora também haja o uso de AEs com valor axiológico por parte dessa mídia.Palavras-chave: referenciação; anáforas encapsuladoras; argu-mentatividade; notícias.

Abstract

The aim of this article is to analyze how encapsulating anaphora (AEs) or anaphoric encapsulation can contribute to the construction of argumentativeness in news, with a view to “orienting” its meaning, persuading the reader to engage in project of the enunciator saying. Based on the sociocognitive and interactional conception of language and according to the researches in reference of Mondada and Dubois (2003), Koch and Marcuschi (1998), Koch (2002, 2004, 2005), Cavalcante (2003, 2011) and Santos and Cavalcante (2014), we draw a comparative analysis of news published by the digital media of the newspapers O Globo digital

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and Mídia Ninja to investigate how each of the media led its argumentative bias in the construction of the news through the use of AEs. Our results show that Mídia Ninja uses the anaphoric encapsulation strategy, with axiological value, more often, establishing greater argumentativeness and explicit positioning of the enunciator about the facts reported. On the other hand, on O Globo digital, we verified greater use of AEs without axiological value, although there is also the use of AEs with axiological value by this media.Keywords: reference; encapsulating anaphora; argumentativity; news.

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O percurso da indeterminação em peças brasileiras e portuguesas: uma análise comparativa

Marianna Maroja Confalonieri Cardoso*

A escrita deste trabalho surgiu a partir da dissertação de mes-trado de Amanda Santana Vargas (2010), que analisou peças de teatro cariocas escritas ao longo dos dois últimos séculos e encontrou uma variedade muito maior de estratégias do que as citadas pelas gramáti-cas tradicionais para a indeterminação. Além disso, os índices de pre-enchimento do sujeito observados em sua amostra apresentam um resultado bem próximo daquele que Maria Eugênia Duarte (1995) en-controu para a fala carioca em amostra gravada em 1992, justamente o ano das peças mais recentes na amostra de Vargas.

Nosso principal objetivo é, portanto, fazer uma análise das estratégias de indeterminação do agente1 com base em peças de tea-tro portuguesas escritas ao longo dos séculos XIX e XX, e então con-frontar esses resultados com os encontrados em dados do português brasileiro (PB). A fim de estabelecer uma comparação entre as varie-dades brasileira e europeia do português, utilizamos uma amostra2 semelhante à de Vargas, tanto na periodização quanto no estilo.

* Mestre em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

1 A escolha da nomenclatura se justifica por nosso interesse recair sobre a indeterminação do agente independente de seu estatuto sintático, uma vez que consideramos entre as estratégias também as construções com “se”, seja ele índice de indeterminação do sujeito ou partícula apassivadora.

2 As tabelas com as peças utilizadas para constituir as amostras portuguesa e brasileira (Vargas: 2010) encontram-se ao final do texto, como anexos, imediatamente antes das referências.

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A hipótese principal que orienta o trabalho é a de que as es-tratégias encontradas nas peças portuguesas serão principalmente aquelas que a tradição gramatical descreve, além de outras estraté-gias pronominais não mencionadas, como o uso do verbo da 1ª pes-soa do plural (incluindo necessariamente o falante), que poderão aparecer em índices mais reduzidos. Acreditamos que os pronomes de 1ª e de 3ª pessoas do plural sejam predominantemente nulos no português europeu (PE), ao contrário do que ocorre no PB.

Nosso referencial teórico utiliza o modelo de estudo da mu-dança proposto por Weinreich, Labov e Herzog (2006) e o quadro de Princípios e Parâmetros (Chomsky: 1981), interessando-nos es-pecialmente o Parâmetro do Sujeito Nulo (PSN). Utilizamos ainda a proposta de Marins, Soares da Silva e Duarte (2017), que mostram que as estratégias de indeterminação não estão em competição, mas se distribuem em três diferentes pontos de uma escala de acordo com o conjunto de traços que compartilham, como mostraremos a seguir.

O texto compreende quatro partes: na primeira, são apre-sentados os pontos de partida, sendo revista a indeterminação em gramáticas tradicionais e recentes. Na segunda, trazemos bre-vemente nossos pressupostos teóricos, além de apresentarmos a proposta de Marins, Soares da Silva e Duarte. A parte seguinte ex-põe nossa análise, apresentando nossos resultados, sempre acom-panhados de um cotejo com os de Vargas. Concluímos o trabalho apresentando algumas breves considerações e comentários sobre os resultados aos quais a análise nos permitiu chegar.

1. Pontos de partidaQuando observamos as definições apresentadas pelas Gra-

máticas Tradicionais (GT) acerca do sujeito indeterminado, encon-

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tramos geralmente uma definição bastante similar: “sujeito inde-terminado é o que não se nomeia ou por não se querer ou por não se saber fazê-lo” (Bechara: 1987, 200). Esse conceito, entretanto, nos parece um tanto equivocado uma vez que, além de valorizar o aspecto semântico em detrimento do sintático, simplifica o fe-nômeno, que, por não especificar um agente, pode ser usado para causar diversos efeitos.

Sobre as formas de veicular a indeterminação no PB, en-contramos apenas duas possibilidades descritas pelas gramáticas tradicionais: (a) o emprego do verbo na 3ª pessoa do plural sem um pronome expresso e (b) o uso do clítico se (chamado pelos autores de “índice de indeterminação do sujeito”) com verbos transitivos indiretos, verbos intransitivos ou verbos transitivos tomados in-transitivamente na 3ª pessoa do singular, respectivamente:

(1)

a. Reputavam-no o maior comilão da cidade.

b. Precisa-se do carvalho; não se precisa do caniço.

c. Ainda se vivia num mundo de incertezas.

d. Comia-se com a boca, com os olhos, com o nariz.

(Cunha e Cintra: 2008, 142-3)

Gramáticas recentes, elaboradas com base numa teoria lin-guística, também mencionam para o PE, além das formas já men-cionadas, a 2ª pessoa do singular em sentenças com interpretação genérica, sempre com os pronomes sem realização fonética, uma vez que “não existe um pronome tônico para exprimir o sujeito com interpretação arbitrária, denominado indeterminado na tradição gramatical luso-brasileira” (Duarte: 2003, 283):

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(2)

Ø Ajudas sempre os amigos e apesar disso eles criticam-te.

(Duarte: 2003, 283)

Ainda encontramos, em outra gramática portuguesa con-

temporânea (Lobo: 2013, 2315-6), a seguinte definição para os

sujeitos indeterminados: “designam entidades não específicas, in-

determinadas, e podem ter um caráter genérico ou simplesmente

indefinido, de natureza existencial”, que pode ter valor de “as pes-

soas”, “alguém”, além da nomenclatura “sujeitos arbitrários”, rótu-

lo mais utilizado pela linguística atual.

Maria Lobo, assim como outros gramáticos, também afir-

ma que os sujeitos de referência arbitrária têm obrigatoriamente

de ser nulos. As exceções apontadas por ela são a 2ª pessoa do sin-

gular (tu) e a 1ª pessoa do plural (nós), que podem incluir o falante

e o ouvinte e que poderiam ser usadas em suas formas nula ou

plena, preservando a interpretação de referência arbitrária, como

ilustrado a seguir:

(3)

a. Quando (tu)i não dormes, não Øi consegues pensar

racionalmente.

b. Quando (nós)i não dormimos o suficiente, Øi ficamos

irritados.

(Lobo: 2013, 2316)

Ainda segundo Lobo, um pronome clítico com referência ar-

bitrária exige igualmente um sujeito não realizado foneticamente:

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(4)

a. Ø Vive-se num mundo de incertezas.

b.* A gentei vive-sei num mundo de incertezas.

c. A gente vive num mundo de incertezas.

(Lobo: 2013, 2316)

Em nota, a autora distingue as sentenças, caracterizando (4a) como “português-padrão” e (4b) – parafraseada em (4c) – como “variedades dialetais”, que faria referência à fala de indivíduos com baixo nível de escolaridade ou analfabetos. O que nos interessa, en-tretanto, é o fato de Lobo confirmar o uso da 2ª pessoa do singular, já mencionada por Duarte, e incluir não só a 1ª pessoa do plural, como também o pronome derivado da expressão nominal a gente, que apa-rece em (4c), como uma outra forma de indeterminação no PE.

2. Fundamentação teórica2.1. A associação das teorias “irreconciliáveis”

Para estudar um determinado fenômeno linguístico, é in-dispensável uma teoria linguística que sustente o levantamento de hipóteses e a interpretação dos resultados. Para isso, utilizare-mos o quadro de Princípios e Parâmetros (Chomsky: 1981), inte-ressando-nos especialmente o Parâmetro do Sujeito Nulo (PSN). É importante salientar que a marcação dos parâmetros como positivos ou negativos, isto é, uma marcação binária, foi feita a partir da com-paração entre o inglês e as línguas românicas de sujeito nulo, como o italiano e o espanhol. Em consequência dos constantes avanços e reformulações da teoria e, mais especificamente, do PSN, Roberts e Holmberg (2010) distribuem as línguas em quatro tipos no que diz respeito a esse parâmetro: línguas de sujeito nulo consistente, entre as quais se encontram o italiano, o grego, o turco e o PE; línguas de

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sujeito nulo radical, como o chinês e o japonês; línguas de sujeito nulo expletivo, como o alemão; e línguas de sujeito nulo parcial, que incluiriam o finlandês, o hebraico, o russo, o islandês e o PB.

Aliado a esta teoria, lançaremos mão do modelo de estudo da mudança proposto por Weinreich, Labov e Herzog (2006) que será importante uma vez que partiremos de dados – focalizando aqui os problemas da transição, esta de forma sempre contínua, nunca dis-creta e por um caminho dependente de prestígio, pressão estrutural e/ou utilidade funcional, e do encaixamento linguístico, que busca observar o que origina uma mudança e quais efeitos ela desenca-deia no sistema linguístico, como se a língua fosse se modificando num “efeito dominó”. Os autores afirmam que nenhuma mudança no sistema acontece sozinha, sem que tenha sido de alguma forma impulsionada por uma mudança prévia e assim sucessivamente.

Se em princípio as duas teorias pareciam incompatíveis, vis-to que uma está focada na chamada Língua-I e a outra, na Língua-E, atualmente vários estudos já se beneficiam da conjugação dessas duas teorias que, em nossa concepção, não se apresentam como opostas, mas como complementares. Assim, partiremos de análi-ses empíricas, próprias da sociolinguística, para sermos capazes de estabelecer sistematizações teóricas, para as quais precisaremos do componente gramatical que só seria possível numa associação com uma teoria linguística.

2.2 Revendo o conjunto de estratégias de indeterminaçãoA linguística moderna iniciou uma distinção entre as estra-

tégias de indeterminação, normalmente analisadas em conjunto, separando-as segundo sua referência “arbitrária” ou “genérica” (Egerland: 2003; Holmberg: 2010, entre outros). Esse recorte se

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justifica por um motivo simples: embora todas as estratégias digam respeito a um sujeito cuja referência não está definida no contexto discursivo, elas não são intercambiáveis, uma vez que não abran-gem referentes idênticos e, portanto, não podem ser interpretadas como formas em variação.

Por esse motivo, neste trabalho apresentaremos uma distri-buição das estratégias variantes num espectro de indeterminação, proposto por Marins, Soares da Silva e Duarte (2017), proporcio-nando uma análise mais clara sobre quais são as estratégias que se encontram realmente em variação.

Os autores sugerem que as estratégias podem ser distribuí-das em três grupos – nos quais acontece, de fato, competição entre as formas – segundo o conjunto de traços que elas compartilham. Em um extremo dessa escala, estão as estratégias de referência ar-bitrária, isto é, as formas que se referem a um conjunto finito de entidades ou mesmo a um indivíduo que não pode ser individua-lizado pelo discurso, representadas pela 3ª pessoa do plural, com uma variação entre o pronome (eles) nulo ou expresso, pelo clítico searb, ou por um zero sem qualquer marca, correspondendo, segun-do os autores, ao feixe de traços [+3ª pessoa/+ plural]:

(5)

a. Uma vez Øarb me definiram Austrália como a Inglaterra

de bermudas.

b. Então, (...) Øarb criou-se em 1920 ou 21, a Universidade

do Brasil.

c. Quando você termina o ciclo básico você faz outro

vestibular. Mas não é um vestibular, né? Øarb vai pelo CR,

Øarb classifica pelo CR.

(apud Marins, Soares da Silva e Duarte: 2017, 151-2)

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Observando os exemplos, sabemos que alguém descreveu a Austrália da maneira, assim como houve uma pessoa ou instituição que criou a Universidade do Brasil, e, no último caso, outra institui-ção utiliza o CR para selecionar os alunos. Entretanto não há nada no texto ou no discurso que determine esses sujeitos. Apesar disso, é possível estabelecer um limite para seu escopo.

No outro extremo da escala estaria a categoria [+3ª pessoa/ +singular], na qual estariam em competição o clítico segen, a estratégia zero (com o verbo na 3ª pessoa do singular, referida na literatura igual-mente como nulo genérico) e o você, preferencialmente pleno, podendo incluir ou não o falante e o ouvinte. Tais estratégias têm referência ge-nérica, ou seja, se referem a um conjunto infinito de entidades:

(6)

a. Mas agora Øgen não se tem mais inverno. Você vê que

hoje já estamos no inverno e tá um calor...

b. E tinha sorveteira que batia em casa. Tinha uma hélice

assim (...). Øgen Fazia sorvete em casa.

c. Lá na América também eu cozinhava porque... lá vocêi

encontrava tudo pronto ou semi-pronto. Vocêi punha as

coisas no forno e aquilo ia aparecendo a comida.

(apud Marins, Soares da Silva e Duarte: 2017, 153)

No primeiro exemplo, quem não tem mais inverno é qual-quer carioca ou pessoa que more no Rio, assim como em (b) trata-se de qualquer pessoa que fazia sorvete em casa e, na última sentença, a todas as pessoas que cozinhavam comida semipronta nos EUA.

Por fim, os autores propõem ainda um ponto intermediário nesse espectro também de referência genérica, onde estariam loca-lizadas duas estratégias em competição que compõem a categoria

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[+1ª pessoa/+plural], representada pelos pronomes nós e a gente, este com considerável vantagem sobre aquele no PB:

(7)

a. O que eles vão fazer depois é outra história, né? Brizola

tá fazendo coisa pra caramba, a gente tá vendo que ele

tá fazendo.

b. (...) o Rio de Janeiro é uma cidade violenta, todo mundo

diz. Nós ficamos nos enganando, dizendo: Ah, Nova York

tem também violência (...)

(apud Marins, Soares da Silva e Duarte: 2017, 154)

Os sujeitos de “ver” e “ficar” também não podem ser identificados pelo discurso e se referem a um grupo infinito de entidades. A diferença desta para a outra categoria de referência genérica reside no fato de que esta apresenta um certo grau de especificidade, uma vez que é possível afirmar que o falante está incluído no grupo.

A distribuição proposta por Marins, Soares da Silva e Duar-te (2017) encontra um correspondente perfeito em um recente tra-balho de Holmberg e Phimsawat (2017), que propõem, em vez de traços de pessoa e número, a seguinte tipologia: estratégias exclusi-vas (excluem o falante), semi-inclusivas (incluem necessariamente o falante) e inclusivas (podem ou não incluir falante e interlocutor), que passaremos a usar ao lado das referidas acima.

3. Resultados para as sentenças finitas no PE e no PB3. 1. A categoria [+3ª pessoa/+plural] (estratégias “exclusivas”)

A primeira categoria, [+3ª pessoa/+plural], que inclui for-mas que excluem falante e ouvinte, constitui a das estratégias de

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referência arbitrária, e é representada pela 3ª pessoa do plural, com pronome nulo ou expresso, e pelo clítico searb:

(8)

a. Ø Dizem que a Humanidade se divide em duas catego-

rias, os que gostam de ver e os que gostam de fazer, pois

este rapaz é dos que gostam de ver.

(Um filho, Luísa Costa Gomes, 1996)

b. E de mais quando Øarb se souber que você resistiu a

mim e cedeu às ameaças da Luísa Maria, o que Øarb se dirá

a meu respeito por essa freguesia toda?

(A liberdade eleitoral, Teixeira de Vasconcelos, 1870)

A competição entre essas estratégias no PE pode ser obser-vada no gráfico 1 a seguir:

Gráfico 1: Categoria [+3ª pessoa/+plural] no PE ao longo de sete períodos

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Se no período um as estratégias apresentam praticamente o mesmo percentual, da quarta sincronia em diante vemos que o clítico apresenta uma constante queda, enquanto a 3ª pessoa sobe progressivamente chegando ao índice de 85% no último período analisado. A 3ª pessoa do plural seria, então, o competidor mais forte para este ponto da escala, o que se alinha com os resulta-dos encontrados para o PB por Marins, Soares da Silva e Duarte (2017) em sua análise com os dados de Duarte (1995). Não pode-mos perder de vista, no entanto, o fato de que no PE o que temos é um sujeito nulo e, no PB, uma competição entre pronomes nulos e expressos.

Agora vejamos a evolução das estratégias que veiculam a referência arbitrária no PB no gráfico 2:

Gráfico 2: Categoria [+3ª pessoa/+plural] no PB ao longo de sete períodos3

3 Agradeço a Amanda Vargas por ter me cedido seu arquivo de dados para que eu pudesse refinar a análise de seus dados segundo a proposta de graus de indeterminação adotada neste trabalho.

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Diferente da competição acirrada que vimos no PE, no PB a

3ª pessoa sempre se mostrou a estratégia preferida para a expres-

são dessa categoria. Observamos no gráfico uma gradativa queda

dos clíticos – forma que já caiu em desuso nessa variedade – até a

última sincronia, em que não foram encontrados dados, podendo

indicar que a 3ª pessoa do plural foi, enfim, a forma vencedora da

disputa, o que justificaria sua permanência em índices expressivos

em todos os períodos.

3.2 A categoria [+3ª pessoa/+singular] (estratégias “inclusivas”)

No outro extremo, representando a categoria [+3ª

pessoa/+singular], que pode incluir ou não o falante e o ouvinte,

encontramos no PE apenas o segen, uma vez que nossa amostra

não conta com ocorrências de estratégias como tu e você. Isso, no

entanto, não significa que elas não estejam presentes na fala lu-

sitana: Duarte (2000) encontra em amostra portuguesa dos anos

1970 baixos índices de você. O uso do clítico apresenta ainda uma

peculiaridade: a forma pode veicular tanto a referência arbitrária,

como vimos na última subseção, quanto a genérica, e, portanto, se

encaixa em dois pontos do continuum.

Apesar de se tratar do mesmo item lexical, é fácil perceber

que não se trata do mesmo tipo de referência, conforme vemos nos

exemplos a seguir, em que (10a) ilustra a estratégia com interpre-

tação arbitrária e (10b), a genérica. Na primeira sentença, o sujeito

de “representar” não pode ser de forma alguma interpretado como

o próprio falante, já na segunda o sujeito de “ver” pode incluir qual-

quer pessoa, inclusive o falante.

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(10)

a. Faça favor de estar quieto. Eu admiro-o. Quando Øarb

se representou aquela sua peça – O destino – disse logo

comigo: que talento!

(O doido e a morte, Raul Brandão, 1923)

b. O quê, não me dizes? Os engolidores de fogo, as dança-

rinas persas? Isso é o que Øgen se vê em qualquer palácio

de nobre muçulmano.

(Viagem a Damasco, Norberto Ávila: 1980)

Tabela 1: Distribuição das estratégias com searb e segen no PE

Período Se arbitrário Se genérico TOTAL

Período 1(1821 - 1852)

35(44%)

44(56%)

79(100%)

Período 2(1870 - 1898)

40(42%)

56(58%)

96(100%)

Período 3(1904 - 1924)

15(28%)

39(72%)

54(100%)

Período 4(1931 - 1944)

16(23%)

54(77%)

70(100%)

Período 5(1954 - 1957)

13(12%)

93(88%)

106(100%)

Período 6(1962 - 1986)

18(21%)

68(79%)

86(100%)

Período 7(1995 - 1996)

6(11%)

51(89%)

57(100%)

TOTAL 143 405 548

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Olhando para a distribuição do clítico na tabela, o que se vê é que nos dois primeiros períodos, searb e segen apresentam percentuais semelhantes. Nos períodos subsequentes, no entanto, os percen-tuais do primeiro vão caindo, enquanto os de genérico sobem, o que é fruto da possível eliminação dos dublês. Ou seja, o sistema conta-va com a 3ª pessoa do plural e o searb para representar arbitrariedade, porém precisa eliminar uma dessas formas. O clítico segen, por outro lado, única estratégia atestada na amostra do PE para a possível – mas não necessária – inclusão do falante, mantém-se estável.

Vejamos agora a distribuição das estratégias desta catego-ria no PB, que inclui também o você e o zero, ou seja, o verbo na terceira pessoa sem menção a nenhum referente:

Gráfico 3: Categoria [+3ª pessoa/+singular] no PB ao longo de sete períodos

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Na amostra das peças brasileiras, o segen é a única estratégia utilizada até os dois últimos períodos, momento em que surgem outras duas: o você e o zero. Embora só tenha sido atestado a partir de 1975, o primeiro figura, desde seu aparecimento, como a estra-tégia favorita para veicular esse tipo de referência, o que se man-tém na última sincronia analisada.

Por fim, a estratégia zero, ou seja, a forma verbal na 3ª pessoa do singular sem referência a pronome nenhum, surge na amostra apenas nos anos 1990, com percentual ínfimo de 1%, que corresponde a apenas um dado.

(11)

a. Me disseram que tem um, em Botafogo, que faz, mas

custa uma nota preta. E esse chá, se vocêi toma bem

quente e depois Øi anda de montanha russa, é batata!

Pior, minha filha, é fazer com talo de mamona! E tem mui-

tas que fazem!

(No coração do Brasil, Miguel Falabella, 1992)

b. Me prometeram um lugar de atendente de dentista em

Olaria. Ø Tem que aprender a mexer com aqueles ferri-

nhos, mas o salário parece que compensa.

(No coração do Brasil, Miguel Falabella, 1992)

3.3. A categoria [+1ª pessoa/+plural] (estratégias semi-inclusivas)

Por fim, na categoria [+1ª pessoa/+plural] temos as estratégias que incluem necessariamente o falante, representadas pela 1ª pessoa do plural e o pronome a gente, ambas mencionadas nas descrições de Lobo (2013). Conforme esperado, não há muitos dados dessas estratégias.

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Não podemos negar que a 1ª pessoa se apresenta como uma estratégia mais marginal, apesar de estar presente em todas as sete sincronias observadas. Este pode ser o motivo pelo qual ela não é citada pelas gramáticas tradicionais brasileiras como uma das for-mas de indeterminação, com índices tão baixos, ela passa desperce-bida. Podemos pensar, ainda, que o fato de incluir necessariamente o falante seja responsável pela sua exclusão das descrições.

No PE, a 1ª pessoa do plural supera o pronome a gente, exceto no período 5. O período em questão, no entanto, conta com apenas um autor analisado, Luiz Francisco Rebello, que se utiliza da forma diversas vezes. Trata-se de uma preferência individual do autor, que tem peças analisadas nos períodos 4, 5 e 6, porém só neste momento apresenta esse contexto de categoria [+1ª pessoa/+plural], em que opta nove vezes pela 1ª pessoa e 21 pela forma inovadora a gente.

É preciso mencionar que, no PE, a forma “a gente”, embora seja utilizada como pronome desde o século XVIII (cf. Lopes, 1999), parece não estar plenamente gramaticalizada. Basta ver o exemplo a seguir, em que o SN “a gente” aparece precedido de um quantificador, modifi-cado por uma relativa, tomado como sinônimo de “as pessoas”:

(12)

Não fiques assim! Temos que partir do princípio de que

não era uma amiga tua! Não se pode esperar que tu te lem-

bres de [toda a gente que viste] ou conheceste desde o

princípio dos tempos!

(Um filho, Luísa Costa Gomes, 1996)

Achamos relevante, entretanto, deixar claro que, muito em-bora não ignoremos que a referida estratégia ainda guarda muito de sua origem nominal na variedade portuguesa, todos os dados

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por nós coletados pareceram, naturalmente, casos claros de inde-terminação, como o dado a seguir, que exibe no mesmo período o intercâmbio da estratégia com a 1ª pessoa mantendo o mesmo referente, também com interpretação genérica, forma com a qual compete num dado ponto do gradiente, apesar de apresentar o ad-jetivo no feminino junto ao pronome, o que ilustra a relação que ainda há com a forma nominal. Constatamos, no entanto, que mes-mo personagens masculinos fazem, por vezes, essa concordância, o que demonstraria tratar-se de um pronome. A concordância, por-tanto, não significa que se trate da fala de uma falante feminina.

(13)

Não sei... Mas nem sempre a gentei é culpada das coisas

que... Øi faz... Às vezes Øi queremos ser duma maneira, e

a vida não deixa, obriga-nos a ser doutra...

(É urgente o amor, Luiz Francisco Rebello, 1957)

Gráfico 4: Categoria [+1ª pessoa/+plural] no PE ao longo de sete períodos

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(14)

a. Não diga mal dos doidos. Todos os homens que fizeram

alguma coisa no mundo eram doidos. Øgen i Devemos-lhes

a vida artificial. Na realidade Øgen i devemos-lhes tudo. Se

não fossem eles ainda hoje Øgen i seríamos bichos.

(O doido e a morte, Raul Brandão, 1923)

b. Olhe, Sr. Joaquim. Eu não queria votar em nenhum.

A minha canseira é a lavoira; não são os votos. Mas elas

armam-se onde a gente menos cuida.

(A liberdade eleitoral, Teixeira de Vasconcelos, 1870)

Já no PB os resultados para a categoria [+1ª pessoa/+plural] apresentam as estratégias com os mesmos índices no período 1 e, desta sincronia em diante, a clara preferência pela forma inovado-ra, que chega quase à totalidade das ocorrências no período mais atual, o que confirma o que foi encontrado por Marins, Soares da Silva e Duarte (2017) para o PB oral.

Gráfico 5: Categoria [+1ª pessoa/+plural] no PB ao longo de sete períodos

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Ao observar os dados de Vargas (2010) numa análise geral, tem-se uma confirmação de que a descrição apresentada até hoje nas gramáticas brasileiras de fato corresponde ao uso até os anos 1930. A partir de então, a escrita das peças já incorpora traços da fala brasileira. Se em gramáticas normativas já há, em geral, certa distância em relação ao uso, dado seu caráter conservador, no caso da brasileira esta distância é um verdadeiro abismo.

3.4 O uso do clítico se no PE e no PBO gráfico 6 representa as linhas encontradas para o uso de

se (genérico e arbitrário, considerados em conjunto), para efeito de comparação do uso do clítico no PE e no PB (Vargas, 2010):

Gráfico 6: Uso do clítico se no PE e PB ao longo de sete períodos

Ao compararmos PE e PB quanto ao uso do clítico se, fica claro que estamos diante de variedades distintas. Enquanto no PE se observa uma estabilidade e preferência em relação à estratégia ao longo dos sete períodos, apresentando índice de 48% – quase

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metade das ocorrências –, observamos no PB, por outro lado, uma vertiginosa linha decrescente a partir dos anos 1950, em que os autores brasileiros deixam de mimetizar a norma lusitana, o que in-dica que a forma claramente caiu em desuso. Esses resultados con-firmam o que foi atestado para o acusativo por Marques de Sousa (2017) e para o dativo por Fernandes (2018), ambos com base na mesma amostra.

3.5 O preenchimento do sujeito em estruturas indeterminadas no PE e PB

Ilustramos a seguir, com dados de Vargas (2010), as quatro estratégias pronominais com sujeitos expressos:

(15)

a. Já! Eu ouvi no rádio que eles estavam decretando.

Que horror! E esse rapaz por aí. Tenho medo que lhe acon-

teça alguma coisa.

(Um elefante no caos, Millôr Fernandes, 1955)

b. Pronto, chegou o outro estudante Um pouco mais e nós vamos ter um curso de verão aqui.

(No coração do Brasil, Miguel Falabella, 1992)

c. Por essas e outras é que a gente perde a paciência.

(Onde canta o sabiá, Gastão Tojeiro, 1920)

d. Minha mãe é muito esquisita. Ela sempre pensa, antes

de falar. Aí quando ela fala, se vocêi for rápido, vocêi já

adivinhou e Øi mandou ela ir à merda.

(Como encher um biquíni selvagem, Miguel Falabella, 1992)

(apud Vargas: 2010, 69-71)

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O percurso da indeterminação em peças brasileiras e portuguesas: uma análise comparativa

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O gráfico 7 compara os resultados para pronomes nulos (versus expressos) com os da autora para as peças de teatro do PB:

Gráfico 7: Formas pronominais nulas (versus expressas) no PE e no PB

Como é possível observar, o PB apresenta uma constan-te queda ao longo dos sete períodos analisados, iniciando com 97%, um alto índice de nulos, o que corresponde a uma gramá-tica mais conservadora, inspirada nos moldes europeus, como vimos. É a partir do período 5 na amostra do PB, por volta dos anos 1950, que se observa o início de uma curva de aumento consistente em favor da representação plena dos pronomes. À medida que a variedade vai se estabelecendo como uma língua com suas próprias características, seus índices de nulos indeter-minados vão diminuindo, até que, ao final do último período, chegam a apenas 42%, menos da metade das ocorrências – uma

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mudança encaixada no sistema linguístico, de acordo com nos-so referencial teórico.

O PE, por outro lado, se mostra bastante estável quanto ao uso das formas nulas, começando com sua totalidade de ocorrências e apre-sentando apenas uma pequena variação ao longo dos anos, mas sempre com índices bem altos. Esse tipo de comportamento é o que se vê ainda em vigor no PE, que se mostra bastante estável ao longo do tempo, não apenas no que diz respeito aos indeterminados, mas principalmente no que se refere aos sujeitos referenciais.

Se no PB a curva descendente é clara, os resultados para o PE confirmam o que foi atestado na língua oral: apesar da variação, não há qualquer indício de mudança. O período 5, que apresenta 75% de pronomes expressos, momento em que há uma queda um pouco maior, é também aquele no qual encontramos uma quanti-dade expressiva de a gente – 21 dados, sendo treze deles expressos –, que naturalmente precisa de ao menos uma primeira menção plena para que se possa identificar, o que explica o preenchimento:

(16)

São coisas que se dizem nessas ocasiões. Se a gentei fosse

pensar tudo o que Øi diz...

(É urgente o amor, Luiz Francisco Rebello, 1957)

Considerações finaisA partir dos resultados, passamos a responder às questões que

nortearam este trabalho. De fato, as estratégias que se mostraram pre-dominantes para a expressão da indeterminação nas sentenças finitas do PE foram o uso do clítico indefinido se, tanto em construções ativas quanto passivas, e a forma verbal na 3ª pessoa do plural.

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O percurso da indeterminação em peças brasileiras e portuguesas: uma análise comparativa

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Os resultados apontam que outras estratégias, como a 1ª pessoal do plural e o pronome a gente, também apareceram, ainda que em índices bastante reduzidos. O baixo uso de a gente, dife-rentemente do que ocorre no PB, sugere que a forma ainda guarda muito de sua origem nominal na variedade portuguesa, parecendo não estar plenamente gramaticalizada como pronome. Outras dife-renças entre os resultados apresentados por esta pesquisa e pela de Vargas são a não ocorrência das formas você e zero.

Quanto ao preenchimento do sujeito, nota-se a preferência lusitana pelos pronomes nominativos (1ª e 3ª pessoas do plural) apagados, inclusive em relação ao a gente, que depende de um an-tecedente que o identifique. Em suas poucas ocorrências, ele é ex-presso apenas em sua primeira menção, ao passo que o PB opta por seu preenchimento mais frequente. Há, entretanto, uma redução nos nulos, oscilando entre 75% e 100% ao longo do século XX, uma variação estável. O uso do pronome tu como estratégia de indeter-minação, embora frequentemente descrito em gramáticas recentes, não foi encontrado nem na amostra brasileira nem na portuguesa.

Verificando a linha do tempo, foi possível observar signifi-cativa estabilidade no quadro de estratégias usadas nas sentenças finitas do PE ao longo dos estágios contemplados na amostra. Isso confirma estarmos diante de um sistema mais estável em compara-ção com o PB, cujo processo de mudança está em curso.

Os resultados obtidos a partir da análise, de forma geral, confirmam as expectativas iniciais desta pesquisa. Com esses re-sultados, esperamos trazer contribuições adicionais para o fato de estarmos diante de dois sistemas distintos: por um lado, encon-tramos no PE o clítico se muito frequente para a expressão da refe-rência indeterminada, enquanto os pronomes se comportam como numa língua de sujeito nulo consistente, apresentando uma pre-ferência clara pelo não preenchimento da posição. Na comparação

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com o PB (Vargas, 2010), temos um quadro oposto: clítico se em extinção e formas nominativas expressas em expansão.

