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« SEM INSPIRAÇÃO PARA CARTÃO POSTAL » * : A CIDADE DO RIO DE JANEIRO NA ÓPTICA NATURALISTA Armando Gens Universidade Estadual do Rio de Janeiro Brasil A literatura e a cidade do Rio de Janeiro A denominação de Cidade Maravilhosa, que o Rio de Janeiro ostentou por muito tempo e que ainda exibe em franco contraste com uma cidade degradada pela barbárie, é atribuída a Jane Catulle-Mendès. Em sua viagem ao Brasil, na primeira década do século XX, quando “Faire l’Amérique” 1 tornara-se “slogan” de época, devido ao desenvolvimento econômico do Brasil e da Argentina e ao reconhecido valor outorgado a estes dois países como espaços de turismo aprazível, a escritora francesa produziu um livro encomiástico, composto de 28 poemas, no qual ressaltou a supremacia das belezas naturais e cujo título – La Ville Merveilleuse (1913) 3 – logo se converteu em antonomásia da cidade. Contudo, cabe ressaltar que, em espaço literário, o conjunto de imagens relativo a uma cidade apresenta-se contraditório porque opositivo. A cidade do Rio de Janeiro não foge a esta regra e seu perfil literário comporta diferentes variações, que podem ser de ordem estética, estilística, retórica e temporal. Portanto, se Jane Catulle-Mendès, no início do século passado, elaborou uma imagem da cidade digna de cartão- postal, no final deste mesmo século, precisamente, no ano 2000, Patrícia Mello, rasurando imagens postais, em seu romance intitulado Inferno,

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« SEM INSPIRAÇÃO PARA CARTÃO POSTAL » * :

A CIDADE DO RIO DE JANEIRO NA ÓPTICANATURALISTA

Armando GensUniversidade Estadual do Rio de Janeiro

Brasil

A literatura e a cidade do Rio de Janeiro

A denominação de Cidade Maravilhosa, que o Rio de Janeiro

ostentou por muito tempo e que ainda exibe em franco contraste com uma

cidade degradada pela barbárie, é atribuída a Jane Catulle-Mendès. Em

sua viagem ao Brasil, na primeira década do século XX, quando “Faire

l’Amérique”1 tornara-se “slogan” de época, devido ao desenvolvimento

econômico do Brasil e da Argentina e ao reconhecido valor outorgado a

estes dois países como espaços de turismo aprazível, a escritora francesa

produziu um livro encomiástico, composto de 28 poemas, no qual

ressaltou a supremacia das belezas naturais e cujo título – La Ville

Merveilleuse (1913) 3 – logo se converteu em antonomásia da cidade.

Contudo, cabe ressaltar que, em espaço literário, o conjunto de

imagens relativo a uma cidade apresenta-se contraditório porque

opositivo. A cidade do Rio de Janeiro não foge a esta regra e seu perfil

literário comporta diferentes variações, que podem ser de ordem estética,

estilística, retórica e temporal. Portanto, se Jane Catulle-Mendès, no

início do século passado, elaborou uma imagem da cidade digna de cartão-

postal, no final deste mesmo século, precisamente, no ano 2000, Patrícia

Mello, rasurando imagens postais, em seu romance intitulado Inferno,

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elegeu como espaço a favela do Berimbau que, na cartografia romanesca,