Anexos

Tabela 2: Amostra de peças de teatro portuguesas4

Período Peça

Período 1(1821-1852)

O corcunda por amor (1821) – Almeida Garrett e Paulo MidosiUma cena de nossos dias (1843) – Paulo MidosiCasar ou meter freira (1848) – Antonio Pedro Lopes de MendonçaO misantropo (1852) – Paulo Midosi

Período 2(1870-1898)

A liberdade eleitoral (1870) – Teixeira de VasconcelosQuem desdenha (1874) – Pinheiro ChagasO festim de Baltazar (1894) – Gervásio LobatoA senhora ministra (1898) – Eduardo Schwalbach Lucci

Período 3(1904-1924)

Casamento e mortalha (1904) – D. João Gonçalves Zardo da CâmaraOs degenerados (1905) – Mario GollenO álcool (1912) – Bento MântuaAntes de começar (1919) – Almada NegreirosPenélope (1919) – Abreu e SousaO doido e a morte (1923) – Raul BrandãoJudas (1924) – António Patrício

4 Peças de teatro disponíveis no site http://sites.google.com/site/projetosujeitopecas.

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O percurso da indeterminação em peças brasileiras e portuguesas: uma análise comparativa

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Período 4

(1931-1944)

Continuação da comédia (1931) – João Pedro de Andrade

A prima Tança (1934) – Alice Ogando

Meu amor é traiçoeiro (1935) – Vasco de Mendonça Alves

O cúmplice (1940) – Joaquim Paço D’arcos

A invenção do guarda-chuva (1944) – Luiz Francisco

Rebello

Período 5

(1954-1957)

Alguém terá que morrer (1954) – Luiz Francisco Rebello

É urgente o amor (1957) – Luiz Francisco Rebello

Período 6

(1962-1986)

A visita de sua excelência (1962-65) – Luiz Francisco

Rebello

A menina feia (1970) – Manuel Frederico Pressler

Prólogo alentejano (1975) – Luiz Francisco Rebello

A lei é a lei (1977) – Luiz Francisco Rebello

O grande mágico (1979) – Luiz Francisco Rebello

Viagem a Damasco (1980) – Norberto Ávila

Magalona, princesa de Nápoles (1986) – Norberto Ávila

Período 7

(1995-1996)

A vingança de Antero ou a boda deslumbrante (1995) –

Luísa Costa Gomes

Um filho (1996) – Luísa Costa Gomes

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Tabela 3: Amostra de peças de teatro brasileiras (Vargas, 2010)

Período Peça Autor

Período 1(1837-1847)

Um sertanejo na corte (1837)O noviço (1845)Quem casa, quer casa (1845)O cigano (1845)O Judas em sábado de aleluia (1846)Os irmãos das almas (1847)

Martins Pena(1815-1848)

Período 2(1862-1889)

Tipos da atualidade (1862)Defeito de família (1870)Como se fazia um deputado (1882)Caiu o ministério (1883)As doutoras (1889)

França Jr.(1838-1890)

Período 3(1918-1920)

O simpático Jeremias (1918)As fans de Roberto Taylor (1919)Onde canta o sabiá (1920)A inquilina de Botafogo (1920)

Gastão Tojeiro(1880-1965)

Período 4(1933-1938)

O troféu (1933)A patroa (1933)O hóspede do quarto nº 2 (1937)

A vida tem três andares (1938)

Armando Gonzaga(1884-1953)

Humberto Cunha(1887-1966)

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O percurso da indeterminação em peças brasileiras e portuguesas: uma análise comparativa

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Período 5(1945-1955)

Pedro Mico (1954)O colar de coral (1954)

Um elefante no caos (1955)

Antonio Callado(1917-1997)

Millôr Fernandes(1923-2012)

Período 6(1979-1984)

A mulher integral (1979)Confidências de um espermatozoi-de careca (1984)

Os órfãos de Jânio (1979)

Carlos E. Novaes(1940-)

Millôr Fernandes(1923-2012)

Período 7(1990-1992)

A partilha (1990)No coração do Brasil (1992)Como encher um biquíni selvagem (1992)

Miguel Falabella(1956 -)

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Marianna Maroja Confalonieri Cardoso

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O percurso da indeterminação em peças brasileiras e portuguesas: uma análise comparativa

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Marianna Maroja Confalonieri Cardoso

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Resumo

O presente trabalho apresenta uma análise das estratégias de indeterminação do agente em sentenças finitas com base em peças por-tuguesas de caráter popular escritas ao longo dos séculos XIX e XX, dis-tribuídas em sete sincronias, e compara os resultados obtidos com os encontrados por Vargas (2010) para peças escritas no Rio de Janeiro, compreendendo o mesmo período de tempo. A análise de Vargas mostra um claro processo de mudança em direção ao uso de novas estratégias de indeterminação – como o uso dos pronomes você e a gente, além de uma drástica redução no uso do clítico indefinido se – o que está, sem dúvida, relacionado a uma redução no quadro de clíticos de terceira pessoa e ao crescente preenchimento do sujeito pronominal no português brasileiro (PB). Como o português europeu (PE) apresenta um sistema de sujeitos nulos e de clíticos pronominais mais estável, nossa expectativa para esta pesquisa era de que o PE conservaria as formas tradicionais de indeter-minação: o emprego do verbo na 3ª pessoa do plural com o pronome não expresso, uma forma de indeterminação que exclui o falante, e o uso do clítico se, com referência arbitrária ou genérica, que pode ou não incluir o falante. Os resultados confirmam nossas hipóteses. Nosso referencial teórico utiliza o modelo de estudo da mudança proposto por Weinreich, Labov e Herzog (2006) e toma como componente gramatical o quadro de Princípios e Parâmetros (Chomsky, 1981), além dos estudos já realizados sobre o tema.Palavras-chave: estratégias de indeterminação; estratégias pro-nominais; clítico indefinido; Parâmetro do Sujeito Nulo; Teoria da Variação e Mudança Linguística.

Abstract

This paper presents an analysis of the strategies for agent indetermination in finite clauses based on a sample of popular Portuguese plays written across the 19th and the 20th centuries, distributed in seven

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O percurso da indeterminação em peças brasileiras e portuguesas: uma análise comparativa

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synchronies, and compares the results with those obtained by Vargas (2010) for Brazilian plays produced in the same period of time. Vargas reveals a clear process of change towards nominative pronouns – such as você and a gente – as well as a drastic reduction of the indefinite clitic se – a clear consequence of the reduction of the 3rd person system of clitics and of the preference for overt pronominal subjects. Since European Portuguese presents a stable system of null subjects and of pronominal clitics, our expectation was to find 3rd person plural to convey arbitrary reference, which excludes the speaker, and an expressive use of se, which can convey arbitrary reference, which excludes the speaker, or generic reference, which may or may not include the speaker and the hearer. Our results confirm our hypotheses. Our theoretical framework associates the model to study language change, proposed by Weinreich, Labov & Herzog (2006) with the Principles and Parameters Theory (Chomsky, 1981), the linguistic component that guides the establishment of hypotheses, the linguistic constraints and leads the way to answer the empirical problems proposed by the study of change.Keywords: indetermination strategies; pronominal strategies; indefinite clitic; Null Subject Parameter; Theory of Language Variation and Change.

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O percurso diacrônico do dativo de 3ª pessoa em peças brasileiras e portuguesas:

uma análise contrastiva

Ulli Santos Bispo Fernandes*

Pesquisas sincrônicas e diacrônicas que analisaram a mo-dalidade oral e escrita do português brasileiro (PB) e do português europeu (PE) indicam um distanciamento cada vez maior entre as duas gramáticas. Dentre os fenômenos que distinguem a gramá-tica do PB e a do PE, temos o uso dos clíticos para referência à 3ª pessoa – o acusativo, tradicionalmente referido como objeto direto (OD); o dativo, referido com objeto indireto (OI); e o clítico inde-finido “se”, que tem sido objeto de estudo de diversas pesquisas. Os resultados dessas pesquisas indicam a ausência desses clíticos na fala do PB.

O presente trabalho tem como objetivo analisar as formas de representação do dativo anafórico de 3ª pessoa – que pode ser realizado através do clítico “lhe” (1), do sintagma preposicional (SP) anafórico (2), ou da categoria vazia ON (3) – em peças de teatro portuguesas e brasileiras, escritas ao longo dos séculos XIX e XX.

(1)

Ambrosio – A respeito de [teu filho]i direi o mesmo. Tem

elei nove anos e será prudente criarmo-lo desde já para

frade.

* Mestre em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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O percurso diacrônico do dativo de 3ª pessoa em peças brasileiras e portuguesas: uma análise contrastiva

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Florência – Já ontem comprei-lhei o hábito com que anda-

rá vestido daqui em diante.

(PB: O noviço, Martins Pena, 1845)

(2)

a. Julia – Quando você enfrenta [um espelho]i, o que é

que você pergunta [a ele]i?

(PB: A mulher integral, Carlos Eduardo Novaes, 1975)

b. Julia – É isso mesmo, Cristina, [seu marido]i gosta de

ser servido por você, não pela sua empregada. Faz uma sa-

lada [pra ele]i.

(PB: A mulher integral, Carlos Eduardo Novaes, 1975)

(3)

Glicério – Se for [seu filho]i, abra a porta naturalmente e

não diga nada Øi.

(PB: Um elefante no caos, Millôr Fernandes, 1955)

O PE, por outro lado, apresenta um sistema de clíticos pro-

nominais robusto, conforme atestado por Freire (2005); assim,

esperamos que o PE apresente o clítico “lhe” como estratégia pre-

ferida, ao longo de todas as sincronias, exibindo comportamento

oposto ao apresentado pelo PB.

Para isso, objetivamos ampliar a amostra analisada por

Fernandes & Paquieli (2017), a fim de trabalharmos com um nú-

mero equilibrado de dados das duas variedades ao longo de dois

séculos.

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Ulli Santos Bispo Fernandes

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Nosso referencial teórico se fundamenta na Teoria da Va-

riação e Mudança Linguística (TVM), proposta por Weinreich, La-

bov & Herzog (2006 [1968]), associada às descrições teóricas sobre

o sistema de clíticos no PE (Brito; Duarte & Matos: 2003; Martins:

2013) e à redução do quadro de clíticos de 3ª pessoa no PB (cf. pes-

quisas sincrônicas reunidas em Duarte & Ramos: 2015), além de

análises com base nos mesmos corpora diacrônicos por Marques de

Souza, (2017) para o clítico acusativo e Vargas (2012) e Cardoso

(2017) para o clítico indefinido.

Para o tratamento quantitativo do fenômeno, os dados fo-

ram codificados e analisados segundo a metodologia sociolinguís-

tica, utilizando o programa estatístico GoldVarbX (Sankoff; Taglia-

monte & Smith: 2005).

1. Pontos de partida1.1 O que dizem as pesquisas sincrônicas sobre o dativo de 3ª pessoa

A representação do dativo anafórico de 3ª pessoa já foi ob-

jeto de estudo de diversas pesquisas sincrônicas que analisaram

a modalidade oral da língua. Entre os estudos pioneiros está o de

Berlinck (1996), que apontou a quase extinção do clítico para repre-

sentação do dativo anafórico de 3ª pessoa no PB e sua substituição

por um SP anafórico e um ON. Outras pesquisas se seguiram, con-

firmando os resultados de Berlinck para o PB e apontando resulta-

do completamente oposto para o PE, que apresenta sistema de clí-

ticos robusto, conforme pode ser visto no quadro a seguir, extraído

de Duarte e Ramos (2015):

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O percurso diacrônico do dativo de 3ª pessoa em peças brasileiras e portuguesas: uma análise contrastiva

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PesquisasGOMES

1999 – RJSILVEIRA2000 – SC

FREIRE2000 – RJ

FREIRE2000 – PE

Instrução

Peul – RJ Ensino Fund. e Médio

FlorianópolisEnsino Fund. e Médio

Nurc – RJ Fala culta

Clítico 0 2% 0 88%

Objeto Nulo

15% - 36% 9%

SPs 70% 98% 64% 3%

SN 14% - - -

Total 100% 100% 100% 100%

Tabela 1. Resultados de pesquisas sobre o dativo na fala

Gomes (1999) analisou a fala popular de cariocas com en-sino fundamental e médio, com base na amostra Censo, gravada na década de 1980 pelo Programa de Estudos sobre o Uso da Lín-gua (Peul), com falantes distribuídos em quatro faixas etárias e três níveis de escolaridade: Fundamental 1, 2 e Ensino Médio. Nesse estudo, foram controladas quatro variantes: o uso do clítico, o ON, os SPs – introduzidos pela preposição A ou PARA – e o sintagma nominal (SN) com a função de dativo sem a preposição – como em Ele queria dar um presente [Ø o papa] (Amostra Censo 1980).

Os resultados desse estudo indicam preferência pelo uso de SPs para representar o dativo anafórico de 3ª pessoa, com 70% das

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Ulli Santos Bispo Fernandes

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realizações; o ON, por sua vez, foi a segunda estratégia preferida,

com índice de 15%, seguido de 14% do SN sem preposição. Por ou-

tro lado, não foi encontrada uma só ocorrência do clítico “lhe”.

Silveira (2000), utilizando o banco de dados do projeto

VARSUL (Variação Linguística na Região Sul do Brasil), analisou a

fala espontânea de 12 indivíduos com ensino fundamental e médio

de Florianópolis. No que se refere à 3ª pessoa, verificamos que há

apenas 2% de clítico, índice que representa apenas um dado, e 98%

de preferência por SPs, o que confirma o desaparecimento do clítico

na modalidade oral do PB da região Sul.

Finalmente, Freire (2000) analisou o dativo anafórico de 3ª

pessoa na fala culta do PB – por meio de um recorte da amostra

do projeto Norma Urbana Oral Culta do Rio de Janeiro (Nurc-RJ),

composta por falantes com nível superior completo – e do PE –

cujos dados foram coletados no Corpus de referência do português

contemporâneo (Nascimento et al.: 1987).

Observemos que os resultados para fala culta no PE indi-

cam 88% de uso do clítico “lhe” para representar o dativo anafóri-

co de 3ª pessoa, um percentual altíssimo, que representa a quase

totalidade dos dados. No PB, por sua vez, não foram encontrados

dados com clítico, um resultado que confirma a análise dos estudos

descritos nos parágrafos anteriores.

Em relação ao emprego de SP, os resultados para o PE indicam

apenas 3% de uso, índice que representa somente um dado; no PB, por

outro lado, os SPs são a estratégia preferida, com 64% de ocorrência.

Por fim, o uso do ON, no PE, apresentou índice de apenas 9%, enquan-

to, no PB, foi a segunda estratégia preferida, com percentual de 36%.

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O percurso diacrônico do dativo de 3ª pessoa em peças brasileiras e portuguesas: uma análise contrastiva

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A partir dos resultados dessas pesquisas, fica evidente que o clítico “lhe” para representar o dativo anafórico de 3ª pes-soa no PB oral está praticamente extinto, sendo substituído por um SP anafórico e por um ON. Já no PE, as pesquisas indicam que o clítico “lhe” continua a ser a estratégia preferida, o que demonstra, cada vez mais, que estamos diante de duas gramá-ticas distintas.

Os resultados dos estudos que observam a realização do da-tivo anafórico na escrita podem ser verificados na tabela a seguir:

PesquisasFreire (2005)

PB

Gomes (2014)

PB

Freire (2005)

PE

Clítico 26% 48% 83%

SP anafórico 42% 32% 3%

Objeto nulo 32% 20% 14%

Tabela 2. Resultados das pesquisas sobre o dativo na escrita

Embora realizado após o estudo de Freire, começo por Gomes (2014), que analisa a escrita do PB, a partir de uma amostra coletada do corpus organizado pelo Peul/UFRJ, extraí-do de diversas seções de jornais produzidos no Rio de Janeiro. No levantamento realizado pela autora, foram consideradas as mesmas variantes analisadas na amostra de língua oral (Go-mes: 1999), exceto o uso do SN não preposicionado: clítico, ON e SP.

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Os resultados para a 3ª pessoa indicam 48% de clíticos, superando o uso de SPs (32%) e do dativo nulo (20%), resultados opostos aos encontrados por Gomes (1999) para modalidade oral.

O trabalho de Freire (2005), por fim, tal como na sua análise de fala, compara o PE e o PB com base em duas amostras com diversos gêneros dispostos no contínuo oralidade-letramento, desde histórias em quadrinhos até artigos, editoriais e ensaios publicados no Rio de Janeiro e em Lisboa, entre 1995 e 2004. Nesse estudo, o autor inves-tigou a frequência do uso do clítico e das duas outras estratégias de re-presentação do dativo anafórico de 3ª pessoa no PB e no PE: SP anafó-rico – introduzido pela preposição A ou pela preposição PARA – e o ON.

Ao compararmos os resultados gerais para as duas varieda-des, notamos que, no PB, o uso do clítico representa apenas 1/4 do total de dados da amostra, com índice de 26%; no PE, por outro lado, o clítico é a variante preferida e representa quase a totalidade dos dados, atingindo 83% dos usos, um resultado que não se dife-rencia do obtido por Freire (2000) para a fala lusitana.

Além disso, os resultados para o PB mostram que as duas outras estratégias, se somadas, representam 72% das ocorrências; já no PE, assim como esperado, o uso do SP anafórico é inexpressi-vo, com índice de 3%, e o emprego do ON também é baixo, repre-sentando 14% dos dados.

Sendo assim, observamos que, no PB, as variantes preferi-das na modalidade oral da língua – o SP anafórico e o ON – estão plenamente implementadas na escrita. Além disso, o clítico dativo, que está praticamente extinto da fala do PB, é recuperado na escri-ta, com percentual expressivo, mas não se apresenta como estraté-gia principal para a realização do dativo anafórico com referência a 3ª pessoa.

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2. Pressupostos teóricos e hipóteses de trabalho2.1 Fundamentação teórica2.1.1 Os pronomes pessoais em português

Os pronomes clíticos, que compõem parte do quadro de pronomes pessoais do português, são designados, tradicionalmen-te, segundo Martins (2013), por “palavra átona”, assim como ou-tros afixos do português, uma vez que não apresentam acentuação própria e dependem prosodicamente da palavra hospedeira. Essa propriedade impossibilita que tais itens lexicais surjam isolada-mente no discurso.

Porém, segundo Brito, Duarte & Matos (2003), os prono-mes clíticos são designados “clíticos especiais”, ao passo que as pre-posições e os artigos são designados “clíticos simples”, visto que apresentam propriedades formais específicas, como o fato de não apresentarem posição fixa na sentença: podem ser realizados em próclise, ênclise ou mesóclise.

Embora, por exemplo, nem o pronome nominativo vós nem as formas átonas e tônicas do seu paradigma estejam em uso no Brasil, o quadro de pronomes pessoais apresentado pelas gramá-ticas normativas brasileiras é o mesmo exibido pelas gramáticas normativas do PE. Segundo Monteiro (1994), a tradicional distri-buição dos pronomes pessoais a partir da noção de caso está num processo de desestruturação no PB, o que fica claro ao observarmos a redução do quadro de clíticos para referência à 3ª pessoa – o acu-sativo, o “se” indefinido e o dativo –, como mostram os estudos de Marques de Sousa (2017), de Cardoso (2017) – a partir de Vargas (2012) – e de Fernandes & Paquieli (2017).

Esses resultados confirmam o que já havia sido apontado nas pesquisas sincrônicas anteriores e representam um interessan-

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te encaixamento da mudança: está ligado a uma grande reorganiza-ção do nosso sistema pronominal.

2.1.2 A Teoria da Variação e Mudança O modelo de estudo proposto por Weinreich, Labov & Her-

zog (2006 [1968]), a TVM, defende a relação indissociável entre o sistema linguístico e a sociedade, em que a língua deve ser vista como um fato social dinâmico, e a variação linguística, analisada a partir da associação entre fatores externos e internos ao sistema. Para os autores, a língua é um sistema heterogêneo e ordenado, tanto na sincronia quanto na diacronia, e é formada por regras ca-tegóricas e por regras variáveis.

Segundo WLH, alguns problemas empíricos devem ser con-siderados por uma análise teórica que explique a mudança linguís-tica. São eles o problema da restrição (do original constraints), que busca as condições linguísticas, representadas por diversas categorias gramaticais (fonológicas, morfológicas, sintáticas, se-mânticas), e sociais (como gênero, faixa etária, nível de escolari-dade, etilo etc.), que favorecem ou inibem a mudança; o problema do encaixamento (embedding), que está centrado na forma como um fenômeno linguístico em variação/mudança está encaixado na estrutura do sistema linguístico e na social; o problema da tran-sição (transition), que se refere à investigação das etapas da mu-dança linguística, seja ela observada no tempo aparente, que pode ser atestado na comparação do comportamento linguístico de in-divíduos de faixas etárias distintas (abordagem sincrônica) e em tempo real, que, diferentemente da mudança em tempo aparente, requer a análise de dados de sincronias diversas, seja ela observada em tempo real de curta duração – estudos de “painel” e “tendência”

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(cf. Labov: 1994) – ou tempo real de longa duração; o problema da avaliação (evaluation), que se refere à atribuição de valor ne-gativo ou positivo pelos falantes às formas em variação, e pode, portanto, refrear ou impulsionar a mudança; por fim, o problema da implementação (actuation), que é considerado como a questão central de uma teoria da mudança, porque trata da “origem” e da “propagação” da mudança no contexto linguístico e social, estando, portanto, intimamente relacionado a todos os outros problemas.

2.2 Refinando objetivos e hipótesesO presente trabalho tem como objetivo analisar as formas

de representação do dativo anafórico de 3ª pessoa em peças de tea-tro portuguesas e brasileiras escritas ao longo dos séculos XIX e XX. Vejamos, a seguir, a distribuição das peças que compuseram as amostras:

Período Peças

Período I (1841-1848)

Os logros numa hospedaria (1841) – Paulo Midosi Casar ou meter freira (1848) – Antonio Pedro Lopes de Mendonça

Período II (1870-1871)

A liberdade eleitoral (1870) – Teixeira de Vasconcelos Clero, nobreza e povo (1871) – César de Lacerda

Período III (1914-1919)

Cavalheiro respeitável (1914) – André Brun Penélope (1919) – Abreu e Sousa Antes de começar (1919) – Almada Negreiros

Período IV(1931-1945)

Três gerações (1931) – Ramada Curto A prima Tança (1934) – Alice Ogando Balada de outono (1945) – Carlos Selvagem

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Período V (1954-1955)

Alguém terá que morrer (1954) – Luiz Francisco Rebello A sogra (1955) – Alice Ogando

Período VI (1975-1977)

Prólogo alentejano (1975) – Luis Francisco Rebello A lei é a lei (1977) – Luis Francisco Rebello O rosto levantado (1977) – Noberto Ávila (1936)

Período VII (1996)

Um filho (1996) – Luísa Costa Gomes (1957)

Tabela 3. Distribuição das peças portuguesas por período de tempo

Período Peças

Período I (1845)

O noviço (1845) – Martins PenaAs casadas solteiras (1845) – Martins Pena

Período II (1883-1889)

Caiu o mistério (1883) – França Júnior As doutoras (1889) – França Júnior

Período III(1918-1920)

O simpático Jeremias (1918) – Gastão Tojeiro Onde canta o sabiá (1920) – Gastão Tojeiro

Período IV (1933-1937)

A patroa (1933) – Armando Gonzaga O hóspede do quarto número 2 (1937) – Armando Gonzaga

Período V (1954-1955)

Um elefante no caos ou Jornal do Brasil ou, sobretudo, por que me ufano do meu país (1955) – Millôr Fernandes A gaivota (1957) – Millôr Fernandes

Período VI (1975-1984)

A mulher integral (1975) – Carlos Eduardo Novaes Confidências de um espermatozóoide careca (1984) – Carlos Eduardo Novaes

Período VII (1992-1994)

No coração do Brasil (1992) – Miguel Falabella Como encher um biquíni selvagem (1994) – Miguel Falabella

Tab. 4. Distribuição das peças brasileiras por período de tempo

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Nossa hipótese principal é a de que, no PB, o uso do clítico

dativo para representação da 3ª pessoa diminua progressivamen-

te, ao passo que o uso das estruturas com SP e ON, ilustradas

na seção anterior, aumentem ao longo do tempo. Nesse sentido,

acreditamos que, ao contrário do que ocorre com o uso da varian-

te com pronome nominativo “ele/ela” como OD, que é tão com-

batido na sala de aula (cf. Duarte & Ramos: 2015), as estratégias

com SP e com ON para representação do dativo anafórico não so-

frem qualquer estigma que as restrinja ou iniba e, portanto, não

estão sujeitas a qualquer crítica por parte da escola, o que contri-

bui para implementação dessas formas no sistema, inclusive na

escrita, modalidade que ainda impõe restrições ao pronome no-

minativo na função de objeto direto a depender do gênero textual

(cf. Freire: 2005).

Assim, nas últimas sincronias analisadas no PB, espe-

ramos encontrar uso expressivo dos SPs anafóricos e do ON,

tanto com verbos bitransitivos quanto com verbos transitivos

indiretos.

No PE, embora esperemos encontrar, tal como no PB, o uso

das três variantes para representar o dativo anafórico de 3ª pessoa,

nossa hipótese é a de que o clítico será a estratégia preferida, de

modo a apresentar índices estáveis ao longo do tempo. Assim, con-

firmaremos a existência de um sistema estável de clíticos dativos, tal

como exibe o trabalho sincrônico de Freire (2000; 2005) para a fala e

a escrita lusitanas. Esperamos também encontrar baixo índice de uso

do ON no PE e acreditamos que os poucos dativos representados por

essa variante estejam relacionados às construções com verbo dicendi.

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3. A análise 3.1 A análise para o PE e para o PB3.1.1 Variável dependente

A partir da leitura e análise das 16 peças de teatro europeias, foram coletados 274 dados de representação do dativo anafórico com referência a 3ª pessoa que são argumentos de verbos bitransitivos e transitivos indiretos. Esses dados encontram-se distribuídos entre as já ilustradas três estratégias e estão dispostos na tabela a seguir:

Período Clítico SP anafórico Nulo Total

I(1841-1848)

23 (60%)

12 (32%)

3 (8%)

38 (100%)

II(1870-1871)

25 (57%)

16 (36%)

3 (7%)

44 (100%)

III(1914-1919)

12 (46%)

10 (39%)

4 (15%)

26 (100%)

IV(1931-1945)

21 (57%)

11 (30%)

5 (13%)

37 (100%)

V(1954-1955)

24 (67%)

12 (33%)

0 (0%)

36 (100%)

VI(1975-1977)

30 (61%)

11 (23%)

8 (16%)

49 (100%)

VII(1996)

23 (52%)

13 (30%)

8 (18%)

44 (100%)

TOTAL 158 85 31 274

Tabela 5. Distribuição das estratégias de representação do dativo ao longo do tempo no PE

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Os resultados da distribuição das ocorrências das três varian-tes indicam que, conforme esperado, o clítico é a estratégia preferida em todas as sincronias observadas, sempre com resultados superio-res a 50%, exceto no período III, quando seu percentual se aproxima do uso do SP anafórico, que se mantém como a 2ª estratégia prefe-rida ao longo de todos os períodos analisados. O ON, por sua vez, apresentou índices de realização baixíssimos em todas as sincronias, inclusive, no período V, não foi encontrada sequer uma ocorrência de ON. O gráfico a seguir apresenta a distribuição das variantes nos 7 períodos analisados e permite visualizar melhor a distribuição:

Gráfico 1. Distribuição das estratégias de representação do dativo ao longo do tempo no PE

Para a análise do PB, foram coletados 371 dados, distribuí-

dos segundo as mesmas três variantes observadas no PE, extraídos de 14 peças de teatro. Os resultados serão apresentados na tabela a seguir:

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Período ClíticoSP

anafóricoNulo Total

I (1845)

29/48 (60%)

13/48 (27%)

6 (13%)

48 (100%)

II (1883-1889)

37/60 (62%)

18/60 (30%)

5/60 (8%)

60 (100%)

III (1918-1920)

38/92 (41%)

49/92 (53%)

5/92 (6%)

92 (100%)

IV (1933-1937)

29/51 (57%)

15/51 (29%)

7/51 (14%)

51 (100%)

V (1954-1955)

5/29 (18%)

12/29 (41%)

12/29 (41%)

29 (100%)

VI (1975-1984)

6/55 (11%)

28/55 (51%)

21/55 (38%)

55 (100%)

VII (1992-1994)

1/36 (3%)

18/36 (50%)

17/36 (47%)

36 (100%)

TOTAL 145 153 73 371

Tabela 6. Distribuição das estratégias de representação do dativo ao longo do tempo no PB

Até o período IV, o PB exibe comportamento muito seme-lhante ao do PE e apresenta alto índice de realização do clítico “lhe”, com percentuais acima de 50%, exceto no período III, em que o uso do SP anafórico supera o uso do clítico, com 53% dos dados.

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A partir do período V, que representa as peças escritas nos anos 1950, já é possível observarmos uma queda expressiva do clí-tico, chegando, no último período, a apenas 3% de uso, um resulta-do que representa apenas um dado.

Por outro lado, a partir dos anos 1950, o uso do SP anafó-rico apresentou aumento significativo, passando, no período VII, a representar 50% dos usos e a ser a estratégia preferida, seguida do ON, que atingiu índice de 47%, um resultado muito próximo ao do SP anafórico e que representa quase a metade dos dados.

Esses resultados indicam que, a partir dos anos 1950, a es-crita das peças brasileiras começou a apresentar traços da gramá-tica brasileira e, assim, a se distanciar da gramática lusitana. Veja-mos, no gráfico a seguir, a distribuição dos resultados:

Gráfico 2. Distribuição das estratégias de representação do dativo ao longo do tempo no PB

Através da comparação entre os resultados do PB e do PE, é possível observar, no PB, nas últimas sincronias analisadas, uma acirrada competição entre o SP anafórico e o ON, que somam a quase

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totalidade dos dados e indicam a quase extinção do clítico nessa va-riedade; no PE, por sua vez, o clítico foi a forma preferida em todas as sincronias; o uso de SPs anafóricos se mantém como uma variante estável, em torno de 30%, enquanto o dativo nulo alcança índices bastante inexpressivos. Esses resultados estão em consonância com os de Gomes (1999) para o PB e os de Freire (2000) para o PB e para o PE e reforçam que estamos diante de duas gramáticas diferentes.

Finalmente, ao comparamos os resultados de Vargas (2012) e Cardoso (2017) para o clítico “se”, de Marques de Sousa (2017) para o clítico acusativo e os resultados deste artigo para o clítico dativo de 3ª pessoa, fica clara a semelhança de comportamento dos clíticos nas duas variedades analisadas. Assim, é possível observar que a perda do uso do clítico no PB é um processo que afeta todos os clíticos de 3ª pessoa.

Considerações finaisA partir desta pesquisa, foi possível observarmos que, tanto

no PE quanto no PB, assim como já indicavam os estudos anterio-res, há três formas de realização do dativo anafórico de 3ª pessoa: o uso do clítico “lhe”, do SP anafórico e do ON.

Nas quatro primeiras sincronias analisadas, o clítico “lhe” era a forma preferida nas duas variedades, seguido do SP anafórico e do ON. A partir dos anos 1950, entretanto, o SP anafórico passou a ser a estratégia preferida, seguida do ON, e o clítico sofreu queda brusca, chegando ao último período a apresentar percentual inex-pressivo, que indica sua quase ausência no PB. No PE, por sua vez, o clítico foi a estratégia preferida em todas as sincronias analisadas, seguido do SP anafórico e do ON, que apresentou índices de realiza-ção muito baixos nos sete períodos.

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Por fim, nossas hipóteses foram confirmadas e foi possível realizar uma análise contrastiva entre o PB e o PE, a fim de descre-ver o funcionamento de cada uma das variedades. Com esses resul-tados, confirmamos que, se por um lado, no PE, estamos diante de um sistema de clíticos robusto, no PB, observamos o enfraqueci-mento do quadro de clíticos de 3ª pessoa, fruto de uma grande re-organização do sistema pronominal do PB, que acompanha a perda de sujeito nulo no PB e representa um interessante encaixamento da mudança (cf. Duarte: 2003 e Mourão: 2015).

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Resumo

Este artigo analisa as formas de representação do dativo anafó-rico de 3ª pessoa em peças de teatro portuguesas e brasileiras escritas ao longo dos séculos XIX e XX, ambas distribuídas em sete períodos. As for-mas variantes consideradas são o uso do clítico dativo, do SP anafórico e da categoria vazia. A amostra europeia foi coletada para este trabalho, e a amostra brasileira ampliou um material anterior analisado por Fernandes e Paquieli (2017), a fim de equilibrar o número de dados para o portu-guês europeu (PE) e para o português brasileiro (PB). Nossas hipóteses foram levantadas à luz dos resultados de pesquisas sincrônicas anteriores (Freire: 2000; Gomes: 2003; Freire: 2005; Duarte & Ramos: 2015; entre outras), que revelam a extinção do clítico dativo no português falado no Brasil (PB), enquanto o PE apresenta um sistema de clíticos pronominais mais robusto. Nossos resultados nos permitem acompanhar a curva des-cendente do clítico dativo no PB e o aumento do SP anafórico e do objeto nulo. O PE, pelo contrário, apresenta um sistema estável ao longo do tem-po, com o clítico representando a estratégia preferida, em variação com SPs. Esta é uma mudança encaixada em um processo de mudança mais amplo, atestado no PB, que afeta o quadro de pronomes sujeito e os clíti-cos de 3ª pessoa. O quadro teórico se fundamenta na Teoria da Variação e Mudança Linguística, proposta por Weinreich, Labov & Herzog (2006 [1968]), associada às descrições teóricas sobre o sistema de clíticos no PE (Brito; Duarte & Matos: 2003; Martins: 2013) e à redução do mesmo sistema no PB (cf. pesquisas sincrônicas reunidas em Duarte & Ramos: 2015), além de análises com base nas mesmas amostras diacrônicas para o clítico indefinido (Vargas: 2012; Cardoso: 2017) e para o clítico acusa-tivo (Marques de Souza: 2017). Os dados foram codificados e analisados segundo a metodologia sociolinguística, utilizando o programa estatístico GoldVarbX (Sankoff; Tagliamonte & Smith: 2005).Palavras-chave: variação e mudança; clítico dativo anafórico; sis-tema pronominal; português europeu; português brasileiro.

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Ulli Santos Bispo Fernandes

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Abstract

This article analyzes the strategies to represent the anaphoric dative in European and Brazilian theater plays written in the 19th and the 20th Centuries, both distributed in seven periods. The variants considered are the 3rd person dative clitic lhe, the anaphoric PP and a null category. The European sample has been collected for this work and the Brazilian sample enlarged a previous material analyzed by Fernandes and Paquieli (2017), in order to have two comparable samples in number of data for European (EP) and Brazilian Portuguese (BP). Our hypotheses have been formulated in the light of past synchronic researches (Freire: 2000; Gomes: 2003; Freire: 2005; Duarte & Ramos: 2015; among others studies), which reveal the extinction of dative clitic on Portuguese spoken in Brazil, while EP presents a robust system of the pronominal clitics. Our results allow us to follow the descending curve of the dative clitic in BP and the rising of the anaphoric PP and the null clitic. EP, on the contrary, shows a stable system accross the time, with the clitic representing the pr eferred strategy in variation with PPs. This is a change embedded in a larger process of change attested in BP, affecting nominative pronouns and 3rd person clitics. Our theoretical framework uses the Theory of Language Variation and Change, as proposed by Weinreich, Labov & Herzog (2006 [1968], associated to theoretical descriptions about the system of clitics in EP (Brito; Duarte & Matos: 2003; Martins: 2013), and the reduction of the same system in BP (see syncronic researches in Duarte & Ramos: 2015), besides analyses based on the same diachronic samples for the indefinite clitic (Vargas: 2012; Cardoso: 2017) and for the accusative clitic (Marques de Souza: 2017). The data have been codified and analyzed according to the Sociolinguistic methodology, using the statistical program GoldVarbX (Sankoff; Tagliamonte & Smith: 2005).Keywords: variation and change; anaphoric dative clitic; pronominal system; European Portuguese; Brazilian Portuguese.

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Um estudo da ordem dos clíticos em formas complexas como evidência de

mudança sintática no português

Diana Silva Thomaz*

Os estudos empíricos que vêm sendo feitos sobre o com-portamento dos pronomes clíticos (Martins: 1994; Galves; Sousa & Britto: 2005; Martins: 2009; Carneiro & Galves: 2010; Cavalcan-te; Duarte & Pagotto: 2011 et al.) têm atestado diferentes padrões de colocação pronominal ao longo da história da nossa língua, as-sociados às suas diferentes gramáticas, o que contribui para a pe-riodização do português, bem como para as discussões em torno da mudança linguística que se processou ao longo do tempo. Con-siderando isso, o objetivo central deste trabalho é apresentar um estudo sobre a colocação pronominal nas formas complexas à luz do modelo de Competição de Gramáticas (Kroch: 2001), focalizan-do as formas complexas por meio das quais podemos identificar as gramáticas do português arcaico (PA), do português médio (PM), do português europeu contemporâneo (PE), exemplificadas mais adiante, e mostrar a mudança sintática que ocorre envolvendo o posicionamento dos pronomes, e que nos permite identificar a gra-mática do português do Brasil (PB).

Este estudo se justifica na medida em que contribui para os trabalhos que têm sido desenvolvidos dentro do modelo teórico adotado sobre a posição dos clíticos, ajudando a delinear a iden-

* Mestre em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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tidade linguística do português do Brasil. Além disso, trouxemos

uma nova divisão para os estudos das formas complexas, baseada

nas descrições de Brito, Duarte e Matos (2003), que se mostrou

relevante para as análises.O artigo será apresentado do seguinte modo: apresentare-

mos a ordem dos clíticos nas formas complexas no PM, no PE e no PB; apresentaremos o corpus e a metodologia utilizados no traba-lho; analisaremos os resultados; teceremos as considerações finais da investigação.

Ordem dos clíticos em formas complexas: do PM ao PBPara as descrições gramaticais do primeiro subtópico, to-

maremos como base os trabalhos de A. M. Martins (1994) para o

PM, de Brito, Duarte e Matos (2003) para o PE e, para as descrições

do segundo subtópico, nosso ponto de partida serão os trabalhos

de Duarte e Pagotto (2005) e Cavalcante, Duarte e Pagotto (2011).

Optamos por trazer a descrição da colocação pronominal nas for-

mas complexas a partir do português médio por acreditarmos que

é a partir dessa gramática que surgem as gramáticas do PE e do

PB, como apontam alguns estudos empíricos. Acrescentamos ainda

que, para designar os períodos do português histórico, adotamos a

classificação de PM, PE e PB porque faz parte de uma periodização

que segue critérios que envolvem mudança paramétrica.

As formas complexas no PMA. M. Martins, para descrever o comportamento dos pro-

nomes átonos em formas complexas, apresentou duas divisões que

reúnem construções com comportamento semelhante.

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Um estudo da ordem dos clíticos em formas complexas como evidência de mudança sintática no português

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Grupo 1

Construções de “união de orações”.Construções de controle de sujeito com verbos volitivos.

Grupo 2

Estruturas com verbos auxiliares modais (dever a/de, poder, haver a/de), aspectuais (começar a/de, tornar a/de) e temporais (ir, vir a, haver de).

Nas construções presentes no primeiro grupo, encontrou vários casos de próclise ao verbo flexionado, como em (01), sem que houvesse um elemento proclisador o precedendo.

(01) Em testemunho desto uos mando fazer E dar esta carta

de venda (Lx, 1432) (Martins: 1994, 133).

Nos casos em que a oração estava numa posição subordina-da, é constante a próclise ao primeiro verbo devido à presença de um elemento proclisador.

(02) E pedem as dictas donas por merçe ao Reverendissi-

mo senhor arcebispo e a seus vigairos que asy o queira con-

firmar (Lx, 1514) (p. 135).

Com relação aos verbos presentes no segundo grupo – os verbos auxiliares –, em geral, os clíticos ligavam-se ao verbo auxiliar e não ao infinitivo.

(03) E por suas cartas citatórias ou precatorias ou sem

ellas serem citados e hi lhe hirem respomder e pagar a pee

de juízo (Lx, 1544) (p. 152).

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Em síntese, em orações não dependentes a colocação pré ou pós-verbal do pronome é possível, mas, nos séculos 15 e 16, a próclise é dominante. Martins conclui, sobre o posicionamento dos clíticos nas formas complexas, que há um certo paralelismo entre as estruturas de complementação que permitem a subida do clíti-co1 e as estruturas com auxiliares: em ambas, “os clíticos se unem preferencialmente a V1, sendo muito raros os exemplos de ligação a V2” (1994, 154).

As formas complexas no PENo PE, Brito, Duarte e Matos explicam os casos de subida de

clítico separando as (i) construções com verbo de controle de sujeito, as (ii) construções com marcação de caso excepcional e as (iii) constru-ções de união de orações. Os exemplos em (04) e (06) mostram a pos-sibilidade da subida de clítico nas construções de controle de sujeito em presença de operador de próclise, bem como a ênclise ao verbo não finito. A diferença entre (05) e (06), segundo as autoras, está em haver a formação de um predicado complexo em (05), o que possibilita a subida do clítico, e em (06) não ocorrer o mesmo, o que faz com que o clítico tenha sua colocação pós-verbal no domínio encaixado.

(i)

(04) O João não a quer convidar (Brito, Duarte e Matos:

2003, 857).

(05) O João quere-a convidar (p. 859).

(06) O João quer convidá-la (p. 859).

1 “O fenômeno conhecido como ‘subida de clítico’ consiste na seleção de um verbo do qual o pronome clítico não é dependente para hospedeiro verbal” (Brito, Duarte e Matos: 2003, 857). Nesse caso, o clítico se adjunge ao primeiro verbo do complexo verbal.

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Um estudo da ordem dos clíticos em formas complexas como evidência de mudança sintática no português

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Nos exemplos de (07) a (09), encontramos construções com marcação excepcional de caso e, nesses casos, a subida de clítico é obrigatória para pronomes clíticos sujeitos, como mostra a agrama-ticalidade em (08).

(ii)

(07) O João não os viu entregar o convite (p. 857).

(08) *O João não viu entrega-los o convite (p. 860).

(09) O João não os viu entrega-lo (p. 860).

Os dois últimos exemplos, em (10) e (11), ilustram o fenô-meno de subida de clítico nas construções de união de orações, em que ocorre formação de predicados complexos e obrigatoriamente adjacência do clítico ao verbo causativo ou perceptivo.

(iii)

(10) Os pais deixaram-lhes comer o gelado antes do almo-

ço (p. 859).

(11) O patrão mandou-o levar aos empregados antes de

saírem (p. 859).

Em presença de auxiliares mais gerúndio/particípio, a su-bida do clítico é obrigatória, como em (12) e (13). Se não houver um elemento proclisador, a colocação é enclítica ao verbo auxiliar, mas, caso haja um elemento proclisador, a colocação deve ser pro-clítica. A subida de clítico também pode ocorrer quando há um ope-rador de próclise antecedendo uma estrutura em que há um verbo semi-auxiliar aspectual selecionando um complemento infinitivo preposicionado, como em (14). De outro modo, na ausência de um elemento proclisador, o pronome pode aparecer enclítico ao ver-

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bo presente no domínio superior, como em (15), ou ao verbo no

domínio encaixado se a preposição for a. Se a preposição for de, o

clítico deve aparecer preferencialmente no domínio encaixado e, se

for por, deve estar obrigatoriamente no domínio encaixado.

(12) O João tinha-a já convidado várias vezes (p. 858).

(13) O João ia-se esquecendo do convite (p. 858).

(14) *O João não lhe começou a ensinar russo (p. 858).

(15) O João começou-lhe a ensinar russo (p. 858).

Os exemplos (16) e (17) registram o comportamento dos clí-

ticos em estruturas com semi-auxiliares que não selecionam comple-

mento preposicionado. Nesses casos, por haver um operador de pró-

clise, o clítico pode aparecer tanto proclítico ao primeiro verbo, quanto

enclítico ao segundo. Caso o operador não estivesse presente, a próclise

ao primeiro verbo não seria a colocação possível na gramática do PE.

(16) O João não a vai provavelmente convidar (p. 857).

(17) O João não vai provavelmente convidá-la (p. 859).

Em linhas gerais, podemos dizer que, para o PM, é possível

ocorrer próclise ao primeiro verbo (cl-V1 V2) independentemen-

te de haver a presença de um elemento proclisador, o que não se

atesta na gramática do PE. A próclise a V1, no PM, só não ocorre

quando o verbo está em primeira posição absoluta, como também

não acontece com as formas verbais simples. Além disso, o clítico

liga-se, no PM, preferencialmente ao primeiro verbo, comporta-

mento que também se difere do PE.

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Um estudo da ordem dos clíticos em formas complexas como evidência de mudança sintática no português

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As formas complexas no PBOs resultados de estudos diacrônicos do português no Brasil

(Duarte e Pagotto: 2005; Cavalcante, Duarte e Pagotto: 2011) tra-zem um quadro complexo que reflete a presença de três gramáticas na escrita, conforme escreve M. A. Martins (2009): a gramática do PB, adquirida durante os primeiros anos de infância, e as gramáti-cas do PM e do PE, que surgem como modelos de escrita, um mais antigo, em vigor ainda no início do século XIX, e outro mais re-cente, que se confundem em alguns manuais normativos utilizados para o ensino da norma padrão.

Os resultados para as formas complexas encontrados por Duarte e Pagotto, ao investigarem o comportamento dos clíticos em cartas pessoais de fins do século XIX do casal Bárbara e Christiano Ottoni, revelam que, nesse contexto sintático, o PB apresenta uma inovação em relação aos períodos que o antecedem, como mostra o Quadro 1, no qual encontramos diferenças nos usos dos pronomes clíticos para o avô e para a avó. Apesar de ele apresentar uma escrita mais enclítica do que a dela, em ambos há próclise ao verbo temáti-co, uma construção que tem sido associada ao português brasileiro.

Quadro 1 – A posição dos clíticos nas formas complexas

Posição dos clíticos – Formas Complexas – Avô x Avó

Verbo auxiliar Verbo principalTotal

Próclise Ênclise Próclise Ênclise

Avó 3 1 4 0 8

Avô 6 0 2 13 21

Total 9 (31%) 1 (3%) 6 (21%) 13 (45%) 29

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Esse mesmo contexto (V1 cl V2) foi atestado por Caval-cante, Duarte e Pagotto ao investigarem a colocação pronominal num corpus composto por textos de nove ilustres enviados a Rui Barbosa na segunda metade do século XIX. Os resultados do traba-lho mostraram que todos os missivistas, em maior ou menor grau, deixaram emergir uma sintaxe brasileira em seus textos através da próclise ao verbo não finito em complexos verbais. Além disso, os resultados apresentam ênclises em contextos de próclise obrigató-ria,2 o que na literatura sobre a colocação pronominal não é ates-tado como característica de nenhuma das três etapas gramaticais às quais nos referimos. Esses casos são comumente interpretados como a generalização de uma regra da gramática do PE, que não faz parte da gramática internalizada do falante e que está sendo incor-retamente aplicada à sua escrita.

Resumindo a questão, os trabalhos diacrônicos que inves-tigam a sintaxe da gramática do PB, com foco na colocação prono-minal, mostram que, além de ter seguido caminho diferente do PE, que foi ampliando seus contextos de ênclise até que se tornasse ca-tegórica, o PB não deixa dúvidas de sua presença nos textos quando o clítico surge proclítico ao verbo não finito em complexos verbais.

Corpus e metodologiaO corpus deste trabalho é composto por cento e setenta car-

tas escritas entre 1876 a 1948 por doze missivistas cultos que com-põem a família Pedreira Ferraz Magalhães e que escrevem um para o

2 “Apesar de possuir alguma cousa como bem sabes, tudoacha-se em mãos de outros” / “permitta-me quepreceda-o de alguns esclarecimentos relativos ao serviço do gaz” (Caval-cante, Duarte e Pagotto: 2011, 191).

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outro para tratar de assuntos familiares. A família pode ser dividida em três gerações. Da primeira, faz parte João Pedreira, o avô, nascido em 1826. Da segunda, fazem parte Zélia Pedreira, filha de João Pe-dreira, Jerônimo de Castro, marido de Zélia, e Maria Teresa Pedreira, irmã de Zélia, nascidos entre 1851 e 1963. E da terceira, fazem parte os oito filhos de Zélia e Jerônimo, nascidos entre 1877 e 1893.

Para a concretização desta investigação, estabelecemos a po-sição do pronome como variável dependente, dando especial atenção aos casos de próclise a V1 e a V2; selecionamos o corpus, estipula-mos as variáveis linguísticas, codificamos os dados de acordo com os grupos de fatores e utilizamos o programa Goldvarb X (Sankoff, Tagliamonte e Smith: 2005) para as análises estatísticas. Os fatores linguísticos selecionados foram: (1) padrão de colocação pronominal (cl-V1 V2, V1-cl V2, V1 cl V2 e V1 V2-cl), (2) contexto imediatamen-te anterior (elemento proclisador, nenhum elemento/início absoluto de oração, nenhum elemento/início de período, elemento não atra-tor, preposição + infinitivo) e (3) tipo de estrutura para as formas complexas.

Considerando que, a depender do tipo de estrutura, o padrão de colocação dos pronomes nas formas complexas pode mudar, pro-pusemos uma divisão em quatro grupos. No primeiro, estão as cons-truções com o verbo auxiliar (ter/haver) + particípio, auxiliares de tempo composto, os verbos andar, estar, ficar, ir e vir + gerúndio, au-xiliares aspectuais, e o verbo ser + particípio, auxiliar de passiva. No segundo, estão as estruturas com verbos de controle (Ex.: e queria-os expurgar em trabalhos sobre mamãe (Fernando Pedreira / 4 de ju-nho de 1933)) e verbos de elevação (Ex.: É só que lhe posso adiantar), que entram em construções de reestruturação (Duarte: 2003, 646),

como poder, dever, querer e tentar + infinitivo, nas quais o pronome

pode aparecer nas quatro posições sem que altere o sentido da ora-

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ção. Diferentemente deste último, o terceiro grupo engloba constru-

ções que não admitem as quatro posições sem que haja mudança de

sentido, que é o caso daquelas com verbos causativos/perceptivos +

infinitivo, como mandar, ver, deixar e fazer (Ex.: O jornalista viu-os

fugir (Duarte: 2003, 650)), denominadas construções de “união de

orações”; e também é o caso das construções de “marcação excep-

cional de caso” (Ex.: O juiz deixou-a responder as perguntas (Duarte:

2003, 642)). O quarto grupo, por fim, é composto por construções

com semi-auxiliares que selecionam complemento infinitivo prepo-

sicionado (Ex.: Já faz 2 mezes que deixei de te escrever (Maria Joana

/ 12 de agosto de 1920)), ou seja, aquelas que reúnem dois verbos

separados por uma preposição, como esperar de, recomeçar a, deixar

de, continuar a e acabar de/a.

Análise dos resultadosEntendemos que uma análise das formas complexas que

não considera o tipo de estrutura verbal que se está analisando pa-

rece deixar escapar detalhes que, apesar de sutis, permitiriam uma

análise mais apurada dos dados. A partir daqui, então, apresentare-

mos e discutiremos os resultados encontrados começando pela Ta-

bela 1, que traz a distribuição geral dos dados por tipo de estrutura.

Tabela 1 – Distribuição geral dos dados por tipo de estrutura

Tipos de

estruturacl-V1 V2 V1-cl V2 V1 cl-V2 V1 V2-cl Tot.

Verbos

auxiliares75 72% 8 8% 19 18% 2 2% 104

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Verbos

causativos

e percepti-

vos

38 59% 16 25% 6 9% 4 6% 64

Constru-

ções de

reestru-

-turação

69 26% 8 3% 55 21% 135 51% 267

V1 Prep.

V29 26% - - 12 34% 14 40% 35

Total 191 41% 32 7% 92 20% 155 33% 470

Conforme mostram os resultados, há variação no posi-cionamento dos pronomes em todos os quatro tipos de constru-ção, concentrando cada uma o pronome átono em determinada posição. As construções com auxiliares e com verbos causati-vos/perceptivos apresentam as taxas mais altas para próclise com o pronome ligado a V1 (72% e 59%, respectivamente). Por outro lado, as construção de reestruturação e a de V1 prep. V2 apresentam taxas mais altas para ênclise com o clítico ligado a V2 (51% e 40%, respectivamente). Destacamos, ainda, dessa ta-bela: em primeiro lugar, as ocorrências de próclise a V2 com to-dos os tipos de construção, o que é um padrão associado ao PB, e as próclises a V1, que podem ser associadas ao PM ou ao PE, o que saberemos a partir da análise do contexto imediatamente anterior, que será apresentada posteriormente. No entanto, os resultados gerais já nos mostram que há diferença na colocação pronominal entre cada estrutura verbal complexa.

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A posição dos clíticos em contextos de V1: início absoluto e início de oração

Em início absoluto de sentença, como nos mostram os re-sultados da Tabela 2, os percentuais maiores da realização dos pro-nomes se expressam enclíticos (45%), ou ainda proclíticos (30%) ao verbo não finito. Nesse contexto, só a ênclise poderia ocorrer tanto no PM quanto no PE, no entanto, há 89% de próclise a V2 com ver-bos auxiliares, 21% com construções de reestruturação e 15% com verbos causativos e perceptivos.

Tabela 2 – Distribuição das formas complexas em contexto de V1 em início absoluto

#V1 cl-V1 V2 V1-cl V2 V1 cl-V2 V1 V2-cl Total

Verbos auxiliares 0 - 1 11% 8 89% 0 - 9

Construções de reestruturação

1 2% 3 7% 9 21% 30 70% 43

Verbos causativos e perceptivos

1 8% 10 77% 2 15% 0 - 13

V1 Prep. V2 0 - 0 - 0 - 4 100% 4

Total 2 3% 14 21% 20 30% 30 45% 66

Nas construções de reestruturação, a ênclise a V2 (70%) teve o percentual mais alto, e, para os verbos causativos, em que as 13 ocorrências foram de “mandar dizer”, a frequência foi maior para ênclise a V1 (77%). Mas o que ainda nos chama a atenção nes-se contexto são as duas ocorrências de próclise a V1, ilustradas pe-los exemplos em (1) e (2):

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(1) Na Companhia os Superiores concedem em geral o que se lhes pede, nos preferem pagar com o dinheiro da Ordem, senão, dizem, haverá entre nós “Religiosos ricos e Religiosos pobres” (Fernando Pedreira / 12 de março de 1925).(2) Meu Irmão, me mande dizer quando fôr para as Mis-sões; tenho rezado tanto por si! (Maria Leonor / 22 de agosto de 1920).

O exemplo em (1), apesar de estar precedido por uma vírgu-la, foi interpretado como início absoluto de sentença, mas conside-ramos que seja uma sentença ambígua, podendo ser interpretada também como uma coordenada assindética. E o exemplo em (2), localizado no grupo dos verbos causativos e perceptivos, apesar de também ter recebido a interpretação de início absoluto, é antecedi-do por um vocativo, o que faz com que a próclise não seja percebida como um desvio das normas gramaticais.

Com relação ao contexto com verbo em início de oração, a ênclise a V2 também teve o percentual mais alto (57%), como se pode ver na Tabela 3.

Tabela 3 – Distribuição das formas complexas em contexto de V1 em início de oração

V1 cl-V1 V2 V1-cl V2 V1 cl-V2 V1 V2-cl Tot.

Verbos auxiliares 0 - 3 75% 1 25% 0 - 4

Construções de

reestruturação0 - 0 - 2 12% 14 88% 16

Verbos causativos

e perceptivos2 29% 3 43% 0 - 2 29% 7

V1 Prep. V2 0 - 0 - 1 100% 0 - 1

Total 2 7% 6 21% 4 14% 16 57% 28

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Com verbos auxiliares, as ocorrências foram somente para as posições V1-cl V2 (75%) e V1 cl V2 (25%). Nas construções de re-estruturação, o clítico manteve-se ligado a V2, com próclise (12%) e ênclise (88%). E, para as construções com verbos causativos e per-ceptivos, houve 43% de ênclise a V1, 29% de ênclise a V2, mas tam-bém houve 2 dados com subida de clíticos, mostrados nos exemplos (3) e (4).

(3) Se souber bem me mande dizer: penso dos primeiros

Votos (Maria Leonor / 02 de abril de 1925).

(4) Mas experimentarei te fazer comprehender a minha

preocupação de mãe, christãe Religiosa, para que me pro-

mettas observar minuciosamente os conselhos que te peço

licença de te apresentar meu filho querido pois só você me

deixa dar (Zélia Pedreira / 06 de julho de 1919).

Em (3), há um exemplo de início de oração antecedida por uma subordinada e, em (4), há outro caso que foi codificado como início de oração, que são as subordinadas reduzidas de infinitivo ou gerúndio. Nesse tipo de construção a próclise não é esperada para o PE, mas é possível no PB porque o clítico é objeto do primeiro verbo.

A posição dos clíticos em contexto XVEm presença de um elemento não operador de próclise (seja

SN sujeito, sujeito pronominal, sintagma preposicional, advérbio não modal ou oração intercalada), como mostra a Tabela 4, há um total de 141 dados distribuídos em 5% de ênclise a V1, 33% de ên-clise a V2, 38% de próclise a V1 e 24% de próclise a V2. Nesse con-

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texto sintático, se o missivista estivesse optando pela gramática3 do PE, seria esperado que encontrássemos ênclise ou a V1 ou a V2, exceto nos casos em que o segundo verbo está no particípio, o que tornaria a ênclise a V1 a única opção.

Tabela 4 – Distribuição das formas complexas em contexto de variação

XV cl-V1 V2 V1-cl V2 V1 cl-V2 V1 V2-cl Tot.

Verbos auxiliares 22 67% 3 9% 7 21% 1 3% 33

Construções de reestruturação

10 14% 1 1% 20 28% 40 56% 71

Verbos causativos e perceptivos

16 73% 3 14% 2 9% 1 5% 22

V1 Prep. V2 5 33% 0 - 5 33% 5 33% 15

Total 53 38% 7 5% 34 24% 47 33% 141

A estrutura cl-V1 V2 é majoritária e, ao olharmos para os ti-pos de construção, observamos que a subida de clítico está presente em todas elas, como mostram os exemplos (5), em construção com verbo auxiliar, (6), em construção de reestruturação, (7), em construção com verbo causativo, e (8), em construção V1 preposição V2.

(5) Nossas irmãesme têm escripto (Fernando Pedreira /

22 de setembro de 1924).

3 Consideramos que o missivista pode utilizar construções linguísticas pertencentes a dife-rentes gramáticas na escrita. Em muitos casos, o uso pode refletir o padrão normativo em vigor no período ou o do período anterior e, em outros, pode refletir a gramática internalizada do indivíduo.

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(6) Mas, com isto eu lhe quero provar que de todas as

mágoas e humilhações com que Nosso Senhor por meio

do meu pobre Instituto me envia a unica que me faz sofrer

um pouco é essa falta de confiança da parte das Superioras

nas minhas relações ou saídas (Maria Joana / 20 de feve-

reiro de 1943).

(7) ellanos mandou dizer que pensava em voltar no dia

6 deste mas não sei se será certo (Maria Amália / 01 de

agosto de 1909).

(8) Deosme hade dar forças (João Pedreira / 08 de no-

vembro de 1878).

Se considerarmos as estruturas com auxiliares, temos clara-

mente mais exemplos de próclises seja a V1 (67%) ou a V2 (21%).

O caso da próclise ao primeiro verbo diante de elemento não atra-

tor pode ser associado à gramática do PM, e o caso de próclise a

V2 pode ser associado à gramática do PB em todos os tipos de cons-

trução analisados. Com construções de reestruturação, os clíticos

apresentaram taxas maiores de adjunção ao segundo verbo, seja

em próclise (28%) ou em ênclise (56%). Com verbos causativos e

perceptivos, o percentual foi maior para a próclise a V1 (73%), o

que não surpreende nesse tipo de construção por ser o pronome

um argumento do primeiro verbo, estando impossibilitado, em al-

guns casos, de aparecer ligado ao segundo verbo. Nesse caso, pode

haver próclise a V1 sem que isso seja atribuído a uma gramática

mais conservadora e, sim, ao próprio PB. Nessa construção, foram

encontrados 3 casos de adjunção do clítico a V2, o que apresento a

seguir nos exemplos (9) – (11):

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Um estudo da ordem dos clíticos em formas complexas como evidência de mudança sintática no português

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(9) O Reitor do Seminario daqui Padre João Aristides Re-

zende, mandou compral-o logo que vio o annuncio (Ma-

ria Elisa / 29 de junho de 1922).

(10) Jane mandou me pedir que fizesse Jeronymo ir a

Buenos Aires, mas nem me atrevo (Maria Elisa / 01 de ja-

neiro de 1920).

(11) Titia Mimi mandou me dizer que titia Maria There-

za estava muito mal, e depois não soube mais nada (Maria

Elisa / 01 de janeiro de 1920).

Em (9), o clítico era objeto do segundo verbo, não poden-

do estar cliticizado ao primeiro e, em (10) e (11), para a codifica-

ção, utilizei como critério a ausência de hífen, mas a interpretação

é ambígua. E, por último, ainda na Tabela 5, em complexo verbal

em que os dois verbos estão separados por uma preposição, o pro-

nome se realizou ligado a V1, em próclise (33%), como mostra o

exemplo (8), ou ligado a V2 em próclise e ênclise na mesma pro-

porção de 33%, sendo a maioria dos casos com a estrutura haver

de + infinitivo.

A posição dos clíticos com formas nominais (preposição + infinitivo)

Nesse contexto, em que o complexo verbal está precedi-

do por uma preposição, o infinitivo é a forma do primeiro verbo,

enquanto o segundo pode estar no infinitivo, no particípio ou no

gerúndio. Com um total de 22 dados, há 6% de ênclise a V1 e 41%

a V2; 20% de próclise a V1 e 33% a V2, ou seja, os percentuais são

maiores para a cliticização do pronome ao segundo verbo.

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Tabela 5 – Distribuição das formas complexas com formas nominais

Preposição +

infinitivocl-V1 V2 V1-cl V2 V1 cl-V2 V1 V2-cl Tot.

Verbos auxiliares 4 80% 1 20% 0 - 0 - 5

Construções de

reestruturação1 9% 1 9% 4 36% 5 45% 11

Verbos causativos

e perceptivos2 40% 0 - 2 40% 1 20% 5

V1 Prep. V2 0 - 0 - 0 - 1 100% 1

Total 7 20% 2 6% 6 33% 7 41% 22

Com verbos auxiliares, o pronome foi realizado majorita-

riamente junto ao primeiro verbo, tendo 1 dado de ênclise, como o

exemplo (12) mostra.

(12) Muito haveria que dizer si te quizesse contar porme-

norizadamente as minhas ferias, estudos, etc, mas além de

não podel-o fazer hoje, são cousas que conheces bastante

por tel-as experimentado antes de mim (Fernando Pe-

dreira / 13 de novembro de 1921).

Nas construções de reestruturação, apesar de estar majori-

tariamente ligado a V2, o pronome também aparece ligado ao pri-

meiro verbo do complexo, como mostra o exemplo (13):

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(13) Queria ter certeza de podel-a fazer (Fernando Pe-

dreira / 23 de outubro de 1922).

Com verbos causativos, houve 40% de próclise a V1, 40% de próclise a V2 e 20% de ênclise a V2, como mostrado em (14 – 15).

(14) Um outro motivo que tambem me faz dirigir-lhe esta

é para lhe fazer participar duma grande consolação que

Nosso Senhor nos concedeu (Maria Amália / 01 de agosto

de 1909).

(15) Agora já é tarde para ellamandar me dizer onde a

deixou tão bem guardada (João Pedreira / 30 de agosto de

1885).

E no contexto de V1 Preposição V2, só houve um exemplo e o pronome foi realizado enclítico a V2, como se pode ver em (16).

(16) Aproveito de alguns minutos que tenho antes da pri-

meira aula para começar a responder-te (Fernando Pe-

dreira / 04 de junho de 1923).

Apesar de os dados serem poucos para formas complexas antecedidas por preposição, pudemos observar grande variação do posicionamento dos clíticos, como atestado nos outros con-textos sintáticos, sendo a construção com verbo auxiliar aquela que mais permite a adjunção do pronome a V1 e a construção de reestruturação aquela que mais favorece a realização do clítico junto a V2.

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A posição dos clíticos com operador de prócliseDiante de operador de próclise, num total de 210 dados, as

posições preferidas para os pronomes são a proclítica ao primeiro verbo do complexo verbal (cl-V1 V2), com 60%, ou a enclítica ao se-gundo verbo (V1 V2-cl), com 24%, comportamento já esperado em função da presença de um operador. No entanto, também houve a realização de próclise ao segundo verbo, com 14% de frequência, e 1% de ênclise ao primeiro verbo.

Tabela 6 – Distribuição das formas complexas diante de operador de próclise

Operador cl-V1 V2 V1-cl V2 V1 cl-V2 V1 V2-cl Tot.

Verbos auxiliares 49 92% 0 - 3 6% 1 2% 53

Construções de

reestruturação57 45% 3 2% 20 16% 46 37% 126

Verbos causativos

e perceptivos17 100% 0 - 0 - 0 - 17

V1 Prep. V2 4 29% 0 - 6 43% 4 29% 14

Total 127 60% 3 1% 29 14% 51 24% 210

Em construções com verbos auxiliares, encontramos a ocorrência majoritária da próclise a V1 (92%), mas também foram encontradas 2% de ênclise a V2 e 6% de próclise a V2. Nas constru-ções de reestruturação, o pronome foi realizado em todas as posi-ções possíveis no complexo verbal, tendo destaque nos próximos

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exemplos o padrão V1-cl V2, em (17), em desacordo com a gramá-tica do português europeu quando o verbo está precedido por ope-rador de próclise, e o padrão V1 cl V2, em (18), um padrão do PB.

(17) [...] e entre os soffrimentos, para os Religiosos, creio

que quasi sempre deve se pôr em primeiro lugar as deso-

lações (Fernando Pedreira / 27 de junho de 1926).

(18) Tudo isto posso te dizer em segredo porque quero

mesmo que saibas que tenho licença... (Maria Joana / 27

de abril de 1920).

Ao olharmos para as outras estruturas verbais, chama a atenção que há variação em todos os tipos de construção, exceto para aquelas formadas com verbos causativos e perceptivos que apresentaram próclise categórica a V1. E, com V1 preposição V2, os resultados mostraram 29% de frequência para a estrutura cl-V1 V2, 43% para a estrutura V1 cl V2 e 29% para a estrutura V1 V2-cl. Os exemplos para esse contexto podem ser vistos em (19) e (20).

(19) [...] mas Bebê me aconselhou a mandar logo o artigo,

certo de que o has de aprovar (Fernando Pedreira / 28 de

março de 1923).

(20) Quanto às ferias, não sei ainda onde hei de passal-as

(Fernando Pedreira / 04 de junho de 1923).

Em resumo, em presença de operadores de próclise, o com-plexo cl-V1 V2 foi o que apresentou maiores taxas, independen-temente do tipo de construção verbal. Se, geralmente, nas formas simples ficamos na dúvida em dizer que o operador de próclise

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está atuando na escrita dos brasileiros uma vez que a próclise é a posição mais encontrada, os resultados para as formas complexas parecem trazer mais evidências de que sim, sobretudo em determi-nadas construções. Nesse contexto, considerando a colocação pro-nominal das gramáticas do PM, do PE e do PB, a única posição não esperada era V1-cl V2, em que o pronome também foi realizado, ainda que com pouquíssimos dados. Outro comportamento tam-bém importante é o da realização dos pronomes proclíticos a V2, o que, seguindo a linha de alguns estudos anteriores sobre colocação pronominal, associamos à gramática do português brasileiro.

Considerações finaisOs resultados apresentados mostram a variação presente

nos quatro padrões de colocação pronominal: cl-V1 V2, V1-cl V2, V1 cl V2 e V1 V2-cl, mas vimos também que não houve variação generalizada se considerarmos a divisão feita por tipo de estrutu-ra verbal e contexto anterior. Por exemplo: na estrutura (a) verbo preposição verbo, o pronome apareceu categoricamente ligado a V2 nos contextos de V1 em início absoluto ou início de oração e no contexto em que o complexo estava precedido por uma preposição; (b) em construções de reestruturação, o pronome esteve categori-camente relacionado a V2 quando o contexto era de V1 em início de oração; (c) com verbos auxiliares, o pronome só se realizou junto ao primeiro verbo (V1) em contexto de preposição antecedendo o complexo verbal; e (d) com verbos causativos e perceptivos, o clíti-co só se adjungiu ao primeiro verbo diante de operador enquanto houve variação para as outras estruturas.

Outro ponto importante a ser colocado é que a análise das estruturas tendo em conta o elemento anterior ao verbo parece nos

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levar ao estabelecimento de um padrão dentro das formas comple-xas: de modo geral, encontramos um comportamento semelhante na colocação dos pronomes para estruturas com verbos auxiliares e com verbos causativos e perceptivos em que o pronome mais fre-quentemente aparece unido a V1, enquanto também se assemelha o comportamento dos verbos que participam de construções de reestruturação com aqueles das construções verbo preposição ver-bo, em que o pronome geralmente se cliticiza a V2. Com tudo isso, chegamos à conclusão de que as formas complexas não deixam dú-vidas da presença de mais de um padrão sintático de ordenação dos clíticos presentes nas cartas que constituem o corpus. Ao PB, está sendo associado o padrão V1 cl V2. Com verbos auxiliares de tem-pos compostos também não são esperadas as quatro posições caso o segundo verbo esteja no particípio, mas a estrutura V1 cl V2, com V2 no infinitivo, gerúndio e particípio, foi encontrada em todos os tipos de construção e em quase todos os contextos sintáticos. Ao PM, está sendo associado o padrão cl-V1 V2 sem presença de ele-mentos proclisadores e, ao PE, estão sendo associadas as maiores frequências do padrão V1 V2-cl, uma vez que já dissemos que no PM o clítico se ligava preferencialmente a V1.

Mostrar toda essa divisão é muito relevante porque, no caso das construções com verbos causativos e perceptivos, não há a possibilidade de o clítico aparecer nas quatro posições, o que revela a necessidade de separar esse tipo de construção antes da análise porque a estrutura cl-V1 V2, nesse caso, pode não evidenciar uma gramática do PM ou do PE porque é uma possibilidade no PB.

Com tudo isso, pudemos mostrar que a gramática que aqui chegou através dos falares vindos com os portugueses não é mais a mesma encontrada nos textos brasileiros já do século XIX, tam-

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pouco nos pertence uma gramática que se origina do PE contempo-râneo. Os padrões de colocação pronominal encontrados indiciam diferentes gramáticas refletidas na escrita de missivistas cultos que escrevem entre os séculos XIX e XX. Tanto na gramática do PM, quanto na gramática do PE, havia padrões de colocação pronominal para as formas complexas que se diferenciavam: enquanto o PM aceitava o padrão X cl-V1 V2 em contexto de verbo antecedido por elemento não proclisador, o PE manteve-se enclítico, só aceitando o mesmo padrão de colocação pronominal diante de operador de próclise e permitindo que, ainda nesse contexto, houvesse ênclise a V2. Por outro lado, a mudança sintática que culminou no PB fez com que, nessa gramática, não fosse mais possível ao mesmo tem-po que o pronome átono pode estar proclítico a V2 independente-mente da forma verbal, o que são traços diferenciadores das duas gramáticas citadas.

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Resumo

Este trabalho apresenta um estudo da ordem dos clíticos em car-tas pessoais trocadas entre membros da família Pedreira Ferraz – Abreu Magalhães, nascidos ao longo do século XIX. Nosso objetivo é, portanto, utilizando uma metodologia quantitativa para a análise de dados, mostrar a mudança sintática no português do Brasil que se expressa na colocação pronominal das formas complexas e que difere do que temos encontra-do em outras gramáticas do português. Os resultados encontrados, em síntese, nos permitem antecipar algumas generalizações: 1) há diferentes padrões sintáticos associados às gramáticas do PB (V1 cl V2), do PE (V1 V2-cl) e do PM (X cl V1 V2, sendo X elemento não proclisador) em compe-tição na escrita do período em estudo, como apontam trabalhos anterio-res (Martins: 1994; Brito, Duarte e Matos: 2003; Duarte e Pagotto: 2005 e Cavalcante, Duarte e Pagotto: 2011) e 2) as construções com verbos cau-sativos e perceptivos devem ser separadas na amostra, pois não permitem a realização do clítico nas quatro posições, revelando a possibilidade de a estrutura cl-V1 V2 pertencer ao PB e não ao PM ou PE. Palavras-chave: mudança sintática; clíticos; formas complexas; PB; PE; PM.