localiza-se na cidade do Rio de Janeiro, claramente dividida entre o morro

e o asfalto. A partir das duas obras, situadas nos pontos extremos

do século XX, observa-se que a cidade do Rio de Janeiro apresenta

fisionomia variável controlada por padrões estéticos, permeada pelos

exercícios de observação e pesquisa, e representada pela exuberância da

paisagem natural ou por um tipo de comunidade estigmatizada. Já para o

escritor do século XIX, de acordo com Philippe Hamon na obra

Expositions: littérature et architecture au XIXe siècle 4, a arquitetura deixa

de ser tão-somente pano de fundo, isto é, simples cenário urbano cuja

finalidade primeira residiria em localizar espacialmente ação e

personagens, para concretizar, produzir e permitir, simultaneamente,

uma concepção de História, coletiva ou individual, e uma representação da

vida cotidiana e dos rituais em que o social se expõe. Esclarece, ainda, o

pesquisador, que a imbricação entre literatura e arquitetura já se

encontrava bastante generalizada no âmbito do romance oitocentista,

como se a produção ficcional devesse se alimentar, de modo sistemático,

de casas, cidades, monumentos e habitats diversos que pontuavam um

real cada vez mais urbanizado. Neste sentido, a representação mimética

de uma cidade pode derivar de um tipo de construção urbana que

emblema costumes, valores, relações sociais e a eles confere visibilidade e

materialidade. Diante de tais conceitos, é possível visualizar, através da

óptica naturalista, a cidade do Rio de Janeiro a partir de duas formas

arquitetônicas – o sobrado e o cortiço – que expõem de modo legível não

mais um real, mas uma representação metonímica da cidade e de seus

habitantes habilmente exibidos por um narrador-cicerone 5.

A cidade do Rio de Janeiro na óptica naturalista

Para que se

compreenda o processo

de representação da

cidade em O Cortiço

(1884) e em Casa de

Pensão (1890),

romances de Aluisio

Azevedo, não se pode

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deixar de fazer

referência ao método de

composição utilizado

pelo autor, cujo projeto

literário tinha como

bases a documentação,

a observação e a

experimentação. Ao

colocar em prática este

projeto, o autor, sem

desconhecer as teorias

de Émile Zola

divulgadas na imprensa

brasileira 6, aplica seus

conhecimentos de

pintor7 e caricaturista,

conforme assinalou

Araripe Júnior, em

artigo publicado na

Gazeta de Notícias, de

20 de novembro de

1900. Relatou, então, o

crítico literário que, por

volta de 1884, ao visitar

o escritor maranhense,

encontrou-o a escrever

O Cortiço em folhas de

papel almaço. Porém, a

atenção do visitante

recaiu sobre “uma fila

de bonecos de papelão,

desenhados a cores,

espetados em pequenas

hastes de cedro, presos

a discos da mesma

madeira, como

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fantoches de teatrinhos

de crianças” 8. Ao

indagar ao escritor o

sentido daquela peça,

Aluísio respondeu que

era daquele modo que

estudava as

personagens do

romance que estava a

produzir. Além de impor

um forte acento visual e

arquitetural à

composição de suas

obras, o autor de O

Mulato (1881),

comprometido com a

documentação, realizava

pesquisas de campo,

disfarçando-se de tipo

popular, valendo-se de

entrevistas ou até

mesmo morando,

experimentalmente, em

um cortiço9. O

método de trabalho de

Aluísio Azevedo permite

inferir que o espaço,

enquanto categoria

narrativa nos romances

do autor, não é menos

importante que as teses

científicas, os relatos de

casos patológicos, os

estudos de

temperamento, a

denúncia de aberrações

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e as imagens do

submundo. Fica patente

que, em Casa de Pensão

e O Cortiço, a cidade do

Rio de Janeiro,

transformada em

componente estrutural

da narrativa, assume a

feição de cidade-

laboratório, pois se

torna um agente

dinâmico no processo

de demonstração de leis

naturais e na revelação

escandalosa de vícios e

defeitos, diligentemente

ordenados e catalogados

em formas

arquitetônicas. Em

Casa de Pensão e O

Cortiço, vê-se desde os

títulos que a ênfase

recai na categoria

espacial. De acordo com

Antonio Candido, “o

cortiço é o centro de

convergência, o lugar

por excelência, em

função do qual tudo se

exprime. Ele é um

ambiente, um meio –

físico, social, simbólico

–, vinculado a certo

modo de viver e

condicionando certa

mecânica das relações”

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10. Esta prevalência do

espaço sobre outros

elementos estruturais

da narrativa consuma-

se quando, devido ao

acionamento de

possibilidades retórico-

estilísticas, o espaço

dotado de labialidade

passa a integrar a

categoria das

personagens. Deste

modo, a escolha da casa

de pensão e do cortiço

como formas

arquitetônicas

marcantes da cidade do

Rio de Janeiro garante

maior visibilidade aos

desníveis econômicos e

confere volume às

contradições da

população urbana

fluminense, composta

por um segmento

elitista, embora

reduzido, detentor do

poder de decisão, e por

um grande contingente

de estigmatizados,

mantido sob estreita

vigilância policial.