Abstract

This work presents a study of the clitics order in personal letters exchanged among members of the Pedreira Ferraz’s family – Abreu Magalhães, born during the 19th century. Our objective is, therefore to use a quantitative methodology for data analysis, to show the syntactic change in Brazilian Portuguese that is expressed in the pronominal placement of complex forms and that differs from what we have found in other portuguese grammar. The results obtained, in summary, allow us to anticipate some generalizations: 1) there are different syntactic patterns associated to the grammars of PB (V1 cl V2), of PE (V1 V2-cl) and of PM (X cl V1 V2, being X element not attractor) in competition in the writing

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of the period under study, as pointed out by previous works (Martins: 1994; Brito, Duarte e Matos: 2003; Duarte e Pagotto: 2005 e Cavalcante, Duarte e Pagotto: 2011); 2) the causative construction with and perceptive verbs must be separated in the sample, as they do not allow the clitic to be performed in four positions, revealing the possibility that the cl-V1 V2 structure belongs to PB and not to PM or PE.Keywords: syntacticchange; clitics; complexforms; BP; EP; MP.

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Quadro de pronomes pessoais na escola – diagnose e proposta pedagógica: breve apresentação de

uma pesquisa de mestrado

Monique Débora Alves de Oliveira Lima*

No âmbito da disciplina de Língua Portuguesa, ainda há muita distância entre o que é proposto científica e oficialmente para o ensino e o que efetivamente é ensinado (Barbosa: 2015). Em função dos diversos desafios concernentes às avaliações ex-ternas, principalmente na esfera das escolas públicas municipais do Rio de Janeiro, nas quais há provas bimestrais aplicadas a toda rede, cujo objetivo é avaliar os alunos quantos aos descritores es-tabelecidos para o ensino, os professores carecem de materiais que sigam as orientações dispostas nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de modo mais aprofundado.1 Na falta desses, recorrem a materiais ou livros didáticos oferecidos pelas instân-cias de Educação, que, de maneira geral, ainda não trabalham apropriadamente a relação entre gramática, variação linguística e competência de leitura.

Nesse contexto, a pesquisa de mestrado (Lima: 2017) que, neste artigo, apresenta-se brevemente buscou (i) descrever os da-

* Mestre em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde atualmente faz doutorado.

1 No caso da disciplina de língua portuguesa, os descritores estabelecidos para o ensino espelham-se nos mesmos que norteiam a Prova Brasil (avaliação de âmbito nacional), e os materiais disponibilizados para a rede municipal do Rio de Janeiro são compostos por apostilas bimestrais, cujo conteúdo é organizado em torno de tais descritores.

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Monique Débora Alves de Oliveira Lima

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dos de uma amostra específica da realização pronominal dos alunos de uma escola municipal, considerando as funções de nominativo de 1ª pessoa do plural e de 2ª pessoa do singular e de acusativo, dativo e reflexivo de 1ª pessoa do plural, 2ª pessoa do singular e 3ª pessoa do singular e do plural, e (ii) apresentar uma proposta pe-dagógica, em formato de estudo dirigido, para o ensino do quadro pronominal da variedade carioca a partir da descrição realizada, utilizando-se da proposta de três eixos para o ensino de gramática (Vieira: 2014; 2017).

Tomam-se como pressupostos teóricos a Teoria da Varia-ção e Mudança (Weinreich, Labov e Herzog: 2006; Labov: 2008), que estabelece como prioritária a relação entre língua e sociedade, através do estudo da estrutura e da mudança linguísticas dentro do contexto social da comunidade de fala, e também as contribuições da chamada Sociolinguística Educacional, proposta por Bortoni--Ricardo (2005) e assumida por outros pesquisadores, que une os pressupostos da Teoria da Variação e Mudança aos objetivos esta-belecidos para o ensino de língua materna.

Uma vez que o tema estudado tem sido alvo de ampla dis-cussão, a contribuição deste trabalho para a área consiste em privi-legiar uma proposta de ensino, desenvolvida a partir da descrição dos dados de uma amostra selecionada. Este estudo buscou, dessa maneira, oferecer aos docentes informações que possam funda-mentar as diretrizes teórico-metodológicas quanto ao ensino do quadro pronominal nas aulas de língua portuguesa. O interesse pelo contexto escolar dialoga com trabalhos anteriores, que tam-bém consideram importante atrelar a pesquisa acadêmica ao en-sino em países como o Brasil, em que a norma adotada pela escola se encontra distante da norma praticada em situações cotidianas,

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Quadro de pronomes pessoais na escola – diagnose e proposta pedagógica: breve apresentação de uma pesquisa de mestrado

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principalmente em função de razões sócio-históricas referentes ao processo de padronização2 ocorrido aqui.

Para fins de organização da leitura, expõe-se a estrutura deste trabalho. Após essa introdução, a segunda seção traz o emba-samento teórico que possibilitou esta investigação. A seguir, apre-sentam-se a metodologia e os resultados da diagnose, seguidos da metodologia e da justificativa da proposta pedagógica. Em seguida, são expostas partes da proposta antes das considerações finais.

Embasamento teóricoEste estudo segue orientações teórico-metodológicas da

Sociolinguística Laboviana, a Teoria da Variação e Mudança (Wein-reich, Labov e Herzog: 2006; Labov: 2008). Dentre os princípios propostos, esta pesquisa se desenvolveu a partir da noção de hete-rogeneidade e sistematicidade da língua, da relação existente entre variação e mudança, do conceito de regra variável e das orientações metodológicas acerca do tamanho e da estratificação da amostra.

Em maior ou menor medida, este estudo relaciona-se à resolução dos chamados problemas da mudança (fatores condi-cionadores ou restrições, transição, encaixamento, avaliação e im-plementação), tais quais propostos no texto fundador dessa área científica, dentre os quais se destaca o das restrições e da avalia-ção. Interessou descrever os fatores que exercem influência sobre o comportamento variável relativo ao quadro pronominal e a avalia-ção do prestígio dessas variantes no contexto escolar.

2 A esse respeito, é bastante interessante a leitura do artigo “Norma e condescendência; ciência e pureza”, de Emílio Pagotto, no qual o autor discute o processo de padronização da língua escrita, ocorrido no século XIX.

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Com relação ao tema em estudo, Duarte (2013) aponta que a expressão do nominativo de 1ª pessoa do plural pode ser realizada por meio de duas variantes: nós e a gente. O nominativo de 2ª pes-soa do singular também pode ser expresso por duas variantes lin-guísticas: tu e você. Quanto à retomada anafórica de acusativo/dati-vo, há o uso das variantes pronominais, considerando os pronomes clíticos e os lexicais, distribuídas da seguinte maneira: (i) nos, nós, a gente/nos, (a/para) nós, (a/para) a gente para a 1ª pessoa do plural; (ii) te, lhe, o, a, se, tu, você/te, lhe, (a/para) você para a 2ª pessoa do singular; e (iii) o, os, a, as, se, ele, eles, ela, elas/lhe, lhes, (a/para) ele, eles, ela, elas para 3ª pessoa do singular e do plural. Especificamente em relação ao acusativo e dativo de 3ª pessoa, além das variantes pronominais, outras estratégias são descritas pela literatura. Para o acusativo, há o pronome clítico, o pronome lexical, o sintagma nominal (SN) e objeto nulo. Já as do dativo são o pronome clítico, o sintagma preposicionado (SP) e o dativo nulo.

Quanto à fundamentação do tratamento da variação em contexto educacional, Bortoni-Ricardo (2005) trouxe contribuições relevantes. A autora sugere que a variação no PB seja analisada em três contínua, isto é, três linhas imaginárias nas quais se distribui-riam as variantes linguísticas de um polo a outro: o de urbanização (normas linguísticas das mais rurais às mais urbanas); o de oralida-de-letramento (polos que são constituídos pelas variantes utilizadas nas práticas sociais de fala e escrita); e o de monitoração estilística (variantes distribuídas de acordo com as situações interacionais, desde as mais espontâneas até as de maior planejamento prévio).

Ainda em relação à fundamentação teórica, o modelo de en-sino de Língua Portuguesa em três eixos proposto por Vieira (2014; 2017) surgiu como uma tentativa de contribuir para uma solução

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do desafio de trabalhar com a língua materna nas escolas, sem des-prezar as diversas frentes de atuação, todas igualmente pertinentes.

Com relação ao primeiro eixo, referente a uma abordagem reflexiva da gramática, a autora destaca os postulados de Franchi (2006) acerca das atividades relacionadas ao ensino da língua. Para o autor, as atividades com o componente gramatical, no âmbito es-colar, devem ser de três naturezas, a saber: linguística, epilinguística e metalinguística. Franchi concebe o ensino de gramática, portanto, como uma atividade que possa privilegiar a reflexão, permitindo que os alunos testem possibilidades, modifiquem termos, fazendo uso da criatividade. Todos esses atributos do ensino de gramática podem ser explorados a partir dos três tipos de atividades propostos pelo au-tor. Com o intuito de defender a ideia de que o trabalho com o com-ponente gramatical precisa ser reflexivo, Vieira (2014; 2017) ainda se fundamenta nas propostas de Foltran (2013) e Costa (2013).

Para a formulação do segundo eixo, que se refere ao estudo de gramática e produção de sentidos, Vieira toma por base as pro-postas de Neves (2006) e Pauliukonis (2011). Na perspectiva discur-sivo-funcional, Neves aponta que o ensino de gramática partiria da abordagem de quatro grandes áreas, a saber: (i) a predicação; (ii) a criação da rede referencial; (iii) a modalização; e (iv) a conexão de sig-nificados, formação de enunciados complexos. Já na área da Análise Semiolinguística do Discurso, Pauliukonis assume uma concepção discursiva da unidade textual, segundo a qual se evidencia a relevân-cia da gramática para a codificação de sentidos. A partir da síntese panorâmica dessas duas propostas expostas, Vieira reafirma “a dese-jável articulação entre ensino de gramática e as atividades de leitura e produção de textos” (2017, 92), realizada pelos elementos grama-ticais, em processos distintos, que vão desde a seleção dos vocábulos formais até a construção e inter-relação de períodos.

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O terceiro eixo, referente ao estudo de gramática e variação/normas linguísticas, mostra que a variação linguística está intrinse-camente relacionada ao trabalho com atividades reflexivas e com a construção de sentidos do texto. Em linhas gerais, Vieira postula que o trabalho com a variação linguística deve eleger como referência o ensino das estruturas linguísticas que pertencem às normas/varie-dades efetivamente praticadas pelos indivíduos escolarizados, ou seja, variedades cultas, representadas na fala e na escrita brasileiras. A partir desse ponto norteador, deve-se, então, fazer a comparação da proximidade ou distância dessas normas em relação (i) às outras já dominadas pelos alunos no período pré-escolar, (ii) às outras nor-mas apresentadas pelos materiais trabalhados nas aulas de língua portuguesa, e (iii) às normas idealizadas, que podem registrar for-mas arcaizantes e até extintas da fala e da escrita contemporâneas.

Outro estudo que também fundamenta este trabalho é o de Barbosa (2007). O autor postula que três saberes devem estar envolvidos no tratamento dos fatos gramaticais, por parte dos pro-fessores de língua materna, quais sejam: (i) o “saber linguístico da norma vernácula de uso do falante, aquilo que, para além da compe-tência linguística inata, é compartilhado por sua comunidade ou re-gião”; (ii) o “saber linguístico descritivo/prescritivo partilhado por todo o Ocidente, atingido direta ou indiretamente pelos modelos greco-romanos de gramáticas”; e (iii) o saber “recebido nos cur-sos de graduação por ocasião do estudo de diferentes linhas de gramática descritivo-científicas – estruturalistas, funcionalis-tas, gerativistas, dentre outras – ou ainda de abordagem de foco na interação ou no discurso” (Barbosa: 2007, 37-40).

Ainda refletindo sobre questões relacionadas ao ensino, Barbosa (2015) prioriza a relevância do trabalho com a variação linguística no âmbito da formação dos professores de língua ma-

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terna. O autor questiona a falta de materiais didáticos reflexivos, disponibilizados para o professor recém-formado. De acordo com o pesquisador, compete a essa geração a disponibilização de “ma-teriais didáticos com boas reduções das descrições, análises e re-flexões sobre os fatos da língua, suas multidimensões discursivas, sociais e propriedades gramaticais” (Barbosa: 2015,260).

Metodologia e resultados da diagnoseNo intuito de realizar a investigação sobre o uso do qua-

dro pronominal por alunos de uma escola municipal da cidade do Rio de Janeiro, foram necessários alguns procedimentos. Primei-ramente, foi constituído um corpus de 201 redações escolares, pro-duzidas por alunos de 6º e 9º anos, no primeiro e quarto bimestres do ano letivo. Uma vez levantadas as ocorrências pronominais no corpus, procedeu-se à análise da distribuição pronominal nas qua-tro funções escolhidas previamente.

Percebeu-se que o número de dados era, como se supôs, desigual para cada contexto linguístico, o que inviabilizou o trata-mento do mesmo modo para cada função analisada. Os dados de acusativo anafórico de 3ª pessoa (“Garfield então, encontrou uma loja onde vendia lasanha. Garfield comeu lasanha até encher”)3 su-peraram em número as ocorrências das demais funções. Essa dife-rença quantitativa era esperada nesta investigação, uma vez que o modo de organização do discurso solicitado nas produções textuais – narrativa em 3ª pessoa – favorece a presença de dados anafóricos

de 3ª pessoa.

3 Na transcrição dos dados, foram respeitadas a ortografia e a pontuação utilizadas pelos alunos nas produções textuais analisadas.

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Dessa maneira, foi realizada também uma análise quanti-

tativa, com base em rodadas multivariadas no programa de esta-

tística Goldvarb X, para o tratamento do acusativo anafórico de 3ª

pessoa. Para as demais variáveis linguísticas em estudo, cujo nú-

mero de ocorrências não permitia igual tratamento, a descrição foi

baseada apenas nas frequências, acompanhada da observação do

comportamento das ocorrências dos fenômenos em estudo.

Uma vez realizada essa diagnose panorâmica, foram iden-

tificadas as variantes utilizadas pelos estudantes da escola em

questão.4 e modo geral, na escrita dos alunos, houve um comporta-

mento semelhante ao que ocorre na modalidade oral em relação ao

nominativo de 1ª pessoa do plural e 2ª pessoa do singular, ao acu-

sativo e dativo de 1ª e 2ª pessoas e também ao reflexivo de todas

as pessoas. Quanto ao acusativo e dativo anafórico de 3ª pessoa,

foram encontrados alguns usos mais próximos do que era previsto

para a modalidade escrita, com o uso da variante-padrão. No caso

desse dativo, mesmo com a frequência de uso baixa, houve ocorrên-

cias do pronome clítico lhe.

Especificamente em relação ao acusativo anafórico de 3ª

pessoa, função que apresentou maior frequência de ocorrências, foi

possível observar alguns condicionamentos para esses usos. Como

era previsto, há maior frequência das formas neutras – SNs (50,3%)

e objetos nulos (10,1%) – no corpus analisado, chegando a um total

de 60,4%. Isso corrobora resultados de pesquisas anteriores, que

4 Não cabe, no contexto da presente publicação, o detalhamento das variantes encontradas em todos os contextos analisados na pesquisa. Sugere-se, para informações mais específicas, uma consulta à dissertação em questão.

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encontraram mais ocorrências também dessas formas, conhecidas

como estratégia de esquiva (Duarte: 2013).

Chamou a atenção, como nas pesquisas anteriores, a

influência da escolarização para o aumento gradativo de usos

da variante-padrão (clítico acusativo). Ao comparar a frequên-

cia de uso dessa variante entre as turmas de 6° (10,1%) e 9°

(28,8%) anos do ensino fundamental, a análise revelou que, en-

tre os alunos deste último grupo, houve um aumento de ocor-

rências do clítico acusativo. O processo relativamente inverso

ocorreu em relação ao uso do pronome lexical: os alunos do

9° ano apresentaram menor frequência dessa variante. Ainda

de acordo com pesquisas anteriores (Averbug: 2000; Santana:

2016; entre outros), essa inversão é resultado do processo de

escolarização e ocorre justamente nesse ano escolar.

Infelizmente, em relação ao quadro pronominal do PB,

ainda há uma ausência de correlação entre a descrição linguís-

tica e o ensino de língua materna. O sistema tradicional de pro-

nomes pessoais, constituído pelas formas nominativas eu, tu,

ele(a), nós, vós, ele/a(s) e seus correlatos nas outras funções,

ainda não trata das formas pronominais efetivamente pratica-

das pelos alunos na escrita escolar e que figuram em diversos

gêneros textuais, da fala e da escrita. Acredita-se, nesta pes-

quisa, que a escola exerce um papel importante na conscienti-

zação dos usos das diversas variantes linguísticas, sejam elas

estigmatizadas ou prestigiadas. Isso fundamenta a importância

do desenvolvimento de materiais que trabalhem essas questões

nas aulas de língua portuguesa.

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Justificativa e direcionamento metodológico para elaboração da proposta pedagógica

Uma das justificativas para a elaboração de uma proposta

pedagógica voltada para o ensino do quadro de pronomes pessoais

vem das considerações realizadas por Barbosa (2015) sobre a ne-

cessidade da criação, pela presente geração, de materiais didáticos

que possibilitem a reflexão sobre a língua, considerando os saberes

que os alunos já apresentam sobre o vernáculo, os saberes descri-

tos/prescritos pelas gramáticas normativas e também os saberes

descritos pelas pesquisas linguísticas (Barbosa: 2007).

Assim como adotado por Souza (2014), a elaboração da

proposta pedagógica de ensino do quadro pronominal partiu da

aborda gem do componente gramatical através de atividades lin-

guísticas, epilinguísticas e metalinguísticas, relacionadas ao ensino

de gramática em três eixos (Vieira: 2014; 2017).

Primeiramente, definiu-se que as atividades levariam

os alunos ao reconhecimento das formas pronominais em uso

efetivo, tanto na fala quanto na escrita do PB, privilegiando-se,

como ponto de partida, o comportamento linguístico da varie-

dade carioca. A apresentação inicial de variantes que compõem

um quadro de pronomes pessoais no PB, dentro desta proposta

pedagógica, não tem por objetivo sistematizar a variação lin-

guística, o que será realizado mais adiante no material propos-

to. As duas primeiras partes cumprem o papel de diagnose dos

diversos usos. Além desse trabalho de mapeamento inicial, a

presente proposta também pretende levar o aluno à observação

dos pronomes em variação nas seguintes funções e pessoas: o

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sujeito de 1ª pessoa plural e 2ª pessoa singular e o objeto dire-

to e o indireto da 3ª pessoa. Essas pessoas e funções específi-

cas foram escolhidas por haver mais estudos linguísticos nesse

sentido, estudos que comprovam serem essas regras variáveis

relevantes para a promoção do domínio de normas em variados

gêneros textuais.

Para o desenvolvimento específico das atividades, foram

selecionados textos que serviriam a esse propósito. Determi-

nou-se que seriam utilizados alguns gêneros textuais específi-

cos das modalidades escrita e falada, tanto de registro formal

quanto de informal, nos quais haveria ocorrências das varian-

tes linguísticas em estudo. A seleção com base nesses critérios

justifica-se pela necessidade de trabalhar os contínuos de orali-

dade-letramento e de monitoração estilística.

Uma vez que a proposta foi desenvolvida para uma tur-

ma de 9° ano do ensino fundamental, convencionou-se que

seriam selecionados gêneros textuais cujas características os

alunos supostamente já conheciam. Em relação às 1ª e 2ª pes-

soas, gêneros com características dialógicas foram privilegia-

dos, uma vez que nesses textos apareceriam os pronomes da

interlocução. Quanto à terceira pessoa – que, a rigor, aparece

em todos os gêneros do discurso, por constituir o próprio ob-

jeto da enunciação –, foram selecionados alguns gêneros que

apareceram também para as demais pessoas, além de outros,

como contos e notícias. O quadro a seguir sintetiza os gêneros

textuais escolhidos para o trabalho com cada pessoa e função

específica.

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Função/Pessoa

1ª pessoa 2ª pessoa 3ª pessoa

Nomina-tiva

tirinha, poema, entrevista, coluna de jornal, termode esclarecimento

tirinha, anúncio, canção, entrevista

anúncio

Acusati-va tirinha

anúncio, canção, postagem5

reclamação de consumidor,notícia, conto, anedota, carta

tirinha tirinhatirinha, carta, conto

-6 - notícia

Quadro 1 – Os gêneros textuais distribuídos pelas funções estudadas no estudo dirigido

Partindo do pressuposto de que os alunos já estariam fami-liarizados com as características dos gêneros textuais escolhidos, explorar tais aspectos não foi objetivo primário do estudo dirigido elaborado. Portanto, para cada texto selecionado, nem sempre fo-ram privilegiadas questões formuladas exclusivamente para abor-dar a caracterização do gênero textual em si mesma. Justificado

5 Assume-se aqui que as postagens veiculadas nas redes sociais funcionam como gêneros textuais.

6 Para a função reflexiva de 1ª e 2ª pessoas, foram elaborados exercícios epilinguísticos em que os alunos utilizariam essas formas. Isso justifica ausência de gêneros textuais selecionados para essa função.

Reflexiva

Dativa

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esse item, assume-se aqui que, embora se objetive relacionar o quadro pronominal aos sentidos produzidos em textos (conforme eixo II), a abordagem dos textos selecionados, sempre consoante a construção indutiva e sistemática do conhecimento gramatical (conforme eixo I), privilegiará o eixo III, uma vez que se pretende, principalmente, apresentar as diferentes formas pronominais utili-zadas para todas as funções em estudo.

Convencionou-se, ainda, que a proposta seria desenvolvida para o 9° ano do ensino fundamental, pois se acredita que os alunos desse ano escolar têm mais conhecimento gramatical sistematizado, além da maior capacidade de abstração, importante para o estudo científico, para discutir o assunto de forma mais aprofundada. Além dos conhecimentos amplos sobre os gêneros textuais selecionados, pressupõe-se que esses alunos já tenham estudado, nos anos ante-riores, conceitos relativos à transitividade verbal, complementos verbais e também pronomes pessoais – para já reconhecerem algu-mas formas padronizadas apresentadas pela escola, principalmente os clíticos acusativo e dativo. Dessa forma, as questões formuladas em cada módulo também foram desenvolvidas sem o compromisso de ensinar a priori tais conceitos para os alunos. Assume-se aqui que, caso haja alguma dúvida em relação a essas definições, o pro-fessor poderá esclarecê-la no momento de aula.

Especificamente em relação a cada eixo de trabalho propos-to por Vieira, foram definidos os objetivos específicos que seriam privilegiados na proposta pedagógica. No que tange ao eixo I, o estudo dirigido propôs-se a ensinar o que é um pronome pessoal, levando em consideração três critérios para definição das classes gramaticais: semântico, morfológico e sintático (Pinilla: 2007). Quanto ao eixo II, pretendeu-se abordar as funções discursivas dos

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pronomes vinculadas aos textos, ou seja, o modo como essa catego-ria morfossintática contribui para a formação do sentido no texto, trabalhando interlocução e realizando retomadas anafóricas. Final-mente, no eixo III, almejou-se levar o aluno ao reconhecimento das diferentes variantes, pronominais ou não, utilizadas para a expres-são das funções em estudo.

Além da apresentação de todas as variantes, procurou-se, ainda, abordar, de forma mais aprofundada, o nominativo de 1ª pessoa do plural e de 2ª pessoa do singular e o acusativo e o da-tivo de 3ª pessoa. Essas escolhas quanto ao eixo III decorreram, sobretudo, dos resultados da diagnose realizada: trata-se, de um lado, de promover a ampliação do repertório de variantes, e, de outro, de trazer ao plano da consciência linguística o quadro pronominal mais amplo. No que diz respeito especificamente à ampliação do repertório de variantes, houve um trabalho cui-dadoso de apresentar, para cada função analisada, quais eram as variantes consideradas cultas ou de prestígio. Um exemplo disso é o trabalho com a função acusativa: a variante de prestí-gio (clítico acusativo) aparecia nos textos trabalhados. Ao final dessa parte, os alunos eram convidados a disponibilizar todas as formas estudadas em um continuum de oralidade- letramento e de monitoração estilística – isso poderia ajudar a trazer ao plano da consciência quais formas são estigmatizadas ou pres-tigiadas no quadro pronominal. Assim, cumpriram-se objetivos pedagógicos no plano não só da produção, mas também da re-cepção das variantes pronominais.

Quanto à organização da proposta pedagógica, deter-

minou-se que a mesma seria dividida em seis partes, denomi-

nadas módulos. O primeiro módulo trata dos pronomes-sujeito,

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no qual são levantadas as variantes pronominais que funcionam

como sujeito. Uma vez que o objetivo desse módulo é apenas o

reconhecimento de tais formas, não há necessidade de sistema-

tização da variação linguística nesse ponto do estudo dirigido.

Assim, ainda não há um trabalho específico em relação à variação

que ocorre nas formas nominativas de 1ª pessoa do plural e 2ª

pessoa do singular.

O segundo módulo trata exclusivamente das formas pro-

nominais que funcionam como objeto. Assim como no primeiro

módulo, esse ainda não era o momento reservado exclusivamente

ao eixo III, pois a preocupação primária era levar o aluno ao reco-

nhecimento dos pronomes-objeto. Para tanto, foram elaboradas

questões que, a partir da leitura de diferentes gêneros textuais

pré-selecionados, contribuíssem para o levantamento e reconheci-

mento dessas formas pronominais, utilizadas em diferentes con-

textos sócio-comunicativos.

A partir do terceiro módulo, inicia-se o tratamento mais di-

recionado ao eixo III, da variação linguística. Esse módulo retoma

o trabalho com as formas variantes da 1ª pessoa do plural, apenas

apresentado no primeiro módulo, mostrando o comportamento das

formas nós e a gente, a depender da modalidade linguística (oral ou

escrita) e também das situações de registro (formal ou informal). Há

de se convir que, em virtude da limitação de espaço no material, é

realizado um recorte em relação aos gêneros trabalhados, a partir

desse módulo. Como essa é uma proposta inicial, pressupõe-se que o

professor pode, no decorrer de outras aulas, ampliar o trabalho com

outros gêneros, através de pesquisas realizadas com os alunos. Já no

quarto módulo, propôs-se que o aluno estudasse a variação das for-

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mas tu e você, referentes à 2ª pessoa do singular, associadas também à variação que ocorre nas modalidades oral e escrita e no registro utilizado, formal ou informal.

O quinto módulo trata do objeto direto anafórico de 3ª pessoa e apresenta uma novidade em relação aos demais: além de estudar as formas pronominais o(s), a(s) e ele, também apresenta outras estratégias para a expressão dessa função, a saber, os SNs e também o objeto não expresso. O sexto módulo também traz outras estratégias, desta vez para a realização do dativo anafórico de 3ª pessoa: os SPs anafóricos e o objeto não expresso. Natural-mente, os alunos já utilizam essas estratégias não pronominais referentes tanto ao acusativo quanto ao dativo de 3ª pessoa. En-tretanto, muitos não têm consciência linguística disso, por nunca terem refletido sobre o assunto. Dessa maneira, nos dois últimos módulos, pretendeu-se ainda levar o aluno à reflexão linguística quanto às variantes utilizadas nessas duas funções em estudo, se-jam pronominais ou não.

Cabe esclarecer que, por razões externas à pesquisa, não foi possível a aplicação da proposta pedagógica em uma turma de alunos da rede pública municipal do Rio de Janeiro, já que a professora/pesquisadora não fazia mais parte do corpo docen-te da escola em questão ao final da pesquisa. Isso não impede, porém, que, futuramente, a proposta seja aplicada por outro professor da referida escola ou ainda em outra instituição de ensino.

A proposta pedagógica de ensino de quadro de pronomes pessoais

Nesta seção, discutem-se a metodologia e a elaboração do estudo dirigido desenvolvido no âmbito da pesquisa de mestrado.

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A seguir, são apresentados alguns trechos da referida proposta pe-

dagógica, a fim de exemplificar como foi realizado o trabalho com

cada eixo de ensino de gramática (Vieira: 2014; 2017).7

A questão ilustrada na figura 1 faz parte do Módulo I, que

trata dos pronomes- sujeito. Nela, a reflexão acerca dos pronomes

dá-se a partir de uma atividade epilinguística, na qual o estudante

tem a possibilidade de testar que outros pronomes da língua tam-

bém funcionam como sujeito. Esse tipo de atividade de substitui-

ção, proposta por Franchi (2006), promove a consciência acerca da

categoria morfológica que é o pronome.

Figura 1 – Eixo I: atividade epilinguística

7 A proposta pedagógica desenvolvida não pôde ser apresentada na íntegra neste texto, pois é muito extensa, não cabendo no espaço deste e-book. Assim, optou-se por apresentar apenas trechos ilustrativos do estudo dirigido, cuja versão completa está disponível em: <https://goo.gl/n6fRF2>.

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Já na questão da figura 2, também pertencente ao Módu-lo I, há um trabalho com o eixo II, da gramática como produção de sentidos, pois o aluno é levado a perceber que os pronomes são utilizados não somente para representar funções sintáticas, mas também para estabelecer relações de referência. A partir dos exercícios, posteriormente, os alunos puderam perceber que os pronomes apresentam duas características que contribuem para a produção de sentidos: (i) realizam a interlocução e (ii) realizam retomadas.

Figura 2 – Eixo II: pronomes estabelecendo interlocução

A fim de exemplificar o trabalho realizado com o eixo III, a figura 3 mostra uma questão desenvolvida no Módulo III (va-riação na 1ª pessoa do plural). Observe-se que o aluno é levado a refletir sobre a situação comunicativa do texto em estudo e tam-bém sobre que tipo de registro linguístico seria esperado nesse contexto.

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Figura 3 – Eixo III: uso dos pronomes em diferentes registros.

Além do trabalho com os três eixos de ensino de gramáti-ca, ainda há outras duas contribuições do material que precisam ser destacadas. A primeira foi a inserção de “Caixinhas do Conhe-cimento”, nas quais eram sistematizados os conteúdos trabalhados por módulo e também acrescentadas informações dem científica. A figura 4 ilustra uma dessas “caixinhas”.

Figura 4 – “Caixinha do conhecimento” sobre variação das estratégias de preenchimento do acusativo anafórico

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Já a segunda contribuição foi a elaboração de um espaço para pesquisa, a ser realizado sob supervisão do professor, no qual o aluno seria instigado a refletir sobre as formas variantes utiliza-das pelas pessoas de sua rede social. A figura 5 exemplifica a pro-posta do “Espaço da pesquisa”. Vale ressaltar que, após a apresenta-ção da motivação para a pesquisa, os alunos também são instruídos quanto à metodologia para a investigação.

Figura 5 – “Espaço da pesquisa” do Módulo I

Considerações finaisA investigação apresentada aqui trabalhou duas frentes

para cumprir os propósitos inicialmente estabelecidos, a saber: (i) a descrição de usos linguísticos em fase de aprendizagem escolar e (ii) a elaboração de atividades de caráter didático, acerca da varia-ção linguística implicada em tais usos. A diagnose realizada serviu para verificar aquilo que é praticado efetivamente pelos alunos da

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escola em questão. Esse mapeamento, por sua vez, tornou possível a elaboração de uma proposta pedagógica – apresentada em parte aqui – que abordasse as variantes do quadro pronominal, em suas diversas expressões na contemporaneidade, através da leitura de diversos gêneros textuais.

O desenvolvimento dessa proposta possibilitou a reflexão sobre a relevância de fazer com que os professores de língua mater-na tenham acesso a – e também elaborem – esse tipo de material. Assumindo a responsabilidade de criação de materiais didáticos, referida por Barbosa (2015), houve um cuidado com o recorte rea-lizado não somente quanto ao objeto de ensino – quais pessoas e funções – como também em relação à redução das descrições, análi-ses e reflexões, considerando o ano de escolaridade para o qual seria o estudo dirigido (9º ano). Acredita-se que o objetivo principal da proposta pedagógica de trabalhar o quadro de pronomes pessoais priorizando o eixo III, da variação linguística (Vieira: 2014; 2017), sem desconsiderar os eixos I e II, foi cumprido.

De todo modo, entende-se que a proposta elaborada cum-pre apenas parte dos objetivos da área – ensino de categorias mor-fossintáticas atrelado à percepção da variação linguística e da pro-dução de sentidos nos diferentes gêneros textuais – e não pode ser avaliada em relação a todos os desafios que a sala de aula precisa enfrentar. Assim, presume-se que, se houvesse aplicação e tempo para a autocrítica e posterior reformulação das atividades, mais re-flexões quanto às escolhas de abordagem do material seriam acres-centadas. Embora este trabalho, desenvolvido no âmbito do mes-trado, compreenda as alterações de algumas atividades tal como sugeridas pela banca, a proposta aqui apresentada segue aberta a críticas e futuras mudanças.

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Dessa maneira, espera-se que as experiências futuras e as críticas construtivas, mesmo no plano teórico, concorram para a melhoria do estudo dirigido ora apresentado em parte aqui. De fato, o que se elaborou até aqui constitui tão-somente a primeira experiência com a proposta desenvolvida, experiência que terá de enfrentar o desafio de se associar aos currículos trabalhados em cada realidade escolar – muitos deles organizados a partir de gê-neros – e às demais atividades da prática pedagógica, como, por exemplo, a produção textual.

Considerando essas questões, almeja-se que a proposta pe-dagógica desenvolvida no âmbito da pesquisa de mestrado e apre-sentada em parte aqui possa ser aplicada em salas de aula de escolas públicas, a fim de tornar o ensino sobre quadro pronominal mais fiel àquilo que de fato é praticado no PB em suas diversas expres-sões. Além disso, objetiva-se inspirar outros pesquisadores interes-sados na construção de uma pedagogia da variação linguística a de-senvolver mais propostas acerca de outros temas gramaticais ainda não explorados com base no modelo de ensino de gramática em três eixos (Vieira: 2014; 2017), respeitando, no que se refere ao eixo III, a complexidade dos contínuos de variação (Bortoni-Ricardo: 2005) e a convivência dos saberes linguísticos (Barbosa: 2007; 2015), do tradicional ao científico.

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Quadro de pronomes pessoais na escola – diagnose e proposta pedagógica: breve apresentação de uma pesquisa de mestrado

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Monique Débora Alves de Oliveira Lima

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Quadro de pronomes pessoais na escola – diagnose e proposta pedagógica: breve apresentação de uma pesquisa de mestrado

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Resumo

Este trabalho apresenta alguns resultados de uma investigação realizada no mestrado cujos objetivos foram (i) descrever e analisar as variantes pronominais utilizadas na escrita escolar para a expressão de algumas pessoas e funções pronominais por alunos de uma escola pública do município do Rio de Janeiro e (ii) elaborar uma proposta pedagógica visando a promover maior consciência linguística dos alunos acerca do fenômeno, a fim de ampliar seu repertório, para que sejam capazes de rea-lizar usos populares ou cultos, mais ou menos monitorados, de acordo com a situação de interação em que estejam inseridos. A referida proposta pedagógica – descrita de forma mais detalhada na dissertação em questão – foi idealizada a partir dos três eixos para o ensino de gramática (Vieira: 2014; 2017). Para a diagnose desses usos pronominais, foi realizada uma pesquisa de base sociolinguística, a fim de descrever quais contextos lin-guísticos e extralinguísticos poderiam condicionar o uso de uma ou outra variante. Já a elaboração da proposta pedagógica objetivou oferecer al-ternativas para o ensino do quadro pronominal que não estejam ligadas à mera apresentação de um quadro que não contemple a variação linguística no Português Brasileiro, como realizada pelos manuais didáticos. No con-texto desta publicação, será mais enfatizada a proposta pedagógica do que a diagnose, embora se saiba que não será possível apresentá-la na íntegra.Palavras-Chave: ensino de língua portuguesa; quadro pronominal; variação; atividades didáticas; morfossintaxe.

Abstract

This work presents some results of an investigation carried out in the master’s degree program whose objectives were (i) to describe and analyze thepronominal variants used in school writing for the expression of some persons and pronominal functions by students of a public school in the city of Rio de Janeiro; and (ii) to elaborate a pedagogical proposal to promote a greater linguistic awareness of the students about

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the phenomenon, in order to expand their repertoire, so that they are able to perform popular or educated uses, more or less monitored, in agreement with the situation of interaction in which they are inserted. This pedagogical proposal – described in more detail in the dissertation in question – was idealized from the three axes for the teaching of grammar (Vieira: 2014; 2017). For the diagnosis of these pronominal uses, a sociolinguistic research was conducted to describe which linguistic and extralinguistic contexts could condition the use of one or another variant. The elabo ration of the pedagogical proposal aimed at offering alternatives for the teaching of the pronominal framework that are not related to the mere presentation of a table that does not contemplate the linguistic variation in Brazilian Portuguese, as taken by the textbooks. In the context of this publication, the pedagogical proposal will be more emphasized than the diagnosis, although it is known that it will not be possible to present it in itsentirety.Keywords: portuguese language teaching; pronominal frame work; variation; teaching activities; morphosyntax.

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“Quando a Carla imagina...”: contribuições da prosódia para o estudo do desgarramento sintático

Aline Ponciano dos Santos Silvestre*

Na tradição gramatical, a coordenação é vista como um processo de junção de orações em que estas são, teoricamente, in-dependentes sintática e semanticamente, ao passo que, na subor-dinação, as orações envolvidas na composição do período são de-pendentes dos pontos de vista sintático e semântico.

No que tange particularmente à subordinação, a gramática tradicional (doravante GT) designa como “subordinadas” estruturas de características bastante diferentes, o que tem fomentado, ao lon-go dos anos de estudos linguísticos, a concepção de diferentes pro-postas de classificação das orações no período composto, entre elas a proposta funcionalista que, como salientou Neves, tem privilegia-do as orações tradicionalmente chamadas adverbiais como objeto de pesquisa, “especialmente pelo fato de ser dificilmente sustentada a condição de ‘subordinadas’ que a tradição lhes atribui” (2003, 125), uma vez que a configuração das adverbiais difere sobremaneira da configuração observada nas substantivas e adjetivas restritivas.

Não só a proposta funcionalista menciona com clareza que há heterogeneidade sob rótulo “adverbial” dado pela tradição. A Gramática da língua portuguesa, organizada por Mateus et al. (1989), de base formal, também já apontava para essas diferenças

* Doutora em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é professora adjunta de Língua Portuguesa da Faculdade de Letras da UFRJ.

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ao categorizar as “verdadeiras” adverbiais de um lado e, do outro, o que foi cunhado como “construções de graduação e comparação”. As autoras da referida obra propõem que as orações verdadeira-mente adverbiais podem, em geral, ser destacadas por clivagem e ocupar diferentes posições na oração, o que não ocorre com orações comparativas, consecutivas, conformativas e proporcionais.

Estes breves comentários relativos à heterogeneidade de configurações das adverbiais conduzem-nos ao cerne das questões a serem abordadas neste artigo: a existência de orações adverbais tradicionalmente consideradas subordinadas e que, portanto, não poderiam subsistir sem a presença de uma oração “principal”, mas que, na empiria, podem ser facilmente observadas e compreendi-das na produção dos falantes. A existência de tais orações foi, para o português, descrita primeiramente por Decat (1999, 2011) que, divergindo do que é usualmente postulado pela tradição gramati-cal e fundamentada numa análise funcional-discursiva, defende a necessidade de verificação do tipo de dependência (forma, sentido, pragmática) considerado para a definição do status dependente ou não das cláusulas. A autora afirma que,

na caracterização da dependência de uma cláusula a outra,

o parâmetro formal apresenta-se como o mais utilizado.

Entretanto, conforme ressalta Thompson (1984), uma

análise que fique presa exclusivamente a indicadores for-

mais terá, forçosamente, de considerar a cláusula subordi-

nada como dependente (Decat: 2011, 24).

Decat aponta, então, a distinção entre dois grupos de su-bordinadas: 1) encaixadas: aquelas que são cláusulas dependen-

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tes, estruturalmente integradas, e que desempenham um papel gramatical em constituência com um item lexical, grupo no qual se encontram as tradicionalmente chamadas substantivas e adjetivas restritivas; e 2) hipotáticas: aquelas que são cláusulas dependen-tes e que representam opções organizacionais para os falantes, das quais emergem proposições relacionais (inferências), podendo cons-tituir, elas mesmas, unidades de informação à parte, grupo no qual se encontram as tradicionais adjetivas explicativas e as adverbiais.

Ainda segundo considerações de Decat (2011), as estrutu-ras de hipotaxe, cláusulas menos dependentes e que, portanto, po-dem formar uma unidade de informação por si, estariam propensas ao desgarramento, ou seja, teriam a possibilidade de ocorre-rem, sintaticamente, independentes na língua:

[...] a noção de “unidade de informação” está correlacio-

nada com a ocorrência isolada de cláusulas subordinadas.

Caracterizando-se como opções do discurso, servindo a

objetivos comunicativo-interacionais, tais cláusulas “des-

garram-se” porque constituem unidades de informação à parte, o que as reveste de um menor grau de dependên-

cia, tanto formal quanto semântica, chegando mesmo a se

identificarem como cláusulas tidas como independentes,

à maneira de alguns tipos de coordenadas. A dependência

que se estabelece, nesses casos, será pragmático-discursi-

va (Decat: 2011, 42; grifo nosso).

Elucidado o fenômeno, este artigo objetiva descrever, pro-sodicamente, o fenômeno do desgarramento nas variedades brasi-leira e lusitana do português. Para isso, realiza uma comparação entre orações adverbiais que ocorrem ligadas à tradicionalmente

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chamada “oração principal” e orações adverbiais que ocorrem sozi-nhas, analisando pistas prosódicas que possibilitam a compreensão de uma oração que, sendo chamada subordinada na tradição grama-tical, ao contrário do que tal tradição postula, pode existir indepen-dentemente na língua.

1. Enquadramento teóricoComo dito introdutoriamente, o fenômeno do desgarra-

mento foi primeiramente postulado por Decat (1999, 2011) que, baseada em pressupostos funcionalistas, ateve-se à análise de da-dos escritos e percebeu o fenômeno como uma estratégia a serviço da produção textual. Sendo assim, a autora defendeu que a pro-dução de sequências como: “Esse caso com a modelo Lilian Ramos realmente foi uma tragédia. Apesar de Itamar ser um senhor solteiro e o ambiente ter sido de Carnaval” (Decat: 2011, 33), em que há o uso de pontuação não canônica, revela uma estratégia de focalização.

Para além do desgarramento majoritariamente analisado por Decat (1999, 2011) em seus estudos, a autora faz menção a um tipo de oração desgarrada que denota a clara possibilidade de ora-ções adverbiais serem realizadas sozinhas, não estando separadas por pontuação, como no exemplo do parágrafo anterior. Orações como “Se eu ganhasse na Sena!” (Decat: 1999) e a que dá título a este trabalho – “Quando a Carla imagina...” – exemplificam o fe-nômeno com estruturas adverbiais sozinhas, soltas, desgarradas, porém interpretáveis em determinados contextos comunicativos.

Decat (1999, 2011) trata, desse modo, como desgarradas duas estruturas que para nós – porque procederemos a uma descri-ção baseada em princípios da fonologia que afirmam o não isomor-fismo entre as áreas da gramática – são essencialmente diferentes.

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Ater-nos-emos, aqui, ao segundo tipo de estrutura desgarrada men-cionada acima – estruturas semelhantes à de nosso título – diferen-ciando-as das anteriores e, numa analogia à tradição dos estudos prosódicos ,1 batizando-as como desgarradas totais.

Do ponto de vista da análise funcional-discursiva das des-garradas feita por Decat (1999, 2011), parte-se da ideia sintático--pragmática de que as adverbiais são cláusulas hipotáticas, menos subordinadas formalmente, mas dependentes do contexto, para, depois, iniciar-se alguma discussão sobre a unidade de informação (cf. Chafe: 1980) e, indiretamente, perceber-se a relevância de cláu-sulas desgarradas como um constituinte fonológico, através da ob-servação de comportamentos prosódicos como pausa e entoação, comportamentos esses pouco explorados nas análises funcionalis-tas (cf. Decat: 2011) e que afirmam, com base em análise prelimi-nar, ser o “contorno final” de cláusula característico do desgarra-mento. Na análise aqui empreendida, entretanto, um outro ponto de vista se coloca, o qual tem como partida uma assunção fonoló-gica: a oração desgarrada total é um sintagma entoacional (IP) e um enunciado (U). Uma vez que IP e U são, respectivamente, domínios de um contorno melódico e de uma unidade de sentido, a oração desgarrada total traz consigo, necessariamente, uma caracterização prosódica própria, que necessita ser descrita, e um sentido em si. A relação com a sintaxe passa, então, a ser secundária, limitada à necessidade de construção dos constituintes prosódicos.

1 Analogamente à tradição dos estudos prosódicos, que nomeiam como questões totais perguntas para as quais a resposta pode ser apenas “sim” ou “não”, uma vez que contêm toda a informação desejada, chamaremos de desgarradas totais as orações adverbiais em que a oração núcleo não é recuperável textualmente, pelo fato de, tal qual as referidas questões totais, serem adverbiais que, lexicalmente, possuem sozinhas toda a informação necessária à sua interpretação.

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Estabelecido nosso ponto de vista, as subseções a seguir

dedicam-se às definições teóricas de ordem fonológica que guiarão

nossos procedimentos de análise.

1.1 A fonologia prosódicaA teoria gerativa inicial limitou a interação da fonologia

com o restante da gramática a uma inter-relação com a sintaxe.

Questionando a adequação de tal fato, Nespor & Vogel (1986,

1994) argumentam que o componente fonológico da gramática não

deve ser visto de forma homogênea e sim como “um subconjunto

de subsistemas em interconexão, cada um governado com princí-

pios próprios” (Nespor & Vogel: 1994, 13).

Desse modo, segundo os postulados da teoria prosódica

proposta pelas autoras, a corrente fônica está dividida em frag-

mentos hierarquicamente organizados – os constituintes prosó-

dicos – os quais estão delimitados por diferentes indícios, que

abrangem desde modificações segmentais em si até mudanças

fonéticas mais sutis. Os referidos constituintes prosódicos,2 dis-

tribuídos de forma decrescente na hierarquia, são o enunciado fo-

nológico (U – Utterance), o sintagma entoacional (IP – Intonational

Phrase), o sintagma fonológico (PhP – Phonological Phrase),3 o gru-

po clítico (CG – Clitical Group ), a palavra fonológica (PW – Prosodic

word), o pé (F – Foot) e a sílaba (Syl – syllable). Tal hierarquia pode

ser assim representada:

2 Além dos trabalhos aqui citados que tratam da hierarquia prosódica, resumo interessante sobre a história dos constituintes prosódicos pode ser atualmente visto em Gayer (2015).

3 Muitos autores utilizam a abreviação I para indicar o sintagma entoacional e o símbolo f para indicar o sintagma fonológico.

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Para além dos processos estritamente fonológicos que li-cenciam a referida distribuição hierárquica, como o sândi externo e a retração do acento (cf. Frota & Vigário: 2000; Tenani: 2002, entre outros, para o português), Nespor & Vogel (1994) afirmam que os constituintes da hierarquia prosódica proporcionam estruturas re-levantes para o primeiro nível de processamento da percepção da fala, o parsing inicial, fornecendo ao ouvinte a base para a recons-trução da estrutura sintática e para a compreensão da mensagem transmitida por uma dada sequência (Nespor & Vogel: 1994, 287). Baseando-se nas sugestões de Selkirk (1978) e nas afirmações de Nespor & Vogel (1983a, 1983b), que se utilizaram de dados percep-tivos em seus estudos, as autoras salientam que

não são os constituintes sintáticos, mas os constituintes

prosódicos os que proporcionam a informação relevante

na primeira etapa de processamento de uma sequência de

fala. Isso não quer dizer que a estrutura sintática seja ir-

relevante, mas que só é relevante indiretamente, uma vez

que só se faz referência à informação sintática na constru-

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ção dos constituintes prosódicos que se situam acima da

palavra prosódica. Da afirmação de que são os constituin-

tes prosódicos, e não os sintáticos, os que proporcionam

as unidades relevantes para o nível inicial de processamen-

to se segue que toda distinção sintática não refletida na

estrutura prosódica não pode ser captada nesse nível de

percepção (Nespor & Vogel: 1994: 288; tradução nossa).4

Ao desenvolver uma proposta prosódica para explicar casos de desambiguação – e tal fato nos interessa particularmente por-que as adverbiais desgarradas totais que estudamos têm interpreta-ção diversa, mas possuem exatamente a mesma estrutura sintática das adverbiais anexadas à oração núcleo – Nespor & Vogel (1994) declaram que os casos de maior possibilidade de desambiguação são aqueles em que há estruturas prosódicas diferentes no nível do IP, asseverando que

as orações que se podem desambiguizar são aquelas em

que os diferentes significados correspondem a diferentes

estruturas prosódicas. Ao contrário, as orações em que os

diferentes significados têm a mesma estrutura prosódi-

4 “no son los constituyentes sintácticos sino los constituyentes prosódicos los que proporcionan la información relevante em la primera etapa del procesamiento de uma secuencia de habla. Lo cual no quiere decir que la estructura sintáctica sea irrelevante, sino que és relevante sólo indirectamente, puesto que sólo se hace referencia a información sintáctica em la construcción dos constituyentes prosódicos que se sitúan por encima del nível de la palavra. De la afirmácion de que son los constituyentes prosódicos, no los sintácticos, los que proporcionan las unidades relevantes para el nível inicial de procesamiento se sigue que toda distinción sintáctica no reflejada em la estrucura prosódica no puede ser captada en este nível de percepción” (Nespor & Vogel: 1994, 288. Tradução de Ana Ardid Gumiel).

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ca não são desambiguizáveis, independentemente de sua

estrutura sintática (Nespor & Vogel: 1994, 293: tradução

nossa).5

Tendo por base tais informações, neste trabalho, assim como em Tenani (2002), nossa análise será pautada na observação dos três níveis mais altos da hierarquia prosódica – U, IP e PhP – uma vez que são esses os níveis largamente descritos como respon-sáveis pela percepção e diferenciação de estruturas. Por esta razão, acreditamos serem também esses níveis os mais importantes para que se possam verificar as marcas prosódicas caracterizadoras do desgarramento nas variedades estudadas.

Importa mencionar que a adoção das abordagens postuladas pela Fonologia Prosódica justifica-se bastante por almejarmos uma comparação da estrutura entoacional associada aos domínios prosódi-cos em estruturas desgarradas e não desgarradas no PB e no PE. Isso porque, como não há outros estudos prosódicos sobre o desgarramento, é a abordagem teórica utilizada que nos permite uma comparação coe-rente entre as variedades, a fim de que, com base em trabalhos que tra-tam da estrutura prosódica do português (para o PE: Frota & Vigário: 2000; Frota & Vigário: 2001; Vigário: 2003; Fernandes: 2007; Severino: 2011; Barros: 2014. Para o PB: Frota & Vigário: 2000; Tenani: 2002; Fernandes: 2007; Serra: 2009; Fonseca: 2010), seja observado se as pis-tas prosódicas caracterizadoras do fenômeno em estudo são variações fonéticas ou se constituem um padrão fonológico diferente.

5 “las oraciones que se puedem desambiguar son aquelas em que los diferentes significados cor-responden a diferentes estructuras prosódicas. En contraste, las oraciones em que los diferentes significados tienen la misma estrutura prosódica non son desambiguables, independentemente de su estructura sintáctica” (Nespor & Vogel: 1994, 293; tradução de Ana Ardid Gumiel).

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1.2 A fonologia entoacionalAlém de considerarmos a hierarquia prosódica e seus cons-

tituintes, lançamos mão das abordagens feitas pelo modelo autos-segmental e métrico (AM) da Fonologia Entoacional, postuladas por Pierrehumbert (1980), Ladd (2008), entre outros.

O modelo AM prevê uma organização fonológica própria para a entoação, interpretando-a como uma sequência de eventos tonais localizados, diretamente relacionados com a acentuação e com fronteiras de domínios prosódicos. Portanto, pode-se presumir que a estrutura prosódica, explicitada na seção anterior, condicio-na, de algum modo, a estrutura entoacional. Dentro do modelo AM, assume-se que a constituição das melodias se dá por sequências de apenas dois tipos de tons altos [H] e baixos [L] – e são também dois os tipos de eventos tonais suficientes para descrevê-las: os acentos tonais (pitch accents) e os tons de fronteira (boundary tones).

Os acentos tonais afetam necessariamente sílabas acentu-adas do ponto de vista lexical e sua indicação se dá por meio de um asterisco (ex.: H*). Quando formados por apenas um tom, são chamados simples e, quando formados por dois tons, bitonais ou complexos.

Os tons de fronteira, como sugere a própria nomenclatura, são ligados a fronteiras de constituintes e caracterizam a modula-ção melódica no fim de um domínio prosódico. Esse tipo de evento tonal pode ser alto (H) ou baixo (L) e é indicado convencionalmente pela presença de % (ex.: H% ou L%).

Além de acentos tonais e de tons de fronteira, suficientes para a descrição fonológica da maioria das línguas, há a possibi-lidade de existir um acento intermediário (intermediate phrase), chamado acento frasal. Para o português, o trabalho de Tenani e

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Fernandes-Svartman (2008) dá indícios da possibilidade de ser alo-cado um tom de fronteira ao PhP em sentenças focalizadas, o que indica a existência de um acento frasal no PB.

A conjugação do modelo hierárquico e do modelo AM é feita, para o português, em trabalhos como os de Frota (2000, 2002, 2003), Frota & Vigário (2000), Tenani (2002), Viana & Frota (2007), Fernandes (2007), Serra (2009), Fonseca (2010), Severino (2011), Cruz & Frota (2011), Silvestre (2012), Barros (2014), Frota et al. (2015), Castelo (2016), entre muitos outros, que recobrem diversas variedades do PB e do PE.

Descritas as bases teóricas que regem nosso estudo, passa-remos à descrição de nosso corpus e da metodologia de análise que permitiu a descrição do desgarramento em dados orais do PB e do PE.

2. Corpus e metodologiaA fim de que pudéssemos proceder a uma análise compa-

rativa de orações adverbiais não desgarradas e desgarradas totais, o corpus deste trabalho é constituído por orações que foram obti-das através de gravações de texto lido, no qual foram descritas si-tuações em que o uso de estruturas adverbiais desgarradas ou não desgarradas é possível. Assim, foi possível a comparação de trechos lexicalmente idênticos.

Todas as situações foram apresentadas em slides, sendo so-licitado que, após pensados os contextos, somente as orações-alvo fossem lidas. A pesquisa contou com dez informantes do sexo fe-minino, cinco oriundas da região do Grande Rio – alunas de pós--graduação em Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro, e cinco oriundas da região de Lisboa – alunas de pós-graduação em Letras na Universidade de Lisboa, com idades entre 23 e 36 anos.

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Como um todo, o corpus contém 30 orações adverbiais base: 15 que fazem parte de estruturas complexas, com orações adver-biais anexadas à tradicional oração “principal” – não desgarradas, e outras 15, correspondentes, desgarradas totais. Cada oração foi lida três vezes por todas as informantes, a fim de que pudéssemos con-firmar a regularidade das características prosódicas observadas.

Sendo o sintagma entoacional nossa unidade básica de análise, há, em nossos dados, orações adverbiais desgarradas totais e não desgar-radas de estruturas diferentes: orações menores, de nove sílabas, sem ramificação no último PhP; e orações maiores, com treze sílabas, em que o último PhP é ramificado. Tais estruturas foram pensadas a fim de que se pudessem testar as hipóteses concernentes à influência do tamanho do IP ou do peso fonológico na inserção das pistas prosódicas que caracterizam o desgarramento.

As 900 orações adverbiais para cada variedade do portu-guês aqui estudada estão assim distribuídas: 225 não desgarradas sem ramificação no último PhP (15 frases x 5 informantes x 3 repe-tições), 225 não desgarradas com último PhP ramificado (15 frases x 5 informantes x 3 repetições), 225 desgarradas totais sem rami-ficação no último PhP (15 frases x 5 informantes x 3 repetições) e 225 desgarradas totais com último PhP ramificado (15 frases x 5 informantes x 3 repetições).

A seguir, exemplificamos como se deu o processo de ob-tenção das orações, sendo solicitado às informantes a imagina-ção dos contextos (indicados por [C: ]), com posterior leitura das sentenças em destaque. O mesmo contexto foi apresentado quatro vezes, de forma randomizada, para que fosse feita a lei-tura das orações desgarradas e não desgarradas, com ramificação ou não no último PhP:

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[C: Você e sua amiga conversam sobre a Carla, uma amiga em co-mum que sempre pensa no pior e vive imaginando que tudo de ruim irá acontecer, ainda que tentem convencê-la do contrário. Pensando nisso, você comenta:]

Quando a Carla imagina, sempre acha que o pior vai aconte-cer. (Não desgarrada, sem ramificação no último PhP)Quando a Carla imagina... (Desgarrada, sem ramificação no úl-timo PhP)Quando a Carla imagina as tragédias, sempre acha que o pior vai acontecer. (Não desgarrada, com ramificação no último PhP)Quando a Carla imagina as tragédias... (Desgarrada, com rami-ficação no último PhP)

De acordo com a mesma configuração dos exemplos ante-riores, todas as orações destacadas para a leitura, aqui apresenta-das em sua ramificação ideal, foram as seguintes:

Estruturas com nove sílabas – sem ramificação no último PhP:

1. [[Se a Joelma]PhP [a ganhasse]PhP]IP2. [[Se o Ricardo]PhP [desejasse]PhP]IP3. [[Se o Diogo]PhP [conseguisse]PhP]IP4. [[Quando o Fábio]PhP [me chamasse]PhP]IP5. [[Quando a Ana]PhP [apontasse]PhP]IP6. [[Quando a Carla]PhP [imagina]PhP]IP7. [[Já que o Lázaro] PhP [desejava] PhP]IP8. [[Já que o Leandro] PhP [o procura] PhP]IP9. [[Já que a Marina] PhP [gostaria] PhP]IP

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10. [[Pra aprovar] PhP [os alunos] PhP]IP11. [[Pra conquistar] PhP [a garota] PhP]IP12. [[Pra enviar] PhP [os pedidos] PhP]IP13. [[Embora a Vera] PhP [suplicasse] PhP]IP14.[[Embora a Lúcia] PhP [o tentasse] PhP]IP15. [[Embora a Carmen] PhP [a quisesse] PhP]IP

Estruturas com treze sílabas – com ramificação no último PhP:

1. [[Se a Joelma]PhP [ganhasse na loteria]PhP]IP62. [[Se o Ricardo]PhP [desejasse o emprego]PhP]IP3. [[Se o Diogo]PhP [conseguisse o trabalho]PhP]IP4. [[Quando o Fábio]PhP [chamasse ao escritório]PhP]IP5. [[Quando a Ana] PhP [apontasse a janela] PhP]IP 6. [[Quando a Carla] PhP [imagina as tragédias] PhP]IP7. [[Já que Lázaro] PhP [desejava o perigo] PhP]IP8. [[Já que Leandro] PhP [procura o empregado] PhP]IP9. [[Já que Marina] PhP [gostaria dos enfeites] PhP]IP10. [[Pra aprovar] PhP [os alunos esforçados] PhP]IP11. [[Pra conquistar] PhP [a garota desejada] PhP]IP12. [[Pra enviar] PhP [os pedidos requeridos] PhP]IP13. [[Embora Vera] PhP [suplicasse aos juízes] PhP]IP14. [[Embora Lúcia] PhP [tentasse o resultado] PhP]IP15. [[Embora Carmen] PhP [quisesse a recompensa] PhP]IP

6 Sabemos que, de acordo com os algoritmos de formação do PhP, o sintagma adverbial [na loteria] é usualmente estruturado como um PhP à parte. Entretanto, consideramos ser transitivo direto o verbo que precede tal sintagma e, de forma paralela aos outros IPs aqui analisados, em que o último PhP é composto por duas PWs, decidimos considerá-lo, juntamente com o verbo, como parte de um único PhP.

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Importa observar que as orações desgarradas totais, além de

serem um IP, são também um enunciado (U) e, por isso, acrescen-

tamos tal indicação na representação dos constituintes sempre que

nos referirmos aos exemplos de desgarramento, conforme exemplo

a seguir:

[[[Embora Carmen] PhP [quisesse a recompensa] PhP] IP] U

Tal consideração é importante para que analisemos as pos-

síveis diferenças entre a gama de variação de F0 (diferença entre o

valor mínimo e o valor máximo da frequência fundamental no fim

do IP), uma vez que estudos anteriores (Serra: 2009; Barros: 2014)

apontam a importância desse parâmetro para a indicação de fron-

teiras prosódicas.

2.1 Processos de análise do corpusPara a efetiva notação prosódica, utilizamos sistema P_ TO-

BI, postulado, para o português, por Vianna e Frota (2007) e por

Frota (2014), sistema esse baseado no TOBI inglês (TO para Tones

e BI para Break Indices), o qual foi desenvolvido dentro da teoria

AM (Beckman, Hischberg & Shattuck-Hufnagel: 2005) e propõe o

alinhamento do contorno de F0 a uma série de camadas. O sistema

de notação P_TOBI é feito com o auxílio do programa PRAAT de

análise acústica e inclui três camadas: uma para associação tonal,

uma para a transcrição ortográfica e uma para a anotação de fron-

teiras prosódicas.

Abaixo, um exemplo da notação adotada por nós, feita com

base no P_TOBI:

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Figura 1: exemplo de notação com base no P_TOBI

A fim de descrever o comportamento prosódico de orações desgarradas no PB e no PE, aqui foram considerados um parâme-tro acústico de natureza duracional – alongamento silábico – e dois parâmetros acústicos de natureza melódica – a modulação da frequên cia fundamental e a gama de variação de F0.

Procedemos à descrição do contorno melódico presente no pri-meiro PhP de todos os IPs e o restante das aferições concentrou-se na palavra nuclear (pré-fronteira direita) dos IPs constituídos por orações adverbiais, desgarradas e não desgarradas. Isso porque, como demons-tram trabalhos construídos sob a mesma base teórica (Tenani: 2002; Fernandes: 2007; Serra: 2009; Fonseca: 2010 – para o PB; e Frota: 2000; Frota & Vigário: 2001; Severino: 2011; Barros: 2014 – para o PE), é ela – a fronteira final – o principal locus para a inserção de características prosódicas capazes de diferenciar estruturas em português.

A medição percentual de todas as pistas prosódicas estudadas – alongamento silábico, modulação de F0 e Gama de Variação de F0 – foi feita com o auxílio do programa Excel, onde foram criadas planilhas para a organização e para o cálculo eficaz dos parâmetros analisados.

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3. ResultadosA análise do contorno melódico inicial de orações desgarradas

e não desgarradas revelou que os mesmos contornos foram observa-dos no elemento proeminente do primeiro PhP, seja em orações não desgarradas ou em orações desgarradas totais, não havendo, assim, diferenças concernentes à associação tonal inicial que caracterizem o fenômeno do desgarramento. Entretanto, as variedades analisadas diferem pelo fato de o acento bitonal L+H* ser mais produtivo nos dados brasileiros ao passo que a utilização do acento H+L* é mais efetiva nos dados portugueses, como exemplificam as figuras de 2 a 5, abaixo, e revelam os gráficos 1 e 2:

Figura 2: contorno L+H* predominante no PhP inicial de

orações não desgarradas do PB

Figura 3: contorno L+H* predominante no PhP inicial de orações desgarradas totais do PB

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Figura 4: contorno H+L* predominante no PhP inicial de orações não desgarradas do PE

Figura 5: contorno H+L* predominante no PhP inicial de orações desgarradas do PE

Gráfico 1: contornos predominantes no PhP Gráfico 2: contornos predominantes no PhP inicial orações não desgarradas em PB e em PE inicial de orações desgarradas em PB e em PE

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No que tange aos contornos melódicos existentes no fim

dos IPs, há, entre orações não desgarradas e orações desgarradas to-

tais, comportamentos diversos que se mostram capazes de contri-

buir para a caracterização do fenômeno em estudo, além de diferen-

tes contornos serem observados para o PB e para o PE.

No PB, há clara diferença entre orações não desgarra-

das e orações desgarradas totais, diferença essa relativa, princi-

palmente, ao tipo de fronteira preferida na produção de cada

tipo oracional: predominam os contornos com fronteira bai-

xa – 72% de L% – nos dados sem desgarramento ao passo que,

nas orações desgarradas totais, a predominância de contornos

melódicos em que não há descida final é semicategórica (94%)

– 83% de L+H*H% e 11% de H+L*LH%. No PE, predominam

os tons com fronteira alta ou ascendente – H% ou LH% – tan-

to nas orações não desgarradas quanto nas orações desgarradas

totais. A figuras de 6 a 9 e os gráficos 3 e 4, a seguir, revelam

nossos achados:

Figura 6: contorno L+H*L% predominante no fim de IPs representativos de orações não desgarradas do PB

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Figura 7: contorno L+H*H% predominante no fim de IPs repre-

sentativos de orações desgarradas do PB

Figura 8: contorno L+H*H% predominante no fim de IPs representativos de orações não desgarradas do PE

Figura 9: contorno L+H*H% predominante no fim de IPs repre-sentativos de orações desgarradas do PE

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Gráfico 3: contornos predominantes no PhP final de orações não desgarradas em PB e em PE

Gráfico 4: contornos predominantes no PhP final de

orações desgarradas totais em PB e em PE

O comportamento duracional das últimas sílabas do IP

também mostra resultados diversos para orações não desgarradas e orações desgarradas totais, tanto em PB quanto em PE, revelando--se, juntamente com os padrões melódicos finais, fator importante na caracterização do fenômeno aqui estudado.

Há, para ambas as variedades, maior duração das sílabas finais nos dados de desgarramento quando comparadas às mes-mas sílabas em orações não desgarradas. Além disso, nas des-

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garradas totais produzidas por falantes brasileiros, acresce-se à maior saliência no alongamento da última pós-tônica em re-lação à pré-tônica, também verificada em PE, um alongamento da sílaba final em relação à tônica, revelando a robustez de tal pista prosódica na caracterização do desgarramento em PB. No-vamente, as figuras (10 a 13) e os gráficos (5 e 6) exemplificam os resultados:

Figura 10: duração das sílabas finas dos IPs representativos de orações não desgarradas do PB

Figura 11: duração das sílabas finas dos IPs representativos de orações desgarradas do PB

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Figura 12: duração das sílabas finas dos IPs representativos de orações não desgarradas do PE

Figura 13: duração das sílabas finas dos IPs representativos de orações desgarradas do PE

Gráfico 5: média da duração nas sílabas finais Gráfico 6: média da duração nas sílabasde orações não desgarradas em PB e em PE finais de orações desgarradas em PB e em PE

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Os resultados relativos aos contornos melódicos predomi-nantes no fim dos IPs e ao alongamento silábico identificados nas sílabas finais revelam que a interpretação de orações desgarradas totais como orações completas se dá pela utilização diferenciada de pistas prosódicas, assim como já demonstraram estudos de Vigário (2003) e Fonseca (2010), por exemplo, para estruturas de desam-biguação. No PB, a inserção de pistas prosódicas diferenciadoras se dá de forma ainda mais evidente, o que vai ao encontro de outras descrições comparativas entre PB e PE, como as de Frota & Vigário (2000) e Fernandes (2007), que revelam haver, para o PB, maior saliência de pistas prosódicas pelo fato de ser o PhP ou a PW domí-nios entoacionais mais robustos na variedade brasileira.

Importa notar que o contorno L+H*H%, majoritariamente presente nas orações desgarradas que analisamos, é comumente des-crito como característico de um padrão “continuativo” (Cagliari: 1982; Cunha: 2000; Tenani: 2002). Tal fato dá pistas sobre a importância de tal contorno ser acompanhado de outra pista prosódica quando presen-te na configuração de estruturas de desgarramento, já que não há, para as orações desgarradas totais, necessidade de continuação sintática ou fonológica. Logo, nossos resultados demonstram que o comportamen-to diferenciado da duração atua de forma produtiva na concretização do fenômeno em estudo: no PB, salientando ainda mais as diferenças já existentes, uma vez que os contornos predominantes no fim dos IPs já eram diversos nos dados sem ou com desgarramento; no PE, estabele-cendo que, de fato, as desgarradas totais têm comportamento prosódico diferenciado, já que os contornos entoacionais predominantes foram semelhantes no fim de todos os IPs analisados.

Por fim, no que se refere à gama de variação de F0 pré-fron-teira, os dados mostraram que, como ilustram os gráficos 7 e 8,

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não foram encontradas diferenças significativas entre orações não desgarradas e orações desgarradas totais no PB e no PE.

Gráfico 7: gama de variação de F0 na palavra Gráfico 8: gama de variação de F0 na palavranuclear de orações não desgarradas em nuclear de orações desgarradas em PB e em PE PB e em PE

Considerações finaisApós a exposição de nossos resultados, temos que o desgar-

ramento total de orações adverbiais pode ser descrito como um fe-nômeno linguístico através do qual o falante se utiliza, primordial-mente, da pista prosódica de duração, alongando as sílabas finais do IP de modo a conferir peso fonológico à estrutura, peso esse que não deixa dúvidas sobre sua gramaticalidade e permite seu enten-dimento sem a necessidade de complementação por outro elemen-to sintático.

Além disso, nossos resultados também contribuem para o fortalecimento da teoria fonológica no sentido de reafirmar que, nos domínios mais altos da hierarquia, a interface entre fonologia e sintaxe é fortemente restringida, não havendo isomorfismo entre os dois componentes da gramática, já que as desgarradas, sem lugar na tradição dos estudos sintáticos, são claramente um constituinte fonológico completo, com características prosódicas próprias, não

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importando, inclusive, a classificação semântica tradicionalmente atribuída à análise sintática de orações adverbiais. Podemos dizer, assim, que, tal qual as estruturas desambiguizáveis referidas por Nespor & Vogel (1994, 293), uma oração adverbial sem a chamada oração “principal” existe porque corresponde a uma diferente es-trutura prosódica.

Fora as questões de ordem fonológica, o ponto de vista que adotamos neste trabalho, a análise prosódica de orações desgarra-das totais revela que, diferentemente do que afirma Decat (1999, 2011), não é o contorno “final de cláusula” característico do desgar-ramento quando se trata de orações desgarradas sem a possibilidade de recuperação textual da oração núcleo. É interessante, portan-to, que o fenômeno seja ainda discutido por outros prismas, que a relação entre prosódia e desgarramento seja, de fato, explicitada não só em relação às cláusulas que aqui chamamos de desgarradas totais, mas também em relação à pontuação não canônica que leva à grande produtividade do fenômeno na língua escrita, na linha de trabalhos como os Soncin (2014), Soncin e Tenani (2015), entre outros. Além disso, a discussão semântico-pragmática sobre a pro-dutividade do desgarramento e o tipo de relação circunstancial ex-pressa pelas orações pode trazer reflexões também interessantes.