Aluísio Azevedo, ao

escolher dois modos de

habitar – a casa de

pensão e o cortiço –,

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atribui a eles uma força

semântica quando, na

tessitura do texto

literário, os contrapõe a

uma forma arquitetônica

– o sobrado –, a fim de

promover o acirramento

das diferenças sociais,

culturais e econômicas

e, ao mesmo tempo,

colocar em evidência as

transformações por que

passa a cidade. O

exame do plano

semântico das formas

de moradia que dão

título aos romances já

citados revela-se como

uma contra-dicção no

projeto romântico

brasileiro tão afeito às

paisagens naturais e, ao

mesmo tempo, sugere

uma apreensão

fenomenológica dos

modos de morar.

Inicialmente, a

pensão distingue-se do

hotel por oferecer

ambiente familiar a

preço módico.

Entretanto, a grande

diferença está no

ângulo das relações

sociais, pois,

mascarando as frias

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dinâmicas da hotelaria e

oferecendo menos do

que promete, a pensão,

mesmo que só na

aparência, simula uma

nostálgica ambiência

familiar já não vivida

pelos diferentes tipos

sociais que por ali

circulam. Levando em

consideração que a

cidade do Rio de Janeiro

era um ponto de

convergência, atraindo

pessoas de diversas

partes do Brasil e do

mundo, a pensão

configura-se, ainda,

como uma demanda

urbana determinada por

fatores migratórios e

pelas condições do

sistema de habitação e

atende as exigências

decorrentes do

desequilíbrio entre o

número de imóveis

disponíveis para

moradia e o grande

número de pessoas que

busca a proximidade

com a Corte por

diferentes motivos:

estudo, trabalho,

aventura, etc.

Regido pelas leis

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da prosa documental, o

retrato da pensão

elaborado pelo escritor-

desenhista comporta

dois perfis de uma

mesma fachada. De

acordo com o livro, o

primeiro tem sua

fundação garantida por

um contrato amoroso

regido pelas leis

capitalistas. Da união

dos personagens

Coqueiro e Madame

Brizzard surge uma

sociedade em que

somam um velho prédio

de propriedade do

noivo, situado na rua do

Resende, algum

dinheiro da noiva e a

experiência dela no

ramo de pensões. Ao

perder a antiga função,

o sobrado deixa de ser

habitado por uma só

família e, após uma

significativa reforma, “a

casa de pensão de

Madame Brizzard [...]

surgiu ameaçadora,

escancarando para a

população do Rio de

Janeiro a sua boca de

monstro” 11.

Quanto ao

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segundo perfil, “a

célebre casa de pensão

de Madame Brizzard,

outrora tão animada e

concorrida” 12,

transformou-se em “um

desses melancólicos

sobradões de alugar

quartos, que se

observam a cada canto

do Rio de Janeiro”;

“esses viveiros sombrios

e malcheirosos”13,

destinados a servir de

moradia para “toda a

sorte de indivíduos, mas

de indivíduos que já

foram alguma coisa ou

de indivíduos que ainda

não são nada” 14.

Realiza-se nova

distribuição do espaço.

A sala de visitas e a

varanda, espaços de

convivência e de

arejamento, dão lugar a

“pequenos

repartimentos de

tabique, forrados de

papel nacional”15.

Amesquinham-se,

drasticamente, as

condições gerais da

antiga casa de pensão,

para melhor caracterizar

um tipo de habitação

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um tipo de habitação

urbana que, gerenciada

pela capitalização

imobiliária, ignora

conceitos básicos como

salubridade e conforto.

Devido às

transformações

impostas ao sobrado,

esta forma arquitetônica

converte-se em

metonímia da cidade,

congregando em sua

semiose uma série de

contrastes, de modo a

enfatizar uma imagem

deteriorada da cidade.

Através da bipolaridade

entre imóvel residencial

versus mobilidade

funcional, imobilidade

social versus mobilidade

de capital, áreas de

exclusão versus áreas

de inclusão, força de

trabalho versus

escassez imobiliária,

vítimas versus algozes,

povo versus força

disciplinadora, erige-se

um perfil da cidade

bastante contraditório,

vivido pelo migrante

Amâncio e relatado por

um narrador

comprometido com a

exposição dos fatos.