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Resumo

Neste trabalho, estuda-se, em dados do português brasileiro (PB) e em dados do português europeu (PE), o comportamento prosódico de orações adverbiais conectadas à chamada oração “principal” e de ora-ções desgarradas, com base no arcabouço teórico da Fonologia Prosódica (Nespor & Vogel: 1994) e da Fonologia Entoacional (Pierrehumbert: 1980; Ladd 1996). Foram analisados 1800 dados (900 de cada variedade do português) e feitas aferições de três pistas prosódicas: contorno meló-dico, duração das sílabas e gama de variação de frequência fundamental (F0) no fim do sintagma entoacional (IP). Os resultados revelam que o desgarramento na língua falada é licenciado, primordialmente, tanto em PB quanto em PE, pela maior duração nas sílabas finais do IP. Para o PB, além da variação fonética dada pelo comportamento duracional das síla-bas finais dos IPs, o desgarramento é caracterizado por um padrão me-lódico diferente do observado nas orações anexadas à oração “principal” (L+H*L% para orações sintaticamente anexadas a outras e and L+H*H% para as desgarradas).Palavras-chave: prosódia; desgarramento; variedades entoacionais.

Abstract

In this work, we study the prosodic behavior of adverbial clauses produced with the “main” clause and detached adverbial clauses in Brazilian Portuguese (BP) and European Portuguese (EP). We use the theoretical framework of Prosodic Phonology (Nespor & Vogel: 1994) and Intonational Phonology (Pierrehumbert 1980; Ladd: 1996). 1800 data (900 of each Portuguese variety) were analyzed and measurements were made on three prosodic parameters: melodic contour and duration and F0 variation at the end of the Intonational Phrase (IP). The results reveal that the detachment in the oral language is primarily licensed, in BP as in EP because the speakers insert longer duration in the final syllables of the IP. For BP, in addition to the phonetic variation given by the durational

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“Quando a Carla imagina...”: contribuições da prosódia para o estudo do desgarramento sintático

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behavior of the last syllables of the IP, the detachment is characterized by a different melodic pattern from the adverbial clauses attached to the main sentence (L+H*L% for the sentences with the main clause and L+H*H% for the detached ones).Keywords: prosody; detachment; intonational varieties.

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O ditongo /ei/ na variedade urbana do português de São Tomé

Raphaela Ribeiro Passos*

Trabalhos sobre o português falado em distintas regiões da África, como língua 1 ou língua 2, têm apontado uma série de convergências entre essas variedades e o português do Brasil (PB), o que pode ser observado em diversos estudos sobre a concordân-cia nominal e a concordância verbal, entre os quais Brandão; Vieira (2012), Brandão (2013) e Vieira; Bazenga (2013), que focalizam o português de São Tomé (PST) em contraste com o PB.

As convergências encontradas entre as variedades africanas do português e o PB levam alguns linguistas, como Margarida Maria Taddoni Petter (2007), Juanito Avelar e Charlotte Galves (2014), a considerarem a existência de um continuum afro-brasileiro. Petter afirma que “as diferentes situações de contato, em épocas diversas, mas envolvendo o português e um conjunto de línguas muito pró-ximas, as do grupo banto, produziram alguns resultados semelhan-tes nos níveis fonológico, lexical e morfossintático” (2007, 9). Ten-do em vista os estudos mencionados no âmbito da concordância verbal e nominal e as considerações de Petter, de Avelar e Galves, achou-se pertinente focalizar o PST no nível fonético-fonológico, ainda pouco explorado.

Em São Tomé e Príncipe, coexistem com o português – a língua falada por 98,39% da população, segundo o censo de

* Mestre em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde atualmente faz doutorado.

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O ditongo /ei/ na variedade urbana do português de São Tomé

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2012 – quatro crioulos de base portuguesa: o forro (ou santo-

mé) e o angolar, na Ilha de São Tomé; o lung’ie (ou principense)

na Ilha do Príncipe e o fa d’ambô (ou anobonense), da Ilha de

Ano Bom (hoje situada na Guiné Equatorial), situação de con-

tato multilíngue que poderia ser comparada àquela que se su-

põe ter existido na fase de colonização do Brasil e que ainda

hoje ocorre em áreas que contam com grupos indígenas rema-

nescentes. Assim, o PST pode servir de base para aferir não só

possíveis semelhanças com o PB, mas também prováveis inter-

ferências dessas línguas (em especial do forro) na constituição

dessa variedade.

Considerando o nível fonético-fonológico, o foco deste tra-

balho é a observação do ditongo /ei/ na variedade urbana do PST.

Pretende-se observar se esse ditongo se mantém como [ej], como

em mad[ej]ra, se sofre o processo de monotongação, como em

dinh[e]ro, ou ainda, se a exemplo do que ocorre no português eu-

ropeu (PE), que serve como norma de referência para o PST, se rea-

liza como [ɐj], como em qu[ɐj]xa. A partir dos resultados, busca-se

verificar, além de convergências entre as variedades são tomense e

brasileira, se há uma possível interferência do forro sobre a realiza-

ção do ditongo em foco.

Para tanto, a pesquisa apresentada foi realizada com base

nos pressupostos teórico metodológicos da Teoria da Variação e

Mudança (Weinreich; Labov; Herzog: 1968), partindo-se de amos-

tras selecionadas de entrevistas com falantes da comunidade urba-

na de São Tomé, extraídas do corpus VAPOR, do Centro de Linguís-

tica da Universidade de Lisboa, e realizadas por Tjerk Hagemeijer

em 2009.

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Raphaela Ribeiro Passos

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A República de São Tomé e Príncipe e o multilinguismo presente na região

A pesquisa que tenha como foco o PST deve, fundamental-

mente, levar em consideração as características da área, como seu

caráter multilinguístico, constituído por uma série de contingên-

cias histórias relativas à sua formação.

A República de São Tomé e Príncipe, localizada no Golfo

da Guiné e formada pelas ilhas que lhe dão nome e mais algumas

ilhotas, pertenceu a Portugal da segunda metade do século XV até

1975, ano de sua independência. Segundo o censo de 2012, reali-

zado pelo Instituto de Estatística Nacional (INE), São Tomé possui

178.739 habitantes e se estende por 1.001km².

O mencionado caráter multilíngue presente em São Tomé

pode ser constatado ao se observar as línguas faladas na região

atual mente. Ainda de acordo com o mencionado censo, o portu-

guês, língua oficial, é falada por 98,4% da população, e utilizada em

documentos oficiais e nas relações de trabalho. O forro, ou santo-

mé, como também é chamado, ocupa o segundo lugar, com 36,2%

de usuários, devendo-se salientar que, segundo o Censo de 2001, o

contingente de falantes chegava a 74,2%, o que demonstra a rápida

difusão do português. Há ainda outros crioulos falados na região

– o angolar, utilizado em uma pequena comunidade de São Tomé

(6,6%), o lunguié (1,0%), da Ilha de Príncipe e, ainda, o caboverdia-

no que, embora não seja nativo de São Tomé e Príncipe, conta com

um significativo número de falantes (8,5%). De acordo com os da-

dos, é possível observar que o forro se destaca dentre essas línguas

minoritárias, sendo, inclusive, considerado por muitos indivíduos

como a língua nacional.

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O ditongo /ei/ na variedade urbana do português de São Tomé

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Ainda sobre o forro, há uma importante observação a ser feita. Quando se considera a faixa etária dos indivíduos e as línguas por eles faladas, percebe-se uma distribuição estável de falantes de português, com todos os grupos etários apresentando percen-tuais acima de 90%. Já com relação ao forro, é possível perceber que quanto maior a faixa etária do indivíduo, maior o uso do forro, estando o percentual de uso mais alto entre os falantes acima de 50 anos de idade. O seguinte gráfico ilustra essa relação:

Figura 1: Percentuais de falantes de português e forro em São Tomé por idade (Dados do INE, 2012)

Como se pode observar no gráfico acima, o uso do português em São Tomé é estável, a língua está sendo passada para as novas gerações, que cada vez fazem um maior uso dela em detrimento de outras, como o forro que, por sua vez, embora mantido pelos grupos mais velhos, parece estar perdendo força nas gerações mais jovens.

Observadas as diversas línguas faladas em São Tomé, cabe comentar os aspectos históricos da região que ajudam a entender como se originou a atual situação multilíngue ali presente.

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As ilhas de São Tomé e Príncipe possuem uma história de dupla colonização portuguesa, tendo adquirido sua independência há apenas 43 anos, em 1975. A chamada primeira colonização, que definiu o primeiro ciclo econômico da região, está ligada à produ-ção e exportação de açúcar; já o segundo ciclo econômico se associa à produção e exportação de café e cacau.

O início da primeira colonização portuguesa na região tem início nos primeiros anos da década de 1470, quando os portugueses tomaram o Golfo da Guiné. Alguns anos depois, em 1485, foi estabe-lecida a primeira colônia portuguesa em São Tomé, área que passava a ser de interesse para os portugueses devido aos lucros obtidos com a cana-de-açúcar e o tráfico de escravos. Porém, é só em 1493 que Portugal passa a investir, de fato, no crescimento de São Tomé, obje-tivando o aumento dos lucros gerados com a exploração dos recursos locais. Assim, nesse período a ilha foi definitivamente povoada tan-to pelos portugueses quanto pelos escravos trazidos da África, para constituir força de trabalho para o cultivo da cana-de-açúcar.

Considerando o panorama estabelecido nessa época na re-gião, Tjerk Hagemeijer aponta que a situação de contato entre por-tugueses e africanos durante a mencionada primeira colonização em São Tomé foi desde o princípio favorável à crioulização, pois

havia, por um lado, um contacto mais intenso entre por-

tugueses e escravos e, por outro, existia a necessidade imi-

nente de comunicação que implicava uma aproximação,

por parte dos escravos, ao código linguístico utilizado pe-

los povoadores portugueses (2009, 2).

O primeiro ciclo econômico da região, o da cana-de-açúcar, começou a perder força aproximadamente no final do século XVI,

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devido a uma série de fatores externos e internos, o que levou São Tomé a um período de declínio econômico que se estendeu até me-ados do século XIX, quando a demanda por produtos tropicais, tais como o café e o cacau, cresceu a nível mundial e, assim, alavancou novamente a econômica local, que se voltou para o cultivo e produ-ção desses produtos.

O crescimento da demanda por cacau e café em São Tomé coincidiu com a abolição da escravatura na região, o que levou os portugueses a recorrerem a outras formas de mão-de-obra. Rita Gonçalves e Tjerk Hagemeijer assim descrevem as contratações fei-tas nesse ciclo:

O início deste período coincide com a abolição da escravatu-

ra, em 1869, e com a abolição formal da condição jurídica de

libertos, em 1875, provocando em São Tomé e Príncipe uma

grave crise de mão-de-obra, já que os escravos recém-liber-

tos se recusavam a trabalhar nas empresas agrícolas. O es-

tratagema encontrado pelo regime colonial para colmatar a

escassez de mão-de-obra foi o regime de contrato, instituído

em 1875, que consistia na contratação de trabalhadores, os

contratados (ou serviçais), em outras colónias portuguesas,

designadamente Angola, Cabo Verde e Moçambique [...] o

número de contratados nas ilhas passa a representar cer-

ca de metade da população, havendo também um aumento

substancial do número de portugueses em função do novo

ciclo económico. É de notar ainda que os contratados esta-

vam, em larga medida, confinados às empresas agrícolas

onde trabalhavam e, por conseguinte, segregados dos for-

ros, os escravos libertos (2015, 2-3).

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Devido às mudanças ocorridas na chamada segunda coloni-zação de São Tomé, houve, nesse período, uma alteração linguística importante, com o português passando a predominar sobre as lín-guas crioulas, ao contrário do que ocorria antes. Houve também o aumento da diversidade linguística, que agora contava com o por-tuguês, com as línguas crioulas ali surgidas e com o acréscimo das línguas dos contratados para o trabalho agrícola, entre elas, línguas bantas como o umbundo e o crioulo de Cabo Verde. Nessa socie-dade multilíngue, o português acabou assumindo o papel de L2, sendo usado para a comunicação entre os diferentes grupos locais.

Assim, ao longo do século XX, o português foi ganhando força como a principal língua de São Tomé, sendo, porém, apenas após a sua independência, em 1975, que aparentemente a língua se consolidou de vez, como observado por Gonçalves e Hegemeijer:

Mas a tendência para a nativização do português parece

ter-se acentuado sobretudo depois da independência e

está relacionada com fatores como a escolha do português

como língua oficial exclusiva, a massificação da escolari-

zação em português e o aumento da mobilidade social. De

língua da elite e dos domínios altos, o português passou a

ser a língua de todos os contextos comunicativos, altos e

baixos, da maioria dos são-tomenses (2015, 7).

Com o exposto, pode-se concluir que foi com a passagem da primeira para a segunda colonização em São Tomé que o portu-guês assumiu o papel de língua predominante da região, ganhando o espaço de principal língua materna entre os nativos. Os crioulos ainda têm seu lugar e, embora o último censo realizado (INE, 2012)

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indique um enfraquecimento de sua posição, a sociedade são to-

mense ainda apresenta forte caráter multilíngue.

Como se verá adiante, há indícios de que o multilinguismo

presente em São Tomé tenha influência sobre o tema de investiga-

ção desta pesquisa, a realização do ditongo /ei/, o que torna funda-

mental conhecer os fatos históricos aqui apresentados e a consti-

tuição da sociedade são tomense.

Os ditongos decrescentes em portuguêsDiversos autores se dedicaram ao estudo sobre os ditongos,

de maneira a explicar suas características e formação. Um desses

autores foi Joaquim Mattoso Câmara Jr., que primeiramente esta-

belece algumas importantes considerações sobre as vogais em por-

tuguês para, então, apresentar a definição do ditongo.

De acordo com Câmara Jr., a posição tônica é a que apresen-

ta o quadro completo das vogais distintivas portuguesas e é essa

posição que gera a classificação das vogais como fonemas. Nesse

contexto, há sete vogais, distribuídas entre anteriores e posterio-

res, além da vogal mais centralizada /a/. Assim, o autor apresenta o

seguinte quadro triangular:

Quadro 1: Vogais em contexto tônico (Câmara Jr.: 1970, 43)

altas /i/ /u/médias /o/ /e/ (2º grau)médias /ɔ/ /ɛ/ (1º grau)baixa /a/ posteriores central anteriores

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Esse quadro sofre reduções de acordo com o contexto em que se apresenta. Diante de consoante nasal, por exemplo, ainda que em posição tônica, o quadro fica reduzido a apenas cinco seg-mentos, não havendo as vogais médias de primeiro grau. Em po-sições átonas, ocorrem neutralizações que reduzem o número de consoantes distintivas em português.

Assim, em posição pretônica, no PB, não há oposição entre vogais médias de primeiro e segundo grau, resultando no grupo de cinco vogais /u, O, a, E, i/. Já em posição postônica não-final, há ape-nas quatro vogais, pois há neutralização entre as médias e altas pos-teriores, mas não entre as anteriores, resultando no grupo /U, a, E, i/. Por fim, o contexto que apresenta a maior redução no quadro vocáli-co é o das átonas finais, em que há neutralização entre médias e altas tanto posteriores quanto anteriores, resultando no grupo /U, a, I/.

Câmara Jr. considera ainda mais um contexto de ocorrência das átonas finais, que é “quando a vogal, em vez de ser o centro da sílaba, fica numa de duas margens, como as consoantes. O resulta-do é uma vogal modificada por outra na mesma sílaba e constitui-se o que se chama o ditongo” (1970, 46). Essa posição é chamada pelo autor de assilábica e apresenta forte neutralização, gerando um quadro do sistema vocálico resumida a apenas a oposição entre alta posterior e anterior, como podemos observar nos pares pai/pau e sei/seu. Câmara Jr. defende que tal segmento seja tratado como vo-gal, e não como consoante, baseado no argumento de que é possível encontrar o /r/ brando, que só é encontrado depois de vogais, após ditongos, como em costureira, por exemplo.

Ainda sobre os ditongos, temos uma descrição mais deta-lhada quando o autor trata sobre a estrutura da sílaba, considerada como

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O ditongo /ei/ na variedade urbana do português de São Tomé

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um movimento de ascensão, ou crescente, culminando

num ápice (o centro silábico) e seguido de um movimento

de decrescente, quer se trate do efeito auditivo, da força

expiratória ou da tensão muscular [...]. A estrutura da sí-

laba depende desse centro, ou ápice, e do possível apare-

cimento da fase crescente, ou da fase decrescente, ou de

uma e outra em volta dele, ou seja, nas suas margens ou

encostas (1970, 53).

Câmara Jr. propõe que se represente o centro da sílaba por V e os elementos marginais por C, resultando em diferen-tes possibilidades de padrões silábicos em português, como sim-ples (V), complexa crescente (CV) ou completa decrescente (VC), distribuindo-se, ainda, entre sílabas livres, isto é, que não possuem um elemento marginal à direita da vogal (V, CV), e sílabas travadas, que apresentam esse elemento (CV, CVC). Assim, para classificar a sílaba composta por ditongo, o autor defende a representação CVV, como uma sílaba livre, e não CVC, como sílaba travada, baseado nos seguintes argumentos: (i) o processo de monotongação amplamen-te difundido em português; (ii) a variação livre na divisão silábica no contexto vogal seguida por vogal alta em sílaba átona, como em vaidade (vai-da-de ~ va-i-i-da-de); (iii) a possível produção de um /i/ assilábico como /e/ e um /u/ assilábico como /o/ (como em papaê).

A partir das considerações anteriormente mencionadas, Câmara Jr., considerando, pois, a existência do ditongo em portu-guês quando um dos elementos vocálicos é tônico, elenca onze di-tongos decrescentes, dentre eles o ditongo /ei/, foco deste trabalho, e apenas um crescente (constituído por /u/ assilábico após plosiva labial diante de vogal silábico, como em “qual”).

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Outra autora que se dedica ao estudo das características dos ditongos em português é Leda Bisol. Ela analisa a estrutura dos ditongos e chega a uma distinção entre dois diferentes tipos classi-ficados como verdadeiros, ou pesados, e falsos, ou leves. Para essa classificação, a autora leva em consideração a teoria da sílaba, por ela definida “como um objeto multi-dimensional de sequência de segmentos, cujos constituintes são organizados hierarquicamente” (1989, 186). É apresentada a distinção entre sílabas leves, com-postas por rima simples, de um único segmento, e sílabas pesadas, compostas por rima ramifica, com mais de um segmento, como se pode observar na figura a seguir:

Figura 2: Diferença entre sílaba leve e sílaba pesada (p. 187):

Assim, a distinção entre os denominados ditongos verda-deiros e falsos se dá da seguinte maneira:

o ditongo pesado, o verdadeiro, [é] associado a duas posi-

ções no “tier” da rima, e o ditongo leve, associado a uma só

posição. O primeiro constitui uma sílaba complexa e tende

a ser preservado; o segundo constitui uma rima simples e

tende a ser perdido (pp. 189-90).

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Exemplos de ditongos considerados verdadeiro seriam os vocábulos “pauta” e “reino”, palavras nas quais o ditongo tende a ser preservado, dificilmente resultando em monotongação. Já vo-cábulos como “peixe” e “feira” constituiriam exemplos de falsos di-tongos, pois o ditongo tendo a ser perdido com alta frequência na fala. Ainda sobre a distinção dos dois tipos de ditongo, Bisol argu-menta que, no ditongo verdadeiro, a perda da semivogal pode gerar pares mínimos, tornando-o um ditongo fonológico, enquanto que no falso a perda da semivogal não altera o significado da palavra, sendo assim um ditongo fonético.

Considerando as observações de Bisol, podemos conside-rar que a monotongação do ditongo /ei/ é um processo passível de ocorrer na língua e que merece atenção para determinar quais fatores a condicionam. Sobre os fatores condicionantes, a autora ainda nos apresenta outros dois estudos, publicados em 1994 e 2012, com valiosas observações ao analisar os contextos em que o chamado falso ditongo pode se inserir.

O primeiro contexto analisado é quando há uma consoante palatal subsequente ao ditongo, contexto em que Bisol considera que o acréscimo ou apagamento da semivogal pode ser feito sem alteração no significado da palavra, pois o glide seria, na verdade, um espraiamento do traço [+alto] da palatal, não presente na estru-tura subjacente. O segundo contexto seria quando há, no segmento subsequente, a presença de um tepe, caso em que a perda da semi-vogal também não leva à criação de pares mínimos, o que pode ser justificado por duas diferentes hipóteses: uma seria por metátese, com espraiamento de traços de outros segmentos, gerando a semi-vogal, e a outra por inserção, considerando a escala de sonoridade do tepe, que, dentre as líquidas, consoantes que possuem certas ca-

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racterísticas vocálicas, seria o segmento mais próximo da escala de sonoridade das vogais.

Como se verá na análise dos dados, tais observações são fundamentais para determinar as variáveis a serem empregadas no presente estudo.

Breve levantamento de estudos sobre o ditongo /ei/ no português do Brasil e no português de São Tomé

No âmbito do PB, há diversos estudos que demonstram que a monotongação de /ei/ é um processo produtivo no interior de vo-cábulos, em palavras como “madeira” e “peixe”, por exemplo. Maria da Conceição Paiva (1986) constatou que a monotongação depende basicamente de restrições de ordem estrutural, como o modo e o ponto de articulação do segmento subsequente, sendo favorecido, nesse contexto, pelo tepe e as fricativas, dentre estas, as palato--alveolares.

Revisitando o tema do estudo dos ditongos, Paiva (2011) observou, na fala da maior parte dos indivíduos, uma tendência ao recuo da variante monotongada, com indícios de mudança gera-cional, que poderia estar vinculada ao incremento da escolaridade, ressaltando, ainda, que não se podem ignorar as restrições estrutu-rais bem definidas para a determinação da direcionalidade da alter-nância [ej]/[e].

Sobre a monotongação no PB há, ainda, entre vários outros, os estudos variacionistas de Raquel Lopes (2002), na comunidade de Altamira-PA; Ribeiro (1990), na do Sudoeste do Paraná; Geru-sa Pereira (2004), na variedade de Tubarão-SC; Eduardo Elisal de Toledo (2011), com amostras de recontato, em Porto Alegre, cujos resultados corroboram o indício de que a monotongação do diton-

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go /ei/ é um processo produtivo e condicionado principalmente por fatores estruturais.

Com relação ao PST, há poucos estudos e, dentre os existen-tes, a maioria se restringe, sobretudo, a aspectos morfossintáticos. Sobre os ditongos, focos desta pesquisa, há a dissertação de Alfredo Christofoletti Silveira (2013) que apresenta uma análise dos dife-rentes ditongos no PST, entre eles o /ei/. O autor constata que a monotongação nessa variedade também é produtiva, assim como no PB, e há convergências entre os fatores que resultam na mono-tongação nas duas variedades, como, por exemplo, a presença de uma alveolar no contexto seguinte. No entanto, Silveira constata também que no PST há uma variação estável entre as formas di-tongadas e monotongadas quando no contexto seguinte há uma oclusiva alveolar, o que não ocorre no PB ou mesmo no PE. Outro ponto divergente com relação ao PB encontrado no estudo é que, no PST, a variável social escolaridade se mostra significante para a ocorrência ou não da monotongação. Os resultados indicam que quanto maior a escolaridade do falante, menor a chance de que este indivíduo apresente monotongação.

Pressupostos teórico-metodológicosEsta pesquisa norteia-se pelos pressupostos teórico-me-

todológicos da Teoria da Variação e Mudança (Weinreich; Labov; Herzog: 2006) e da Sociolinguística Variacionista desenvolvida por William Labov (1994; 2008; 2011), que considera, entre ou-tros princípios, a noção de regra variável, dependente da atuação de restrições sociais e linguísticas. As 17 entrevistas que serviram de base para o levantamento dos dados do ditongo /ei/ foram ex-traídas do corpus VAPOR, pertencente ao Centro de Linguística da

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Universidade de Lisboa, realizadas por Tjerk Hagemeijer em 2009, e contemplam indivíduos nativos de São Tomé que se autodeclara-ram falantes de português como L1.

A distribuição dos informantes está estabelecida por sexo, três faixas etárias (18 a 35, 36 a 55 e 56 a 75 anos) e três níveis de escolaridade (fundamental: 5 a 8 anos; médio: 9 a 11 anos e supe-rior: de 12 anos em diante). A partir dessa distribuição estabeleceu--se três variáveis sociais, sexo, faixa etária e escolaridade, além da variável frequência de uso de um crioulo (Brandão: 2011), formulada com base na hipótese de que quanto maior uso um indivíduo fi-zer de um crioulo, mais sua fala estará sujeita a influências dessa língua e, consequentemente, mais se afastará da norma do PE. A variável está assim constituída:

(a) frequência zero/baixa, referente aos indivíduos que se expres-sam fundamentalmente em português;(b) frequência média, relativa aos indivíduos que se expres-sam em português, mas dominam um crioulo e dele fazem uso eventualmente; (c) frequência alta, representativa dos indivíduos que, embora fa-lem o português, se expressam, regularmente, num crioulo.

No que respeita às variáveis estruturais, foram levadas em consideração as controladas por Paiva no estudo do tema no PB: os contextos antecedente e subsequente; a tonicidade da sílaba; o número de sílabas do vocábulo e a posição no vocábulo (radical ou sufixo).

A análise variacionista, apoiada no programa GoldVarb-X, foi realizada em duas etapas, para melhor aferir o alcance da mo-

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notongação: uma, referente ao ditongo /ei/ em contexto medial e outra, referente ao contexto final.

Resultados das análisesA partir das análises das entrevistas do corpus VAPOR fo-

ram levantadas 736 ocorrências do ditongo /ei/ tanto em contato medial quanto em contexto final em formas verbais. É importan-te destacar que de todas as ocorrências do ditongo, em nenhuma houve a concretização de /ei/ como [ɐj], como ocorre no PE, apenas como [ej], com a realização plena do ditongo, ou como a forma mo-notongada [e].

Do total de 736 dados, 516 apresentaram a queda da semi-vogal, resultando em um percentual de 70,1% de monotongação, o que demonstra que esse fenômeno é produtivo na comunidade de fala observada. A tabela a seguir resume os percentuais gerais de monotongação de /ei/ no PST:

Tabela 1: Percentuais gerais da monotongação de /ei/ no PST

[ej]

“mad[ej]ra”/ “comec[ej]”

[e]

“f[e]to”/ “fiqu[e]”

Oco % Oco %

220/736 29,9 516/736 70,1

A tentativa de análise em conjunto dos dois contextos ob-servados, medial e final em formas verbais, não se mostrou satis-fatória, de forma que se optou por analisar os contextos separa-damente, para melhor aferir que fatores condicionam o processo

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Raphaela Ribeiro Passos

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em cada um. Assim, foram analisadas 417 ocorrências de /ei/ em

contato medial, como em “queijo”, e 319 em contexto final, como

em “estudei”.

Começando pelo contexto medial, observou-se que o per-

centual de monotongação nesse caso foi maior que o percentual ge-

ral, atingindo 83,7% dos dados, conforme especificado na seguinte

tabela:

Tabela 2: Percentuais da monotongação de /ei/ no

PST em contexto medial de vocábulo

[ej]“mad[ej]ra”

[e]“f[e]to”

Oco % Oco %

68/417 16,3 349/417 83,7

Procedidos todos os ajustes necessários para analisar os dados no programa GoldVarb-X, a melhor rodada obtida, com sig-nificância de .000 e input de .91, selecionou duas variáveis como atuantes sobre a monotongação, uma social, nível de escolaridade, e uma linguística, contexto subsequente.

Os resultados para a variável escolaridade indicam que quanto menor a escolarização do indivíduo, maior a incidência do processo de monotongação por ele apresentado. Para os falantes de nível fundamental, o P.R. encontrado foi de .81; para os de ní-vel médio, .32; e, para os de nível superior, .14. A tabela a seguir apresenta as ocorrências, percentuais e pesos relativos para essa variável:

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Tabela 3: Atuação da variável “escolaridade” para a monotongação de /ei/ no PST em contexto medial de vocábulo

Nível de escolaridade

Oco Perc. P.R.

Fundamental 179/184 97.3% .81

Médio 111/138 80.4% .32

Superior 59/95 62.1% .14

Input: .91 Significância: .000

É interessante observar que o resultado encontrado está de acordo com o observado por Silveira (2013), que também verificou a influência da escolaridade agindo da mesma maneira ao analisar o ditongo /ei/ no PST. No trabalho do autor, o P.R. para o fator “escolaridade baixa” foi de .64, para “média” .48 e para “alta” .27. Embora os pesos relativos apresentem uma menor distância entre o mais baixo e o mais alto, o comportamento observado é similar.

Os resultados para a seguinte variável selecionada, o contex-to subsequente, demonstram que as fricativas pós-alveolares e o tepe são os favorecedores do processo, apresentando pesos relativos de .67 e .59, respectivamente, enquanto que os demais fatores se mos-traram desfavorecedores, como resumido na seguinte tabela:

Tabela 4: Atuação da variável “contexto subsequente” sobre a monotongação de /ei/ no PST em contexto medial de vocábulo

Contexto subsequente

Oco Perc P.R. Exemplo

[ɾ] 241/268 89.9% .59 financ[e]ra

[ʃ ʒ] 45/47 95.7% .67 d[e]xar f[e]jão

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[t] 56/86 65.1% .23 f[e]tor (feitor)

[s z] 5/12 41.7% .06 ref[e]ção

Outros segmentos 2/4 50% .14 mant[e]ga

Input: .91 Significância: .000

Destaca-se o fato de que diante de [t] há um percentual con-siderável de monotongação de /ei/, o que não ocorre no PB ou no PE, indicando que a monotongação nesse contexto é uma possibili-dade no PST, ainda que o peso relativo encontrado tenha sido .23. Sobre os demais fatores, observamos convergência com os resulta-dos encontrados nos estudos sobre o PB.

Partindo para o segundo contexto observado, final em for-mas verbais, os resultados indicaram que, assim como ocorre em contexto medial, nesse contexto também pode haver monotonga-ção no PST, embora o percentual de aplicação tenha sido menor, 52,4%. A significância dessa rodada foi de .000 e o input de .54, e seus resultados gerais estão resumidos a seguir:

Tabela 5: Percentuais da monotongação de /ei/ no PST em contexto final de verbos

[ej]

“falei”

[e]

“comecê”

Oco % Oco %

152/319 47,6 167/319 52,4

A análise desse contexto com base no programa GoldVarb-X selecionou apenas uma variável como atuante sobre o processo, a

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frequência de uso de um crioulo. Para a frequência baixa, o P.R. en-contrado foi de .43; para a média, de .48; e, por fim, para a alta, de .93.

Como se pode observar, o peso relativo é significativamen-te elevado para o fator de alto uso do crioulo forro por parte do falante, atingindo .93. Cabe observar que, dentre os informantes, havia apenas um que declarou fazer alto uso do forro, portanto, todos os casos de monotongação atrelados a esse fator são do mes-mo informante, que em contexto medial apresenta monotongação categórica e em contexto final praticamente categórica. Além disso, esse mesmo informante apresenta o nível de escolaridade “baixo”, o que, como já visto, é mais um fator que favorece a queda da semi-vogal. Portanto, pode estar ocorrendo também uma ligação entre as duas variáveis na atuação do fenômeno, gerando o alto índice de monotongação.

Embora o reduzido número de informantes não permita uma afirmação precisa, parece que, conforme a hipótese inicial pre-via, há influência do forro sobre o PST. Luiz Ivens Ferraz (1979) apresenta um estudo sobre o forro que fala sobre a estrutura da sílaba nessa língua, que é basicamente aberta, sendo o caso de síla-ba travada uma moderna influência do português, o que pode estar acarretando a perda da semivogal no ditongo /ei/ por falantes que fazem alto uso do forro.

Considerações finaisO estudo aqui apresentado buscou contribuir para o conhe-

cimento do português de São Tomé a partir de aspectos fonético--fonológicos, analisando a realização do ditongo /ei/ na variedade urbana do PST, constando, através de análise variacionista, que,

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assim como ocorre no PB, o processo de monotongação é produtivo e pode ocorrer nessa variedade, atingindo 70,1% dos dados gerais.

A análise separada por contexto medial e final em formas verbais demonstrou que a motivação para a queda da semivogal va-ria a depender do contexto. Em contexto medial de vocábulos, é a escolaridade e o contexto subsequente que a condicionam, sendo os indivíduos de menor escolaridade os que mais apresentam mo-notongação (P.R. 81) e a presença de uma fricativa pós-alveolar ou um tepe no contexto subsequente que favorecem o processo (P.R. .67 e .59, respectivamente).

Já para o contexto final, observaram-se indícios de influên-cia do forro sobre a monotongação no PST, tendo sido a variável frequência de uso de um crioulo a única selecionada, com o fator frequência alta apresentando um elevado P.R., de .93. Cabe ainda observar que a monotongação em contexto final em formas verbais não é típica do PB e tampouco foi encontrada por Silveira em seu corpus de fala do PST.

Em síntese, tais resultados indicam que a monotongação de /ei/ é um processo produtivo no PST, condicionado por fatores estruturais e sociais, em convergência com o PB quando em contex-to medial de vocábulo. Quanto a /ei/ em contexto final de formas verbais pode-se formular a hipótese de que a monotongação esteja vinculada à influência do forro, o crioulo mais falado na região, em que predominam as sílabas abertas, sendo os poucos casos de síla-bas travadas uma influência moderna do português.

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Resumo

Este estudo, realizado segundo os princípios teórico-metodoló-gicos da Sociolinguística Variacionista de Labov, tem por objetivo anali-sar o comportamento do ditongo /ei/ na variedade urbana do português de São Tomé (PST). Busca-se verificar se há convergências no nível fo-nético-fonológico entre essa variedade e o português do Brasil, em que a monotongação é condicionada por fatores de natureza estrutural. Para a análise, realizada com apoio no Programa GoldVarb-X, constituiu-se uma amostra de 736 dados selecionados de 17 entrevistas pertencentes ao corpus VAPOR (Variedades do Português) do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa. Os informantes, falantes de português como L1, estão distribuídos por sexo, faixa etária e escolaridade e, ainda, se-gundo a variável frequência de uso do crioulo forro, a segunda língua mais falada na área. Focalizou-se, separadamente, o ditongo /ei/ em contexto medial de vocábulo (417 dados), como em azeite e feitor, e em contexto final (319 dados) em formas verbais, como comecei e estudei, levando em conta as citadas variáveis extralinguísticas e, ainda, cinco variáveis estruturais, definidas com base em estudos realizados sobre o PB. Os resultados demonstram que a monotongação, que incide em 70,1% dos dados gerais (516/736), tem diferente motivação a depender da posição do ditongo no vocábulo. Em contexto medial, ela é condicionada pelas variáveis escolaridade (indivíduos de menor grau de instrução) e contexto subsequente, em que sobressaem os segmentos [ʃ ʒ ɾ], a exemplo do que ocorre no PB. Em contexto final, mostrou-se saliente a variável frequên-cia de uso do crioulo forro, o que sugere que indivíduos que se utilizam dessa língua com significativa regularidade são os principais implemen-tadores do processo que pode estar sendo motivado por especificidades do seu quadro fonológico.Palavras-chave: ditongo /ei/; monotongação; português de São Tomé; Sociolinguística variacionista.

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Abstract

This study, framed by the theoretical and methodological principles of Variationist Sociolinguistics by Labov, addressed the behavior of the /ei/ diphthong in the urban variety of São Tomé Portuguese. The intention was to ascertain whether there are phonetic and phonological convergences between this variety and Brazilian Portuguese (BP), where monophthongisationis conditioned by structural factors. The analysis, conducted using GoldVarb-X, examined a sample of 736 tokens selected from 17 interviews drawn from the VAPOR (Varieties of Portuguese) Corpus of Lisbon University’s Linguistics Centre. The informants were L1 Portuguese speakers distributed by sex, age and levels of schooling, and also by the variable frequency of use of forro creole, the second most spoken language in the area. Separately, the study addressed the /ei/ diphthong in a word-medial context (417 tokens), as in azeite (olive oil), feitor (foreman), and in a word-final context (319 tokens), in verb forms, such as comecei (I started), estudei (I studied), bearing in mind extralinguistic variables, as well as five structural variables, specified on the basis of studies in relation to Brazilian Portuguese (BP). The results demonstrate that monophthongisation, which appears in 70.1% of the tokens overall (516/736), obeys different motivations, depending on the position of the diphthong in the word. In the medial context, it is conditioned by the variables schooling (individuals with less time at school) and following context, where the segments [ʃ ʒ ɾ] figure prominently, as in BP. In the final context, frequency of use of forro creole was the most influential variable, suggesting that individuals who use this language with significant regularity are the ones who most implement the process, which may be caused by specific features of their phonological system.Keywords: /ei/ diphthong; monophthongisation; São Tomé Portuguese; Variationist Sociolinguistics.

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Uma análise dos itens lexicais com pretônica /e/ no português de São Tomé

Fabiane de Mello Vianna da Rocha Teixeira Rodrigues do Nascimento*

O atual panorama sociolinguístico de São Tomé e Prínci-pe deriva de cinco séculos de evolução e de dois ciclos econômicos ocorridos na primeira (séculos XV-XVI) e na segunda colonizações (séculos XVIII-XIX). Paulatinamente, a língua dos colonos, o portu-guês (PST), se torna o idioma oficial e majoritário (cf. Gonçalves; Hagemeijer: 2015), mas convive com três crioulos autóctones – o forro e o angolar, da Ilha de São Tomé, o lung’Ie, da Ilha do Príncipe – além do caboverdiano. Como são poucos os estudos sobre o PST, este trabalho, pautado num dos capítulos da tese de Nascimento (2018) e que focaliza a pretônica /e/, constitui uma contribuição original para a descrição fonológica dessa variedade.

Na referida tese, as análises variacionistas do alteamento das médias pretônicas basearam-se em amostra constituída por 11.179 ocorrências: 6.643 de /e/ e 4.536 de /o/, extraídas de 17 entrevistas do tipo DID (Diálogo entre Informante e Documentador) com indiví-duos que se declararam falantes de português como L1, distribuídos por sexo, três faixas etárias (18-35, 36-55 e 56-75 anos) e três níveis de escolaridade (fundamental, médio e superior). Tais inquéritos pertencem ao Projeto VAPOR (Variedades Africanas do Português), do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa.

* Doutora em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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Uma análise dos itens lexicais com pretônica /e/ no português de São Tomé

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As análises demonstraram serem baixos os inputs de alteamen-to (/e/: .42; /o/: .33), processo motivado por fatores sociais e estrutu-rais. No PST, a variante [i] é mais provável, se o segmento alvo é: (a) núcleo de sílabas contíguas a uma vogal alta (peso relativo .55), sobre-tudo, tônica (.64); (b) precedido ou sucedido por ataques preenchidos por fricativas (.66 e .58, respectivamente); (c) seguido por sílabas intro-duzidas por nasais (.56), laterais (.54) e/ou [+coronais] (.52) e (d) inte-gra formas não finitas de verbos (.56) e/ou sílabas átonas permanentes (.59). Destaca-se, ainda, em informantes com mais de 11 anos de esco-laridade (.56), entre 36 e 55 anos de idade (.54), do sexo masculino (.53) e/ou que alegam média frequência de uso do forro (.53).

As hipóteses de sobreposição de variáveis e de recorrência de itens lexicais e de contextos justificaram um tratamento quali-tativo dos dados que, neste artigo, se restringe aos casos de diton-gação, de apagamento e de abertura, categóricos de [i] e variáveis entre [e] e [i], em sequências propensas ao alçamento por harmonia vocálica. Almeja-se, se possível, identificar outras tendências além daquelas apontadas pelo estudo sociolinguístico mais abrangente.

A análise sobre o léxico, aqui empreendida, desdobra-se por mais três seções além desta primeira. Na segunda, focaliza-se bre-vemente a sociolinguística variacionista; na terceira, analisam-se os itens lexicais com pretônica /e/ e na quarta, apresentam-se as considerações finais.

Sociolinguística variacionista: breves comentáriosAs línguas surgem, convivem, desaparecem, reinventam-se

e funcionam em condições específicas (Orlandi: 2014, 211). Elas se submetem a processos naturais de mudança, mas os fatores relati-vos à sua atuação lhes conferem complexidade, acentuada na inves-tigação de realidades como a santomense.

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Fabiane de Mello Vianna da Rocha Teixeira Rodrigues do Nascimento

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A Sociolinguística considera ocorrências consistentes e coe-rentes as realidades contextuais da variável e as sociais do indiví-duo, o nível de formalidade do inquérito e a heterogeneidade orde-nada da língua. Além disso, interpreta a variação como inerente a qualquer sistema, correlaciona fenômenos linguísticos, estilísticos e sociais e observa o funcionamento das línguas em meio a mudan-ças estruturais (Weinreich; Labov; Herzog: 2006, 87). Investiga, pois, a relação entre variação e mudança e, empiricamente, elucida questões como a transição, o encaixamento, as motivações, a ava-liação e a implementação de inovações.

Variação e mudança atuam em conjunto com outros proces-sos internos que atingem o sistema linguístico, transformando-o de modo gradual. Uma mudança estrutural efetiva estende-se por toda a comunidade de fala, mas não é imediata. A competição entre duas ou mais variantes pode permanecer por um longo período de tempo e nunca ocasionar mudança ou a generalização de uma delas pode evoluir, de modo contínuo, entre indivíduos de diferentes ge-rações e produzir uma modificação não aleatória no sistema.

A mudança se encaixa nas estruturas linguística e social, sub-metendo-se a relações extralinguísticas não idênticas. Atribuem-se significados diversos a tais influências, em função do fenômeno e da realidade analisados. Para Weinreich, Labov e Herzog (2006, 87), os fenômenos linguísticos costumam se distribuir de modo desigual pela comunidade de fala, sobretudo nas etapas inicial e final da mudança, quando informações de fora podem exercer baixa influência. A tran-sição se inicia com a disseminação de um dado variável no interior de um subgrupo específico da sociedade. Se encaixado ao sistema, ele se difunde de maneira gradual, lenta e, por vezes, influenciada pela reali-dade que o cerca. Por fim, (i) uma variante estereotipada dificilmente se

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Uma análise dos itens lexicais com pretônica /e/ no português de São Tomé

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tornará não marcada na fase inicial de um processo e (ii) a sobreposição e a implementação definitiva de uma variante em detrimento de outra promovem o esvaziamento dos juízos de valor a ela atribuídos.

Tendo em vista o alçamento em Belo Horizonte, Oliveira enfatiza a importância de investigar “a variação sonora nos itens lexicais” (2008, 10), pois enquanto

alguns [...] apresentam variação, [...] outros só apare-cem numa das [...] formas possíveis;Para os itens [...] que apresentam variação, alguns falantes optam, categoricamente, por uma variante, enquanto outros [...] optam, categoricamente, por outra (Oliveira: 2008, 10).

Sendo assim, (i) a variação entre idioletos e itens de um mesmo sistema inerente à mudança sonora, (ii) “dialetos diferen-tes propagam os processos sonoros de maneira diferenciada pelo léxico” e (iii) “a montagem da forma fonética do léxico é individual, [...] embora os mecanismos acionados sejam os mesmos” (Oliveira: 2008, 10).

A seguir, busca-se verificar se essas hipóteses se aplicam ao alçamento de /e/ no PST e, por conseguinte, averiguar a proximida-de entre essa variedade e o português do Brasil (PB), no que se diz respeito à incidência da harmonia vocálica e à resistência à regra geral de redução (cf. Marquilhas: 2003, 1-2).

Análise dos itens lexicais com pretônica /e/ Os 6.643 dados de vogal /e/, estudados por Nascimento

(2018), integram 1.598 itens lexicais. O quadro 1 ilustra as pro-núncias (semi)categóricas e variáveis encontradas na amostra.

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Fabiane de Mello Vianna da Rocha Teixeira Rodrigues do Nascimento

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Quadro 1 – Itens lexicais com comportamentos (semi)categórico e variável quanto às variantes de /e/ pretônico no PST

CasosVari -ante

Nº de itens lexi-cais

Itens lexicais1

(semi)categó-ricos

[e] 776democracia, economia, general, governante(s), negócio, remédio, república

[i] 547deputados, desenvolver, educador, escravidão, felicidade, pequeno(s)

[] 15

aeronáutica, aeroporto, cafezinho, certamente, certinho, completamente, concretamente, diretamente, domesticamente, Elvira, mesadona, parcelazinha, seriamente, sinceramente, tempera

[ej] 44

científico, ensinavam, identificar, inventou, lamentável, orientações, prestar, restaurantes, sentados, sentimento, tendência(s), vencer, vencimento

[ ] 11

ansiedade, eleição, escolhidas, espalha, estaríamos, estás, estava-se, estiveres, estivessem, israelitas, pormenorizadamente

1 Por sua baixa produtividade, listaram-se todos os itens (i) variáveis, exceto quanto à manu-tenção e ao alçamento e (ii) (semi)categóricos, em favor das pronúncias [ɛ] e [ ]. Os demais são só exemplificados.

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Uma análise dos itens lexicais com pretônica /e/ no português de São Tomé

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Variá- veis

[e] ~ [i] 138cebola, escola, existir, feliz, falecer, pedagogia, professor(es)

[e] ~ [] 10dezenove, dezessete, diferente, metalo, nigeriano(s), pegar, pereira, trezentos

[e] ~ [ej] 15

aprender, aprendizagem, atenção, atendendo, central, entram, entrava, fundamental, fundamentalmente, lamentavelmente, pensando, pensar, tentando, tentar, tentou

[e] ~ [ ] 2 secretaria, sociedade

[i] ~ [ej] 11

desenvolvimento, emprego, encher, encomenda, encontrar, enfim, ensinar, ensino, pescar, sentido, sentir

[i] ~ [ ] 18

escolas, está, estamos, estão, estar, estarem, estaria, estavam, estávamos, esteja, esteve, estive, estiver, estiveram, estivermos, estivesse, estou, exatamente

[i] ~ [e] ~ [ej] 6aprendi, assembleia, embora, gestão, questões, vender

[i] ~ [e] ~ [ ] 6começou, energia, estava, exemplo, necessário, pessoas

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Paralelamente aos condicionamentos estruturais, verifi-cam-se outros de cunho lexical. Grande parte2 dos 68 registros de abertura corresponde a:

a) termos derivados/compostos que mantêm, na pretônica eventual, o timbre aberto da palavra-base: (i) “certamen-te” (certo), “completamente” (completo), “diretamente” (direto), “domesticamente” (doméstico), “seriamente” (sério), “sinceramente” (sincero); (ii) “cafezinho” (café), “certinho” (certo), “parcelazinha” (parcela); (iii) “aero-náutica”, “aeroporto” (aéreo), “basquetebol” (basquete), “telejornal” (tela), “nigeriano(s)” (Nigéria); e

b) sílabas contíguas com vogais baixas: “emprestando”, “en-quanto”, “então”, “entrar”, “intelecto”, “mesadona”, “metalo”, “pegar”, “tempera-se”.

As 266 ocorrências de ditongação restringem-se a casos de coda preenchida por:

a) /N/: “aprender”, “apresentado(as)”, “assembleia”, “aten-ção”, “atendendo”, “central”, “científico”, “comple-mentares”, “compreender”, “conscientização”, “desen-volvimento”, “dispendioso(s)”, “emprego”, “encher”, “encomenda”, “encontrar”, “ensinar”, “entender”, “en-trar”, “essencial(is)”, “eventual”, “identificar”, “imple-mentar”, “independência”, “influenciado”, “inventou”, “licenciatura”, “orientações”, “pensar”, “pertencia(m)”, “potencialidades”, “presenciei”, “sensíveis”, “sentados”, “sentir”, “tendência(s)”, “tentar”, “vencer”, “vender”;

2 Os demais casos de pronúncia [ɛ] ocorrem isoladamente nos itens “desempregado” (1), “deze-nove” (2), “dezessete” (3), “dezesseis” (3), “diferente” (2), “Elvira” (1), “entrei” (1), “Pereira” (1), “pertencia” (1) e “trezentos” (1).

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Uma análise dos itens lexicais com pretônica /e/ no português de São Tomé

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b) /S/: “gestão”, “pescar”, “prestar”, “questões”, “respeita”, “restaurantes”, “testemunha”, “trimestral”; ou

c) /l/: “razoavelmente”.

Entre os 394 dados de apagamento, predominam formas finitas e não finitas do verbo “estar” (346), além de:

a) /e/, em posição inicial de vocábulo com ataque vazio e coda vazia ou preenchida por /N/ ou /S/: i) “educação (1), “eleição” (1), “exatamente” (1), “exemplo” (1); ii) “então” (6); iii) “escolas” (1), “escolhidas” (1), “espalha” (1);

b) casos em hiato: “ansiedade” (2), “israelitas” (1), “sociedade” (3); e

c) ocorrências isoladas: “começou” (1), “depois” (9), “energia” (1), “experimentavam” (1), “inde pendência” (1), “inde-pendentemente” (1) “neces sário” (1), “necessidade” (4), “pessoas”(6), “porme norizadamente”(1), “secretaria”(1), “telejor nais”(1), “tendencioso” (1).

Os quadros 2 e 3 exemplificam a distribuição das variantes [i] e [e] nas sequências /deS/, /e/, /eS/ e /eN/, em início de vocábulo:

Quadro 2 – Exemplos de [i] em itens lexicais iniciados por /deS/, /e/, /eN/ e /eS/ no PST

Localização dapretônica Itens lexicais

/deS/

desaparecer, desastre, descobertas, descontente, desculpa, desenvolver, desigualdade, desistir, desliga, desordem, desorganização, desorientada, despejar, desperdiçar, despesa(s), desrespeito, destino, destruir

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/e/

econômica, educação, educar, eloquente, emigração, emigrar, energia, essencial(is), evangelista, evitar, evolução, exame, exemplo, exercer, exercício(s), exige(ia), existir

/eN/

embaixada, empregado(a), empresa(s), encher, encontrar, enfermagem, enfrentar, engraçado(a), enriquecedor, ensaio, ensinar, ensino, entender, entrar, entregar, entrevista(s), envolver

/eS/

escola(s), escravo(a), escrever, escrito(a), espécie, específico(a), espírito, esposa, estação, estar, estilo(s), estímulo(s), estrada(s), estrangeiro(a)(s), estrutura(s), estudante(s), estudar, experiência(s), exploradores, exterior

Quadro 3 – Exemplos de [e] em itens lexicais iniciados por /deS/, /e/, /eN/ e /eS/ no PST

Localização dapretônica Itens lexicais

/deS/ Desprezavam

/e/

economia, edifício(s), educação, elástico, eleitorais, elevadas, emigrantes, emissora, energia, equilíbrio, equipe, errada, evangélica, evangelista, eventual, evito, evolução, exato, executar, exemplo, exercício, exige(m), existir

/eN/ engole, engrossar, entrar, envolvi

/eS/ escola, escolhi, estava, estudava, experimentando

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Uma análise dos itens lexicais com pretônica /e/ no português de São Tomé

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Há itens em que as pronúncias [e], [i], [ɛ], [ej] [ ] coatuam nas sequências /e/, /eN/ e /eS/. No primeiro grupo, houve 5 casos de apagamento da pretônica em posição inicial (“educação”, “eleição”, “energia”, “exatamente” e “exemplo”). Entre os termos introduzi-dos pela sequência /eN/, há (i) um registro de apagamento (“en-tão”); (ii) quatro de abertura (“enquanto”, “então”, “entrar” e “en-trei”) e (iii) dezoito de ditongação (“embora”, “emprego”, “encher”, “encomenda”, “encontrar”, “encontra-se”, “enfim”, “enquanto”, “ensinando”, “ensinar”, “ensinavam, “ensino”, “então”, “entram”, “entrar”, “entrava”, “entrei”, “envolvia-me”). No que concerne à sequência /eS/, encontraram-se, enfim, 24 termos sobre os quais incide a regra de apagamento, 21 deles relativos ao paradigma do verbo “estar”: “escolas”, “escolhidas”, “espalha”, “está”, “estamos”, “estão”, “estar”, “estarem”, “estaria”, “estaríamos”, “estás”, “estava”, “estavam”, “estávamos”, “esteja”, “esteve”, “estive”, “estiver”, “esti-veram”, “estiveres”, “estivermos”, “estivesse”, “estivessem”, “estou”.

Em dissonância com outras investigações sobre o alçamen-to no PB, os resultados da análise sociolinguística apontam varia-ção em contexto de hiato no PST. Os 150 registros da média ante-rior nesse contexto se distribuem por 68 vocábulos:

Tabela 1 – Variantes de /e/ em contexto de hiato no PST

Variantes de /e/

Ocorrências Itens lexicais

Nº % Nº %

[i] 46/150 30,6 32/68 47

[e] 85/150 56,6 33/68 52,9

[] 4/150 2,6 2/68 2,9

[ej] 9/150 6 9/68 13,2

[ ] 6/150 4 3/68 4,4

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A análise dos itens lexicais sugere que, quando /e/ é o pri-meiro elemento de um hiato, [i] é mais frequente: “anteontem”, “campeonato”, “cereais”, “chateado”, “compreender”, “custeadas”, “Jeová”, “nomeação”, “passear”, “preocupação”, “realidade”, “reali-zar”, “reencontrar”, “surpreendido”, “teor”, entre outras.

Embora se trate de ocorrências isoladas (19), os processos de abertura, de apagamento e de ditongação restringem-se a itens em que a média anterior é o segundo elemento de um hiato, sendo o último fenômeno limitado, ainda, a núcleos de sílabas cujas codas são preenchidas por /N/:

a) “aeronáutica”, “aeroporto”;b) “ansiedade”, “israelitas”, “sociedade”;c) “científico”, “compreender”, “compreendeste”, “conscien-

tização”, “inconscientemente”, “influenciado”, “orienta-ções”, “orientado”, “surpreendido”.

Por fim, entre as 85 ocorrências de manutenção do timbre médio, predominam:

a) O item “sociedade”, com 21 casos; b) O prefixo “re”, com 33 registros: “reabilitação” (1), “re-

abilitar” (1), “realidade(s)” (9), “realização” (3), “reali-zado” (1), “realmente” (15), “reencontrar” (1), “reunir” (1), “reuniram” (1); e

c) O prefixo “pre”, no paradigma “preocupar”: “preocupação(ões)” (9), “preocupado” (1), “preocupa-vam” (1), “preocupo” (1).

O alçamento se destacou nos poucos registros de advérbios, numerais e conjunções com a vogal /e/. Cumpre salientar, todavia, a repetição de certos itens. Dos 54 dados de vogal [i] em advérbios, 29 são derivados em –mente e preservam o timbre da palavra origi-

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nal, enquanto os outros 31 se distribuem por 8 vocábulos distintos. Aproximadamente, a metade desses últimos dados de elevação em advérbios apresenta-se no item “melhor” (15/18). Os outros casos – “debaixo” (3/4), “defronte” (1/1), “demais” (4/4), “depressa” (1/1), “detrás” (1/1), “deveras” (1/1) – constituem-se da sequência “de-” em posição inicial. Descrevendo o mesmo condicionamento no PB, Ro-cha (2013, 116) aponta a possível relação entre essa sílaba e a prepo-sição, frequentemente alçada na oralidade.

As 63 ocorrências de alçamento em numerais integram os itens “dezenove” (3/4), “dezesseis” (10/17), “dezessete” (5/7), “dezoi-to” (3/3), “novecentos” (4/4), “segundo(a)” (13/18), “sessenta” (3/11) e “setenta” (22/27). Grande parte das ocorrências de [i] corresponde aos vocábulos “setenta” (22), “segundo(a)” (13) e “dezesseis” (10). Em “segundo(a)”, o alçamento pode ser interpretado como um caso de har-monização vocálica, devido à presença da vogal acentuada [u] na sílaba subsequente. Já em “dezesseis”, “dezessete”, “dezoito” e “dezenove”, como o processo se limita à sílaba inicial, parece haver “confusão ou ge-neralização entre o vocábulo ‘dez’, empregado na composição dos itens e a realização da sequência ‘des-’, prefixal ou não [...]. Os falantes [...] costumam igualar a sílaba precursora ao prefixo frequentemente alçado em português” (cf. Battisti, 1993 apud Rocha: 2013, 115). Em “setenta” e “sessenta” também parece haver confusão com o clítico “se”, alçado nas posições proclítica e enclítica nas variedades brasileira e europeia do português. “Novecentos” preservaria traços originais de composi-ção: no numeral “nove”, a vogal <e> é postônica final, ambiente em que há uma neutralização em favor de [i], no PB.

Das 33 ocorrências de conectores constituídos por vogal /e/ pretônica, 25 alçam e 8 mantêm o timbre médio-alto: “apesar” (3/6), “devido” (3/5), “perante” (0/3), “segundo” (3/3), “senão” (4/4), “se-quer” (3/3), “sobretudo” (9/9). Se os quatro últimos foram categori-

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camente alteados, em “perante” a manutenção é regra e, em “apesar” e “devido”, há variação entre as duas pronúncias. A elevação em “de-vido”, “segundo” e “sobretudo” pode ser explicada pela contiguidade com as vogais tônicas [i] e [u]. À semelhança dos numerais “setenta” e “sessenta”, em “senão” e “sequer”, pode haver uma confusão com a pronúncia do clítico “se”, cuja elevação é recorrente tanto na varieda-de brasileira quanto na europeia do português.

A variante [i] é categórica, por fim, nos 237 itens expostos no quadro 4.

Quadro 4 – Itens lexicais com pretônica /e/ categoricamente alçada no PST

Com vogal alta na palavra

acontecia, acontecido, aconteceria acredito, anestesia, anestesiar, apreciado, arreb[i]ntou, assegurar, Benevil, berinjela, comprometido, confeccionado, confeccionar, conhecia, conhecíamos, consegui, conseguia, conseguiam, conseguimos, conseguir, conseguiram, conseguiria, conseguirmos, conseguiu, decepcionado, dedica-se, dedicada, defia-se, defunto, demitiu-se, deputados, desenvolvido, desenvolvimento, desenvolvimento, deturpação, devíamos, entrevistado, esclarecido, especial, espezinham, exterior, falecido, felicidade, Felipe, feminina, feridas, gengibre, haveria, Henrique, impedido(s), impedir, impediu, interferir, investi, investigação, investir, legítimos, marcenaria, medida(s), melhorar, melindrosa, menino(a)(s), mentir, mentiras, mentiroso(a), mergulhado, messiânica, mestiços, metia, necessitasse, parecido, pedi, pedia, pediam, pedindo, pedir, pequenino(s), pequenina perc[i]beram, percebia, perdidos, perigoso(as), permitido, permitiram, perseguia, perseguições, perseguir, persista, perturbações, pesquisa(s),

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Com vogal alta na palavra(cont.)

precipitei, precisa, precisam, precisamos, precisar, preferi, preferia, preferiu, preferimos pretendia, prevenir, progredimos, progredir, prossegui, prosseguir, queriam, rec[i]bemos, recebi, recebido reconhecida, referi-me, referi, referiu, regimes, remediado, repetição, repetir, resido, respirar, segui, seguia, seguidos, seguinte, seguir, seguirem, seguisse, seguiu, segurança, segurar, seguraram, seguro, sem[i]lhança, sem[i]lhante, senti, sentia, sentiam, sentido, sentimos, sentir, seriam, serralharia, sobretudo, subdesenvolvimento, tecido(s), teríamos, testemunhas, transferido, transferiram, vent[u]inha, vestir

A análise variacionista indicou sete variáveis linguísticas como favorecedoras da regra de alteamento (cf. seção 1). No entanto, em grande parte dos itens lexicais que integram a amostra (149/237),

Outros casos

aconselhamento, aconselhar, aconteceu, agradecer, antepassados, aparecendo, apareceram, apareceu, arrebentou, basquetebol, Betão, catequese, cenário, chegava, cometemos, decorrer, defesa, descente, desejada, desejo(s), desempenha, desempenham, desempregados, desenho, desenvolve-se, desenvolver, despejar, empregado, esperava, faleceram, fechou, futebol, gestor, lembranças, levantou, madredeus, manejar, marceneiro, matemática, melhoramento, melhorar, melhores, mexer, monetário, pandemônio, parecer, pecado, pequeno(a)(s), percebe, perceberam, percebo, perdendo, persegue, pescador, pescar, prefere, presença, prestei, pretendo, professora(s), recebemos, relógio, respeitado, semelhança, semelhante, senhor(a)(s), separou, servente, setembro, sobrecarga, sobremesa, tesoura(s), trajetória, ziguezague

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há uma vogal alta (acentuada ou não) sucedendo a pretônica /e/ (na sílaba contígua ou não), valorizando a atuação da harmonia vocálica sobre o fenômeno investigado. No restante (58/83), prevalecem con-soantes [+coronais] (alveolares e alveopalatais) no ataque precedente à vogal alvo, indicando a atuação paralela do processo de redução, em casos como: “futebol”, “agradecer”, “senhor(a)(s)”, “desempenha(m)”, “parecer”, “(des)empregado(s)”, “lembranças” e “chegava”.

A proximidade de uma vogal alta é um importante favorecedor da pronúncia [i], mas a manutenção também foi registrada nesse con-texto, sobretudo, em sílabas:

a) com coda preenchida por /R/: “alternativa”, “cabo-verdiano(a)(s)”, “cobertura”, “comerciante(s)”, “desperdiçar”, “determinado(a)(s)”, “divertido”, “energia”, “exercício(s)”, “maternidade”, “mercadoria”, “modernizar”, “percurso”, “perdido(a)”, “pergunta”, “persistência”, “superfície”, “termi-nar”, “tuberculose(s)”, “universidade”, “verduras”;

b) iniciais do tipo RV(S)$ (prefixal ou não): “rebelia”, “rec[u]mpensa”, “reconhecidas”, “recruta”, “recuperar”, “recurso(s)”, “redução”, “ref[u]gar”, “refúgio”, “região(ões)”, “regredir”, “religião(ões)”, “repetir”, “reportagens”, “re-primir”, “república”, “residuais”, “resolvido”, “ressurgir”, “resultado(s)”, “retira”, “retribuir”, “revolução”;

c) iniciais do tipo dV$ (prefixal ou não): “dedicar”, “deficiên-cias”, “definida”, “delicado”, “delinquência”, “democracia”, “dem[u]crata”, “dem[u]crático”, “denominava”, “deposi-tou”, “deputado”, “derrubou”, “deterioração”, “determina-ção”, “determinado(a)(s)”, “deveria(m)”, e

d) iniciais do tipo prV$ (prefixal ou não): “predião”, “predomi-nante”, “preliminar”, “presenciava”, “presenciei”, “prevenir”.

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Uma análise dos itens lexicais com pretônica /e/ no português de São Tomé

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Paralelamente, vogais átonas eventuais se mostraram mais propensas a preservar o timbre médio fechado, mesmo em pre-sença de [i] no interior da palavra: “agradecimento”, “alegria”, “al-fabetização”, “aprendizagem”, “atletismo”, “bebida”, beneficiadas”, “característica(s)”, “categoria”, “chefiar”, “competição”, “conhecido(s)(as)”, “cooperativa”, “esquecido”, “empresarial”, “específico(a)”, “esque-cimento”, “evangelista”, “expectativas”, “ferida”, “freguesias”, “genera-lização”, “geometria” ,“gerir” , “hotelaria” ,“identidade” ,“infec[i]ção”, “inter[i]ssante”, “interior”, “investimento”, “material(is)”, “medica-mento”, “mentira”, “metido”, “negativo(a)(s)”, “nigeriano(a)(s)”, “para-lelismo”, “parceria”, “progressiva”, “protegido”, “secretaria”, “seletivo”, “submetidos”, “superior”, “televisão”, “temp[u]rais”, “tendencioso”.

Em sequências cujas pretônicas estariam suscetíveis à har-monização com uma vogal alta, encontram-se registros variáveis quanto à manutenção e ao alçamento (cf. quadro 5). Ao mesmo tem-po que a maioria deles atua de modo isolado na amostra, há flutua-ção fonética, em uma mesma entrevista, dos termos em fonte Arial.

Quadro 5 – Itens lexicais com comportamento variável em presença de uma vogal alta na palavra, no PST

Adventista Aprendi Conheci Conhe­cido

Conhecimen ­ to(s)

Cresci­do(a)

Decisão Dedicação Definir Deveria Deveríamos Devia

Divertir Escrevia Especialidade Esqueci Experiência(s) Feliz

Freguesia Hepatites Lebrevil Leciono Letivo Medicina

Necessi-da de(s)

Pedagogia Pequenina Período Preciso Prefiro

Presidente Pressionar Queria Recurso Regime Residir

Responsa -bili dade

Secundá­rio(a)

Segundo(a) Seletivo Seria Serviçais

Serviço Servir Vendia

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Os dados investigados ilustram peculiaridades entre as estruturas e os entrevistados. A tabela 2 ressalta a distribuição dos processos de manutenção e de alçamento por informante, desconsiderando os contextos descartados da análise variacio-nista por comportamento (semi)categórico, mas tendo em vista as demais variantes da variável dependente (baixa, ditongada e zero).

Tabela 2: Distribuição das variantes [e] e [i], na fala de cada informante do PST

Características dos informantesVariantes

Vogal /e/

Faixa etária

SexoNível de

escolaridade

[e] [i]

Oco. % Oco. %

18-35 anos

Homem

Fundamental 111/215 52 92/215 43

Médio 214/420 51 173/420 41

Superior 184/308 60 102/308 33

Mulher

Fundamental 99 /145 68 35/145 24

Médio 71/100 71 21/100 21

Superior 178/280 64 79/280 28

36-55 anos

Homem

Fundamental 60/82 73 18/82 22

Médio 137/210 65 55/210 26

Superior 138/314 44 160/314 51

Mulher

Fundamental 69/96 72 27/96 28

Médio 149/214 70 53/214 25

Superior 108/263 41 133/263 51

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Uma análise dos itens lexicais com pretônica /e/ no português de São Tomé

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56-75 anos

Homem

Fundamental 185/245 75.5 54/245 22

Médio 173/263 66 66/263 25

Superior 137/244 56 85/244 35

Mulher Fundamental 42/70 60 26/70 37

Médio 63/106 59 37/106 35

Como se verifica, há uma preferência pela pronúncia [e] entre os informantes: a variação em São Tomé parece se situar na comunidade de fala, devido à relativa homogeneidade entre a ma-nutenção e a elevação de /e/ nos inquéritos.

Considerações finais Este estudo investigou as implicações de ordem lexical

na variação da vogal média anterior no português de São Tomé. Inicialmente, apontaram-se, em linhas gerais, os principais condicionamentos da regra de alteamento observados na análi-se variacionista de Nascimento (2018). Embora a maioria des-ses resultados se aproxime da neutralidade (.50), o baixo input da regra de elevação (.42) e a representatividade do processo de harmonização parecem confirmar a hipótese de proximida-de entre PST e PB, no que toca à insubmissão à regra geral de redução, característica do português europeu (cf. Marquilhas: 2003, 7).

A análise dos itens lexicais sobre os quais incidem as va-riantes [ej], [E] e [ ], os casos (semi)categóricos de [i] e os variáveis quanto à manutenção e ao alçamento, em contextos de possível ele-vação por harmonização vocálica, confirmou também as hipóteses

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de sobreposição de fatores e de significativa recorrência de itens lexicais. Além disso, o pequeno número de registros de variação en-tre [e] e [i] em um mesmo item lexical e em um mesmo indivíduo indicou que a maioria dos entrevistados optou por uma das varian-tes. Acredita-se, assim, que, no PST, a flutuação fonética de /e/ pre-tônico abranja a comunidade de fala como um todo.

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Resumo

Este artigo, pautado num dos capítulos da tese de Nascimento (2018), investiga a influência dos itens lexicais na aplicabilidade da regra de elevação da pretônica /e/ no português de São Tomé (PST), a partir dos pressupostos teórico-metodológicos da Teoria da Variação e Mudança (Weinreich; Labov; Herzog: 2006). Visando, sobretudo, a avaliar a sobre-posição de fatores e a indicar possíveis tendências distintas das apontadas pela análise variacionista de que se origina, focalizam-se os casos de i) ditongação; ii) apagamento; e iii) abertura; além dos iv) categóricos de [i]; e v) variáveis entre [e] e [i], nos itens lexicais em que a elevação por har-monia vocálica seria possível. O corpus original inclui 11.179 ocorrências, 6.643 referentes a /e/ e 4.536 a /o/, extraídas de 17 dos inquéritos do tipo DID (Diálogo entre Informante e Documentador) que constituem as amostras do Projeto VAPOR, do Centro de Linguística da Universidade de Lisboa. As entrevistas foram efetuadas com indivíduos, falantes de português como L1, distribuídos por sexo, três faixas etárias e três níveis de escolaridade. Os resultados comprovam a tendência à manutenção do timbre médio no PST e a baixa produtividade dos processos de apagamen-to, de abaixamento e de ditongação. Há, também, itens lexicais e contex-tos mais suscetíveis à elevação. A manifestação do processo de harmonia vocálica parece confirmar a hipótese de proximidade entre a variedade in-vestigada e o português do Brasil (PB), no que toca à insubmissão à regra geral de redução (cf. Marquilhas: 2003).Palavras-chave: Vogal pretônica /e/; alçamento/manutenção; Sociolinguística Variacionista; português de São Tomé.

Abstract

This paper, based on one of the chapters of Nascimento (2018), investigates the influence of lexical items on the application of the pre-tonic /e/ raising rule in the Portuguese of São Tomé (PST), based on the theoretical and methodological assumptions of the Theory of Variation

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Uma análise dos itens lexicais com pretônica /e/ no português de São Tomé

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and Change (Weinreich; Labov; Herzog: 2006). As the main objective is to evaluate the overlapping of factors and to indicate possible trends different from those indicated by the variationist analysis from which it comes from, we focus on the cases of i) diphthongizing; (ii) deletion; and iii) opening; besides the iv) categorical of [i]; and v) variables between [e] and [i], in the lexical items in which the raising by vowel harmony would be possible. The original corpus includes 11,179 occurrences, 6,643 referring to /e/ and 4,536 to /o/, extracted from the 17 DID (Dialogues between interviewer and interviewee) surveys that constitute the samples of the VAPOR Project, of the Linguistics Center of the University of Lisbon. The interviews were conducted with individuals, Portuguese speakers as L1, distributed by sex, three age groups and three levels of schooling. The results confirm the tendency to maintain the average pitch in the PST and the low productivity of the deletion, lowering and diphthongizing processes. There are also lexical items and contexts more susceptible to raising. The manifestation of the vowel harmony process seems to confirm the hypothesis of proximity between the variety under investigation and Brazilian Portuguese (BP), regarding the independence of the general rule of reduction (cf. Marquilhas: 2003).Keywords: Pre-tonic vowel /e/; raising/maintenance; Variationist Sociolinguistics; Portuguese of São Tomé.