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Insistindo na

mudança da semântica

funcional do sobrado

acarretada pelas

exigências do

crescimento e da

expansão da cidade e na

força documental da

narrativa de Aluísio

Azevedo, cumpre citar o

significativo exemplo

que Gilberto Freire

oferece ao registrar que

“os sobrados maiores”,

antes pertencentes à

fidalguia urbana,

convertiam-se em

“armazéns, hotéis,

colégios, pensões,

quartéis, repartições

públicas, sede de

sociedades

carnavalescas”,

enquanto os menores

em “cortiços, cabeças-

de-porco e casas de

prostitutas”16. Se

os sobrados tiveram sua

funcionalidade original

ajustada aos diferentes

usos a eles aplicados, a

cidade do Rio de

Janeiro, enquanto

categoria da narrativa,

incorpora a imagem

inicial da casa de

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pensão de Madame

Brizzard e se converte

em “boca de monstro”

para devorar migrantes

incautos, promover a

violência e fazer da dor

alheia um espetáculo

público, seqüência

muito bem glosada no

capítulo final de Casa

de Pensão, quando

Dona Ângela, mãe de

Amâncio, “arrancou do

peito um formidável

grito e caiu de bruços

na calçada”17 ao se

deparar com o retrato

do filho morto, exposto

em uma vitrine, em

meio a bengalas e

chapéus. O processo de

descoberta vivido pela

provinciana personagem

descortina uma cidade

capitalista, que, em sua

voracidade, converte,

em mórbida tática de

consumo, o nome e os

retratos do jovem

Amâncio. Dando

continuidade às

relações entre literatura

e arquitetura, Aluísio

Azevedo, em O Cortiço,

conforme assinalou

Ligia Vassallo, “dedica-

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se a focalizar as

camadas populares,

centrando-se na

residência coletiva,

habitada por uma classe

em constituição, a dos

trabalhadores manuais

livres, em coexistência

com os últimos

estertores do sistema

escravagista” 18. A

declaração da

pesquisadora comprova

que o romancista

maranhense volta a

recorrer às formas

arquitetônicas como

metonímia e antítese do

tecido urbano, pois,

para dar conta dos

acentuados contrastes

existentes entre

“trabalhadores e gente

abastada”19 que habitam

a cidade do Rio de

Janeiro, localiza o

cortiço do português

João Romão ao lado do

sobrado do Miranda,

tendo como divisa um

muro. A rede de

oposições entre um e

outro grupo toma corpo

na verticalidade do

sobrado em contraste

com a horizontalidade

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com a horizontalidade

do cortiço, de modo a

representar, através de

formas arquitetônicas, a

posição de seus

habitantes na pirâmide

social. No campo

semântico relativo ao

cortiço, Aluísio usa e

abusa do processo de

zoomorfização –

exaustivamente

estudado por Sônia

Brayner, em A Metáfora

do Corpo no Romance

Naturalista –, para

estabelecer

correspondências não

só entre “a vida

orgânica e a vida

social”20 mas também

entre a arquitetura das

habitações animais e a

arquitetura das

habitações humanas.

Deste modo, o cortiço

ganha configuração

variada. Apresenta-se,

inicialmente, como

“serpente de pedra e

cal” 21, devido ao seu

crescimento lento,

silencioso e esquelhado,

desdobrando-se em

imagens de

multiplicação e excesso,

ora como “formigueiro”,

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ora como “formigueiro”,

ora como “colmeia”, ora

“galinheiro” ou, ainda,

como “chiqueiro”. Trata-

se de imagens

conversivas que

denunciam a

aglomeração urbana, tão

bem representada pelas

formigas e pelas

abelhas, como animais-

símbolo das massas22.

Cumpre, assim, às

formas arquitetônicas

sinalizarem a expansão

das habitações

populares; o processo

de enclausuramento

dos pobres urbanos,

confinados em cortiços;

as estratégias de

controle policial das

massas; as dinâmicas

de acumulação de

capital e a crescente

especulação imobiliária.