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Um estudo das crenças e atitudes no alteamento das vogais pretônicas

Silvia Souza Guerreiro*

O presente estudo observa as crenças e atitudes dos usuários da língua em relação ao alteamento das vogais médias pretônicas. Alguns autores discutem a possibilidade de haver estigma quando as pessoas realizam as vogais médias alteadas. Bisol (1981) afirma que os ortógrafos do século XVI ao XVII declaravam que o altea-mento constituía um erro. Nunes de Leão (1983) e Ioam Franco Barreto (1961), por exemplo, assinalam que os falantes não devem realizar o alteamento nos seguintes vocábulos: milhoria (melhoria), rideiro (rendeiro), custume (costume), pidinte (pedinte) e comiçou (começou). Em observação aos seus resultados, Viegas (1987) afir-ma que “a variação [e] ~ [i] e [o] ~ [u] traz em si um certo estig-ma social” e utiliza um programa de televisão para confirmar tal afirmação. Segundo a autora, a personagem principal recrimina a empregada doméstica quando esta pronuncia o vocábulo intistino.

A partir de testes de atitudes, a pesquisa tem como propó-sito observar se o usuário da língua tende a avaliar positivamente, negativamente ou, ainda, apresenta neutralidade quanto ao falante que produz o alteamento. Esse é um aspecto das vogais pretônicas ainda pouco estudado, uma vez que há registro de apenas um tra-balho (Batista da Silveira, Avelheda e Souza: 2017) que observa as crenças e atitudes em relação ao alteamento.

* Mestre em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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Um estudo das crenças e atitudes no alteamento das vogais pretônicas

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Este artigo é o resultado parcial da dissertação de mestrado de Souza (2017) e divide-se em cinco partes: pressupostos teóricos, metodologia, análise e conclusão, além desta introdução.

Pressupostos teóricos Os pesquisadores Weinreich, Labov e Herzog (2006 [1968])

enumeram cinco problemas a serem observados pela Sociolinguís-tica Variacionista, entre eles o da avaliação. Segundo os autores, devem-se observar as avaliações subjetivas dos usuários da língua em relação a um fenômeno linguístico, uma vez que a não imple-mentação de uma mudança pode ser motivada por uma avaliação negativa da comunidade. Para os pesquisadores,

o nível de consciência social é uma propriedade importan-

te da mudança linguística que tem que ser determinada

diretamente. Correlatos subjetivos da mudança não são

por natureza mais categóricos do que os padrões cam-

biantes do comportamento: a investigação destes corre-

latos aprofunda nosso entendimento dos modos como a

categorização discreta é imposta ao processo de mudança

(Weinreich; Labov & Herzog: 2006 [1968], 36).

Fundamentado no problema da avaliação, Labov (2008 [1972], 174) defende a importância de observar as reações subje-tivas dos usuários da língua em relação a um fenômeno linguísti-co em variação, pois, segundo o autor, muitas vezes o fenômeno encontra-se “abaixo do nível da percepção do consciente”.

A avaliação de determinados fenômenos muitas vezes não é de fácil categorização. Por isso, Labov (2008 [1972], 210-360) pro-põe uma classificação de variáveis sociolinguísticas em três níveis

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diferentes: indicador, marcador e estereótipo. O fenômeno é conside-rado indicador se está abaixo do nível da consciência social. É uma mudança vinda de baixo, pois “a variável não apresenta nenhum padrão de variação estilística na fala daqueles que a usam, afetando todos os itens numa dada classe de palavra”. Além disso, “indicadores são traços linguísticos encaixados numa matriz social, exibindo dife-renciação segundo a idade e o grupo social e parecem ter pouca força avaliativa” (Labov: 2008 [1972], 210-360; grifo nosso). O fenômeno pode ser classificado como marcador quando os fenômenos “embora possam estar abaixo do nível da consciência, produzirão respostas regulares em testes de reação subjetiva” (Labov: 2008 [1972], 360). E, por fim, é estereótipo quando uma variante da variável é realizada por falantes de menor prestígio e, por isso, tende a ser estigmatizada por um grupo social de maior prestígio.

Nesse sentido, a presente pesquisa tem como uma das fi-nalidades verificar se o alteamento se caracteriza como indicador, marcador ou estereótipo. Essas categorizações podem ser verificadas a partir do estudo de crenças e atitudes que tem por propósito obser-var as avaliações dos usuários (e suas crenças) da língua acerca de um fenômeno linguístico. No Brasil, os estudos de crenças e atitudes são muitos recentes, havendo poucos trabalhos na área.

Com o objetivo de analisar as crenças e atitudes, na disserta-ção, foram construídos diferentes testes1 com diversos métodos2 e

2 Os métodos utilizados nos testes são de duas naturezas: o direto e o indireto. No primeiro, o in-formante tem consciência do objeto de estudo; já no segundo, o informante não tem consciência.

1 São vários os testes construídos para observar as crenças e atitudes dos usuários da língua. Dentre eles, encontram-se os de: (a) extração familiar, em que o informante deve identificar a origem, classe social e idade da pessoa que fala; e (b) insegurança linguística, em que o falante indica a forma correta entre duas ou mais opções e, em seguida, diz a que realmente usa.

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Um estudo das crenças e atitudes no alteamento das vogais pretônicas

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técnicas3. No presente artigo, analisou-se o teste de reação subje-tiva, em que o informante emite uma opinião acerca da persona-lidade das pessoas cujas vozes ouviu. O método é o indireto, uma vez que o informante não tem consciência de que suas atitudes so-bre um fenômeno linguístico estão sendo analisadas. Por último, apresentam-se os resultados relativos ao questionário fechado de múltipla escolha.

MetodologiaForam entrevistados 20 informantes (10 homens e 10 mu-

lheres), seguindo a proposta de Kenedy (2015), que afirma que o número mínimo para se observar as crenças e atitudes dos usuários da língua é de 20 juízes. Todos os julgadores tinham ensino supe-rior completo como nível de escolaridade. Cumpre destacar que as perguntas foram formuladas com o intuito de que o informante não reconhecesse o fenômeno a ser analisado.

Antes de iniciar o teste, o informante recebeu um Ter-mo de Livre Consentimento que foi assinado para participar da pesquisa. Assinado o termo, a pesquisadora apresentou ao infor-mante um questionário fechado, com o objetivo de verificar a per-cepção/identificação e a avaliação dos informantes em relação à realização das vogais médias pretônicas, sejam elas fechadas [e, o] ou alteadas [i, u].

Para a aferição da avaliação subjetiva, elaborou-se um questionário fechado com questões de múltipla escolha. Em Sou-

3 Diferentes técnicas são utilizadas nos testes. Dentre elas estão: (a) questionário de estrutura aberta, em que o julgador responde livremente as perguntas realizadas pelo pesquisador; (b) questionário fechado, com perguntas de sim/não, múltipla escolha ou categorização ordenada e (c) leitura, em que o julgador lê um texto e o pesquisador observa a sua realização linguística.

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za (2017),4 há 36 perguntas: 18 distratoras,5 referentes a diferen-tes fenômenos linguísticos; 18 referentes às vogais pretônicas. As questões se intercalavam, colaborando para não identificação do objeto de estudo. Neste artigo, apresenta-se a análise de 180 res-postas relativas a 9 perguntas aplicadas a 20 informantes.

Antes de responder às perguntas, o informante ouviu dois áudios, cujos trechos foram lidos por uma mesma pessoa do sexo feminino. Em todas as duplas de áudios, no primeiro, as vogais pre-tônicas foram produzidas como médias fechadas [e, o], e no segun-do áudio, as pretônicas foram realizadas alteadas [i, u].

Com base nessas perguntas, intentou-se verificar se o jul-gador (i) identificava o fenômeno objeto da avaliação (cf. itens 1.1, 1.2 e 1.3); (ii) relacionava o fenômeno a uma região específica do país (teste subjetivo de regionalidade); (iii) atribuía um determina-do grau de escolaridade ao falante pelo uso de uma ou outra varian-te (teste subjetivo de escolaridade), e (iv) considerava um ou outro uso mais ou menos formal (teste subjetivo de formalidade).

4 Em Souza (2017), a pesquisa constituiu-se de três testes: (1) leitura pelo avaliador de texto contendo contextos favoráveis ao alteamento; (2) teste de avaliação subjetiva– questionário fechado – feito a partir da audição de frases com contexto alteados e não alteados, sobre os quais o avaliador foi instado a responder se notava alguma diferença nas produções e se associava os áudios a aspectos sociais do falante; (3) teste de avaliação subjetiva – questionário fechado avaliativo – em que, a partir de um áudio com realização de pretônicas alteadas, o avaliador foi solicitado a julgar a competência, integridade pessoal e atratividade social do produtor do áudio. Essa ordem dos testes não foi aleatória, mas construída de modo a que gradativamente o avaliador reconhecesse o fenômeno apenas ao final.

5 Exemplo de distratora: a pesquisadora apresentou dois áudios aos informantes: (1) Eu a amo; (2) Eu amo ela. Após os áudios, perguntou: (i) Para você, os áudios são iguais ou diferentes?; (ii) Se você tivesse que atribuir um grau de escolaridade à pessoa do primeiro áudio, você diria que ela cursou: 1º ao 5º ano (ensino fundamental I), 6º ao 9º ano (ensino fundamental II), ensino médio ou ensino superior?; (iii) Se você tivesse que atribuir um grau de escolaridade à pessoa do segundo áudio, você diria que ela cursou: 1º ao 5º ano (ensino fundamental I), 6º ao 9º ano (ensino fundamental II), ensino médio ou ensino superior.

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Análise questionário fechado1.1. Teste de percepção/identificação vogal posterior

O objetivo desse teste foi verificar se o juiz identificava ou não o alteamento das vogais posteriores. Além disso, observar se a identificação da variante alteada se daria em palavras comuns – aquelas que costumam ser alteadas no vocabulário do dia a dia – ou em palavras menos comuns. Dessa forma, tentou-se verificar, de acordo com Labov (2008), se o fenômeno se caracteriza como indi-cador, marcador ou estereótipo.

Áudio 1: J[o]ana é uma excelente dona de casa. Ela c[o]zinha e c[o]stura muito bem. No f[o]gão lenha, faz uma c[o]mida muito saudável sem nenhuma g[o]rdura. Além disso, é uma ótima c[o]stureira. Faz lindo vestidos.

Áudio 2: J[u]ana é uma excelente dona de casa. Ela c[u]zinha e c[u]stura muito bem. No f[u]gão a lenha, faz uma c[u]mida muito saudável sem nenhuma g[u]rdura. Além disso, é uma ótima c[u]stureira. Faz lindo vestidos.

Pergunta 1: Para você, os áudios 1 e 2 são iguais ou diferen-tes? Se são diferentes, em quê?

A seguir, apresenta-se o gráfico 1 com as respostas dos in-formantes:

Gráfico 1 – Pergunta 1 – Teste de percepção/identificação

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Iguais Diferentes / identificou Diferentes / nãoidentificou

Pergunta 1 - Identificação vogal posterior

Mulher Homem

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Ao analisar o gráfico 1, observou-se que: (a) seis informan-tes, três mulheres e três homens, disseram que os áudios eram iguais; (b) seis julgadores, cinco mulheres e um homem, identifica-ram que a diferença era o alteamento das vogais pretônicas poste-riores; e (c) oito informantes, duas mulheres e seis homens, afirma-ram que os áudios eram diferentes, no entanto, apontaram outras diferenças que não o alteamento, como, por exemplo, “a primeira pessoa tem a voz mais aguda”.

A partir das respostas, concluiu-se que, considerando o sexo/gênero do juiz: (i) as mulheres parecem mais sensíveis à identificação do alteamento do que os homens; (ii) apenas seis dos vinte julgado-res (30%) identificaram que a diferença entre os áudios era o altea-mento das vogais médias posteriores. Considerando a proposta de caracterização de Labov (2008), é possível afirmar que o fenômeno do alteamento nas pretônicas posteriores é indicador, uma vez que o alteamento se encontra abaixo do nível da consciência dos informan-tes se parece ter pouca força avaliativa (Labov: 2008, 360).

1.2. Teste de percepção/identificação vogal anteriorO propósito desse teste foi verificar se o informante perce-

bia/identificava ou não o alteamento da vogal pretônica anterior (/e/ ~ [i]), de modo a ser passível de caracterização como indicador, marcador ou estereótipo (Labov: 2008). Como no teste antecedente, o áudio é composto por palavras comuns que costumam ser altea-das no vocabulário das pessoas. No gráfico, a seguir, apresentam-se as respostas.

Áudio 1:[E]stevão é um m[e]nino muito [e]sforçado. De dia, trabalha em uma [e]mpresa como office boy. À noite, frequenta [e]scola pública. Seu sonho é cursar [e]ngenharia civil.

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Áudio 2: [I]stevão é um m[i]nino muito [i]sforçado. De dia, trabalha em uma [i]mpresa como office boy. À noite frequenta [i]scola pública. Seu sonho é cursar [i]ngenharia civil.

Pergunta 2: Para você, os áudios 1 e 2 são iguais ou diferen-tes? Se são diferentes, em quê?

Gráfico 2 – Pergunta 2 – Teste percepção/identificação A partir dos resultados do gráfico 2, verificou-se que: (i)

nove informantes (quatro mulheres e cinco homens) disseram que os áudios eram iguais; (ii) seis juízes (quatro mulheres e dois homens) afirmaram que a diferença entre áudios ocorria no altea-mento das vogais pretônicas; e (iii) cinco julgadores (duas mu-lheres e três homens) declararam que os áudios eram diferentes, mas não perceberam que a diferença era nas vogais anteriores. Assim como na pergunta anterior, (i) as mulheres pareceram mais sensíveis à identificação do alteamento do que os homens e (ii) somente seis dos vinte informantes (30%) identificaram o fenômeno nas vogais pretônicas anteriores. De acordo com Labov

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Iguais Diferentes / Identificou Diferentes / não identificou

Pergunta 2 - Identificação vogal anterior

Mulher Homem

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(2008), o fenômeno parece se caracterizar como indicador, pois o usuário da língua apresenta baixo nível de consciência sobre o fenômeno, isto é, as pessoas não percebem o alteamento na fala de outra pessoa.

1.3. Teste de percepção/identificação anterior e posteriorO objetivo da pergunta 3 a seguir foi analisar se os infor-

mantes tendiam a perceber/identificar o alteamento em palavras específicas que não costumam ser realizadas de modo alteado, como por exemplo, acad[i]mia, t[i]cido, pr[u]m[u]ção, n[u]vembro. Segundo Avelheda,

Viegas (1987, 44) afirma que é “bastante comum no por-

tuguês e caracteriza, por vezes, diferenças dialetais”, mas

“traz em si certo estigma social”, sobretudo em casos me-

nos tradicionalmente atingidos, como intestino, teoria e

academia, que podem marcar origem geográfica ou estra-

tificação social (2013, 34).

Áudio 1: A acad[e]mia Corpore faz uma grande pr[o]m[o]ção nesta s[e]gunda-feira. Quem se matricular até o dia d/[e]zoite de n[o]vembro ganha uma roupa de t[e]cido belíssimo.

Áudio 2: A acad[i]mia Corpore faz uma grande pr[u]m[u]ção nesta s[i]gunda-feira. Quem se matricular até dia d[i]zoito de n[u]vem-bro ganha uma roupa de t[i]cido belíssimo.

Pergunta 3: Para você, os áudios 1 e 2 são iguais ou diferen-tes? Se são diferentes, em quê?

O gráfico 3 abaixo ilustra as respostas dos julgadores:

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Gráfico 3 – Pergunta 3 – Teste percepção/identificação

Todos os informantes (100%) identificaram que a diferença entre os áudios foi a realização das vogais médias pretônicas. Como exemplo de resposta: “no segundo áudio a pessoa falou “ticido”, “academia” e “prumução”. O primeiro é uma linguagem mais culta”.

Nos testes cujas palavras continham vogais médias que normalmente se produziam pela variante alteada, foram poucos os informantes que perceberam/identificaram a diferença, tanto no áudio relativo à vogal posterior (6/20 – 30%), quanto no áudio rela-tivo à vogal anterior (6/20 – 30%). No entanto, quando se trata de palavras cuja realização com alteamento não é comum aos julgado-res, a identificação foi de 100%.

Cabe destacar que a realização alteada em palavras como “ticido”, “academia” e “prumução” não é tão incomum tanto na fala do Rio de Janeiro quanto em muitas variedades do português (principalmente entre os de idade mais avançada). Isso pode evi-denciar que a avaliação negativa do alteamento pode ser fruto de uma diferença geracional ou de uma diferença entre dialetos. Fato

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Iguais Diferentes / Identificou Diferentes / Nãoidentificou

Pergunta 3 - Identificação vogais anterior e posterior

Mulher Homem

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é que o alteamento tende a ser identificado em palavras menos co-mumente alteadas.

2. Teste subjetivo de regionalidadeO objetivo das perguntas abaixo é observar se o informante

atribuía o uso de uma ou outra variante da pretônica a uma região específica do país, o que confirmaria que: (i) o informante reco-nhece a existência da variação linguística, e (ii) a avaliação leva em conta a variação dialetal. Leite & Callou (2005, 9-10), com base em estudos linguísticos de diferentes regiões, afirmam que a região su-deste, especificamente o Rio de Janeiro, costuma ser eleita como fala padrão; diferentemente, as autoras asseveram que as marcas fonéticas da cidade de Salvador costumam ser estigmatizadas pe-los falantes de outras regiões do país. Assim, se o juiz relacionar o primeiro áudio (não alteado) a uma região considerada mais pres-tigiada linguisticamente ou se o julgador associar o segundo áudio (alteado) a uma região considerada menos prestigiada linguistica-mente, como o Nordeste, pode-se confirmar que há avaliação com base na variação entre dialetos.

Áudio 1: Hoje é o batizado de nossa filha [E]stefani. Nosso c[o]mpadre é D[o]mingos e nossa c[o]madre é [E]stela. [E]stefani está com um lindo v[e]stido branco. Após o batismo, vamos fazer uma fes-ta muito b[o]nita com muita c[o]mida e b[e]bida. Nós pegamos um [e]mpréstimo para fazer a festa.

Áudio 2: Hoje é o batizado de nossa filha [I]stefani. Nosso c[u]mpadre é D[u]mingos e c[u]madre é [I]stela. [I]stefani está com um lindo v[i]stido branco. Após o batismo, vamos fazer uma festa muito b[u]nita com muita c[u]mida e b[i]bida. Nós pegamos um [i]mpréstmo para fazer a festa.

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Primeira Pergunta: Em que região o falante do primeiro áu-dio mora?

(a) Norte; (b) Sul; (c) Sudeste; (d) Nordeste; (e) Centro-Oeste.Segunda Pergunta: Em que região o falante do segundo áu-

dio mora?(a) Norte; (b) Sul; (c) Sudeste; (d) Nordeste; (e) Centro-Oeste.

A seguir, apresentam-se os gráficos com as respostas dos informantes.

Gráfico 4 – Pergunta 1 – Teste regionalidade

Tanto os julgadores homens quanto as julgadoras mulheres tenderam a atribuir a fala do primeiro áudio (com as vogais pretônicas fechadas) aos falantes da região Sudeste. De um total de vinte juízes: (a) uma mulher e dois homens identificaram que o falante do áudio vive na região Sul do país; (b) nove mulheres e sete homens afirma-ram que a pessoa mora na região Sudeste; (c) somente um homem declarou que a pessoa é da região Nordeste. Logo, dezesseis dos vinte

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Norte Sul Sudeste Nordeste Centro-Oeste

Pergunta 1 - Regionalidade

Mulheres Homens

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informantes (80%) associaram a realização das vogais médias fecha-das a uma região considerada mais prestigiada linguisticamente.

Gráfico 5 – Pergunta 2 – Teste regionalidade

Em relação ao segundo áudio, cujas vogais pretônicas foram produzidas com a variante alteada, observou-se que há um maior número de mulheres (7) que relaciona o alteamento a alguém que mora no Sudeste, e três mulheres identificam-no como de um mo-rador da região nordeste.

Em relação aos homens, três juízes associaram a fala altea-da a um morador da região Sudeste, seis indicaram tratar-se de residente na região Nordeste. Apenas um homem declarou que a pessoa habita a região Centro-Oeste.

Apesar de metade (50%) dos juízes afirmarem que a falante vive no Sudeste, observa-se, no segundo gráfico, o aumento do nú-mero de pessoas que atribui o alteamento à fala nordestina.

Em resumo, no que tange à realização fechada das pretôni-cas, apenas uma pessoa (5%) declarou que a fala escutada corres-

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Norte Sul Sudeste Nordeste Centro-Oeste

Pergunta 2 - Regionalidade

Mulheres Homens

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ponde a alguém que vive na região Nordeste. No entanto, em rela-

ção à produção alteada das pretônicas, nove dos julgadores (45%)

afirmaram que o falante vive no Nordeste. Desse modo, o fato de

alguns informantes considerarem que os nordestinos produzem

mais a realização alteada do que a realização com a vogal média fe-

chada é indício de uma avaliação negativa regional, conforme pro-

põem Leite e Callou (2005, 9-10).

3. Teste subjetivo de escolaridadeAs perguntas a seguir têm como propósito observar se o

informante atribuiria: (i) a mesma escolaridade para o falante do

primeiro áudio (não alteado) e do segundo áudio (alteado); ou (ii)

um grau de escolaridade maior para a pessoa do primeiro áudio

(não alteado) e (iii) uma menor escolaridade a pessoa do segundo

áudio (alteado).

Áudio 1: Hoje foi um dia muito cansativo. Acordei cedo fui

para o meu [e]mprego. Trabalhei até as d[e]zessete horas. Antes de ir

para casa, passei no mercado e comprei t[o]mate, p[e]pino, m[o]rango,

[e]spinafre, m[o]starda, g[e]ngibre entre outras coisas. Quando cheguei

a casa, preparei a c[o]mida, brinquei com minha filha de b[o]neca e de-

pois a fiz dormir. Estou [e]xausta!

Áudio 2: Hoje foi um dia muito cansativo. Acordei cedo fui

para o meu [i]mprego. Trabalhei até as d[i]zessete horas. Antes de ir

para casa, passei no mercado comprei t[u]mate, p[i]pino, m[u]rango,

[i]spinafre, m[u]starda, g[i]ngibre entre outras coisas. Quando cheguei

a casa, preparei a c[u]mida, brinquei com minha filha de b[u]neca e de-

pois a fiz dormir. Estou [i]xausta!

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Pergunta 1: Se você tivesse que atribuir um grau de escola-ridade à pessoa que produziu o primeiro áudio, você diria que ela cursou:

(a) 1º ao 5º ano (antigo primário ou ensino fundamental I) / (b) 6º ao 9º ano (ensino fundamental II) / (c) ensino médio / (d) ensino superior.

Pergunta 2: Se você tivesse que atribuir um grau de escola-ridade à pessoa que produziu o segundo áudio, você diria que ela cursou:

(a) 1º ao 5º ano (antigo primário ou ensino fundamental I) / (b) 6º ao 9º ano (ensino fundamental II) / (c) ensino médio / (d) ensino superior.

Abaixo, apresentam-se os gráficos referentes às respostas dadas pelos informantes:

Gráfico 6 – Pergunta 1 – Teste escolaridade

Tanto os juízes homens quanto as mulheres tenderam a as-sociar a fala não alteada a uma pessoa mais escolarizada. Observou-se

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1º ao 5º ano 6º ao 9º ano Ensino Médio Ensino Superior

Pergunta 1 - Escolaridade

Mulher Homem

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que: (i) apenas uma mulher disse tratar-se de uma pessoa que cursou somente o ensino fundamental I; (ii) um homem relacionou a fala não alteada a alguém que cursou o ensino fundamental II; (iii) dois homens e duas mulheres disseram que o falante estudou até o ensino médio; (iv) sete mulheres e sete homens declararam que o falante possuía ensino superior. Logo, quatorze informantes (70%) afirmaram que o falante que produziu as vogais médias fechadas possuía maior escolaridade.

Gráfico 7 – Pergunta 2 – Teste escolaridade

Em relação à realização alteada das vogais pretônicas por juízes mulheres, o gráfico 7 revelou que: (i) sete mulheres associa-ram a fala alteada a alguém que estudou até o ensino fundamental (cinco mulheres – ensino fundamental I / duas mulheres – ensino fundamental II); (ii) duas mulheres disseram que o falante cursou o ensino médio, e (iii) somente uma mulher relacionou o falante a alguém que terminou o ensino superior.

Em relação à realização alteada das vogais pretônicas por juízes homens, o gráfico 7 revelou que: (i) somente dois homens julgaram que o falante estudou até o ensino fundamental II; (ii)

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1º ao 5º ano 6º ao 9º ano Ensino Médio Ensino Superior

Pergunta 2 - Escolaridade

Mulher Homem

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quatro homens afirmaram que o falante cursou o ensino médio e (iii) quatro homens declararam que a pessoa fez o curso superior.

Comparando os dois sexos/gêneros, verificou-se que as mulheres apresentaram uma avaliação mais negativa do que os ho-mens, pois há um maior número de mulheres (7 – até o 9º ano – 70%) que atribuíram uma menor escolaridade à pessoa que realiza o alteamento das vogais médias pretônicas.

De uma maneira geral, o uso da variante não alteada foi as-sociado a alguém de maior grau de escolaridade (quatorze juízes – nível superior – 70%). Já em relação ao uso da variante alteada, notou-se que os juízes avaliam negativamente, já que quinze (75%) declararam que o falante não cursou o ensino superior.

Com base nesse resultado, entende-se que a variante altea-da é um marcador social, já que é associado a um menor grau de escolaridade e, conforme Labov, “embora possam estar abaixo do nível da consciência, produzirão respostas regulares em testes de reação subjetiva” (2008, 360).

4. Teste subjetivo grau de formalidadeO objetivo das questões abaixo foi analisar se os informantes

acreditam que a realização do alteamento estaria relacionada com o grau de formalidade da situação ou se os informantes têm conheci-mento de que as vogais pretônicas variam tanto em situações formais quanto informais. Segundo Câmara Jr., “há, porém, certa flutuação. Um mesmo vocábulo pode ter forma com /i/ (ou /u/) ou a forma /e/ (ou /o/), de acordo com registro informal ou formal, respectivamente, que adota um mesmo falante” (apud Viegas: 1987, 72).

Áudio 1: J[o]aquim é um grande [e]mpresário. A [e]mpresa que trabalhou s[e]mestre passado teve grandes lucros, por isso fizemos o c[o]nvite para trabalhar em nossa [e]mpresa de c[o]nsultoria.

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Áudio 2: J[u]aquim é um grande [i]mpresário. A [i]mpresa que trabalhou s[i]mestre passado teve grandes lucros, por isso fizemos o c[u]n vite para trabalhar em nossa [i]mpresa de c[u]nsultoria.

Imagine que a pessoa que fala nos áudios está em duas situa-ções diferentes: numa reunião de trabalho e numa reunião familiar.

Pergunta 1: Numa reunião de trabalho, você acha que a fala seria igual ao:

(a) Primeiro áudio / (b) Segundo áudio / (c) Misturaria o modo de falar do primeiro e do segundo áudios.

Pergunta 2: Numa reunião familiar, você acha que a fala se-ria igual ao:

(a) Primeiro áudio / (b) segundo áudio / (c) Misturaria o modo de falar do primeiro e do segundo áudios.

A seguir apresentam-se os gráficos com os resultados das respostas feitas aos informantes.

Gráfico 8 – Pergunta 1 – Teste grau de formalidade

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Primeiro áudio Segundo áudio Misturaria

Pergunta 1 - Grau de Formalidade

Mulher Homem

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Ao analisar o gráfico 8, observou-se que, de um total de vin-te informantes, nove mulheres e seis homens afirmaram que em uma reunião de trabalho a pessoa deve usar as variantes fechadas [e] e [o]. Apenas dois informantes (uma mulher e um homem) de-clararam que se poderia fazer uso da variante alteada. Somente três homens disseram que o falante misturaria as duas variantes, ou seja, faria uso da variação a que as vogais estão sujeitas. A partir de tal resultado, conclui-se que quinze informantes (75%) acreditam que em uma situação formal, como em uma reunião de trabalho, uma pessoa não poderia realizar o alteamento.

Gráfico 9 – Pergunta 2 – Teste grau de formalidade Já para avaliação do uso das variantes em situação familiar,

observaram-se os seguintes resultados: (i) duas mulheres disseram que a fala seria como a do primeiro áudio (vogais pretônicas fe-chadas); (ii) quatro mulheres e cinco homens afirmaram que a fala seria como a do segundo áudio (vogais pretônicas alteadas) e (iii)

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Primeiro áudio Segundo áudio Misturaria

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Mulher Homem

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seis mulheres e três homens declararam que se poderia misturar a fala do primeiro e do segundo áudio. Os resultados revelam que em uma situação de informalidade, no caso em uma reunião familiar, nove informantes (45%) afirmaram que a fala pode ser como a do segundo áudio, ou seja, com as pretônicas alteadas e nove declara-ram (45%) que o falante poderia misturar a fala do primeiro e do segundo áudios, isto é, fazer variação.

De um modo geral, os julgadores relacionaram a fala não alteada a uma situação que exige mais formalidade. A fala com as vogais alteadas ou a variação entre média fechada e vogal alteada é conferida a uma situação informal. Os resultados dessas perguntas indicam que os informantes defendem que a situação comunicativa, formal ou informal, interfere no uso de uma ou outra variante pre-tônica, o que reforça sua interpretação como marcador linguístico.

ConclusãoA partir dos resultados obtidos nos testes (percepção/

identificação, regionalidade, escolarização e grau de formalidade) do questionário fechado, não é possível afirmar categoricamente uma avaliação negativa em relação à fala alteada das vogais pre-tônicas. Definitivamente, não se pode considerar que o uso da va-riante altea da consiste em um estereótipo, uma vez que nem todas as pessoas tendem a julgar negativamente o falante que realiza o fenômeno. No entanto, com o teste, é possível observar que há uma clara associação da variante alteada com o que é menos prestigioso.

De acordo com a proposta de avaliação de Labov (2008), é possível classificar o fenômeno do alteamento como indicador ou marcador. O alteamento pode ser caracterizado como indicador pois o fenômeno se encontra abaixo do nível da consciência social dos

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usuários da língua. A partir do teste de percepção/identificação, das vogais posterior e anterior, verificou-se que a maioria dos julga-dores não identificaram que a diferença entre os áudios era o altea-mento das vogais pretônicas, ou seja, as pessoas não têm consciên-cia de que as vogais pretônicas se encontram em variação na língua, por isso o alteamento não costuma ser estigmatizado. No entanto, o alteamento também pode ser caracterizado como marcador pois, como afirma Labov (2008, 306), e como se verificou nos testes (re-gionalidade, escolaridade e grau de formalidade), apesar de o fenô-meno “estar abaixo do nível da consciência”, os usuários da língua “produzirão respostas regulares em testes de reação subjetiva”.

Tal resultado encontra respaldo na afirmação de Labov, se-gundo a qual “a grande maioria das regras linguísticas está bastante distante de qualquer valor social”. No entanto, o mesmo autor pro-põe que “as variáveis mais próximas da estrutura superficial fre-quentemente são foco de avaliação social”. Foi o que se verificou na avaliação da variante alta das vogais pretônicas: “se um dado grupo de falantes usa uma variante particular, então os valores sociais atribuídos a esse grupo serão transferidos a essa variante linguísti-ca” (Labov: 2008, 290).

Ainda em relação à avaliação subjetiva, Labov (2008, 174-360) postula que as variáveis fonológicas não estão no nível da consciência do falante, mas isso não significa que não são objeto de avaliação subje-tiva. De acordo com o próprio autor (2008, 290) dificilmente o falante usa duas variantes sem atribuir significado social a elas.

Mostra-se, pois, relevante à incorporação dos estudos de crenças e atitudes aos fenômenos variáveis do nível fonético-fono-lógico, a fim de que se discuta o problema da avaliação subjetiva, bem como seu papel na variação e mudança linguística, conforme proposto por Weinreich, Labov, Herzog (2006).

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Referências

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BISOL, Leda. Harmonização vocálica: uma regra variável. Tese de doutorado em Linguística. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1981.

CALLOU, Dinah & LEITE, Yonne. Como falam os brasileiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

KENEDY, Eduardo. “Palestra sobre o livro de sua autoria Introdução à Linguística Experimental”, realizada na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 15 de maio de 2015.

LEÃO, Duarte Nunes de. “Ortografia da língua portuguesa”. In: Du-arte Nunes de LEÃO. Ortografia e origem da língua portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1983.

SOUZA, Silvia Carolina. Alteamento das vogais médias pretônicas no município do Rio de Janeiro: décadas 70, 90 e 2010 / Estudo de crenças e atitudes. Dissertação de mestrado em Letras Vernáculas. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2017.

VIEGAS, Maria do Carmo. Alçamento de vogais pretônicas: uma aborda-gem sociolinguística. Dissertação de mestrado em Linguística. Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 1987.

WEINREICH, Uriel; LABOV, Willian & HERZOG, Marvin. Fundamen-tos empíricos para uma teoria da mudança linguística. Tradução de Marcos Bagno. São Paulo: Parábola, 2006.

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Resumo

Este artigo é um estudo de crenças e atitudes em relação ao uso do alteamento das vogais médias pretônicas. Seu objetivo é analisar a ava-liação subjetiva do fenômeno do alteamento e as crenças em relação ao usuário da variante alteada. Apresentam-se resultados extraídos de um questionário fechado referentes à identificação do fenômeno, regiona-lidade, escolaridade e grau de formalidade. Fenômenos fonológicos são pouco identificados por estarem abaixo do nível de consciência do falante. Segundo Labov, “reações a variáveis fonológicas são respostas desarticu-ladas abaixo do nível da percepção consciente” (2008, 174). Todavia, os juízes tendem a avaliar negativamente o falante que realiza o alteamento. Levando em conta a proposta de Labov, pode-se afirmar que o alteamento se caracteriza como indicador/marcador. Palavra-Chave: crenças e atitudes; variação; alteamento; vogais.

Abstract

This study reports on a survey on beliefs and attitudes on raised unstressed vowel. The objective is to analyze the subjective evaluation of the phenomenon and the beliefs regarding the users of the high variant. Results are extracted from a closed questionnaire regarding the identification of the phenomenon, regionality, level of education and degree of formality. Phonological phenomena are rarely identified because they are below the speaker’s level of consciousness. According to Labov “reactions to phonological variables are disjointed responses below the level of conscious perception” (2008, 174). However, the judges tend to negatively evaluate the speaker for the use of the raised vowel. According to Labov, it is stated that the high variant is an indicator-marker.Keywords: beliefs and attitudes; variation; rising vowel; vowels.