Entre tantos outros

exemplos, a sinalização

desempenhada pelas

construções

arquitetônicas informa a

um só tempo a

conversão da forma e o

aumento considerável

de capital, pois à

medida que o vendeiro

português vai galgando

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português vai galgando

os degraus da ascensão

social que o fazem

ingressar no circuito do

sobrado, surge a

“Avenida João Romão”,

cuja arquitetura

reduplica a verticalidade

dos sobrados e se

afasta da tipologia

arquitetural do cortiço

rival: “Cabeça de Gato”.

As formas

arquitetônicas em

caráter de exposição

podem comportar uma

vista da cidade do Rio

de Janeiro que encerra

uma paisagem típica de

necrópole. A degradação

humana e social, a

exploração do trabalho

operário, as pestes, a

exclusão em diferentes

níveis secundam o clima

sinistro e amedrontador

que brota de uma

concisa descrição do

romance intitulado Bom-

crioulo (1895), de Adolfo

Caminha. Comprove-se:

“A cidade iluminada,

estrelada de luzes

microscópicas, era como

vasta necrópole na

lúgubre inquietação da

noite”23. Neste

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noite” . Neste

romance, um instigante

retrato do viver dos

marinheiros conjuga-se

a um triângulo amoroso

entre Amaro, um

escravo fugido que se

alista na Marinha de

Guerra e que atende

pelo codinome de Bom-

crioulo; “Aleixo, um belo

marinheiro de olhos

azuis, muito querido por

todos e de quem diziam-

se cousas...”24; e

Carolina, “uma

portuguesa que alugava

quartos na Rua da

Misericórdia somente

para pessoas de “certa

ordem”25. Como se

pode perceber, repete-

se a fórmula já utilizada

por Aluísio Azevedo. O

sobrado reaparece

adaptado em casa de

cômodos e serve de

refúgio para Amaro e

Aleixo. Instalam-se os

amantes em um quarto,

espécie de sótão

decadente, “roído pelo

cupim e tresandando a

ácido fênico”26 e ali

montam um arremedo

de câmara nupcial,

decorada com peças de

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decorada com peças de

gosto duvidoso.

Circulavam pelos

arredores da casa de

cômodos, segundo

informações do

narrador, “sujeitos mal

vestidos, operários e

ganhadores”, “com um

ar miserável e bisonho

de ovelhas mansas”27.

Dando continuidade à

descrição, ele

acrescenta: “Pairava um

cheiro forte de urina,

assim como uma

emanação agressiva de

mictório público,

envenenando a

atmosfera, intoxicando a

respiração”28. Por fim,

investindo em uma

configuração grotesca,

registra que “o

movimento, porém,

aumentava com a luz;

multiplicavam-se os

transeuntes numa

confusão bizarra de

cores e toilettes: daqui,

dali, surgiam caras

estranhas, fisionomias

amarrotadas pelo sono,

como abelhas de um

cortiço”29. Este é o

cenário antecipatório

que se impõe como

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que se impõe como

índice da cena em que

Amaro irá assassinar

Aleixo, porque descobre

que “seu efebo” estava

amigado com Carolina, a

portuguesa “gorda,

bonitona, muito vistosa,

d’ olhos grandes”30.

O romance de

Adolfo Caminha reprisa

a arquitetura-símbolo da

cidade do Rio de Janeiro

nas últimas décadas do

século XIX; retoma a

metáfora nuclear da

colméia, como

representação da massa

urbana; configura a

cidade como necrópole,

cujo traçado evoca um

labirinto. Em parte,

esse modo de ver deve-

se à “estética positivista

do século XIX”, uma vez

que “a arte é definida de

acordo com sua função

social e se aproxima do

conceito de techné, na

medida em que é

concebida como fator de

produção ou de

transformação

econômico-social”31,

segundo as palavras de

Eduardo Subirats, em A

Flor e o Cristal: ensaio

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Flor e o Cristal: ensaio

sobre arte e arquitetura

modernas. De outro

ângulo, este mesmo

modo de ver toma como

parâmetro formas

arquitetônicas,

enquanto representação

simbólica de uma

sociedade urbana que

vive um momento

histórico marcado pela

transformação da ordem

rural e a inviabilidade

do espaço urbano face

às novas demandas

sociais e econômicas.

Por isso, se falta

inspiração no relato

naturalista para

elaborar cartões-

postais, é porque a

cidade, misto de

monstro e labirinto,

suscita a fantasia de

uma iminente catástrofe

sempre adiada pelos

ajustes e pelas

conversões das formas

arquitetônicas, que o

narrador-curioso

devassa.

* O título é tirado de: Ferrez. Capão pecado. [2ª.ed.] São Paulo, Labortexto, 2000.p.121.

1 Brito Broca. A vida literária no Brasil –1900. [3ª ed.] Rio de Janeiro, J. Olympio/Departamento de Cultura da Guanabara, 1975. p. 185.

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3 Jane Catulle Mendès. La Ville Merveilleuse. Paris, E. Sansot, 1913.

4 Philippe Hamon. Expositions: littérature et architecture au XIXe siècle. Paris, JoséCorti, 1989.

5 Hamon, 1989.

6 Os métodos de trabalho de Aluísio Azevedo – documentação, observação,experimentação – supõem que ele tenha lido Le roman experimental, de Zola.Admitindo que não tivesse lido esta obra, ele não podia, no entanto ignorar asteorias do romancista francês, longamente expostas e comentadas na imprensa porSílvio Romero, José Veríssimo, Valentim Magalhães e Araripe Júnior. Esta obra deZola esteve no centro dos debates literários entre 1881 e 1890. Cf. Jean-YvesMérian. Aluísio Azevedo, vida e obra: (1857-1913). Rio de Janeiro, Espaço eTempo; Brasília, INL, 1988. p. 521.

7 Aluísio Azevedo alimentou, em vão, o desejo de estudar pintura na Itália. Ascrônicas registram que o quadro “A barricada”, o mais famoso do escritormaranhense, foi exposto no Maranhão e no Rio de Janeiro. Como caricaturista,participou de vários jornais ilustrados, entre eles, A Comédia Popular e OMequetrefe.

8 Araripe Júnior. Obra Crítica. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa,1966. Vol. III (1895-1900). p. 507.

9 A esse respeito, consultar as seguintes obras: Aluísio de Azevedo, vida e obra:(1857-1913), de Jean-Ives Mérian, e A metáfora do corpo no romance naturalista,de Sônia Brayner. Rio de Janeiro, São José, 1973. p. 92.

10 Antonio Candido. O discurso e a cidade. São Paulo, Duas Cidades, 1993. p.138.

11 Aluisio Azevedo. Casa de pensão. São Paulo, Martins,1970. p. 76.

12 Azevedo, 1970, p. 249.

13 Azevedo, 1970, p. 252.

14 Azevedo, 1970, p. 251.

15 Azevedo, 1970, p. 250.

16 Gilberto Freyre. Sobrados e mocambos. Rio de Janeiro, José Olympio, 1977.Vol. 2, p. 182 .

17 Azevedo, 1970, p . 296.

18 Lígia Vassallo. O cortiço e a cidade do Rio de Janeiro. Ipotesi. Juiz de Fora,UFJF, 2000. Vol. 6 . p. 104.

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19 Vassallo, 2000, p. 107.

20 Brayner, 1973. p. 92.

21 Aluisio Azevedo. O cortiço. [Preparo do texto e introdução por Sônia Brayner.]Rio de Janeiro, Americana, 1973. p. 33.

22 21 Cf. Jean Chevalier; Alain Gheerbrant. Dicionário de símbolos : Mitos,sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Coordenação CarlosSussekind; tradução Vera da Costa e Silva et al.. [2ª. ed.] Rio de Janeiro, JoséOlympio, 1989. p. 3-4; p. 447-448.

23 Adolfo Caminha. Bom-crioulo. São Paulo, Ática, 1983. p. 75.

24 Caminha, 1983, p. 16.

25 Caminha, 1983, p. 35.

26 Caminha, 1983, p. 37.

27 Caminha, 1983, p. 76.

28 Caminha, 1983, p. 77.

29 Caminha, 1983, p. 77.

30 Caminha, 1983, p. 77.

31 Eduardo Subirats. A flor e o cristal : ensaio sobre a arte e a arquiteturamodernas. São Paulo, Nobel, 1988. p. 31